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VIOLÊNCIAS E DILEMAS DO CONTROLE SOCIAL NAS SOCIEDADES DA ...

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VIOLÊNCIAS E DILEMAS DO CONTROLESOCIAL NAS SOCIEDADES DA

“MODERNIDADE TARDIA”

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar os fenômenos da violência difusa na sociedade contemporânea ediscutir os dilemas do controle social. A emergência de uma noção de segurança cidadã, na perspectiva damundialização, supõe a construção social de novas modalidades de controle social orientadas pelo respeito àdignidade humana.Palavras-chave: controle social; conflitualidades; segurança cidadã.

Abstract: The objective of this article is to analyze the phenomenon of diffuse violence in society and todiscuss the dilemmas of social control. The emergence of the notion of citizen safety, as seen from the perspectiveof globalization, presupposes the construction of new modes of social control based on respect for humandignity.Key words: social control; conflict; citizen safety.

JOSÉ VICENTE TAVARES DOS SANTOS

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 3-12, 2004

objetivo deste artigo é analisar os fenômenosda violência difusa na sociedade contemporâ-nea e discutir os dilemas do controle social, in-

formal e formal. Estudaremos as modificações na cons-trução de objetos sociais, expressos como problemassociais, construídos por atores, instituições e discursos:“conflitualidade”, “violência”, “criminalização”, “con-trole social”, “tecnologias sociais de poder”, “conflitossociais” e “lutas sociais contra a violência”. O alvo teó-rico é continuar o desenvolvimento de uma Sociologiada Conflitualidade, abordagem sociológica que preten-de explicar os processos de conflitualidade social, con-traditórios e conflitivos, salientando a necessidade dadiscussão política sobre o controle social.

Quais as possibilidades de ser instituída uma concep-ção de segurança cidadã, ou seja, um modelo de controlesocial que incorpore a participação social de modo arevitalizar os espaços urbanos, cêntricos e periféricos,garantindo uma vida cotidiana saudável?

O fenômeno da violência difusa consiste em um pro-cesso social diverso do crime, anterior ao crime ou aindanão codificado como crime no Código Penal. Durkheimconsidera o crime um fenômeno social normal, pois, em

toda sociedade, um certo número de crimes é cometido e,por conseqüência, se nos referimos ao que se passa regu-larmente, o crime não é um fenômeno patológico. Igual-mente, uma certa taxa de suicídios pode ser consideradanormal (Aron, 1967:340). Ainda assim, o crime é consi-derado por Durhkeim uma ruptura com a consciência co-letiva, razão pela qual sofre punição pela lei penal. Aocontrário, afigura-se que a violência difusa nas socieda-des do século XXI é, em larga medida, legitimada pelaconsciência coletiva, instituindo-se como norma social,ainda que controversa e polêmica.

Entre os conflitos sociais atuais, crescem os fenômenosda violência difusa e as dificuldades das sociedades edos Estados contemporâneos em enfrentá-los (Giddens,1966). Tal dificuldade expressa os novos limites daformação política da “modernidade tardia”, pois os laçosde interação social são orientados por modos violentosde sociabilidade, invertendo as expectativas do processocivilizatório (Harvey, 1993:17). Afirma Sousa Santos(1994:271): “(...) o Estado perde o monopólio daviolência legítima que durante dois séculos foi consi-derada a sua característica mais distintiva. (...) Em geralos Estados periféricos nunca atingiram na prática o

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monopólio da violência, mas parecem estar hoje maislonge de o conseguirem do que nunca”. As raízes sociaisdesses atos de violência difusa parecem localizar-se nosprocessos de fragmentação social, os quais refletem “adesagregação dos princípios organizadores da solida-riedade e a crise da concepção tradicional dos direitossociais em oferecer um quadro para pensar os excluídos”.(Rosanvallon, 1995:9). Em outras palavras, estamosdiante de processos de massificação paralelos a processosde individualização – “Somos células em uma sociedadede massas. A globalização é celular”, pois a “multidãosolitária” vive em uma pluralidade de códigos de conduta(Díaz, 1989:89-91). A cultura pós-moderna privilegia oacontecimento: “A realidade pós-moderna assume aexistência de conflitos irresolúveis” (Díaz, 1989:37).Desenvolve-se a vivência de uma incerteza: “O mundopós-moderno está se preparando para a vida sob umacondição de incerteza que é permanente e irredutível”(Bauman, 1998:32).

Esta é uma das facetas da lógica cultural do capitalis-mo avançado: a pluralidade, a descontinuidade, a disper-são (Jameson,1996). Como evoca Díaz (1989:17): “Nos-sa época, desencantada, se desembaraça das utopias,reafirma o presente, resgata fragmentos do passado e nãopossui demasiadas ilusões a respeito do futuro”. As rela-ções de sociabilidade passam por uma nova mutação,mediante processos simultâneos de integração comunitá-ria e de fragmentação social, de massificação e de indivi-dualização, de ocidentalização e de desterritorialização(Ianni, 1996). Repõe-se o problema de qual é o lugar daalteridade cultural na sociedade em processo de mundia-lização: “Nas sociedades do capitalismo tardio, o cultoda liberdade individual e o desdobramento da personali-dade se reformam e se localizam no centro mesmo daspreocupações” (Díaz, 1989:17). Retoma-se uma inquie-tação que estava presente nos primeiros sociólogos, pois:“O projeto sociológico nasceu de uma inquietude sobre acapacidade de integração nas sociedades modernas: comoestabelecer ou restaurar os laços sociais em sociedadesfundadas na soberania do indivíduo?” (Schnapper, 1998:15). Rompe-se a consciência coletiva da integração so-cial, um “declínio dos valores coletivos e com o cresci-mento de uma sociedade extremamente individualista”(Hobsbawm, 2000:136).

As questões sociais, desde o século XIX centradas emtorno do trabalho (Castel, 1998), tornam-se questões com-plexas e mundiais, pois várias são as dimensões do socialque passam a ser questionadas, entre elas a questão dos

vínculos sociais. Trata-se de uma ruptura do contrato so-cial e dos laços sociais, provocando fenômenos de“desfiliação” e de ruptura nas relações de alteridade, di-lacerando o vínculo entre o eu e o outro.

No limiar do século XXI, o panorama mundial émarcado por questões sociais mundiais que se mani-festam, de forma articulada e com distintas espe-cificidades, nas diferentes sociedades. Paradoxalmente,o internacionalismo está fundado em problemas sociaisglobais, tais como a violência, a exclusão, as dis-criminações por gênero, os vários racismos, a pobreza,os problemas do meio ambiente e a questão da fome. Astransformações do mundo do trabalho, mediante asmudanças tecnológicas, com novas possibilidades deemprego em determinados setores as quais vêm acom-panhadas pela precarização do trabalho, pelo desempregoe pelo processo de seleção/exclusão social (Larangeira,1999). Instaura-se um modo de organização da produçãopós-fordista, caracterizado pela desregulamentação, pelacrise do salariado: a precarização do assalariamento comoprincípio da conflitualidade social, redução do mercadode emprego formal, provocando a “desfiliação” dostrabalhadores em relação às estruturas coletivas do mundodo trabalho (Castel, 1998; Taylor, 1999:224; Garland,2001:81-82).

Conforme situa Hespanha (1999): “E não só as velhasdesigualdades baseadas nas diferenças de classes e de es-tatuto social em termos de rendimento, capital educacio-nal ou prestígio não desapareceram como emergiram (outornaram-se mais visíveis) novas desigualdades baseadasem outros fatores de distinção como o sexo, a etnia, a re-ligião ou os modos de vida” (Hespanha, 1999:70). Nestecontexto, emergem diferentes formas de desigualdade ede subordinação, seja em trabalhos temporários, seja pelosurgimento dos “novos pobres” ou pela vivência da “mi-séria do mundo” (Taylor, 1999:12; Bourdieu, 1993).

Também são relevantes as mudanças no mundo rural,desde a questão global da fome até as inovações tecnoló-gicas, e as novas formas de organização produtiva, comoa agricultura familiar e as atuais lutas sociais pela terraem diferentes países. A importância para o futuro da rela-ção do homem com a natureza, indicando a questão eco-lógica, a discussão sobre as tecnologias intermediárias ea noção de desenvolvimento com sustentabilidade (Sachs,1993). Desencadeiam-se processo de exclusão social: os“sem classe”, “sem terra”, aqueles que vivem a exclusãodigital, os “sem teto”, aqueles que passam fome ou os “semtrabalho”.

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Um novo espaço social mundial de conflitualidades estáse desenhando nos espaços e nos tempos da globalização(Ianni, 1996; Sousa Santos, 1994; Harvey, 1993; Giddens,1991), com a predominância da mercantilização do so-cial e a destruição das sociabilidades coletivas, ou seja,“o mercado é agora a fundamental força motor das práti-cas e discursos sociais e políticos contemporâneos”, como “desenvolvimento de novas formas de desigualdade so-cial (Taylor, 1999:54).

As instituições socializadoras vivem um processo decrise e desinstitucionalização, a família, escola, proces-sos de socialização, fábricas, religiões, e o sistema de jus-tiça criminal (polícias, tribunais, manicômios judiciários,prisões).

A crise da família avoluma-se, seja pela desnaturaçãoda ordem patriarcal realizada pelo movimento feminista,a crítica da dominação masculina (Bourdieu, 1998), sejapelo registro da violência doméstica (Saffioti; Almeida,1995; Gregori, 1992). Analisa Garland (2001:82-83): “Aestrutura da família foi substancialmente transformada.Houve um acentuado declínio (e concentração no tempo)da fertilidade, com as mulheres se casando mais tarde,tendo poucos filhos e reentrando no trabalho remuneradoimediatamente após dar a luz. Houve também um súbito enotável aumento dos divórcios”. Também as dificuldadesda identidade de gênero (Taylor, 1999:37-41) e as trans-formações da posição das mulheres na sociedade contem-porânea.

A crise da família cristaliza tais mudanças nos laçossociais, pois as funções sociais desta unidade social mar-cada por relações de parentesco – assegurar a reproduçãoda espécie, realizar a socialização dos filhos, garantir areprodução do capital econômico e da propriedade dogrupo, assegurar a transmissão e reprodução do capitalcultural – estão atualmente ameaçadas.

Por um lado, em decorrência da própria diversidade detipos de família no Brasil atual – família nuclear, famíliaextensa em algumas áreas rurais, famílias monoparentais,famílias por agregação. Por outro, os tipos de relações desociabilidade que nela se realizam são variadas, marcadasoriginalmente pela afetividade e pela solidariedade, agorareaparecem como largamente conflitivas, como o demons-tram os fenômenos da violência doméstica. Finalmente, asfunções de socialização são compartilhadas pela escola epelos meios de comunicação. Dessa forma, identifica-se umadesorganização do grupo familiar, com as funções de re-produção econômica ameaçadas pela crise do emprego as-sim como pelos efeitos da crise do Estado-Providência.

A VIOLÊNCIA DIFUSA NA“MODERNIDADE TARDIA”

Os fenômenos da violência difusa adquirem novos con-tornos, passando a disseminar-se por toda a sociedade. Essamultiplicidade das formas de violência presentes nas so-ciedades contemporâneas – violência ecológica, exclusãosocial, violência entre os gêneros, racismos, violência naescola – configuram-se como um processo de dilaceramen-to da cidadania. A compreensão da fenomenologia da vio-lência pode ser realizada a partir da noção de umamicrofísica do poder, de Foucault, ou seja, de uma redede poderes que permeia todas as relações sociais, mar-cando as interações entre os grupos e as classes (Foucault,1994:38-39). Deparamo-nos com as dimensões subjetivase objetivas das variadas formas de violências: violênciana escola, violência social, ecológica, exclusão, gênero,racismos. Configura-se uma “microfísica da violência” navida cotidiana da sociedade contemporânea (Tavares dosSantos, 2002b).

Efetiva-se uma pluralidade de diferentes tipos denormas sociais, algo mais do que o próprio pluralismojurídico, levando-nos a ver a simultaneidade de padrõesde orientação da conduta muitas vezes divergentes eincompatíveis, como, por exemplo, a violência configu-rando-se como linguagem e como norma social paraalgumas categorias sociais, em contraponto àquelasdenominadas de normas civilizadas, marcadas peloautocontrole e pelo controle social institucionalizado(Elias, 1990; 1993). Fortalece-se a prática de fazer justiçapelas próprias mãos, um traço de uma cultura orientadapelo hiperindividualismo (Díaz, 1898, 107). Nas palavrasde Bauman (1998:26): “A busca da pureza modernaexpressou-se diariamente com a ação punitiva contra asclasses perigosas; a busca da pureza pós-modernaexpressa-se diariamente com a ação punitiva contra osmoradores das ruas pobres e das áreas urbanas proibidas,os vagabundos e os indolentes”. Adquirindo a cultura umacentralidade na “modernidade tardia”, a disseminação deuma cultura de “ganhadores ou perdedores” (Taylor, 1999:34-37) acentua os valores do individualismo competitivoe a criação de uma cultura popular unidimensional,hedonista e imediatista (Young, 1999:10; Taylor,1999:90), induz as populações a viverem em novos grupossociais eletivos e auto-referidos (Garland, 2001:89).

O período atual pode ser denominado de Processo deMundialização, marcado pela pós-modernidade comoforma cultural, pela expansão da produção industrial em

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nova distribuição do trabalho planetária, com o avançodo capital especulativo e pelas conflitualidades sociaismundiais.

A herança do Estado de Bem-Estar Social e do Moder-nismo Penal (1946-1978) começou a ser abalada durantea crise global do final do século XX (1978-1991), comocomprova Hobsbawm (1994; 2000): assistimos ao finaldo “Estado de Bem-Estar” (1946-1973), no qual as insti-tuições sociais tinham um funcionamento regular, ao me-nos nos países desenvolvidos. O controle social formal(as polícias, o judiciário, o sistema da justiça criminal, asprisões) era orientado para a reabilitação dos delinqüen-tes, com uma intenção “correcional” e ressocializadora.Porém, também nessa época as instituições de controlesocial informal funcionavam regularmente: a família, aescola, os grupos sociais, as associações, os movimentossociais definiam normas de conduta, reproduziam valorese disseminavam orientações para a ação social. Estáva-mos vivendo o modelo de controle social “correcional”,pois todos os controles sociais, informais e formais, esta-vam em funcionamento, conforme a interpretação deGarland (2001:44): “O bem-estar penal retirava suportede uma particular forma de Estado e de uma particularestrutura de relações de classes. Funcionava em um am-biente específico de políticas sociais e econômicas einteragia com uma série de instituições contíguas, as maisimportantes das quais eram o mercado de trabalho e asinstituições do Estado de Bem-estar Social”. Por outrolado, o controle social distribuía-se pelas instituições so-cietárias: “Os controles sociais informais exercidos pelasfamílias, vizinhanças e comunidades, junto com as disci-plinas impostas pelas escolas, locais de trabalho e outrasinstituições criavam um cotidiano de normas e sanções queembasavam as demandas legais e garantiam suporte àsintervenções do bem-estar penal” (Garland, 2001:44). Umadas novas questões sociais mundiais tem sido a violênciano espaço escolar, marcada pela violência simbólica e pelaterritorialização do crime organizado (Tavares dos San-tos, 1999), também um sintoma da crise da juventudemasculina (Taylor, 1999:65-85; Zaluar, 1994).

O crime seria um epifenômeno da sociedade capitalis-ta, diziam em 1973 os autores da New Criminology, de-nominados, ao longo dos anos 90, de “realistas de esquer-da” na Inglaterra (Taylor; Walton; Young; 1990).Entretanto, acompanhando as mudanças sociais no finaldo século XX, três décadas depois os “realistas de esquer-da” chegariam a perceber os dilemas da “modernidade tar-dia”: as crescentes taxas de criminalidade; a revelação das

invisíveis vítimas; a problematização do fenômeno crimi-nal; a universalidade do crime; e a seletividade da justiça;os problemas da punição e da culpabilidade (Young, 1999:35-43).

As características da “modernidade tardia” seriam arepetição da exclusão social, a disseminação das violên-cias, a ruptura de laços sociais e a “desfiliação” de algu-mas categorias sociais, como a juventude, uma das gran-des vítimas da civilização, analisa Pais: “Nas décadasimediatas ao pós-guerra, as transições dos jovens asseme-lhavam-se a viagens de comboios nas quais os jovens,dependendo da sua classe social, gênero e qualificaçõesacadêmicas, embarcavam em diferentes comboios comdestinos pré-determinados”. Atualmente, “o terreno ondeas transições têm lugar é de natureza cada vez maislabiríntica. No labirinto da vida, como num labirinto ro-doviário, surgem freqüentemente sentidos obrigatórios eproibidos, alterações de trânsito, caminhos que parecemjá ter sido cruzados, várias vezes passados: essa retoma-da de caminhos que parecem que provoca uma sensaçãode perda, de confusão” (Pais, 2001:10).

Houve profundas alterações no espaço urbano, modi-ficando a visão da ecologia urbana da Escola de Chicago,pois a hegemonia “da sociedade de mercado” envolve umcrítico processo de retirada da autoridade pública da su-pervisão e manutenção dos espaços públicos na cidade”(Taylor, 1999:61). Completa Garland: “Os projetos derenovação urbana dos anos de 1960 continuaram o pro-cesso demolindo muitas vizinhanças das áreas urbanascentrais, o que resultou em novos sistemas de tráfico eauto-estradas, com a realocação dos moradores em proje-tos habitacionais concentrados. O efeito freqüentementefoi concentrar as famílias pobres e de minorias em áreasmuito afastadas da cidade nas quais faltavam os serviçosbásicos tais como lojas, empregos e bom transporte pú-blico” (Garland, 2001:84-85).

Produziu-se uma urbanização sociopática, com espa-ços urbanos fragmentados e segmentados, seguindo ummesmo padrão geral: centros deteriorados e bairros peri-féricos carentes, habitados por populações vulneráveis;bairros de populações de altas rendas, com forte presençade segurança privada assim como a implementação decondomínios fechados (Caldeira, 2000); territórios con-trolados pelo “crime organizado”; espaços privados decomércio, com controle social por segurança privada;desigualdade social e espacial; violência cotidiana nas ruas;e violência no espaço escolar (Taylor, 1999:110). Emsuma, a falência do poder público regulatório.

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Vivemos em um contexto societário no qual as con-cepções do crime passam por grandes metamorfoses(Young, 1999:46-47): a definição do crime passa a serproblemática, seja pelas novas modalidades de crime –criminalidade violenta; crime organizado, tráfico de ar-mas e de drogas; crimes de “colarinho branco”, crimesinformacionais, seja por fenômenos sociais de violênciacontra a pessoa ainda não consideradas, por exemplo, asviolências contra as crianças, sob a ideologia da educa-ção pelo castigo físico; os infratores da lei não são maisuma minoria mas podem ser extensos continentes sociais;a probabilidade de alguém ser vítima, de excepcional,passa a ser prevalecente e contingente; as causas do cri-me são difusas, eminentes ou por “escolha racional”, noscasos de delitos contra o patrimônio ou de extorsão porseqüestro; há uma continuidade entre o fato social normale o crime, transformado em fenômenos societários; o as-saltante deixa de ser profissionalizado para tornar-se umofensor sem especialização, realizando a ação delituosaquase ao acaso (Pegoraro, 1999); a relação entre agresso-res e vítimas passa a ser uma relação complexa, pois oagressor não é mais somente o estranho, mas alguém co-nhecido ou do próprio grupo da vítima, estranhos e ínti-mos, habitantes locais e de outras regiões; as causas docrime passam a ser multidimensionais; o crime passa a sersocietal, em um continuum na vida social, sendo o lugarda ocorrência ser tanto privado quanto público; e o con-trole social formal não mais é monopólio do sistema dejustiça criminal mas passa a ser compartilhado por outrasagências sociais.

Por conseguinte, os “impactos da modernidade tardiasobre as taxas de crime foram multidimensionais: aumen-to das oportunidades para o crime; redução dos controlessituacionais; aumento da população em risco; redução daeficácia dos auto-controles sociais como conseqüência dasmudanças na ecologia social e nas normas culturais”(Garland, 2001:90).

Estaríamos diante de uma crise da modernidade tardia,na qual a privação relativa combina-se com o individua-lismo, transformando-se em “uma comparação no interiorda divisão do trabalho e entre aqueles que estão no mer-cado e os excluídos, conformando uma grande vulnerabi-lidade social, pobreza e miséria. Assiste-se, nesse quadro,a uma ruptura dos controles sociais tradicionais (Young,1999:46-48), substituídos por uma invasão dos meios decomunicação na esfera da socialização. Cabe falar, então,de um tempo histórico não linear, pontual, repetitivo, deuma sociedade de risco (Young, 1999:68-72), na qual a

falência do controle social formal se expressa na crisemundial das polícias (Reiner, 2000; Bayley, 1996; Soa-res, 2000).

AS CONFLITUALIDADES SOCIAIS NOPROCESSO DE MUNDIALIZAÇÃO

No início do século XXI, a questão das conflitualidades– das formas de violência, das metamorfoses do crime, dacrise das instituições de controle social e dos conflitossociais – configura-se pela emergência de novas modali-dades de ação coletiva, com lutas sociais protagonizadaspor outros agentes sociais e diferentes pautas de reivindi-cações.

As questões substantivas – emergentes de pesquisastanto no espaço urbano quanto no espaço rural – para ofuturo da transformação social das sociedades latino-ame-ricanas, podem ser assim formuladas (Tavares dos San-tos, 2002c): “Quais as formas de violências que predomi-nam na América Latina no início do século XXI? Quaisas origens sociais, econômicas e políticas das violências?Qual a relação entre juventude e violência? Como se con-forma a crise do sistema de Justiça Penal? Quais as expe-riências inovadoras e as lutas sociais pela cidadania quese configuram atualmente na América Latina?”

A observação de um fato social – as violências disse-minadas pelo espaço social – possibilita a construção deum objeto sociológico, mediante a ótica espaço-temporalda conflitualidade, tecendo uma explicação sociológicada violência, a partir da experiência latino-americana, mascom alcance teórico para várias sociedades contemporâ-neas, pois nos encontramos diante da mundialização daviolência e da injustiça (Tavares dos Santos, 2002a).

Na sociedade brasileira, a Constituição de 1988,denominada de Constituição Cidadã, representou a ins-tauração do Estado Democrático de Direito, com inúmeraspossibilidades de aumento no acesso à Justiça, abrindo umprocesso de informalização da Justiça (Azevedo, 2000).Entretanto, foi escassa a discussão sobre o direito à segu-rança, prevalecendo o ponto de vista dos comandos dasPolícias Militares estaduais, o qual garantiu a definiçãoconstitucional dessas polícias como força auxiliar das forçasarmadas (Constituição Federal de 1988, art. 144) (Caldeira,2000).

As forças sociais democráticas vinham fazendo a de-núncia de graves violações de direitos humanos desde osanos de “chumbo” da ditadura militar. Por um lado, osliberais consideravam que o Estado de Direito superaria

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tanto a violência do Estado quanto a criminalidade. Poroutro, as forças de esquerda falavam em violência estru-tural do modo de produção capitalista, considerando ocrime um epifenômeno das relações de exploração. Pou-cos percebiam as relações entre cultura e violência comoestratégia de sobrevivência para algumas camadas popu-lares (Oliven, 1982).

Somente nos anos 90, a violência veio a tornar-se umproblema social e uma questão sociológica. Os estudossobre o crime já estavam presentes na historiografiabrasileira (Bretas, 1991), os processos da violênciapolítica rural já vinham sendo analisados, com largatradição nos estudos sociológicos (Tavares dos Santos,1991), e a denúncia da violência contra os trabalhadoresrurais e camponeses passou a ser sistemática (CPT,1989a-2002). A noção de “criminalidade violenta” passoua ser um instrumento chave para explicar a junção docrime com a violência, inaugurando uma larga série depesquisas e estudos de caso (Adorno, 1993; Zaluar, 1999;Kant de Lima et al., 2002). Em outras palavras, apublicação de uma série de resenhas sobre o estado daarte dos estudos sociológicos sobre crime e violência,incluindo os estudos sobre as polícias, a segurançapública, o poder judiciário penal, as prisões e osfenômenos de violência na escola (Sposito, 2001). Adiversidade regional dos estudos já possibilita tambémuma visão comparativa entre cidades e Estados, acres-cendo a visibilidade social e a compreensão sociológicadas conflitualidades na sociedade brasileira.

No início do século XXI, a questão das conflitualidades– das formas de violência, das metamorfoses do crime, dacrise das instituições de controle social e dos conflitossociais – configura-se pela emergência de novas modali-dades de conflitos sociais: “Estamos em presença de umsocial heterogêneo, no qual nem indivíduos nem gruposparecem reconhecer valores coletivos. Esse contexto dáorigem a múltiplos arranjos societários, a múltiplas lógi-cas de condutas. Predominando tal situação é válido falarem sociedade fragmentada, plural, diferenciada, hetero-gênea” (Grossi Porto, 1994). Conformam-se novas ques-tões sociais mundiais, seja porque “os processos de trans-formação pelas quais vem passando o trabalho afetam suacaracterística de integração social, com uma configura-ção fundamentalmente marcada pela fragmentação”(Grossi Porto, 1994), seja pela expansão dos fenômenosda violência difusa, para cuja explicação poderia ser útiluma microfísica da violência (Tavares dos Santos, 2002).Retomamos esta definição de violência difusa: as diferentes

formas de violência presentes em cada um dos conjuntosrelacionais que estruturam o social podem ser explicadasse compreendermos a violência como um ato de excesso,qualitativamente distinto, que se verifica no exercício decada relação de poder presente nas relações sociais deprodução do social. A idéia de força, ou de coerção, su-põe um dano que se produz em outro indivíduo ou gruposocial, seja pertencente a uma classe ou categoria social,a um gênero ou a uma etnia, a um grupo etário ou cultu-ral. Força, coerção e dano, em relação ao outro, enquantoum ato de excesso presente nas relações de poder. Pode-se verificar empiricamente na sociedade brasileira a sele-tividade social das vítimas: trabalhadores urbanos, mora-dores de bairros populares, pais, crianças, mulheres,jovens, negros, índios. Do sexo masculino: acidentes detrânsito, homicídios, armas de fogo; jovens e adolescen-tes: abuso sexual; violência doméstica (contra crianças,idosos, mulheres): contra crianças, castigos corporais emaus-tratos; violência sexual contra as mulheres e o au-mento do registro da violência doméstica.

A PRODUÇÃO DO ESTADO DECONTROLE SOCIAL PENAL

A violência como nova questão social global está pro-vocando mudanças nos diferentes Estados, com a confi-guração de Estado de Controle Social repressivo: em ou-tras palavras, estamos diante de formas contemporâneasde controle social, com as características de um Estadorepressivo acompanhando a crise do Estado-Providência.Alguns elementos possibilitam caracterizar este estadopenal:- O discricionarismo e a violência policial aparecem comoumas das novas questões sociais globais, em grande parteainda impensada pela sociologia, na perspectiva daconflitualidade. Na última década, a questão policial tor-nou-se mais complexa, seja pela suposta ineficácia e ine-ficiência frente ao crescimento e diferenciação das açõessociais socialmente criminalizadas, seja pelos novos fe-nômenos criminalizados na “modernidade tardia” nos paí-ses centrais do mundo capitalista (Young, 1999). Expan-de-se, pelo planeta, a opção pelo crescimento das funçõesde controle social repressivo da polícia, com o apelo sis-temático ao uso da violência ilegal e ilegítima.

- A produção social do sentimento de insegurança: “Oshomens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhãode suas possibilidades de segurança por um quinhão defelicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de

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uma espécie de segurança que tolerava uma liberdadepequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie deliberdade de procura do prazer que tolera uma segurançaindividual pequena demais” (Bauman, 1998:10). Tal in-certeza tem sido produzida pelo enfraquecimento dos la-ços sociais, desde a insegurança no emprego à crise dasrelações sociais entre as pessoas (Hobsbawm, 2000:138-194; Bauman, 1998:32-35; Garland, 2001:92). A reaçãodo público seria marcada pelo “medo do crime” e pelo“pânico moral”, a “sensação de insegurança” (Young,1999), o “medo de falhar” similar ao “medo do outro”,uma crise da civilidade na vida cotidiana (Taylor, 1999:17-19).

- O programa de “tolerância zero”, da polícia de NovaYork, somente em seu aspecto de reforço do policiamen-to ostensivo mas desprezando toda a rede de serviços deassociações que, naquela cidade, faz parte do programa(Young, 1999:121-148).

- O controle social do crime não é mais apenas das agên-cias estatais, mas também das polícias privadas, formaisou precárias, configurando um “complexo de serviços pri-vados de segurança”.

- O encarceramento dos “consumidores falhos”, pois “abusca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente coma ação punitiva contra os moradores das ruas pobres e dasáreas urbanas proibidas, os vagabundos e os indolentes”(Bauman, 1998:26). Consolidou-se a indústria carcerária:“Durante os últimos vinte e cinco anos, a população deencarcerados e de todos os que obtêm a sua subsistênciada indústria carcerária – a polícia, os advogados, os for-necedores de equipamento carcerário – tem crescido cons-tantemente. O mesmo aconteceu com a população de ocio-sos – exonerados, abandonados, excluídos da vidaeconômica e social. Conseqüentemente, como seria pre-visível, aumentou o sentimento popular de insegurança”(Bauman, 1998:49; Wacquant, 2000). Finalmente, a bar-bárie das prisões enquanto depósito de “hombres infa-mes”, nas quais passa a predominar uma orientação re-pressiva, aumenta a duração das penas privativas deliberdade, restringindo-se a vida dos apenados nos presí-dios de segurança máxima, com o abandono dos ideais“correcionais” da época anterior.

Em síntese, o Estado do controle social penal apresen-ta as seguintes características: a polícia repressiva, o Ju-diciário penalizante, a privatização do controle social, fa-zendo com que o crescimento das polícias privadas e das

prisões privadas seja acompanhado pelo “complexo in-dustrial-policial”, ou todos os ramos industriais envolvi-dos com equipamentos e instalações de prevenção e re-pressão ao crime, tais como seguros, segurança privada,viaturas, equipamentos de comunicação, sistemas de in-formação, etc. (Taylor, 1999:213-222).

As dificuldades políticas advindas dos processos detransição democrática na América Latina, nos últimos 20anos, pois não só permanece o desconhecimento e a sur-presa, em face da expansão dos fenômenos de violência,como nos esforços de reconstrução institucional visandoa plenitude do Estado de Direito não foi colocada em ques-tão várias dimensões do controle social institucional, emparticular, a situação das prisões e os modos de funciona-mento das polícias. Cabe salientar as dificuldades de acessoà justiça, a seletividade social da justiça penal e a perdade legitimidade das instituições de controle social.

As lutas sociais contra a violência expressam as possi-bilidades de uma governamentalidade, fundada na socie-dade civil e na construção social da cidadania, buscando-se a reconstrução das relações de sociabilidade medianteoutras bases da solidariedade social.

Entre os agentes da transformação, podemos identifi-car as instituições da sociedade civil que promoveram taislutas: a campanha de Hélio Bicudo contra os “grupos deextermínio” em São Paulo, nos anos 70; a campanha pelaAnistia, de 1975 a 1979; o grupo ecumênico, católico,luterano e judeu, do movimento “Tortura Nunca Mais”,no início dos anos 80; a Campanha Nacional contra a Vio-lência, levada adiante pela OAB; e a Campanha sobre aViolência contra a Criança, organizada pela Confedera-ção Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Igreja Evan-gélica de Confissão Luterana do Brasil – IECLB e Co-missão Pastoral da Terra – CPT.

Nos anos 90, assistimos a sucessivas campanhas con-tra a violência no campo, protagonizadas pela ComissãoPastoral da Terra, da CNBB, Confederação dos Traba-lhadores na Agricultura – Contag e Instituto Brasileirode Análise Sociais e Econômicas – Ibase, desde 1985; asComissões de Direitos Humanos; as ONG, como o Movi-mento Viva Rio; as campanhas contra a violência à mu-lher; os movimentos de homossexuais denunciando a vio-lência contra gays, lésbicas e travestis; as lutas domovimento negro, e tantas outras.

Também as campanhas contra a violência nos presí-dios, levadas adiante pela Comissão de Justiça e PazTeotônio Vilela, da Arquidiocese de São Paulo; a mobili-zação pela desmilitarização das polícias militares esta-

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duais, capitaneada por Hélio Bicudo e pelo Núcleo deEstudos da Violência da USP, dirigido por Paulo SérgioPinheiro; a Comissão de Direitos Humanos da Câmara deDeputados, as Comissões de Direitos Humanos da Assem-bléia Legislativa do Rio Grande do Sul (Relatório Azul,1994-2002); e a Campanha pela Paz nas Escolas, capita-neada pela Unesco.

POSSIBILIDADES DE UM CONTROLESOCIAL DEMOCRÁTICO

Neste nascente século XXI, multiplicam-se os projetospara prevenir as violências e reduzir a criminalidadeviolenta, na perspectiva de novas alternativas de políticaspúblicas de segurança que possam garantir o direito desegurança dos cidadãos e cidadãs nas sociedades do séculoXXI. São efeitos múltiplos da mundialização da questãodos direitos humanos, desde a II Conferência Internacionalde Direitos Humanos, reunida em Viena, em 1995.

Estamos, desde 2001, em um período de proposiçõespara “um outro mundo possível”, como aconteceu duran-te o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, nos anos de2001, 2002 e 2003. Entretanto, se muito se discutiu sobrea violência, em particular a violência doméstica e a vio-lência contra os jovens, o debate sobre a questão da segu-rança foi escasso, e sobre a questão da reforma das polí-cias foi nulo.

Assistimos a uma virtual impossibilidade do ofício depolicial, seja pelas dificuldades em garantir a ordem pú-blica, por ela estar internacionalizada e privatizada, sejapelas limitações em contribuir à construção do consenso,pois as bases da comunidade não mais existem em socie-dades complexas e com o mundo do trabalho deses-truturado. A análise de várias situações reais pode levar aperceber a vigência, na sociedade brasileira, de uma re-presentação social baseada em tecnologias de poder re-pressivas, mas também cabe salientar a emergência deações coletivas e de trabalhos institucionais enquanto ex-pressões de um movimento contra a violência.

Tal movimento de reforma do trabalho policial tem sido,por um lado, marcado por uma colaboração entre univer-sidades e escolas de Polícia, em vários estados brasilei-ros, nos últimos anos, que tem sido franca e profícua, in-dicando um movimento de transformação de currículos,de conteúdos e de concepção do ofício de policial (emMinas Gerais, a UFMG e a Fundação João Pinheiro; noRio Grande do Sul, a Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul, desde 1992; no Rio de Janeiro, a UERJ e a

Universidade Federal Fluminense; em São Paulo, a USP;na Bahia, a UFBA; em Pernambuco, a UFPE; no Pará, aUniversidade Federal do Pará, no Ceará, a UniversidadeFederal do Ceará).

Na mesma perspectiva, estão as experiências e as dis-cussões acerca do modelo da polícia comunitária, ou dapolícia de proximidade, mediante a análise das experiên-cias no Canadá, na França, na Espanha, nos Estados Uni-dos e na Inglaterra, assim como em São Paulo, no Rio deJaneiro, na Bahia, no Amapá, no Espírito Santo e no RioGrande do Sul (Mesquita Neto, 1998; Muniz, 1997). Tam-bém está em curso, no Brasil, uma discussão sobre a re-forma das polícias estaduais, tendo sido lançado, em de-zembro de 1999, um projeto de emenda constitucional quepropõe um “novo modelo de polícia no Brasil”, com osseguintes itens: unificação das polícias civis e militaresem cada estado; extinção dos tribunais militares estaduais;eliminação do inquérito policial; e controle externo daspolícias por ouvidorias.

Desta forma, para responder a tais processos sociaisplanetários, impõe-se propor uma diversificação nas alter-nativas de desenvolvimento para as sociedades contem-porâneas, tanto no centro como na periferia do sistemaglobal. Contra essa sociedade normalizadora e progra-mada, efeito de uma tecnologia de poder centrada na vida,e de um Estado orientado para o controle social penalemergem, aparecem, no jovem século XXI, forças sociaisde resistência, novos movimentos sociais, a crítica aosprocessos sociais de construção da violência simbólica edas “representações sociais da insegurança” e as concep-ções de uma polícia cidadã orientada para a mediação deconflitos.

Seria, então, possível, pensar a construção de uma ci-dadania transnacional ou mundial, marcada pela criaçãoinstitucional e pela difusão e comunicação de práticassociais, jurídicas e simbólicas, inovadoras e globais, noâmbito da sociedade civil: “É no âmbito da sociedade ci-vil mundial, vista como o novo palco da história, que osindivíduos e as coletividades, as classes e os grupos, osgêneros e as etnias, as línguas e as religiões adquiremoutros e novos significados, envolvendo movimentos deintegração e fragmentação, acomodação e contradição,reforma e revolução” (Ianni, 2003:129).

Por um lado, a reinvenção das formas de solidariedade;por outro, a redefinição do trabalho, em múltiplas relaçõessociais, tanto no espaço rural como no espaço urbano; en-fim, a prevenção e erradicação das formas de violência so-cial; e a construção de um outro tipo de trabalho policial.

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VIOLÊNCIAS E DILEMAS DO CONTROLE SOCIAL NAS SOCIEDADES DA ...

Estamos no limiar de um processo político no qual aquestão da segurança retoma as origens da polis e dapolitéia, como conjunto das instituições necessárias aofuncionamento e à conservação da cidade, incluindo-se odireito coletivo da segurança dos cidadãos e cidadãs.

Em outras palavras, a emergência de uma noção desegurança cidadã, na perspectiva da mundialização, supõea construção social de controle social democrático,mediante o qual tanto as instituições de socialização – afamília, a escola, as associações locais, os meios decomunicação – quanto as organizações do controle socialformal – as polícias, o sistema judiciário, as instituiçõesprisionais – reconstruam o objetivo de uma governa-mentalidade preocupada com as práticas de si, emanci-patórias, dos conjuntos de cidadãos e cidadãs em suasvidas cotidianas, em suas trajetórias sociais e em seussonhos de sociedade. Tais possibilidades estão presentesnas lutas sociais mundiais pela construção de umasociedade democrática, com novas modalidades decontrole social orientadas pelo respeito à dignidadehumana.

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JOSÉ VICENTE TAVARES DOS SANTOS: Sociólogo, Professor do Departa-mento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia,Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, Pes-quisador do CNPq; Membro do Conselho Nacional da SBPC, Vice-Presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia([email protected]).

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METODOLOGIAS E CRIMINALIDADE VIOLENTA NO BRASIL

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METODOLOGIAS E CRIMINALIDADEVIOLENTA NO BRASIL

Resumo: Este artigo desenvolve uma discussão metodológica sobre análises da distribuição espacial e tempo-ral da criminalidade. A partir de metodologia originalmente construída na Fundação Seade, faz-se um debatesobre a não pertinência do ranqueamento de crimes e cidades e defendem-se análises que focam a intensidadee o comportamento evolutivo da criminalidade no tempo e no espaço.Palavras-chave: estatísticas criminais; crimes violentos; violência no Brasil.

Abstract: This article takes a methodological approach to the spatial and chronological analysis of criminality.Based on the methodology developed by Fundação Seade, the relevance of the ranking of crimes and cities isdebated, and a case is made for a method of analysis that focuses on the intensity and the evolution of criminalbehavior over time and space.Key words: crime statistics; violent crimes; violence in Brazil.

BETÂNIA TOTINO PEIXOTO

RENATO SÉRGIO DE LIMA

MARCELO OTTONI DURANTE

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 13-21, 2004

s estudos sobre crime e violência no Brasil ga-nharam fôlego a partir dos anos 70 e, desde en-tão, sofisticaram o debate sobre os significados

e sentidos que tais conceitos têm assumido na nossa so-ciedade. Ao longo dos últimos 30 anos, ambos os concei-tos passaram a comportar múltiplas interpretações e, porconseguinte, impuseram um desafio complementar àque-les que produzem estatísticas e indicadores sociais e, emespecial, aos que têm como atividade profissional conso-lidar e/ou descrever tendências e movimentos da crimina-lidade, sejam institutos de pesquisa, instituições nacionaise/ou regionais de estatísticas ou órgãos governamentais.

O desafio posto é consolidar um acervo mínimo de in-formações, com base em critérios, padrões e linguagensde fácil compreensão e utilização. Afinal, agregados es-tatísticos constituem um dos modos de compreender econtrolar as populações e, como afirma Haggerty (2000:5), são condições-chave para a possibilidade de governançae também funcionam como forma de produção de subjeti-vidades (Haggerty, 2000:48). Isso significa dizer, portan-to, que as estatísticas não são desprovidas de ideologia eretroalimentam o funcionamento e os interesses da buro-cracia de Estado, a qual, envolvida na produção das esta-

tísticas, é uma das mais anônimas estruturas de Estado,além de ser quem determina não somente regras adminis-trativas, mas classificações e critérios de seleção de prio-ridades de governo. O problema, portanto, seriam os pa-râmetros e os objetivos por detrás das classificações que,no limite, traduziriam a gramática e a linguagem do poder(Hacking, 1991).

É neste contexto que o debate sobre metodologias deanálise espacial e temporal da criminalidade, principal-mente nas suas modalidades violentas, ganha corpo e dásentido aos objetivos deste artigo, na medida em que cri-me e violência manifestam-se como fenômenos altamentecorrelacionados com as dimensões espaço e tempo. As-sim, ao se propor uma metodologia de análise da crimina-lidade violenta no país, preocupa-se, na realidade, emconstruir indicadores sociais sensíveis o suficiente para,ao mesmo tempo, indicar o movimento e a tendência daviolência e identificar o resultado da ação do Estado numaárea hoje particularmente crítica da nossa sociedade.

Em outras palavras, a proposta é pensar uma meto-dologia que descreva as diferenças regionais do crime eda violência e, ainda, descreva/identifique o impacto daspolíticas públicas até então empreendidas. Do contrário,

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a construção de indicadores e estatísticas pode, muitoprovavelmente, cair em armadilhas organizacionais queimpeçam sua incorporação como ferramentas de planeja-mento de políticas públicas. Muitas das políticas públicasiniciadas nesta área dependem de um longo tempo dematuração, e uma simples avaliação da tendência doscrimes pouco avança na compreensão daquilo que podeou que deve ser conduzido para reduzir o impacto docrime violento na sociedade brasileira. Apresentar oranking dos crimes e das Unidades da Federação poucoacrescenta ao debate público hoje existente e pode reificarestigmas e preconceitos, até mesmo com impactoseconômicos.

Por detrás de um método bastante simples está o pres-suposto político de que transformações no modelo de ges-tão da segurança pública e impactos nas tendências dacriminalidade violenta no país somente serão viáveis coma circunscrição o mais precisamente possível das compe-tências, responsabilidades e resultados das políticas em-preendidas. Polícia e Justiça, portanto, não são o resulta-do apenas de práticas jurídicas e/ou técnicas e dependemfortemente de enfoques multidisciplinares (Lima, 2003).

Para além da construção de indicadores, defende-se aincorporação da avaliação como pressuposto de políticaspúblicas. Com indicadores sensíveis e práticas de avaliaçãodisseminadas, a possibilidade de aumento de eficiência dapolítica é uma realidade concreta. Trata-se de superar oempiricismo e avançar na articulação de novos procedi-mentos de gestão e integração de ações, muito mais pode-rosos do que alterações legislativas casuísticas e pautadaspela vontade de vingança despertada pela sensação demedo, insegurança e impunidade que é observada no país.

Por mais que a estrutura normativa seja passível decríticas, crime e violência podem ser imediatamente com-batidos com investimentos na reestruturação da gestão dasinstituições de Justiça Criminal do Brasil. Polícias Civil eMilitar, Ministérios Públicos, Poder Judiciário, SistemaCarcerário e, mais recentemente incluídas no rol de insti-tuições de segurança, as Guardas Municipais ainda funcio-nam de forma pouco eficiente. Novas tecnologias e méto-dos de administração, quando incorporados, não sãocapazes de alterar procedimentos, processos e fluxos,quase sempre justificados no rigor da técnica jurídica, masmuitas vezes criados na lógica da reprodução burocráticade práticas passadas. É verdade que nos últimos anos umasérie de medidas tem sido adotada para alterar este qua-dro e que muitas delas possuem níveis considerados desucesso. Até por isso, reconhece-se que o desafio é gran-

de e que a contribuição deste artigo é bastante circunscri-ta a uma esfera dos inúmeros problemas relacionados aosfenômenos do crime e da violência.

No limite, o objetivo aqui é ampliar a discussão so-bre transparência, acessibilidade e qualidade dos dadoscriminais existentes no país. Para tanto, considerou-seque, no monitoramento das tendências temporais e es-paciais da criminalidade violenta, uma nova forma de vi-sualização dos problemas se coloca. Em vez do tradi-cional “ranqueamento” de cidades e/ou Unidades daFederação, ou seja, listá-las por ordem de colocação,propõe-se um outro enfoque, que considera os patama-res e volumes de registros e também identifica se deter-minado tipo/padrão de crime violento está apresentandoum comportamento crescente ou decrescente em relaçãoà sua notificação.

Isso é importante para avaliar esforços que possam estarsendo feitos e que ainda não tenham conseguido alterar aposição de uma ou outra unidade da federação no ranking,mas que são fundamentais e devem ser incentivados. Docontrário, a cada divulgação, novas ações podem vir a serplanejadas e implantadas sem o devido conhecimento dofenômeno, gerando descontinuidades, fragmentação daspolíticas e baixa efetividade da ação pública.

Diante destes objetivos, o desafio foi pensar em comopoder-se-ia apresentar, de forma bastante simples e clara,a evolução dos registros policiais e avaliar a distribuiçãoespacial da criminalidade. Para tanto, utilizou-se metodo-logia desenvolvida originalmente na Fundação Seade(2001) para avaliar, exatamente, a distribuição espacialde crimes no Estado de São Paulo e foram feitas adapta-ções para torná-la mais sensível às pequenas oscilaçõesna incidência da criminalidade. Com isso, foi possívelidentificar, além do volume de registros de crimes vio-lentos, o nível de oscilação que a intensidade deste fenô-meno vem apresentando ao longo dos anos.

A diferença em relação à metodologia original, comojá foi dito, é que agora pode-se mensurar a intensidade docrescimento ou da redução das taxas de ocorrênciaspoliciais por 100 mil habitantes. Seja como for, paradescrever as etapas e procedimentos, apresentam-se aseguir, o detalhamento desta metodologia e uma aplicaçãoprática na divulgação do panorama da violência no Bra-sil, sob responsabilidade da Secretaria Nacional de Segu-rança Pública, que assumiu esta nova forma de apresentaros dados, aumentando, assim, a compreensão sobreproblema tão candente hoje no país. Na prática, propõem-se abordagens inovadoras de registros administrativos,

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METODOLOGIAS E CRIMINALIDADE VIOLENTA NO BRASIL

muitas vezes esquecidos pelas Instituições Estatísticasdevido aos custos de seu tratamento e/ou em razão dedecisões que priorizam outras formas de coleta de dados.

O exercício a seguir é apenas um pequeno exemplo dopotencial que o uso de informações criminais possui.

METODOLOGIA

A metodologia proposta por este trabalho é bastantesimples e consiste em técnica de análise dos dados crimi-nais, considerando-se as dimensões espacial e temporaldo fenômeno. A primeira é contemplada na comparaçãodo fenômeno ocorrido na região territorial de análise como fenômeno vigente em todo o território, enquanto a tem-poral é considerada quando se analisa o fenômeno emvários períodos temporais e sua taxa de crescimento. As-sim, a sofisticação é possível com a sobreposição de aná-lises que, da forma tradicional, seriam feitas separadamentee nem sempre relacionadas entre si.

O método consiste em, primeiramente, fazer uma mé-dia da taxa de crime por 100 mil habitantes1 nos períodosde tempo considerados para cada região:

onde:txcrime é a taxa de crime por 100 mil habitantes;

R é a região territorial; i são os períodos de tempo; n é o número de períodos.

Além da taxa de crime por 100 mil habitantes médiados períodos de tempo para cada região, calcula-se a taxade crescimento desta no período total:

Em seguida, é calculada a média do território atravésda variável Média

R:

( )n

txcrimeMédia

n

i

R

∑= 1

1

1)(

txcrime

txcrimetxcrimecres n

R

−=

onde:Média

R é a média da taxa de crime por 100 mil habitantes

nos períodos de tempo;T indica todo o território;R são as regiões territoriais;r é o número de regiões.Após os cálculos, dividem-se as regiões em dois clusters

(grupos) de análise por meio da comparação da taxa decrime por 100 mil habitantes média de cada região(Média

R) com aquela referente ao total do território

(MédiaT), usando o seguinte critério:

Se MédiaR > MédiaT então a região é do cluster “acima

da média”.Se Média

R < MédiaT então a região é do cluster “abaixo

da média”.

Feita a separação das regiões por clusters, utiliza-sea taxa de crescimento (cres

R) para construção do mapa

temático, que é elaborado conjuntamente para os doisclusters, considerando faixas de taxa de crescimento ob-tidas de acordo com a análise de sua distribuição. Paramelhor visualização, subdividem-se dentro de cadacluster as regiões em que a taxa de crescimento é maiorque zero (a taxa de crime por 100 mil habitantes cresceuno período) e aquelas em que essa taxa é menor que zero(a taxa de crime por 100 mil habitantes decresceu noperíodo).

Desta forma, a visualização final da metodologia é ummapa temático que combina a posição da taxa de crimepor 100 mil habitantes média da região em relação à doterritório total com a taxa de crescimento desta noperíodo.

A aplicação desta metodologia utilizou, como unidadede análise espacial, os Estados brasileiros e, como dimen-são temporal, os cinco semestres compreendidos entre ja-neiro de 2001 e junho de 2003. Como taxa de criminali-dade, usaram-se os indicadores criados pela SecretariaNacional de Segurança Publica – Senasp, que dividem asocorrências de crimes violentos intencionais registradaspelas Polícias Civis das Unidades da Federação em: cri-mes letais intencionais; crimes violentos não letais contraa pessoa; e crimes violentos contra o patrimônio. Alémdisso, apresenta-se uma análise da razão entre populaçãoe total de efetivo das Polícias Militar e Civil com o intui-to de ilustrar a utilização da metodologia em outros fenô-menos que não a criminalidade. Os resultados serão exi-bidos na próxima seção.

( )r

MédiaMédiaT

r

R∑= 1

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1) 2004

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PANORAMA DA VIOLÊNCIA NO BRASIL

Como aplicação metodológica, mostra-se a seguir umpanorama da violência no Brasil a partir do volume deocorrências policiais registrados entre o primeiro semes-tre de 2001 e o primeiro semestre de 2003. Contudo, cabedestacar que o crescimento da criminalidade, observadoa partir das estatísticas oficiais, pode estar refletindo umasérie de outros fenômenos que não o efetivo aumento daincidência destes crimes específicos. Vale lembrar que,como fontes de informação, dados estatísticos, em suamaioria produzidos pelo Estado, implicam necessariamentea contextualização dos resultados obtidos, tal como já foienunciado anteriormente.

Neste contexto, emerge entre os desafios postos ao de-senho de uma política abrangente de segurança pública adificuldade em se dispor de informações quantitativas equalitativas de qualidade, passíveis de serem incorporadascomo ferramentas de planejamento de políticas públicas.Não obstante algumas iniciativas locais que vêm sendoadotadas nos Estados e pelo Ministério da Justiça, é possí-vel afirmar que ainda não existe uma política de integraçãode informações em justiça criminal e segurança pública.

O Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacio-nal de Segurança Pública, tem investido esforços e recur-sos na política de aprimoramento do tratamento e gestãoda informação pelas organizações policiais federais, es-taduais e municipais. Exemplo desta ação foi o lançamento,em dezembro de 2003, do primeiro módulo do SistemaNacional de Estatísticas de Segurança Pública e JustiçaCriminal, que envolveu diversas etapas fundamentais paraa padronização dos procedimentos de tratamento da in-formação: construção de um sistema de compatibilizaçãodas 54 formas de classificação das ocorrências policiaisutilizadas pelas organizações policiais militares e civisestaduais; realização de um diagnóstico amplo dos obje-tivos atribuídos pelo público à constituição do sistema;difusão de uma política de valorização dos mecanismosde gestão do conhecimento e da informação; e definiçãode uma política clara de relação entre o público interno eo externo das organizações policiais.

Estas iniciativas são fundamentais para a incorporaçãoda informação como ferramenta de ação, mas ainda de-pendem da articulação de esforços interinstitucionais, nãosendo possível, neste momento, extrair dados e informa-ções já neste formato de produção e uso. Entretanto, aaplicação da metodologia aqui apresentada toma por baseos dados já disponíveis e, como será visto a seguir, per-

mite destaques e notas sobre o que o senso comum imagi-na como a realidade da violência no Brasil.

No Mapa 1 visualizam-se dois aspectos específicos: aposição do Estado em relação à incidência nacional dofenômeno e sua situação quanto ao comportamento cres-cente ou decrescente da taxa de incidência.

Verifica-se que, das 27 Unidades da Federação, 15apresentam taxas de registro de crimes letais intencionaisabaixo da média ponderada nacional e 12 registram valo-res acima desta média. Entre os Estados com taxas infe-riores à média nacional, Pará, Rio Grande do Sul, Roraima,Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Paraná tiveram decrés-cimo da taxa no período. Daqueles que exibiram taxasacima da média brasileira, Rondônia, Mato Grosso do Sul,São Paulo, Espírito Santo e Distrito Federal apresentaramredução das taxas no período. Nas demais unidades, astaxas cresceram.

Na Região Norte, Amapá, Acre e Rondônia exibemtaxas de crimes letais intencionais acima da média nacio-nal, sendo que em Rondônia houve redução no períodoanalisado, enquanto no Amapá e no Acre registrou-se au-mento da taxa. Os demais Estados da Região Norte apre-sentaram taxas de crimes letais intencionais abaixo damédia ponderada nacional e somente no Amazonas estataxa cresceu no período analisado.

Na Região Nordeste também predominam os Estadoscom taxas abaixo da média nacional. Somente Pernambu-co, Alagoas e Sergipe exibem taxas de crime letal inten-cional superiores à do país. Entretanto, em todos os Esta-dos da região, exceto Piauí, a taxa de crime por 100 milhabitantes aumentou no período.

Ao contrário do Nordeste, na Região Centro-Oeste apredominância é de Estados com taxas de crimes letaisintencionais acima da média ponderada nacional. Ape-sar disto, estas taxas diminuíram no período, com exce-ção de Goiás, onde verificou-se aumento. O Estado doMato Grosso foi o único que exibiu taxas abaixo destamédia.

Na Região Sudeste, apenas Minas Gerais apresentoutaxas de crimes letais intencionais abaixo da média na-cional, porém estas cresceram 25% no período. Já SãoPaulo e Espírito Santo, com taxas acima da média nacio-nal, registram decréscimos de 1% a 15% no período. Oestado do Rio de Janeiro além de estar acima da médianacional teve a taxa crescendo 14% no período.

Por fim, os três Estados da Região Sul tiveram taxasde crimes letais intencionais abaixo da média ponderadanacional. Além disso, no Rio Grande do Sul e, principal-

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METODOLOGIAS E CRIMINALIDADE VIOLENTA NO BRASIL

mente, no Paraná verificou-se redução dos valores no pe-ríodo. Entretanto, em Santa Catarina houve crescimentodas taxas no período.

Em relação à incidência de registros de crimes violen-tos não letais contra a pessoa, verifica-se que apenas seisUnidades da Federação possuem taxas superiores à mé-dia nacional: Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Bahia,São Paulo, Distrito Federal e Rio de Janeiro. Destes Esta-dos, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais se destacam pelocrescimento das taxas de registro destes delitos. Entre as

21 Unidades da Federação com taxas inferiores à nacio-nal, cinco apresentaram redução da taxa (Ceará e Piauí,com decréscimo de 1% a 30% no período, e Roraima,Amazonas e Mato Grosso, com declínio superior a 30%)e 16 estados registraram aumento (Acre, Rondônia,Amapá, Pará, Tocantins, Rio Grande do Norte, Paraíba,Alagoas, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande doSul, com crescimento de 1% a 30% no período, eMaranhão, Pernambuco, Sergipe e Pará, com expansãoacima de 30%).

MAPA 1

Taxas de Crescimento dos Registros de Crimes Letais IntencionaisUnidades da Federação – 2001-2003

Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública; Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp/Ministério da Justiça.

Todos os Estados da Região Norte exibiram taxas decrimes violentos não letais contra pessoa abaixo da mé-dia ponderada nacional. No Amazonas e em Roraima, es-tas decresceram mais de 30% no período, enquanto noAcre, Rondônia, Pará, Amapá e Tocantins aumentaramde 1% a 20%.

Na Região Nordeste apenas a Bahia registrou taxas su-periores à média nacional, porém estas reduziram-se no pe-

ríodo. Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas exibiramtaxas que cresceram de 1% a 30% no período, assim comoMaranhão, Pernambuco e Sergipe, cujo aumento foi supe-rior a 30%. Por fim, as taxas do Piauí e Ceará diminuíramno período.

Dos Estados da Região Centro-Oeste, Mato Grosso doSul e o Distrito Federal apresentaram taxas acima da mé-dia nacional, mas só a do Mato Grosso do Sul aumentou

Média Ponderada Nacional: 12,8 / Por 100 mil habitantes

Acima da média nacional e crescendoacima de 30% no período Alagoas e Sergipe

Acima da média nacional e crescendode 5% a 30% no período

Acre, Amapá, Pernambuco,Goiás, Rio de Janeiro

Acima da média nacional e decrescendode 1% a 15% no período

Rondônia, Mato Grosso do Sul, SãoPaulo, Espírito Santo, Distrito Federal

Abaixo da média nacional e crescendoacima de 25% no período

Maranhão, Paraíba, Minas Gerais,Santa Catarina

Abaixo da média nacional e crescendode 1% a 25% no período

Amazonas, Ceará, Rio Grandedo Norte, Bahia

Abaixo da média nacional e decrescendoacima de 30% no período Roraima, Mato Grosso, Paraná

Abaixo da média nacional e decrescendode 1% a 30% no período

Pará, Tocantins, Rio Grandedo Sul

Sem informação Piauí

AM PA

AC

RO

RR

AP

MA

MT

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MSMG

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RJ

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PI PBPE

SE

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MAPA 2

Taxas de Registro de Crimes Violentos Não Letais contra a PessoaUnidades da Federação – 2001-2003

Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública; Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp/Ministério da Justiça.

no período, enquanto a do Distrito Federal diminuiu. Aocontrário, em Mato Grosso e Goiás verificaram-se taxasabaixo da média ponderada nacional: no primeiro esta taxadiminuiu e, no segundo, aumentou.

Na Região Sudeste, com exceção do Espírito Santo,todos os Estados apresentaram taxas de crimes violentosnão letais contra a pessoa acima da média nacional, comredução de 1% a 5%, em São Paulo, e acima de 20%, noEspírito Santo. Em Minas Gerais esta taxa aumentou.

Todos os Estados da Região Sul registraram taxas decrimes violentos não letais contra a pessoa abaixo da mé-dia nacional e crescendo. Entretanto, as taxas do Paranáaumentaram mais no período do que as de Santa Catarinae Rio Grande do Sul.

Em relação à incidência de crimes violentos contra opatrimônio, verificou-se, assim como no caso dos crimesviolentos não letais contra a pessoa, que a maior parte dasUnidades da Federação possui taxas inferiores à médiaponderada nacional, sendo que em apenas sete Estadosestas taxas são superiores à média nacional (Pará, Goiás,Rio de Janeiro, Distrito Federal, São Paulo, Rio Grandedo Sul e Rondônia). No entanto, destes sete Estados, ape-nas Rondônia vem apresentando comportamento de de-créscimo de sua taxa.

Na Região Norte apenas os Estados de Rondônia ePará apresentaram taxas de crimes violentos contra o pa-trimônio acima da média nacional, entretanto, a taxa doprimeiro diminuiu e a do segundo aumentou no período.

Média Ponderada Nacional: 71,3 / Por 100 mil habitantes

Acima da média nacional e crescendoacima de 25% no período Minas Gerais e Mato Grosso do Sul

Acima da média nacional e decrescendocerca de 60% no período Rio de Janeiro

Acima da média nacional e decrescendode 1% a 25% no período Bahia, Distrito Federal e São Paulo

Abaixo da média nacional e crescendoacima de 30% no período

Maranhão, Pernambuco, Goiás,Sergipe, Paraná

Abaixo da média nacional e crescendode 1% a 20% no período

Amapá, Pará, Rondônia, Acre,Tocantins, Paraíba, Alagoas, RioGrande do Norte, Espírito Santo,Santa Catarina e Rio Grande do Sul

Abaixo da média nacional e decrescendoacima de 50% no período Amazonas, Roraima, Mato Grosso

Abaixo da média nacional e decrescendoaté 100% no período Ceará

Sem informação Piauí

AM PA

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METODOLOGIAS E CRIMINALIDADE VIOLENTA NO BRASIL

MAPA 3

Taxas de Registro de Crimes Violentos contra ao PatrimônioUnidades da Federação – 2001-2003

Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública; Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp/Ministério da Justiça.

As taxas em Amazonas, Roraima, Amapá e Tocantins fi-caram abaixo da média nacional e aumentaram no perío-do, com crescimento de 1% a 50% em Roraima e Amapáe acima de 50% no Amapá e Tocantins. Dos Estados quepossuem taxas inferiores à média nacional, apenas o Acreregistrou taxas de crime decrescentes.

Todos os Estados da Região Nordeste apresentaramtaxas abaixo da média nacional. No Maranhão, Bahia,Sergipe, Alagoas, Paraíba e Ceará as taxas cresceram noperíodo analisado, sendo que as do Maranhão e Alagoasaumentaram mais do que as dos outros Estados. Por outrolado, Piauí, Pernambuco e Rio Grande do Norte exibiramtaxas decrescentes no período, principalmente nos doisprimeiros.

Na Região Centro-Oeste, o Estado de Goiás e o Distri-to Federal registraram taxas acima da média nacional eque cresceram no período analisado, com maior intensi-dade em Goiás. Mato Grosso e Mato Grosso do Sul tive-ram taxas abaixo da média e que decresceram no período,principalmente no primeiro.

Todos os Estados da Região Sudeste apresentaram ta-xas de crimes violentos contra o patrimônio que cresce-ram no período analisado, entretanto, as de Minas Geraise Espírito Santo estão abaixo da média nacional e as deSão Paulo e Rio de Janeiro encontram-se acima. Na Re-gião Sul, verificou-se comportamento semelhante ao dosEstados da Região Sudeste. Todos exibiram taxas de cri-mes violentos contra o patrimônio que cresceram no pe-ríodo analisado, ficando abaixo da média nacional noParaná e em Santa Catarina e acima desse valor no RioGrande do Sul.

Por fim, para ilustrar que esta metodologia tambémpode ser utilizada para mensurar outros fenômenos dife-rentes da incidência de registros criminais, realizou-seuma análise da razão entre população e total de efetivoentre as 27 Unidades da Federação. Sintetizando, o quese deseja é um número menor possível de pessoas porpolicial. Porém, esta análise deve ser considerada commuito cuidado, pois existem inúmeros fatores que afe-tam diretamente na eficiência e eficácia das organiza-

Média Ponderada Nacional: 155,2 / Por 100 mil habitantes

Acima da média nacional e crescendoacima de 30% no período Pará e Goiás

Acima da média nacional e crescendode 1% a 30% no período

São Paulo, Rio de Janeiro, RioGrande do Sul, Distrito Federal

Acima da média nacional e decrescendoacima de 9% no período Rondônia

Abaixo da média nacional e crescendoacima de 30% no período

Roraima, Amapá, Maranhão, Alagoas,Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Tocantins,Espírito Santo, Santa Catarina

Abaixo da média nacional e crescendode 1% a 30% no período Amazonas, Ceará, Paraíba e Paraná

Abaixo da média nacional e decrescendoacima de 60% no período Pernambuco

Abaixo da média nacional e decrescendode 5% a 30% no período

Acre, Mato Grosso, Rio Grande doNorte e Mato Grosso do Sul

Sem informação Piauí

AM PA

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RRAP

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PI PBPE

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SP

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MAPA 4

Comparativo do Comportamento da Razão entre População e Total de Efetivo das Polícias Civis e MilitaresUnidades da Federação – 2001-2003

Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública; Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp/Ministério da Justiça.

ções policiais na ação de combate à criminalidade, alémdo número de policiais. Assim, por exemplo, o nível tec-nológico das organizações, a capacitação dos profissio-nais e o tipo de gestão que caracteriza as organizaçõespoliciais influenciam diretamente o resultado das açõesdas organizações policiais.

Existem treze Unidades da Federação que apresentamrazões de população por efetivo superior à média ponde-rada nacional (Goiás, Amazonas, Mato Grosso, Bahia,Santa Catarina, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambu-co, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul). Desteconjunto, apenas quatro Estados estão melhorando suasituação e decrescendo o valor desta razão. Entre as Uni-dades da Federação que possuem razão de população porefetivo inferior à média nacional, quatro se destacam porapresentar ainda um decréscimo no valor destas razões,ou seja, uma redução do número de pessoas por policial(Amapá, Paraíba, Alagoas e Rio de Janeiro).

CONCLUSÃO

Pôde-se testar o potencial de utilização de uma meto-dologia bastante simples, mas que joga luz sobre umasérie de problemas relacionados aos fenômenos do cri-me e da violência. Mais do que sofisticadas ferramentase modelos, a produção de informações na área de justiçacriminal e segurança pública carece de investimento nacriação de uma política de tratamento e comunicação dosdados disponíveis. É óbvio que todos os instrumentosanalíticos devem e podem ser usados, mas soluções sim-ples e originais são importantes passos na transforma-ção do modelo de gestão. Os resultados demonstram queos registros de crimes ainda possuem volumes elevados,mas, ao que tudo indica, não se pode dizer que existe umaumento generalizado do crime no Brasil. Várias Uni-dades da Federação, mesmo aquelas com taxas bem aci-ma da média nacional, têm demonstrado capacidade de

RS

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METODOLOGIAS E CRIMINALIDADE VIOLENTA NO BRASIL

reação e provocado uma inflexão positiva nas tendên-cias dos crimes violentos.

Se fosse considerado apenas o ranking dos crimes, nãoseria possível perceber esta reação e, portanto, os esfor-ços poderiam estar sendo relegados – é verdade que, emalguns casos, os dados indicam que os esforços não têmsido capazes de reverter tendências crescentes dos crimesviolentos. Enfim, os dados trazem, mesmo que indireta-mente, informações sobre efetividade de políticas públi-cas. Com base neles, pode-se pensar em como a realidadeexposta é fruto de ações de múltiplos atores e, uma vezidentificados, apoiadas as suas boas práticas e iniciativas.

NOTAS

Agradecemos a atenção e o apoio de várias pessoas que permitiram arealização deste trabalho. São elas: Aurílio Sérgio Costa Caiado (quefoi um dos que formularam a idéia original da metodologia aqui assu-mida), Lilian Liye Konishi e Eliana Bordini, da Fundação Seade; Equipetécnica do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e De-senvolvimento de Pessoal em Segurança Pública, da Senasp(Washington, Luiz Rubens, Matheus, Flavia Florêncio, Virginia daRosa, Marcelle Figueira, Rafael, Vitor, Ana Paula Galdeano Cruz, VâniaDias); e Luiz Henrique Proença Soares, do Ipea. Um agradecimentoespecial a Jacqueline Muniz, diretora da Senasp e incansável defenso-ra de uma política pública transparente e fundada no compromisso como interesse público.

1. Utilizou-se a taxa de crime por 100 mil habitantes por ser uma me-dida extensamente difundida na literatura internacional como a mais

sensível na demonstração deste tipo de fenômeno. Entretanto, poder-se-ia utilizar qualquer medida de criminalidade que possibilitasse acomparação dos crimes entre as regiões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FUNDAÇÃO SEADE. A violência e o seu impacto na sociedade pau-lista: uma análise a partir das estatísticas disponíveis na Funda-ção Seade. São Paulo, 2001. (Relatório de Pesquisa).

HACKING, I. How should we do the history of statistics? In:BURCHELL, G.; MILLER (Orgs.). The Foucault effect: studiesin governmentality. Chicago: The University of Chicago Press, p.181-196, 1991.

HAGGERTY, K.D. Making crime count. University of Toronto Press,2000.

LIMA, R.S. Valorização da produção e do uso de informações e esta-tísticas sobre segurança pública e justiça criminal no Brasil. Con-sultor Jurídico, 2003. Disponível em: <www.conjur.com.br>.

BETÂNIA TOTINO PEIXOTO: Pesquisadora do Crisp/UFMG. Consultora daSecretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça.

RENATO SÉRGIO DE LIMA: Sociólogo, Chefe da Divisão de Estudos So-cioeconômicos da Fundação Seade.

MARCELO OTTONI DURANTE: Coordenador Geral de Pesquisa, da Secre-tária Nacional de Segurança, do Ministério da Justiça.

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O

O EXTERMÍNIO DE MENINOSDE RUA NO BRASIL

Resumo: O artigo realiza uma análise interdisciplinar do fenômeno do extermínio de meninos de rua, no Bra-sil, entre 1985 e 1995, que é resultado da ação de grupos de extermínio, da omissão do Estado e da indiferençada sociedade civil em relação ao problema, gerando a falta de controle e a impunidade dos agentes dessaspráticas criminosas.Palavras-chave: grupos de extermínio; meninos de rua; política criminal.

Abstract: This article undertakes an interdisciplinary analysis of the extermination of street children in Brazilbetween 1985 and 1995, the result of the action of extermination groups, governmental neglect and societalindifference. Taken together, all of this leads to a lack of control and to the impunity of those who committhese criminal acts.Key words: extermination groups; street children; criminal policy.

UMBERTO GUASPARI SUDBRACK

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 22-30, 2004

extermínio de meninos de rua no Brasil ocorreprincipalmente nas grandes cidades, como Riode Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife. De

acordo com o conceito adotado pelas Nações Unidas eelaborado por Lusk e Mason, a expressão designa todacriança (menino ou menina) para a qual a rua (no sentidomais amplo do termo, o que inclui casas não habitadas,terrenos baldios, por exemplo) tornou-se sua moradia e/ou sua fonte de sobrevivência, e que não tem proteção,não é convenientemente vigiada ou orientada por um adultoresponsável. Esta expressão refere-se a crianças despro-vidas de recursos e que moram ou passam a maior partede seu tempo na rua, sem serem necessariamente infrato-ras. O fenômeno dos meninos de rua fornece uma imagemdramática dos países do Terceiro Mundo, sobretudo naAmérica Latina.1 Entretanto, os países desenvolvidos tam-bém podem ter esse problema. Crianças provenientes dascamadas mais pobres dos países ricos adotam cada vezmais a rua na busca de sua sobrevivência. São, sobretudo,filhos de imigrantes cujos pais deixaram seu país de ori-gem em busca de melhores condições de vida para a fa-mília (Pilotti; Rizzini, 1993:51).

Essas crianças moram normalmente nos bairros pobresdas periferias urbanas e nas favelas que se multiplicam. Amaioria volta para casa todos os dias ou esporadicamen-te. Todavia, são menos numerosos aqueles que moram nasruas.

O tema limita-se aos homicídios praticados contra osmeninos de rua, no Brasil, no período 1985-1995. Taiscrimes não são conseqüência imediata da violência do-méstica e correspondem ao chamado “extermínio de crian-ças”, o que a Comissão Nacional de Combate à Violên-cia, formada por organizações não-governamentais e porrepresentantes do governo federal para controlar a vio-lência contra crianças, define como a “presunção de ho-micídios voluntários contra aqueles que têm menos de 18anos, por motivos extrafamiliares, com o fim objetivo ousubjetivo de impor uma ordem extralegal, seja ou não oautor conhecido” (Human Rights Watch/Americas,1994:11).

A Comissão de Controle e de Prevenção do Extermí-nio do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescen-te do Rio Grande do Sul, composta por representantes doMinistério Público, da Polícia Civil, da Polícia Militar,

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O EXTERMÍNIO DE MENINOS DE RUA NO BRASIL

do Movimento Nacional dos Meninos de Rua, da Ordemdos Advogados do Brasil e da Pastoral do Menor define oextermínio, referindo-se a crianças e adolescentes, como“a ação individual ou de grupo, concebida e organizadacom o fim da eliminação, por qualquer meio, de criançaou adolescente considerada ou suspeita de se encontrarem situação de risco pessoal e social ou para ocultar prá-ticas delitivas” (Brasil, 1994:8-9, citado por Sudbrack,1996:114).

Para que haja extermínio, é necessário que o resultadoda ação seja a morte. Além disso, é preciso que a vítimado homicídio seja uma criança ou um adolescente. Se aconseqüência não for a morte, estamos diante de uma ten-tativa de homicídio. Por outro lado, a vítima pode enqua-drar-se em uma situação de risco pessoal ou apresentarum comportamento não aceito socialmente. Nessa situa-ção, estariam desde aqueles que cometeram atos infra-cionais, até aqueles com presença considerada incômodaem lugares públicos. A Comissão entende que, para sepoder falar de extermínio, é necessário mais do que o sim-ples dolo, elemento característico do homicídio doloso,mas a presença da vontade deliberada de eliminar deter-minada pessoa menor de idade em virtude de aspectoscomportamentais anteriores, não aceitos pelo autor oupelos autores. A Comissão tratou essa característica comosendo o “dolo de extermínio” (Brasil, 1994:8, citado porSudbrack, 1996:114).

Não existe, porém, definição legal de extermínio. Em-bora a Lei no 8.930, de 6 de setembro de 1994, que dáuma nova redação ao artigo 19 da Lei no 8.072, de 25 dejulho de 1990, tenha criado o crime de homicídio qualifi-cado por ter sido praticado em atividade típica daquelade um grupo de extermínio, não definiu juridicamente oque seja o extermínio.

Apenas uma pequena parte dos chamados meninos derua acaba cometendo infrações. Mesmo assim, são consi-derados uma população de risco para os grupos dominan-tes da sociedade brasileira.

O fenômeno do extermínio de meninos de rua é o re-sultado de uma articulação entre os grupos de extermínio,da omissão e ausência de defesa das crianças pelo Esta-do, assim como da indiferença da sociedade civil em rela-ção ao problema.

A prática repressiva brasileira opõe-se à legislaçãopenal liberal e aos princípios constitucionais, impedindoa efetividade dos direitos humanos e ameaçando o regimedemocrático. Uma das manifestações mais dramáticasdessa realidade é, hoje, o extermínio dos meninos de rua.

ASPECTOS HISTÓRICOS DAREPRESSÃO NO BRASIL

A violência em relação a certas camadas da populaçãonacional tem origem em práticas antigas, como, por exem-plo, aquelas existentes durante o regime colonial e o pe-ríodo escravocrata. Com efeito, os índios e os escravosnegros foram vítimas da violência dos agentes do Estado,durante mais de cinco séculos, sendo muitas vezes elimi-nados fisicamente. Na República, implantada em 1889, arepressão policial contra os desfavorecidos destaca-se,sobretudo, nos períodos de autoritarismo político, comoo Estado Novo (1937-1945) e o regime militar (1964-1985). Se a partir dos anos 20 e 30, inicialmente os anar-quistas, depois, os comunistas, se durante o regime mili-tar, todos que se opunham a este, eram considerados como“inimigos da sociedade” e, portanto, objeto de uma forterepressão, nos anos 80, os meninos de rua passam a cons-tituir esse grupo “perigoso”, o que enseja um controlesocial severo dos mesmos com apelo, inclusive, à elimi-nação física.

Uma estrutura socioeconômica extremamente desigual,trazendo enormes tensões sociais, desenvolve-se, no Bra-sil, desde a escravidão até nossos dias, quando o fossosocial que separa os ricos, as classes médias e os pobres éenorme.

A desigualdade social que divide a sociedade brasilei-ra é a principal razão da criminalidade, inclusive a dosmenores e, conseqüentemente, de sua repressão. Segundouma estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatística – IBGE, o Brasil tem a pior distribuição de rendadentre os países de mais de 10 milhões de habitantes, sen-do que os 20% mais ricos têm uma renda 26 vezes maiordo que os 20% mais pobres (PNUD, 1991:25). Dados maisrecentes que constam do Atlas do Desenvolvimento Hu-mano, divulgado pelo PNUD – Programa das NaçõesUnidas para o Desenvolvimento, Ipea – Instituto de Pes-quisa Econômica Aplicada e Fundação João Pinheiro, re-velam que de 1991 a 2000, a distribuição de renda piorouem dois terços dos municípios brasileiros. Na média ge-ral do Brasil, a desigualdade de renda também aumentouna última década, e o país já ocupa o sexto lugar entre ospaíses com pior distribuição de renda (Manfrini, 2003).Além das desigualdades presentes nos estados da Federa-ção brasileira, constata-se a existência de disparidadesregionais extremamente marcantes entre os estados doNorte e os do Sul. Excetuando razões conjunturais, comoa transferência de recursos que permitem assegurar o pa-

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gamento da dívida externa do país, essa situação é manti-da e reproduzida historicamente pela grande hierarquiza-ção social. Amplas camadas da sociedade vivem em con-dições miseráveis de marginalidade, que podem sercomparadas àquelas que conhecem os países menos de-senvolvidos da Ásia e da África.

A questão da distribuição da renda é fundamental parao estudo da violência brasileira. Com efeito, a miséria éhoje a chave que explica o fenômeno da eliminação físicados marginais e daqueles considerados como “inimigosda sociedade”, inclusive os meninos de rua.

Apesar da emergência de novos governos democráti-cos, persiste a violência do Estado e de certos setores dasociedade civil contra os grupos desfavorecidos. Com efei-to, as camadas populares são submetidas com muito maisfreqüência a um estatuto de extralegalidade do que se be-neficiam de um quadro realmente legal (Pinheiro,1994:19).

Além da escravidão, outros dados fornecidos pela his-tória econômica e política do Brasil, como o latifúndio, opatrimonialismo e a ausência de democracia mostram quea sociedade brasileira baseia-se em relações sociais for-temente hierarquizadas, o que dá origem a uma culturapolítica marcada pelo descrédito do direito. Isto significaque, sob a estrutura jurídica do Estado de Direito, desen-volve-se toda uma cultura da ironia, e mesmo do cinismo,ninguém desconhecendo que a lei só vale para alguns.Assim, não surpreende que a sociedade ajuste suas contascom os criminosos vindos das classes populares sem qual-quer preocupação quanto aos direitos fundamentais dosmesmos. A tortura, os castigos físicos, a execução pura esimples de ladrões, a detenção de meros “suspeitos”, aqualquer hora da noite, mantidos presos, depois, todosesses atos que violam a lei representam uma prática cons-tante e habitual da polícia no Brasil (Oliveira, 1992:449-450).

Durante o regime militar, não se falava de direitos ci-vis ou de direitos humanos senão para garantir a proteçãodos opositores políticos. Sempre que, nessa época ou pos-teriormente, se buscou ampliar esses direitos ao conjuntoda sociedade, particularmente aos pobres, a resistência foigrande. A reação contra a ampliação dos direitos usoucomo pretexto o temor da insegurança para estigmatizaros trabalhadores e os marginais. Paradoxalmente, a mo-bilização social dos marginais contra a segregação sofri-da na sociedade levou ao desenvolvimento de novos mo-delos de segregação social e espacial – dos quais a“limpeza” dos marginais e uma desconfiança renovada a

seu respeito são componentes importantes (Pinheiro,1994:42).

Após o regime militar, no entanto, as violações de di-reitos humanos não cessaram. Ao contrário, voltaram aoslocais onde sempre estiveram: delegacias de polícia e pri-sões onde já se torturava antes do regime militar e ondese continua a torturar. A tortura, com efeito, praticamentedesaparecida na Europa, entre o final do século XVIII e oaparecimento, no século XX, dos regimes totalitários,acompanha sem descompasso a história do Brasil (Oliveira,1997:2-3).

Mostrou Roberto Kant de Lima que a ideologia libe-ral, universalista e igualitária é insuficiente para interpre-tar as práticas judiciais e para compreender os ideais for-mais da justiça no Brasil. Quando estes, eventualmente,são alcançados pelo Poder Judiciário ou pela polícia, acei-ta-se que eles estão atingindo apenas um segmento limi-tado da população. No sistema criminal brasileiro, a fun-ção mais importante exercida pela polícia consiste emrotular, categorizar as pessoas. As práticas policiais e osistema judicial de categorização estão ligados à crençade que os valores liberais devem ser “adaptados” em suaaplicação na sociedade brasileira (Lima, 1995:143/144).

Os grupos desfavorecidos sempre sofreram um trata-mento ilegal no sistema criminal brasileiro, tanto nos pe-ríodos de regime autoritário quanto naqueles de regimeconstitucional. Nenhum dos períodos de transição para ademocracia, seja o que seguiu a ditadura do Estado Novo(1937-1945), ou o que veio após o regime militar de 1964a 1985, mudou essa realidade. O autoritarismo revela, naprática, o que é dissimulado nas fases democráticas: ocaráter da repressão autoritária e os limites da violênciafísica ilegal. O extermínio de pessoas, prática largamentedifundida durante os períodos de ditadura, prolongou-senos períodos de transição política, quando a manutençãoda ordem se militariza2 (Pinheiro, 1994:49). Entre 1981e 1989, por exemplo, 3.900 suspeitos e criminosos forammortos pela Polícia Militar, em São Paulo. Vagabundos,criminosos, prostitutas e menores nocivos tornam-se “ini-migos internos” (Pinheiro, 1994:49).

A tortura, a eliminação de suspeitos e outras práticasrotineiras aplicadas sistematicamente aos grupos popula-res (invasões de domicílio, seqüestros, assassinatos, mas-sacres) são toleradas. O discurso oficial emprega, na maiorparte dos casos, a retórica da recusa, que não se traduzpor nenhuma ação concreta, o que consagra a impunidadedos agentes da violência ilegal. O combate contra a cri-minalidade de direito comum durante os dois governos de

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transição política não difere muito daquele travado du-rante as ditaduras e é acompanhado pela militarização dapolícia. Os governos democráticos da transição após 1985não foram capazes de controlar a violência ilegal dos apa-relhos repressivos que se beneficiam de uma ampla auto-nomia, o que torna difícil seu controle. A democratizaçãodo governo não significa automaticamente a democrati-zação do aparelho repressivo. A existência das práticasdemocráticas nos aparelhos de repressão dependerá damobilização da sociedade civil que legitima, hoje, as prá-ticas autoritárias (Pinheiro, 1994:51-52).

UMA ABORDAGEM DE POLÍTICA CRIMINAL

Empreendemos um estudo interdisciplinar que se rela-ciona diretamente com a questão do autoritarismo e daefetividade dos direitos humanos no Brasil. Trata-se daabordagem de política criminal que situa a questão da cri-minalidade e do controle social em uma perspectiva inte-grada pelo direito penal, pela política criminal e pelosdireitos humanos.

De acordo com Mireille Delmas-Marty, a política cri-minal compreende o conjunto dos procedimentos atravésdos quais o corpo social organiza as respostas ao fenôme-no criminal. Todavia, as práticas penais não se encontramsós no campo da política criminal. Acham-se englobadaspor outras práticas de controle social: práticas não penais(por exemplo, sanções administrativas), práticas não re-pressivas como a prevenção, a reparação ou a mediaçãoe, às vezes, até mesmo práticas não-estatais (práticas re-pressivas de milícias privadas, ações de protesto do tipoAmnesty International ou medidas disciplinares, evocan-do o termo certos tipos de regulação profissional (Delmas-Marty, 1992:13).

A relação entre direito penal e direitos humanos é umarelação ambígua que expressa uma tensão entre dois pó-los, às vezes antinômicos e às vezes mesclados. A antino-mia com os direitos humanos está, de fato, no cerne dajustiça penal, fundada no direito de punir, isto é, de atin-gir certos direitos fundamentais da pessoa, a começar poraquele de ir e vir livremente. E, no entanto, o sistema pe-nal preenche igualmente uma função de proteção dos di-reitos fundamentais, sobretudo pelo viés da incriminaçãopenal (Delmas-Marty, 1992:28).

Zaffaroni sustenta que existe uma certa contradiçãoentre os direitos humanos e o direito penal, pois aquelesassinalam um programa de realização da igualdade dosdireitos, ao passo que os sistemas penais são instrumen-

tos que confirmam a desigualdade dos direitos em todasas sociedades. Até mesmo as próprias características dossistemas penais violam os direitos humanos. É preciso,então, buscar uma verdadeira legitimação para o sistemapenal (Zaffaroni, 1991:149). A dor e a morte que produ-zem nossos sistemas penais latino-americanos denunciamum discurso jurídico-penal totalmente distanciado da rea-lidade. Ele produz a morte em massa, trabalha com umalto nível de violência, negligencia a tutela da vida, temuma formação autoritária. É, enfim, perverso e falso. Cabeaos operadores e aos pesquisadores da justiça criminal atarefa de mudar o sistema penal (Zaffaroni, 1991:12-13).

É necessário aproximar o direito penal das outras ciên-cias, tais como a criminologia, a política criminal e a so-ciologia, a fim de romper o pressuposto positivista queconsidera o direito penal isolado e auto-suficiente. Adogmática penal deve adaptar-se às novas possibilidadestrazidas pela visão interdisciplinar no que diz respeito aoestudo da criminalidade, sobretudo para evitar a separa-ção entre a teoria e a prática. Quando se fala das relaçõesentre a política criminal e os direitos humanos, pensa-seno estudo interdisciplinar, no direito comparado, assimcomo nos sistemas e mecanismos internacionais e regio-nais de proteção aos direitos humanos. Imagina-se a pos-sibilidade de tornar o sistema criminal mais democrático,de modo que os direitos e as garantias individuais se tor-nem verdadeiramente concretos (Sudbrack, 2001:87).

A sociologia pode colaborar com o direito penal de-nunciando as violações à integridade física e moral dasclasses desprotegidas, dos “marginalizados” que desco-nhecem a efetividade de seus direitos, não assegurados,na prática, pela norma positivada. A sociologia pode aju-dar, enquanto ciência social aplicada, ao propor um regi-me de enunciados contra a violência e ao organizar umpúblico socializado, no interior do Estado e da sociedadecivil, capaz de se indignar contra a exclusão social, man-tendo uma consciência da injustiça (Tavares dos Santos,1995:281-298).

O fenômeno criminal, em sentido amplo, não se cons-titui tão somente pelas infrações penais, contravenções,delitos e crimes, mas pelo conjunto dos comportamentosincriminados ou não pela lei penal e considerados comoperturbadores da ordem social, porque se expressam me-diante uma recusa às normas. Para combater esses com-portamentos delinqüentes ou desviantes, a política crimi-nal tenta propor respostas estatais ou sociais no respeitoaos direitos humanos. Assim definida, a política criminalnão se reduz, pois, ao direito penal nem ao procedimento

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penal ou à criminologia, mas inscreve-se em um projetoglobal e em uma estratégia global: a política social de umdeterminado Estado (Lazerges, 1987:5).

Adotam-se os modelos de política criminal de MireilleDelmas-Marty para compreender a política criminal bra-sileira, particularmente o fenômeno do extermínio demeninos de rua no país.

Sendo a infração e o desvio dois tipos de comporta-mento contra as normas, e as respostas estatal e social doistipos de reação do corpo social, é a partir desses quatroelementos que se define o jogo das relações fundamen-tais, alternativas e complementares, de acordo com as quaisse organiza todo sistema de política criminal, isto é, o ins-trumento que tornará possível uma análise transversal dosdiferentes sistemas, apesar de sua extrema diversidade; aferramenta empregada é independente das realidades quedizem respeito a cada país, a fim de possibilitar um duplotrabalho comparativo: comparação dos sistemas em vigorem diferentes países de acordo com modelos construídos,a partir do jogo das relações e comparação dinâmica dasmudanças desses sistemas segundo as imposições (nacio-nais e/ou internacionais) que os limitam, ou seja, pelosprincipais movimentos de política criminal (Delmas-Marty,1992:68).

Os modelos de política criminal mencionados dizemrespeito às quatro relações fundamentais e ao esquema jámencionado. A elaboração de modelo implica a busca doprincípio segundo o qual se organizam as relações funda-mentais (as relações derivadas intervêm somente no mo-mento da construção de variantes). Há uma hierarquia entreas relações, sendo algumas privilegiadas ou dominantes(a autora marca-as com o sinal +), outras mais frágeis,reduzidas ou ausentes (sinal -). Observa-se um fenômenode dominância entre formas estatais e sociais. Ao sistemaoficial de política criminal – aquele definido pelo direitoem vigor – sobrepõem-se, entretanto, múltiplos sistemassurgidos da prática (Delmas-Marty, 1992:75-76).

Os modelos são construídos, então, a partir da distin-ção entre a infração e o desvio e da maior ou menor parti-cipação do Estado no controle dos comportamentos derecusa às normas. Uma primeira grande distinção apareceentre modelo estatal (o Estado assume esse controle) emodelo social (a sociedade civil se encarrega dele). Den-tre os modelos estatais, temos o modelo Estado-Socieda-de liberal, o modelo Estado autoritário e o modelo Estadototalitário. Dentre os modelos sociais, encontram-se omodelo Sociedade autogestionária e o modelo Sociedadelibertária (Delmas-Marty, 1992:85).

O modelo Estado-Sociedade liberal, inspirado naideologia liberal, tem como valor de referência a liberdadegarantida pela distinção entre infração e desvio e pelalimitação do campo de intervenção do Estado apenas aodomínio da infração. A tradição liberal repousa em umarelação privilegiada com a lei, ilustrada nos direitos penaisda família romano-germânica por um grande respeito aoprincípio de legalidade. A polícia é auxiliar do sistemapenal; sua autonomia só existe nos modelos autoritáriosou totalitários (Delmas-Marty, 1992:88 e ss.).

No modelo Estado autoritário, existe uma distinçãoentre desvio e infração, mas a resposta dada tanto a umquanto à outra provém do Estado, seja diretamente, pormeio do direito (penal, administrativo, civil), seja medianteas intervenções coercitivas da polícia ou da administraçãomédico-social. A sociedade civil é excluída de qualquerresposta. A resposta estatal ao desvio é característica dessemodelo. O reforço do poder policial e das instânciasmédico-sociais dá lugar às intervenções coercitivas doEstado (Zambrano, 1988:8).

No modelo Estado totalitário, a distinção entre desvioe infração sequer existe. O Estado responde, de modopermanente e indiferenciado, a todos os comportamentosque considera como recusa às normas. Uma das técnicasjurídicas utilizadas é o raciocínio por analogia. O juiz podefundar sua decisão em qualquer texto legal, ou até mesmobasear-se nos princípios em que se inspirou o direito dopaís (por exemplo, a Alemanha hitlerista). O apelo aincriminações demasiadamente amplas do tipo “seguran-ça nacional” pode levar, então, ao mesmo resultado. Umaoutra característica do modelo totalitário de política cri-minal é a submissão da autoridade ao Poder Executivo,submissão que passa geralmente por dois meios: a nomea-ção dos magistrados de confiança e a redução da compe-tência das jurisdições de direito comum em proveito dasjurisdições de exceção (Zambrano, 1988:8-9).

Este modelo pode ser aplicado mais particularmenteao estudo das práticas de extermínio de meninos de ruano Brasil, percebendo a passagem do modelo Estado-So-ciedade liberal ao modelo Estado totalitário. Constata-se,por exemplo, a primazia do Poder Executivo, a assimila-ção dos menores desviantes a delinqüentes, sobretudo pormeio das ações da polícia, a prática da pena de morte,mediante as execuções sumárias de meninos de rua, as-sim como o reforço das relações com as instâncias sociaiscom vistas a uma participação repressiva. A repressão éefetuada por grupos de extermínio que elaboram ações deeliminação ditas de limpeza. Esses esquadrões da morte

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são compostos ou por policiais e ex-policiais, ou por mem-bros de milícias privadas que vendem sua proteção a co-merciantes e a outras pessoas.

Os modelos sociais dividem-se, por sua vez, em mode-lo Sociedade autogestionária e modelo Sociedade liber-tária. O primeiro caracteriza-se, particularmente, pelaexistência de uma resposta social à infração (I-Rs), pois aresposta social ao desvio já aparece com o modelo Esta-do-sociedade liberal. Esse modelo pode manifestar-se, apartir da relação I-Rs, por diversas variantes alternativas.Com efeito, as redes de auto-regulação que ela determinaorganizam-se diferentemente quando dizem respeito a umafração estruturada do corpo social que estabelece normasespecíficas ligadas a seu tipo de atividade e pretende elaprópria geri-las de modo mais ou menos independente doEstado – redes autodisciplinares –, ou quando a vítima,individual ou coletiva (bancos, grandes lojas, empresas),mas isolada do resto do grupo social, usa o pretexto deuma falha do Estado para garantir a segurança das pes-soas e dos bens e organiza suas próprias redes de autode-fesa. Neste último caso, é fundamental o papel das milí-cias privadas. Da defesa contra as infrações, elas passamà defesa agressiva e, depois, à agressão. Aumenta, então,o risco de concorrer muito abertamente com o Estado, exer-cendo em seu lugar uma parte do direito de punir, atribu-to da soberania tradicionalmente reservada a seu mono-pólio (Delmas-Marty, 1992:224-242). Com efeito, oscomerciantes empregam vigias ou contratam agentes dosesquadrões da morte para enfrentar os pequenos furtoscometidos por menores.

O último modelo, aquele da Sociedade libertária, ca-racteriza-se pelo apagamento do Estado. Sem referênciaao mesmo, o conjunto das relações sociais, particularmenteas relações conflituais, é deixado à sua diversidade pri-meira sem que nenhuma verdadeira definição dos com-portamentos de recusa das normas venha circunscrever oespaço das respostas do grupo social. Não há, portanto,distinção entre infração e desvio (Delmas-Marty,1992:242-262). Esse modelo comporta, dentre outras, aspráticas dos justiceiros, que se reduzem à vingança priva-da e que levarão ao modelo totalitário, pois há, evidente-mente, junção entre os dois modelos.

Interessante observar grande semelhança de nosso sis-tema de política criminal com aquele do México. Comefeito, Zambrano reconhece manifestações do modeloautoritário ou mesmo totalitário no seio da política crimi-nal mexicana, que visam claramente certas categorias depessoas, ou seja, os prisioneiros, os menores, os doentes

mentais e os estrangeiros, afetando, devido ao grande nú-mero de indivíduos atingidos, toda a política criminal.Porém, outras manifestações totalitárias perturbam maisdiretamente ainda o conjunto do sistema penal mexicano:a existência de um poder policial cada dia maior e quequestiona diretamente os direitos humanos mais fundamen-tais, isto é, a liberdade e a vida. Esse poder policial é umadas características dos Estados totalitários, que respon-dem a qualquer recusa das normas por uma repressão quenão distingue a infração do desvio. O México se acha con-frontado com o paradoxo de uma constituição liberal epráticas que atentam freqüentemente contra os direitoshumanos (Zambrano, 1991:217-218).

Quanto à existência de uma legislação liberal, mas compráticas autoritárias e/ou totalitárias, o mesmo aconteceno Brasil. Wanda Capeller mostra que, não obstante nos-so país possua uma carta constitucional moderna, no âm-bito dos direitos sociais e das liberdades públicas (a Cons-tituição de 1988), as práticas ilegais das elites jamaisdeixaram de prevalecer, mesmo após 1988, o que prova amanutenção da concepção autoritária do Estado pelas eli-tes (De Lemos Capeller, 1991:7-8). Existe, com efeito,uma verdadeira cultura política do autoritarismo no Bra-sil. As políticas escolhidas, cujos animadores foram mui-tas vezes os juristas, revelam uma visão elitista do camposocial e uma concepção do controle penal que se identifi-ca com a repressão pura e simples das classes desfavore-cidas. Ainda hoje, a preocupação com a eficácia repressi-va está presente na vida nacional e encontra-se no centrode todos os assuntos ligados à delinqüência e à segurançapública (De Lemos Capeller, 1991:10-11).

Com efeito, no Brasil, existe uma espécie de culturapolítica defendendo a eliminação física dos “inimigos in-ternos”. Comprova-se tal afirmativa pela existência dosesquadrões da morte dos anos 70 e dos novos grupos deextermínio, surgidos nos anos 80. A ação desses gruposenquadra-se nos modelos de política criminal de MireilleDelmas-Marty, sobretudo nos modelos estatais autoritá-rio e totalitário e no modelo societário SociedadeLibertária, que mostram o risco, no mundo atual, de re-torno à vingança privada típica das sociedades primitivas.No Brasil, essa possibilidade agrava-se pela existência doautoritarismo do Estado e da sociedade civil, bem comoda situação econômica desfavorável que leva enormes con-tingentes da população à miséria. Os membros desses gru-pos excluídos tornam-se o alvo preferido da polícia e dasredes sociais que aplicam a vingança privada como táticade eliminação dessas pessoas.

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Por outro lado, o sistema criminal brasileiro, formadopela Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e Siste-ma Penitenciário, mostra-se ilegítimo, particularmente emface da carência de novos paradigmas, de âmbito inter-disciplinar, capazes de torná-lo democrático e coerentecom os princípios consagrados no Estado Moderno de Di-reito.

Analisando-se a evolução das Constituições e do Di-reito Penal brasileiro, percebe-se a distância entre teoriae prática, ou seja, o direcionamento do modelo liberal aosmodelos autoritário e totalitário de política criminal. É que,não obstante a existência de leis penais liberais e de prin-cípios constitucionais democráticos, há uma prática auto-ritária e totalitária do Estado e mesmo de setores da so-ciedade civil que torna a igualdade de todos perante a leiuma grande ficção. Historicamente, os agentes do Estadoresponsáveis por violações de direitos humanos semprese beneficiaram da impunidade. Existe um descompassoentre a letra da Constituição e das leis em geral e o fun-cionamento das instituições encarregadas de efetivar osdireitos da população. Leis criminais mais recentes no com-bate à violação dos direitos humanos deveriam ser efeti-vamente aplicadas pelos juízes quando chamados a deci-dir, por força dos inquéritos policiais e das denúnciasapresentadas pelo Ministério Público. Citam-se comoexemplos a Lei no 9.455/97, que define os crimes de tor-tura e dá outras providências, e a Lei no 8.930, de 6 se-tembro de 1994, que deu nova redação ao artigo 1o da Leino 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hedion-dos), em conformidade com o art. 5o da Constituição Fe-deral, criando o chamado “homicídio, quando praticadoem atividade típica de grupo de extermínio”. A criaçãodesse tipo penal representa o reconhecimento, pelos po-deres Executivo e Legislativo, da existência do extermí-nio, no país, e o desejo de combatê-lo.

Deve-se assinalar, enfim, a insuficiência do direito in-terno para resolver o problema das violações de direitosfundamentais no país, e, portanto, a necessidade de seremaplicados princípios supranacionais, bem como a jurisdi-ção internacional e/ou regional, para combater tais viola-ções, sobretudo o direito à vida. A integração do direitointernacional com o direito interno brasileiro faz-se ne-cessária, não sendo procedentes os argumentos no senti-do de que a aceitação dessas jurisdições supranacionais,em nível dos direitos humanos, fira a soberania nacional.Tal posicionamento corresponde a uma perspectiva con-servadora e autoritária do direito, própria de uma visãojurídica positivista.

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Entre 1985 e 1995, ocorreu, no Brasil, o extermínio demeninos de rua, no meio urbano, especialmente em gran-des cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador eRecife.

Apesar da implementação da democracia há, em nossopaís, uma tradição de práticas autoritárias e totalitárias –particularmente dos agentes públicos – que atentam con-tra os direitos humanos e permanecem, a partir de 1985,período que dá início à (re)democratização. Com efeito,existem certos grupos de pessoas que se tornam, ao longodos anos, o alvo da violência ilegal do Estado e da socie-dade. Inicialmente, foram os índios, depois os negros. Nosanos 20, os anarquistas; ao longo dos anos 30, os comu-nistas. Durante o regime militar, todos os que se opunhamà ditadura. Nos anos 80, os meninos de rua tornam-se os“inimigos da sociedade”.

Os grupos de extermínio desses menores têm origemnos esquadrões da morte dos anos 70. Muitos policiais doperíodo do regime militar acabaram se engajando,posteriormente, nesses grupos. Os exterminadores sãopagos por comerciantes e outros setores da sociedade, aosquais a ação ou mesmo a simples presença de meninos derua perto de seus estabelecimentos causa transtorno eprejuízo.

Os grupos de extermínio são compostos, princi-palmente, por policiais militares que aproveitam o tempolivre, fora do trabalho, cometendo tais crimes paramelhorar seus salários que são muito baixos. Também há,nos mesmos, policiais civis, ex-policiais e agentes desegurança privada.

O fenômeno do assassinato de meninos de rua resultade uma articulação entre os grupos de extermínio, daomissão e da falta de defesa de crianças e adolescentes,pelo Estado, assim como da indiferença da maioria dasociedade civil em relação ao problema.

A impunidade dos agentes de extermínio de meninosde rua deve-se, em grande parte, à ineficácia da PolíciaCivil, na elaboração do inquérito policial, o que imobilizaa atuação do Ministério Público. Os inquéritos elaboradospela Polícia Militar, em razão de diversas irregularidades,conduzem também à impunidade dos policiais militaressuspeitos desses homicídios. O Poder Judiciário, que já élento no julgamento dos processos em geral, fica limitado,ainda mais, pelo mal funcionamento da Polícia.

A independência do Ministério Público e do Poder Ju-diciário deve ser garantida para que seus membros pos-

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sam supervisionar as atividades policiais. Nessa perspec-tiva, o Executivo não deve se sobrepor aos mesmos.

Temos, no país, uma Constituição democrática e umCódigo Penal liberal, indicando a teoria a existência deum Estado de Direito. No entanto, na prática, um trata-mento desigual prevalece em relação a certos grupos so-ciais, no âmbito do sistema criminal, existindo, paralela-mente, uma desigualdade social e econômica quanto a essesgrupos. A visão brasileira da democracia é muito particu-lar: trata-se de declarar direitos a todos limitando o aces-so dos mesmos a grupos restritos da sociedade.

As práticas de extermínio de meninos de rua inserem-se nos modelos de política criminal de Mireille Delmas-Marty, particularmente naquele do Estado totalitário. Daía utilidade desses modelos. O fenômeno está ligado, efe-tivamente, ao predomínio do Executivo, à assimilação domenor ao delinqüente e à ação incontrolável e impune dapolícia, características típicas do modelo totalitário depolítica criminal.

Também os modelos societários, principalmente aqueleda Sociedade libertária, contribuem para a compreensãodo problema. Há um risco evidente de retorno à vingançaprivada das sociedades primitivas, no Brasil. O extermí-nio de meninos de rua, por determinados grupos sociais,representa um certo tipo de resposta auto-regulamentadorado tipo autodefesa, que exprime uma escolha de políticacriminal, empreendida por esses setores, diante do que elesconsideram como a ineficácia do sistema penal e, logo,do Estado. A ação dos justiceiros, os linchamentos e osgrupos de extermínio beneficiam-se de um grande apoio,sobretudo dos segmentos mais carentes da população. Istose insere, a toda evidência, no modelo societário Socie-dade libertária, particularmente no submodelo vingativo.

A desigualdade social que divide a sociedade brasileiraé o principal fator determinante da criminalidade e docomportamento desviante dos adolescentes e, conse-qüentemente, da repressão que sofrem, inclusive com aeliminação física. Para combater tal realidade, é precisomudar as condições socioeconômicas da população, ata-cando-se problemas básicos, como a concentração derenda, formulando políticas públicas que visem à promoçãode reformas sociais, tendo por finalidade o desapa-recimento das hierarquias e dos privilégios, bem comofornecendo uma resposta às reivindicações coletivas dossetores economicamente marginalizados.

É preciso dar efetividade aos direitos humanos, e paraisso impõe-se combater o formalismo jurídico que apenasressalta os direitos fundamentais sem dar-lhes força nor-mativa, o que exige a implementação de mecanismos in-ternacionais e regionais de defesa dos direitos humanos.

O isolamento do direito penal baseado em umadogmática jurídica superada deve ser repelido por umaidéia de interdisciplinaridade e pelo desenvolvimento deaspectos realistas e críticos. Nesse sentido, a definição depolítica criminal adotada e o enfoque que lhe é inerente,representam a perspectiva mais adequada para combatero positivismo jurídico, principalmente quando ele se mos-tra insuficiente para lidar com certos fenômenos crimi-nais que violam os direitos, como é o caso do extermíniode meninos de rua.

Tanto a União quanto os estados brasileiros omitiram-se, no período 1985-1995, no controle do extermínio demeninos de rua. Tais omissões não se limitaram a não evitartantas mortes, a não punir aqueles que violaram a lei, mastambém a não fornecer a crianças e adolescentes, excluí-dos socialmente, as condições mínimas de dignidade hu-mana previstas na legislação internacional, particularmentena Convenção dos Direitos da Criança da ONU.

Apenas a vontade política reforçada pelos princípios eprocessos de controle supranacional pode combater vio-lações de direitos humanos, como o extermínio de meni-nos de rua.

NOTAS

O artigo tem por base os aspectos teóricos da tese de doutorado doautor intitulada “L’extermination des enfants de la rue au Brésil: étudede politique criminelle”, sob a orientação da professora Mireille Delmas-Marty, defendida em 18 de maio de 1999, na Universidade de Paris 1(Panthéon-Sorbonne), para obtenção do título de Doutor em Direito.

1. A Colômbia, por exemplo, possui uma das mais altas taxas de ho-micídios do mundo. Em 1991, 2.800 crianças foram assassinadas. Paragarantir a sobrevivência, os meninos de rua recorrem freqüentementeà prática de pequenos furtos ou outras infrações e, por isso, são consi-derados indesejáveis sociais. É comum que comerciantes e empresá-rios locais, convencidos de que as crianças afugentam seus clientes,apóiem os “esquadrões da morte”, que praticam a “limpeza social”.Esses esquadrões são compostos por agentes da polícia nacional. Tam-bém na Guatemala existem ameaças, torturas e homicídios contra ascrianças cujas condições sociais as levaram à rua. Denuncia-se atémesmo a participação das autoridades nessas mortes. Em tais países,as forças da ordem ameaçam igualmente aqueles que trabalham comessas crianças, geralmente voluntários que pertencem a organizaçõesnão-governamentais (Cf. Amnistía Internacional, 1994:5).

2. A atribuição da manutenção da ordem à Polícia Militar é previstapela Constituição de 1988 (art. 144, § 5o).

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CICLOS HISTÓRICOS DA VIOLÊNCIA NA AMÉRICA LATINA

O

CICLOS HISTÓRICOS DA VIOLÊNCIA NAAMÉRICA LATINA

Resumo: O trabalho aborda a questão da violência na América Latina dentro de uma perspectiva históricaampla. Analisa como o ciclo atual orienta-se para a superação democrática da violência, mas a economia deentorpecentes ameaça desvirtuá-lo pela contaminação do tecido moral em construção pelo crime.Palavras-chave: violência; política e instituições; América Latina.

Abstract: This essay addresses the question of violence in Latin America from a broad historical viewpoint. Itanalyzes how the existing cycle is based on the democratic transcending of violence, a process that is threatenedby the illicit drug trade.Key words: violence; policy and institutions; Latin America.

JUAN MARIO FANDINO MARINO

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 31-38, 2004

presente artigo aborda a questão geral da violên-cia na América Latina do ponto de vista das suastendências históricas e das suas relações macros-

sociológicas. Tanto pela tradição (superada) do estrutu-ralismo marxista (que não oferecia subsídios significati-vos para a interpretação do fenômeno) quanto pelas ten-dências antiestruturalistas do pós-modernismo na Europae do main stream dos Estados Unidos, e mesmo em fun-ção de um certo distanciamento geral das preocupaçõesexplicativas contemporâneas com relação aos autores clás-sicos da sociologia, a dimensão macroscópica tem sidopouco considerada na “violentologia” latino-americana emgeral, e na brasileira em particular. Nossa posição é que,de fato, a problemática da violência contemporânea pre-cisa de definições e interpretações novas, condizentes coma natureza nova do mundo social contemporâneo, e con-dizentes também com as novas visões epistemológicas eontológicas. Porém, não é menos verdade que, com rela-ção à problemática do terceiro mundo, não podemos aban-donar a visão macroscópica, pois é neste nível que se apre-sentam os nossos objetivos de mudança.

Cabe registrar também que a dimensão macroscópicade análise permite um tratamento muito mais abrangente

do fenômeno violência. Com freqüência, ouve-se falar danecessidade de analisar esse fenômeno de forma seg-mentada, de acordo com os diferentes tipos que apresenta.Por exemplo, num estudo recente sobre a violência naColômbia, os autores explicitamente indicam que “nãoparece adequado procurar as mesmas raízes para fenô-menos tão díspares, como o homicídio ocasional produzidopor uma briga ou por um ́ ajuste de contas` ou ́ queima dearquivo` e a confrontação política armada ou a ação degangues organizadas de seqüestradores” (Camacho et al.,1997:25). É verdade que há certos tipos de crime eviolência cuja incidência escapa a determinantes con-textuais. Mesmo assim, grandes parcelas da criminalidadeviolenta, aparentemente sem ligações entre si, como aviolência anômica e a violência política, apresentam sobescrutínio sociológico mais aprofundado uma unidadesubjacente decisiva na sua compreensão, como pre-tendemos demonstrar.

Não estando em condições de afirmar que toda (sic)“violência criminal” corresponde a um substrato feno-mênico macroscópico, uma primeira delimitação do nos-so objeto é necessária. De passagem, registramos que apalavra criminal não é utilizada aqui no sentido ético, mas

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simplesmente no seu sentido legal sendo que, como vere-mos detalhadamente depois, cabem atos “criminais” quesão assim mesmo éticos e altruístas. Ora, mesmo que aliteratura sociológica não ofereça um consenso tipológicosobre a violência criminal, para efeitos da delimitação empauta, o fenômeno pode ser subdividido em cinco tipos, asaber: violência ordinária nas (ou das) ruas, crime orga-nizado, violência política, violência doméstica e violên-cia simbólica. Do nosso objeto direto excluímos as últi-mas duas formas mencionadas, cujo tratamento fica forado alcance direto do nosso modelo analítico. Ora, seguin-do este (ou outro esquema tipológico semelhante), sãorealizados costumeiramente diagnósticos úteis à formula-ção de políticas localizadas específicas. Porém, se quere-mos chegar a um diagnóstico mais profundo, e articularsoluções de raiz, condizentes com a dimensão abrangentedas tendências históricas observadas, é necessário ultra-passar o tratamento apenas dos sintomas visíveis, e tratardo problema em um nível de abstração maior, onde en-contramos o seu aspecto unitário. Uma delimitaçãotipológica mais restrita a priori do fenômeno iria, portan-to, contra o nosso objetivo aqui, que é estabelecer liga-ções e/ou transformações entre manifestações agregadasdo fenômeno. Assim, a especificação tipológica do nossoobjetivo de análise é feita ao longo da exposição.

A análise macroscópica em questão é realizada a par-tir de uma visão sociológica hoje superada em alguns as-pectos, mas que resulta de grande relevância para o casoem pauta. Trata-se da lei da gravidade social e densidademoral1 (social) de Durkheim (1933; 1966). A tal modeloexplicativo durkheimiano, incorporam-se outros elemen-tos teóricos, em especial as noções de: dualismo de clas-se; capital simbólico em Bourdieu; poder e legitimidadeda tradição Weber-Habermas; sistema mundial e movimen-tos sociais “anti-sistema” em Wallerstein (1983); subjeti-vidade coletiva de Domingues (2000); desvio cultural deSutherland et al. (1966); e estrutura das oportunidades ile-gítimas de Cloward e Ohlin (1960).

DUALISMO DE CLASSE E VIOLÊNCIADISPOSICIONAL

O argumento parte da generalização básica de que asformas e tendências históricas da criminalidade violentana América Latina dependem, fundamentalmente, de trêselementos-chave, endêmicos no continente a partir da suaprópria inserção inicial na história moderna, a saber:- a desigualdade na esfera econômica;

- a “desintegração” ou melhor, talvez, a “in-integração”2

social entendida basicamente como a ausência relativa de“um” corpo básico de normas, formais e informais,internalizadas e compartilhadas pelo conjunto da popula-ção, e de onde as comunidades regionais e nacionais derivama força do exercício da sua autoridade e legitimidade;- a concentração e falta de “fluidez” do capital simbólicocom que trabalham essas comunidades.

Estes três fenômenos apresentam-se na forma de um“dualismo” de classe, que resulta decisivo na conforma-ção das rotas da violência. Uma brevíssima revisão de cadaum destes elementos é pertinente.

Comecemos pela desigualdade na esfera econômica.Contrariamente ao marxismo clássico, com relação à Amé-rica Latina e ao Terceiro Mundo em seu conjunto, e parair ao fundo da questão, invocamos a teoria do sistema mun-dial de Wallerstein (1983), salientando o dualismo inerentea ela, incluindo, de um lado, os segmentos incorporadose, de outro, os “ainda” não incorporados pelo “capitalismohistórico”. Considerando-se então que enormes contin-gentes da população permanecem à margem da relaçãosalarial e do emprego, ou participam destes de formaapenas indireta ou “informal”, a noção de classe socialdesatrela-se da tradição marxista clássica, ampliando suabase para incluir o fenômeno mais abrangente da “apro-priação de recursos” (tecnológicos, de propriedade física,militares, etc.), no sentido do trabalho de Wright et al.(1992).3 Ora, não se trata aqui simplesmente de argumentarque, em última instância, a pobreza e a desigualdade eco-nômica estão por trás da violência. Mesmo porque apobreza e a miséria, historicamente, provocam tambémoutras reações, do cristianismo da escravatura em Romaaté a Índia de Gandhi. Esta relação de pobreza e desi-gualdade com a violência tem de ser especificada em ter-mos de: como, quando e em que condições a pobreza e asdesigualdades simbólicas bourdianas tem gerado (ex-post)quais tipos de violência? Dentro de uma perspectivametodológica ex-ante: como, quando e em que condiçõesa pobreza e as desigualdades simbólicas bourdianas podemgerar quais tipos de violência? É evidente, pois, que o panode fundo deste tipo de análise é a desigualdade social his-tórica no continente. Ora, a compreensão desta desi-gualdade não se esgota na esfera econômica, precisandode elementos sociais e culturais, de vida e dinâmicapróprias.

Aqui entra o segundo elemento do nosso modelo, asaber: a questão da “in-integração” social. Seguindo esta

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visão durkheimiana, a integração social referida acima éexplicada como decorrência dos tipos de contatos e deredes de comunicação (gravidade social), que resultam emformas progressivas de divisão do trabalho; estas, por suavez, vêm acompanhadas de “densidades morais” (volu-me, abrangência e força compulsória ou internalização dasnormas e pautas sociais),4 cuja forma e consolidação de-pendem, com muita freqüência, da eqüidade e da harmo-nia da própria divisão do trabalho. O fenômeno que que-remos ressaltar aqui é que, a partir do seu dualismocivilizatório original (considerando para efeitos de sim-plificação o componente europeu de um lado e o conjun-to dos não-europeus do outro), o continente vive um esta-do perpétuo de in-integração social, e nem mesmo osvalores e normas mais básicos são compartilhados peloconjunto da sociedade, mas dividem ao meio o tecido so-cial. Tomemos, por exemplo, as representações normati-vas clássicas da “lei” e do “dinheiro”, dois elementos neu-rálgicos da nossa vida social. Eles representam, idealmente,a consagração de padrões e valores culturais (a lei) e ummeio geral neutro de troca (o dinheiro), mas em nossocontexto, acabam completamente despidos do seu valormoral, transformando-se, aos olhos de grandes contingen-tes da sociedade, e por razões bem válidas, em simplesinstrumentos de opressão. Mesmo conhecimento apenassuperficial da sociedade e da cultura do nosso continentejá revela nitidamente esse aspecto dramático da sua reali-dade. Como veremos posteriormente, essa in-integraçãosocial tem a tendência (não a necessidade!) à polarizaçãoe ao movimento cíclico, mediante as forças da gravidadesociomoral durkheimiana.

Este estado de in-integração representacional e norma-tiva pode ser mais bem especificado pelo conceitoBourdiano de “capital simbólico”, o nosso terceiro ele-mento-chave. Este é entendido em termos dos seus trêscomponentes básicos (social, cultural e econômico), dis-tribuídos desigualmente ao longo dos “campos de poder”.Ora, mesmo que em Bourdieu esse capital simbólico ca-reça de uma teorização suficiente que permita tratar dasua origem e dinâmica histórica e dos termos da sua“convertibilidade” (Calhoun, 1993), no contexto do nos-so dualismo sociocultural drástico, podemos afirmar queo capital simbólico não é apenas desigualmente distribuí-do e adquirido ou “acumulado”, mas é também rotineira-mente excludente, especialmente dos grupos ligados àmatriz pré-colombiana da configuração histórica em ques-tão. Neste sentido, cabe formular o condicionamento dadesigualdade exercido pelo que podemos chamar de “po-

der simbólico diferencial” das culturas amalgamadas, as-pecto que se refere especificamente ao hiato ou lacunasocial resultante da ligação forçada entre o mundo euro-peu e as sociedades pré-colombianas e africanas, no casoespecífico da América Latina. Esta ligação resulta, final-mente, na configuração de uma estrutura com fortes ten-dências ao “dualismo de classe”, não só econômico comotambém simbólico geral e, portanto, com barreiras mutua-mente reforçadas ao acesso a recursos e poderes simbóli-cos dominantes. Esta concentração da propriedade e docapital simbólico no terceiro mundo tem como conseqüên-cia lógica uma “violência disposicional”, discutida maisadiante. Portanto, longe de uma simples policromia cul-tural, o continente emerge no cenário histórico nos sécu-los XVI e XVII com uma nítida “formação cultural de clas-se”, dual e antagônica, bem mais profunda que a previsívelem função apenas das relações econômicas do capitalis-mo marxista. Esta diferenciação cultural de classe tementão desdobramentos mais dramáticos e visíveis por seucaráter excludente do que pela simples “apropriação deexcedentes de trabalho”. A exclusão em questão, por seulado, envolve aspectos tão ou mais profundos que a con-centração da propriedade dos meios de produção e a pró-pria relação assimétrica do sistema salarial, a saber, oscomponentes cultural e social do capital simbólico.

A colocação wallersteiniana identifica, de algumaforma, uma dinâmica econômica e política para o sistemamundial; mas as formas concretas de reação das classes/grupos excluídos não são especificadas. Ora, no contextolatino-americano em questão, o dualismo em torno daapropriação dos recursos e a ampla exclusão do podersimbólico constituem um cenário próprio para o flores-cimento da violência. Isto pelo próprio fato de que osgrupos excluídos careceram historicamente do capitalfísico e simbólico necessário para influir no sistemaendogenamente, ou seja, pelas vias legais, o suficientepara modificá-lo e/ou abrir espaços e crescer dentro dele.Mais ainda, essa condição de dualismo cultural ecivilizatório excludente, ao longo da sua história, permiteinferir a gênese de um “habitus” (sentido bourdiano) dedesconfiança normativa, altamente contestatório, incor-porado por parte de muitos setores da população, e quenaturalmente se manifesta freqüentemente em atos deviolência. A essa condição chamamos aqui de “violênciadisposicional”, isto é, um “fato disposicional”5 de apeloà violência, que passa a acontecer em formas e momentosdeterminados, segundo requisitos ou condições quepodem ser investigados.

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A questão que se coloca neste ponto da discussão é:como se manifesta historicamente esta violência dispo-sicional? Neste sentido, argumentamos especificamenteque a violência “disposicional” manifesta-se ciclicamen-te em violência (política) altruísta e violência “ordinária”(egoísta/anômica) mais ou menos organizada, segundo omomento histórico. A articulação deste modelo combinaos princípios da integração social durkheimiana com oprincípio da gravidade/densidade moral do mesmo autor,a seguir.

(IN)INTEGRAÇÃO SOCIAL, RECONSTRUÇÃOMORAL E VIOLÊNCIA

A lei durkheimiana da gravidade social não é usual-mente vista, e muito menos aplicada, em conjunto com aigual – ou mais importante – idéia do papel agencial im-putado por Durkheim aos grupos sociais no seu desenvol-vimento moral, no sentido de estes possuírem os meca-nismos endógenos construtivos e adaptativos para taldesenvolvimento. O que é freqüentemente tomado deDurkheim é a noção de que níveis baixos de integraçãosocial estão associados a comportamentos individuais nãointegradores, como o suicídio anômico ou o homicídio.Similarmente, laços fortes de relação do indivíduo com oseu grupo, em termos de certos tipos e graus de aceitaçãode normas, estão associados a outros tipos de comporta-mento integrativo, como o suicídio altruísta e baixas ta-xas de homicídio. Ora, a capacidade regenerativa damoralidade do grupo social, através dos efeitos em soli-dariedade por parte dos seus contatos internos e de suasefervescências ritualísticas intermitentes, é muito menosconhecido e aplicado.6 Esta capacidade regenerativa pa-rece crucial para a compreensão unitária da violência naAmérica Latina.

Este não é o lugar para revisar a lei da gravidade so-cial, nem há espaço para uma discussão detalhada do quepodemos chamar de “leis do movimento da vida moral”em Durkheim. Para efeitos deste ensaio, indiquemos ape-nas seus elementos-chave:- por muitas razões, tanto endógenas ao seu modelo detrajetória histórica (como o progresso na divisão do tra-balho) quanto exógenas a ele, os grupos sociais podemperder seu tecido moral e entrar em estados agudos deanomia e egoísmo;- a reconstrução moral do grupo pode acontecer endo-genamente, dados certos requisitos funcionais (derivadosnão de uma teoria funcionalista da sociedade, mas de uma

estrutura lógica de causas-efeitos): o grupo fornece oscontatos interindividuais (efeitos multiplicativos inte-grativos de cunho psicosocial e micro-interacionista), asefervescências ritualísticas e as tendências de geração e/ou manutenção moral, tudo derivado das forças de gravi-dade social e das leis do movimento moral;- o grupo está sujeito a forças contextuais imprevisíveis,que podem ou não bloquear os processos endógenos dereconstrução moral. No caso de bloqueios efetivos, a mo-ral dos movimentos pode se dissolver, voltando a uma faseegoísta/anômica;- daí, novamente pela mobilização moral endógena, e dadascondições ou requisitos funcionais adequados, o grupooriginal pode retomar o percurso da reconstrução moral.

Desta forma, pode-se completar o ciclo egoísta/anô-mico-altruísta da violência, que acontece de forma bas-tante clara em alguns países da América Latina (Fandino,1999),7 e é uma hipótese bem provável para o conjuntodo continente. Pode-se dizer, então, que em Durkheim,embora nem sempre de forma explícita, há um modelo detrajetória histórica da vida moral, que relaciona, num sen-tido causal, variações nos estados de anomia social, ten-dências ou forças de gravidade sociomoral, mecanismosgrupais de geração e manutenção da moral, estados altruís-tas ou egoístas de consciência coletiva e, finalmente, pa-drões específicos de comportamento individual observável,como o suicídio ou o crime violento.8

Posto que a unidade de análise no modelo durkhei-miano é o grupo social em geral, sem qualquer deter-minante a priori, então a gênese, manutenção e/oureconstrução moral de agregados sociais anômicos podemacontecer, a priori, dentro de qualquer contexto socialhistórico, onde as forças de gravidade moral e as leis demovimento se apliquem de forma mais intensa, e emfunção do contexto e da forma como as forças moraisatuem nele. No caso da América Latina, nossa hipóteseé que o dualismo de classe persistente no continente aolongo da sua história vem se consolidando como dualismomoral (embora os dos segmentos ou classes não tenhamde ser igualmente altruístas ou egoístas nos seus própriostermos morais). Desse quadro, emerge a violência comouma resultante do confronto das dinâmicas (socio)moraisdos dois grupos.

Porém, o arcabouço conceitual durkheimiano aqui ela-borado não dá conta por si só do movimento histórico daviolência no continente. É necessário trazer à discussão aquestão do poder e da (i)legitimidade de onde emerge, aí

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sim, a justificativa teórica completa do modelo cíclicoproposto.

PODER, (I)LEGITIMIDADE, POLARIZAÇÃOE VIOLÊNCIA CÍCLICA

Dentro do contexto de relações entre as classes bási-cas no continente, a problemática do poder e da autorida-de adquire características e tendências peculiares, queformam um segundo elemento-chave que focaliza a nossaanálise. Aqui utilizamos as noções weberianas de poder elegitimidade. Para esse efeito, lembremos, de passagem,que o “poder” em questão envolve essencialmente a habi-lidade probabilística por parte de agentes individuais oucoletivos de impor a sua vontade sobre outros, fora de qual-quer marco organizacional ou institucional. Por sua par-te, a “autoridade” refere-se à probabilidade de que um co-mando dado por um líder ou “oficial” em posição de“autoridade” seja obedecido pelo grupo de subordinados,sobre o qual se disse que o líder exerce “dominação legí-tima”. A passagem do poder para a dominação legítima ea autoridade pressupõe um elemento de aceitação volun-tária que, no caso de sociedades com altos antagonismosde classes e, portanto, baixa integração social, torna-semuito mais a exceção do que a norma. No caso latino-americano, as relações de poder entre as classes (habili-dade relativa de cada classe de impor sua vontade coleti-va sobre a outra), revelam historicamente uma tendênciapara a centralização e agravamento do conflito: começa-mos com Estados centrais débeis que enfrentam o podersocial das classes subalternas ainda débeis. Os Estadoscentrais crescem no poder organizacional ao longo do tem-po, e enfrentam, assim mesmo, crescente descontentamentoe poder crescente das classes dominadas. Isto representa,naturalmente, instabilidade crescente e crises de domina-ção legítima.9

A fragilidade histórica das bases da legitimidade nocontinente extravasa o sistema político e atinge as pró-prias fontes da aceitação da lei e dos seus instrumentos,como foi indicado. Eis aí a profundidade da nossa crisede autoridade. Ora, os movimentos de regeneração(socio)moral, ligados visceralmente à questão do compo-nente de (i)legitimidade do exercício da autoridade, eoriundos dos grupos excluídos e de seus aliados ideológi-cos, encontram sistematicamente uma formidável barrei-ra às suas pretensões, formada pelo segmento de classeatrelada ao capitalismo histórico e seus aliados locais. Osgrupos excluídos, em função da gravidade (densidade)

moral, e no contexto do engrossamento da crise de legiti-midade, vão gradualmente constituindo um segundo pólode poder, para o qual a inspiração marxista cai como umaluva, apesar das graves anomalias próprias de tal tipo deimportação. Dessa confrontação sistemática com perde-dores sempre re-emergindo das cinzas, aflora o carátercíclico da violência, de forma tal que após um esforço deaglutinação e de confrontação altruísta em busca do po-der, os grupos excluídos experimentam o desmanche dosmovimentos. Isto gera, naturalmente, uma volatilizaçãoda densidade moral construída, e uma conseqüente ascen-são das formas anômico-egoístas de violência. Ainda as-sim, e em função da própria força da gravidade social, osrecursos morais dos grupos excluídos, próprios e limita-dos naturalmente pela sua “consciência possível”, lenta-mente recuperam, ou melhor, podem recuperar o sentidoaltruísta da sua aglutinação. A novidade da história recenteé o advento de vias extra-rápidas e ultra-eficientes de aces-so ao poder econômico, tanto por parte dos gruposanômico-egoístas, quanto dos altruístas, causando profun-dos dilemas e confusões éticas, e alterando a marcha pa-dronizada dos ciclos: é a economia dos entorpecentes.Especificamos a seguir um esquema aproximado dessesciclos em nível continental. É oportuno reafirmar que ofato da normatização paralela dos grupos excluídos, porassim dizer, representa um tipo de moral social, indepen-dentemente do caráter mais ou menos ético que possa serimputado a ela do ponto de vista de outras posições. Fi-nalmente, as contaminações “(socio)egoístas” que venhaa experimentar o altruísmo do grupo são um problemacontingente e decisivo, ao qual voltaremos no final dotexto.

CICLOS HISTÓRICOS DA VIOLÊNCIA

Dentro deste quadro geral, podem ser identificadasquatro fases gerais de crise/reconstrução do tecido moral,cuja dinâmica está associada ao modelo durkheimiano daconstrução da moral social e, em última análise, às for-mas específicas de violência. Cada país, é claro, realizaum percurso único, de forma que variações muito acentua-das são detectáveis de país a país.

Lutas Indígenas Agrárias

A primeira fase envolve as lutas indígenas agrárias,cujo paradigma clássico é a Revolução Mexicana, em quegrupos agrário-indigenistas e de escravos se levantam em

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armas em prol, basicamente, da reconquista das basesecológicas – principalmente a terra – e de políticas doseu tecido moral, desmantelado pelos europeus. Estasmassas, porém, vêem tal reivindicação escapar, em faceda absoluta falta de recursos técnicos e de capital sim-bólico requerido para chegar e sobreviver “no poder” (au-toridade de governo), no contexto já ocidentalizado ondetinham que atuar. Segundo o nosso modelo ideal-típico,depois das derrotas sofridas pelos povos indígenas e afri-canos nas suas diferentes formas, caberia se esperar umsurto de violência egoísta/anômica, que resultaria maisadiante em uma nova onda de violência altruísta. Porém,em função do quase extermínio físico dos povos indíge-nas, e da transformação religiosa que experimentaram,tal movimento reconstitutivo não poderia ser bem-suce-dido. Porém, a semente da violência “disposicional” es-tava lançada.

Conflitos Regionais e Político-partidários,Ascensão do Populismo

Estabilizada a hierarquia tecno-simbólica dos coloni-zadores europeus, e consolidadas as entidades nacionais,pode ser identificada uma segunda fase de conflitos re-gionais e/ou político-partidários, nos quais a frágil legiti-midade dos partidos (grupos) “no poder” manifesta-se nasecular alternância entre presidentes e generais nos go-vernos. No início dessa fase, os grupos marginais ou peri-féricos ao sistema social nacional central geralmente per-maneciam ligados politicamente a ele por meio decaudilhos ou “coronéis” locais, sendo que violência típi-ca dessa fase por parte dos grupos excluídos é do tipoegoísta/anômico. Porém, alguns destes grupos realizameventualmente um processo de mobilização “moral” sobnovas lideranças “primitivas”. Mesmo assim, elas aindanão possuem qualquer noção de interesses sociais supe-riores e nem têm burocracias definidas. Em sua forma maispura, encontramos os “cangaceiros” do Nordeste no Bra-sil e os “bandoleiros” da Colômbia, caracterizados por suamarginalidade com relação ao contexto social maior.Embora encobertos na ilegalidade em função de suas ati-vidades criminosas, essas figuras e os seus círculos ime-diatos exerciam uma liderança social em suas comunida-des, instrumental e eticamente muito acima da naturezapredatória de suas atividades ilegais. Eventualmente, aforça dinâmica sociomoral emerge também na sociedadeurbano-industrial nascente, dando forma específica aomovimento ascendente do ciclo altruísta a essa fase, com

o chamado “populismo”. Como paradigmas clássicos des-tes conflitos, podemos citar os golpes populistas de Peróne Vargas, na Argentina10 e no Brasil, e de Rojas Pinilla ePérez Jimenez, na Colômbia e na Venezuela. São conhe-cidas as limitações do populismo como norte econômico,social e político no continente, abrindo-se espaço para umnovo ciclo.

Notemos aqui que as duas primeiras fases considera-das foram aparentemente vazias, do ponto de vista da “sub-jetividade coletiva” (Domingues, 2000), em termos deidentidade e centralidade social com um corpo ideológi-co sustentador. Porém, as forças “antissistema” estavamevidentemente amadurecidas para o passo seguinte.

Movimentos Revolucionários Marxistas

Essa terceira fase dos “movimentos revolucionáriosmarxistas” representa a cristalização da mobilizaçãosociomoral holística por parte de uma fração altamentesignificativa da classe subordinada. A aludida crista-lização refere-se ao fato de que a forma anterior decontestação à legitimidade, fundamentalmente errática,vai dando lugar gradualmente a movimentos contes-tatórios de classe muito mais profundos, nos quais a fontealternativa de legitimidade é buscada mediante movi-mentos “antissistema” (Wallerstein, 1983).11 Ocorre aquiuma transição do caráter pré-político para o político dosmovimentos sociais (Costella, 1992). Porém, a evoluçãodesses movimentos, pela visão aqui apresentada, não temum caráter linear próprio dessa literatura, mas sim cíclico.Assim, a partir aproximadamente da Segunda GuerraMundial, começa a se consolidar no continente uma sériede movimentos antissistema, cujo maior estímulo, comotambém seu paradigma, foi, indiscutivelmente, o triunfoda Revolução Cubana. Essa transição obedece, natu-ralmente, ao processo de reconstrução moral no nossomodelo típico ideal durkheimiano.12 Os grupos excluídos,freqüentemente sob a liderança dos chamados “gruposmediadores”, conseguem tornar-se “sujeitos coletivos”relativamente autônomos, e montar um movimentorevolucionário em escala continental, em cujos ideaiscifravam suas esperanças grandes contingentes dapopulação dos países da região.

Essa forma de reestruturação da moral social e dalegitimidade, por razões já bastante debatidas, fracassa.Indiquemos apenas de passagem que tanto o contextomundial global capitalista, dentro do qual atuam os movi-mentos, quanto o desprestígio das ideologias marxistas em

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CICLOS HISTÓRICOS DA VIOLÊNCIA NA AMÉRICA LATINA

face da débâcle do socialismo soviético participaramdecisivamente desse fracasso. Derrotado o altruísmopopular marxista, inicia-se um novo ciclo de reconstruçãomoral, de futuro tão indeterminado – a priori –, como osanteriores.

Democracia Eleitoral e Ascendência doCrime Organizado

Assim como a etapa anterior representou a consolida-ção de uma subjetividade coletiva capaz de autolegitimare direcionar o uso de violência altruísta, a atual poderárepresentar a própria superação dos ciclos da violênciaem geral. De fato, esta fase atual inicia-se com a“postulação” (proposital) da democracia eleitoral como aúnica via de acesso ao poder e ao exercício da autoridadee, em última análise, como via de eliminação do dualismo(cidadania universal). Porém, essa fase ainda não mostrouseus rumos definitivos, evidenciando-se, ao contrário, umcrescimento sem precedentes da violência, tanto ordiná-ria como do crime organizado, que ameaça desvirtuar in-teiramente o potencial dos recursos morais. O conhecidofato histórico responsável é a economia de entorpecentes.Este novo elemento no cenário continental tem duas con-seqüências negativas gravíssimas, em última instância li-gadas entre si. De um lado, abre-se no continente umaavenida ultra-rápida e ultra-eficiente de acesso aos recur-sos historicamente bloqueados para os excluídos (lembran-do que os excluídos não são só os pobres). A violência“ordinária” mais característica do mundo urbano (GómezBuendia, 1989), e já agravada no nosso continente pelodualismo histórico, potencializa-se e cobra “vida própria”por meio da organização do crime. Nesse sentido, cabereferenciar os trabalhos seminais de Sutherland et al.(1966) e de Cloward e Ohlin (1960), nos quais encontra-mos as bases microssociológicas desse fenômeno, articu-ladas em torno das teorias do aprendizado, do desvio cul-tural e subcultural e da chamada “estruturação dasoportunidades ilegítimas”. Esta teorização correspondiaoriginalmente à situação contextual da Escola de Chica-go, mas tem aplicabilidade direta e até mais evidente nocaso em pauta.

A outra conseqüência negativa grave é que a economiados entorpecentes oferece uma nova perspectiva de so-brevivência da violência altruísta como instrumento viá-vel de superação do dualismo, como se pode constatar noscasos da Colômbia, do Peru e do México. Ora, esta so-brevida não se relaciona apenas com os movimentos re-

volucionários oriundos da fase anterior: ela envolve, e istoé o mais grave, o possível re-surgimento desta “ideologiapolítica da violência” a partir dos próprios contingentesde população excluída e seus mediadores, já altamenteorganizada hoje “apenas” para o crime. Pode-se afirmar,por exemplo, que as organizações de apenados nas pri-sões têm um poder “político” e exercem uma “autorida-de” (não jurídica, mas sociológica) sobre amplos setoresda população marginal das grandes cidades, um poder quese expande rapidamente por toda a estrutura urbana e ru-ral. Esta estruturação (egoísta) pode significar, além de“crime organizado”, um tipo de guerrilha pré-política querepresentaria uma regressão no movimento de ascensãomoral (integração) nacional e até continental.

A transição cíclica de Fidel Castro a Pablo Escobar –da terceira para a quarta fase – não resulta de simples aci-dentes históricos, e sim de uma unidade autopoiética, po-rém contingente, de descenso moral. Esses dois líderes,independentemente de ocuparem posições antípodas noespectro ético, representam expressões paradigmáticas dosfatores-chave de desestabilização sistêmica, em face dapressão das forças de gravidade social e moral articula-das nos núcleos de mais liderança nos setores excluídos.Ou seja, a mesma força de gravidade social responsávelpela gênese de bandoleiros e cangaceiros acaba gerando,no contexto atual, enormes organizações dedicadas aocrime. Nessa ordem de idéias, a diferença é que o contex-to histórico dos anos 50 e 60, que canalizou a gravidadesocial no sentido da tentativa de reconstrução moralholística, não está presente, assim como não estão pre-sentes, pelo menos aos olhos de muitos setores excluídos,outras formas alternativas de canalização da gravidadesocial em uma direção social legal, plausível e não vio-lenta.

Concluindo, a questão-chave da presente fase da eli-minação da violência e da hegemonização da democra-cia está na articulação de uma perspectiva de sucesso dasuperação do dualismo de exclusão pelas vias legítimas,baseada em alguma agenda concreta. Ora, esta tarefa dereconstrução, ou melhor dito, de constituição (so-cio)moral do continente e de sua paz social não dependeda imposição de “moralismos” confessionais, mas simde um contrato social, com seus componentes políticos,sociais, econômicos e legais, conquistável só na base darejeição da violência, do diálogo democrático e do po-der curativo, nas palavras de Durkheim, do maior anseioe prazer do indivíduo – o de pertencer a uma comunida-de moral.

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NOTAS

1. Para o leitor menos versado na teoria sociológica clássica, cabe lem-brar que a noção de “moral” (social) em Durkheim não tem o sentidode “ética” (individual), mas apenas o sentido de grau de compar-tilhamento e internalização das normas, associado à “integração”. Aconotação ética que queiramos imputar a um determinado fato social“moral” é um problema inteiramente diferente. Uma confusão entreestes dois sentidos do termo poderia levar a profundos mal-entendidosdo presente ensaio.

2. A palavra in-integração é preferível a desintegração, posto que aAmérica Latina nunca foi “integrada”, e não experimenta, portanto,qualquer processo de “desintegração”.

3. Aqui entram as questões da antiga “acumulação primitiva”, mastambém da “exclusão” e “esvaziamento” da capacidade sustentadorado meio ambiente.

4. Estas normas têm origem não formal, e são entendidas como “senti-mentos”, mais do que como estruturas racionais. A integração socialdecorrente do compartilhamento e internalização destas normas é di-ferente da outra idéia de integração relativa apenas aos contatos man-tidos entre os membros do grupo.

5. Para um tratamento adequado desta questão, ver Wright et al. (1992).

6. Este aspecto de fato é bem menos explícito nos seus textos, emborarepresente pelo menos uma conseqüência lógica do seu marco teórico.

7. A idéia do movimento cíclico da violência surgiu a partir do meutrabalho anterior sobre o caso da Colômbia. O presente trabalho em-presta daquele algumas idéias importantes.

8. Este modelo representa um tipo ideal formulado para utilização nosentido lógico dos tipos ideais (instrumentos heurísticos) e, portanto,não serve para prever trajetórias históricas específicas.

9. Esta instabilidade da legitimidade, com base no dualismo civilizatóriode classe, não é igual ao modelo habermasiano da “crise” da legitimi-dade, que se baseia na forma como os sistemas legais e de ação comu-nicativa se defrontam com a questão da mudança, endogenamente. OTerceiro Mundo não pode copiar sua visão das classes sociais do Pri-meiro Mundo, simplesmente porque lá o cenário histórico é diferente,advindo de uma clivagem civilizatória ainda não superada.

10. Os países do Prata são os que mais se distanciam do modelo teóri-co. Mesmo assim, seu valor heurístico continua sendo considerável.

11. A rigor, a noção de movimento “antissistema” wallersteiniano nãopode ser adotada aqui sem um esclarecimento importante: emWallerstein, o sistema de referência é o próprio “capitalismo históri-co” mundial, enquanto os movimentos latino-americanos freqüente-mente têm como alvo seus governos nacionais, mesmo que alinhadoscom o capitalismo histórico.

12. Esta mistura metodológica de Durkheim e Weber não é um erro dedigitação, mas está respaldada na asserção weberiana de que a acentua-

ção de certos elementos da realidade (aqui chamada de “modelo”) paraefeitos metodológicos não é realidade, mas ajuda a compreendê-la, e échamada por ele de “tipo ideal”.

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JUAN MARIO FANDINO MARINO: Professor de Sociologia da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul ([email protected]).

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TENDÊNCIAS DO CONTROLE PENAL NAÉPOCA CONTEMPORÂNEA

reformas penais no Brasil e na Argentina

Resumo: Este artigo parte da análise comparativa das reformas da legislação penal no Brasil e na Argentina,identificando três âmbitos de mudança: a expansão do Direito Penal, o Processo Penal de Emergência e ainformalização da Justiça Penal. O estudo realizado visa contribuir para a compreensão dos movimentos depolítica criminal que se expressam através das reformas legais investigadas.Palavras-chave: reformas penais; política criminal; informalização da justiça.

Abstract: This article begins with a comparative analysis of the reforms in penal legislation in Brazil andArgentina, identifying three areas of change: the expansion of Penal Law, the Emergency Penal Process, andthe informalization of Penal Justice. The study attempts to contribute to the understanding of the criminalpolicy movements behind the legal reforms being examined.Key words: penal reforms; criminal policy; informalization of justice.

RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 39-48, 2004

ntre o conjunto de reformas no funcionamentoda máquina estatal, realizadas nos países daAmérica Latina a partir do final dos anos 80, e

que tiveram por objetivo tanto a reconstituição e moder-nização de uma institucionalidade democrática quanto aadequação ao chamado “Consenso de Washington”, nosentido de uma redução da atividade estatal às tarefas es-senciais de promoção do crescimento econômico e manu-tenção da ordem, uma das áreas em que tais mudanças vêmocorrendo, de forma pontual, fragmentada e muitas vezescontraditória, é a que diz respeito ao poder de punir doEstado: a administração do controle penal, desde atipificação de novos delitos até o funcionamento dos ór-gãos policiais, passando pelos procedimentos dos órgãosoficiais de administração da justiça e o sistema prisional.

Com a redemocratização, os novos administradores doEstado, agora eleitos pelo voto popular, depararam-se comuma situação de aumento das taxas de criminalidade, de-corrente de fatores como a grande concentração popula-cional produzida pela migração do campo para as gran-des metrópoles urbanas, consolidada no Brasil durante operíodo de governo militar que, por meio do arbítrio, re-

presou muitos bolsões de conflitualidade social emergen-te (Adorno, 1994).

Para os novos governos eleitos na região, em todas asesferas de administração (federal, estadual e municipal),o problema da segurança pública tem sido colocado comouma das principais demandas da chamada “opinião públi-ca”, muitas vezes amplificada por via da atuação dos meiosde comunicação de massa. O “sentimento de inseguran-ça” é crescente, com o aumento da percepção pública arespeito das diversas esferas da criminalidade, desde aeconomia do tráfico na favela e a criminalidade urbanaviolenta até os centros dos sistemas político e financeiro,onde ocorre a lavagem de dinheiro e o desvio de recursospúblicos para o enriquecimento privado. A resposta esta-tal é insistentemente cobrada, e colocada no centro dodebate político em períodos eleitorais.

O resultado é a crescente perda de legitimidade do sis-tema penal, incapaz de justificar o seu grau de seletivida-de e a sua incapacidade de dar resposta ao sentimento deinsegurança e impunidade da maioria da população(Zaffaroni, 1991). O sistema político reage com propos-tas de reforma do sistema de controle penal.

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Em relação à polícia, o debate gira em torno da suareciclagem, para atuar em um Estado Democrático deDireito, visando assegurar os direitos de cidadania de todaa população, e não apenas das elites; também com vistasà economia administrativa e à racionalização dos esfor-ços de informação e prevenção necessários ao enfrenta-mento da criminalidade em seus vários níveis, com a re-dução da seletividade na atividade policial, ou o seuredirecionamento para os delitos mais graves em termosde conseqüências sociais. Tais mudanças esbarram em umacultura repressiva, fruto do papel historicamente desem-penhado pela polícia em países com grande desigualdadesocial, como Brasil e Argentina.

O sistema judicial é alvo de constantes propostas demudança, que ocorrem de forma fragmentada, por meiode leis muitas vezes feitas ao sabor dos clamores da opi-nião pública, amplificados pela mídia, sem uma unidadecapaz de garantir um mínimo de segurança jurídica e coe-rência interna (Koerner, 2000). Novos delitos são cria-dos, novas áreas de criminalização aparecem, novos pro-cedimentos são propostos, tudo na tentativa de recuperara legitimidade perdida e um mínimo de eficácia frente auma realidade social que cada vez mais foge ao controledos mecanismos institucionais de controle penal.

O sistema prisional, carente de meios para responderao número crescente de condenados que lhe é enviado,tradicionalmente degradante e estigmatizante em todo ocontinente, carece de toda a possibilidade de resso-cialização, servindo mais como ponto de reunião de todauma cultura da delinqüência, cujos maiores beneficiáriosdificilmente recebem uma pena privativa de liberdade(Velho e Alvito, 1996:290-304).

Além da dimensão local e conjuntural do problema dasegurança pública, a reforma do sistema de controle pe-nal precisa também ser compreendida na sua relação comdeterminados fenômenos mais abrangentes, que têm sidoobjeto da sociologia jurídica, como a judicialização cres-cente da realidade social e a pluralidade de formas e degraus de incidência das normas sobre o espaço social, le-vando à necessidade daquilo que Boaventura Sousa San-tos denomina uma cartografia simbólica do direito na tran-sição pós-moderna (Santos, 1996:260).

Essa cartografia pressupõe que, ao contrário da tradi-ção jurídica dogmática, circulam na sociedade não uma, masvárias formas de direito ou modos de juridicidade e, na áreapenal, a conseqüência disso é que a eficácia da legislaçãopenal depende de uma série de mediações com os mecanis-mos institucionais e burocráticos responsáveis pela suaaplicação na realidade social em que atuam.

REFORMAS PENAIS NA ÚLTIMA DÉCADA

Expansão do Direito Penal

Uma das tendências mais evidentes no tocante às nor-mas penais nas sociedades contemporâneas é a da hiper-trofia ou inflação de normas penais, que invadem camposda vida social anteriormente não regulados por sançõespenais. O remédio penal é utilizado pelas instâncias depoder político como resposta para quase todos os tipos deconflitos e problemas sociais.

A resposta penal converte-se em resposta simbólica(Baratta, 1994) oferecida pelo Estado em face das deman-das de segurança e penalização da sociedade, expressa-das pela mídia, sem relação direta com a verificação desua eficácia instrumental como meio de prevenção ao de-lito. O direito penal converte-se em recurso público degestão de condutas utilizado contingencialmente, e nãomais como instrumento subsidiário de proteção de inte-resses ou bens jurídicos. Nos casos de Brasil e Argentina,a inclusão de algumas novas áreas dentro do denominadocontrole penal formal não foi compensada pela diminui-ção do rigor repressivo nas áreas tradicionalmente sub-metidas ao controle penal convencional.

Entre as áreas novas ou ao menos distintas das tradicio-nalmente contidas no Código Penal brasileiro e no argen-tino, atingidas pela expansão do direito penal, cabe men-cionar as disposições penais em matéria de delitoseconômicos e financeiros – sonegação fiscal, lavagem dedinheiro, etc. (Brasil e Argentina); criminalização das con-dutas contrárias às relações de consumo (Brasil); crimina-lização de delitos ambientais (Brasil) e relacionados comresíduos perigosos (Argentina); tipificação de delitos dediscriminação racial ou de outro tipo e da chamadacriminalidade organizada (Brasil e Argentina); crimi-nalização do assédio sexual (Brasil) e de condutas relacio-nadas com espetáculos esportivos e terrorismo (Argentina).

Processo Penal de Emergência

Para caracterizar esse momento de mudanças no âmbi-to da legislação e das práticas punitivas, têm sido utiliza-da a denominação direito penal de emergência, ou pro-cesso penal de emergência (Ferrajoli, 2002). ConformeFauzi Choukr (2002:6), “Emergência vai significar aqui-lo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelosistema repressivo, constituindo um subsistema dederrogação dos cânones culturais empregados na norma-lidade. Num certo sentido, a criminologia contemporânea

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dá guarida a esse subsistema, colocando-o na escala maiselevada de gravidade criminosa a justificar a adoção demecanismos excepcionais a combatê-la, embora sempredefenda o modelo de estado democrático de direito comolimite máximo da atividade legiferante nessa seara”.

No Brasil, a emergência penal pode ser constatada coma edição da Lei no 8.072/90, conhecida como Lei dos Cri-mes Hediondos, que regulamentou o que havia sido pre-visto na Constituição de 1988, que no art. 5o, inciso XLIII,criou a figura dos crimes hediondos, nos seguintes termos:

“XLIII – A lei considerará crimes inafiançáveis einsuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o trá-fico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo eos definidos como crimes hediondos, por eles responden-do os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (…).”

Em seu art. 1o , a Lei no 8.072/90 definiu como hedion-dos os delitos de homicídio qualificado e homicídio pra-ticado em atividade típica de grupo de extermínio, o la-trocínio, a extorsão qualificada pela morte, a extorsãomediante seqüestro e na forma qualificada, o estupro e oatentado violento ao pudor, a epidemia com resultadomorte, falsificação, corrupção, adulteração ou alteraçãode produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais,consumados ou tentados. O parágrafo único do art. 1o damesma lei rotulou também como hediondo o crime degenocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de1o de outubro de 1956, tentado ou consumado, com reda-ção dada pela Lei no 8.930/94.

Em seus arts. 2o e 3o, a Lei no 8.072/90 estabeleceu asregras aplicáveis aos delitos hediondos e aos a eles equi-parados, nos seguintes termos:

“Art. 2o - Os crimes hediondos, a prática da tortura, otráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terroris-mo são insuscetíveis de:

I - anistia, graça e indulto;II - fiança e liberdade provisória.§ 1o - A pena por crime previsto neste artigo será cum-

prida integralmente em regime fechado.§ 2o - Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá

fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.§ 3o - A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei no

7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstosneste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogávelpor igual período em caso de extrema e comprovadanecessidade.

Art. 3o - A União manterá estabelecimentos penais, desegurança máxima, destinados ao cumprimento de penasimpostas a condenados de alta periculosidade, cuja per-

manência em presídios estaduais ponha em risco a ordemou incolumidade pública.”

O art. 5o acrescentou inciso ao art. 83 do Código Pe-nal, determinando que, para que haja a concessão de li-vramento condicional ao condenado a pena privativa deliberdade, nos casos de condenação por crime hediondo,prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e dro-gas afins, e terrorismo, deverão ter sido cumpridos maisde dois terços da pena.

O art. 6o da Lei dos Crimes Hediondos aumentou a penados delitos rotulados como hediondos. Para exemplificar,o latrocínio, que tinha pena mínima de quinze anos dereclusão, passou ao mínimo de vinte anos; a extorsãomediante seqüestro, cuja pena mínima era de seis anos dereclusão, passou a ter o mínimo no patamar de oito anos.O mesmo crime, se praticado contra menor de dezoito anosou por quadrilha, ou se durar mais de 24 horas, que tinhapena mínima de oito anos, passou para doze anos de re-clusão. Se do seqüestro resultar a morte, a pena mínima,que era de vinte anos, passou para 24 anos. O estupro,que tinha pena mínima de três anos de reclusão e oito comomáxima, passou ao mínimo de seis anos e máximo de dezanos. O atentado violento ao pudor passou de umapenamento mínimo de dois anos e máximo de sete anospara seis e dez anos, respectivamente.

O mesmo diploma legal introduziu pela primeira vezno ordenamento jurídico brasileiro a figura da delaçãopremiada, prevendo que o participante e o associado quedenunciarem à autoridade o bando ou quadrilha, possibi-litando seu desmantelamento, terão a pena reduzida de umterço a dois terços.

Outro exemplo de legislação emergencial é a Lei no

9.034/95, que dispõe sobre a utilização de meios opera-cionais (meios de prova e procedimentos investigatórios)para a prevenção e repressão de ações praticadas por or-ganizações criminosas. O art. 1o define organizações cri-minosas como sinônimo de quadrilha ou bando ou orga-nizações ou associações criminosas de qualquer tipo. Deacordo com o art. 2o, em qualquer fase de persecução cri-minal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos emlei, os seguintes procedimentos de investigação e forma-ção de provas:

“II - a ação controlada, que consiste em retardar ainterdição policial do que se supõe ação praticada pororganizações criminosas ou a ela vinculado, desde quemantida sob observação e acompanhamento para que amedida legal se concretize no momento mais eficaz doponto de vista da formação de provas e fornecimento deinformações;

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III - o acesso a dados, documentos e informações fis-cais, bancárias, financeiras e eleitorais;

IV - a captação e a interceptação ambiental de sinaiseletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro eanálise, mediante circunstanciada autorização judicial;

V - infiltração por agentes de polícia ou de inteligên-cia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãosespecializados pertinentes, mediante circunstanciada au-torização judicial.

Parágrafo único. A autorização judicial será estritamen-te sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdu-rar a infiltração.”

O art. 3o prevê que, nas hipóteses do inciso III do art.2o, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preser-vado pela Constituição ou por lei, a diligência será rea-lizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigorososegredo de justiça. Para realizar a diligência, o juiz po-derá requisitar o auxílio de pessoas que, pela naturezada função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aosobjetos de sigilo. O juiz, pessoalmente, fará lavrar autocircunstanciado da diligência, relatando as informaçõescolhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos do-cumentos que tiverem relevância probatória, podendo,para esse efeito, designar uma das pessoas referidas noparágrafo anterior como escrivão ad hoc. O auto de dili-gência será conservado fora dos autos do processo, emlugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor,somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz,as partes legítimas na causa, que não poderão dele ser-vir-se para fins estranhos à mesma, e estão sujeitas àssanções previstas pelo Código Penal em caso de divul-gação.

Conforme o § 4o do art. 3o, os argumentos de acusaçãoe defesa que versarem sobre a diligência serão apresenta-dos em separado para serem anexados ao auto da diligên-cia, que poderá servir como elemento na formação da con-vicção final do juiz. E o § 5o estabelece que, em caso derecurso, o auto da diligência será fechado, lacrado e en-dereçado em separado ao juízo competente para revisão,que dele tomará conhecimento sem intervenção das se-cretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Mi-nistério Público e ao Defensor em recinto isolado, para oefeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidosem absoluto segredo de justiça.

O capítulo III do referido diploma legal estabelece, emseu art. 4o, que os órgãos da polícia judiciária estruturarãosetores e equipes de policiais especializados no combateà ação praticada por organizações criminosas, sendo quea identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação

praticada por organizações criminosas será realizada in-dependentemente da identificação civil (art. 5o).

Uma das principais inovações previstas pela Lei no

9.034/95, em seu art. 6o, era que, nos crimes praticadosem organização criminosa, a pena será reduzida de um adois terços, quando a colaboração espontânea do agentelevar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria.

O art. 7o impede a concessão de liberdade provisória,com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa eefetiva participação na organização criminosa, estabele-cendo o art. 8o que o prazo para encerramento da instru-ção criminal, nos processos por crime de que trata estalei, será de 81 dias, quando o réu estiver preso, e de 120dias, quando solto.

Dispõe ainda o art. 9o que o réu não poderá apelar emliberdade, nos crimes previstos nesta Lei. O art. 10 esta-belece que os condenados por crimes decorrentes de or-ganização criminosa iniciarão o cumprimento da pena emregime fechado, aplicando-se, no que não forem incom-patíveis, subsidiariamente, as disposições do Código deProcesso Penal.

Na Argentina, exemplos de legislação emergencial tam-bém podem ser encontrados, no âmbito do controle penaldo tráfico de entorpecentes. A primeira legislação espe-cífica a tratar do tema do uso e tráfico de entorpecentes,retirando-o do âmbito do Código Penal, foi a Lei no 20.771,de 1974, substituída posteriormente pela Lei no 23.737,em 1989.

A Lei no 20.771 sancionou com penas entre três e dozeanos de prisão as atividades vinculadas ao tráfico e co-mercialização de estupefacientes, entre as quais o cultivode plantas ou sementes, a produção, extração, fabricaçãoou preparação de estupefacientes, o seu comércio, distri-buição, armazenamento ou transporte, assim como a suaentrega, facilitação ou aplicação em terceiros. A lei tam-bém previa penas de prisão de cinco a quinze anos paraos financiadores e organizadores de qualquer das ativida-des antes descritas, e com três a oito anos de prisão, as-sim como a difusão pública do seu uso.

A lei previa ainda a aplicação de medida de segurançacurativa, consistente em tratamento para desintoxicaçãoe reabilitação, por tempo indeterminado, para o condena-do pelos delitos acima com dependência física ou psíqui-ca de estupefacientes, embora não tenham sido criadas asinstituições previstas para a aplicação dessa medida.

A respeito da posse de estupefacientes para consumopessoal, o art. 6o da Lei no 20.771 previa a pena de prisãode um a seis anos, mesmo que fossem destinados ao con-sumo pessoal. Isso significa que o tipo penal não repri-

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mia diretamente o consumo em si mesmo, mas sim indire-tamente, punindo a posse da droga. Esta previsão legalentrou em choque com o dispositivo constitucional pre-visto no art. 19 da Constituição, que garantia a impu-nibilidade de ações privadas que não ofendessem a morale a ordem pública, nem prejudicasse a terceiro.

Depois de uma longa polêmica jurisprudencial, emagosto de 1986 a Corte Suprema finalmente declarou ainconstitucionalidade da proibição penal da posse de es-tupefacientes para consumo pessoal (Virgolini, 1992:124),abrindo caminho para o reconhecimento da autonomia deconsciência individual e convertendo-se em uma medidaconcreta de redução do âmbito de intervenção penal. ACorte Suprema fundamentou sua decisão pelo fato de quenão havia investigações ou comprovações empíricas ca-pazes de demonstrar que entre o consumo de estupefa-cientes e a periculosidade social do consumidor existisseuma vinculação necessária, que justificasse a penalizaçãoda posse de drogas. A Corte fez referência igualmente àsrecomendações de organismos internacionais que desa-conselhavam a punição do consumidor, que na maioria doscasos se mostrou prejudicial para o tratamento oureinserção social de quem mantinha uma relação ocasio-nal com a droga (Cavallero, 1997:61-72).

Em sentido contrário à decisão da Corte Suprema, odebate prosseguiu, com a proliferação de posições no sen-tido de uma maior severidade no tratamento do consumoe tráfico de drogas no interior do campo político e nosmeios de comunicação de massa.

O resultado foi a promulgação da Lei no 23.737, em1989, que não alterou substancialmente os tipos penaisda lei anterior, mas trouxe um sensível aumento das pe-nas cominadas. Embora tenha mantido a previsão de pu-nição para a posse de estupefacientes para uso pessoal, anova lei previu alternativas para a execução da pena deprisão, como a sua suspensão e substituição por medidade segurança curativa ou educativa.

O art. 11 desse diploma legal previu o aumento de umterço do máximo e da metade do mínimo de previsão deapenamento, nos seguintes casos:

“a) Si los hechos se cometieren en perjuicio de mujeresembarazadas o de personas disminuidas psíquicamente, osirviéndose de menores de dieciocho años o en perjuiciode éstos;

b) Si los hechos se cometieron subrepticiamente o conviolencia, intimidación o engaño;

c) Si en los hechos intervinieren tres o más personasorganizadas para cometerlos;

d) Si los hechos se cometieren por un funcionario pú-blico encargado de la prevención o persecución de losdelitos aquí previstos o por funcionario público encargadode la guarda de presos y en perjuicio de éstos;

e) Cuando el delito se cometiere en las inmediacioneso en el interior de un establecimiento de enseñanza, cen-tro asistencial, lugar de detención, institución deportiva,cultural o social o en sitios donde se realicen espectáculoso diversiones públicos o en otros lugares a los que escola-res y estudiantes acudan para realizar actividades educa-tivas, deportivas o sociales;

f) Si los hechos se cometieren por un docente, educa-dor o empleado de establecimientos educacionales en ge-neral, abusando de sus funciones específicas.”

Previu ainda a Lei no 23.737 a possibilidade de utiliza-ção de agentes policiais infiltrados, em seu art. 31 bis,conforme segue:

“Art. 31 bis. Durante el curso de una investigación y alos efectos de comprobar la comisión de algún delito pre-visto en esta ley o en el artículo 866 del Código Aduanero,de impedir su consumación, de lograr la individualizacióno detención de los autores, partícipes o encubridores, opara obtener y asegurar los medios de prueba necesarios,el juez por resolución fundada podrá disponer, si las fina-lidades de la investigación no pudieran ser logradas deotro modo, que agentes de las fuerzas de seguridad enactividad, actuando en forma encubierta:

a) Se introduzcan como integrantes de organizacionesdelictivas que tengan entre sus fines la comisión de losdelitos previstos en esta ley o en el artículo 866 del Códi-go Aduanero, y;

b) Participen en la realización de alguno de los hechosprevistos en esta ley o en el artículo 866 del Código Adua-nero.

La designación deberá consignar el nombre verdaderodel agente y la falsa identidad con la que actuará en elcaso, y será reservada fuera de las actuaciones y con ladebida seguridad.

La información que el agente encubierto vaya logran-do, será puesta de inmediato en conocimiento del juez.

La designación de un agente encubierto deberámantenerse en estricto secreto. Cuando fuere absolutamen-te imprescindible aportar como prueba la informaciónpersonal del agente encubierto, éste declarará como testigo,sin perjuicio de adoptarse, en su caso, las medidas previs-tas en el artículo 31 quinques.”

Previu ainda o art. 31 ter. que não é punível o agenteinfiltrado que, como conseqüência necessária do desen-volvimento da atuação encomendada, tenha sido compe-

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lido a incorrer em delito, desde que a conduta não impli-que em pôr em perigo a vida ou a integridade física deuma pessoa ou a imposição de grave sofrimento físico oumoral a terceiro. Sendo acusado em um processo, o agen-te infiltrado fará saber ao juiz de instrução, de maneiraconfidencial, sua condição, e este deverá encerrar o pro-cesso sem revelar a verdadeira identidade do imputado.

O art. 31 quáter estabelece que “ningún agente de lasfuerzas de seguridad podrá ser obligado a actuar comoagente encubierto. La negativa a hacerlo no será tenidacomo antecedente desfavorable para ningún efecto”.

Conforme o art. 31 quinques, estando com sua segu-rança ameaçada a pessoa que tenha atuado como agenteinfiltrado por haver sido descoberta sua verdadeira iden-tidade, terá direito a optar entre permanecer na ativa ouaposentar-se, seja qual for o tempo que tenha trabalhadono serviço público, com proventos iguais aos que corres-ponderiam a quem tenha dois graus acima na carreira.

De acordo com o art. 31 sextes, o funcionário ou em-pregado público que revele indevidamente a real identi-dade de um agente infiltrado, assim como a nova identi-dade ou o domicílio de uma testemunha protegida, seráreprimido com prisão de dois a seis anos, multa de 10.000a 100.000 pesos e inabilitação absoluta perpétua para afunção pública. Já o funcionário ou empregado públicoque, por imprudência, negligência ou inobservância dosdeveres de seu cargo, permitir ou der ocasião a que outroconheça estas informações, será sancionado com prisãode um a quatro anos, multa de 1.000 a 30.000 pesos e ina-bilitação especial de três a dez anos para o cargo.

A Lei no 25.241/00 foi elaborada especificamente parao combate a fatos delitivos relacionados com o terroris-mo. Para os efeitos desta lei, são considerados atos deterrorismo as ações delitivas cometidas por integrantes deassociações ilícitas ou organizações constituídas com ofim de causar alarme ou temor, e que se realizem empre-gando substâncias explosivas, inflamáveis, armas ou quais-quer elementos de elevado poder ofensivo, colocando emperigo a vida ou a integridade de um número indeterminadode pessoas (art. 1o).

O art. 2o deste diploma legal prevê a possibilidade deredução excepcional da pena, aplicando-se a da tentativaou limitando-a à metade, ao imputado que, antes de dita-da a sentença definitiva, colabore eficazmente com a in-vestigação. Para obter o benefício, deverá ser fornecidainformação essencial para evitar a consumação ou conti-nuação do delito ou a perpetração de outro, ou que ajudea esclarecer o fato objeto da investigação ou outrosconexos, ou que forneça dados de manifesta utilidade para

comprovar a participação de outras pessoas no delito,desde que o delito em que esteja envolvido o beneficiárioseja mais leve que aquele a respeito do qual forneça suacolaboração (art. 2o).

No mesmo sentido, o art. 3o prevê a aplicação do míni-mo legal de pena quando a informação fornecida permitacomprovar a existência de associação ilícita, desbaratarsuas atividades ou comprovar a intervenção de algum deseus membros no fato delitivo, determinando assim osubmetimento a processo de quem não tenha sido imputa-do até então.

O art. 6o prevê pena de prisão de um a três anos paraqualquer das pessoas que, valendo-se das possibilidadesabertas por esta lei, formulem afirmações falsas ou pro-porcionem dados inexatos sobre terceiros.

O art. 7o trata da proteção ao imputado que tenha opta-do por colaborar, passando a correr riscos à sua integri-dade pessoal e à de sua família, mediante provisão de re-cursos indispensáveis para a mudança de suas atividadeslaborais e substituição de identidade.

INFORMALIZAÇÃO OU SIMPLIFICAÇÃODO PROCESSO PENAL

Em que pese a existência de modelos diferenciados, oselementos conceituais que configuram um tipo ideal deinformalização da justiça nos Estados contemporâneos sãoos seguintes: uma estrutura menos burocrática e relativa-mente mais próxima do meio social em que atua; apostana capacidade dos disputantes promover sua própria de-fesa, com uma diminuição da ênfase no uso de profissio-nais e da linguagem legal formal; preferência por normassubstantivas e procedimentais mais flexíveis, particularis-tas, ad hoc; mediação e conciliação entre as partes maisdo que adjudicação de culpa; participação de não juristascomo mediadores; preocupação com uma grande varie-dade de assuntos e evidências, rompendo com a máximade que “o que não está no processo não está no mundo”;facilitação do acesso aos serviços judiciais para pessoascom recursos limitados para assegurar auxílio legal pro-fissional; um ambiente mais humano e cuidadoso, com umajustiça resolutiva rápida, e ênfase em uma maior imparcia-lidade, durabilidade e mútua concordância no resultado;geração de um senso de comunidade e estabelecimentode um controle local através da resolução judicial de con-flitos; maior relevância em sanções não coercitivas paraobter acatamento (Azevedo, 2000a:108).

No Brasil, a incorporação dessas inovações no sistemajudicial teve impulso a partir do final dos anos 80, em

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especial após a promulgação da Constituição de 1988. Umasérie de novos mecanismos para a solução de litígios foiprevista, com vistas à agilização dos trâmites processuais,entre os quais têm um significado relevante os JuizadosEspeciais Cíveis e Criminais, voltados para as chamadaspequenas causas e para os delitos de menor potencialofensivo, regulamentados pela Lei Federal no 9.099, desetembro de 1995.

A implantação dos Juizados Especiais Criminais – JECintegra uma lógica de informalização, entendida não comoa renúncia do Estado ao controle de condutas e ao alarga-mento das margens de tolerância, mas como a procura dealternativas de controle mais eficazes e menos onerosas(Dias e Andrade, 1992:403). Para os Juizados EspeciaisCriminais vão confluir determinados tipos de delitos (compena máxima em abstrato até um ano), e de acusados (nãoreincidentes). Com a sua implantação, esperava-se que asantigas varas criminais pudessem atuar com maior priori-dade sobre os chamados crimes de maior potencial ofen-sivo (Azevedo, 2000a; 2000b; 2001; 2002).

De acordo com o que estabeleceu o legislador no art. 62da Lei no 9.099/95, o processo perante os Juizados Espe-ciais Criminais deve ser orientado pelos critérios daoralidade, informalidade, economia processual e celeridade,objetivando, sempre que possível, a reparação dos danossofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa deliberdade. Dispensando a realização do inquérito policial,a Lei no 9.099/95 determina que a autoridade policial, aotomar conhecimento do fato delituoso, deve imediatamen-te lavrar um termo circunstanciado do ocorrido e encaminhá-lo ao Juizado, se possível com o autor do fato e a vítima,providenciando a requisição dos exames periciais necessá-rios para a comprovação da materialidade do fato (art. 69).Não sendo possível o comparecimento imediato de qual-quer dos envolvidos ao Juizado, a Secretaria do Juizadodeverá providenciar a intimação da vítima e do autor dofato, por correspondência com aviso de recebimento, paraque compareçam à audiência preliminar (art. 71).

Na audiência preliminar, presentes o representante doMinistério Público, o autor do fato e a vítima, acompanha-dos de advogado, o juiz esclarecerá sobre a possibilidadede composição dos danos, assim como sobre as conseqüên-cias da aceitação da proposta de aplicação imediata de penanão privativa de liberdade ao autor do fato (art. 72). Noscrimes de ação penal privada e de ação penal pública condi-cionada à representação, o acordo para composição dosdanos extingue a punibilidade. Não obtido o acordo, o juizdá imediatamente à vítima a oportunidade de exercer o direitode oferecer queixa-crime ou representação verbal (art. 75).

Havendo queixa-crime ou representação ou sendo ocrime de ação penal pública incondicionada, o MinistérioPúblico poderá propor ao autor do fato a transação penal,com a aplicação imediata de pena restritiva de direitos oumulta, a não ser no caso do acusado ser reincidente, ou nocaso de “não indicarem os antecedentes, a conduta sociale a personalidade do agente, bem como os motivos e ascircunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção damedida” (art. 76). Não aceita a proposta, o representantedo Ministério Público oferecerá ao juiz, de imediato, de-núncia oral, e o processo seguirá o rito sumaríssimo, pre-visto na Lei no 9.099/95.

Oferecida a denúncia, poderá ainda o representante doMinistério Público propor a suspensão do processo pordois a quatro anos, desde que o agora denunciado nãoesteja sendo processado ou não tenha sido condenado poroutro crime. A suspensão será revogada se, no curso doprazo, o denunciado for processado por outro crime oudescumprir qualquer outra condição imposta. Expirado oprazo sem revogação, o juiz declarará extinta a puni-bilidade. Caso não seja possível a suspensão do processo,o juiz deverá intimar as partes para a audiência de instru-ção e julgamento, que se inicia com a resposta oral dadefesa à acusação formulada na denúncia ou queixa-cri-me. Aceita a argumentação da defesa, o juiz não recebe adenúncia ou queixa e encerra o processo. Recebida a de-núncia ou queixa, são ouvidas a vítima e as testemunhasde acusação e de defesa, o acusado é interrogado e reali-zam-se os debates orais entre defesa e acusação. Em se-guida, o juiz profere a sentença final condenatória ouabsolutória.

Os recursos previstos pela Lei no 9.099/95 são a apela-ção (em caso de sentença condenatória ou absolutória ouda decisão de rejeição da denúncia ou queixa) e os em-bargos de declaração (em caso de obscuridade, contradi-ção, omissão ou dúvida na sentença), a serem encaminha-dos a uma Turma Recursal composta de três juízes emexercício no primeiro grau de jurisdição.

Na Argentina, a informalização ou simplificação dosprocedimentos penais foi adotada mediante a Lei no 24.825/99, que incorporou ao Título II do Livro III do CódigoProcesal Penal de la Nación o Capítulo IV, art. 431 bis,tratando do chamado juízo abreviado.

Tecnicamente, não se trata da criação de uma novainstância judicial, e sim de um procedimento abreviadode conclusão da causa, visando a aceleração do processopenal comum. Para Luis Niño (apud Alvero e Ranuschio,2001:1), “en lugar de abreviar la etapa del procedimientopreparatorio, clara supervivencia inquisitiva en cuerpos

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de leyes como el vigente en nuestra órbita federal,suprime el juicio, que es la etapa republicana porexcelencia”.

O fundamento da instauração do mecanismo proce-dimental do Juízo Abreviado é a impossibilidade dosistema judicial penal para dar conta da grande quantidadede casos em tramitação. Diante da impossibilidade dejulgar todos os delitos que chegam até o Judiciário, e dofato de que a solução prática era a prescrição, optou-sepor substituir o princípio da verdade real pelo da verdadeconsensuada, já que a aplicação de uma pena passa adepender de um acordo entre o acusado e o MinistérioFiscal.

Segundo o inciso 1o da referida Lei, se o MinistérioFiscal estimar suficiente a imposição de uma pena priva-tiva de liberdade inferior a seis anos ou uma pena não pri-vativa de liberdade, poderá solicitar, ao formular o reque-rimento para a elevação a juízo, que se proceda de acordocom o chamado Juízo Abreviado. Neste caso, deverá co-locar expressamente o pedido de pena acordado com oacusado.

O Juízo Abreviado não é aplicável para os delitos deação privada, mas somente para os casos de pena de re-clusão, inabilitação e multa ou penas conjuntas.

A Lei estabelece dois momentos nos quais se poderealizar o pedido de Juízo Abreviado: no momento deelevação a juízo, que implica uma negociação e um acor-do prévio entre o acusado e o representante do Ministé-rio Fiscal; ou no momento dos atos preliminares no Tri-bunal Oral, até o momento da fixação da data da audiênciade debate. Embora a Lei nada diga a respeito, no caso deque o acordo se efetue no Tribunal Oral quem irá reali-zar a negociação da pena será o Fiscal General, que équem irá atuar perante o Tribunal Oral (Alvero eRanuschio, 2001:2).

O inciso 2o da Lei estabelece que, para que a solicitaçãode Juízo Abreviado seja admissível, deverá estar acom-panhada da manifestação de conformidade do imputado,assistido por defensor, sobre a existência do fato e sobrea participação nele, descritas no requerimento de elevaçãoa juízo e da qualificação legal respectiva. A conformidadesobre a existência do fato e sua participação, conformeformulada pela acusação fiscal, e sobre a qualificação dodelito, não implica uma confissão. Se não se admite o JuízoAbreviado o procedimento seguirá conforme o pro-cedimento comum, e a conformidade não implicará umindício contrário ao imputado.

O inciso 3o da Lei estabelece que o Juiz de Instruçãoencaminhará a solicitação e a manifestação de conformi-

dade ao Tribunal de Juicio Oral. O pedido poderá ser ne-gado com base na necessidade de um melhor conhecimentodos fatos; na discrepância fundada com a qualificação le-gal; em que o pedido tenha sido feito extemporaneamente;em que a conformidade do imputado tenha sido condicio-nada ou afetada por algum vício de vontade ou não resul-te congruente com o conteúdo da prova produzida na ins-trução; ou em que sejam vários os imputados e não hajaconcordância de todos eles.

Conforme o inciso 4o se o Tribunal rechaça o acordode juízo abreviado, deve-se proceder segundo as regrasdo procedimento comum, remetendo-se a causa à instân-cia devida. Neste caso, a conformidade prestada pelo im-putado não será tomada como indício contra ele, nem opedido penal formulado vincula o representante do Mi-nistério Fiscal que atua no debate.

O inciso 5o dispõe que a sentença que homologa o acor-do de juízo abreviado deverá fundar-se nas provas rece-bidas durante a instrução, não podendo ser imposta umapena superior ou mais grave que a pedida pelo MinistérioFiscal. Os requisitos da sentença são idênticos, portanto,àqueles que seriam exigidos uma vez realizados os deba-tes. Não pode basear-se somente no acordo. Caso o Tri-bunal decida aplicar uma pena menor, a única exigência éque seja respeitado o mínimo apenamento legal estabele-cido no tipo penal respectivo.

Alvero e Ranuschio (2001:5) afirmam: “El problemase plantea si el Tribunal, de acuerdo al principio deculpabilidad y al momento de la graduación de la pena,decide que debería imponer una pena superior (esto noestá previsto como causa de rechazo del acuerdo como lohizo la Provincia del Chaco). Al imponerle el Fiscal alJuez la pena máxima aplicável, estaría ejerciendoatribuciones judiciales. Al selecionar la pena, imposibilitaal juez ejercer integramente su función jurisdiccional queentre otras cosas supone la facultad de graduar lassanciones que impone. En este caso, se comiezan aconfundir los roles de los órganos estatales que en el mundodel derecho moderno están muy bien delimitados ydemarcados”.

O inciso 6o estabelece que contra a sentença é admis-sível o recurso de cassação, podendo este ser interpostopelo Fiscal ou pelo querelante contra a sentença que apli-ca uma pena inferior à acordada ou absolve o imputado.O imputado não terá direito a recorrer do acordo por elefirmado, por ausência de interesse jurídico, salvo no casode invocação de alguma causa de nulidade.

Segundo o inciso 7o, a ação civil ex delito não será re-solvida pelo juízo abreviado, salvo se existir acordo entre

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as partes neste sentido. O querelante não tem direito a serescutado antes da decisão, tampouco se prevê a possibili-dade de audiência com a participação do imputado e doquerelante para a obtenção de um acordo. Não obstante,tem o querelante a possibilidade de recorrer da sentença,mediante recurso de cassação, na medida em que a sen-tença possa influir sobre o resultado de uma ação civilposterior.

Para seus críticos, o sistema de juízo abreviado éinconstitucional, uma vez que, sob a aparência de um sis-tema acusatório, tem-se na verdade uma fórmula com altoconteúdo inquisitivo, utilizando-se de uma verdadeiracoação sobre o acusado, a quem se coloca frente ao dile-ma de aceitar o trâmite acelerado ou confrontar-se com orisco de uma condenação maior, se optar pelo juízo co-mum. Para Schunemann (apud Alvero e Ranuschio, 2001:9) “no se garantiza el consenso, sino sólo un compromisoal cual la parte más débil debe adherirse, por necesidad,al punto de vista de la parte más fuerte, además en talescasos no es posible individualizar la pena”.

Além disso, o juízo abreviado reuniria a faculdadeacusatória e, em certa medida, a decisória sobre a exis-tência do fato punível e a decisória sobre o tipo e tama-nho da pena, faculdade que, quando o caso vai ao juízocomum, estariam repartidas entre o Ministério Fiscal e oJuiz.

GLOBALIZAÇÃO, PÓS-MODERNIDADE EPOLÍTICA CRIMINAL

O fenômeno da globalização trouxe para o âmbito docontrole penal uma série de transformações na forma deregulação legal erigida na modernidade. Diante da inse-gurança gerada pelo processo de globalização, nota-se umaumento na sua utilização, tanto simbólica quanto instru-mental. No entanto, como alertam Luiz Flávio Gomes eAlice Bianchini (2002:19), é preciso distinguir as tendên-cias político-criminais na era da globalização das trans-formações no âmbito da legislação penal.

Segundo estes autores, as principais tendências de po-lítica criminal no contexto contemporâneo seriam adescriminalização dos chamados crimes antiglobalização(descaminho, evasão de divisas, etc.); globalização dapolítica criminal, especialmente no que tange à criminali-dade transnacional; globalização da cooperação policiale judicial, mediante tratados ou acordos de cooperaçãobilaterais ou multilaterais; globalização da justiça crimi-nal, com a criação do Tribunal Penal Internacional peloTratado de Roma (Gomes; Bianchini, 2002:19-22).

Já no que diz respeito às transformações do direitopenal, a globalização traria as seguintes conseqüências: aglobalização dos crimes e dos criminosos, em razão dasfacilidades da globalização – livre circulação financeira,informatização – fazendo com que os crimes se globalizem(narcotráfico, tráfico de armas, de órgãos humanos,corrupção internacional); a globalização dos bensjurídicos, traduzindo a idéia da sociedade de risco, comoa ecologia, genética, segurança nas comunicações; aglobalização das vítimas, no sentido de que da vítimaindividual passou-se a ter a vítima coletiva, e, em algunscasos, a vítima planetária (como nos casos de delitosambientais, vírus na informática, etc.); a globalização daexplosão carcerária; a globalização da desformalização dajustiça penal, reduzindo garantias penais e processuais,para que o sistema seja mais eficiente; a hipertrofia doDireito Penal, pela inflação legislativa (Gomes; Bianchini,2002:22-26).

A “distorcionante” instrumentalização do direito penal(Gomes; Bianchini, 2002) está vinculada a vários fatores,podendo destacar-se, entre eles, as influências políticas eda mídia. Dadas as condições da realidade social, o Esta-do contemporâneo, que reduz a intervenção em matériasocial, endurece a legislação penal, transformando o di-reito penal de forma de intervenção subsidiária em prin-cipal forma de combate aos problemas sociais. Analisandoaspectos da política criminal nas sociedades pós-indus-triais, o criminólogo espanhol Jesus-María Silva Sanchezconstata a existência de uma tendência dominante na gran-de maioria dos países no sentido da introdução de novostipos penais, assim como um agravamento das penas paraos já existentes, fato que o leva a caracterizar o momentoatual como de expansão do direito penal (Silva Sánchez,2002:21).

Rejeitando uma explicação simplista para este fato,como a daqueles que afirmam que o mesmo se deve à per-versidade dos gestores do aparato estatal e dos legislado-res, na busca permanente de uma solução fácil e simbóli-ca aos problemas sociais mediante a legislação penal, SilvaSánchez reconhece que a questão é mais complexa, e, nalinha de David Garland (2001), procura relacionar o fe-nômeno com causas mais profundas e múltiplas, que têmsuas raízes no modelo social que vem se configurando nodecorrer das últimas décadas.

Por um lado, há que reconhecer a existência de umaverdadeira demanda social por mais proteção frente aoincremento da criminalidade, canalizada de modo mais oumenos irracional como demanda de punição. Para SilvaSánchez, “a profundidade e a extensão das bases sociais

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da atual tendência expansiva do direito penal não têm nadaa ver com as que na década de 70 – e posteriores – respal-davam o movimento, inicialmente norte-americano, de lawand order” (Silva Sánchez, 2002:224). Naquele momen-to, enquanto alguns setores apoiavam propostas de rea-ção legal, judicial e policial mais contundentes contra acriminalidade urbana violenta, outros – os excluídos, osintelectuais e os movimentos de direitos humanos – opu-nham-se a elas. A atual tendência expansiva, ao contrá-rio, mostra uma ampla unanimidade, um consenso quasegeral, sobre as virtudes do direito penal como instrumen-to de proteção dos cidadãos.

A partir desta matriz explicativa, é possível compreen-der a complexidade do processo de transformação do con-trole penal nas sociedades contemporâneas, em que con-vivem mudanças no sentido de um abrandamento dosmecanismos de controle, especialmente por mecanismosterapêuticos ou compensatórios, com a tendência a optarpela alternativa repressiva ou carcerária para a tutela deum número cada vez maior de interesses e para a soluçãode conflitos sociais.

O resultado de todo este conjunto de mudanças noâmbito do controle penal ainda não está de todo claro, e émuitas vezes paradoxal e ambíguo. De um lado, não sepode negar uma ampliação das possibilidades de controlepor parte do Estado. De outro, a complexidade do con-texto social em que operam os mecanismos de controle, eas dificuldades de gerenciamento do próprio aparato pu-nitivo, são de tal ordem que cada vez mais se torna fictí-cia a idéia de um monopólio dos meios de violência legí-tima por parte do mesmo, assim como se reforçam ascaracterísticas de seletividade do sistema e a impunidadepara a maioria dos delitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO: Professor e Pesquisador do Progra-ma de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS ([email protected]).

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DIREITOS CIVIS E DIREITOS HUMANOS: UMA TRADIÇÃO JUDICIÁRIA ...

E

DIREITOS CIVIS E DIREITOS HUMANOSuma tradição judiciária pré-republicana?

Resumo: O tema deste artigo está centrado na justiça criminal no Brasil, buscando demonstrar que as relaçõesentre modelos repressivos de controle social, formas inquisitoriais de produção da verdade jurídica e desi-gualdade jurídica formam um todo coerente em nossa justiça criminal, embora contrário à ordem republicanaexplícita do Estado brasileiro contemporâneo.Palavras-chave: sistema judicial criminal; Direitos Civis e Direitos Humanos.

Abstract: The theme of this article is criminal justice in Brazil. It attempts to demonstrate that the relationshipsbetween the repressive models of social control, inquisitional methods of arriving at judicial truth and judicialinequality all come together in the Brazilian criminal justice system. These features run contrary to the notionof the republican order espoused as the guiding principle for the contemporary Brazilian nation-state.Key words: criminal justice system; civil rights and human rights.

ROBERTO KANT DE LIMA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 49-59, 2004

ste artigo discute alguns aspectos do sistema dejustiça criminal no Brasil, relacionando-os comas estruturas jurídico-políticas de sistemas repu-

blicanos. Os dados analisados foram coletados em entre-vistas e debates realizados nos últimos cinco anos, a res-peito do tema, com operadores do sistema de justiça cri-minal, advogados e alunos de pós-graduação em direito eem segurança pública. São também analisados textos quese referem à questão da importância dos direitos civis paraa ordem republicana e para a garantia da igualdade jurídi-ca, em particular. É esta igualdade, aliás, que torna possí-vel a compreensão contemporânea dos direitos humanos,vistos como capazes de prover tratamento igual aos dife-rentes, universalizando a aplicação da lei às distintas iden-tidades que se especificam no espaço público. Como con-clusão, quer-se demonstrar que as relações entre modelosrepressivos de controle social, formas inquisitoriais deprodução da verdade jurídica e desigualdade jurídica for-mam um todo coerente em um sistema de justiça crimi-nal, embora, aparentemente, contrário às aspirações ex-plícitas da ordem republicana constituintes do Estadobrasileiro contemporâneo.

Desta forma, torna-se inicialmente relevante explicitaralguns argumentos clássicos sobre a questão da cidada-nia, para contrastá-los com as instituições judiciais e comas práticas judiciárias de nossa sociedade. Com este pro-pósito, tomaremos como exemplo um autor consagrado(Bourdieu, 1974). Segundo Marshall, assim se estabele-cem as relações entre a cidadania e os direitos civis: “(...)pretendo dividir o conceito de cidadania em três partes.(...) Chamarei estas três partes, ou elementos, de civil,política e social. O elemento civil é composto dos direi-tos necessários à liberdade individual – liberdade de ir evir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito àpropriedade e de concluir contratos válidos e o direito àjustiça. Este último difere dos outros porque é o direitode defender e afirmar todos os direitos em termos de igual-dade com os outros e pelo devido encaminhamento pro-cessual.1 Isto nos mostra que as instituições mais intima-mente associadas com os direitos civis são os tribunaisde justiça. Por elemento político se deve entender o direi-to de participar no exercício do poder político, como ummembro de um organismo investido da autoridade políti-ca ou como um eleitor dos membros de tal organismo. As

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instituições correspondentes são o parlamento e conselhosdo Governo local. O elemento social se refere a tudo quevai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômicoe segurança ao direito de participar, por completo, na he-rança social e levar a vida de um ser civilizado de acordocom os padrões que prevalecem na sociedade. As insti-tuições mais intimamente ligadas com ele são o sistemaeducacional e os serviços sociais” (Marshall, 1967:63-64,grifos meus).

Por outro lado, ainda segundo esta concepção clássi-ca, o conceito e o exercício da cidadania estão vinculadosao âmbito do estado nacional e à proteção dos direitosindividuais: “(a evolução da cidadania) envolveu um pro-cesso duplo, de fusão e separação. A fusão foi geográficae a separação, funcional. O primeiro passo importante datado século XII quando a justiça real foi estabelecida comforça efetiva para definir e defender os direitos civis doindivíduo – tais como o eram então – com base não emcostumes locais, mas no direito consuetudinário do país.Como instituições, os tribunais eram nacionais, mas es-pecializados” (Marshall, 1967:64-65).

Então, afigura-se claramente a idéia de que esse tipode direito e os tribunais são instituídos para a proteçãodos indivíduos – antes súditos, depois cidadãos daRepública. Há diferenças, entretanto, do ponto de vistados fundamentos da desigualdade nos dois contextos. Pois,para Marshall, se no Antigo Regime a desigualdade estáfundamentada moral e juridicamente no status, afirmando-se jurídica e politicamente o modelo da pirâmide de quefalaremos mais tarde, a sociedade republicana, em que segarantiu a igualdade jurídica aos cidadãos, vai justificar adesigualdade pelas diferenças de performance entre oscidadãos no mercado. Assim, é a igualdade jurídica dianteda lei e dos tribunais, que vai fornecer a justificativa moralda desigualdade econômica, política e social na sociedadecujo modelo jurídico-político pode ser representado porum paralelepípedo: a idéia de igualdade diante da lei edos tribunais permite a desigualdade de classes nas esferaseconômica, política e social, inerente ao mercado.

“Não obstante, a verdade é que a cidadania, mesmo emsuas formas iniciais, constituiu um princípio de igualda-de, e que, durante aquele período, era uma instituição emdesenvolvimento. Começando do ponto no qual todos oshomens eram livres, em teoria, capazes de gozar de direi-tos, a cidadania se desenvolveu pelo enriquecimento doconjunto de direitos de que eram capazes de gozar. Masesses direitos não estavam em conflito com as desigual-dades da sociedade capitalista; eram, ao contrário, neces-

sários para a manutenção daquela determinada forma dedesigualdade. A explicação reside no fato de que a cida-dania, nesta fase, se compunha de direitos civis. E os di-reitos civis eram indispensáveis a uma economia de mer-cado competitivo. Davam a cada homem, como parte deseu status individual, o poder de participar, como umaunidade independente, na concorrência econômica, e tor-naram possível negar-lhes a proteção social com base nasuposição de que o homem estava capacitado a protegera si mesmo” (Marshall, 1967:79; grifo meu).

Ainda segundo este autor, o esquema jurídico-políticoque fazia parte do ideário republicano não permitia inter-ferência no estabelecimento das condições de participa-ção no mercado, à exceção de uma: aquela que garantia odireito dos cidadãos adultos à educação fundamental, exa-tamente para que pudessem estar qualificados minimamen-te para exercitar suas opções no mercado (Marshall,1967:73-74).

Entretanto, esse movimento geral, já definido por Mainecomo um movimento do status para o contrato, requerqualificação: “Mas o elemento contratual no feudalismocoexistiu com um sistema de classes baseado em status, eà medida que o contrato se transformava em costume,contribuiu para perpetuar o status de classe. O costumereteve a forma de empreendimentos mútuos, mas não arealidade de um acordo livre. O contrato moderno nãonasceu do contrato feudal; assinala um novo desenvolvi-mento a cujo progresso o feudalismo foi um obstáculo queteve que ser afastado. Pois o contrato moderno é essen-cialmente um acordo entre homens que são livres e iguaisem status, embora não necessariamente em poder. O statusnão foi eliminado do sistema social. O status diferencial,associado com classe, função e família, foi substituído peloúnico status uniforme de cidadania, que ofereceu o fun-damento da igualdade sobre a qual a estrutura da desigual-dade foi edificada.” (Marshall, 1967:79-80, grifos meus).

Ora, no Brasil, a literatura jurídica é praticamente omis-sa quanto à questão da cidadania, a não ser quando a vin-cula a temas formais como, por exemplo, “liberdades pú-blicas”, ou a proclama ungida por álibis2 versados emsimbologia de expressão retórica, desprovida de eficáciareal para os menos favorecidos socialmente (Neves, 1994).O tratamento concedido à cidadania muitas vezes é tãoamplo que não se consegue identificar a plena jurisdiçãodos direitos protetivos que a integram. Outras vezes, é li-mitada a princípios dogmático-formais, tão abstratos quemais justificam sua aparência simbólica do que sua vigên-cia, o que reforça aspectos meramente retóricos em que

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fica escondida. Muito comumente ela é entendida apenascomo a titularidade de direitos políticos, ou seja, como odireito de votar e de ser votado, com plena exclusão deoutros direitos a ela agregados nos Estados democráticosda atualidade.

Tal situação incentiva a disposição generalizada de queno Brasil do século XXI ainda é fundamental lutar paraque se obtenha a plena cidadania, a começar pelo princí-pio que no século XVIII fundamentou o direito civil: aigualdade de todos perante a lei e, principalmente, peran-te os tribunais (Marshall, 1967; Carvalho, 2001). É a de-sigualdade um princípio organizador oriundo da socieda-de tradicional brasileira, dos tempos coloniais que,entranhada no tecido social, contamina as relações nasinstituições sociais, sendo o sistema judicial criminal ape-nas uma das suas dimensões institucionais, ora destaca-das aqui.

Os ideais de qualquer princípio de igualdade social-mente justa ficam assim debilitados na cultura jurídicainternalizada e expressa na prática de profissionais dodireito. A situação paradoxal de vivermos em uma socie-dade onde o mercado produz constantes desigualdadeseconômicas, que são ameaçadoras do princípio basilar daigualdade de todos perante a lei, não lhes causa inquieta-ções, porque tal situação é percebida como “natural”,motivo pelo qual absorvem esse paradoxo, como se vê noprocesso penal, onde privilégios estão a desigualar o tra-tamento concedido a autores e co-autores dos mesmosdelitos tipificados no Código Penal.

Conseqüentemente, na ausência de demarcaçãodefinida e estruturada em torno de eixos explícitos delegitimação da desigualdade, cabe a todos – mas,principalmente, às instituições encarregadas de adminis-trar conflitos no espaço público – em cada caso, aplicarparticularizadamente as regras disponíveis – sempregerais, nunca locais – de acordo com o status de cadaum, sob pena de se estar cometendo injustiça irreparávelao não se adequar à desigualdade social imposta eimplicitamente reconhecida. Desigualdade esta incon-cebível juridicamente em qualquer República consti-tucional, mas cuja existência, nesse contexto de ambigüi-dade em que nossa sociedade se move, goza de confortávelinvisibilidade. Eis porque a legislação processual penaladmite tratamento diferenciado a pessoas que sãoacusadas de cometer infrações, não em função dasinfrações, mas em função da “qualidade” dessas pessoas,consagrando, inclusive, o acesso à instrução superiorcompleta como um desses elementos de distinção.3

Por outro lado, a presença de métodos oficialmentesigilosos de produção da verdade – como no caso do in-quérito policial –, próprios de sociedades de desiguais,que querem circunscrever os efeitos da explicitação dosconflitos aos limites de uma estrutura que se representacomo fixa e imutável, confirmam a naturalização da desi-gualdade própria de nossa consciência cultural: as pes-soas são consideradas naturalmente desiguais (Mendes deAlmeida Jr., 1920:v.1:250-251). A função compensatóriado Estado, portanto, é vista como uma literal compensa-ção da desigualdade na administração dos conflitos empúblico e não uma promoção da igualdade para que aspartes administrem seus conflitos em público.

A harmônica conciliação de princípios tão paradoxaisnão é de fazer estranheza ao sistema, baseado na dogmáticajurídica e na hierarquia das normas, que propõe resolvero problema validando automaticamente aquelas situadasnos níveis mais altos da hierarquia. Assim, no topo da hie-rarquia de normas estão os princípios constitucionais.Estes, aparentemente, são assemelhados àqueles do dueprocess of law dos EUA: asseguram a presunção da ino-cência, o direito à defesa – chamado, no direito brasilei-ro, de princípio do contraditório – conferindo, entretanto,um outro direito, denominado de ampla defesa, pelo qualos acusados podem e devem usar todos os recursos possí-veis em sua defesa. Ora, este sistema traz em si algumascontradições. A primeira é que não é um due process oflaw – expressão equivocadamente traduzida em portuguêsde forma demasiado livre como “devido processo legal”– pois esta instituição jurídico-política dos EUA é umaopção do acusado, a quem é devido – due – pelo Estadoum determinado procedimento judicial, em condições es-tipuladas pelas quinta e sexta emendas constitucionais.Estas incluem, entre outros, o direito a um speedy trial –um julgamento rápido, o que não existe em nosso sistemade processo e de julgamentos obrigatórios e de tempo-ralidade própria. Outra característica é que, não havendono processo nem exclusionary rules (regras de exclusãodas evidências levadas a juízo), nem hierarquia de pro-vas, que separem os fatos provados daqueles que não oforam, dentro de um processo probatório – evidence, fact,proof – tudo, literalmente, pode ser alegado em defesa,ou em acusação, o que produz uma parafernália de merosindícios – que, estranhamente, incluem também laudos pe-riciais, como os de exames de corpo de delito, por exem-plo – tanto mais ampla quanto mais abundantes forem osrecursos do acusado e dos acusadores. Finalmente, ao as-segurar, constitucionalmente, o direito do acusado não se

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auto-incriminar (direito ao silêncio), no Brasil não secriminaliza, como no direito anglo-americano, a mentiradita pelo réu em sua defesa, o que implica não haver apossibilidade de condenação por perjury, mas somente porfalsidade de declaração por testemunha.

Abaixo da Constituição, tem-se o Código de ProcessoPenal, que regula três formas de produção da verdade: apolicial, a judicial e a do Tribunal do Júri. Tais formasencontram-se hierarquizadas no Código da seguinte ma-neira:

- o inquérito policial, onde o procedimento da políciajudiciária é, oficialmente, “administrativo”, não judiciale, por isso, inquisitorial, não se regendo pelo princípio docontraditório;

- o processo judicial, aplicado à maioria dos crimes eque se inicia, obrigatoriamente, quando há indícios sufi-cientes de que um delito grave foi cometido e que suaautoria é presumida, com a denúncia feita pela promoto-ria dando oportunidade à defesa, pois se regula pelo prin-cípio do contraditório, até a sentença do juiz, que expri-me seu convencimento justificado pelo exame do conteúdodos autos;

- o julgamento pelo Tribunal do Júri, processo que seaplica apenas aos crimes intencionais contra a vida hu-mana e se inicia por uma sentença judicial proferida porum juiz (pronúncia), após a realização da produção deinformações, indícios e provas, durante o inquérito poli-cial e a instrução judicial, comum a todos os processosjudiciais criminais. Neste caso, após interrogar novamen-te o réu, o juiz relata aos jurados, oralmente, os procedi-mentos anteriores, podendo defesa e acusação apresentartestemunhas para serem ouvidas. Este processo é tambémregido pelo contraditório e pela ampla defesa, em proces-so que exige a presença do réu, inclui um prolongado de-bate oral e que termina pelo veredicto dos jurados.

A exposição de motivos que introduz o texto do Códi-go de Processo Penal explicita ser objetivo do processojudicial criminal a descoberta da “verdade real”, ou ma-terial, por oposição à “verdade formal” do processo civil,ou seja, o que é levado ao juiz por iniciativa das partes.Por isso, os juízes podem e devem tomar a iniciativa detrazer aos autos tudo o que pensarem interessar ao pro-cesso, ex-officio, para formar o seu “livre convencimen-to” examinando a “prova dos autos”. Assim, todos os ele-mentos que se encontram registrados, por escrito, nosvolumes que formam os processos judiciais, incluindo osinquéritos policiais, podem ganhar o mesmo “estatuto deverdade” para a sentença final, e o juiz pode, inclusive,

discordar de fatos considerados incontroversos pela acu-sação e pela defesa:

“O princípio da verdade real, que foi o mito de um pro-cesso penal voltado para a liberdade absoluta do juiz epara a utilização de poderes ilimitados na busca da prova,significa hoje simplesmente a tendência a uma certezapróxima da verdade judicial: uma verdade subtraída àexclusiva influência das partes pelos poderes instrutóriosdo juiz e uma verdade ética, constitucional e processual-mente válida. Isso para os dois tipos de processo, penal enão-penal. E ainda, agora exclusivamente para o proces-so penal tradicional, uma verdade a ser pesquisada mes-mo quando os fatos forem incontroversos” (Grinover,1999:78-79, grifo meu).

Como se vê, a ênfase está depositada no interesse públi-co – aqui compreendido como aquele definido pelos fun-cionários do Estado – servindo o processo para incrementá-lo, acima dos interesses individuais, ou mesmo coletivos.

A esses procedimentos juntam-se outros, instituídospela Lei no 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cri-minais. Essa lei contempla os casos em que a pena ini-cialmente prevista é de no máximo um ano – agora, dedois anos – para contravenções ou crimes de pequeno po-tencial ofensivo. Em trabalho recente, divulgam-se dadosde pesquisa qualitativa onde observa-se elevado númerode renúncias, estimuladas pelos conciliadores, o que pa-rece confirmar a tradição da conciliação, que opera nosentido de abafar os conflitos, não de solucioná-los (Kantde Lima et al., 2001).

O INQUÉRITO POLICIAL

Na expressão exemplar de um delegado de polícia, oinquérito policial é “um procedimento do Estado contratudo e contra todos para apurar a verdade dos fatos”. As-sim, o inquérito policial é um procedimento no qual quemdetém a iniciativa é um Estado imaginário, todo podero-so, onipresente e onisciente, sempre em sua busca incan-sável da verdade, representado pela autoridade policial,que, embora sendo um funcionário do Executivo, tem umadelegação do Judiciário e a ele está subordinado quandoda realização de investigações.

O procedimento judiciário policial, portanto, pode serinquisitorial, conduzido em segredo, sem contraditório,porque ainda não há acusação formal. Entretanto, emboraneste nível não seja legalmente permitida a negociaçãoda culpa, ou da verdade, é lógico que a polícia barganha,negocia, oficiosa e/ou à margem da lei, em troca de al-

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gum tipo de vantagem, tanto o que investiga como aquiloque os escrivães policiais registram nos “autos” do inqué-rito policial, conforme bem expressa a categoria específi-ca “armação do processo”, vigente no cotidiano da esferapolicial (Kant de Lima, 1989; 1995).

Apesar de consideradas como “desvios de conduta”,atribuídos a funcionários inescrupulosos, as “armações doprocesso” estão institucionalizadas nas práticas policiais.Em pesquisa de campo realizada, identificaram-se certasrecorrências que apontam para a consistência de tais pro-cedimentos como modalidade de produção de verdade deeficácia comprovada. Igualmente, a regulação da torturade acordo com a gravidade da denúncia ou queixa e con-forme a posição social dos envolvidos; a permissão daparticipação dos advogados nos inquéritos, também deacordo com as diferentes posições que estes especialistasocupam nos quadros profissionais; o registro – ou não –das ocorrências levadas ao conhecimento da polícia; aqualificação e tipificação – ou não – das infrações e cri-mes registrados e a abertura de investigações prelimina-res, que levam, ou não, à abertura do inquérito policial,são algumas das práticas recorrentes no subsistema poli-cial. Todas, caracterizam práticas policiais movidas porinteresses particularistas e, sem dúvida, estão institucio-nalizadas. Confirmando a tradição inquisitorial que o de-fine juridicamente, o inquérito policial tramita em um car-tório policial, alocado às delegacias de polícia civil, oujudiciária, onde os depoimentos e confissões são regis-trados por escrito nos autos do inquérito, ficando, poste-riormente, entranhados nos autos do processo judicial, poisnão há interrupção da numeração seqüencial de suas pá-ginas. Portanto, essas declarações podem servir para o“livre convencimento” do juiz (Kant de Lima, 1989; 1995).

Depois de registradas tais práticas no trabalho de cam-po, pesquisas históricas complementares mostraram queos procedimentos observados eram muito semelhantes aosda “inquirição-devassa” do direito português ou da“inquisitio” do direito canônico: procedimentos sigilosos,que preliminarmente investigam, sem acusar, visando ob-ter informações sobre perturbações da ordem denuncia-das pública ou anonimamente. No procedimento inqui-sitorial, se o crime é leve e o acusado confessa, é apenasrepreendido; se o acusado não confessa, ou se o crime égrave, o acusado é “indiciado” e o processo é encaminha-do à justiça criminal.

A tradição jurídica brasileira justificava esses proce-dimentos como próprios de sociedades onde a desigual-dade substantiva entre as partes era explícita, pois não era

desejável manchar a reputação de homens de honra quepodiam ser injustamente acusados, nem se desejava ex-por os despossuídos à ira de poderosos acusadores. OEstado, então, compensava essa desigualdade, assumin-do a iniciativa da descoberta da verdade e avaliando aoportunidade de tornar a denúncia pública (Mendes deAlmeida Jr., 1920) . Aqui, é evidente a produção de umethos de suspeição sistemática motivado pelo desejo deevitar ou abafar a explicitação de conflitos, ou de puniraqueles que neles se envolvem, prejudicando a harmoniade uma sociedade de desiguais complementares, onde cadaum tem o seu lugar.

Para mais uma vez demonstrar a força desta tradiçãoinquisitorial, note-se que ela permanece vigente juridica-mente, mesmo depois da Constituição de 1988, que esti-pulou que todos os processos administrativos ou judiciaisdeveriam incorporar o princípio do contraditório e daampla defesa (art. 5, LV). No caso do inquérito policial,que permanecia inquisitorial por ser um mero processoadministrativo, reafirmou-se seu caráter inquisitorial, en-fatizando-se seu caráter de procedimento, e não de pro-cesso propriamente dito (Silva Jardim, 2001:27;41-47).Com esta argumentação jurídica, é possível mantê-loinquisitorial, em um sistema constitucional acusatorial.

O PROCESSO JUDICIAL

Já vimos que o processo judicial se inicia pela denún-cia do promotor – uma acusação pública que gera defesa– seguindo-se o interrogatório do juiz singular ao acusa-do, agora “réu”. Neste interrogatório, em geral na primei-ra vez em que tanto o juiz quanto o promotor – e, muitasvezes, o defensor público – irão se comunicar com o réuem pessoa, defesa e acusação não participam, ou partici-pam apenas como assistentes. Trata-se de procedimentooficialmente denominado de inquisitorial, que se auto-jus-tifica como sendo em defesa do réu, cuja confissão ate-nua sua pena e no qual, por isso, o juiz deve advertir pre-liminarmente o acusado de que “seu silêncio poderáresultar em prejuízo de sua própria defesa”, teoria e práti-ca que parecem colocar-se, como já se disse, em contra-dição com a presunção da inocência decorrente do silên-cio do réu e do direito de não se incriminar.

Em compensação, se o silêncio pode vir em prejuízoda própria defesa – como diz o ditado, “quem cala, con-sente” – o réu pode mentir livremente, pois apenas as pes-soas sinceramente arrependidas confessam a verdade. Ocrime de “falso testemunho”, diferentemente do crime de

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perjury, só pode ser alegado contra as testemunhas. Se-guindo ainda a tradição inquisitorial, a confissão do réu éconsiderada atenuante da pena, pois revela arrependimento– afinal, já é uma penitência – e desejo de reintegrar-seaos valores que sua ação transgrediu.

A seguir, “reperguntam-se” todas as testemunhas quejá depuseram na polícia, com a assistência oficial e legalda defesa e da acusação. A assistência advocatícia, obvia-mente, varia de acordo com as posses do acusado e refleteno comparecimento qualificado – ou na ausência dele –das testemunhas do processo. Por várias circunstânciasobstaculizantes ao comparecimento de testemunhas(mudanças de residência e/ou de status social e civil,dificuldade de locomoção, doenças, mortes, etc.), os réusmais pobres nem sempre conseguem trazer suas testemu-nhas ao tribunal. Em geral, são as pessoas de melhorcondição econômica ou, pelo menos, os réus que não estãopresos, que conseguem trazer suas testemunhas, assimcomo outras novas, para depor. Esta, entre outras circuns-tâncias, reafirma a presença da desigualdade social noprocesso judicial penal, também presente nas práticasprocessuais estrangeiras.

Durante o processo judicial, o réu pode permanecerpreso ou em liberdade. Nos EUA, a fiança é a forma desoltar os réus e, como lá a cultura judicial é igualitária,tem sido objeto de crítica, identificando-se nela forte dis-criminação econômica, pois os mais pobres, permanecendopresos, têm sua defesa prejudicada, não só em função deseu pior estado psicológico, como também por não poderproduzir provas em seu favor. Já no Brasil, se as fiançasnão são caras, essa desigualdade inscreve-se nos autos doinquérito policial – em que se registram as investigaçõescontra os mais pobres, feitas sem advogado ou contra osmais ricos, “armadas” com o consentimento da polícia(Kant de Lima, 1989; 1995).

Além disso, importantes dispositivos legais prescrevemtratamento jurídico desigual aos acusados, no Brasil. Entreeles, a já referida “prisão especial”, que assegura condiçõesprivilegiadas na prisão, concedidas a certas categorias depessoas – como, por exemplo, aquelas portadoras deinstrução superior –, que vão desde a permanência emseparado dos chamados “presos comuns”, em acomoda-ções especialmente destinadas a assegurar este privilégio,até a “prisão domiciliar”, cumprida na residência doacusado. Outro dispositivo é a “competência por prerroga-tiva de função”, válida, por exemplo, para autoridadesgovernamentais, que retira os acusados do âmbito dojulgamento preconizado para os cidadãos “comuns”, pelo

juiz singular ou pelo júri, enviando-os para julgamentopor órgãos judiciais colegiados de instâncias superiores,como os Tribunais de Justiça e os Tribunais Superioresde terceira instância, ou o Supremo Tribunal Federal.Favorecem ainda alguns acusados as chamadas imunidadesparlamentares, que impunham licenças especiais dosLegislativos para processar seus membros. Essas últimasprerrogativas e imunidades eram, até há pouco tempo,válidas em qualquer circunstância, mesmo no caso de teremos acusados cometido infrações comuns anteriores aomandato, sem relação alguma com suas atividadesprofissionais, como se a prerrogativa não fosse da função,mas da pessoa. Mesmo hoje, uma vez eleito, o políticotorna-se ungido por tais privilégios que o transformam emum “cidadão acima de qualquer suspeita”, imune aosefeitos do Código Penal, aplicado aos cidadãos comuns,e só pode ser processado com a licença de seus pares,diferentemente, por exemplo, dos EUA, onde o Presidenteda República Bill Clinton foi recentemente processado porum juiz comum.

Trata-se, assim, de um sistema judicial criminal que nãoé aplicado de forma igual a todos os cidadãos, mas queassegura privilégios, desigualdades consagradas na próprialegislação penal e, como vimos, presentes nas práticas quea atualizam, como se verifica em sociedades patrimoniaisestamentais (Weber, 1999:311-323; Faoro, 1958).

Finalmente, o juiz decide, de acordo com seu “livreconvencimento” e fundado no conteúdo dos autos, quetrazem entranhados os registros do inquérito policial con-tendo os depoimentos e confissões obtidos na polícia sema presença oficial da defesa. Os procedimentos privile-giam a escrita, a interpretação e a implicitude. É interes-sante notar que nesse contexto de formulação de “certe-zas jurídicas”, como aponta Malatesta (1911), tenta-seminimizar aquilo que poderia assegurar ao juiz e ao pú-blico o absoluto acerto de sua “sentença”: a confissão.4

Nos casos dos crimes intencionais contra a vida huma-na, no entanto, o juiz singular não dá a palavra final. Nes-tes casos, formula uma sentença que “pronuncia” ou“impronuncia” o réu. Quando a sentença pronuncia o acu-sado, seu nome é inscrito no “rol dos culpados”, registrodo qual só sairá se absolvido no processo. Inicia-se, en-tão, o julgamento pelo Tribunal do Júri.

O JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI

Embora a literatura jurídica brasileira usualmente re-gistre equivalências entre o procedimento judicial do Tri-

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bunal do Júri brasileiro e o da tradição anglo-americana,existem diferenças abissais entre ambos. Para começar, onosso julgamento por júri não é uma opção do acusado,como ocorre no trial by jury, aplicado apenas aos que sedeclaram não culpados. Além disso, aqui esse julgamentoé a culminância de vários procedimentos em que o acusa-do foi progressiva e sistematicamente indiciado na polí-cia e sucessivamente denunciado e indiciado no processojudicial, decidindo-se, finalmente, “pronunciá-lo” e ins-crever seu nome no “rol dos culpados”. A presunção ofi-ciosa, portanto, é de culpa, não de inocência, o oposto doque ocorre no trial by jury americano. Note-se, também,que nos EUA o due process of law é um procedimentoconstitucional universalmente disponível aos cidadãos, umdireito público subjetivo, para ser aplicado de acordo comleis locais, que devem ser igualmente aplicadas a todosos do lugar. O princípio da universalidade depende, por-tanto, da definição do universo e do espaço público, cole-tivo, sempre limitado, ao qual se aplica, em todos casos,o procedimento judicial que é devido pelo Estado. No casobrasileiro, o Tribunal do Júri não constitui um direito sub-jetivo, mas sim uma instituição judiciária obrigatória ape-nas para crimes intencionais contra a vida humana.

No trial by jury o juiz é o árbitro das regras de admis-são de provas ou evidências que se apresentam, todas,durante o julgamento. Há uma gradação para a transfor-mação das evidências – os dados trazidos pelas partes eadmitidos em juízo – em fatos – quando são consen-sualmente reconhecidos como tal pelas partes envolvidas– e, finalmente, em provas – quando reconhecidas pelojuiz e pelos jurados como tal. No Brasil, ao contrário, ojuiz, de um lado, é obrigado a procurar, por sua iniciati-va, a “verdade real”; e, de outro, encontra-se compelido,pelo princípio da “ampla defesa”, à aceitabilidade de to-dos os indícios trazidos pelas partes ao processo. O juizlê os autos e os relata para os jurados, cujo conhecimentosobre os fatos, portanto, é de segunda ou terceira mão.Também diferem os procedimentos na tomada de depoi-mentos de testemunhas perante o júri. Nos EUA são fei-tas questions durante a examination e cross-examinationdo acusado – que consentiu em depor – e das testemu-nhas, que não podem ser “interrogadas” – quer dizer, nãopodem ser perguntadas pelo que se supõe que elas sabem,ou deviam saber – nem podem ter suas respostas induzidas.No Brasil, ao contrário, há um interrogatório obrigatóriodo réu, baseado no que foi apurado durante o inquéritopolicial e a instrução judicial, e não há regras para a to-mada de depoimento de testemunhas.

Os árbitros – jurors – nos EUA são doze pessoas cui-dadosamente selecionadas de comum acordo entre defesae acusação, apenas para aquele julgamento, dentre listasamplas de todos os eleitores.

No Brasil, são sorteados de uma lista anual prepara-da de antemão pelo juiz, composta de pessoas de sua con-fiança ou a ele indicadas por pessoas ou instituições fi-dedignas, entre os quais se sorteiam vinte e um por mêse, destes, sete para cada julgamento. Defesa e acusaçãotêm direito, cada uma, a apenas três recusas. O julga-mento realiza-se em uma sala especialmente preparadapara acomodar uma platéia, diante da qual está o juiz,tendo suspenso na parede, geralmente atrás de si, um tra-dicional crucifixo católico, simbolizando a “humani-zação” da justiça, sacralizada na fé cristã católica, em-bora a Constituição brasileira proclame a liberdade decrença religiosa para todos os cidadãos e a religião ca-tólica tenha deixado de ser a religião oficial do Esta-do brasileiro em 1889. O promotor fica ao lado do juiz,de frente para a platéia, e um escrivão senta-se do outrolado do juiz. Em duas filas, junto a uma das paredes la-terais, estão sentados os jurados, vestidos com uma meiabeca, à moda dos serventuários da justiça. Na paredeoposta, de frente para os jurados, senta-se o advogado,acima do réu, ficando este acomodado, também diantedos jurados, no chamado “banco dos réus”. Não é raroque promotor e jurados ocupem o mesmo lado da sala, àdireita do juiz, como nas instalações do Primeiro Tribu-nal do Júri do Rio de Janeiro.

Embora possa apresentar variantes, dependendo dasorientações particulares de cada Presidente do Tribunaldo Júri e da época em que o prédio foi construído, estadisposição inquisitorial do espaço no Tribunal do Júricontrasta fortemente com disposição adversarial do trialby jury dos EUA, onde o acusado e sua defesa sentam-selado a lado à acusação, de frente para o juiz e de costaspara a platéia, tendo a um de seus lados os jurados, senta-dos na jury box. A igualdade simbólica entre as partes érepresentada no critério de ocupação do espaço, ficandoa promotoria como uma parte igual às outras, o que refor-ça a presunção ideológica de inocência, só passível dealteração por uma reasonable doubt (dúvida razoável),reconhecida pelos jurados.5

No Brasil, o julgamento inicia-se, após o sorteio e ocompromisso dos jurados, por novo interrogatório do acu-sado, feito pelo juiz. Após este procedimento novas teste-munhas podem ser ouvidas, o que raramente ocorre, a nãoser em julgamentos muito especiais.

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A parte mais importante do julgamento, portanto, é umdebate, em que acusação e defesa se defrontam, com direitoa duas horas cada uma, que podem ser prorrogadas pormais uma hora. Nesta disputatio escolástica, os advogadose os promotores defendem “teses” opostas, que não podemencontrar-se jamais, sob pena de declarar-se “inepta” adefesa. Quer dizer, mesmo quando acusação e defesaconcordam com a culpa ou com a inocência do acusado,têm que acusá-lo e defendê-lo em público, apresentandosuas teses em oposição “contraditória”. Como não há,também, consenso prévio sobre quais são os fatos, sobreo que foi e o que não foi devidamente provado –distintamente do que ocorre no trial by jury – a verdade,assim, não se apresenta como o resultado de um processode construção a partir de um consenso sobre os fatos, comono modelo adversarial, mas aparecerá como o resultadode um duelo, em que vencerá o mais forte, tal comoestabelecia a antiga tradição do sistema de “provas legais”,vigente no Ocidente até o Antigo Regime (Foucault, 1999).

Os advogados não costumam ater-se aos autos, e nãohá registros escritos de suas falas, diferentemente doprocedimento dos EUA, onde a fala é registrada. Destemodo, os advogados podem mentir, pois estão sustentandoa versão de um acusado que tem direito de continuar amentir em causa própria durante seu novo interrogatório.Assim, o conteúdo dos autos, resumido em relatório e lidopelo juiz, é, neste momento, manipulado livremente tantopela acusação quanto pela defesa, dando lugar a contro-vérsias ferozes sobre a existência, ou não, de provas, fatose indícios.

Sem que tenham sido esclarecidos oficialmente sobrequais os fatos efetivamente provados do processo, nemsobre suas implicações legais, como é obrigatório nosEUA, os jurados recolhem-se a uma sala secreta, na com-panhia do juiz, de um serventuário da justiça – que osacompanhou durante todo o tempo do julgamento para quenão se comunicassem entre si, nem com o público –, derepresentantes da defesa e da acusação – o que difere dareunião secreta para discussão do processo e negociaçãodo verdict dos doze jurados nos EUA, à qual ninguém podeassistir. No Brasil, os jurados são proibidos de discutirentre si e votam, secretamente, de acordo com sua cons-ciência, colocando cédulas marcadas com sim ou não emuma urna, em resposta a uma série de perguntas extrema-mente técnicas, que incluem o exame de agravantes e deatenuantes, formuladas pelo juiz, com a anuência da acu-sação e da defesa (a quesitação). Em suma, esse procedi-mento também difere em muito da alternativa guilty/not

guilty usada na arbitragem dos EUA, em que os juradosdiscutem entre si e votam abertamente pela decisão queexpressa o consenso – muitas vezes obrigatório –, o quecaracteriza um ritual de produção de verdade distinto dojúri brasileiro.

OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

Criados pela Lei no 9.099/95, os Juizados EspeciaisCriminais – Jecrim constituem-se uma instituição proces-sual ainda em implantação no Brasil. De certa forma, osJecrim vieram ocupar um lugar que pertencia, extra-ofi-cialmente, à polícia judiciária, que apurava e julgava otipo de crimes de menor potencial ofensivo – com penasde até dois anos – antes da nova lei.

Os Jecrim, embora não se definindo oficialmente comotal, pretendem introduzir uma espécie de civilização dalei penal, buscando, mediante a composição e a transaçãopenal, saídas alternativas para as penas de prisão. Entre-tanto, devido a vários fatores, não sendo de menor impor-tância aqueles ligados à tradição inquisitorial e de aplica-ção desigual do direito a segmentos distintos da populaçãodescritos acima, o tratamento desigual dado às partes emfunção de seu status social, a ausência de funcionários ede operadores especialmente sensíveis a uma atuação tãodíspar daquela encontrada no sistema de justiça criminaltradicional e uma forte ambigüidade com relação à apli-cação universal das garantias constitucionais, em especialno que se refere ao emprego da transação penal, estão seevidenciando como prováveis obstáculos à plena realiza-ção de seus objetivos explícitos, de desafogar os tribu-nais e de democratizar-lhes o acesso. Por outro lado, pes-quisa empírica conduzida nos Jecrim do Estado do Rio deJaneiro demonstrou alto grau de renúncias, acatadas comconciliações bem-sucedidas pelo sistema, mas nem sem-pre vistas como tal pelas partes envolvidas, em especialquando estas são mulheres agredidas por seus próximos,em sua maioria do sexo masculino. Aparentemente, a con-ciliação opera uma desjuridificação do conflito, que per-manece latente na estrutura de sociabilidade, vindo a semanifestar mais tarde, algumas vezes, com maior gravi-dade.6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos 20 anos, vários cientistas sociais, emespecial antropólogos, têm insistido na presença de prin-cípios paradoxais e de características ambíguas na socie-

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dade brasileira (DaMatta, 1979; Gomes; Barbosa;Drummond, 2000). Apregoa-se explicitamente a igualdadeentre todos os indivíduos que compõem a sociedade, deonde decorre que os naturais desentendimentos entre eles,provocados por seus eventuais interesses divergentes,deverão ser administrados mediante negociações entrepartes formalmente iguais, embora substantivamentedistintas. Quer dizer, negros, brancos e índios, mulheres,homens e homossexuais, pobres, remediados e ricos, etc.serão considerados formalmente iguais no que toca ànegociação de seus direitos e deveres em público. Esteprocesso de negociação permanente é considerado capazde emprestar à sociedade uma dinâmica democrática e umformato flexível, como em um paralelepípedo, em que osdiferentes estratos sociais se encontram em permanentemobilidade e cada indivíduo/elemento tem sua própriatrajetória, uma vez que a base e o topo dessa figura têm amesma superfície. Para que a ordem pública se mantenhaé necessário haver consenso sobre as regras que vão gerira administração desses conflitos, cuja legitimidade advémde sua explicitude e universalidade, referidas necessa-riamente a um determinado contexto, o que lhes emprestaunivocidade – significado único – e literalidade: isto é,em um determinado local, as regras de convivência empúblico são facilmente identificáveis e valem para todosda mesma maneira. A principal estratégia de controle so-cial é a prevenção dos conflitos pelo controle disciplinardos indivíduos, que devem ser capazes de internalizarvalores e regras apropriados à convivência social empúblico, embora com respeito a seus modos de vidaparticulares.

Esta visão republicana, democrática, igualitária e indi-vidualista da sociedade, entretanto, convive, na socieda-de brasileira, com uma outra, que permanece implícita –mas claramente detectável à observação – em que a so-ciedade, à maneira de uma pirâmide, é constituída de seg-mentos desiguais e complementares. Nesta última pers-pectiva, as diferenças que produzem inevitáveis conflitosde interesses são reduzidas à sua significação inicial, dadapor uma relação fixa com contextos mais amplos do todosocial. As diferenças não exprimem igualdade formal, masdesigualdade formal, própria da lógica da complementa-ridade, em que cada um tem o seu lugar previamente defi-nido na estrutura social. A estratégia de controle social naforma piramidal é repressiva, visando manter o statu quoante a qualquer preço, sob pena de desmoronar toda aestrutura social. Portanto, não se pretende que os compo-nentes da sociedade internalizem as regras, mas a hierar-

quia, pois sua aplicação não será nunca universal, mashierarquizada, o que explica porque as regras são aplica-das desigualmente aos membros da sociedade. O sistemafunciona com a aplicação particularizada de regras gerais,para isso sempre sujeitas, sucessivamente, à melhor e maiorautoridade interpretativa (Kant de Lima, 2000).

Diferentemente de uma sociedade aristocrática, entre-tanto, onde os eixos que organizam a desigualdade política,econômica, jurídica e social encontram-se claramentedemarcados, no Brasil, um Estado formalmente republicano,tais desigualdades não podem ser constitucionalmentemarcadas. Embora claramente presentes na estrutura domercado a que hoje todos estamos submetidos, não poderiame, sobretudo, não deveriam produzir desigualdade detratamento político-jurídico para os distintos segmentos dasociedade e para os indivíduos que os compõem, conformeprincípio vigente nos Estados democráticos de Direito.

Nesse contexto, é relevante explicitar como nossa cul-tura jurídica justifica a desigualdade jurídica existente nosistema de justiça criminal, exemplificada pelos institu-tos dos fóruns especiais e privilegiados, pelos diferentestipos de imunidade e pela prisão especial para várias ca-tegorias profissionais, inclusive para os detentores de ins-trução superior. Os operadores deste sistema, responsá-vel pela garantia da liberdade de ir e vir, direito civil básicodos cidadãos de uma República, utilizam argumentaçãodiametralmente oposta àquela presente nos textos que sereferem à constituição da cidadania e do Estado de Direi-to no mundo capitalista: diz-se que não pode haver igual-dade jurídica perante os tribunais porque existe, de fato,desigualdade econômica e social em nossa sociedade(Cogan, 1996). Assim, seria injusto tratar a todos os desi-guais, igualmente ou, como disse Ruy Barbosa, ícone darepública e “porta-voz” – no sentido que a esta categoriaempresta Bourdieu – do campo jurídico brasileiro, insis-tentemente citado pelos juristas: “A regra da igualdade nãoconsiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais,na medida em que se desigualam” (Barbosa, 1921). Emconseqüência, a semelhança remete à igualdade; e a espe-cificidade, não à universalidade de tratamento, mas à suaparticularidade: em suma, a diferença remete à desigual-dade. Ou, nas palavras do citado autor:

“À parte da natureza varia ao infinito. Não há, nouniverso, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas àsoutras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de umasó árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpade um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os arguei-ros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar

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ou estelar. Tudo assim, desde os astros, no céu, até aosaljôfares do rocio na relva dos prados.

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoardesigualmente aos desiguais, na medida em que sedesigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada àdesigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei daigualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho,ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a de-siguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e nãoigualdade real” (Barbosa, 1921, grifos meus).

A este quadro de desigualdade explícita associam-semecanismos institucionais de “pesquisa” da verdade noprocesso criminal declaradamente inquisitoriais, queconsistem em desconsiderar, em nome da ordem pública,todas as barreiras colocadas entre o público e o privadona sociedade contemporânea. Dá-se ao juiz a prerrogativado chamado “livre convencimento” pela qual ele pode,inclusive, discordar de fatos considerados incontroversospelas partes, para apropriar-se da “verdade real” (Grinover,1999).

Assim, não é sem razão que a cidadania, enquanto no-ção que garante a igualdade jurídica, política e social mí-nima vigente nas repúblicas contemporâneas, ainda encon-tra dificuldades quanto a sua realização no Brasil(Carvalho, 2001), em especial no que se refere a um deseus componentes originários, os direitos civis. E isto nãoé um fato irrelevante nesse contexto, pois os direitos ci-vis, segundo Carvalho (2001:9), “(...) São direitos cujagarantia se baseia na existência de uma justiça indepen-dente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles quegarantem as relações civilizadas entre as pessoas e a pró-pria existência da sociedade civil surgida com o desen-volvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liber-dade individual.”

Entretanto, a desigualdade de que falamos não está nalei e em práticas judiciais, sem que esteja estruturada nasociedade. Nosso Código de Processo Penal, nunca dis-cutido ampla e democraticamente pelos cidadãos que aele submetem sua liberdade, apenas expressa a culturapresente em nosso cotidiano, responsável pela banalizaçãodo que se convencionou chamar de práticas autoritárias –categoria apropriada para definir o abuso de poder emsociedades igualitárias – e que os antropólogos preferemdenominar de hierárquicas, justamente porque não se cons-tituem em abuso, mas em cumprimento de preceitos es-truturais de desigualdade (DaMatta, 1979).

Estas características emprestam ao espaço público – eà sua esfera pública, seu espaço normativo – no Brasil,

certas peculiaridades (Cardoso de Oliveira, 2002), perce-bidas pelos operadores do sistema de justiça e segurançapública como características de nossa sociedade, que im-põe a seu comportamento cotidiano a constante e inevitá-vel negociação da aplicação particularizada de regras naesfera pública. Assim, aqueles que estão explicitamenteinseridos como interlocutores no espaço público vêemcomo legítima a apropriação particularizada e individualdas regras. Disso resulta o desprestígio da obediência li-teral à lei e a impossibilidade de sua aplicação coletiva euniversal, igualmente a todos, como é usual na maioriadas Repúblicas democráticas instituídas no Ocidente. NoBrasil, a atualização de valores igualitários de modo co-letivo e universal chega a ser identificada como injustiça,pois sobrepõe um sistema explicitamente igualitário (emformato de paralelepípedo) a um sistema implicitamentehierárquico (de feição piramidal), de tal modo que a con-vivência de ambos requer práticas e valores desiguais. Acompensação do desequilíbrio decorrente das duas lógi-cas paradoxais é feita com o prestígio da autoridadeinterpretativa, sempre fluida e contextual, seja do síndi-co, seja do guarda de trânsito, do delegado, do promotor,do juiz, ou do governante: em suma, do inquisidor.

A conseqüência perversa desse sistema paradoxal é que,ao invés de enfatizar mecanismos de construção da ordem,enfatiza sistemas de manutenção da ordem, através deestratégias repressivas, em geral a cargo dos organismospoliciais e judiciais, vistas como necessárias à adminis-tração deste paradoxo. Desse modo, as estratégias comu-mente usadas para a manutenção da ordem, ora são mili-tares – fundadas nas técnicas de destruição do inimigo, aorigem mais evidente da explicitação do conflito, vistocomo perigosamente desagregador (Silva, 2003) – ora sãojurídicas, voltadas para a punição de infrações da ordem.Nenhuma delas, é claro, está adequada à construção e àmanutenção de uma ordem pública democrática, que deveser baseada na negociação pública e coletiva dos interes-ses divergentes de partes iguais.

Finalmente, nesse quadro, é possível compreender asagruras da internalização de uma idéia de Direitos Huma-nos e, mais ainda, de sua implementação como políticapública. Os direitos, em nossa tradição, são sempre parti-cularizados, e explica-se, assim, que cada categoria rei-vindique competitivamente os “seus” direitos humanos:das vítimas, dos policiais, dos agressores, etc., como se a“concessão” desses direitos a uns excluísse automatica-mente os outros de fruí-los, como tem sido constantemen-te explicitado por nossos interlocutores, no campo.

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NOTAS

1. Provavelmente, o tradutor se refere ao due process of law, o chama-do devido processo legal.

2. Maria Stella Amorim chamou-me a atenção para esse tipo de argu-mento que procura evadir ou desculpar o não cumprimento de direitoslegislados. Nesse mesmo sentido, doutrinas, leis, interpretações, pro-cedimentos incorporados à prática judiciária podem também consti-tuir álibis que circulam em sistemas judiciários e que têm função denão permitir a explicitação de propósitos geralmente consideradosnegativos.

3. Para compreender quão séria é esta questão da desigualdade jurí-dica, acaba-se de aprovar uma nova regulamentação da “prisão espe-cial”, denominação jurídica deste instituto. O Executivo, inicialmentemotivado a extingui-la para impedir a aplicação de privilégios a umjuiz que se encontrava respondendo a processo criminal, abandonousua intenção inicial e o assunto – que é claramente inconstitucional– foi apenas regulamentado pelo Congresso, que aprovou a Lei no

10.258, de 11/7/2001, em votação simbólica das lideranças, a qualincluiu uma nova categoria profissional – os militares em geral – noprivilégio!

4. No sistema inquisitorial sempre se desconfiava muito da confissão,pois ela era sempre vista como um meio de escapar de acusações maio-res, pois nesse sistema as acusações não eram conhecidas: então, pro-curava-se confessar infrações menores para escapar de acusações maissérias.

5. Garapon (1997) também chama a atenção para essas diferenças nadisposição espacial de tribunais dos Estados Unidos e da França.

6. Para uma discussão sobre os diferentes aspectos dos juizados espe-ciais criminais, ver Kant de Lima et al. (2003).

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ROBERTO KANT DE LIMA: Professor da UFF, Pesquisador de produtivida-de do CNPq e da Faperj, Presidente da Comissão de Direitos Humanos daAssociação Brasileira de Antropologia.

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A

ATRIBUTOS RACIAIS NOFUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE

JUSTIÇA CRIMINAL PAULISTA

Resumo: Este artigo avalia o papel de atributos raciais e de gênero no funcionamento do Sistema de JustiçaCriminal de São Paulo. Mediante análises longitudinais, ou seja, análises que observam a trajetória dos indi-víduos pelo interior do Sistema de Justiça Criminal (no caso, do inquérito policial até a execução da pena doscondenados pelo crime de roubo), pôde-se constatar o tratamento diferenciado a mulheres e homens, a negrose brancos.Palavras-chave: gênero; raça; discriminação; sistema de justiça criminal.

Abstract: This article assesses the influence of race and gender in the functioning of the São Paulo State cri-minal justice system. Through the use of longitudinal analysis, that is, analysis that tracks individuals as theymake their way through the criminal justice system (in this case, from indictment to the serving of the sentencefor robbery), one may observe the different treatments accorded to women and men, blacks and whites.Key words: gender; race; discrimination; criminal justice system.

RENATO SÉRGIO DE LIMA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 60-65, 2004

proposta deste artigo é explorar o funcionamen-to das instituições do Sistema de Justiça Crimi-nal (polícias Civil e Militar, Ministério Público,

Poder Judiciário e Sistema Carcerário) e suas interaçõesno processo de transformação democrática da sociedadebrasileira, à luz das estatísticas sobre raça e gênero. Há atentativa de se compreender a forma como as estatísticassobre justiça criminal e segurança pública (categorias eclassificações) são produzidas e incorporadas no funcio-namento do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro, emespecial o de São Paulo. A preocupação central é investi-gar como informações e estatísticas dessa área podem tra-duzir uma série de processos sociais e, por conseguinte,podem constituir importante ferramenta analítica para oscientistas sociais envolvidos com o tema, na medida emque, como destaca Hacking (1991), as estatísticas não sãodesprovidas de ideologia, e retroalimentam o funciona-mento e os interesses da burocracia de Estado – que, en-volvida na produção das estatísticas, é uma das mais anô-nimas estruturas de Estado, e também a que determina nãosomente regras administrativas, mas classificações e cri-térios de seleção de prioridades de governo. O problema,

portanto, seriam os parâmetros e os objetivos por detrásdas classificações que, no limite, traduziriam a gramáticae a linguagem do poder.

CLASSIFICAÇÕES RACIAIS

Depreende-se, portanto, que pensar nas classificaçõesde indivíduos envolvidos com fatos de natureza criminal,e que foram objeto de atenção das agências públicas quecompõem o Sistema de Justiça Criminal do país, implicapensar na possibilidade de existência de ideologias quemovem tal Sistema. Um dos casos mais paradigmáticos é,exatamente, o que envolve a questão racial, em que a ca-tegoria “cor da pele” é aquela utilizada pela Polícia Civil,porta de entrada oficial dos indivíduos no Sistema de Jus-tiça, para caracterizar os indivíduos vítimas ou autores decrimes. Inclusive, vale destacar que o critério de classifi-cação é o da atribuição da cor pelo escrivão de Polícia,funcionário responsável pelo registro da ocorrência poli-cial.1

No entanto, o recorte cor sugere que alguém só podeter cor e ser classificado por ela se existir uma ideologia

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na qual a cor das pessoas tem algum significado, ou seja,no interior de ideologias raciais. Da mesma forma, qual-quer análise sobre questões raciais no Brasil deve come-çar por notar que o racismo no Brasil é um tabu. Os brasi-leiros se imaginam numa democracia racial e a propagamcomo motivo de orgulho nacional. Entretanto, quando seanalisa a distribuição da população brasileira segundo oatributo cor, diferentes clivagens demonstram o quanto aimagem anti-racista não corresponde à realidade (Guima-rães, 1995). Os negros estão entre os indivíduos com pio-res indicadores de renda, emprego, escolarização, entreoutros e têm um tratamento penal mais severo para atosiguais aos cometidos por brancos.

Entre os argumentos utilizados para explicar tal fenô-meno, há um, incorporado ao Movimento Negro e politi-camente conveniente a ele,2 que merece destaque: numasociedade em que, historicamente, o comportamento da-queles que vivem na pobreza é criminalizado – e os ne-gros são, demograficamente, mais numerosos entre ospobres –, eles acabam por ser duplamente discriminados.Afinal, imagens sociais sobre crimes e criminosos asso-ciam atributos raciais e pobreza ao maior cometimento decrimes violentos, mesmo não existindo estudos que com-provem esta associação. Assim, os negros não são discri-minados apenas pela cor, mas também pela origem sociale, por conseguinte, a exclusão social é reforçada pelo pre-conceito e pela estigmatização. Nesse processo, sendo osnegros vistos como indivíduos “perturbadores da ordemsocial”, são eleitos alvos preferenciais das agências decontrole social.

Essa concepção do negro como indivíduo perigoso emerecedor da atenção policial não é recente e, muito pro-vavelmente, tem entre suas raízes explicativas, para alémda questão socioeconômica, a compreensão dos negroscomo inferiores biológica e culturalmente aos brancos.Essa tese foi mais forte no final do século XIX e iníciodo século XX. A afirmação de Oliveira Vianna, ao co-mentar as diferenças que localiza no interior da raça ne-gra, é categórica e resume bem tal concepção. Segundoele, “(...) os seus representantes [negros] não possuemtodos a mesma unidade morphologica, nem a mesmamentalidade; ao contrário, variam mais ou menos sensi-velmente num e noutro sentido, apresentando-se, às ve-zes, como nas duas raças inferiores, a negra e a verme-lha, typos de tão acertada diversidade somatica epsychologica, que dir-se-iam provindos de raças intei-ramente distinctas e inconfundiveis” (Oliveira Vianna,1920: 313, grifo meu).

Ainda segundo Oliveira Vianna, a inferioridade negraé justificada com um argumento que hoje é visto comocriminoso e que soa anacrônico e mesmo inaceitável. Parao autor, “não só a potencialidade eugenistica do HomoAfer é reduzida em si mesmo, como, posta em funcção decivilização organizada pelo homem da raça branca, aindamais reduzida se torna. O negro puro nunca poderá, comeffeito, assimilar completamente a cultura aryana, mes-mo os seus exemplares mais elevados: a sua capacidadede civilização, a sua civilizabilidade, não vae além daimitação, mais ou menos perfeita, dos habitos e costumesdo homem branco. Entre a mentalidade deste e a do ho-mem africano puro há uma differença de estructura, subs-tancial e irreductivel, que nenhuma pressão social ou cul-tural, por mais prolongada que seja, será capaz de vencere eliminar (...)” (Oliveira Vianna, 1920: 328).

Dessa forma, o perigo seria resultado de uma múltiplacombinação de fatores, onde “os typos ethnicos (...) nãoapresentam a mesma unidade de caracteres morphologicos,nem a mesma identidade de temperamento e mentalidade(...)” (Oliveira Vianna, 1920: 321). É possível pensar, atítulo de hipótese, que em um ambiente de então recenteabolição da escravidão, essa concepção implicaria a jus-tificativa moral para estruturar as agências de controle so-cial na defesa dos interesses até então constituídos e aprecaução contra eventuais ações “incivilizadas” das ra-ças “inferiores”.

Um exemplo da importância dessa discussão é a cria-ção da Guarda Nacional, no século XIX, que teve papelfundamental na incorporação patrimonialista na adminis-tração pública brasileira, em especial nas instituições deJustiça (Uricoechea, 1980:14-16). No funcionamento daGuarda Nacional, um corpo profissional ficava responsá-vel por policiar a capital e as principais cidades. Nas de-mais cidades e regiões do país, milícias voluntárias e man-tidas pelos donos da terra locais ficavam responsáveis porcontrolar a população. Tais milícias tinham poder de po-lícia, mas funcionavam segundo os interesses de seus pa-trocinadores. Nesse processo, uma brecha formal estavacriada, e a percepção da existência de critérios sobre queme onde seria objeto da Justiça Pública implicava o reco-nhecimento de indivíduos “superiores” ou “inferiores”.

O funcionamento da Justiça tinha sido pensado apenaspara parcela da população, e nem a incorporação de to-dos os habitantes num regime jurídico único e a retomadado poder exclusivo de polícia pelo Estado, frutos dos de-bates republicano e abolicionista, não conseguiram alte-rar o quadro de princípios que organizava o modelo buro-

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crático do Sistema de Justiça. Mesmo a criação dosJuizados Especiais Cíveis e Criminais, nos anos 90, po-deria, no limite, ser vista como um mecanismo de manu-tenção de dois tipos de justiça, dirigidos a dois tipos deindivíduos formalmente distintos.

Em reforço a esta tese, e saindo da esfera penal, o Có-digo Civil Brasileiro, vigente até 10 de janeiro de 2003,foi elaborado no final dos anos 10 do século XX, e embu-tia valores sobre formas de organização social. Questõessobre casamento, pátrio poder, contratos e outros assun-tos fundamentavam-se no pressuposto de que determina-dos segmentos da população deveriam ser “tutelados” sejapelo Estado seja pelo chefe de família, cujo símbolo é,exatamente, o homem maior e branco. Nessa chave, aimagem do Estado como “pai repressor” teria o suportena visão de como deveria ser a educação e a transmissãode valores da sociedade. Assim, mulheres, crianças e ado-lescentes, indivíduos com problemas físicos e/ou mentais,bem como toda sorte de indivíduos que poderiam mere-cer a atenção especial do Estado, seriam alvo das agên-cias de controle social. O funcionamento desigual do Sis-tema de Justiça tem na permanência do modelo burocráticodo início do século XX e na visão da necessidade da “tu-tela” componentes fundamentais para a sua explicação epara a reificação do exercício não equânime do poder.

Os esforços para a constituição de um Movimento Ne-gro politicamente capaz de interagir com a sociedade ede construir uma identidade negra não foram suficientespara transformar os fundamentos que dividiam brancos enão-brancos, homens e mulheres, em indivíduos portado-res de direitos de cidadania plena. Em outras palavras, osdados a seguir, sobre o tratamento mais severo dispensa-do pelo Sistema de Justiça Criminal aos negros indica-riam a soma de concepções racistas, aspectos socio-econômicos e demográficos e, ao mesmo tempo, depressupostos morais e técnico-processuais que não foramobjeto da transformação democrática desde os anos 80 doséculo passado.

Nesta direção, uma pesquisa que serviu de base para aredação de dissertação de mestrado, recentementepublicada, preocupou-se em analisar as vítimas e os autoresidentificados de crimes de homicídios cometidos na cidadede São Paulo, em 1995, segundo variáveis biográfico-sociais (Lima, 2002). Foram coletados dados sobre idade,sexo, escolaridade, naturalidade, profissão e, principal-mente, para os objetivos desse trabalho, “cor da pele” dasvítimas e dos autores identificados pela Polícia. Segundoa pesquisa, os dados sobre cor das vítimas e dos agressores

de homicídios de autoria conhecida revelaram, àquelaépoca, que os brancos, à primeira vista, estavam maisrepresentados entre as vítimas (61,2%) do que os negros(35,5%). Entretanto, segundo informações extraídas dosCensos Demográficos do IBGE3 (1980 e 1991), os negros,proporcionalmente à composição racial da populaçãopaulistana, estão mais representados entre as vítimas destetipo de homicídio. Segundo projeções do IBGE para 1980,72,1% da população residente do Município de São Pauloera composta por brancos, ao passo que os negros (pretose pardos) totalizavam 24,6%. Assim, pôde-se inferir, napesquisa, que os negros têm um potencial de vitimização44,3% superior à sua participação na composição racialda população paulistana. Entre os casos de homicídios deautoria desconhecida, observa-se que os brancos foramvítimas em 48,3% dos crimes e os negros em 41%.Seguindo o mesmo raciocínio adotado para os homicídiosde autoria conhecida, o potencial de vitimização de negrosneste tipo de homicídio é 66,7% superior à sua participaçãona composição racial da população.

Nos dois tipos de homicídios analisados, observou-seque os negros, em relação à sua participação da composi-ção racial da população do Município de São Paulo, es-tão muito mais representados tanto entre as vítimas comoentre os autores destes crimes. Este fenômeno remete,contudo, à análise sobre os critérios adotados pelos agen-tes policiais para classificar um determinado indiciado porsua cor. Em outras palavras, o fato de os negros estaremmais representados – proporcionalmente à sua participa-ção na população –, tanto entre as vítimas como entre osautores dos homicídios cometidos no Município de SãoPaulo, não significa que exista um padrão racial que pos-sa explicá-los. A justificativa para este fenômeno estariana distribuição espacial dos homicídios, que se concen-tram na periferia da capital, exatamente onde a parcelapobre e negra da população reside. O homicídio insere-sena lógica do espaço urbano de São Paulo e nas condiçõesde vida que ele oferece (Lima, 2002).

Uma outra pesquisa produzida pela Fundação Seade(2000), sob encomenda da Secretaria de AdministraçãoPenitenciária de São Paulo, comparou as populações doEstado de São Paulo e dos estabelecimentos penitenciá-rios paulistas, e indicou uma série de questões importan-tes, complementares às citadas anteriormente. Em primeirolugar, conforme a Tabela 1, nota-se que os negros estãomuito mais representantes na população carcerária do quena população em geral. Por certo, os brancos são numeri-camente superiores aos negros nas prisões paulistas, mas,

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proporcionalmente, estes últimos parecem ser mais puni-dos com pena de prisão do que os brancos. Pelos dadosdisponíveis,4 nota-se que enquanto os negros representa-vam cerca de 26% da população paulista, em 1999, elestotalizavam cerca de 44% da população carcerária em SãoPaulo.

TABELA 1Distribuição da População Paulista e da População

Carcerária, segundo Cor da PeleEstado de São Paulo – 1999

Em porcentagem

Cor da Pele População (PNAD) População Presa

Branca 72,70 55,59

Negra 25,50 43,77

Amarela/Indígena 1,80 0,45

Não Informado 0,00 0,18

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD; Tribunal de Justiça doEstado de São Paulo; Secretaria da Administração Penitenciária; Secretaria de SegurançaPública do Estado de São Paulo; Prodesp; Fundação Seade.

O Gráfico 1 avalia o percentual de mulheres e homensbrancos e negros que foram indiciado(a)s (acusado(a)sformalmente pela prática de um crime, processado(a)s eque tiveram sentenças finais de prisão nos crimes de rou-bos consumados (artigo 157, do Código Penal). Nele,podem-se observar as intensidades das curvas e das traje-tórias dos indivíduos, nas quais os homens brancos têmdiminuída sua probabilidade de serem condenados e cum-prirem, efetivamente, penas de prisão e, em sentido con-trário, as mulheres negras são, proporcionalmente, muitomais punidas com prisão do que as demais mulheres e,mesmo, do que os homens negros.

Tais resultados reforçam aqueles identificados porSérgio Adorno (1994; 1995) e dão ainda mais drama-ticidade ao quadro de funcionamento da Justiça CriminalPaulista, na medida em que cobrem o universo completode indivíduos envolvidos com crimes de roubos. Nofuncionamento do Sistema de Justiça Criminal, não épossível compreender a distribuição desigual de sentençascondenatórias apenas afirmando a existência de racismo.Alguns estudos avançaram muito nessa compreensão,como os de Sérgio Adorno, acima citado, que observouque “a arbitrariedade dos procedimentos inquisitoriais pesacom maior rigor sobre réus negros do que sobre réusbrancos. No mesmo sentido, réus negros tendem a enfrentar

maiores obstáculos no acesso aos direitos” (Adorno, 1995:53). Por trás deste processo, o funcionamento desigual doSistema de Justiça seria resultado, sobretudo, de clivagensde classe na operação e no acesso à justiça.

No entanto, existem outros autores que defendem quea categoria “raça” não pode ser esvaziada pela categoria“classe”, e que os estudos que fazem este tipo de associa-ção seriam tributários de uma tradição sociológica querelaciona funcionamento e estrutura de classes da socie-dade, e que nem mesmo essa associação entre raça e clas-se consegue dar conta de explicar o tratamento diferen-ciado do Sistema de Justiça para negros e brancos em todaa sua complexidade.

Segundo Guimarães (2002:47), ao associar classe e raçaficamos presos a duas armadilhas sociológicas. De acor-do com o autor, “primeiro, o conceito de classes não éconcebido como podendo referir-se a uma certa identida-de social ou a um grupo relativamente estável, cujas fron-teiras sejam marcadas por formas diversas de des-criminação, baseadas em atributos como a cor (...).Segundo, o conceito de ‘raças’ é descartado como impres-tável, não podendo ser analiticamente recuperado parapensar as normas que orientam a ação social concreta,ainda que as discriminações a que estejam sujeitos os ne-gros sejam, de fato, orientadas por crenças raciais”. Nes-

GRÁFICO 1Trajetória dos Indivíduos Envolvidos em Roubos, segundo Raça e Gênero

Estado de São Paulo – 1999/00

Fonte: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; Secretaria da Administração Penitenciá-ria; Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo; Prodesp; Fundação Seade.Nota: Dados preliminares.

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sa perspectiva, portanto, a categoria “raça” não pode serdescartada, mesmo que na prática ela não tenha outro sig-nificado que não o político, pois pesquisas recentes des-montaram de vez a possibilidade de se pensar, no Brasil,“raça” como resultado de atributos biológicos (Folha deS.Paulo, 17/12/2002: A16).

Enfim, a partir do acima exposto pode-se explicitar/reforçar que o Sistema de Justiça Criminal Brasileiro épautado por uma lógica que permite, no limite, a invisi-bilidade de questões raciais, de gênero ou geracionais noprocessamento de fatos de natureza criminal e, por con-seguinte, permite a reificação de desigualdades, diferen-ças e discriminações na população do país, não incorpo-rando as transformações democráticas da sociedadebrasileira observadas no campo político. Segundo estalógica, a desigualdade na forma de tratamento dispensa-do pelo Sistema de Justiça poderia ser explicada por duasclivagens demográficas principais: gênero e raça.

Por meio delas, o aparato técnico-processual montadopara garantir a igualdade na distribuição de justiça esta-ria, na realidade, reproduzindo relações não equânimesde poder, e seria uma indicação de que o processo de trans-formação democrática da sociedade brasileira ainda estáinconcluso. No caso específico do atributo racial, a exis-tência de ideologias raciais permite montar um arcabou-ço institucional capaz de processar os conflitos de natu-reza criminal da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo,capaz de garantir a permanência de lógicas de poder his-toricamente construídas como desiguais e destinadas adispensar tratamento diferenciados para os vários segmen-tos demográficos.

Por certo, todo o processo de construção da identidadenegra observado ao longo do século XX contribuiu parafazer avançar o debate sobre o funcionamento desigualdo Sistema de Justiça. Contudo, pelos dados apresenta-dos, ainda é necessário aumentar a compreensão destefenômeno e debater aspectos poucos explorados peloscientistas sociais envolvidos com a temática da JustiçaCriminal e da Segurança Pública.

No momento, não existem condições para fazer asso-ciações e/ou afirmações definitivas, mas sim para incluirtópicos de debate. Pensar no modelo burocrático e no pres-suposto da tutela ajuda a aumentar a compreensão do fe-nômeno, mas não equaciona de vez a questão, pois a lite-ratura norte-americana e européia, por exemplo, indica queo tratamento diferenciado do Sistema de Justiça Criminal

é uma realidade não apenas do Brasil, mas também per-passa a história dos Estados Unidos e dos países da Euro-pa. Dessa forma, há de se destacar que alterações nessequadro passam pela incorporação marginal de transfor-mações, em especial aquelas pautadas pelos movimentossociais. Sobretudo após a Constituição de 1988, foi naesfera dos direitos difusos – da Criança e do Adolescen-te, do Meio Ambiente e do Consumidor – que a mudançade paradigma no exercício da distribuição de justiça pôdeser exercida e notada. Sem dúvida, tal mudança provocouum “choque de transparência” e está a exigir uma novapostura do Estado na forma de relacionar-se com a socie-dade e, mais, na forma como ele está organizado paramediar e resolver conflitos.

NOTAS

1. Para efeito de análise, será mantida a denominação do aparelho po-licial por todo o texto deste trabalho.

2. Segundo Guimarães (2002), o Movimento Negro reivindica a prer-rogativa da maioria discriminada, ou seja, além dos classificados como“pretos” e que estariam diretamente associados à raça negra, vê na-queles indivíduos identificados como pobres e cuja “cor” situa-se nacategoria “pardos”, na qual se encaixaria a maioria da população bra-sileira, as marcas de identidade que permitiriam o discurso da raçanegra como discurso político da maioria e, portanto, com maior graude “legitimidade”.

3. Informações para o Município de São Paulo não puderam ser obti-das no Censo de 1991, pois os dados disponíveis estavam agregadospara o total do Estado. Para o Estado de São Paulo, os brancos repre-sentavam, naquele ano, 72,5% da população e os negros, 25,4%.

4. Cabe destacar, como ressalva metodológica, que, para a distribui-ção da situação de prisão segundo “cor”, utiliza-se a população totalde presos do Estado de São Paulo e não somente uma amostra. No casoda distribuição da população, trabalha-se com a PNAD (Pesquisa Na-cional por Amostra de Domicílios) do IBGE, que, apesar de ser umaamostra, já é uma estimativa da população geral. Com uma “amostra”tão grande, há a tendência de hiper-sensibilidade dos testes estatísti-cos, sendo que pequenas diferenças serão significativas não por dife-renças reais, mas em virtude da estrutura do teste. Assim, testes esta-tísticos de natureza probabilística não são indicados para amostrasgrandes. Portanto, as análises dos dados aqui apresentadas partem deinferências de natureza qualitativa. Também é necessário indicar queas análises feitas têm por base as informações disponíveis no SistemaIntegrado de Informações Criminais e, por conseguinte, são suscetí-veis à existência de vieses na coleta e produção das informações. Sabe-se, pela literatura existente, que a qualidade dos dados varia de acordocom a fonte que o coleta. Dados sobre, por exemplo, cor da pele sãocoletadas pela Polícia no momento do indiciamento do indivíduo acu-sado de um crime. No entanto, os critérios de classificação de um in-divíduo como de uma cor ou de outra não são uniformes, e estão sujei-tos a avaliações subjetivas do agente policial responsável por tal pro-cedimento. Significa dizer que as análises dizem respeito tão somenteaos dados existentes no Sistema Integrado gerenciado pela Prodesp –Empresa de Processamento de Dados do Estado de São Paulo.

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O

DECISÕES JUDICIAIS DA VARA DASEXECUÇÕES CRIMINAIS

punindo sempre mais

Resumo: O texto apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida pela Fundação Seade dos processos deexecução penal do Estado de São Paulo em 2002. Os resultados apontaram para o baixo percentual de presosque obtêm benefícios e para o fato de que as concessões destes benefícios ocorrem em lapso de tempo documprimento da pena muito acima do legal.Palavras-chave: execução penal; sistema de justiça criminal; benefícios prisionais.

Abstract: This text presents the results of a study undertaken by Fundação Seade of criminal cases in the Stateof São Paulo in 2002. The results reveal the low percentage of inmates who receive privileges and the fact thatthese privileges are granted with unlawful delay.Key words: penal execution; criminal justice system; inmate privileges.

ALESSANDRA TEIXEIRA

ELIANA BLUMER TRINDADE BORDINI

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 66-71, 2004

artigo que aqui se apresenta é fruto de reflexõesacumuladas a partir dos resultados da pesquisarealizada pela Fundação Seade no universo dos

processos de execução criminal na Vara das ExecuçõesCriminais da Capital – VEC no ano de 2002, de caráterquantitativo.

O objeto dessa pesquisa nasceu do desafio de testar tesesdifundidas no senso comum no sentido de que a ineficá-cia da pena de prisão e o aumento da criminalidade sedeveriam ao fato de o sistema de execução ser por demais“benevolente”, onde o preso cumpriria apenas uma peque-na parte de sua pena em regime fechado, sendo contem-plado pela concessão de benefícios legais que o levariamà liberdade precocemente.

A reforçar tais teses, uma série de projetos de lei temirrompido a cada dia propondo o endurecimento penal, e,no que toca à execução criminal, a proibição de benefí-cios prisionais ou aumento do prazo para sua concessão.Nesse intento, a metodologia do presente estudo foi de-senvolvida no sentido de, a partir da investigação da rea-lidade – no caso os processos de execução penal em cur-so – aferir se – e em que medida – as intercorrências1

previstas na Lei se realizavam no universo das execuçõescriminais. Pode-se observar, assim, a funcionalidade dosistema: se de fato atua com menor severidade – o quetornaria ao menos de difícil explicação o cenário de altocrescimento da população carcerária nas últimas décadas– ou se, ao contrário, operaria como um mecanismo dereforço à punição, ainda que em dissonância com a legis-lação.

Tratou-se, desse modo, de estudar o sistema de justiçapenal, a partir de uma de suas faces menos investigada: ocotidiano dos processos de execução criminal presididospor juízes em seus gabinetes, via de regra, distantesfisicamente do cárcere e dos encarcerados sobre quemdecidem cotidianamente. Empreendimento diverso daqueleque vem sendo mais comumente realizado, a investigaçãodo cárcere, do funcionamento das instituições totais, suamistificação, seus efeitos criminógenos, a presentepesquisa voltou-se à compreensão da funcionalidade dosistema a partir de sua esfera jurisdicional, universo atéentão de escassa investigação, para aferir como operamos mecanismos punitivos desde uma ótica dos operadoresda justiça.

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DECISÕES JUDICIAIS DA VARA DAS EXECUÇÕES CRIMINAIS: PUNINDO SEMPRE MAIS

O PODER DE PUNIR

A execução da pena no sistema brasileiro se dá de modojurisdicionalizado, o que implica dizer que cabe ao juiz dasexecuções, sobrepondo-se à administração prisional, pre-sidir e fiscalizar o cumprimento da pena. Essa concepçãoquanto ao modelo de cumprimento da pena foi sistematiza-da pela Lei de Execução Penal – LEP (Lei no 7.210, de1984), que veio a adotar uma tendência mais democráticaneste campo do conhecimento, a exemplo de países comoAlemanha, Portugal, Espanha, afinando-se ainda, de formamais contundente, a Tratados e Pactos Internacionais quedispõem sobre a preservação de direitos para as pessoascondenadas a alguma forma de sanção penal.

Nesse sentido, é possível compreender que, em ter-mos ideais, a jurisdicionalização da execução penal ten-deria a operar a partir de um paradigma traduzido na pre-servação dos direitos humanos – em especial das pessoassubmetidas à pena de prisão – uma vez que estaria naessência da constituição desta espécie de Poder (Judi-ciário), em sua configuração moderna, a finalidade his-tórica de garantia e combate às violações de direitos hu-manos, sendo ainda aquele que melhor disporia doaparato técnico para o cumprimento dessa função.

Em termos de execução penal, afirmar que um sistemaé jurisdicionalizado equivale dizer que toda a sua dinâ-mica insere-se na ordem jurídica processual, subordinan-do-se a procedimentos legais determinados. As decisões,por serem judiciais e não administrativas, sujeitam-se aprincípios como o acesso à justiça, o duplo grau dejurisdição, isonomia entre as partes e a necessidade defundamentação, além do contraditório e ampla defesa.

Em contraposição, identificam-se os sistemas admi-nistrativos puros, onde a decisão condenatória final é otermo da atividade jurisdicional, sujeitando-se o apenado,a partir de então, às normas e regulamentos infra-legaise à figura do administrador do presídio, com esfera deatuação mais discricionária. Esses sistemas são adota-dos em diversos países na América Latina, no ReinoUnido e, mais intensamente, nos Estados Unidos, ondeo chamado modelo hands off propaga o distanciamentodo sistema de justiça das questões relativas ao cárcere eaos encarcerados, deixando a cargo do Poder Executivoa presidência e a administração do sistema, o que podeexplicar ainda o incremento do discurso e da adoção dapolítica privatizadora em presídios. Essas tendências nãotêm escapado às críticas de estudiosos que identificam adimensão excludente e escravizante nesta forma de apri-

sionamento, denunciando ainda a lógica do lucro a queestão atrelados tais processos, bem como sua repercus-são no aumento vertiginoso dos índices de encar-ceramento (Christie, 1998; Wacquant, 2000).

Desse modo, pensando o sistema de execução penalbrasileiro a partir da matriz ideológica da ressocializaçãoe do discurso oficial da terapêutica, estabeleceu-se aquestão basilar para o presente estudo: em que medida osistema de justiça, valendo-se, na execução penal, de me-canismos como os prognósticos de não reincidência e rea-bilitação, exerce o poder de punir? Tomando-se por baseesse tipo especial de processo penal, que não mais obje-tiva reconstruir os fatos e atribuir culpabilidade, mas simprojetar-se ao futuro, atribuindo ou não direitos a bene-fícios ou agravando sanções,2 como estaria então essesistema realizando os ideários e princípios constitucio-nais e legais previstos para a matéria, como a individua-lização da pena e a sua progressividade?

Essa projeção ao futuro, com atribuição ou negaçãode direitos, se dá a partir de prognósticos de não reinci-dência, cura, reabilitação, etc., que são “obtidos” por pro-cedimentos de avaliação, classificação e até punição doscondenados segundo critérios de mérito, disciplina, per-sonalidade, desempenho e comportamento carcerário(balizados pelas previsões legais). Para tanto, serve-seo sistema punitivo de todo um corpo técnico que, comobem notou Foucault (1997), passa a compartilhar o po-der de aplicação das penas.

Em nosso sistema, as comissões técnicas de classifi-cação, compostas por psiquiatras, psicólogos e assisten-tes sociais, representam esse corpo técnico, sendo res-ponsáveis pela elaboração dos laudos que instruem ospedidos de benefício, como também pela garantia docaráter individualizador da pena ao classificarem os pre-sos. O caráter disciplinar, correspondente ao “mérito”do condenado aos benefícios, também está presente nacomposição desse aparelho técnico-jurídico, na figura dosdiretores e agentes penitenciários.

A relevância dos pareceres desse corpo técnico na de-terminação das decisões judiciais revelou-se igualmen-te, ao lado dos resultados dessas últimas, um ponto im-portante a ser investigado, que também é do objeto dopresente trabalho.

METODOLOGIA

O principal objetivo da pesquisa foi obter um retratodo funcionamento do sistema de execução penal, no que

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toca às decisões judiciais. Para delimitar o objeto de in-vestigação, tomou-se por base os principais pontos daspropostas de mudança da LEP que tramitavam no Con-gresso Nacional.

Os projetos versavam essencialmente sobre aumentodo lapso para obtenção dos benefícios de progressão deregime e livramento condicional, e ainda sobre a supressãodo laudo criminológico que instrui tais pedidos. Assumindotais alterações como basilares, construiu-se o principalponto de investigação da pesquisa: a aferição dos lapsosreais em que os benefícios prisionais seriam concedidos ea relevância dos laudos elaborados pela Comissão Técnicade Classificação – CTC nas decisões judiciais.

O universo de investigação foi constituído dos 7.960processos de execução referentes aos condenados emcumprimento de pena nos estabelecimentos prisionais sobcompetência da Vara das Execuções Criminais da Capi-tal, em junho de 2002.

A base de dados que serviu de referência para a sele-ção da amostra foi construída a partir da junção dos Sis-temas da Coordenadoria dos Estabelecimentos Peniten-ciários do Estado de São Paulo – Coespe e da Vara dasExecuções Criminais, desenvolvidos pela Empresa deProcessamento de Dados do Estado de São Paulo –Prodesp, fornecidos à Fundação Seade mediante autori-zação da Secretaria da Administração Penitenciária e doTribunal de Justiça.

Foram definidos os parâmetros P como: a proporçãode condenados que tiveram progressão da pena, a pro-porção de condenados que obtiveram a concessão de li-vramento condicional e as proporções de presos que so-licitaram cada um dos benefícios, utilizando a hipótesede que os P fossem iguais a 10%. Admitiu-se uma mar-gem de erro K = 3% na proporção estimada P e um nívelde significância α = 5%.

Deste modo, chegou-se inicialmente a uma amostrade 366 processos. A amostra foi selecionada de formaaleatória para o universo, a partir da listagem de presosdos estabelecimentos prisionais sob competência da Varadas Execuções Criminais da Capital. O trabalho de cole-ta resultou numa amostra final de 339 processos.

RESULTADOS

Progressão de Regime

O instituto da progressão de regime, previsto na LEP(Lei no 7.201/84, art. 112), estabelece o direito do con-

denado progredir do regime mais rigoroso para o menos(fechado para o semi-aberto e deste para o aberto), umavez cumprido um sexto da pena e quando o mérito indi-car o benefício. O termo mérito é compreendido na acep-ção das condições indicadas mediante parecer da CTCnos laudos criminológicos e pelo comportamento disci-plinar e desempenho carcerário.3

Com referência à progressão de regime, o primeiroresultado obtido indica que 22,1% de presos obtiverama progressão de regime (com margem de erro 4%). Des-te modo, apenas uma pequena parte da populaçãocarcerária logra cumprir sua pena de modo progressivo,muito embora a progressividade seja o modelo geraladotado pela LEP e pela Constituição Federal.

Outra informação reveladora é que 72,5% das pessoasque obtiveram a progressão haviam cumprido mais deum terço da pena. Por este dado infere-se que, da peque-na parte dos presos que obtém a progressão de regime, amaioria só a alcança com o cumprimento do prazo mui-to acima do legal (um sexto), o que demonstra que estenão é balizador das decisões dos juízes.

É importante esclarecer que, na rotina da formulaçãode benefícios, o preso depende que o presídio elabore odevido expediente (com os laudos e demais informações)para a instrução e o envio do pedido à VEC. Assim, peladinâmica, o preso só consegue encaminhar seu pedido,uma vez passando pelo crivo do presídio. Este avaliaráse o mesmo já tem lapso para a postulação e, em muitoscasos, se não cometeu nenhuma falta disciplinar numperíodo que varia em função de cada estabelecimento,posto não haver previsão legal para tal triagem. O resul-tado da pesquisa indica que apenas 54% dos presos pe-diram a progressão (com margem de erro 5%), portanto,somente este percentual de presos preenchia as condi-ções formais para a postulação.

Considerando-se apenas o universo de presos que for-mularam pedidos de progressão de regime, uma ou maisvezes, 41% obtiveram a concessão, em algum de seuspedidos.

Tomando-se por base a totalidade de pedidos de pro-gressão formulados pelos presos, constatou-se que 26,4%foram deferidos (Tabela 1). É importante esclarecer queum mesmo preso pode formular vários pedidos de bene-fícios.4 Assim, buscou-se trabalhar com os pedidos a fimde aferir o percentual de deferimentos e o cruzamentodos resultados dos laudos com as decisões.

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DECISÕES JUDICIAIS DA VARA DAS EXECUÇÕES CRIMINAIS: PUNINDO SEMPRE MAIS

TABELA 1Pedidos para Progressão, por Conclusão do Laudo

Criminológico, segundo Decisão JudicialMunicípio de São Paulo1 – Junho 2002

Decisão Conclusão do Laudo CriminológicoJudicial Favorável Não-Favorável Não Informa Total

Total 100,0 100,0 100,0 100,0

Progressão 45,0 4,9 9,1 26,4

Não-Progressão 36,1 87,4 32,5 49,6

Não Informa 18,8 7,8 58,4 24,0

Fonte: Vara das Execuções Criminais da Capital – VEC; Fundação Sistema Estadual de Análisede Dados – Seade.(1) Inclui processos de execução de outros estabelecimentos prisionais fora da capital.

A partir das informações apresentadas na Tabela 1,tem-se que: do total de pedidos de progressão com lau-dos favoráveis, 45% corresponderam a decisões de pro-gressão e 36,7% de não-concessão do benefício; comrelação aos laudos desfavoráveis, 87,4% corresponderama decisões de não-progressão e apenas 4,9% a de pro-gressão. Estes dados trazem à tona uma importante e atualdiscussão: o papel desempenhado pelos laudos cri-minológicos e sua validade. Estão, em tramitação noCongresso Nacional alguns projetos de lei visando suaextinção sob diversos argumentos, como a má elabora-ção dos mesmos e sua ineficácia no processo indi-vidualizador da pena; tanto os mais conservadores comoaqueles que se filiam ao direito penal mínimo têm de-fendido esta idéia.

É possível discutir não a qualidade dos laudos, mas suautilização ideológica pelos operadores do direito (juízesespecialmente). Observe-se que, quando os laudos apon-tam a conclusões desfavoráveis, são quase inteiramenteacompanhados pelos juízes com decisões de indeferimento(87,4%). Já quando suas conclusões são opostas, ou seja,favoráveis à progressão pelo condenado, apenas 45% dasdecisões os acompanham.

Livramento Condicional

O Livramento Condicional – LC é um instituto previs-to no Código Penal e na LEP, pelo qual o condenado cum-pre o restante de sua pena em liberdade, mediante certascondições a serem fixadas na sentença. O lapso temporalexigido por lei varia de acordo com a natureza do crimeda condenação e com a reincidência.5

Assim como na progressão de regime, a apresentaçãodos laudos criminológicos indica o “mérito” do preso à

concessão do benefício, bem como o comportamentocarcerário e o parecer do Conselho Penitenciário.

Na sistemática de execução penal, o Livramento Con-dicional foi idealizado como o último estágio do modeloprogressivo de cumprimento da pena, em que o condena-do, uma vez tendo já obtido a progressão para regimesmenos gravosos, cumpriria o restante de sua pena em li-berdade condicional, apresentando-se regularmente aoPoder Público, como encerramento de um processo dereinserção social, iniciado com a primeira etapa de exe-cução de sua pena.

Em relação ao LC, observou-se que 8% de presos ob-tiveram este benefício (margem de erro 3%). Não obs-tante o erro relativo apresentado por esta estimativa sejaalto (36,1%), esse dado aponta para uma parcela muitopouco significativa da massa carcerária que realmentechega a alcançar o benefício. Note-se que seu percen-tual é ainda inferior ao dos que obtêm a progressão deregime.

Do total de presos analisados, 24% pediram o LC (mar-gem de erro 5%). Cabem aí as mesmas observações játecidas em relação à progressão. Note-se que o percen-tual é inferior à metade dos que formulam pedidos de pro-gressão de regime.

Observe-se que, assim como nos demais resultados, osdados referentes ao livramento condicional indicam ummenor requerimento e deferimento comparado aos de pro-gressão; dessa maneira, 33% dos presos, entre os que pe-diram o benefício, obtiveram a concessão do livramentocondicional.

Como foi já exposto, procurou-se trabalhar com o uni-verso de pedidos formulados.6 Quanto aos resultados, épossível observar um percentual ligeiramente maior dedeferimentos de pedidos em relação à progressão, ou seja,dos pedidos de livramento condicional, 31,1% foram de-feridos (Tabela 2). Acredita-se que isso ocorra porque,como já exposto, o LC seria a última fase do cumpri-mento da pena, deduzindo-se que aqueles que o reque-rem se encontrariam em regimes mais brandos como osemi-aberto e o aberto, o que favoreceria o deferimentodo benefício.

A análise da Tabela 2 permite verificar que do totalde pedidos de LC com laudos favoráveis, 47,5% cor-responderam a decisões de concessão do benefício e27,1% a decisões de não-concessão; do total de laudosdesfavoráveis, 68% corresponderam a decisões de não-concessão do benefício e apenas 10,5% a decisões deconcessão. Cabem nesse caso as mesmas considerações

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feitas com relação aos laudos em pedidos de progressãode regime.

TABELA 2Pedidos para Livramento Condicional, por Conclusão do

Laudo Criminológico, segundo Decisão JudicialMunicípio de São Paulo1 – Junho 2002

Decisão Conclusão do Laudo CriminológicoJudicial Favorável Não-Favorável Não Informa Total

Total 100,0 100,0 100,0 100,0

Deferimento 47,5 8,0 10,5 31,1

Indeferimento 27,1 68,0 26,3 36,9

Não Informa 25,4 24,0 63,2 32,0

Fonte: Vara das Execuções Criminais da Capital – VEC; Fundação Sistema Estadual de Análisede Dados – Seade.(1) Inclui processos de execução de outros estabelecimentos prisionais fora da capital.

CONCLUSÕES

Quando o Direito Penal passou a deslocar seu objetode intervenção do crime para a criminalidade, a partir dasreformas do século XVIII que propugnavam punições maisracionais e humanitárias, deslocou também o ideário dapunição para aquilo que se consolidou como sendo a de-fesa da sociedade (Foucault, 1997). O criminoso passou apersonificar toda a ofensa a um corpo social estabeleci-do, e sua punição a simbolizar a restauração de uma or-dem ferida, a coibição de um perigo social.

Concomitantemente, os processos de prisionalizaçãoiniciados no mesmo período, a exemplo dos de crimi-nalização, foram determinados a partir de mecanismoseconômicos e políticos, cumprindo eficazmente interes-ses específicos de classe: a eliminação de indivíduos so-cialmente dispensáveis, perigosos, impróprios ao traba-lho e à disciplina, figurando tais processos como osprincipais vetores para a realização do escoamento de mão-de-obra excedente e desqualificada, e para a consolida-ção de padrões morais de valorização do trabalho e deperseguição à pobreza (Rusche; Kirchheimer, 1999).

Tal configuração paradigmática do direito de punir, bemcomo os processos que determinaram sua efetivação, per-manecem atuais, encontrando-se presentes ainda hoje nasdimensões do heterogêneo universo que é o sistema dejustiça criminal e, em especial, o que aqui se trata, o deexecução penal. Os resultados apresentados pela pesqui-sa permitem aferir o quanto essa ideologia tende a repro-duzir-se, ora revelada a partir de um retrato da atuaçãodos juízes da execução criminal.

Pelo que se constata, o sistema de justiça criminal,notadamente enquanto executor da pena, opera na quali-dade de aplicador de um plus punitivo, ao relativizar aomáximo os direitos previstos em lei para os condenados,adotando uma postura altamente repressiva, revelada pe-los ínfimos percentuais de benefícios concedidos.

No mesmo sentido, a utilização ideológica dos laudoscriminológicos pelo aparelho judicial, na medida em quese tornam efetivamente aproveitáveis tão somente enquantoimportam em não recomendação pelos benefícios, tam-bém dão dimensão do caráter político que tais decisõesassumem.

Por certo, o caráter ideológico encontra-se presente naatuação dos juízes, sendo impossível conceber que as de-cisões não reflitam os valores e interesses por eles com-partilhados, sobretudo de classe. A imparcialidade, pro-pugnada como um valor para a atividade jurisdicional nosregimes democráticos, pode ser alcançada de maneiraaproximada por critérios de maior pluralidade – no recru-tamento de juízes e na natureza das decisões – (Zaffaroni,1995), mas não de modo a produzir um Judiciário neutro,com total ausência da dimensão política em sua atuação.Ainda quando o formalismo jurídico e o apelo extremadoà lei são preponderantes, não deixam eles próprios de re-presentar traços de uma filiação política e ideológica porum sistema que não contempla, com absoluta igualdade,todos os cidadãos.

Como bem observou Joaquim Falcão (2001), ao comen-tar os dados de uma pesquisa realizada junto a magistra-dos no país,7 a politização – sobretudo econômica – dassentenças é um valor a ser exigido em uma democracia,denotando a responsabilidade do Judiciário para com osrumos e conseqüências das políticas econômicas adota-das pelos poderes Executivo e Legislativo. A pesquisarevela que os juízes tendem ao formalismo em matériacomercial, de crédito e de locação, mas adotam a flexibi-lização da lei e dos contratos, na busca de maior “justiçasocial” quando se trata de matéria trabalhista e de direi-tos do consumidor, previdenciário e ambiental.

No que diz respeito ao universo criminal, contudo, oque se observa é que esta dimensão política remonta àlógica dos já aludidos mecanismos de eliminação de pes-soas socialmente “perigosas” pela via da segregação pe-nal, assumindo o Judiciário teses do senso comum e dossetores mais conservadores da sociedade (como o movi-mento de política criminal “Lei e Ordem”) que conclamama maior punição como meio legítimo de controle social.Esse discurso furta-se, certamente, da reflexão crítica so-

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DECISÕES JUDICIAIS DA VARA DAS EXECUÇÕES CRIMINAIS: PUNINDO SEMPRE MAIS

bre os processos que operam na criminalização de setoresmenos privilegiados da sociedade – e, conseqüentemen-te, na imunização de condutas de classes mais favoreci-das, como a criminalidade econômica – ou sobre a vio-lência promovida nos cárceres.

É sabido, no entanto, que tais medidas de recrudesci-mento legal e jurisdicional não vêm conseguindo frear acriminalidade. Ao contrário, ao aumentar o contingentedas prisões,8 diante do não “escoamento” de grande partedesta população confinada, vêm contribuindo para aumen-tar os efeitos criminógenos do cárcere, o que certamentepode ser corroborado por estudos científicos e pela rein-cidência observada.

O aumento vertiginoso no número de presos – fenôme-no observável em todo o país – confronta-se com um ce-nário de restrições orçamentárias, políticas e administra-tivas que, obviamente, tendem a dificultar a ocupação e apresença do Estado no interior desses espaços institucio-nais. Esse vácuo de poder acaba por propiciar que outrasformas de exercício do mesmo se realizem a partir da for-mação de grupos que se constituem através de relações“informais” de mando, estabelecendo códigos específicosque operam com uma normatização própria, por mecanis-mos punitivos severos e à margem do Estado. Esse pro-cesso está certamente na gênese do recrudescimento dasorganizações criminosas constituídas no interior dos pre-sídios, sendo intrigante ainda o fato de que a história desua formação acabe remontando a espaços onde justamenteo sistema de justiça rege e propaga como mais inflexíveis.9

No que toca aos projetos de lei atualmente em trâmiteno Congresso, é possível concluir que ao estabelecerem ofoco de suas propostas no endurecimento legal, responsa-bilizam o que consideram “modelo legal permissivo” pelafalência do sistema, demonstrando assim um grande des-conhecimento da realidade, bem como reforçando cren-ças generalizadas da população e propagadas pela mídiaem tal sentido.

Por fim, acredita-se que a divulgação de um trabalhocomo o presente permita aprimorar o debate sobre a crisedo sistema punitivo, a partir da atividade desempenhadapela justiça criminal, e questionar o desempenho de seupapel como principal ator na aplicação da pena.

NOTAS

1. Por benefícios prisionais ou intercorrências entendem-se as progres-sões de regime, o livramento condicional, a autorização de saída tem-porária, entre outros, todos previstos na Lei de Execução Penal.

2. Os procedimentos disciplinares referem-se a apurações e eventuaiscondenações de faltas cometidas por presos e têm caráter investigativoe repressivo, podendo atribuir sanções acessórias à prisão como o iso-lamento celular, por tempo determinado.

3. A Lei no 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) passou a vedar aprogressão de regime para os delitos nela previstos.

4. A média de pedidos de progressão por presos é de 2,1.

5. Para os primários é exigido o cumprimento de um terço da pena,para os reincidentes metade e para aqueles que foram condenados porcrimes hediondos e assemelhados dois terços da pena. Aos reinciden-tes em delitos dessa espécie é vedado o benefício.

6. A média de pedidos de LC por preso é de 1,3.

7. Pesquisa “O Judiciário e a Economia na Visão dos Magistrados”promovida pelo Idesp (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais ePolíticos de São Paulo), que consultou 738 magistrados em 12 estadossobre a reforma do Judiciário, no ano de 2001.

8. No Estado de São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciá-ria tem divulgado saldos positivos de até 1.000 presos por mês no Es-tado.

9. É digno de nota o fato de que a organização criminosa paulista PCC(Primeiro Comando da Capital) tenha surgido na década de 80, nopresídio de Taubaté, conhecido como “Piranhão”. Como o nome suge-re, este era o estabelecimento mais rígido do sistema, onde a violênciadifusa encontrava-se mais latente, a partir da flexibilização dos direi-tos dos presos. Exemplo semelhante é encontrado no Comando Ver-melho, no Rio de Janeiro, que remonta sua origem ao Presídio de Se-gurança Máxima de Dois Rios/Ilha Grande.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHRISTIE, N. A indústria do controle do crime: a caminho dos Gulagsem estilo ocidental. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense,1998.

FALCÃO, J. A política econômica dos juízes. Rio de Janeiro, 2001Disponível em: <http://www.femperj.org.br>. Acesso em: 27 out.2003.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. 16. ed.Petrópolis: Vozes, 1997.

FRANCO, A.S. Jurisdicionalização da Execução. In: Temas de Direi-to Penal. São Paulo: Saraiva, 1986.

RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social. Riode Janeiro: Freitas Bastos, 1999.

SADEK, M.T. O sistema de justiça. In: SADEK, M.T. (Org.). O siste-ma de justiça. São Paulo: Idesp, Ed. Sumaré, 1999. p.7-18.

WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Esta-dos Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

ZAFFARONI, E.R. Poder Judiciário. São Paulo: RT, 1995.

ALESSANDRA TEIXEIRA: Advogada, Consultora da Fundação Seade, Coor-denadora do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de CiênciasCriminais ([email protected]).

ELIANA BLUMER TRINDADE BORDINI: Estatística, Analista da FundaçãoSeade ([email protected]).

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1) 2004

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E

CENTROS DE INTEGRAÇÃODA CIDADANIA

democratização do sistema de justiça ouo controle da periferia?

Resumo: A política de implantação dos Centros de Integração da Cidadania – CICs, idealizada com o objetivode levar justiça e segurança a segmentos da população desprovidos desses direitos, passou a integrar as pro-postas de reforma do sistema de justiça. Alargando o conceito de direito à justiça, essa política aponta para apossibilidade de aperfeiçoamento da democracia e da cidadania.Palavras-chave: políticas públicas; segurança; cidadania; sistema de justiça.

Abstract: The establishment of Centers of Citizen Integration (CIC), conceived to bring justice and safety tounderserved segments of the public, became a vehicle for judicial reform. Expanding the concept of the rightto judicial access, this policy seems to contain the possibility of a strengthening of democracy and citizenparticipation.Key words: public policies; safety; citizenship; judicial system.

ENEIDA GONÇALVES DE MACEDO HADDAD

JACQUELINE SINHORETTO

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 72-76, 2004

ste artigo refere-se a algumas reflexões sobre osresultados apontados por uma pesquisa realiza-da pelo Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasi-

leiro de Ciências Criminais – Ibccrim1 sobre os quatroCentros de Integração da Cidadania – CICs, existentes nacidade de São Paulo até novembro de 2001, data em quefoi iniciado o trabalho de campo.2 A partir do término damesma, em dezembro de 2002, tem-se procurado ampliaro debate sobre essa política pública, considerando o fatode que a experiência de São Paulo nas zonas Norte, Sul,Leste e Oeste suscitou a criação de CICs em diversos es-tados do território nacional.

A implantação desses centros corresponde a uma polí-tica pública idealizada com o objetivo de levar justiça esegurança a segmentos da população paulista desprovi-dos desses direitos, no esteio da democratização das insti-tuições públicas que marcava o início dos anos 90. Nãoobstante, o período é também marcado pela problemati-zação do crime e da violência na vida nacional, exigindodo Estado soluções e respostas ao crescente sentimentode insegurança manifestado em todas as camadas sociais.

Em face da proposta de abordar a trajetória dos CICs,encontra-se uma realidade histórica marcada por uma

complexa teia de desafios no tocante a contradições,associações, oposições, colonizações, interpenetrações dosdiscursos da democratização e do controle social. Nessecontexto, os resultados dessa política pública podem, nolimite, vir a negar os objetivos defendidos em sua propostainicial.

O QUE SÃO OS CENTROS DE INTEGRAÇÃODA CIDADANIA

O CIC teve início como uma ação da Secretaria de Jus-tiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo em1996. Tornou-se, em 2001, uma coordenadoria regulamen-tada pelo decreto estadual 46.000, onde estão arroladosos seus princípios norteadores: a prevenção de conflitosinterpessoais ou de grupos; a implementação de alternati-vas comunitárias de prevenção e solução de conflitos; aparticipação de associações e movimentos populares noplanejamento, na execução e na avaliação das ações de-sempenhadas; a localização em regiões carentes e compouca oferta de serviços públicos; a qualidade na presta-ção de serviços conforme o Código de Defesa do Usuáriode Serviços Públicos do Estado de São Paulo; a integra-

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CENTROS DE INTEGRAÇÃO DA CIDADANIA: DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA ...

ção e a colaboração entre os órgãos e entidades estataispara a prestação de serviços; a desconcentração do aten-dimento ao cidadão; a aproximação do Estado e da comu-nidade; o estímulo à organização popular.

A articulação da parceria entre diversas secretarias deEstado, o Poder Judiciário e o Ministério Público, ocorreatravés de convênios com a Secretaria de Justiça, respon-sável por gerenciar o projeto, capacitar os parceiros parao trabalho integrado, relacionar-se com a comunidade lo-cal e fornecer alguns recursos materiais. A proposta dedescentralização do atendimento no espaço da cidade rea-liza-se mediante a concentração de múltiplos órgãos pú-blicos no mesmo edifício.

Serviços de identificação, posto da Polícia Militar, aten-dimento da Polícia Civil, atendimento de assistência so-cial, balcão de empregos, Procon, além dos parceiros an-teriormente mencionados, integram o programa CIC. Emsua concepção, o projeto contempla a possibilidade deoutras parcerias a fim de atender a demandas específicasde cada localidade em que se instala. Assim, tem-se co-nhecimento de unidades planejadas em que ConselhosTutelares, Febem, ou órgãos municipais integram-se aoCIC. Além disso, o espaço costuma ser aproveitado pelasassociações civis para reuniões, eventos, cursos e outrasatividades comunitárias.

A pesquisa3 aqui relatada privilegiou a observação daprestação dos serviços que contemplam as demandas poracesso a justiça e segurança pública. Isto se justifica emrazão do projeto ter sido proposto, pela primeira vez, comouma política voltada para a ampliação desse acesso, porum grupo de penalistas engajados na elaboração do progra-ma de governo de um candidato ao governo de São Paulo.4

NOTAS SOBRE A TRAJETÓRIA DO CIC

Os idealizadores do projeto eram defensores dogarantismo5 e da transformação do modelo de justiça vi-gente, no início dos anos 80, destacando-se dentre elesalguns desembargadores de Justiça que tiveram uma atua-ção diferenciada na Quinta Câmara do Tribunal de Alça-da Criminal de São Paulo – Tacrim.

O grupo identificava-se com movimentos de crítica aoautoritarismo estatal ou social, tendo os direitos humanoscomo princípio de pensamento e ação. No fim da ditadu-ra, esse discurso vinculava-se às garantias de defesa dosperseguidos pela repressão, fossem presos comuns oupolíticos. Assim, a identificação com o garantismo colo-cava o grupo na luta por democracia e justiça social, des-

toando do conservadorismo dos tribunais e politizando aatividade jurisdicional.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988,várias teses jurídicas defendidas pelo grupo tornaram-semajoritárias. Todavia, sua crítica não se limitava ao orde-namento jurídico oficial, objetivando transformar tambéma prática da justiça.

Ao se resgatar a história da criação do projeto dos CICs,constatou-se em sua gênese o compromisso com a trans-formação política do sistema de justiça, das relações depoder entre as instituições e os cidadãos. Por isso, aorecontar para os pesquisadores a história do projeto, seusidealizadores falaram em um novo pacto social, em umnovo paradigma de justiça e mesmo em revolução.

Nesse cenário, o funcionamento do CIC exigiu das ins-tituições e dos profissionais duas inversões de priorida-de: a adequação de todos os serviços públicos à realidadedos conflitos (e não o contrário) e o deslocamento dasautoridades no espaço da cidade.

Entretanto, o CIC não pode ser tomado como um pro-jeto acabado. Sua implementação depende da interaçãocontínua entre planejadores, executores e usuários, paraconstantemente atender às demandas plurais de justiça esegurança. Além disso, seus objetivos reclamam que sejasempre reatualizado por novas demandas, pressupondo odiálogo entre os envolvidos para a ampliação sem fim daconsciência de direitos e papéis.

O principal elemento definidor do CIC é a proposta deintegração entre os serviços em si e destes com a comuni-dade. Há uma nova forma de prestar serviços públicos,não mais fragmentadamente, mas integrando as políticasde segurança, justiça, assistência social, emprego, etc. Háainda a aposta em um Estado não mais identificado com arepressão, mas aberto à participação da comunidade nagestão do equipamento e na resolução dos problemascoletivos.

Diante da “ausência” do Estado nas periferias, o equi-pamento deve, segundo o projeto, simbolizar a ocupa-ção do “vazio”, mediante oferta de serviços de seguran-ça e justiça em áreas carentes desses equipamentos. Aimplementação disso exige uma reforma do Estado fun-dada na descentralização dos serviços. Assim idealiza-dos, esses centros, teoricamente, deverão romper com otradicionalmente oferecido: autoritarismo, centralização,corporativismo e fragmentação. Ocorre que, para efeti-var-se a integração entre a comunidade local e os agen-tes estatais, é necessário abandonar a ideologia de “ocu-pação do vazio”, o que significa propor-se a um trabalho

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efetivamente conjunto entre os representantes do poderpúblico e os cidadãos no diagnóstico de problemas, nadefinição de prioridades, na gestão dos recursos, nosrumos da política de acesso à justiça e na avaliação doserviço prestado.

A pesquisa apontou a complexidade e a ambição desseprojeto. Além da descentralização dos órgãos da justiça eda segurança, do atendimento eficaz às demandas concretasda população, a proposta avançava na reflexão da neces-sidade de serem criados arranjos institucionais capazes dedesenvolver uma nova cultura jurídica comprometida coma redução das injustiças sociais, em que aplicação da jus-tiça seja equivalente a justiça social.

Essa nova cultura, sem lugar para a repressão penal,pode ser lida como incapaz de enfrentar o fenômeno co-nhecido por “o crescimento da violência urbana”. Esteconstitui-se num dos riscos para a implementação do pro-jeto: o deslocamento do discurso da transformação para odiscurso da repressão ao crime.

Conforme se tem constatado, há possibilidade de a pres-tação de serviços acabar por se inserir numa lógica deprevenção do crime, ou – o que é menos desejável – decombate ao crime. Nessa lógica, subordina-se toda e qual-quer ação pública à avaliação de sua eficácia em prevenire combater o crime. A educação ou a justiça passam a serjustificadas, não como direitos fundamentais, mas comoestratégias de controle do crime.

É o risco ao qual, segundo as análises empreendidasno decorrer da pesquisa, o projeto foi exposto ao ser in-corporado, em 2000, pelo governo federal, entre as açõesde prevenção da violência do Plano Nacional de Segu-rança Pública. Isto porque a gestão dessas ações, não ten-do ficado sob a competência do Ministério da Justiça(como o restante do Plano), transferiu-se ao Gabinete deSegurança Institucional, órgão ligado à Presidência daRepública, cujos cargos são privativos de oficiais dasForças Armadas. A partir daquele momento, a gestão doCIC passou a fazer parte do Plano de Integração e Acom-panhamento dos Programas Sociais de Prevenção da Vio-lência – Piaps, que articulava programas e políticas fede-rais, estaduais e municipais com impacto na prevenção daviolência. Assim, de uma proposta inovadora de transfor-mação da relação entre o Estado e os cidadãos na garantiados direitos, o CIC converteu-se, num primeiro momen-to, numa ação de segurança pública, correndo já aí o riscoda redução da experiência. Todavia, no contexto de colo-nização das questões de segurança pública pela ideologiada segurança nacional durante a segunda gestão de

Fernando Henrique Cardoso,6 os fundamentos filosóficosdos CICs acabaram desvirtuados, na medida em que pas-saram a servir à estratégia da repressão.

Ainda que a gestão do CIC não estivesse sob a coorde-nação do Ministério da Justiça, a aprovação de projetosvisava a utilização dos recursos do Fundo Nacional deSegurança Pública, administrado pela Secretaria Nacio-nal de Segurança Pública – Senasp.

Com a mudança de governo em 2003 – e a extinção doPiaps – as decisões voltaram à esfera do Ministério daJustiça, que prontamente passou a reunir informações sobrea avaliação do programa em São Paulo. Observe-se que aproposta de ampliação dos CICs insere-se, no discurso donovo ministério, no projeto da reforma do sistema dejustiça, constituindo, até o presente, uma das prioridadesda recentemente criada Secretaria de Reforma do Ju-diciário.

Os novos gestores de Brasília estão preocupados emdar efetividade aos princípios de política pública ideali-zados no passado, reatualizando-os no presente como umexperimento de prática inovadora em administração dajustiça. Desta forma, não buscam reproduzir os passosdados pelo governo de São Paulo na criação das unidadesjá em funcionamento, enunciando até mesmo reservadascríticas à condução do programa paulista.

O CIC E A REFORMA DA JUSTIÇA

Costuma-se associar o conhecimento obtido pela pes-quisa empírica ao processo de limpeza, de retirada de ca-madas. Entretanto, a compreensão da realidade alcança-da com a investigação acerca dos centros de integraçãoda cidadania assemelhava-se à dinâmica das partículas depoeira. Quanto mais os fatos acumulavam-se, super-punham-se, mais visíveis eles se tornavam e, com isso, apromessa de se obter resposta à indagação que conduziaos pesquisadores: afinal, qual é a novidade deste equipa-mento instalado na periferia das zonas norte, sul, leste eoeste da cidade?

Se ao longo do levantamento empírico apreendiam-sealgumas transformações na cultura jurídica necessáriaspara que o projeto CIC vingasse, com a análise e interpre-tação dos resultados ficaram evidentes três rupturas quepoderão viabilizar a superação do modo tradicional defuncionamento do sistema de justiça:- ruptura com a fragmentação entre os campos de saberdo direito, e os modos de intervenção típicos de cada umdeles;

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CENTROS DE INTEGRAÇÃO DA CIDADANIA: DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA ...

- ruptura com a fragmentação entre os diversos órgãospúblicos e setores do Estado responsáveis pela garantiados direitos fundamentais de cidadania;- ruptura com a segmentação entre o Estado e a sociedadecivil nos assuntos públicos.

As três significam possibilidades de superação do modofragmentado como o Estado brasileiro vem administran-do conflitos ao longo da história. Todavia, não se podedesconsiderar jamais o fato de que essas rupturas não es-tão presentes de modo uniforme em todos os momentos,em todos os serviços ou em todas as unidades do CIC emfuncionamento.

Mesmo para fins didáticos, não é possível abordar es-sas promessas (ou rupturas) separadamente, uma vez queisso levaria à fragmentação da análise ou, em outras pala-vras, ao esquecimento da dialética existente entre elas. Senão, vejamos.

O aparelho de Estado está assentado em uma lógica emque a defesa da independência entre as diversas instituiçõesque o compõem não deve ameaçar sua unidade, da qualdepende a eficácia necessária à sua funcionalidade. Adivisão do trabalho, marca de cada instituição, leva a umaoutra sorte de fragmentações cuja apreensão é fundamentalpara que se descortine, no que interessa neste texto, ofuncionamento do sistema de justiça. Assim, diversasinstituições são responsáveis pelo exercício do controlesocial, mas não necessariamente trabalham articuladasentre si, o que faz com que as propostas de incremento daeficácia no controle da violência encontrem inúmerasresistências na sua implementação. Essa disfuncionalidadebusca ser superada por aquilo que, no CIC, denomina-seintegração. Se o CIC se limitar a trabalhar com o objetivodo aumento da eficácia dos órgãos públicos, não realizarásuas potencialidades transformadoras, mas aumentará aextensão do poder estatal no controle das relações sociais.

Entretanto, a proposta do trabalho integrado não repro-duz a organização típica das instituições porque questio-na a hierarquia entre os agentes públicos, na medida emque co-responsabiliza todos os parceiros, não apenas peloatendimento às demandas ingressantes, mas pela própriagestão do equipamento e da política pública. Logo, den-tro de um CIC, a orientação jurídica e a educação em di-reitos deve ser tarefa de todos, do escrevente ao juiz. Oquestionamento da hierarquia significa o questionamentodo saber próprio de cada corporação. O desafio do CICpara a democratização das instituições é não se perder nadisputa de saberes entre as corporações ou na resistência

ao abandono da hierarquia. É assim que, na prática, po-dem ser encontrados juízes disputando a liderança do pro-grama com os gestores administrativos e tentando repro-duzir no CIC o ambiente forense, incluindo nisso o uso detogas, as relações formais e a centralidade do juiz comodiretor da unidade.

O questionamento dos saberes fragmentados dos agen-tes públicos também se revela na proposição de um outromodo de administração dos conflitos, qual seja, o que seconvencionou chamar de metodologia da mediação, naqual o agente estatal não define a situação nem o modo deresolvê-la, mas serve como facilitador da negociação deuma solução entre as partes. Para isso, ele precisa superara divisão clássica entre Direito Civil, Direito Criminal,Direito Trabalhista, não se restringindo nos conhecimen-tos técnicos inerentes a esses campos.

É justamente nessa aparente indefinição de critérios(ou de fundamentos de aplicação do direito) que seencontra um outro ponto de inflexão na trajetória do CIC.Se reduzir-se a um equipamento no interior do Estadoem que se pratica a mediação descolada da garantia dosdireitos fundamentais, ele se limitará a ratificar acordosprivados que podem significar a violação dos direitoshumanos. Mas o projeto do CIC propõe a superação dafragmentação dos saberes com a produção alternativa dodireito no sentido de atender à indivisibilidade dosdireitos humanos, sem lugar na estrutura formal da justiça,que separa os interesses públicos em bens jurídicos cujaproteção torna-se contraditória: liberdade versussegurança, propriedade versus direito.

É assim que, no CIC, se pode presenciar intervençõesde autoridades públicas em conflitos interpessoais moti-vados pelo uso ilegal do solo para moradia, ou na regula-ção de situações de convivência em grandes conjuntoshabitacionais. Nesse aspecto, a informalização abre espa-ço para que a administração da justiça signifique justiçasocial, na medida em que torna efetivos os direitos so-ciais assegurados no ordenamento jurídico.

Na medida em que a mediação se mantiver pautadanas demandas dos movimentos sociais com expressãolocal, não há o risco de empobrecer a qualidade da ofer-ta de serviços de justiça destinados aos moradores daperiferia. É aí que as três rupturas se completam. O CICnão consiste em uma transformação interna ao Estado,mas representa um questionamento das fronteiras queseparam o cidadão comum das decisões políticas que oafetam. Acrescente-se ainda que a integração do CIC coma sociedade local (chamada comunidade) conduz ao in-

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tercâmbio entre o saber técnico-jurídico e o saber local.Este modelo aponta para o exercício de novas relaçõesde poder.

A potencialidade dos CICs não se limita à demo-cratização do sistema de justiça, uma vez que, con-templando os direitos sociais, alarga o conceito de direitoà justiça, exigindo a democratização de outras instituições.Em algumas situações observadas na pesquisa, o CICmostrou-se como canal de demandas da sociedade local.É o caso, por exemplo, de pessoas que obtêm vagas emescolas e hospitais por intermédio de autoridades quecobram dos estabelecimentos a garantia do direito àeducação e à saúde. É o caso também de um promotor deJustiça que, em parceria com um líder comunitário, visitouas creches da região cobrando providências no sentido deadequação dos estabelecimentos aos preceitos consagradosno Estatuto da Criança e do Adolescente, fortalecendo umareivindicação popular.

DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇAOU O CONTROLE DA PERIFERIA?

A expectativa dos militantes da democratização emrelação ao CIC deve-se às potencialidades de criação denovos arranjos institucionais que favoreçam o exercíciodo controle social nos marcos da democracia. Esse con-trole no interior do CIC, idealizado por seus criadores,exerce-se preferencialmente pela sociedade civil em rela-ção aos agentes públicos e representantes do Estado, comestes prestando contas, cumprindo metas definidas demo-craticamente e sendo avaliados na eficácia de seu traba-lho para a ampliação do acesso da população da periferiaaos direitos de cidadania.

No entanto, a análise da microfísica dos poderes emdisputa no projeto de democratização do sistema de justi-ça leva a concluir que são concretos os riscos de o CICpermanecer a serviço da divisão do trabalho de distribui-ção da justiça – lógica que caracterizou desde longa dataa intervenção do Estado brasileiro nos conflitos sociais.Significa dizer que o CIC poderá excluir os canais de par-ticipação popular, convertendo-se em instrumento de coop-tação de lideranças comunitárias para fins eleitorais. Po-derá também reduzir-se a um pequeno e precário fórum,onde se processem os conflitos classificados como semimportância, mediados por profissionais de segunda linha,com o objetivo do controle social dos moradores da pe-riferia.

NOTAS

1. O relatório completo da investigação está publicado: Haddad;Sinhoretto; Pietrocolla (2003).

2. No primeiro semestre de 2003, um novo equipamento foi implanta-do, desta vez em Francisco Morato, ampliando, assim, para cinco onúmero de CICs.

3. A equipe de pesquisa foi composta por seis pessoas: dois auxiliares(Carolina Di Fillipe e Frederico Normanha Ribeiro de Almeida), umsupervisor de campo (Alessandra Olivato), um coordenador geral(Jacqueline Sinhoretto) e dois analistas (Eneida Gonçalves de MacedoHaddad e Luci Gati Pietrocolla). O levantamento empírico ocorreu entreos meses de novembro de 2001 e junho de 2002, sendo que de feverei-ro a maio foram realizadas visitas diárias aos equipamentos para aobservação in loco.

4. O projeto foi inicialmente apresentado em 1990 ao comitê de cam-panha de Mário Covas, candidato pelo PSDB. Não tendo sido eleito,candidatou-se novamente em 1994. Ganhando as eleições, iniciou aimplementação do CIC em 1996.

5. “‘Garantia’ é uma expressão do léxico jurídico que designa qual-quer técnica normativa de tutela de um direito subjectivo. O significa-do ordinário do termo é todavia mais restrito. Por garantia entende-se,na linguagem juscivilista, uma categoria de institutos, que remontamao direito romano, destinados a assegurar o cumprimento das obriga-ções e a tutela dos correspondentes direitos patrimoniais.(...) Relati-vamente recentes são, em contrapartida, a extensão do significado de‘garantias’ e a introdução do neologismo ‘garantismo’ com referênciaàs técnicas de tutela dos direitos fundamentais, entendendo-se por ‘di-reitos fundamentais’ – em oposição aos direitos patrimoniais, como apropriedade e o crédito, que são direitos singulares, adquiridos por cadaum com exclusão dos outros – aqueles direitos universais, e como talindisponíveis e inalienáveis, que são atribuídos directamente por nor-mas jurídicas a todos, enquanto pessoas, cidadãos ou sujeitos capazesde agir: sejam esses direitos negativos, como os direitos de liberdade,a que correspondem proibições de lesão, sejam eles direitos positivos,como os direitos sociais, a que correspondem obrigações de prestaçãopor parte dos poderes públicos. O terreno sobre o qual se produziu estealargamento do significado de ‘garantias’ foi o direito penal” (Ferrajoli,2001).

6. O poder conferido ao Gabinete de Segurança Institucional nas ques-tões de segurança pública motivou vários conflitos entre o Ministérioda Justiça e o Gabinete da Presidência, sendo motivo inclusive da de-missão do Ministro José Carlos Dias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRAJOLI, L. Garantias. Revista do Ministério Público. São Paulo,ano 22, n.85, p.7-24, jan./mar. 2001.

HADDAD, E.G. de M.; SINHORETTO, J.; PIETROCOLLA, L.G. Jus-tiça e segurança na periferia de São Paulo: os centros de inte-gração da cidadania. São Paulo: Instituto Brasileiro de CiênciasCriminais, 2003.

ENEIDA GONÇALVES DE MACEDO HADDAD: Professora de Sociologia daFAAP, Coordenadora-Adjunta do Núcleo de Pesquisas do Instituto Bra-sileiro de Ciências Criminais ([email protected]).

JACQUELINE SINHORETTO: Socióloga, Bolsista de doutorado da Capes –FFLCH-USP ([email protected]).

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EM NOME DA LEI E DA ORDEM: A PROPÓSITO DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA

A

EM NOME DA LEI E DA ORDEMa propósito da política de segurança pública

Resumo: Os dilemas conjugados às estratégias e práticas utilizadas pelos órgãos de segurança para reduzir acriminalidade e melhorar a ordem pública ocupam lugar central nas reflexões deste artigo, tomando comoreferência empírica a política de segurança pública no Estado do Ceará (1987-2002).Palavras-chave: segurança pública; ordem e lei; insegurança e criminalidade.

Abstract: This article deals primarily with the dilemmas stemming from the strategies and practices used bypublic safety authorities to reduce crime and improve public order. Public safety policy in the State of Ceara(1987-2002) serves as a point of reference.Key words: public safety; law and order; insecurity and crime.

CÉSAR BARREIRA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 77-86, 2004

redemocratização do país, iniciada em 1985,embora permitindo uma consolidação e renova-ção das instituições, repôs novos dilemas refe-

rentes à implantação da lei e da ordem. Ao longo do tem-po que sucede o processo de redemocratização, as crisesde abuso de autoridade policial, o aumento da inseguran-ça e do medo nas grandes metrópoles, a violação dos di-reitos humanos e o desrespeito à cidadania atestam os li-mites da política de segurança pública do país, cujo cenárioé agravado por crises internas nos órgãos responsáveis.Estas crises se concretizam nas denúncias de envolvimentodos policiais em corrupção e práticas ilegais de implanta-ção da lei e da ordem. Se é verdade que os dilemas en-frentados na implantação da lei e da ordem ultrapassam ocampo de uma política de segurança pública, é fato recor-rente que a população continua a exigir mais ordem e se-gurança, não obstante a desconfiança que depositam nosórgãos competentes para o exercício dessa finalidade.

Os problemas ligados à área de segurança pública sãopolitizados à medida que a legitimidade dos governos épredominantemente determinada por sua capacidade demanter a ordem e uma possível “paz pública”. Em outraspalavras, a “presença” ou a “ausência” do governo são

avaliadas e mensuradas, no imaginário da população, pelacapacidade de manter a ordem e a segurança pública.

Este artigo tem como propósito analisar essas questões,tomando como referência empírica a política de seguran-ça pública no Estado do Ceará, implementada nas duasúltimas décadas. Como recorte histórico, destacam-se osgovernos de Tasso Jereissati (1987-1990), Ciro Gomes(1991-1994) e as duas gestões consecutivas de TassoJereissati (1995-2002), cujas administrações, embora nãotenham tido uma política de segurança uniforme, notabi-lizaram-se por introduzir mudanças na forma de concebere gerir as práticas policiais. Ocorreram, nesse contexto,diversas alterações na estrutura administrativa da área desegurança acompanhadas pelas substituições de seus co-mandos, visando melhorar a credibilidade dos aparelhospoliciais e a capacidade destes em oferecer maior segu-rança para a população, não obstante o aumento da vio-lência no cotidiano do Estado do Ceará, que deixa trans-parecer fissuras e fragilidades deste setor.

O estudo das transformações internas e externas da po-lítica de segurança pública ocupa uma dimensão essencialneste trabalho. As quatro gestões governamentais serãoanalisadas de forma unificada, sem apontar diferenciações

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internas. A abordagem aqui proposta busca o alcance degrandes linhas que informam as estratégias da política desegurança pública referendadas em uma prática discursiva.1

Os dilemas conjugados às estratégias e práticas utili-zadas pelos órgãos de segurança para reduzir a criminali-dade e melhorar a ordem pública ocupam lugar central nasreflexões deste artigo, que pretende analisar as proposi-ções gerais das administrações governamentais anterior-mente referidas, privilegiando as “grandes questões” nodomínio da política de segurança pública, entre as quais abusca de legitimidade e a relação entre polícia e popula-ção. Acontecimentos ocorridos no campo da segurança,nessa época, trabalharam na contramão de um processode legitimidade e moralização, apresentando momentosde crise e de conflito passíveis de serem entendidos sob ocrivo de análises sociológicas.

UMA HERANÇA... UM LEGADO...

O período inaugurado com a eleição de Tasso Jereissati,também intitulado “governo dos empresários”, tentou im-primir uma marca do “novo”, do “diferente”, destacandosobretudo um ideário de modernidade e racionalidade emsuas ações (Barreira, 2002; Lemenhe, 1998; Gondim,1998). Herdou, entretanto, um cenário político, principal-mente no campo da segurança pública, bastante desfavo-rável e inquietante. O legado de 21 anos de vigência deum regime autoritário (1964-1985) deixou, como nos de-mais Estados brasileiros, marcas problemáticas para umaefetiva instauração de um Estado de Direito, comprovan-do o fato de que a redemocratização do regime de gover-no não se dá por um “passe de mágica”, capaz de condu-zir automaticamente a democratização das instituições doEstado. Este processo é complexo e lento, representandouma espécie de “rito de passagem” de um regime autori-tário para um democrático, considerando-se que “não sepode desprezar o peso do autoritarismo social e das he-ranças deixadas pelos regimes autoritários nas agênciasencarregadas do controle repressivo da ordem pública”(Adorno, 2000:132).

O primeiro governo eleito, no Estado do Ceará, após oregime militar, enfrentou também a dificuldade da institucio-nalização das práticas democráticas em todas as esferas dopoder, uma vez que as mesmas foram enrijecidas pelo regimeautoritário, apontando para a necessidade de ser realizadauma transição no interior das instituições do Estado.

O legado autoritário aparece claramente nas práticasilegais e no uso indiscriminado da violência por parte dos

aparelhos repressivos. Corrobora também com este fato aformação do policial com lacunas profundas no campo dosdireitos humanos e no respeito à cidadania. O uso da tor-tura nas batidas policiais e nos interrogatórios aparececomo marca de continuidade de práticas habitualmenteempregadas. A tortura, que no regime autoritário era umaprática recorrente nos interrogatórios dos presos políti-cos, passou a ser um exercício freqüente nas detenções enos inquéritos envolvendo pessoas pobres, negros e de-sempregados.

Se estas práticas aparecem como um legado do regimeautoritário, os governos democráticos enfrentam o desa-fio de implementar uma política de segurança pública ca-paz de prevenir e combater a criminalidade e de manter aordem, tendo como referência os princípios do Estado deDireito.

No Ceará, o “governo dos empresários” herdou umalonga trajetória construída pelos coronéis (Virgílio Távora,César Cals e Adauto Bezerra) (Barreira, 1992a). Este ci-clo foi encerrado pelo economista Gonzaga Mota, esco-lhido a partir do denominado “pacto dos coronéis” e sacra-mentado em 1982 pelo presidente Figueiredo. Tal acordoteve como característica a partilha do poder do Estado entreos três citados coronéis (Barreira, 1996). O desfecho foia ruptura do governador Gonzaga Mota com os “arquite-tos” da combinação, surgindo no interior desta cisão onome do empresário Tasso Jereissati, filho do ex-senadorCarlos Jereissati. A luta pela hegemonia do Estado passaa ser construída no âmago de uma disputa simbólica entreo “novo” e o “antigo”, o “moderno” e o “atrasado”, o “ra-cional” e o “irracional”. O ponto de saliência deste deba-te é o alijamento das “forças do atraso”, do “tempo doscoronéis”.

O “atraso” é o lado emblemático da política de segu-rança pública caracterizada por práticas ilegais com usoindiscriminado da violência. A lei e a ordem eram manti-das, em princípio, neste tempo, com o uso da violênciafísica ilegítima como costume social produzido no cerneda ditadura, reconhecida pelo uso do “excesso de poder”.As ações repressivas tiveram como aliado o autoritaris-mo do Estado Nacional, conjugado com práticas cliente-listas e patrimonialistas do poder local. Os órgãos de se-gurança pública aparecem claramente, e sem nenhumamediação, a serviço das classes dominantes, com o avalda legalidade dada por parte do Estado. A organizaçãopolicial e seus exercícios ilegais são construídos visandoa defesa da ordem social vigente, do patrimônio privadoe da segurança das classes dominantes. No meio rural,

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EM NOME DA LEI E DA ORDEM: A PROPÓSITO DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA

práticas dessa natureza são mais socializadas na proteçãoda grande propriedade rural e no combate à organizaçãopolítica dos trabalhadores agrícolas. Na área urbana estasações aparecem na batalha contra os movimentos sociaisurbanos organizados, na postura diante dos pobres, ne-gros e favelados, configurando hábitos exercidos na con-jugação indistinta do público e do privado, com preva-lência deste último.

A ausência de procedimentos democráticos e a descon-fiança, por parte da população, do comportamento dapolícia na manutenção da ordem e da lei são dois dos prin-cipais legados negativos dos antigos governos, tendo comocunha o autoritarismo. A corrupção e a perda dos princí-pios da disciplina e da hierarquia são os vetores que nor-teiam uma avaliação interna dos órgãos de segurança, prin-cipalmente da Polícia Civil. Neste combate é que osgovernos cearenses, sob o slogan de “governo das mu-danças”, buscaram imprimir sua marca na política de se-gurança pública. Internamente, tentaram recuperar os prin-cípios da disciplina, da hierarquia e da moralidade,isolando o lado considerado “podre” dos órgãos de segu-rança, procurando reconstruir relações éticas entre supe-riores e subalternos. As relações decompostas estariam nabase das ações ilegais e de emprego de corrupção impe-rantes nos órgãos de segurança, conjugadas com relaçõescorporativas dominantes.

Para superar esta conjuntura desfavorável, principal-mente de deterioração das relações internas nos órgãosde segurança, foi escolhida uma cúpula dirigente de ori-gem externa ao Estado do Ceará e com formação policialdiferente da Polícia Civil e Militar. O delegado MoroniTorgan, gaúcho e com formação na Polícia Federal, pre-enchia os requisitos esperados, tendo como principal as-sessor o delegado Renato Torrano, conterrâneo e possui-dor das mesmas características profissionais do secretáriode Segurança Pública na condição de delegado de carrei-ra da Polícia Federal. As escolhas de profissionais forados quadros locais produziu um grande mal-estar, princi-palmente no âmbito da Polícia Civil, tendo como máxi-ma: “O Estado do Ceará e os seus órgãos de segurançapossuem homens capazes de ficarem na frente de sua po-lítica de segurança pública”. O embate estava estabeleci-do, aparecendo claramente o objetivo do Governo, queera o de romper as amarras pessoais imperantes nos ór-gãos de segurança do Estado, caracterizadas pela defesade laços corporativos.

Externamente, as administrações cearenses buscavamrecuperar credibilidade e confiança junto à população por

meio de uma prática mais eficiente de combate à crimina-lidade e de “implantação da lei e da ordem”. No âmbitodo aparato policial, discursos baseados na racionalidadee modernidade eram enfatizados. O medo e a insegurançaeram combatidos em discursos e ações, que visavam mu-danças nas estratégias de policiamento. Estas receberamnova roupagem justificada na idéia de que os órgãos desegurança têm que acompanhar a “sofisticação” do mun-do do crime, mostrando-se mais modernos e mais bemequipados, com presença legitimada forte nos meios decomunicação. É neste contexto que surgem programas es-trategicamente preparados, objetivando recuperar o con-trole estatal do crime.

Em 1987, a Secretaria de Segurança Pública organi-zou uma campanha para acabar com a pistolagem no Es-tado do Ceará, cujo esforço estava carregado de simbo-lismo político e social. Construíram-se estratégiasdiscursivas de negação do “antigo” e do “atrasado”, combase na afirmação do “novo”, contrário ao momento emque o crime sobrepunha-se à lei do Estado. Em uma “novaordem social” que estava sendo implantantada, no Estadoo crime de pistolagem não podia ter espaço, sendo consi-derado uma atitude do passado, do “tempo dos coronéis”.Neste embate, eram identificadas as “forças do atraso”,corporificando no interior do campo político as figurasdos principais mandantes dos “crimes por encomenda”.A campanha contra a pistolagem não conferiu apenasvisibilidade ao uso de ilegalidade, tentando reprimir eextinguir esta ação. Anunciou-se um novo momento quan-do o Estado passou a ter o controle sobre o crime, negan-do a existência de um “poder paralelo” mantido, em par-te, pelos grandes proprietários de terra conjugados com“políticos tradicionais”. Diariamente foram estampadosnos jornais de Fortaleza nomes de “perigosos pistoleiros”,bem como de mandantes pertencentes a “importantes fa-mílias” do Estado (Barreira, 1992a).

As inovações estratégicas do plano de segurança parao estado do Ceará foram paulatinamente traçadas e cons-truídas ao longo desta campanha, notabilizando-se pelabusca de neutralidade e independência diante do podereconômico e político, quebrando as amarras com “açõesilegais” dos órgãos de segurança pública ligadas aos se-tores dominantes.

A campanha contra a pistolagem, tal como ficou co-nhecida nos meios de comunicação de massa, não só pos-sibilitou maior visão pública das ações e usos de combateao crime, como também trouxe dividendos políticos.Moroni Torgan e Renato Torrano, principalmente o pri-

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meiro, construíram capital político que foi utilizado emcampanhas eleitorais. Não obstante serem originários deoutro Estado e também pertencentes a uma categoria pro-fissional pouco legitimada para o exercício de função derepresentação na esfera do poder (Barreira, 1998b), con-seguiram transformar a segurança em emblema de cam-panha, mesmo que, nas pesquisas de opinião pública, ospoliciais, juntamente com os homens políticos, fossemapontados como setores profissionais “menos confiáveis”.

MÁCULAS E TRANSPARÊNCIAS

Alguns “escândalos” afetaram interna e externamenteos órgãos de segurança pública do Estado do Ceará nosúltimos 15 anos, exigindo por parte da opinião públicarespostas imediatas. Tais eventos macularam dois dos prin-cipais eixos de mudança da política de segurança: amoralização e a modernização. Estes acontecimentos in-ternos e externos promoveram mudanças na estrutura in-terna da Segurança Pública, buscando novos padrões nasoperações e ações policiais. As crises, como momento ricoe revelador dos problemas sociológicos, deixam trans-parecer fissuras no tecido social, tornando públicas ques-tões há muito submersas nas instituições.

Em 12 de abril de 1993, foi flagrada, numa dependên-cia de delegacia da polícia, a tortura executada por poli-ciais civis no pedreiro Antônio Ferreira Braga. Este fatofoi constatado por delegados de entidades de direitos hu-manos, pela imprensa cearense, parlamentares e advoga-dos da OAB-CE. “Eles haviam recebido uma denúnciaanônima através de telefone minutos antes e seguiram paraa delegacia, onde encontraram o preso deitado no chão,com as mãos algemadas e os pulsos protegidos por peda-ços de borracha (para evitar marcas), despido e envolvi-do com um carpete amarrado a altura dos joelhos para quenão se soltasse. Ao lado dele havia os instrumentos detortura: fios elétricos e uma palmatória” (O Povo, 13/04/1993). Esta ação tinha como objetivo obter a confissãodo possível furto de um televisor. O ato de tortura tevegrande publicidade na imprensa local e nacional, comdocumentação fotográfica que constitui prova irrefutávelda ação. Este fato ocorreu no período do Governo de CiroGomes, quando estava à frente da Secretaria de Seguran-ça Pública o delegado Francisco Crisóstomo.2

A tortura mantém-se como costume do passado, questãodestacada pelo então deputado do PT Mário Mamede: “acomissão deparou-se com um quadro de violência, dedegradação do ser humano, que nos remete aos momentos

mais truculentos do regime militar” (O Povo, 14/04/1993).As denúncias, por parte das entidades de defesa dos direitoshumanos, avolumaram-se. A grande marca é que a torturapassou a ser divulgada como uma ação recorrente nasdelegacias, principalmente naquelas situadas na periferiade Fortaleza, tendo como principais vítimas os pobres, osnegros e os desempregados. Como disse o pedreiroAntônio Braga, “eu tive sorte, porque sei que outros presossofrem isso todos os dias e ninguém descobre. E quandose é pobre e mora na favela, os policiais chegam dizendoque a gente é marginal” (O Povo, 14/04/1993).

A discussão sobre a legalidade ou a ilegalidade destecomportamento sórdido nos interrogatórios passou a fa-zer parte da “ordem do dia”. No horizonte deste debate,está presente não só o respeito aos direitos humanos, mastambém uma questão político-estratégica sobre qual o tra-tamento que um preso deve receber em uma instituição desegurança pública do Estado, detentor do monopólio daforça legal. Em outras palavras, como deve ser obtida aconfissão de um possível “suspeito”. É importante frisarque, neste embate, passam a ser reproduzidas categoriasde personagens negadas socialmente, como, por exemplo:“marginal”, “suspeito”, “bandido”, “desordeiro”, “elemen-to”, etc. No universo simbólico de uma boa parte da po-pulação, aparece claramente a distinção entre cidadãospossuidores de direito e “não-cidadãos” destituídos dedireitos. A disputa passa a ganhar forma não só entre apopulação, mas também no âmbito da polícia, validandoo mote que diz que “bandido tem que ser tratado no tapa”.

As entidades de defesa dos direitos humanos e algunsparlamentares de “partidos de esquerda” que constroemum discurso diferente do anteriormente descrito, desta-cando o respeito à cidadania e aos direitos humanos, pas-saram a ser acusados de “só defenderem bandidos”, re-forçando a impunidade e as taxas de criminalidade. Nesteínterim, entretanto, ganharam espaço alguns princípios deum Estado democrático de Direito. Os órgãos de segu-rança pública, por exemplo, passaram a ser vistos comoresponsáveis pelos direitos de todo cidadão que é detidocomo “suspeito” ou para uma averiguação.

O fato flagrado trouxe também à tona as péssimas con-dições das delegacias do Estado, tendo destaque a situa-ção dos espaços de detenção. Estes são geralmente locaisque não possuem as mínimas condições de salubridade,sem ventilação e entrada de luz solar. Também o númerode detidos por aposento está sempre acima do comportável,havendo delegacias que acomodariam quatro presos echegam a ter quase 40 homens em uma cela. A situação é

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conjugada a outros agravantes, como o fato de que a ali-mentação dos detidos é, geralmente, fornecida pelas suasfamílias, que não possuem condições econômicas satisfa-tórias para tanto. Um dado preocupante, para a popula-ção, e que produz intranqüilidade, principalmente nosbairros periféricos, é o número crescente de homens deti-dos que fogem dos cárceres das delegacias. Estas fugasdecorrem das situações descritas anteriormente acresci-das da falta de segurança dos cárceres das delegacias.

Por último, é importante destacar que, se as detençõesocorrem geralmente fora de uma base de legalidade jurí-dica, estas são agravadas pelo tempo de permanência dospresos nas delegacias, havendo casos de estes ficarem maisde seis meses, sem que o inquérito policial seja concluí-do. As situações deixam transparecer a responsabilidade,ou co-responsabilidade, do Poder Executivo no quadro dasegurança pública.

Outro fato que merece ser mencionado ocorreu no dia12 de dezembro de 1997, configurando uma “operaçãopolicial desastrosa”. O Movimento dos Sem Terra – MSTestava acampado na Av. Bezerra de Menezes, em Forta-leza, em frente à Secretaria do Desenvolvimento Rural doEstado, reivindicando terra e uma melhor política de cu-nho agrícola. Concretamente eles solicitavam o cumpri-mento de algumas promessas do Governo, como implan-tação de projetos de infra-estrutura e produção, geraçãode empregos, liberação de recursos para o pagamento demão-de-obra, etc. Durante a madrugada, a Polícia Mili-tar, usando de força física, cercou o acampamento, impe-dindo qualquer contato dos trabalhadores com a popula-ção. A área foi totalmente isolada com filas duplas depoliciais, criando um cordão de isolamento constituído porcerca de mil policiais. Em poucos minutos foi preparadaquase uma operação de guerra, com a participação doBatalhão de Choque, Gate, Casa Militar, Corpo de Bom-beiros, Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Pra-ças, Polícia Feminina, 2a Seção da Polícia Militar, Quar-tel do Comando Geral, ambulâncias e, inclusive, umrabecão do IML. Esta operação visava o enfraquecimen-to do movimento e o retorno imediato dos trabalhadoresaos seus municípios. Para o deputado João Alfredo (PT),“a repressão aos acampados tinha o objetivo ‘claro’ deimpedir a manifestação dos trabalhadores ligados ao MSTdurante a inauguração do Fórum Clóvis Beviláqua (...)Estava tudo preparado para fazer um despejo violento.Acontece que a imprensa veio, os parlamentares vieram eeles não quiseram assumir o ônus do desgaste. Ia ser ummassacre” (O Povo, 13/04/1997).

O “direito de ir e vir”, que faz parte dos princípios bá-sicos dos direitos humanos, estava negado. O abastecimen-to de água e alimento que estava sendo providenciado porparlamentares, entidades de direitos humanos e popula-res foi cerceado. O direito a beber e comer estava interdi-to. O jurista Walmir Pontes, referindo-se a esta situação,diz que a “Constituição Federal assegura ao cidadão odireito de manifestação em área pública e o direito de ir evir. A presença da polícia só se justifica para evitar trans-gressões da ordem. Não pode impedir que as pessoas selocomovam nem que deixem de alimentar-se. Se eles im-pediram a entrada de alimentos e água não só é grave, éassustador” (O Povo, 13/04/1997).

A operação militar que representou um excesso de po-der, pautada no uso de uma violência física inexplicável,pretensamente legitimada pelo Estado, deixou manifestan-tes não apenas aterrorizados, mas também impotentes.Trata-se de uma ação que não é específica das práticasinstitucionais do Estado do Ceará. Santos (1997:162),analisando a organização policial e a defesa da ordemsocial vigente, acentua que, “além do exercício da violên-cia física legítima, de ações visando a sedimentação deum consenso social, nele está contida a virtualidade daviolência física ilegítima enquanto prática social que im-plica a possibilidade do excesso de poder”. Nesta opera-ção, o consenso social não foi sedimentado, reforçando aincapacidade dos órgãos de segurança de atuarem rela-cionados com os movimentos sociais organizados e comsuas demandas. Na ausência da fala, da palavra, como sereporta Hannah Arendt, aparece a violência física abertae sem mediação.

Nesta operação, como em todas as ações nas quais há“excesso de violência”, o lugar da autoridade foi subtraí-do, construindo-se uma transferência de responsabilida-de e de culpabilidade que mantém incólume o próprioGoverno do Estado.3 A explicação dada pelos policiaispara a ação era a de que “estamos cumprindo ordens su-periores”. O comando da Polícia Militar, preocupado coma opinião pública, eximiu-se da responsabilidade do “ex-cesso de violência” dos subalternos, ou “transgressão dadisciplina militar”, ficando a população mais uma vezcom uma sensação preocupante de que os policiais ain-da “agem por instinto”. Trata-se de uma reação que ca-minha na direção oposta ao discurso do Governo, que éa busca de previsibilidade e de racionalidade nas açõespoliciais.

A legitimidade do Governo, em grande parte medidapor sua capacidade de manter a ordem, saiu bastante afe-

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tada. Para Bayley (2001:17), “a manutenção da ordem é afunção essencial do governo. Não apenas a própria legiti-midade do governo é em grande parte determinada porsua capacidade de manter a ordem, mas também a ordemfunciona como critério para se determinar se existe ou nãogoverno. Tanto conceitual quanto funcionalmente, governoe ordem andam juntos. (...) As atividades policiais tam-bém determinam os limites da liberdade numa sociedadeorganizada, algo essencial para se determinar a reputaçãode um governo. Embora governos imponham restriçõesde outras maneiras, a maneira pela qual eles mantêm aordem certamente afeta de modo direto a liberdade real”.Nesta operação militar, a forma como foi mantida a or-dem incomodou diretamente a liberdade real, pondo emxeque os detentores do monopólio do uso legítimo da vio-lência física. Entretanto, como opina Wieviorka (1997:19),“é cada vez mais difícil para os Estados assumirem suasfunções clássicas. O monopólio legítimo da violência fí-sica parece atomizado e, na prática, a célebre fórmulaweberiana parece cada vez menos adaptada às realidadescontemporâneas”.

Por último, é lícito dizer que, nesta operação, a rela-ção entre o Governo do Estado e os movimentos sociaisorganizados explicitou-se na ausência do diálogo, centra-lização das ações, autoritarismo, etc. No imaginário sim-bólico da população, a ação desencadeou-se não apenascontra os trabalhadores rurais, mas principalmente a fa-vor dos proprietários de terra, ou em defesa do patrimô-nio privado. O poder da polícia aparece mais uma vezrespondendo principalmente pela segurança das classesdominantes e não em busca da implantação de um con-senso social, reforçando a assertiva de que, no “cômputogeral, o poder da polícia parece responder mais às neces-sidades de segurança da elite do que do público em geral”(Bayley: 2001:114).

O terceiro fato ou “escândalo” afetou diretamente umdos pilares de mudança da imagem externa dos órgãos desegurança pública do Estado: o eixo da moralização in-terna. No dia 20 de janeiro de 1997, foi preso com umcarro roubado o agente da Polícia Civil João Alves deFrança. Após sua prisão, o acusado fez diversas denún-cias de atos criminosos com a participação de policiaiscivis e militares, como também de parte da cúpula da se-gurança pública (Brasil, 2000). Estas denúncias, que apon-tavam a participação dos órgãos de segurança pública empráticas ilícitas, atingiam pessoas importantes deste do-mínio, como, por exemplo, Francisco Quintino Farias, ex-secretário de Segurança Pública do Governo Ciro Gomes.

O escândalo foi denominado “Caso França”. Com as de-núncias que vieram à tona, conjugadas com práticas cri-minosas (já tornadas públicas anteriormente pelas enti-dades de direitos humanos e por parlamentares, queenvolviam policiais em tráfico de drogas, prostituição ecrimes de corrupção e extorsão), o quadro de moralizaçãodo domínio da segurança pública foi profundamente atin-gido em sua legitimidade.

Estas denúncias, legitimadas com o “argumento de au-toridade” de quem as fez, tornaram cristalinamente visí-veis as ações ilícitas seculares que envolvem policiais noEstado. Elas não só atingiram a moral dos órgãos de se-gurança como também aumentaram o grau de medo e in-segurança da população, ficando no ar a pergunta: “emquem confiamos?”

O “Caso França” ensejou o estabelecimento de uma“Comissão Especial” para apurar e avaliar as denúncias.Após a divulgação de um relatório parcial elaborado portal comissão, o governador Tasso Jereissati iniciou pro-fundas alterações nos órgãos de segurança. A grande mu-dança foi a substituição da Secretaria de Segurança pelaSecretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania –SSPDC. A modificação do nome está carregada de sim-bolismo, reforçado pela nomeação de um general-de-di-visão do Exército para dirigir a Secretaria. Novamente umgaúcho – o general Cândido Vargas Freire – veio assumiro comando máximo dos órgãos de segurança pública. EstaSecretaria surgiu com maior peso político, integrada di-retamente à “estrutura organizacional da Governadoria doEstado, com responsabilidade de coordenar, controlar,integrar e, principalmente, de unificar as atividades desegurança pública desenvolvidas pela Polícia Civil, pelaPolícia Militar, pelo Corpo de Bombeiros e pela Corre-gedoria dos órgãos de Segurança Pública e Defesa da Ci-dadania” (Brasil, 2000:74).

A unificação das atividades dos diferentes setores quecompõem o sistema de Segurança Pública do Estado e,principalmente, as ações das Polícias Civil e Militar pas-saram a ser um dos grandes objetivos da nova Secretaria.As grandes alterações, entretanto, ocorreram não na uni-ficação das polícias civil e militar, mas na integração dealguns trabalhos. A palavra “unificação” faz parte de umvocabulário execrado pelas corporações policiais, nega-do por princípio ou por uma ideologia corporativa, mas,também, pela ausência de uma clara política de unifica-ção. Nesta indefinida política de unificação, destaca-se acriação da Corregedoria Geral dos Órgãos de SegurançaPública e Defesa da Cidadania – CGOSPDC, tendo à frente

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o juiz aposentado Helder Mesquita. A Corregedoria temcomo grande meta moralizar internamente os órgãos desegurança, objetivando como competência básica apuraros atos ilícitos penais e as transgressões funcionais porparte dos três setores (Polícia Militar, Polícia Civil e Bom-beiros Militares), realizar inspeções administrativas nosestabelecimentos e repartições destes setores e procederaos serviços de correição nos procedimentos realizadospela Polícia Civil e, principalmente, manter a observân-cia da hierarquia, da disciplina e da probidade funcionais.Estas competências, ou a reafirmação delas, vêm direta-mente colocar-se como um escudo de proteção contra asdenúncias do “Caso França”.

As mudanças das estratégias de atuação dos órgãos desegurança não ficaram restritas ao domínio técnico-admi-nistrativo, haja vista que o “Caso França” trouxe outrosdividendos. Em maio de 1997, três meses após este rui-doso acontecimento, o Governo do Estado contratou a FirstSecurity Consulting, tendo à frente William Bratton, con-forme referido em parte anterior deste artigo. A consulto-ria propôs a criação de um projeto de segurança públicacom nove distritos-modelo para Fortaleza, partindo dasnove áreas militares que existem, com suas nove compa-nhias de polícia militar. “O eixo central do projeto DM éa reformulação da sistemática de trabalho das polícias atra-vés da unificação das ações desenvolvidas pela PM e pelaPC, com o objetivo de racionalizar e estreitar a colabora-ção e o apoio entre as duas polícias no combate à crimi-nalidade” (Brasil, 2000:230). Os distritos-modelo queestão sendo paulatinamente instalados tiveram como umdos principais ganhos no campo das operações estratégi-cas a integração dos trabalhos das Polícias Militar e Civilnas delegacias, através do uso dos policiais militares emserviço nas delegacias.

No âmbito dessas mudanças também é destaque a bus-ca de parceria entre a prática policial e a população, prin-cipalmente com as lideranças populares interessadas naconstrução de um “policiamento comunitário”. Neste pro-jeto, tem obtido realce a criação dos conselhos comunitá-rios que vieram operacionalizar a mudança ou o acrésci-mo de “defesa da cidadania” no nome da Secretaria deSegurança Pública.

Os três fatos (a tortura do pedreiro, a ação contra o MSTe o “Caso França”) deixaram transparecer problemas cru-ciais da política de segurança pública, que estavam sub-mersos e empedernidos. Também anunciaram as exigênciasde um novo momento de estratégia de policiamento: orespeito aos direitos humanos e às liberdades democráticas.

CAMPO MINADO DE ACEITAÇÃO ENEGAÇÃO SOCIAL

Neste campo minado de aceitação e negação social, emque a aplicação de lei e de ordem é exigida, num misto decoerção e controle, novas demandas públicas surgem emoutro momento sociopolítico. Concretiza claramente o fatode que “o que o público realmente leva até a polícia comopedido de serviço depende não só do que eles sentem queprecisam, mas do que eles acreditam que a polícia estáinteressada em tratar” (Bayley 2001:152). É importantedestacar a idéia de que as demandas públicas refletemdiretamente as condições sociais e econômicas da popu-lação. Neste contexto é que são pautadas as grandes li-nhas de atuação e de relação entre polícia-sociedade, po-lícia-população e polícia-comunidade.4

A busca de “parceria” e de participação da comu-nidade local nos trabalhos de segurança pública daSSPDC, coordenados pela Diretoria da Cidadania destaSecretaria, concretizou-se na criação de ConselhosComunitários de Defesa Social – CCDS. Estes conselhosseriam o elo de ligação entre a comunidade e os órgãosde segurança, tendo como principal objetivo “participarativamente na solução dos problemas de segurança dobairro, apoiando e auxiliando a SSPDC” (Ceará, s/d).A palavra de ordem destes conselhos é incentivar o bomrelacionamento da comunidade e das lideranças com aPolícia Militar, a Polícia Civil e o Corpo de Bombeiros.A busca deste relacionamento se, por um lado, indica aconquista e o reforço de laços de confiança com apopulação, por outro, representa uma racionalidade dotrabalho, envolvendo a comunidade na missão policial.Este envolvimento ocorreria por um trabalho de reci-procidade nas denúncias dos atos ilícitos e criminosos,apontando os locais tidos como “perigosos e violentos”e, inclusive, propondo o tipo de policiamento maiseficaz para o bairro (motopatrulha, radiopatrulha, cava-laria a pé e outros). Na prática, entretanto, os trabalhosdos conselhos estão em grande parte reduzidos “às de-núncias” que ocorrem nas reuniões, realizadas mensal-mente, envolvendo comunidade e setores da segurançapública, bem como no momento da ocorrência de um“ato ilícito”. O conhecimento da população local sobrea área física e, principalmente, como as relações sociaissão construídas e constituídas representa o mercado detroca entre comunidade e polícia, concretizando umarelação de reciprocidade que redefine e reorienta otrabalho da polícia.

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A Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cida-dania divulga um total de quase 700 conselhos organiza-dos no Estado do Ceará até o início de 2002. Em janeirode 2001, havia 664 conselhos comunitários, assim distri-buídos: 70 em Fortaleza; 421 na Região Metropolitana deFortaleza; e 173 no restante do Estado. Estes dados de-monstram maior sensibilidade para a criação destes con-selhos nos municípios-limítrofes com Fortaleza e que in-cluem Caucaia e Maracanaú, considerados pela imprensae pelos órgãos de segurança os municípios mais violentosdo Estado. Esta sensibilidade decorre não apenas das pre-cárias condições econômicas destas áreas, mas tambémda vulnerabilidade e insegurança em que vivem estas po-pulações, corroborando a idéia de que, com exceção daslocalidades consideradas nobres de Fortaleza e das áreaslitorâneas, regiões de turismo e de lazer, as áreas periféri-cas estão, em grande parte, descobertas, faltando, porexemplo, viaturas para policiamento e um maior efetivopolicial.

O secretário de Segurança, general Cândido VargasFreire, parafraseando um slogan de campanha políticade uma candidata de um bairro periférico de Fortaleza(Barreira, I., 1998) disse que o “conselho é uma oportuni-dade de o cidadão ter vez e voz, dar sugestões, reivindi-car” (O Povo, 12/01/2001). Neste discurso, aparece umapelo ao concurso do cidadão, possuidor de reivindica-ções, como também a necessidade de atingir o objetivoprimordial da nova política, que é o fortalecimento doslaços entre o cidadão e os órgãos de segurança pública.Em outro momento, o secretário reafirmou os novos ob-jetivos das operações policiais, dentro das metas de umasegurança “para o povo e com o povo”, declarando que é“preciso buscarmos junto ao cidadão as suas necessida-des, sugestões e críticas para melhorar nossa atuação. Nãoadiantaríamos estarmos bem equipados – o que não é ocaso – se não contássemos com essa parceria com a co-munidade” (O Povo, 13/12/98).

Esta recente estratégia de policiamento seria, em par-te, uma volta para a “polícia comunitária”. Entretanto, nosobjetivos atuais, a comunidade teria um papel mais ativodo que o próprio policial, uma vez que as operações desegurança partiriam da demanda e das sugestões da co-munidade.

Um dado preocupante é que a atuação dos ConselhosComunitários de Defesa Social passam a ocupar, em par-te, um espaço dos “serviços de inteligência”, os quais nãofuncionam a contento. Esta atuação apareceria no mapea-mento dos “pontos de intranqüilidade social”, os denomi-

nados “pontos críticos de criminalidade”, inclusive apon-tando o tipo de estratégia policial mais eficaz. O apoioque a “comunidade” pode oferecer, que parte de um saberforjado, simplesmente, no cotidiano das experiências vi-vidas e não metódico e cientificamente construído, podeser bastante negativo, reforçando alguns estereótipos nocampo da violência. Também o apoio da “comunidade”pode não servir para indicar soluções mais racionais eeficientes de combate à criminalidade. Os estereótiposreforçariam as segmentações sociais e aumentariam asintolerâncias diante do diferente e do desconhecido. Asmarcas das classificações sociais, que representam paraBourdieu (1990) uma violência simbólica, aumentam ofosso das distinções sociais, distanciando de um possívelconsenso ou de um equilíbrio social.

As novas exigências sociais e as demandas públicas quedecorrem das condições socioeconômicas das populaçõessituam a práxis policial em um complexo campo de atua-ção e de atribuições. A polícia atual, principalmente a queage em áreas periféricas urbanas, é cada vez mais exigidaa trabalhar em assuntos não criminais, como, por exem-plo, desavenças entre casais, brigas de vizinhos, proble-mas de adolescentes, uso de bebidas alcoólicas, etc. Estasdemandas exigem maior conhecimento de práticas e com-portamentos sociais, como também forçam o policial a termais sensibilidade diante da aplicação da lei.

Um delegado da Polícia retrata bem este quadro, quandodiz que “hoje nós trabalhamos quase que como assistentesocial. A maior parte dos problemas que nos procurampoderia ser resolvido por uma assistente social. Nós per-demos muito tempo com essas coisas e não temos tempode atacar os problemas de criminalidade. E tem mais, se agente não fizer nada para resolver estes problemas a po-pulação não acredita mais na gente. E tem outro proble-ma, tem muitos casos que seriam resolvidos só por umaconselhamento. Por exemplo, um bêbado que estava cau-sando desordem. Mas a gente tem que fazer um Boletimde Ocorrência – BO e depois prender o [desordeiro] so-mente para satisfazer a população”. A importância daoperação policial, neste sentido, é dada por práticas tra-dicionais já legitimadas socialmente, sendo o uso da for-ça física, por meio da coerção e da punição, autorizadocoletivamente. Neste mesmo domínio, aparece a deman-da da população por “prestação de serviço” para os poli-ciais, com um forte apelo popular. A “prestação de servi-ço” aparece no mesmo plano (para o povo) da aplicaçãoda lei e manutenção da ordem pública. Como diz Bayley(2001:169), “o dilema para a polícia nas sociedades ur-

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banas industrializadas é que ela tem que desempenhar umpapel preponderante de prestação de serviços exatamenteao mesmo tempo em que a necessidade da aplicação dalei parece estar aumentando”.

Uma polícia mais próxima da comunidade, fazendo eaprendendo com ela as estratégias de policiamento (dentrode um quadro idealizado pelos órgãos de segurança),necessariamente passará por estas demandas, que acar-retam uma maior complexidade nos serviços de segurançapública. Outra ordem de problema é que essa polícia nãoanularia os conflitos inexoráveis entre a implantação daordem, da lei e os ditames de uma sociedade democrática.

As novas estratégias de policiamento têm, no seuhorizonte, uma idealização baseada na existência de uma“polícia para o povo e com o povo”. A idealização é cons-truída em um universo de simbolismos e práticas sociaisque, por um lado, visam a conquista de legitimidade,confiança e aceitação social e, por outro, buscam racio-nalidade, eficiência e competência no trabalho policial. JohnBenyon, no prefácio do livro de Jean-Claude Monet (2001),escreve que a “participação dos cidadãos na polícia é, paraesta, um fator de eficácia e de legitimidade. De um modogeral, ela é um valor chave da cultura democrática”.

ALGUNS PONTOS, UMA REFLEXÃO

A atuação dos órgãos de segurança no período anali-sado, tendo como parâmetros os princípios da moralizaçãointerna e de uma maior eficiência, teve como objetivo adiminuição da criminalidade. Apontou também problemasgerais existentes nos órgãos de segurança interessados emfixar linhas de ação e traçar uma nova estratégia policial.O preocupante e inquietante é que estas linhas gerais deação não fizeram diminuir as taxas de criminalidade noEstado, como também não modificaram o cenário de medoe de insegurança que impera na sociedade. O quadro éagravado pelo fato de que o descrédito em relação à polí-cia diante da opinião pública não se reduziu. Esta má re-putação decorre não só do cenário de medo e inseguran-ça, mas também das máculas, analisadas neste trabalho,que abriram fissuras na imagem dos órgãos de segurança.Nesta complexa engrenagem, fica cada vez mais evidenteque a fomentação de uma “imagem positiva” não é cons-truída somente por uma política discursiva, devendo estaser conjugada por práticas correspondentes.

Um dado importante na construção desta imagem é apercepção, por parte de alguns setores, dos órgãos de se-gurança, da necessidade e da importância da conquista de

uma legitimidade social. Esta aquisição atinge, principal-mente, um setor dos escalões superiores, não resvalando,normalmente, para os “setores das pontas” – os policiais– que mantêm contato direto com a população. Na linhade frente desta conquista encontram-se os “novos delega-dos” que se mostram abertos às novas demandas sociais etentam construir um discurso na contramão do enfoquemilitar, legado dos anos de vigência do regime autoritá-rio, que é dado à segurança pública.

A conquista desta base de legitimidade está passandonão só por uma nova estratégia de policiamento, mas tam-bém por uma “mudança de mentalidade”, que envolvenecessariamente uma formação mais humanista dos con-tingentes profissionais. Tal formação, que não deve resu-mir-se à melhor capacitação técnica, dá ênfase aos princí-pios das ciências humanas de respeito à diferença e aosvalores socioculturais. Obtêm cada vez mais espaço a for-mação e a qualificação dos profissionais da área de segu-rança no domínio dos direitos humanos e no respeito àcidadania. No espaço de formação e qualificação, as uni-versidades, como depositárias dos conhecimentos huma-nistas, são as grandes parceiras deste projeto, caminhan-do concomitante à linha de preocupação crescente dapopulação com os direitos humanos e os princípios de-mocráticos. A democracia e, especificamente, as estraté-gias utilizadas para a manutenção da ordem pública de-pendem diretamente da qualidade de sua polícia.

O embate entre direitos humanos e segurança públicatem sido um dos pontos cruciais na efetiva instauração doEstado de Direito. É preocupante, entretanto, o fato deque, para uma boa parcela da população e dos responsá-veis pela segurança pública, os defensores dos direitos hu-manos preservam, em última instância, a impunidade do“criminoso” e se opõem, sistematicamente, a todo esfor-ço de contenção da criminalidade. Por outro lado, estesrepresentantes tentam mostrar que não defendem a impu-nidade, mas sim a competência do sistema de segurança,usando a força segundo as necessidades e trabalhandodentro dos princípios da lei. A competência dos órgãosde segurança estaria diretamente ligada ao respeito ao ci-dadão possuidor de direitos.

No panorama de medo e insegurança, entretanto, o usoda força é não só legitimado, como também cada vez maissolicitado e exigido. A demanda por mais força é maispresente na periferia da cidade de Fortaleza, em funçãoda insegurança e vulnerabilidade em que vive a popula-ção. Este comportamento reproduz certa ambigüidade, namedida em que para este setor social existe uma consciên-

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cia de que a política de segurança responde mais aos an-seios das classes dominantes, sendo os pobres, os negrose os habitantes das periferias os que mais sofrem com asações policiais. Entretanto, o peso inercial da tradição, quenão decorre somente dos órgãos de segurança, mas tam-bém da sociedade, dificulta em grande parte as mudançasou inovações nas práticas policiais. A construção, no do-mínio da segurança, de categorias e conceitos, provavel-mente, torna-se mais complexa, uma vez que envolve cons-tante e permanente julgamento moral. Distúrbio, desordem,motim, bandido, desordeiro – seriam bons exemplos, nestaconstrução de saberes não estereotipados e na busca deuma melhor compreensão dos problemas sociais.

Finalmente, é importante destacar o fato de que, nosúltimos anos, houve uma mudança, por parte dos acadê-micos, em relação a uma postura de descaso sobre o pa-pel do sistema policial. Este posicionamento recente si-tua no centro do debate acadêmico o sistema policial nointerior dos princípios do Estado democrático de Direito,trazendo à evidência os Direitos Humanos e a Cidadania.Nos embates políticos tal temática ganha novos e estimu-lantes elementos e em “momentos eleitorais” é semprerealimentada a idéia de que, como a polícia, a política tam-bém se alimenta do tema de insegurança e de violência.

NOTAS

Este artigo é resultado, em grande parte, de uma reflexão coletiva daqual participaram Domingos Abreu, Glaucíria Brasil e RosemaryAlmeida, tendo como suporte a pesquisa sobre a Política de Seguran-ça Pública do Estado do Ceará, realizada pelo Laboratório de Estudosda Violência da Universidade Federal do Ceará, com apoio da Funda-ção Ford.

1. A política de segurança pública, ao lado da política educacional eda de saúde, passa a ser o ponto nevrálgico, considerado o “calcanharde Aquiles” destes governos. Estes tentam com discursos e práticasamenizar esta situação no âmbito da segurança pública, contratando,inclusive, no último período Tasso, uma consultoria externa – a FirstSecurity Consurity –, que tem como principal acionista e ideólogo oex-chefe de polícia da cidade de Nova York, William Bratton, queganhou notoriedade com o slogan “tolerância zero”.

2. O delegado da Polícia Civil, Francisco Crisóstomo, conhecido du-rante a “Campanha para acabar com a pistolagem no Estado” como oprincipal “caçador de pistoleiros”, foi nomeado secretário de SegurançaPública no Governo Ciro Gomes, tendo perdido o cargo após ter feitoalguns comentários, “não politicamente corretos”, a respeito das enti-dades de direitos humanos.

3. A prática de transferência de responsabilidades, mantidas as devi-das proporções, foi a tônica do chamado massacre de Eldorado dosCarajás (Barreira, 2000).

4. Neste trabalho, não foi dado nenhum tratamento rigoroso aos con-ceitos de população e comunidade, usando-se, em boa parte, palavrassinônimas, delimitando simplesmente uma área física da cidade, cir-cunscrita a um bairro ou a uma parte deste.

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CÉSAR BARREIRA: Professor em Sociologia e Coordenador do Laboratóriode Estudos da Violência da UFC, Pesquisador do CNPq/Pronex.

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A POLÍTICA DO CÁRCERE DURO: BANGU 1

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A POLÍTICA DO CÁRCERE DUROBangu 1

Resumo: A trajetória da criação e da aplicação do Regime Disciplinar Especial de Segurança no PresídioBangu 1, no Rio de Janeiro, é analisada criticamente. Em resistência a essa política, ocorreram depredações eparalisações na cidade em 2002 e 2003. Essa desordem sociopolítica é também diagnosticada no estudo.Palavras-chave: política penitenciária; crime organizado; segurança pública.

Abstract: The history of the creation and application of the Special Security Disciplinary Regime in the Bangu1 Prison, in Rio de Janeiro is analyzed with a critical eye. Vandalism and shutdowns were ordered in that cityin 2002 and 2003 in protest of this policy. The resulting socio-political disorder is also examined in this study.Key words: penitentiary policy; organized crime; public safety.

CESAR CALDEIRA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 87-102, 2004

ste estudo apresenta a história do presente1 deum mecanismo de controle prisional: a “políticade cárcere duro”2 no Estado do Rio de Janeiro.

Trata-se do Regime Disciplinar Especial de Segurança –RDES aplicado aos líderes e integrantes das facções cri-minosas, bem como aos presos que venham a transgredir,de forma grave, as regras previstas na Lei de ExecuçãoPenal e no Regulamento Penitenciário. O problema quese discute aqui é o da construção e da aplicação dessapolítica de controle e castigo. Em resistência a essa polí-tica, ocorreram depredações e paralisações na cidade doRio de Janeiro em 2002 e 2003. Pretende-se também fa-zer um diagnóstico dessa desordem sociopolítica.

A hipótese central de trabalho é a seguinte. A políticapenitenciária é condicionada por dois fatores interligados,que se condicionam reciprocamente: os controles formais,autorizados pela legislação, que devem orientar a atuaçãodas agências do sistema penal, e controles sociais infor-mais, que estão enraizados nas atividades e interaçõescotidianas da sociedade civil. As instituições formais dosistema penal, em particular a política penitenciária, rea-gem aos problemas e se adaptam às novas circunstâncias.De fato, os controles sociais formais suplementam os con-

troles sociais informais cotidianos, apesar de, às vezes,interferirem diretamente nesses mecanismos, produzindoefeitos perversos.

Investigar um novo padrão de política penitenciáriarequer, ao mesmo tempo, que se detalhem mudanças nocomportamento e na cultura dos criminosos encarceradose da sociedade assim como das instituições de controlepenal que buscam produzir a ordem pública.

Focalizar uma política específica de controle sobre li-deranças da criminalidade organizada introduz, no entan-to, sérios problemas. Primeiro, reduz a visibilidade de umadas principais causas da desordem carcerária: as violên-cias que os “donos da cadeia” e os guardas penitenciáriospraticam contra os presos pobres.3 Segundo, ao se selecio-narem para análise episódios de crise prisional, como ten-tativas de fuga seguidas de rebeliões com reféns, silen-cia-se sobre as condições desumanas do encarceramento,que degradam cotidianamente a todos.

Insiste-se, mesmo assim, neste estudo, em isolar umapeculiar política de controle. Pergunta-se, então: Qual é onovo problema na criminalidade e na (des)ordem socialpara o qual a política do “cárcere duro” é uma resposta?Quais foram os fatores sociais que propiciaram a emer-

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gência desse novo padrão de política penitenciária em SãoPaulo, no governo Alckmin, e no Rio de Janeiro, no go-verno de Benedita da Silva?

NÃO EXISTE PRESÍDIO DE SEGURANÇAMÁXIMA, EXISTE PRISÃO DE VIGILÂNCIAMÁXIMA

Sem vigilância estatal não se garante qualquer ordempública nas prisões. Bangu 1, um presídio de “segurançamáxima”, construído para 48 presos, oferece dois exem-plos de como o público teve notícia de que os presos secomunicavam com o exterior. E mais, como as autorida-des na época responderam aos fatos.

Em setembro de 1995, o traficante Sérgio de Mendon-ça, o “Ratazana”, foi apontado pelo prefeito Cesar Maia(PFL) como mentor de um plano para matá-lo. Incon-formado com a acusação, o bandido enviou um fax deBangu 1 para a Prefeitura negando a existência do planopara assassinar Cesar Maia ou seu filho Rodrigo. O pre-feito protestou publicamente contra o uso do fax. O go-vernador Marcello Alencar (PSDB) reagiu indignado:“É um absurdo que alguém pense que houve erro de vigi-lância em Bangu 1”.4

No episódio, noticiado em 10 de fevereiro de 1998, sãoadicionados requisitos supostamente legais para evitar in-vestigações.

“O secretário de Segurança, Nilton Cerqueira, reconhe-ceu ontem serem verdadeiras as acusações feitas na TVpelo traficante José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha,de que no presídio de segurança máxima Bangu 1, onde obandido cumpre pena, entram irregularmente armas e te-lefones celulares para os presos, com a conivência de po-liciais. No entanto, o secretário estadual de Justiça, JorgeLoretti, diz que somente serão investigadas as denúnciaspor escrito.”5

No dia 22 de janeiro de 2001, foi encontrado um túnelde 86 metros de extensão e 1,70 metro de altura, a seismetros de profundidade, iluminado e com sistemas de dre-nagem e refrigeração. Todo em concreto, o caminho, quecomeçava em uma casa na Favela de Catiri, a 150 metrosdo presídio, chegaria, em linha reta, até Bangu 3 e depoisligaria o presídio até Bangu 1, que fica ao lado.6

Celulares em presídios não são mais notícia depois damegarrebelião do Primeiro Comando da Capital – PPC,em São Paulo, em fevereiro de 2001.7 Mesmo assim, al-gumas declarações e propostas polêmicas ainda chamama atenção. Anthony Garotinho, atual secretário de Segu-

rança Pública do Estado do Rio de Janeiro, chegou a de-fender a liberação do uso de celulares em presídios, parafazer escutas autorizadas pela Justiça e obter informaçõessobre as quadrilhas. A governadora Rosinha Garotinho,ao assumir o cargo, chegou a cogitar a retirada dobloqueador de Bangu 1, mas voltou atrás.8

PRIMEIRO GOVERNO GAROTINHO(1998 - ABRIL 2002)

Em setembro de 2000, a diretora de Bangu 1, Sidneyados Santos Jesus, foi assassinada a tiros, quando voltavado trabalho, em frente à sua casa, na Ilha do Governador.Esse é um momento particularmente importante na históriada crise do sistema penitenciário do Rio. Conhecida porser rígida com os internos, Sidneya constatou que algunsdeles recebiam até cinco visitas do advogado no mesmodia. Elaborou, então, uma lista com 130 nomes de advogadossuspeitos de serem mensageiros de traficantes “pombos-correios”, e encaminhou o relatório à CPI do Narcotráfico.9

A morte de Sidneya foi um marco no relacionamentoentre agentes do Departamento de Sistema Penitenciário– Desipe e presos, e o secretário de Justiça, João LuizDuboc Pinaud. Os agentes penitenciários entraram emgreve, que durou 14 horas, em protesto pela morte deSidneya. Exigiam também a contratação imediata de pelomenos mil novos agentes, melhores condições de traba-lho e um plano de cargos e salários.10 Os grevistas recu-savam-se a negociar com o secretário Pinaud, que identi-ficavam como defensor dos direitos dos presos, ereivindicavam sua exoneração.11 Os agentes proibiramvisitas aos presos.12

A Polícia Militar foi chamada para restabelecer a or-dem e liberar as visitas aos presos. Os grevistas desafia-ram essas ordens. Os familiares dos detentos protestaram,e o governador Garotinho precisou enviar o secretário deSegurança Pública ao complexo de Bangu. As liderançassindicais foram repudiadas por tentarem parar o movimen-to, que só terminou no fim do dia. Os agentes penitenciá-rios encerraram a greve antes que os policiais militaresassumissem o controle das penitenciárias. Depois desseepisódio, a Polícia Militar passou a ser o instrumento pri-vilegiado para a intervenção do governo em assuntosprisionais.13 Em junho de 2001, discutia-se a possibilida-de de o Desipe sair da esfera da Secretaria de Justiça eDireitos Humanos para subordinar-se à Secretaria de Se-gurança Pública – medida que estaria sendo estudada pelogovernador Anthony Garotinho.14

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A POLÍTICA DO CÁRCERE DURO: BANGU 1

Comando Vermelho e Primeiro Comando daCapital: afinidades perigosas

A megarrebelião do PCC em São Paulo, em fevereirode 2001, trouxe apenas um reforço de mais 300 policiaismilitares15 para fazer a segurança em volta dos presídiosdo Estado do Rio de Janeiro, principalmente do comple-xo de Bangu e de Frei Caneca. As autoridades não pre-viam que rebeliões geradas por insatisfação das lideran-ças dos comandos do Rio fossem prováveis. O deputadoestadual Hélio Luz (PT-RJ), chefe da Polícia Civil no go-verno Alencar explicava: “(...)nos últimos 15 anos, quemmanda no sistema penitenciário daqui são os presos. EmSão Paulo, a rebelião só ocorreu porque o Estado separouas lideranças, mostrando que elas não têm o controle. NoRio não há rebelião porque estão juntas, como querem”.16

A imprensa, no entanto, divulgava, em março de 2001,que o PCC paulista tinha coligação com o Comando Ver-melho carioca, e que “há planos de começar a fazer ´atosterroristas` para obrigar o governo a melhorar a situaçãodos detentos nos presídios do eixo Rio-São Paulo”.17 Apropósito, o item 16 do Estatuto do PCC afirma: “Emcoligação com o Comando Vermelho – CV, iremos revo-lucionar o país dentro das prisões, e o nosso braço arma-do será o terror dos poderosos, opressores e tiranos queusam o anexo de Taubaté e o Bangu 1, do Rio de Janeiro,como instrumentos de vingança da sociedade e fabrica-ção de monstros”.18

O resgate de 14 traficantes ligados ao Comando Verme-lho na sede da Polinter,19 localizada na Praça Mauá (zonaportuária do Rio), em 29 de outubro de 2001, foi umaoperação audaciosa, que demonstrou capacidade organi-zacional e operacional.20 Em dezembro de 2001, desco-briu-se um grupo que supostamente pretendia seqüestraro secretário de Direitos Humanos e Sistema Penitenciário,João Luiz Duboc Pinaud, para exigir a libertação decúmplices do PCC. De fato, havia três líderes do PCC noRio, a pedido do Ministério da Justiça, que solicitara sigiloa respeito do assunto.21 Por fim, afirmava-se que líderesdo PCC presos em Bangu 1 tinham dado ordem pararealizar atentados a bomba, rebeliões, executar rivais ematar o líder Mizael Aparecido da Silva22 em São Paulo.23

Regime Disciplinar Diferenciado de São Paulo:a resposta estatal ao desafio do PCC

O secretário de Administração Penitenciária, NagashiFurukawa, respondeu à megarrebelião com um conjunto

de resoluções administrativas. Na resolução SAP no 11 de13/03/2001, estipula as medidas administrativas a seremtomadas perante a ocorrência de rebeliões ou qualquer tipode manifestação violenta. Considera-se rebelião o ato deindisciplina iniciado pelos presos, com danos materiaisao prédio e/ou manutenção de reféns (art.1o, § 1o).

A resolução SAP no 26 de 4 de maio de 2001, que servi-rá de inspiração para projetos de leis federais e resoluçõesno Rio, regulamenta a inclusão, permanência e exclusão dospresos no RDD.

Em novembro de 2002, o delegado Godofredo Bitten-court, diretor do Departamento de Investigações sobre oCrime Organizado – Deic, já atribuía ao RDD a desarticu-lação do PCC. Sem acesso a celulares, os líderes passarama se comunicar por intermédio de suas mulheres e, devidoa uma rede de intrigas e inveja, a estratégia teria quebradoa hegemonia entre os chefões e supostamente provocado aderrocada do grupo.24

GOVERNO BENEDITA (ABRIL DE 2002 -DEZEMBRO DE 2002)

Bons tempos em que só se tinhamedo de bandido solto25

A crise tornou-se mais aguda no sistema penitenciáriodo Estado do Rio de Janeiro durante o governo da suces-sora de Anthony Garotinho, Benedita da Silva (PT).26

Além das rebeliões carcerárias, a opinião pública perce-beu que se tornara vulnerável nas ruas às ordens que vi-nham de chefes do tráfico encarcerados.

No dia 26 de abril de 2002, o traficante FernandinhoBeira-Mar chegou ao Rio de Janeiro, transferido pordecisão da Justiça. O secretário de Segurança Pública doEstado, Roberto Aguiar, disse que a transferência, queconsiderava “um perigo para a população carioca”,27 forafruto de um acordo com integrantes do governo Garotinho.O ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, afirmou queBangu 1 era mais seguro que a carceragem da PolíciaFederal, em Brasília. No Rio, o secretário de Justiça eSistema Penitenciário, Paulo Saboya, anunciou o aumentodo número de agentes e medidas para evitar o contato deBeira-Mar com outros presos.28 Desde então, ficou claropara a opinião pública o receio das autoridades de que umtraficante importante do Comando Vermelho não possaser efetivamente isolado. Esta falta de condições desegurança nos presídios fluminenses para acolher o

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traficante comprometeu irremediavelmente a credibilidadeno sistema penitenciário.

De fevereiro a dezembro de 2002, a imprensa regis-trou tentativas de fuga, fugas efetivadas e rebeliões nocomplexo de Bangu, todas em presídios e casas de custó-dia dominados pelo Comando Vermelho. Aconteceram aotodo onze “incidentes prisionais”.29

No dia 14 de maio, o prédio da Secretaria de DireitosHumanos, onde ficava também a sede do Desipe, foi al-vejado por dezenas de tiros de fuzil. Foram colados nafrente do prédio dois cartazes onde se lia: “Chega de opres-são. Daqui pra frente qualquer ação arbitrária com nossosirmãos na cadeia será dada resposta à altura”. O texto eraassinado CV-RL-PJ.30 Dois dias depois, o ministro daJustiça, Miguel Reale Júnior, manifestou sua intenção decriar uma força-tarefa para combater o crime organizadono Rio, ao que a governadora Benedita responde: “aindanão há necessidade disso”.31

O assassinato brutal do jornalista Tim Lopes,32 da RedeGlobo, repercutiu na opinião pública e nas perspectivasdas autoridades governamentais. Na cerimônia do segun-do aniversário do Plano Nacional de Segurança Pública,o presidente Fernando Henrique elevou o “crime organi-zado” à condição de inimigo número 1 do país, e anun-ciou que o combate à violência era a prioridade máximana agenda nacional.33

No dia 18 de junho, quatro promotores do MinistérioPúblico do Rio – MPE, com apoio de 100 policiais doBope, estouraram o que ficou conhecido como “escritó-rio central do crime” (Bangu 1).34 Este episódio tensionoumuito as relações entre setores do MPE e da magistraturacom o governo do Estado. O MPE divulgou gravações in-dicando que Fernandinho Beira-Mar comprava drogas earmas e que, inclusive, adquirira um míssil Stinger.35 Ajuíza da 1a Vara Criminal de Bangu, Sonia Maria GomesPinto, além de autorizar a revista em Bangu 1, determi-nou o afastamento provisório do diretor do presídio, DurvalPereira Melo, e a suspensão de agentes penitenciários. Aação não foi comunicada ao governo do Estado. O secre-tário de Justiça, Paulo Saboya, foi impedido de entrar nopresídio durante a operação.36 O presidente do Tribunalde Justiça, Marcus Faver, ao receber o secretário Saboya,sustentou que a ação foi legal, e que não havia necessi-dade de ser comunicada ao governo. Segundo Faver, comoautoridade do sistema penitenciário, Saboya deveria teracompanhado a operação. Na decisão da juíza não havia,entretanto, qualquer determinação de impedir a entradade outras autoridades.37

Na madrugada de 24 de junho, o prédio da Prefeiturado Rio de Janeiro foi alvo de um atentado.38 O prefeitoCesar Maia pediu a decretação do Estado de Defesa noRio.39 O presidente Fernando Henrique foi visitar o pré-dio. A Subsecretaria de Inteligência – SSI da Secretariade Estado de Segurança chegou a investigar o caso comouma ação “narcoterrorista”. Suspeitava-se que a ordempara o ataque tivesse partido do complexo penitenciáriode Bangu. O ato poderia ter sido uma retaliação à escutatelefônica e à vistoria no Presídio de Segurança MáximaBangu 1 por promotores do Ministério Público Estadual,na semana anterior. De fato, o ataque não teve motivaçãopolítica; tratou-se de um episódio isolado. 40 Porém, a partirdesse episódio foi criada uma “força-tarefa”,41 coordena-da pelo Ministério da Justiça, com a participação da Se-cretaria da Receita Federal e do Ministério Público, paracombater o crime organizado no Rio.42

O motim de 11 de setembro43 em Bangu 1, ocorrido aquase um mês das eleições gerais de 15 de outubro, foium dos momentos mais significativos da luta entre asfacções44 que controlam o tráfico de drogas no Rio.45

Líderes do Comando Vermelho eliminaram quatro chefesdo Terceiro Comando e da facção ADA – Amigos dosAmigos pela manhã,46 após tentativa frustrada de fuga.47

A partir do depoimento de Marcelo Freixo,48 que par-ticipou da negociação para liberar os reféns, foi possívelesclarecer alguns pontos. Havia um plano do grupo liga-do ao traficante Uê para exterminar rivais do ComandoVermelho. Os guardas de Bangu 1 teriam sido, portanto,subornados inicialmente por Uê. Porém, um desses guar-das passou essas informações para o Fernandinho Beira-Mar, que pagou mais pelo plano a ser executado. O trafi-cante Beira-Mar “comprou as chaves da cadeia”.49 Oobjetivo do grupo do CV era fuga. Quando andavam ar-mados no pátio do presídio em direção à porta, foram sur-preendidos por um grupo de agentes do SOE – Serviço deOperações Externas do Desipe. Houve troca de tiros e osdetentos recuaram para dentro do prédio. E, então, teriamsido eliminados os adversários do Terceiro Comando eda ADA. A seguir, foram pegos oito reféns. Esses fatosocorreram de manhã bem cedo, antes de 8h30.

O subsecretário de Segurança Pública, Ronaldo Rangel,afirmou o propósito: “Os bandidos diziam que se houves-se esculacho, ou seja, se a polícia tomasse qualquer atitu-de mais enérgica, eles iriam acionar bondes de traficantespara espalhar o terror por toda a cidade”.50

O clima de medo propagou-se pela cidade.51 Lojas eescolas em nove bairros ficaram fechadas por dois dias.52

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A governadora Benedita mobilizou-se para transferirFernandinho Beira-Mar para algum outro estado. O go-verno federal e governos estaduais hesitavam em colabo-rar.53 A proximidade das eleições de 6 de outubro davama essas negociações um significado político preciso: osatores políticos usaram o episódio para fixar uma agendapolítica e estigmatizar o competidor como frouxo no com-bate ao crime organizado.54

O drama de 11 de setembro em Bangu 1 rendeu inúme-ros diagnósticos e reflexões sobre a segurança. RobertoAguiar, secretário de Segurança Pública, ao anunciar quepoliciais civis e militares assumiriam o presídio em subs-tituição aos agentes penitenciários, afirmou: “Bangu 1 émuito seguro. Seguras não eram as cabeças que estavamlá dentro. Nem a melhor segurança arquitetônica funcio-na quando a corrupção e a imoralidade estão instaladas.A segurança máxima é possível desde que as pessoas ládentro queiram o bem da população, não o de seus bol-sos”.55

Regime Disciplinar Especial de Segurança:de São Paulo para o Rio

Após o motim de Bangu 1, houve dentro da cúpula dogoverno Benedita uma polêmica sobre como reagir à cri-se. O secretário de Justiça, Paulo Saboya, segundo seupróprio depoimento, foi contrário à implantação da polí-tica do cárcere duro.56 Como parte do acordo para supe-rar a questão, a penitenciária de Bangu 1 passou para ocontrole da Secretaria de Segurança Pública. Foi tambémnomeado o major da Polícia Militar Hugo Freire para di-rigir o Desipe.57 No dia 16 de setembro foi publicada, noDiário Oficial, a resolução SEJGAB no 13,58 assinada pelosecretário Paulo Saboya, que regulamentou a inclusão, apermanência e a exclusão de presos no RDES.59

A resolução estabelece prisão especial para os líderese integrantes das facções criminosas, bem como para ospresos que venham a transgredir, de forma grave, as re-gras previstas na Lei de Execução Penal e no Regulamen-to Penitenciário. Esta resolução praticamente acolhe ostermos do Regime Disciplinar Diferenciado paulista.60

A decisão de enquadrar o detento no RDES pode serencaminhada pelo diretor de qualquer unidade peniten-ciária ao secretário de Justiça, que analisará o pedido edará o veredicto. O tempo de permanência do preso nesseregime é de 180 dias (art.4o). Em caso de reincidência, odetento poderá ser submetido a 360 dias de reclusão es-pecial.61

O secretário Saboya também pretendia limitar o contatoentre advogados e seus clientes na prisão. Ele queria criarsalas separadas por vidros à prova de bala em todos ospresídios do Estado. A Ordem dos Advogados do Brasil– OAB decidiu recadastrar seus 450 mil filiados para banir“falsos profissionais”. Até dezembro de 2002, todos osadvogados do país tiveram de trocar a carteira de identifi-cação profissional por um documento com tinta antifalsi-ficação e tarja magnética, elaborado pela Casa da Moeda.62

Outra medida anunciada na ocasião atingiu os 3.800agentes penitenciários do Rio: a obrigatoriedade de apre-sentação de cópia de declaração de Imposto de Renda, donúmero do telefone celular (com nota fiscal do aparelho),do endereço atualizado e de documentos de propriedadede veículos. O objetivo era saber se o patrimônio dos agen-tes era compatível com a renda e se eles poderiam estarsendo corrompidos pelos traficantes.63

O Dia em que o Rio Parou: 30 de setembro de 2002

O Rio parou na segunda-feira até na zona sul, apesarde não terem ocorrido depredações nesta parte da cida-de. O cidadão rendeu-se à intimidação dos traficantes dedrogas. O comércio fechou inclusive em shoppings, quedispõem de seguranças particulares. O prejuízo foi cal-culado em R$ 130 milhões, cerca de metade do fatu-ramento diário da Região Metropolitana. Quarenta bair-ros foram atingidos pela paralisação. Em todo o GrandeRio, 800 mil passageiros ficaram sem ônibus. O prejuí-zo das empresas foi calculado em R$ 2,4 milhões. Uni-versidades como PUC, Estácio de Sá e UniverCidadesuspenderam as aulas. Na rede municipal, 22% das es-colas fecharam; entre as escolas particulares, 40% para-ram.64

Esta paralisação ocorreu especialmente em áreas con-sideradas de domínio do Comando Vermelho.65 A Se-cretaria de Segurança estava informada do plano de pa-rar até a zona sul.66 Gravações de conversas telefônicas,feitas pelo Ministério Público estadual no dia 17 de se-tembro de 2002, com autorização judicial, foram entre-gues ao secretário de Segurança Pública, RobertoAguiar.67

A governadora Benedita, em pronunciamento feito ànoite em rede estadual de televisão, afirmava: “O quevivemos no dia de hoje foi a reação desesperada de agen-tes do crime organizado contra uma política de seguran-ça pública inteligente e bem-sucedida, que em menos decinco meses prendeu mais de 1.700 pessoas envolvidas

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com o tráfico, entre as quais 50 chefões do crime orga-nizado”.68

A Secretaria de Segurança anunciou, no mesmo dia,o endurecimento no tratamento dado aos sete presos noBatalhão de Choque da PM: ficariam temporariamentesuspensas as visitas dos advogados.69 O secretárioRoberto Aguiar anunciou que tomaria providências parapôr fim à divisão de presídios entre as facções comoComando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dosAmigos.

Forças Armadas no Primeiro Turno das Eleições

A governadora Benedita solicitou envio de tropas fe-derais para garantir a ordem nas eleições de outubro.70

Havia receio de que os traficantes bloqueassem parte dosmorros – impedindo o direito de voto do eleitorado doRio que vive nestes locais. No dia 5 de outubro, cerca de11 mil homens do Exército entraram em prontidão. Destetotal, 3.000 soldados ocuparam 20 áreas consideradas crí-ticas, como os complexos do Alemão e da Maré.

Rebelião em Bangu 3: Outubro Vermelho

O plano de fuga incluía a explosão do muro de setemetros do presídio. Haveria então o resgate dos presospor um grupo de 63 homens armados. Era a primeira vezque se tentava um resgate no complexo de Bangu.71

A Secretaria de Segurança Pública já sabia do planode fuga,72 segundo autoridades do governo.73 Luiz EduardoSoares74 escreveu sobre “quatro novidades em curso”, aocomentar a tentativa de resgate em Bangu 3:- “PCC, de São Paulo, tem procurado desde 2001 associ-ar-se ao Comando Vermelho, ampliando seu poder no cri-me organizado;- retorno de Fernandinho Beira-Mar ao Rio de Janeiro,em função de seu poder (está sob seu controle a provisãode drogas para o comércio varejista fluminense), precipi-tou a luta pela unificação das correntes criminosas;- a governadora Benedita da Silva não admitiu concilia-ções com o crime e realizou prisões de lideranças, queestimularam disputas por mercados e territórios; e,- as principais lideranças criminosas estão alterando opatamar de sua intervenção. Seus últimos movimentosdemonstram a intenção de politizar sua inserção na cenapública, transformando o caráter de suas ações e a natu-reza de sua identidade. Sua nova linguagem é a do ter-ror”.75

Forças Armadas no Segundo Turno das Eleições

No dia 16 de outubro, a governadora anunciou que játinha enviado ao Tribunal Regional Eleitoral – TRE, umpedido formal para que as Forças Armadas integrassemas forças de segurança nas eleições.76 Realizou-se umaconsiderável mobilização policial-militar para prevenir ecoibir eventuais ações do crime organizado no segundoturno das eleições presidenciais. 77 A votação ocorreu semdistúrbios no dia 27 de outubro.

“Cárcere Duro” somente em Bangu 1

No dia 30 de outubro, o Diário Oficial do Estado doRio publicou a resolução da Secretaria de Estado de Se-gurança Pública que restringia regalias dos presos emBangu 1.78 Depois de instalar, no início desse mês,bloqueadores de celular,79 o governo petista estabeleceuo uso obrigatório de uniformes de detentos, restrição donúmero de advogados e de visitas por preso.80 De acordocom a resolução no 572, cada preso poderia receber visi-tas de apenas um advogado credenciado, no máximo por30 minutos e sempre em dias úteis (art. 8o).

As visitas comuns eram autorizadas apenas para pais,mães, esposas, companheiras e filhos dos detentos, duasvezes por semana, respeitando um rodízio que seria defi-nido pelo diretor do Desipe (art. 16o). Todas as visitasseriam no parlatório, onde presos e visitantes ficariam iso-lados por um vidro à prova de balas, sem contato físico.81

SEGUNDO GOVERNO GAROTINHO:AGORA É ROSINHA

A governadora Rosinha Garotinho criou, pelo Decretono 32.621, de 1 de janeiro de 2003, a Secretaria de Admi-nistração Penitenciária – SEAP, o que sinalizava a impor-tância que o sistema penitenciário assumira.82 Uma dasprimeiras medidas tomadas pelo secretário Astério Perei-ra dos Santos foi trazer para a SEAP as casas de custódiae o Presídio Bangu 1, que no governo Benedita estavamsubordinados à Secretaria de Segurança Pública.

O secretário Astério Pereira é coronel reformado da PM.Dirigiu o presídio Ary Franco (Água Santa), de 1976 a1983, e o presídio Candido Mendes (Ilha Grande), em1981. Posteriormente, Astério tornou-se promotor de Jus-tiça. Na equipe da direção da Secretaria, havia outro pro-motor de Justiça, Aldney Peixoto, que foi Corregedor dasPolícias Unificadas no governo Benedita. Constata-se um

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retorno de membros do Ministério Público Estadual – MPEà direção de assuntos penitenciários, o que era comum nopassado. Se a articulação da SEAP com o MPE era feitapor gestores do sistema penitenciário, a ligação do secre-tário com o prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia, vinhado apoio para empreendimentos de modernização e cons-trução de presídios. De qualquer forma, o secretárioAstério não fez parte do grupo de transição do governoRosinha Garotinho.

O secretário Astério tinha objetivos na administração83

e um plano de ação, mas não dispunha de recursos paraimplementá-los.84 Quanto à disciplina que pretendia im-por ao sistema de carceragem, não havia diferença na prá-tica entre o que se afirmava na sua gestão e o que foi im-posto no governo Benedita. Na verdade, havia maiscontinuidade na política penitenciária adotada então doque mudança em relação ao governo petista.

O endurecimento disciplinador nos cárceres, confor-me foi exposto anteriormente, foi realizado no governoBenedita. O secretário Astério reeditou o RDES, atravésda Resolução SEAP/GAB no 8 de 7 de março de 2003.85

A Resolução SEAP no 13 de 28 de março de 2003 disci-plinou o ingresso de pessoas e de veículos no interior dosestabelecimentos. A Resolução SEAP no 14 de 7 de abrilde 2003 estabeleceu normas para organizar e garantir oacesso de advogados aos seus clientes presos em Bangu1.86 A Resolução no 26 de 7 de julho de 2003 disciplinoua entrada de alimentos e objetos trazidos pelos familiarese por via postal, nas visitas às unidades prisionais.87

Segundo o secretário de Administração Penitenciária,Astério Pereira dos Santos, em maio de 2003, havia 26 milpresos acautelados no Estado do Rio. Desses, 18 mil estavamno sistema (penitenciárias e casas de custódia), mas 8 milpermaneciam em carceragem policial. Havia ainda cercade 70 mil mandados judiciais de prisão não cumpridos.88

Segunda-feira sem Lei: a Segunda Mobilizaçãopelo CV, Agora Violenta

A semana do Carnaval de 2003 começou com violência,que dessa vez atingiu a zona sul do Rio.89 Três bombas defabricação caseira explodiram na Avenida Vieira Souto,em Ipanema. Janelas de prédios ficaram estilhaçadas.90

Em Botafogo, houve arrastões, um supermercado foiatacado e um coquetel molotov foi atirado contra um ônibusda linha 410 (Usina-Jardim) cheio de passageiros. Umasenhora de 70 anos foi queimada nesse ataque, vindo afalecer dias depois. Este episódio do ônibus em chamas

ocorreu no ponto da Rua São Clemente, em frente ao MorroDona Marta, a menos de 100 metros do 2o BPM (Bota-fogo). É provável que este acontecimento tenha mudadoa percepção de muitos cidadãos sobre a situação da cidadeem face do terrorismo dos narcotraficantes.

O CV distribuiu em vários bairros uma carta onde as-sumiu a autoria dos atos violentos. A polícia deteve 45pessoas suspeitas por envolvimento no ataque a 38 ôni-bus e na distribuição de cartas com ameaças a comercian-tes. Segundo o chefe de Polícia do Rio, essas pessoas se-riam autuadas por associação ao tráfico. O crime éinafiançável e tem pena prevista de três a 10 anos de pri-são. Era um notável endurecimento na repressão policial.91

No dia da mobilização criminosa, o secretário de Ad-ministração Penitenciária, Astério Pereira dos Santos, sus-pendeu as regalias dos 24 presos da facção criminosa C Vno Presídio Bangu 1. Pela manhã, agentes do Serviço deOperações Especiais recolheram dos internos aparelhosde rádio e televisão. Fernandinho Beira-Mar passou a tar-de daquele dia confinado. Durante os 15 dias seguintes, ogrupo não teve direito a visita íntima e banho de sol.

Na terça-feira, 25 de fevereiro, um hipermercado foimetralhado na Penha. Tiros também atingiram umshopping e dois postos de gasolina. Mais quatro ônibusforam incendiados em pontos diferentes da cidade e daRegião Metropolitana. O governo estadual reagiu, anun-ciando a Operação Rio Seguro. Na quarta-feira, os poli-ciais estavam nas ruas, com o apoio da Guarda Munici-pal.92 O secretário de Segurança, Josias Quintal, afirmou,então, energicamente: “Vamos partir para dentro. Se ti-ver que ter conflito armado, que tenha. E, se alguém tiverque morrer que morra”.93

Segundo gravações feitas com autorização da Justiçapela Polícia, Beira-Mar teria dito no dia 26 de fevereiro:“Perdi. Mas eles vão dar continuidade ao trabalho. Vãozoar esse sistema. Não adianta me levar”.94

Na quinta-feira, 27 de fevereiro, Fernandinho Beira-Marfoi transferido para o presídio de segurança máxima dePresidente Prudente, no interior de São Paulo, onde deve-ria permanecer por 30 dias. No dia seguinte, em ação auda-ciosa, traficantes fecham a Avenida Brasil por uma hora.

Operação Guanabara: as Forças Armadas naSegurança ao Carnaval

No sábado de Carnaval, três mil homens do Exércitoocuparam as principais vias de acesso à cidade. Era a Ope-ração Guanabara, que contava ainda com 34 mil policiais

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civis e militares e 4.500 guardas municipais.95 O turismonão chegou a sofrer com as ações terroristas dos trafican-tes. Houve um faturamento superior ao ano anterior.96

Porém, mesmo com o reforço do policiamento, os homi-cídios e assaltos a ônibus aumentaram em relação ao anode 2002.97 Ocorreu também uma tragédia: um professorde inglês foi morto por soldados do Exército por não terparado num bloqueio, na antiga Avenida Automóvel Clu-be.98 Apesar desse caso isolado, o governo estadual pe-diu ao governo federal que mantivesse a Operação Guana-bara por mais 30 dias.99 Em setembro de 2003, foinoticiado que o Exército já tinha um manual de 80 pági-nas, onde constam novas instruções para o treinamentode tropas que atuariam como polícia contra o crime orga-nizado, em cidades como o Rio.100

Dois Juízes de Varas de Execuções Penais Assassinados:Novo Impulso à Legislação do “Cárcere Duro”

No dia 14 de março, o juiz da Vara de Execuções Pe-nais de Presidente Prudente, Antônio José Machado Dias,foi executado em São Paulo. A OAB de São Paulo acusouimediatamente a quadrilha de Fernandinho Beira-Mar peloassassinato. Habitantes de Presidente Prudente exigirama transferência do traficante.101 Estava consolidada a famade Beira-Mar como a personificação do terror. O jornalO Globo, em editorial intitulado “Ao confronto”, afirma-va que: “Chegou a hora de reagir com o máximo rigor.(...) A guerra já começou”.102

A morte do juiz paulista apressou o debate sobre alte-rações na Lei de Execuções Penais para tornar mais rigo-

roso o tratamento dado nas penitenciárias aos presos liga-dos ao crime organizado.103 Deu-se início também ao de-bate sobre como proteger os juízes. Foi sugerida a ado-ção do sistema Juiz Sem Rosto, que impede que ocriminoso saiba o nome do juiz que lhe aplicou a pena. Osecretário de Administração Penitenciária, Astério Perei-ra, era favorável à adoção desse sistema, e propunha quefosse estendido aos promotores do Ministério Público.104

No dia 24 de março, foi executado em Vitória o juiz daVara de Execuções Penais, Alexandre Martins de CastroFilho, que estava sendo ameaçado pelo crime organizado.O debate legislativo acelerou-se no Congresso. No dia 1o

de abril, a Câmara dos Deputados aprovou, em votaçãosimbólica, projeto modificando a Lei de Execuções Penais– LEP e aumentando o rigor do regime carcerário parapresos de alta periculosidade. O projeto estendia a penade isolamento em cela individual de 30 dias, comoestabelecido na LEP, para até 360 dias.105 No Senado, atendência ao endurecimento106 no regime carcerário eraclara, com a proposta de um “regime disciplinar desegurança máxima”.

A tendência do debate legislativo era, portanto, nitida-mente pelo endurecimento. O projeto de lei do governofederal criando o Regime Disciplinar Diferenciado paratratar com maior rigor presos considerados perigosos foiaprovado na Câmara dos Deputados. No Senado, a propos-ta foi analisada pela Subcomissão de Segurança Pública epela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ,onde foi incluído um novo regime diferenciado: o RegimeDisciplinar de Segurança Máxima – RDSM. No Quadro 1,verificam-se algumas diferenças entre os dois regimes.107

QUADRO 1

Diferenças entre Regimes Disciplinares

Regime Disciplinar Diferenciado (1) Regime Disciplinar de Segurança Máxima (2)

– Atinge o preso provisório que cometa crime doloso ou promova a subversão daordem ou da disciplina interna do estabelecimento penitenciário; o preso oucondenado que apresente alto risco para a ordem e a segurança do estabele-cimento penal ou da sociedade; ou o preso provisório ou condenado sobre oqual recaiam suspeitas fundadas de envolvimento ou participação em organi-zação criminosa;

– Duração máxima de 360 dias, que podem ser prorrogados até o limite de umsexto da pena aplicada;

– Recolhimento em cela individual;– Visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de

duas horas;– Banho de sol de até duas horas por dia.

– Atinge o preso provisório ou condenado sobre o qual recaiam indícios funda-dos de envolvimento com organização criminosa;

– Duração máxima de 720 dias, que podem ser prorrogados;– Recolhimento em cela individual;– Visitas mensais, limitadas a, no máximo, dois familiares, separados por vidro e

com comunicação via interfone, com filmagem e gravação;– Banho de sol de até duas horas por dia;– Proibição de entrega de alimentos ou bebidas;– Proibição de telefones, som, televisões e rádios;– Proibição de comunicação com outros presos e com agentes penitenciários nos

banhos de sol;– Monitoramento completo do preso;– Contatos mensais com advogados;– Prisão em estabelecimento penal localizado em estados distantes do local de

influência da respectiva organização criminosa.(1) De acordo com o projeto de lei da Câmara no 12 de 2003. (2) De acordo com o relatório do senador Tasso Jereissati aprovado pela CCJ.

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O Terceiro Protesto Violento

A terceira mobilização criminosa do Comando Ver-melho ocorreu segunda-feira, 7 de abril. Não se tratavade um incidente prisional propriamente dito, pois os atoscriminosos foram desenvolvidos fora do espaço carcerário.Porém, a ligação entre a paralisação que atingiu 10 bairrosno Rio, chegando a São Gonçalo, e as lideranças encar-ceradas constituía o mais importante aspecto da situação.

Os detentos avisaram aos parentes que não queriam rece-ber visita no domingo, 6 de abril, e que negociariam pormelhores condições no cárcere. O motivo: as novas normasda Secretaria de Administração Penitenciária como o RDESe as normas que regulavam as visitas dos advogados.

Setores de inteligência das polícias Civil e Federal ti-nham notícia de que o CV pretendia fechar o comércio,atacar prédios públicos e impedir a saída dos ônibus dasgaragens das empresas. A Polícia Militar foi colocadade prontidão, e o Batalhão de Operações Especiais – Bopee o Batalhão de Choque permaneceram em frente aoscomplexos penitenciários de Bangu e de Frei Caneca parainvadir as unidades em caso de rebelião.108 Mas não hou-ve a rebelião que as autoridades esperavam.

Aconteceu a paralisação no comércio, repetindo o quejá ocorrera uma semana antes, em menor escala.109 Dessavez foi distribuída uma carta atribuída ao traficante Isaíasdo Borel. O texto continha ameaças de desencadear uma“revolução extraordinária”, “seqüestrando autoridades” e“desarticulando a Segurança Pública”.110 Outro texto foidivulgado111 pela Internet para os jornais, reivindicandomelhorias nas condições carcerárias. Como se não bas-tasse esse conflito com os presos, os agentes penitenciá-rios decidiram entrar em greve por tempo indeterminadopor razões salariais.112

No dia 29 de maio, o seqüestrador Sussuquinha reali-zou uma fuga que constrangeu a cúpula da segurança doRio: saiu pela porta da frente do Batalhão de Choque daPM, no centro do Rio.113 Esse era supostamente o últimoreduto de “segurança máxima”, usado após o episódio deBangu 1, em 11 de setembro de 2002.

A Greve de Fome do Comando Vermelho

A greve de fome começou à zero hora de segunda-fei-ra, 17 de agosto de 2003, um dia após as visitas mais con-corridas. Todo o movimento parecia ter sido preparadocom grande antecedência, mas precipitado com um dra-mático evento em Bangu 3.

Na quinta-feira, 14 de agosto, houve uma revista geral.Os presos estavam sob a vigilância do SOE – Serviço deOperações Externas. Quando o superintendente do SistemaPenitenciário, tenente-coronel Cid Souza Sá, que dirigiaa operação, foi chamado para ver um laptop que havia sidodescoberto, a tensão aumentou entre os presos e os agentesdo SOE. Cinco detentos foram atingidos por tiros de balasde borracha, pelas costas e de bem perto.114

O Conselho da Comunidade da Comarca do Rio deJaneiro115 foi chamado para ajudar a buscar uma solu-ção negociada para o movimento de protesto pacífico.116

Depois de cinco dias de greve, quando o movimento jámobilizava cerca de 10 mil presos ligados ao CV, con-seguiu-se um acordo. Foram atendidas apenas as reivin-dicações administrativas que tinham pleno respaldo le-gal. No entanto, o movimento também protestava contrapropostas:- de se transferir para a esfera federal as penitenciárias deBangu 1 e Bangu 3;- de submeter os presos dessas unidades às punições rígi-das, cruéis, estabelecidas pelo novo regime disciplinarespecial (RDES), aliás em total afronta aos princípios dosDireitos Humanos.117

O texto do manifesto do Comando Vermelho afirmavaque o RDES seria aplicado a Bangu 1 e Bangu 3. Mas, oRDES foi aplicado118 apenas em uma galeria de Bangu 1.Aparentemente, as lideranças do CV temiam que o RDESviesse a ser executado também em Bangu 3.

CONCLUSÃO

O medo é uma prisão que vem de todos os ladosGuimarães Rosa

As resoluções dos secretários estaduais que impuse-ram a política do “cárcere duro” para os líderes do CVpermanecerão vigentes, provavelmente até que o Con-gresso Nacional, num futuro próximo, dê um emba-samento legal para as providências já tomadas desde ogoverno Benedita.119 A validade jurídica dessas medi-das poderá ainda ser questionada judicialmente no Rio.120

No entanto, a ação conjunta das autoridades fluminensese do governo federal para evitar a transferência deFernandinho Beira-Mar, que cumpre pena no presídio deArtur Bernardes, para o Bangu 1 indica que há um con-senso de que a certos delinqüentes deve-se impor o regi-me de “cárcere duro”.121

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Mas é precisamente nesse ponto que se revela um graveproblema. No sistema penitenciário fluminense, a efeti-vidade desta política de castigo seria, no mínimo, limitadapelo déficit institucional122 e pela corrupção existente,123

como evidenciou o episódio de 11 de setembro em Bangu1, e na fuga do seqüestrador Sussuquinha do Batalhão deChoque da PM, no centro do Rio. Haveria, portanto, aversão carioca desta política: “cárcere duro” sem vigilânciamáxima.124

Por último, fica a indagação por que o CV decidiu co-mandar uma greve de fome pacífica de dentro de Bangu3, um presídio que já havia sido alvo de duas importantesrebeliões armadas?125

A greve de fome foi um ensaio geral. A liderança pôdeverificar o alcance do seu controle, inclusive demonstrandoa disciplina de seus soldados diante da fome. Disseminoudentro do sistema carcerário suas orientações. Nada dis-so é casual ou novo. O CV tem uma tradição de greve defome, desde a Ilha Grande. Devido ao número enorme dejovens detentos ligados ao CV, as lideranças podem tervislumbrado a necessidade de socializá-los com um exer-cício organizado para todos da “federação”. O significa-do da greve dos 10 mil talvez esteja nesta reconstrução daidentidade dos guerreiros revoltados pelas “injustiças” dosistema penitenciário que não funciona de acordo com asleis do Estado. É a visão de um “Estado de desordem”porque produz regularmente injustiças para os excluí-dos.126 Esta perspectiva politiza a atuação da rede crimi-nosa Comando Vermelho ao vinculá-la às desigualdadessociais urbanas. E, por isso, aproxima-nos mais de umasituação de convulsão social.

Será que a “cultura do controle”127 por si só terá meca-nismos para conter essa desordem social que se prepara ese anuncia?128

NOTAS

1. Sobre a abordagem da “história do presente”, ler: Foucault(2003a:29). Ler ainda sobre prisões em: Foucault (2003b). Para o usodessa abordagem, conforme usada nesse estudo, ler: Garland (2001:1-26). O presente estudo é complementado pelo artigo do Caldeira(2003:91-115).

2. O governo italiano criou uma legislação de emergência em sua lutacontra o crime organizado e o terrorismo. Introduziu medidas duras dedisciplina carcerária. “O governo construiu os chamados Cárceres Es-peciais, cujas normas de disciplina se assemelham às da Penitenciáriade Segurança Máxima de Presidente Bernardes, no interior paulista.O capo dei tutti capi (chefe dos chefes mafiosos) Totó Riina, presoem 1993, está até hoje detido nesse regime de “cárcere duro”: não temdireito a visita íntima, não pode receber comida da família e fica sepa-

rado dos visitantes por vidros à prova de balas – a conversa ocorre portelefone. Nem os mafiosos em liberdade condicional escaparam da li-nha dura: passaram a ser monitorados por pulseiras ou tornozeleiraseletrônicas.” Cf. “‘Cárcere duro’ estimulou delação na Máfia: Siste-ma foi adotado após o assassinato dos juízes Giovanni Falcone e PaoloBorselino”, O Estado de S.Paulo, 30/03/2003. Disponível em:<h t tp : / /www.es tado .es tadao .com.br /ed i to r i a s /2003 /03 /30 /cid021.html>. Acesso em: 30 set. 2003.3. Agradeço à Tania Kolker, do Grupo Tortura Nunca Mais, que mealertou para essa exclusão da discussão sobre tortura e maus-tratos depresos neste estudo.4. “Traficante nega plano para matar Maia”, Folha de S.Paulo, cader-no Cotidiano, 15/09/1995, p.3.3.5. “Rio não vai investigar denúncias de Escadinha”, O Estado deS.Paulo, caderno Cidades, 10/02/1998. Disponível pela data em:<http://www.estado.estadao.com.br/pesquisa/procura.html>. Acessoem: 30 set. 2003.6. Ler: “Polícia descobre túnel para fuga em Bangu 3”, O Estado deS.Paulo, 23/01/2003. Disponível em:<http://www.estado.estadao.com.br/jornal/01/01/23/news303.html>;“Túnel começou a ser planejado a 1 ano”, Estado de S.Paulo, 24/01/2001. Disponível em:<http://www.estado.estadao.com.br/jornal/01/01/24/news152.html>.Acesso em: 30 set. 2003.7. “25 mil presos fazem motins em 19 cidades”, Folha de S.Paulo,caderno Cotidiano, 19/02/2001, p.C1; “Rebelião deixa 16 mortos erevela falência do sistema penitenciário”, O Globo, 20/02/2001, p.1.No programa Domingo Legal, do Sistema Brasileiro de Televisão –SBT, um preso falou ao vivo, da Casa de Detenção, pelo celular, como apresentador Gugu Liberato. Cf. “´Domingo Legal` causa polêmi-ca”, Estado de S.Paulo, 20/02/2001, p.C-5. Pelo menos 32 celularesforam apreendidos em 15 presídios, no interior de São Paulo, que par-ticiparam da rebelião convocada pelo PPC no domingo, 18 de feverei-ro de 2001. É um número muito pequeno de celulares apreendidos, oque sugere que as operações varredura não foram eficientes. Os celu-lares entram nas cadeias levados pelos visitantes (incluindo os advo-gados), ou pelos agentes penitenciários. Na época, a “propina” parafacilitar a entrada de um celular nos presídios paulistas variava de R$300 a R$ 600. Cf. “Revista detecta 32 celulares”, Folha de S.Paulo,caderno Cotidiano, 21/02/2001, p.C3. Um preso foi fotografado fa-lando tranqüilamente em seu celular, sentado na janela da sua cela naCasa de Detenção de São Paulo, meia hora após encerrada amegavarredura realizada pela Polícia Militar. Esta foto foi estampadana primeira página dos jornais. Cf. “Presos desafiam a polícia: varre-dura nos presídios não impede o uso de celulares”, O Globo, 21/02/2001. Ler ainda: “Celulares, a principal arma para as rebeliões”, OGlobo, 2. ed., caderno O País, 20/02/2001, p. 9. A maior rebelião nahistória do país custou no mínimo R$ 7 milhões ao governo do Estadode São Paulo, apenas em reformas de prédios. Cf. “Rebelião deixa pre-juízo de R$ 7 mi ao Estado”, Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano,15/03/2001.8. Ler: “Celular liberado em Bangu: Teste mostra que bloqueadores desinais não funcionam em quatro presídios”, O Globo, caderno Rio, 7/09/2003, p.20.9. “A polícia já ouviu uma testemunha que levantou suspeitas sobreum dos encarregados da investigação, um oficial da PM. Ele teria re-clamado de estar perdendo R$ 1 milhão por mês com a ação moraliza-dora de Sidneya.” Cf. “OAB investiga 130 advogados por ligações comtráfico: suspeitos foram listados pela diretora assassinada de Bangu1”, O Globo, 8/10/2000, p.1.10. “Existem 1.150 agentes penitenciários no Estado do Rio. Eles sãoresponsáveis pela vigilância de 16 mil presos e recebem um saláriolíquido de R$ 1.060.” Cf. “Salário acima de R$1 mil”, Jornal do Bra-sil, caderno Cidade, 7/9/2000, p.15.

11. A política de abolição de privilégios e da corrupção dentro dospresídios, implementada pelo secretário Pinaud, seria, de acordo com

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as entidades que o apóiam, do mesmo modo que o Conselho da Comu-nidade e a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativado Rio de Janeiro – Alerj, o motivo da rejeição por parte dos agentespenitenciários que pediram sua saída. Cf. “Sidneya passou a ser a bolada vez”, Jornal do Brasil, caderno Cidade, 7/09/2000, p.16.

12. Agentes do SOE – Serviço de Operações Externas armados até comgranadas, policiais do BOPE – Batalhão de operações Especiais, Getam– Grupamento Tático-Móvel e do 14o BPM (Bangu) foram acionados.Cf. “Movimento durou pouco”, Jornal do Brasil, caderno Cidade, 7/09/2000, p.15.

13. “Greve de agentes provoca rebelião de presos”, Folha de S.Paulo,caderno Cotidiano, 07/09/2000, p.C1.

14. A proposta gerou protestos de juristas e de entidades ligadas à de-fesa dos direitos humanos. “É uma solução péssima. Vamos voltar aassistir a uma situação conflituosa entre guarda e preso”, disse o juris-ta Augusto Thompson, ex-diretor-geral do Desipe, que assumiu o sis-tema penitenciário após um período em que a administração das ca-deias, durante o governo Faria Lima, esteve nas mãos da PM. “Muitosagentes passaram a se considerar policiais e até a prestar serviços nasegurança privada. O resultado foi um fracasso”, avaliou. Cf. “Desipecom Segurança”, Jornal do Brasil, 1/07/2001. Disponível em:<ht tp : / / jbon l ine . t e r ra . com.br / jb /pape l / c idade /2001 /06 /30 /jorcid20010630013.html>.

15. “Governo reforça segurança em presídios no Rio”, O Estado deS.Paulo, caderno Cidades, 20/02/2001, p.C5.

16. “Para evitar revolta, facções são separadas em galerias”, O Estadode S.Paulo, caderno Cidades, 20/02/2001, p.C5.

17. “PCC ameaça governo com ‘atos terroristas’: fundador da facção dizque grupo tem coligação com Comando Vermelho e que principais líde-res estão presos”, Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 2/03/2001, p.C3.

18. “O estatuto do PCC”, Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 2/03/2001, p.C-3. A íntegra do estatuto do PCC está em: “O estatuto quedeu origem ao PCC”, O Estado de S.Paulo, caderno Cidades, 21/02/2001, p.C-3. “O PCC é a maior facção do sistema penitenciário emSão Paulo, com cerca de seis mil membros. É acusado de ter sido res-ponsável pela morte de pelo menos cem pessoas nos últimos dois anos.Tem braços também fora das cadeias. Extorque dinheiro de presos echantageia seus parentes, planeja assaltos fora dos presídios, faz tráfi-co de drogas e resgate de presos”. Cf. “Saiba mais sobre o PCC”, OGlobo, 2. ed., caderno O País, 20/02/2001, p.9. O secretário da Segu-rança Pública do Estado do Rio, coronel Josias Quintal, afirmou que oPCC tentou montar “um braço” no Rio. A tentativa teria ocorrido quan-do três líderes da organização foram para presídios do Rio. O maisimportante era José Márcio Felipe, o Geleião, um dos principaisarticuladores da megarrebelião de fevereiro de 2001, que ficou presoem Bangu 1. Segundo apurou-se em investigações policiais, Geleiãoiniciou entendimentos com líderes do CV, como Márcio Nepomuceno,o Marcinho VP, para uma ação conjunta entre as facções. O secretárioavaliou que a iniciativa “não prosperou”, mas via alguma influênciado PCC nos ataques contra a polícia do Rio, que começaram a aumen-tar desde 2001. “PCC tentou criar ´braço` no Rio, diz secretário”, Fo-lha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 12/03/2002.

19. Divisão de Captura e Polícia Interestadual.

20. Essa operação de resgate de presos lembra ações do PCC em SãoPaulo. A polícia sabia que o resgate estava sendo preparado. Na Polinter,estavam 1.040 homens em um espaço projetado para 350 presos. Lersobre o episódio: “Ação audaciosa no Rio liberta 14 traficantes liga-dos a Beira-Mar: Derrubaram parede, seqüestraram ônibus e fortementearmados resgataram os traficantes, que estavam detidos na Polinter”,Jornal da Tarde, 30/10/2001. Disponível em:<http://www.jt.estadao.com.br/editorias/2001/10/30/ger025.html>.Acesso em: 30 set. 2003.Sobre operações de resgate e fugas organizadas pelo PCC, ler: “Fundodo crime financia fugas em SP: Carcereiros e agentes penitenciários

recebem até R$ 30 mil para facilitar a abertura de celas para osdetentos”, Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 15/07/2001, p.C1.

21. “PCC planejava seqüestrar no Rio: polícia prende grupo que pre-tendia capturar secretário para exigir libertação de cúmplices”, O Globo,2. ed., caderno Rio, 8/12/2001, p.14.

22. Misael Aparecido da Silva reforçava a aliança do PCC com o CVe defendia ações conjuntas. Em carta de nove páginas apreendida pelapolícia, Misael propõe a realização de um “megaevento nacional”, ouseja, uma rebelião em todas as cadeias do país, fazendo funcionáriosreféns. Na carta, ele explica que para o megamovimento ter sucesso épreciso seqüestrar deputados e senadores do PSDB e do PFL, além dejornalistas. Misael diz ainda que o megaevento pode ser pacífico ouradical. Ele acrescenta que o êxito da missão depende da ajuda emdinheiro do Comando Vermelho: “Seja qual for o método, nós vamosprecisar de uma ajuda financeira do C.V. que está bem mais estrutura-do financeiramente do que nós”. “Governo investiga carta da facção”,Diário de S.Paulo, 9/03/2002. Disponível pela data em:<http://www.diariosp.com.br/>.

23. Outra reivindicação do “alto comando” do PCC é o fim dos maus-tratos à população carcerária. Os líderes defendem a extinção do Re-gime Disciplinar Diferenciado – RDD adotado nos anexos das Peni-tenciárias de Avaré I e na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté.Cf. “Facção comandou motins em SP a partir do Rio” Diário de S.Paulo, 20/02/2002. Disponível pela data em:<http://www.diariosp.com.br/>.

24. Cf. “Internos perigosos podem ter regime diferenciado”, Jornalda Tarde, 23/01/2003. Disponível em:<http://www.jt.estadao.com.br/editorias/2003/01/23/ger017.html>.Acesso em: 30 set. 2003. Em São Paulo, discute-se a necessidade deadotar um RDD também para os menores infratores. Jornal da Tarde,23/01/2003.

25. Outdoor da revista Veja anunciando o motim de 11 de setembro de2002 em Bangu 1.

26. A vice-governadora Benedita recebeu um governo praticamentesem nenhuma capacidade de investimento. O governador Garotinhohavia comprometido, em apenas três meses de 2003, 55% dos cerca deR$ 2 bilhões do orçamento destinado a investimentos. Cf. “Beneditaterá pouco dinheiro para investir: Estudo entregue à equipe de transi-ção mostra que atual governo já comprometeu 55% dos R$2 bilhõesdisponíveis”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 18/03/2002, p.18.

27. O ex-secretário de Direitos Humanos e Sistema Penitenciário, JoãoLuiz Duboc Pinaud, negou que a transferência de Beira-Mar tenha sidonegociada com o Estado. As autoridades de segurança temiam que apresença do bandido provocasse aumento da violência, com o acirra-mento da disputa pelo poder do tráfico nas favelas. Ler: Jornal doBrasil, 27/04/2002, p.1 e 15. Disponível pela data em:<http://www.radiobras.gov.br/anteriores/2002/sinopses_2704.htm>.

28. Ler: Jornal do Brasil, 29/04/2002, p.13. Disponível pela data em:<http://www.radiobras.gov.br/anteriores/2002/sinopses_3004.htm>.

29. Dentro do conceito de “incidentes prisionais” estão contidos: fu-gas, evasões e tentativas de fuga; movimentos reivindicatórios; e mo-tins ou rebeliões. Sobre o assunto ler: Ilanud (1998).

30. Comando Vermelho (CV), Rogério Lemgruber (RL), o Bagulhão,um dos fundadores da facção Paz e Justiça (PJ), lema da facção. Cf.“Ataques cresceram na atual gestão”, Folha de S.Paulo, caderno Co-tidiano, 17/10/2002, p.C4.

31. “Benedita recusa ação federal na segurança do Rio: Governadoradiz que polícias podem cumprir a missão”, Jornal do Brasil, 17/05/2002, p.1.

32. Sobre o caso Tim Lopes, ler: Souza (2002).

33. “FH: crime organizado é inimigo número 1 do país”, O Globo,caderno Rio, 21/06/2002, p.15.

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34. Foram apreendidos sete celulares, carregadores, estoques, R$ 1.100em espécie, balas calibre 38, 300 gramas de maconha, que estavamnum isopor junto com as quentinhas dos presos. Cf. “Saiba mais sobrea central do tráfico em Bangu 1”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 19/06/2002, p.14.

35. “Beira-Mar negociou compra de mísseis iguais aos de Bin Laden:Ação fulminante de juíza e promotores surpreende autoridades e ban-didos em Bangu 1”, O Globo, 19/06/2002, p.1.

36. “Juíza afasta diretor e suspende agentes: Secretário de Justiça éimpedido de entrar no presídio durante operação e governadora defen-de pedido de desculpas”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 19/06/2002,p.16.

37. “Presidente do TJ diz que ação foi legal”, O Globo, 2. ed., cadernoRio, 19/06/2002, p.16.

38. “Atentado com 200 tiros desafia poderes no Rio: Sede da prefeitu-ra é atacada de madrugada, em nova ação do crime organizado no es-tado,” O Globo, 25/06/2002, p. 1. “Cinqüenta e cinco janelas de 30salas foram quebradas pelos tiros e 275 cápsulas de fuzil calibre 762foram encontradas. Cf. “Atentado à prefeitura do Rio: 275 tiros e 2granadas”, O Estado de S.Paulo, caderno Cidades, 25/06/2002. Dis-ponível em:<h t tp : / /www.es tado .es tadao .com.br /ed i to r i a s /2002 /06 /25 /cid027.html>. Acesso em: 30 set. 2003.

39. “Prefeito pede decretação de estado de defesa: Esta e outras pro-postas serão discutidas hoje em Brasília em reunião com o presidenteFernando Henrique”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 25/06/2002, p.17.

40. Atualmente, avalia-se que o ataque foi motivado pela apreensãode drogas e dólares de traficantes do Morro de São Carlos, que esta-vam escondidos num depósito de obras da Prefeitura. Em represália àatuação da Comlurb que levou o material, traficantes ligados ao CVteriam disparado contra o prédio.

41. A Polícia Federal pediu ao Ministério da Justiça R$ 1,5 milhãopara financiar as ações integradas no Rio até o final de 2002. Cf. “Verbapara força-tarefa”, O Globo, 3. ed., caderno Rio, 8/08/2002, p.27.

42. O ministro da Defesa, Geraldo Quintão, insistiu que o apoio dasForças Armadas seria apenas logístico e de inteligência. Ele afirmouque a Constituição não permite atuação mais ampla. “Acessos ao Rioserão vigiados por força-tarefa: Governadora Benedita da Silva (PT)aceitou as dez medidas propostas pelo presidente”, O Estado deS.Paulo, caderno Cidades, 27/06/2002 Disponível em:<h t tp : / /www.es tado .es tadao .com.br /ed i to r i a s /2002 /06 /27 /cid046.html>. Acesso em: 30 set. 2003.

43. “Beira-Mar assume comando do poder paralelo e aterroriza o Rio:Após chacina em Bangu 1, tráfico metralha escolas, invade supermer-cado e fecha lojas em 9 bairros”, O Globo, 12/09/2002, p.1.

44. No início do ano, a guerra já era acirrada. “Três facções disputamo controle da venda de drogas, que rende R$ 12,5 milhões por dia sónas áreas de conflito. O Comando Vermelho vem perdendo espaço parao Terceiro Comando, que tem apoio da ADA – Amigos dos Amigos. Aguerra mobiliza 8.500 homens”. Cf. “Guerra de facções do tráfico noRio envolve 8.500 homens”, Extra, 20/01/2002, p.1.

45. Foi também um marco na escalada de intimidação sobre a cidadedo Rio. “O temor de uma reação violenta do crime organizado, quemantém domínio sobre várias favelas e morros da cidade, levou ocarioca a sair mais cedo do trabalho e a evitar alguns trajetos. Algu-mas escolas e até universidades liberaram seus alunos”. Cf. “Amea-ças e boatos espalham medo por toda a cidade: Escolas e universida-des fecham as portas mais cedo e empresas de ônibus resolvem mu-dar seus itinerários”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 12/09/2002, p.16.

46. O Terceiro Comando e o ADA mantinham um pacto de não agres-são. Após o evento, a aliança continuou. Ler: “Ex-fuzileiro na escalade poder”, O Dia, caderno Polícia, 13/09/2002, p.9.

47. O depoimento de Marcelo Freixo, em que se baseia a apresentaçãodos fatos seguintes, pode ser contrastada com a versão apresentada pelosecretário de Justiça, Paulo Saboya. Ao ser indagado em entrevista “Porque o governo negociou em vez de invadir Bangu 1?”, ele respondeu:“eles não queriam negociar nada. Não queriam fugir. Fizeram tudo issopara executar os inimigos. Basta ver que o vice-diretor do Desipe eum representante da Comunidade entraram lá desarmados. (...) Foramcorajosos e saíram ilesos. Essa rebelião tem pontos nebulosos.” Cf.“ O maior chefe é Marcinho VP: Secretário de Justiça diz que demis-são do Diretor do Desipe foi desnecessária”, O Globo, 2. ed., cadernoRio, 16/09/2002, p.13.

48. Depoimento público, gravado no dia 5 de setembro de 2003 naUniversidade Candido Mendes-Ipanema. Marcelo Freixo participou detodas as negociações de rebeliões em que se fizeram reféns nos últi-mos cinco anos. No entanto, é indispensável salientar que o trabalhodo Conselho da Comunidade é de fiscalização da aplicação da Lei deExecuções Penais. Portanto, a atuação do Conselho visa muito maiszelar pela integridade física e moral do preso, melhorar as condiçõescarcerárias e de trabalho dos agentes penitenciários e assegurar o cum-primento da LEP como um elemento fundamental da ordem pública,do que eventualmente mediar em incidentes prisionais.

49. O agente penitenciário Marcus Vinícius Tavares Gavião, o Playboy,foi acusado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro de en-tregar aos presos armas e chaves para que pudessem circular pelo presí-dio. Ele teria recebido R$ 400 mil pelo serviço, de acordo com a denún-cia. Playboy e 24 presos foram denunciados por homicídio duplamentequalificado (motivo torpe e impossibilidade de defesa da vítima). Cf.“Promotoria denuncia 25 suspeitos de matar rivais em motim em Bangu”,Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 5/10/2002, p.C3.

50. Cf. “Secretaria de Justiça confirma assinatura”, O Globo, 2. ed.,caderno Rio, 13/09/2003, p.13. A equipe de negociação assinou o do-cumento com as reivindicações dos presos, “apenas para caracterizarque o governo tomara ciência das reivindicações”. O Globo, 2. ed.,caderno Rio, 13/09/2003, p.13.

51. “Uma cidade só de reféns”, O Dia, 2. ed., caderno Polícia,13/09/2003, p.1; “Lojas e escolas continuam fechadas por ordem do tráficoem nove bairros: Presença da PM não supera temor de comerciantes ediretores de escolas”, O Globo, caderno Rio, 13/09/2002, p.15.

52. “Lojas e escolas continuam fechadas por ordem do tráfico em novebairros: Presença da PM não supera temor de comerciantes e diretoresde escolas”, O Globo, caderno Rio, 13/09/2002, p. 15. Ler ainda: “Trêsdias sem comércio e aulas em Ramos: Lojas e escolas permanecemfechadas em sinal de luto por ordem dos traficantes do morro do Adeus”,O Globo, 2. ed., caderno Rio, 14/09/2002, p.21.

53. Governos do Acre, de Brasília e de Pernambuco recusaram a trans-ferência de bandido. Cf. “Benedita pede prisão federal para Beira-Mar: FH diz que traficante veio para o Rio por ordem da justiça e sópode sair com nova determinação judicial”, O Globo, 2. ed., cadernoRio, 14/09/2003, p.16. Fernandinho Beira-Mar foi transferido deBangu 1 para o Batalhão de Choque da Polícia Militar, no centro doRio.

54. “O governo do estado ficou de quatro para um traficante. Este é oepisódio mais grave dos últimos anos”, afirmou o candidato a gover-nador da Frente Trabalhista, Jorge Roberto Silveira. Usando o tempoda candidata Solange Amaral, o prefeito Cesar Maia afirmou que o“Estado está sem governo e sem política de segurança pública”. Cf.“Benedita é alvo nos programas de TV: Jorge pede renúncia da gover-nadora e Solange mostra imagens de Bangu 1”, O Globo, 3. ed., ca-derno O País, 14/09/2002, p.12. Ler ainda: “Tucanos culpam PT pelarebelião: Serra diz que parte da responsabilidade é da governadora doRio”, O Globo, caderno Rio, 2. ed., 13/09/2002, p.16. “Lula diz queBenedita é vítima de sabotagens: Candidato à Presidência compara atualcrise com arrastões em Copacabana que prejudicaram a petista em 92”,O Globo, 3. ed., caderno O País, 14/09/2002, p.12.

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A POLÍTICA DO CÁRCERE DURO: BANGU 1

55. “Secretaria de Segurança assumirá Bangu 1: De acordo com secre-tário, dentro de uma semana, policiais substituirão agentes peniten-ciários no presídio”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 13/09/2002, p.14.

56. Depoimento público de Paulo Saboya sobre sua gestão à frente daSecretaria de Justiça no governo Benedita, na Universidade CandidoMendes-Ipanema, no dia 13 de outubro de 2003.

57. “Major assume Desipe”, Jornal do Brasil, 2. ed., caderno Cidade,15/09/2002, p.C3. O major Hugo Freire era o coordenador do núcleode inteligência do sistema penitenciário. Em entrevista, nesta matéria,afirmava que a qualquer momento podiam estourar rebeliões lidera-das pelo PCC de São Paulo em pelo menos 10 Estados do país. “Nomomento, o núcleo está monitorando, há cerca de 15 dias, a possibili-dade de uma megarrebelião anunciada pelo PCC. No Rio, o contato écom o Comando Vermelho”, disse.

58. Cf. “São Paulo exporta normas anti-facções”, Jornal da Tarde, ca-derno Cidade. Disponível em:<http://www.jt.estadao.com.br/editorias/2002/09/18/ger026.html>.Acesso em: 30 set. 2003.Ainda sobre a notícia de que a resolução do RDES era da Secretaria deJustiça, ler: “Após rebelião, ´Beira-Mar` vai ficar isolado”, O Estadode S.Paulo, caderno Cidades, 13/09/2002. Disponível em:<http://www5.estado.com.br/editorias/2002/09/13/cid029.html>. Aces-so em: 30 set. 2003.

59. “Vamos explicar para o preso que ele não manda mais na cadeia.Vamos acabar com as mordomias”, disse o novo diretor do Desipe,major PM Hugo Freire Vasconcellos Filho. Cf. “Desipe declara guerraàs facções nos presídios: Novo diretor do Departamento do SistemaPenitenciário adota linha-dura: ‘Vamos acabar com as mordomias’”,O Globo, 3. ed., caderno Rio, 16/09/2002, p.14. Ler ainda: “Governoanuncia retaliações contra presos: Detentos perderão privilégios, comovisita; serviço de inteligência irá investigar rendimento de agentespenitenciários”, Folha de S. Paulo, caderno Cotidiano, 13/09/2002,p.C3.

60. O primeiro Estado a importar uma resolução paulista foi o Rio.“São Paulo exporta normas anti-facções”, Jornal da Tarde, 18/09/2002,caderno Cidade. Disponível em:<http://www.jt.estadao.com.br/editorias/2002/09/18/ger026.html>.

61. A resolução SEJGAB no 13 de 12/09/2002 foi publicada no DiárioOficial no 175, Parte I, do Estado do Rio de Janeiro do dia 16/09/2002,p.16.

Segundo o art. 3o da resolução, o preso que for enquadrado no RDESdeverá ser submetido às seguintes regras para que tenha seus direitosgarantidos:

- conhecimento dos motivos de inclusão no RDES;

- saída da cela para banho de sol, no mínimo uma hora por dia;

- acompanhamento técnico programado;

- duração de duas horas semanais para as visitas de esposa, compa-nheira, ascendente, descendente e colaterais, conforme regulamenta-ção própria, da espécie;

- remissão do RDES, à razão de um dia descontado por seis dias nor-mais, sem falta disciplinar, com possibilidade de serem remidos, nomáximo 25 dias e cumpridos 155 dias de regime;

- a ocorrência de falta disciplinar determina a perda de tempo ante-riormente remido;

- contato com o mundo exterior pela correspondência escrita e leitura;

- entrega de alimentos, peças de roupas e de abrigo, e objetos de higienepessoal, uma vez ao mês, pelos familiares constantes no rol de visitas;

- o cumprimento do RDES exaure a sanção e nunca poderá ser invoca-do para fundamentar nova inclusão ou desprestigiar o mérito do san-cionado, salvo, neste último caso, a má conduta denotada no curso doregime e sua persistência no sistema comum;

- a inclusão e a exclusão do preso no RDES serão comunicadas em 48horas ao Juízo da Execução Penal;

- proibição de visita íntima;

- suspensão de regalias concedidas anteriormente ao ingresso no esta-belecimento de cumprimento do RDES.

62. A remuneração média de um agente, que precisava ter apenas onível médio de escolaridade, era de R$ 1.500,00. Cf. “´É preciso omínimo de contato´: Secretário admite ser ´praticamente impossível`impedir a corrupção”, O Estado de S.Paulo, caderno Cidades, 4/11/2002. Disponível em:<h t tp : / /www.es tado .es tadao .com.br /ed i to r i a s /2002 /11 /04 /cid016.html>. Acesso em: 30 set. 2003.

63. As informações seriam enviadas ao serviço de inteligência da se-cretaria para monitoramento, por exemplo, de casos de enriquecimen-to ilícito. Cf. “Governo do Rio anuncia retaliações contra presos” Fo-lha on line, 13/09/2002. Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u58961.shtml>.Acesso em: 30 set. 2003.

64. “Rio refém do medo: Ação de grupos e onda de boatos põem cida-de em clima de estado de sítio; Benedita vê razão política”, O Globo,caderno Rio, 1/10/2002, p.1; “Tráfico transforma o Rio na capital domedo: Polícia Federal investiga quem ordenou o fechamento do co-mércio e das escolas”, Jornal do Brasil, 2. ed., caderno Cidade, 1/10/2002, p.1; “Ameaça do tráfico e boatos aterrorizam o Rio”, Folha deS.Paulo, caderno Cotidiano, 1/10/2002; “Rio vive dia de ameaça emedo: Em nome do crime, comércio e escolas fechados”, O Estado deS.Paulo, caderno Cidades, 1/10/2002, p.C1.

65. “Ações de traficantes ou manobra política? Lojas e escolas fecha-ram em áreas dominadas pelo CV; o mesmo não aconteceu em redutosde facções rivais”, O Globo, 3. ed., caderno Rio, 1/10/2002, p.19.

66. “Polícia sabia que tráfico ia paralisar o Rio”, O Dia, 2/10/2002,p.1. Ler ainda a transcrição da conversa entre o traficante MarquinhoNiterói, do CV, com um cúmplice: “Vamos dar um blecaute na ZonaSul”. O Dia, 2/10/2002, p.1.

67. “Boatos foram planejados: Gravações do MP, entregues ao gover-no dia 17, mostram traficantes querendo paralisar o Rio”, Jornal doBrasil, caderno Rio, 2/10/2002, p.C1.

68. “Governadora: comércio abre hoje”, O Globo, 2. ed., caderno Rio,1/10/2002, p.20.

69. “Roberto Aguiar quer acabar com separação de facções em presí-dios: Secretário de Segurança proibiu advogados de visitar presos noBPChoque”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 1/10/2002, p.23.

70. No primeiro turno, dez estados receberam tropas federais. O enviode tropas é comum nas eleições. Em 1994, 12 estados, inclusive o Riode Janeiro, receberam as Forças Armadas. Em 1996, o Exército visi-tou dez unidades da Federação. Dois anos depois, nove estados pedi-ram e foram atendidos pelo TSE, que determinou o envio das forçasfederais. Cf. “Militares vão às ruas”, Correio Braziliense, 27/10/2002.Disponível em:<ht tp : / /www2.cor re ioweb .com.br /cw/EDICAO_20021027/pri_tem_271002_341.htm>. Acesso em: 30 set. 2003.

71. “Bandidos tentam invadir Bangu 3”, O Globo, caderno Rio, 16/10/2002, p.1

72. Os jornais fizeram listas dos mais importantes bandidos que se-riam resgatados de Bangu 3, entre eles: Isaías do Borel, o Rolinha, oMagno da Mangueira, o Polegar, o Aldair da Mangueira

73. “O objetivo era desmoralizar o governo, do qual eles, por motivosóbvios, não gostam, porque nunca sofreram tanta repressão. Eles es-tão descapitalizados e tiveram queda na venda de entorpecentes. Apolícia já estava em estado de alerta”, disse Jacqueline Muniz, coor-denadora de Segurança Pública. “Rocinha, o QG do terror”, O Globo,caderno Rio, 17/10/2002, p.14.

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74. Luiz Eduardo Soares foi candidato a vice-governador na chapa dagovernadora Benedita. Foi também coordenador do programa de se-gurança do Partido dos Trabalhadores (PT) na campanha de Lula.

75. “Benedita pede Exército: Forças Armadas vão garantir segurançano segundo turno das eleições”, Jornal do Brasil, 2. ed., caderno Rio,17/10/2002, p.C3.

76. O aparato contou com 47.350 pessoas, somados os efetivos daspolícias Civil, Militar e Federal e das Forças Armadas. Entre 13 e 15blindados dos tipos Cascavel, armados com canhões, e Urutu, para otransporte de tropas, além de jipes, foram destacados para o patrulha-mento ostensivo e deslocamento de pessoal entre os 30 “pontos for-tes”, distribuídos por áreas de risco da capital, Nilópolis, Belford Roxo,São João de Meriti, Nova Iguaçu e Duque de Caxias. “Eleição no Rioterá blindados do Exército”, O Estado de S.Paulo, editoria Nacional,25/10/2002. Disponível em:<h t tp : / /www.es tado .es tadao .com.br /ed i to r i a s /2002 /10 /25 /pol008.html>. Acesso em: 30/set. 2003.

77. Trata-se da resolução SSP no 572 de 25/10/2003, assinada pelosecretário de Estado de Segurança Pública, Roberto de Aguiar.

78. “Bloqueador de celular em Bangu 1 já está instalado”, Diário Ofi-cial do Estado do Rio de Janeiro, no 194, Parte I, 11/10/2002, p.1.

79. Resolução SSP no 572 art. 2º, II.

80. “Regras mais duras para Bangu 1: Polícia suspende encontrosíntimos, limita visitas e obriga presos a usar uniforme”, O Globo,caderno Rio, 31/10/2002, p.17. Segundo a resolução SSP no 572, art.17, “não será concedida a visita íntima em razão da Segurança daUnidade”.

81. “Uma secretaria só para presos: Governadora eleita anuncia pastaespecial para cuidar do sistema penitenciário”, O Globo, caderno Rio,26/12/2002, p.12.

82. O secretário Astério Pereira dos Santos apresentou seus objetivosadministrativos em palestra gravada na UCAM-Ipanema no dia 5/5/2003. “Os principais objetivos da política penitenciária são: 1. Nãorestringir a ação do Estado a providências contra fugas e motins massim, respeito à integridade física e moral conforme mandamento cons-titucional; 2. Elaborar projetos de reforma das legislações federal eestadual de forma a compatibilizar os princípios legais à realidadepenitenciária; 3. Integrar o sistema penitenciário na política governa-mental de defesa da sociedade; 4. Tornar efetivo o cumprimento daspenas restritivas de direito; 5. Não permitir o recolhimento de presosprovisórios e condenados nas delegacias policiais; 6. Implantar o exa-me de classificação para os condenados tornando-os premissa funda-mental para o tratamento penitenciário a ser aplicado; 7. Agilizar osprocessos de saída de presos recolhidos aos estabelecimentos prisionais,tornando mais céleres as tramitações dos livramentos condicionais,indultos, das progressões de regime e da remição; 8. Não deferir privi-légio ou fazer discriminação ao condenado no curso do cumprimentoda pena; 9. Obedecer nos projetos de edificações penitenciárias aosmodernos princípios da arquitetura prisional com vistas, principalmen-te, à racionalização dos custos, à localização adequada e à segurançacompatível.”

83. Ler: “Briga de Garotinho e Cesar pode cancelar convênio: Prefeitodiz que, se governadora não desmentir marido, acabará com acordoque prevê repasse de R$100 milhões”, O Globo, caderno Rio, p.17;“A conta que a cidade vai pagar: Rompimento de convênio entre esta-do e prefeitura pode causar impacto na segurança e também na econo-mia”, O Globo, caderno Rio, 29/09/2003, p.10. Por outro lado, o go-verno federal não liberou até o final do mês de setembro cerca de R$40 milhões para o Estado do Rio. Cf. ‘Ministro da Justiça admite libe-rar verba para o estado: Governadora volta a Brasília para negociarcom a União”, O Globo, caderno Rio, 29/09/2003, p.11.

84. Diário Oficial no 49, de 14/03/2003. Punições semelhantes já sãoimpostas aos detentos que cumprem pena nos presídios paulistas dePresidente Pudente e outro em Taubaté. A diferença é que no Rio ha-

verá “apenas uma galeria para punir os presos que tenham cometidouma falta grave”, segundo o secretário Astério. Cf. “Regras mais rigo-rosas para detentos: Com novo regime disciplinar, presos podem ficarsem visitas íntimas”, O Globo, caderno Rio, 15/03/2003, p.13. O se-cretário lastimou que dispusesse de uma única galeria, em entrevistaao Jornal do Brasil. “O ideal é que eu tivesse uma unidade exclusivapara esses regimes. Por exemplo: todo o presídio de Bangu 1 com suasquatro galerias e suas 48 celas. Como não era possível, peguei umagaleria com 12 celas para isso. Com o fim do castigo, ele vai para ou-tra galeria dentro da unidade. O regime disciplinar será mantido. Issoacalma os presos que não fazem nada por terem medo de ir para o re-gime”. Cf. “Durmo com a cabeça tranqüila”, Jornal do Brasil, entre-vista, 17/08/2003, p.A10.

85. Esta Resolução teve seu prazo de vigência prorrogado por mais 60dias pela Resolução SEAP/GAB no 28 de 30 de julho de 2003. Publi-cada no Diário Oficial no 146 de 06/08/2003.

86. Publicada no Diário Oficial no 126, de 09/07/2003. Esta matériatambém foi alvo de regulação pelo secretário de Justiça, Paulo Saboya,em termos assemelhados.

87. Informação dada pelo secretário em palestra gravada na UCAM-Ipanema no dia 5/5/2003. O problema da superlotação carcerária estápresente em todo o Brasil. Só de janeiro a julho de 2003, entraramno sistema quase 50 mil novos presos. No mesmo período foram cria-das menos de 20 mil vagas. Em 2002, o país tinha 240 mil presos;em agosto de 2003, quase 290 mil. Até dezembro de 2003, estima-seque existirão mais de 300 mil presos, o que corresponderá – se nadafor feito – a quase o dobro da capacidade do sistema carcerário exis-tente em agosto de 2003. “Por isso os secretários de Justiça de todo opaís encaminharam ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a ´Cartado Rio` em que declararam estado de emergência no sistema peni-tenciário brasileiro.” Cf. “Secretários declaram emergência no siste-ma penal: Em carta a Lula, pedem abertura de cem mil vagas em pre-sídios para evitar falência do sistema”, O Globo, caderno O País, 21/08/2003, p.11.

88. A mobilização criminosa alastrou-se por 33 bairros de quatro mu-nicípios e da capital. Nove pessoas ficaram feridas – sete delas quei-madas em ataques a ônibus com coquetéis molotov. Bombas explodi-ram em Botafogo, Tijuca e Ipanema. Trinta e oito ônibus foram des-truídos: 25 incendiados e 13 depredados.

89. “Explosão na Vieira Souto: Bombas atingem prédios em Ipanema.Parte do comércio fecha”, O Dia online, caderno Polícia, 25/02/2003.Disponível em:<http://odia.ig.com.br/odia/policia/pl250216.htm>. Acesso em: 30/set.2003. Acesso em: 30/set. 2003.

90. “Vamos agir com todo o rigor previsto na lei. Antes, os baderneiroseram detidos, indiciados por danos e liberados após pagamento de fian-ça. Agora, todos serão autuados com base no Artigo 14 da Lei no 6368/76. Ninguém vai sair da delegacia rindo da polícia”, afirmou o delega-do Álvaro Lins. Cf. “Crime sem fiança: Polícia detém 45 suspeitos dabaderna, indiciados por associação ao tráfico”, O Dia online, cadernoPolícia, 25/02/2003.Disponível em:<http://odia.ig.com.br/odia/policia/pl250217.htm>. Acesso em: 30/set.2003.

91. Quinze favelas foram vasculhadas e cinco ocupadas por tempoindeterminado. Setenta e oito pessoas foram presas, e 11 armas e maisde 100 quilos de drogas apreendidos.

92. “Uma semana que será difícil de esquecer: Bombas, mortes e ôni-bus queimados marcaram a semana de aniversário do Rio”, Jornal doBrasil, 2. ed., caderno Rio, 2/03/2003, p.C1.

93. “Ordem partiu de Bangu 1: Governo reconhece que preso coman-dou ataques. Marcinho VP, homem de confiança de Beira-Mar, é o maiorsuspeito”. O Dia, caderno Geral, 10/04/2003, p. 8. Os comparsas deBeira-Mar que teriam promovido as mobilizações seriam, de acordo coma Polícia, Marcinho VP, Isaías do Borel, Lambari e Marquinho Niterói.

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A POLÍTICA DO CÁRCERE DURO: BANGU 1

94. “Exército ocupa as ruas da cidade: Presença da tropa tranqüilizacarioca”, Jornal do Brasil, 2. ed., caderno Rio, 2/03/2003, p.C1. Lerainda: “Rio monta operação inédita para proteger Sambódromo: Polí-cia vai escoltar carros alegóricos e infiltrar agentes até na avenida”, OGlobo,caderno Rio, 2/03/2003, p.1.

95. “Turismo não se rende ao tráfico e Rio terá o melhor carnaval em10 anos: Faturamento do setor deverá crescer 40% em relação ao anopassado”, O Globo, caderno Rio, 2/03/2003, p.15. Ler ainda: “Pes-quisa: 70% dos turistas pretendem voltar: mesmo ouvidos durante umasemana violenta no carnaval, visitantes querem estar no Rio nesta épocaem 2004”, O Globo, caderno Rio, 8/03/2003, p.17.

96. “Um carnaval mais violento: homicídios e assaltos aumentam, mes-mo com Forças Armadas nas ruas”, O Globo, caderno Rio, 5/03/2003,p.9.

97. “Motorista rompe bloqueio e é morto a tiros: Militares disparamcontra carro com casal que não obedeceu à ordem de parar”, O Globo,caderno Rio, 5/03/2003, p.9.

98. “Exército mata professor em blitz no Rio: Governadora pede quemilitares fiquem mais 30 dias nas ruas”, Jornal do Brasil, 5/03/2003,p.1. Observação: Foi neste momento que o secretário Astério reeditouo RDES, pela Resolução SEAP/GAB no 8, de 7 de março de 2003.

99. “Exército já treina para combater tráfico no Rio: Objetivo é pre-parar militares para atuar com poder de polícia nas ruas”, O Globo,28/09/2003, p.1; Ler ainda: “Manual contra a guerra urbana: Exérci-to elabora normas para treinar militares no combate ao crime organi-zado”, O Globo, caderno Rio, 28/09/2003, p.18; “Exército como úl-timo recurso: Entidades discutirão estratégia para evitar emprego dasForças Armadas contra o crime”, O Globo, caderno Rio, 29/09/2003,p.10.

100. Cf. “Juízes pedem novas leis para combate à violência: OAB acusaBeira-Mar pela execução de magistrado em São Paulo”, O Globo, 16/03/2003, p.1. Ler ainda: “Investigação leva a Beira-Mar: Traficantedo Rio teria sido interrogado ontem, junto com outros criminosos dopresídio”, O Globo, 2. ed., 16/03/2003, p.15; “Executado juiz quecuidava de ‘Beira-Mar’, Jornal do Brasil, 17/03/2003, p.1.

101. “Ao confronto”, O Globo, 16/03/2003, p.1.

102. “Alckmin quer mais rigor para preso: O governador vai proporendurecimento na Lei das Execuções Penais”, Folha de S.Paulo, ca-derno Cotidiano, 17/03/2003, p.C1.

103. “Rio quer garantir integridade dos magistrados: Cogita-se o usodo sistema Juiz Sem Rosto, em que o criminoso desconhece nome dequem lhe aplicou a pena”, O Globo, caderno Rio, 17/03/2003, p.9.

104. “Câmara aprova mais rigor no sistema carcerário: Entre mudan-ças na Lei de Execuções Penais está isolamento por período de até umsexto da pena”, O Estado de S.Paulo, caderno Cidades, 2/04/2003.Disponível em:<h t tp : / /www.es tado .es tadao .com.br /ed i to r i a s /2003 /04 /02 /cid040.html>. Acesso em: 30/set. 2003.

105. “Pena mais dura para morte de servidor: comissão do Senado apro-va projeto que aumenta punição em até dois terços”, O Globo, cader-no O País, 20/03/2003, p.10. O Senado aprovou em abril um projetode lei que amplia de 30 para 40 anos o prazo máximo de cumprimentode penas de prisão e classifica de homicídio qualificado os crimes contramagistrados, integrantes do Ministério Público, jurados e policiais. Cf.“Senado aprova projeto que aumenta penas de prisão”, Agência Esta-do, 16/04/2003. Disponível em:<http://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2003/abr/16/225.htm>.Acesso em: 30/set. 2003.

106. O Quadro 1 foi publicado em: Agencia Senado, 02/07/2003. Dis-ponível em:<http://www.senado.gov.br/agencia/noticias/2003/7/not028.asp>.Acesso em: 30/set. 2003.

107. “Polícia só vai patrulhar em comboio”, JB online, 10/04/2003.Disponível em:< h t t p : / / j b o n l i n e . t e r r a . c o m . b r / d e s t a q u e s / g u e r r a _ t r a f i c o /mat_1004_policia.html>. Acesso em: 30/set. 2003.

108. Na semana anterior, cinco bairros tinham sido atingidos por tirose bombas. Cf. “Medo em onze bairros: Comerciantes decidem fecharlojas mais cedo após receber cartas assinadas com nome de facção cri-minosa”, O Dia online, 8/04/2003. Disponível em:<http://odia.ig.com.br/odia/policia/pl080401.htm>. Acesso em: 30/set.2003.

109. “Na carta – escrita a mão por uma mulher que atua como pombo-correio de Isaías –, o bandido chegou a dizer que o CV já teria o apoiodas Farc – Forças Revolucionárias da Colômbia e da facção paulistaPrimeiro Comando da Capital – PCC. O Dia teve acesso à cartaendereçada a Dinho Porquinho, que controlava o tráfico de drogas naFavela de Antares, em Santa Cruz”. Cf. “Mensagens atribuídas a trafi-cantes”, O Dia online, caderno Polícia, 8/04/2003. Disponível em:<http://odia.ig.com.br/odia/policia/pl080402.htm>. Acesso em: 30/set.2003.

110. Tratava de questões como ressocialização de presos e reforma dosistema penitenciário e até do Código Penal. “Assinado” por presos de11 presídios, o documento empregava muitos termos específicos dalinguagem jurídica.

111. Os grevistas reivindicavam o pagamento imediato do 13’ salárioe a elevação do piso de R$ 151 para R$ 240. “Mais um desafio para asegurança do Estado: Agentes penitenciários entraram em greve”,O Dia online, caderno Polícia, 9/04/2003. Disponível em:<http://odia.ig.com.br/odia/policia/pl090407.htm>. Acesso em: 30/set.2003.

112. Para um resumo deste caso, ler: “Mais uma vez de volta à cadeia:Bandido que fugiu do Batalhão de Choque comandava seqüestro deempresário paulista”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 8/08/2003, p.14.

113. O secretário Astério confirmou que houve feridos, encaminhadosao IML – Instituto Médico Legal para a realização de exames. “Vaitudo ser apurado, mas, enquanto eles estão levando tiros de borracha,meus diretores estão levando tiros de chumbo e morrendo”, disse ele,em referência aos assassinatos do diretor de Bangu 3, Abel Silvério deAguiar, há duas semanas, e do chefe de segurança do complexo deBangu, Paulo Roberto Rocha, em julho. Cf. “Presos ligados ao CVfazem greve de fome; governo corta visitas”, Folha de S.Paulo, 19/08/2003. Disponível em:<http://noticias.bol.com.br/destaques/2003/08/19/ult95u80570.jhtm>.

114. O Conselho da Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro –Comerj foi criado e instalado na forma dos artigos 80 e 81 da Lei no

7210 de 11 de julho de 1984. É um dos órgãos que fiscaliza a execu-ção penal.

115. Para uma análise detalhada deste episódio, ler: Caldeira (2003).

116. Manifesto de sete páginas do CV lido e entregue ao Conselho daComunidade para ser repassado às autoridades, à imprensa e à socie-dade.

117. A resolução SEAP/GAB no 8, de 07 de março de 2003, indica noseu artigo 7o: “Será realizada, em caráter provisório, a galeria ‘A’ daUnidade Prisional Laércio Pellegrino, para cumprimento das sançõesprevistas na presente Resolução”.

118. Existe uma mobilização contrária à política do cárcere duro: omovimento antiterror. Esta corrente de opinião é composta por advo-gados criminalistas, professores de Direito Penal e de Direito Proces-sual Penal, defensores públicos, membros do Ministério Público, ma-gistrados e cidadãos. Ver o Manifesto Antiterror e a Carta de Princí-pios do Movimento, que era apoiado por 16 entidades e cerca de 300operadores do Direito em junho de 2003, no site do IBCCRIM (Insti-tuto Brasileiro de Ciências Criminais): www.ibccrim.org.br . A Cartade Princípios foi lançada na Faculdade de Direito da Universidade de

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São Paulo, no dia 20 de maio de 2003. Ler também: Boletim doIBCCRIM de fevereiro, maio e junho, que contém vários artigos con-trários ao RDD – Regime Disciplinar Diferenciado.

119. Durante visita à Vara de Execuções Penais, no dia 17 de setem-bro de 2003, a juíza Ana Paula Barros comentou que não existiam, porexemplo, mandados de segurança impetrados contra a aplicação daregulamentação disciplinar do RDES, e demais resoluções impostasdesde o governo Benedita. Ou seja, os presos ligados ao ComandoVermelho não optaram pela via judicial para contestar a nova regula-mentação.

120. “Juiz autoriza a volta de Beira-Mar para o Rio: Secretário de Ad-ministração Penitenciária do Estado diz que vai recorrer porque nãoaceita a transferência do preso”, O Globo, caderno Rio, 2/09/2003,p.21. Ler ainda: “Rosinha recorrerá ao STJ contra a medida: MinistroMárcio Thomaz Bastos diz que decisão de juiz paulista foi um equí-voco”, O Globo, caderno Rio, 3/09/2003, p.12. “Alckmin: Beira-Marnão volta para o Rio: governador e ministro discutem cooperação en-tre polícias nos estados”, O Globo, caderno Rio, 27/09/2003, p.15.

121. Todo dia, a mídia expõe as mazelas do sistema penitenciário doRio de Janeiro. Ler, por exemplo: “Bloqueadores de celular já não fun-cionam em Bangu: Estado diz que Bangu 1 deixou de ser prisão desegurança máxima”, O Globo, 7/09/2003, p.1.

122. O governo Benedita da Silva, por exemplo, endureceu a regula-ção disciplinar dos cárceres, além de ter realizado inúmeras apreen-sões de armas, explosivos e celulares nos presídios. No entanto, ne-nhum funcionário do Desipe foi demitido. Apenas 6,2% das 225sindicâncias contra funcionários, desde a posse da governadora petista,em 6 de abril, resultaram em punições. No período de abril a novem-bro de 2002, só os acusados em 14 investigações administrativas fo-ram punidos. A legislação propiciava a lentidão nas investigações in-ternas. Antes de perder o emprego, o funcionário passava porsindicância (das 225, 187 permanecem como sindicâncias), investiga-ção preliminar e, depois, inquérito administrativo (eram 24 no Desipeem novembro de 2002). “É preciso o mínimo de contato: Secretárioadmite ser ´praticamente impossível` impedir a corrupção”, O Estadode S.Paulo, caderno Cidades, 4/11/2002. Disponível em:<h t tp : / /www.es tado .es tadao .com.br /ed i to r i a s /2002 /11 /04 /cid016.html>. Acesso em: 30/set. 2003.123. Bilhetes encontrados pela polícia e por promotores evidenciaramque líderes da organização – PCC, mesmo isolados no Regime Disci-plinar Diferenciado, continuavam recebendo informações e dando or-dens, inclusive para matar, de dentro do Centro de Readaptação Peni-tenciária de Presidente Bernardes. No parlatório, não havia contatofísico. Preso e advogado eram separados por um vidro. Não havia, po-rém, isolamento de som. O líder do PCC, Marcola, lia as mensagenstrazidas pelo seu advogado. Depois transmitia suas decisões, que eramanotadas pelo advogado, aos outros membros da rede criminosa. Cf.“Polícia desvenda plano terrorista do PCC: Bilhetes revelam até in-tenção de atacar estação de metrô; para Ministério Público, ala radicalcontinua na ativa”, Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 2/10/2003,p.C4. Ler ainda: “Alerj torna obrigatória revista em advogados: Obje-tivo da lei, que ainda precisa de sanção de Rosinha, é dificultar entra-da de armas, drogas e celulares em presídios”, O Globo, caderno Rio,2/10/2003, p.22.

124. Sobre a rebelião de novembro de 2001, ler: “Entrada de armaspesadas em Bangu 3 não é explicada; Agentes são suspeitos de depre-dar a escola dos presos”, O Globo, 2. ed., caderno Rio, 24/11/2001,p.23; “Vinte horas de tensão e medo em Bangu 3”, O Globo, 3. ed.,caderno Rio, 24/11/2001, p.14. Sobre a rebelião de outubro de 2002,ler: “Bandidos tentam invadir Bangu 3”, O Globo, caderno Rio, 16/10/2002, p.1.

125. Aliás, nas conversas com presos, escutam-se frases que improvi-sam sobre esse mesmo tema. Na primeira visita que fiz a Bangu 3, ofaxina já dizia o seguinte: “Se bacana pode roubar, pobre também pode”.Num Estado em que o secretário de Esportes, Chiquinho da Manguei-

ra, supostamente comparecia a Bangu 3, onde estavam os traficantesque controlavam aquele morro, não dá para entender por que um ban-dido se sente discriminado quando está encarcerado. Ler: “Escuta te-lefônica comprometeria Chiquinho: deputado diz que homem citadopor traficante em gravação autorizada pela Justiça seria o secretáriode Esportes”, O Globo, caderno Rio, 14/08/2003, p.18; “Chiquinho:três inquéritos no MP: Comissão da Alerj ouvirá amanhã o secretáriopela segunda vez”, O Globo, caderno Rio, 24/08/2003, p.25; “CasoChiquinho acaba em pizza: Alerj arquiva pedido de cassação de man-dato de deputado que teria pedido trégua para tráfico”, O Globo, ca-derno Rio, 10/09/2003, p.11. Sobre o caso do Propinoduto, ler:“Propinoduto causou rombo de R$200 milhões à União: Justiça liber-ta representantes de banco suíço envolvido no escândalo”, O Globo,28/08/2003, p.1.

126. Sobre a “cultura do controle”, ler: Garland (2001: 6-20). Para umabreve caracterização da “cultura do controle”, ler: Caldeira (2003: 111-112).

127. No dia 10 de setembro de 2003, o secretário de Segurança, AnthonyGarotinho, anunciou que quatro mil policiais civis e militares esta-riam nas ruas do Estado a partir das 22 horas. Segundo informaçõesobtidas pela Secretaria de Segurança, através do disque-denúncia e deinvestigações, atos violentos poderiam atingir vias expressas, prédiospúblicos, consulados, shoppings e hotéis. O Comando Vermelho su-postamente promoveria atos de vandalismo para “comemorar” e nãodeixar “passar em branco” o primeiro aniversário da chacina de seusadversários em 11 de setembro de 2002 em Bangu 1. Cf. “Alerta má-ximo contra o crime: Polícia põe 4 mil homens nas ruas após saberque bandidos planejam atos de vandalismo para marcar o aniversárioda rebelião em Bangu 1”, O Dia online, 11/09/2003. Disponível em:<http://odia.ig.com.br/odia/policia/pl110901.htm>. Acesso em: 30/set.2003.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALDEIRA, C. Bangu 3: Desordem e ordem no quartel-general doComando Vermelho. Revista Inteligência, n.22, p.91-115, jul./set.2003. Disponível em:<http://insightnet.com.br>. Acesso em: 15/10/2003.

FOUCAULT, M. Estratégia, poder-saber. Organização e seleção detextos Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera Lúcia AvellarRibeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003a.

__________. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Tradução deRaquel Ramalhete. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2003b.

GARLAND, D. The culture of control: crime and social order incontemporary society. Chicago: The University of Chicago Press,2001.

ILANUD. Incidentes prisionais no sistema carcerário. São Paulo:Ilanud, n.9, 1998.

SOARES, L.E. A politização da insegurança. O Globo, Rio de Janei-ro, 17 out. 2002, Caderno Rio, p.15.

SOUZA, P. de. Narcoditadura: o caso Tim Lopes, crime organizado ejornalismo investigativo no Brasil. São Paulo: Labortexto Edito-rial, 2002.

CESAR CALDEIRA: Professor da Escola de Ciências Jurídicas da Universi-dade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Professor da Faculdade deDireito da Universidade Candido Mendes-Ipanema. Atual membro doConselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, responsável porinspeções nas unidades prisionais.

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POLICIAMENTO COMUNITÁRIO E PREVENÇÃO DO CRIME: A VISÃO ...

O

POLICIAMENTO COMUNITÁRIO EPREVENÇÃO DO CRIME

a visão dos coronéis da Polícia Militar

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a visão dos coronéis da Polícia Militar do Estado de São Paulo queparticiparam da direção da Comissão Estadual de Polícia Comunitária acerca do policiamento comunitário eda sua importância para a prevenção do crime.Palavras-chave: polícia; crime; São Paulo.

Resumo: The aim of this article is to analyze the point of view of the colonels of the Military Police of SãoPaulo who participated in the State Commission on Community Policing with regard to the importance ofpreventive community policing.Key words: police; crime; São Paulo.

PAULO DE MESQUITA NETO

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 103-110, 2004

objetivo deste artigo é analisar a visão dos coro-néis da Polícia Militar do Estado de São Pauloque participaram da direção da Comissão Esta-

dual de Polícia Comunitária acerca do policiamento co-munitário e da importância do policiamento comunitáriopara a prevenção do crime. Espera-se que a análise con-tribua para a compreensão do processo de implantação dopoliciamento comunitário e estimule o debate sobre o po-liciamento comunitário e a prevenção do crime no Estadode São Paulo.

A literatura sobre o policiamento comunitário mostraque a liderança exercida pelos chefes de polícia é umfator fundamental para a implantação e consolidaçãodeste tipo de policiamento. Neste sentido, analisar a vi-são dos coronéis da Polícia Militar que participaram dadireção da Comissão Estadual de Polícia Comunitária arespeito do policiamento comunitário e da prevenção docrime pode ajudar a compreensão do processo de implan-tação do policiamento comunitário, incluindo as dificul-dades encontradas e os resultados alcançados, e das pos-sibilidades de consolidação deste tipo de policiamentono Estado de São Paulo. Este artigo é um esforço inicialnesta direção.1

POLICIAMENTO COMUNITÁRIO

O policiamento comunitário é uma filosofia de poli-ciamento que ganhou força nas décadas de 70 e 80, quandoas organizações policiais em diversos países da Américado Norte e da Europa Ocidental começaram a promoveruma série de inovações na sua estrutura e funcionamentoe na forma de lidar com o problema da criminalidade. Empaíses diferentes, as organizações policiais promoveramexperiências e inovações com características diferentes.Mas, algumas destas experiências e inovações sãogeralmente reconhecidas como a base de um novo modelode polícia, orientada para um novo tipo de policiamento,mais voltado para a comunidade, que ficou conhecidocomo policiamento comunitário (Bayley; Skolnick, 2001;Skolnick; Bayley, 2002).2

Quatro inovações são consideradas essenciais para odesenvolvimento do policiamento comunitário (Bayley;Skolnick, 2001:224-232; Skolnick; Bayley, 2002:15-39):- organização da prevenção do crime tendo como base acomunidade;

- reorientação das atividades de policiamento para enfati-zar os serviços não emergenciais e para organizar e mobi-

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lizar a comunidade para participar da prevenção do cri-me;

- descentralização do comando da polícia por áreas;

- participação de pessoas civis, não-policiais, no planeja-mento, execução, monitoramento e/ou avaliação das ati-vidades de policiamento.

Estudos de processos de implantação do policiamentocomunitário em diversos países apontam quatro fatorescruciais para a implantação e consolidação deste tipo depoliciamento (Bayley; Skolnick, 2001:233-236):- envolvimento enérgico e permanente do chefe com osvalores e implicações de uma polícia voltada para a pre-venção do crime;

- motivação dos profissionais de polícia por parte do che-fe de polícia;

- defesa e consolidação das inovações realizadas;

- apoio público, da sociedade, do governo e da mídia.

Estes estudos apontam também as principais dificulda-des para a implantação e consolidação do policiamentocomunitário (Bayley; Skolnick, 2001:237-241; Skolnick;Bayley, 2002:71-92):

- a cultura tradicional da polícia, centrada na prontaresposta diante do crime e da desordem e no uso da forçapara manter a lei e a ordem e garantir a segurança pública;

- a expectativa ou a demanda da sociedade pela prontaresposta diante do crime e da desordem e pelo uso da forçapara manter a lei e a ordem e garantir a segurança pública;

- o corporativismo dos policiais, expresso principalmenteatravés das suas associações profissionais, que temem aerosão do monopólio da polícia na área da segurança pú-blica, e conseqüentemente a redução do emprego, do sa-lário e dos benefícios dos policiais, além daquele decor-rente do crescimento da segurança privada, e também oaumento de responsabilização dos profissionais de polí-cia perante a sociedade;

- a limitação de recursos que a polícia dispõe para se de-dicar ao atendimento de ocorrências, a investigação cri-minal e a organização e mobilização da comunidade, es-pecialmente se a demanda pelo atendimento de ocorrênciase investigação criminal é grande (seja em virtude do nú-mero de ocorrências e crimes e/ou pela pressão do gover-no e da sociedade);

- a falta de capacidade das organizações policiais de mo-nitorar e avaliar o próprio trabalho e fazer escolhas entretipos diferentes de policiamento, levando em considera-ção sua eficácia, eficiência e legitimidade;

- a centralização da autoridade na direção das polícias, ea falta de capacidade da direção de monitorar e avaliar otrabalho das unidades policiais e profissionais de polícia;

- as divisões e conflitos entre os policiais da direção e osda ponta da linha, entre policiais experientes e os poli-ciais novos – e, no caso do Brasil, uma dificuldade adi-cional seria a divisão e conflito entre os policiais respon-sáveis pelo policiamento ostensivo na polícia militar eaqueles responsáveis pela investigação criminal na polí-cia civil;

- as divisões e conflitos entre a polícia e outros setores daadministração pública;

- as divisões e conflitos entre grupos e classes sociais nointerior da comunidade.

Diante destas dificuldades, há sempre o risco da opo-sição e da resistência a experiências e inovações visandoa implementação do policiamento comunitário, dentro efora da polícia. Mas há também um risco de que o policia-mento comunitário venha a ser implantado como mais umaatividade especializada, atribuída a unidades e a profis-sionais especializados, pouco integrados às unidades res-ponsáveis pelo patrulhamento, atendimento a ocorrênciase investigação criminal. Ou mesmo o risco de que as uni-dades policiais, quando passam a ter a responsabilidadede fazer o policiamento comunitário, dêem menos valoràs atividades de policiamento comunitário do que às ati-vidades tradicionais de polícia. Por exemplo, designandopara estas atividades menos tempo, menos recursos e/ouprofissionais menos qualificados.

O papel das lideranças da polícia é, portanto, funda-mental para iniciar e sustentar experiências e inovaçõesvisando à introdução do policiamento comunitário.Freqüentemente as dificuldades são apresentadas comouma explicação ou justificativa para a não implantaçãodo policiamento comunitário ou para as limitações edeficiências no processo de implantação do policiamentocomunitário. Há muitos casos em que a explicação ou justi-ficativa é válida. Mas há também muitos casos em que aexplicação ou justificativa simplesmente mascara a faltade visão, vontade e/ou capacidade de ação das liderançasda polícia.

BRASIL – SÃO PAULO

No Brasil, as organizações policiais começaram a pro-mover experiências e inovações visando transformar suaestrutura e funcionamento, bem como sua relação com a

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POLICIAMENTO COMUNITÁRIO E PREVENÇÃO DO CRIME: A VISÃO ...

sociedade durante a transição para a democracia, particu-larmente após a eleição direta dos governadores de esta-do em 1982. Em São Paulo, em 1985, durante o governoFranco Montoro, o governo do Estado começou a criarconselhos comunitários de segurança, existentes até hoje,que se reúnem regularmente e contam com a participaçãodo delegado responsável pela Polícia Civil, do oficial res-ponsável pela Polícia Militar, e representantes da comu-nidade.

No Rio de Janeiro, as idéias do policiamento comuni-tário começaram a ser introduzidas na polícia militar peloCel. PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira, comandante-geral da Polícia Militar em 1983-84 e 1991-94, durante ogoverno Leonel Brizola. Neste período, a Polícia Militardo Rio de Janeiro produziu um caderno sobre o policia-mento comunitário em 1993 (PMRJ 1993) e traduziu parao português o livro Policiamento Comunitário: ComoComeçar (Trojanowicz; Bucqueroux, 1994). Em 1993-94,a Polícia Militar, em parceria com a organização da so-ciedade civil Viva Rio, promoveu uma experiência depoliciamento comunitário em Copacabana (Muniz et al.,1997).

No Estado de São Paulo, desde o início da década de90, a Polícia Militar começou a promover iniciativas lo-cais de mudanças organizacionais que apontavam na di-reção do policiamento comunitário, sendo freqüentemen-te citadas as experiências de Ribeirão Preto e Bauru.Mediante um conselho geral da comunidade que funcionajunto ao comando-geral, a Polícia Militar chegou a ela-borar um projeto para implantação do policiamento co-munitário em 1993 (PMSP, 1993).

Em setembro de 1997, na seqüência do escândaloprovocado por um caso de corrupção e violência policialna Favela Naval em Diadema, município da Região Metro-politana de São Paulo, e da eclosão de greves de policiaismilitares e civis em diversos estados do país, a PolíciaMilitar, sob a liderança do Cel. PM Carlos Alberto deCamargo, adotou o policiamento comunitário comofilosofia e estratégia organizacional e criou, junto aocomando-geral, uma Comissão de Assessoramento paraImplantação do Policiamento Comunitário, dirigida porcoronéis da Polícia Militar e integrada por representantesde unidades da Polícia Militar e entidades da sociedadecivil (Mesquita Neto, 1999; Mesquita Neto; Affonso,1998). No ano 2000, a Polícia Militar reestruturou estacomissão, que passou a chamar-se Comissão Estadual dePolícia Comunitária, e criou o Departamento de PolíciaComunitária e Direitos Humanos, também vinculado ao

comando-geral da Polícia, com o objetivo de aperfeiçoare intensificar o processo de implantação do policiamentocomunitário no Estado.

Ao lado das experiências locais e de outros estadosbrasileiros, as experiências de policiamento em outrospaíses, particularmente nos Estados Unidos, no Canadá eno Japão foram analisadas e serviram como referênciaimportante para os oficiais da Polícia Militar e para osmembros da Comissão Estadual de Polícia Comunitáriano processo de implantação do policiamento comunitárioem São Paulo a partir de 1997.3

Os coronéis que participam, ou participaram nopassado, da direção da Comissão Estadual de PolíciaComunitária, são também comandantes de área e têm sobseu comando unidades operacionais da Polícia Militar.Estão, portanto, em uma posição privilegiada parapromover a implantação do policiamento comunitário noEstado, influenciando a natureza das experiências einovações promovidas pela Polícia Militar nesta área.Além disso, devido à sua experiência à frente da ComissãoEstadual, estão em uma posição privilegiada para conheceras possibilidades e as dificuldades para implantação destetipo de policiamento, bem como os resultados alcançadospela Polícia Militar através da implantação deste tipo depoliciamento.

METODOLOGIA

As fontes de dados para ao artigo foram as respostasde um grupo de sete coronéis a um questionário de 12perguntas, aberto, preparado pelo autor. Foram inicialmen-te escolhidos para responder o questionário 14 coronéis,incluindo os 13 coronéis que já participaram ou ainda par-ticipam da direção da Comissão Estadual de Polícia Co-munitária, e um coronel, recentemente promovido a esteposto, que participou intensamente das atividades da Co-missão Estadual e do Departamento de Polícia Comunitá-ria e Direitos Humanos da Polícia Militar.

O Departamento de Polícia Comunitária e DireitosHumanos auxiliou o levantamento de informações forne-cendo os telefones de contato de 12 dos 13 coronéis quejá participaram ou ainda participam da direção da Comis-são Estadual de Polícia Comunitária. Dos 14 coronéis pro-curados pelo autor, nove já estavam na reserva, um esta-va passando da ativa para a reserva e quatro ainda estavamna ativa.

Dez dos 14 coronéis foram efetivamente contatados econcordaram em responder o questionário. Três coronéis

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foram procurados, mas não retornaram ligações telefôni-cas e/ou não responderam os e-mails. O autor não pôdecontatar, porque não teve acesso ao telefone ou e-mail,de um dos coronéis.

O autor enviou o questionário por escrito aos dez co-ronéis contatados, incluindo coronéis que atuavam na ci-dade de São Paulo e em cidades da Região Metropolita-na de São Paulo e do interior do Estado. Um deles, apósreceber o questionário, disse não dispor das informaçõesnecessárias para respondê-lo. Dois outros não enviaramas respostas. Sete coronéis enviaram as respostas por es-crito ao autor. A análise apresentada a seguir, portanto,reflete a visão de apenas um grupo de coronéis, não avisão do conjunto dos coronéis da Polícia Militar. Maseste é um grupo de coronéis que estiveram ou ainda es-tão diretamente envolvidos no processo de implantaçãodo policiamento comunitário e têm conhecimento diretodos sucessos e fracassos, possibilidades e limites do po-liciamento comunitário no Estado.

O questionário e as respostas apresentadas pelos coro-néis focalizaram os seguintes tópicos:- os crimes que mais contribuem para a insegurança dapopulação e suas causas;

- as ações para prevenção dos crimes relacionados;

- a eficácia do policiamento comunitário para prevençãodos crimes relacionados;

- a implantação e os resultados do policiamento comuni-tário em São Paulo;

- a consolidação e aperfeiçoamento do policiamento co-munitário em São Paulo.

CRIME E INSEGURANÇA

Na visão dos sete coronéis da Polícia Militar queresponderam o questionário, os crimes que mais con-tribuem para a insegurança da população no Estado deSão Paulo são os crimes violentos, que atingem ouameaçam atingir a vida e a integridade física das pessoas.Os crimes mais citados são o homicídio e o roubo,havendo referências explícitas ao roubo praticado comarma de fogo e ao roubo seguido de morte (latrocínio).Também são mencionados crimes cuja prática fre-qüentemente envolve grupos organizados, como o tráficode drogas, contrabando, receptação, e prostituiçãoinfanto-juvenil.

O furto, crime praticado sem violência, mas cujonúmero de ocorrências registradas pela Polícia no Estado

é superior ao número de ocorrências dos crimes praticadoscom violência mencionados acima, atingindo, portanto, umnúmero maior de pessoas, foi citado como uma dasprincipais fontes de insegurança por apenas um dos setecoronéis.

Questionados sobre as causas destes crimes, os coro-néis apontam, em primeiro lugar, problemas econômicos,sociais, culturais, particularmente deficit na área da edu-cação e na área do emprego e renda, que por sua vez sãoassociados à ausência ou à fragilidade de políticas públi-cas nestas áreas. Dois coronéis apontam problemas dedesestruturação familiar e, na esfera das atitudes e com-portamentos individuais, o egoísmo e o consumismo, per-cebidos como atitudes e comportamentos estimulados pelamídia e associados à fragilização das leis e normas queregulam a vida em sociedade.

Os coronéis apontam também a impunidade, associa-da a problemas na aplicação da lei em decorrência defalhas na legislação e de deficiências nos sistemas desegurança pública e justiça criminal. Quatro coronéis fa-zem referências explícitas a problemas relacionados àatuação da polícia: um refere-se ao distanciamento entrea Polícia e a comunidade; outro à subnotificação de cri-mes; outro ao desaparelhamento da polícia; e outro aocrescimento da corrupção nas organizações dos sistemasde segurança pública e justiça criminal, associando esteproblema em parte ao crescimento do crime organizadoe em parte a deficiências nos sistemas de controle inter-no e externo destas organizações.

Dois coronéis, atentos aos fatores situacionais que au-mentam o risco de mortes violentas, apontam a dissemi-nação das drogas e do álcool e das armas de fogo, associa-dos ao crescimento do crime organizado, particularmentedo tráfico de drogas, como fatores importantes para o au-mento da criminalidade e da insegurança da população.Um coronel aponta a procura de recursos para compra dedrogas como um fator importante para explicar o aumen-to de roubos e furtos, e a insegurança dos criminosos naprática de roubos e furtos, principalmente diante de umareação da vítima, como fator responsável pela ocorrênciade mortes violentas, registradas como homicídios ou la-trocínios.

Um coronel aponta a falta de integração entre o gover-no federal, os governos estaduais e os governos munici-pais, e também a demagogia ou ideologia, na sociedade eno governo, como obstáculos ao desenvolvimento de po-líticas públicas para redução da criminalidade e melhoriada segurança pública.

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POLICIAMENTO COMUNITÁRIO E PREVENÇÃO DO CRIME: A VISÃO ...

PREVENÇÃO DO CRIME

Para a prevenção dos crimes mencionados acima, oscoronéis enfatizam a importância do fortalecimento daspolíticas públicas nas áreas econômica, social e cultural,particularmente na área da educação e na geração deemprego e renda, e também da redução da impunidadeatravés de mudanças na legislação e do aperfeiçoamentoda atuação das organizações dos sistemas de segurançapública e justiça criminal. Um coronel enfatiza a impor-tância do desenvolvimento de políticas econômicas, sociaise culturais direcionadas a crianças, adolescentes e jovenscomo medida fundamental para evitar o recrutamentodestes grupos pelo grupo crime organizado. Um coronelenfatiza a importância de políticas penitenciárias capazesde recuperar e promover a reinserção social dos cri-minosos.

Dois coronéis fazem referência explícita ao policiamen-to comunitário, em resposta à pergunta sobre o que pode-ria ser feito para a prevenção dos crimes que geram inse-gurança da população no Estado de São Paulo. Um coronelenfatiza a importância de estudos e análises visando iden-tificar a natureza e as causas específicas da incidência decrimes em cada local, bairro ou cidade, a fim de que sejapossível identificar a melhor estratégia de ação policialpara cada caso.

Na visão do conjunto dos coronéis, deve haver maiorintegração das ações governamentais entre a União, osestados e os municípios, tanto na área das políticas eco-nômicas, sociais e culturais quanto na área das políticasde segurança pública e das políticas criminais e peniten-ciárias. Um coronel enfatiza a importância da constitui-ção de forças-tarefas para prevenção de crimes, a partirdo município, com a participação de organizações poli-ciais federais, estaduais e municipais, e acompanhamentode lideranças comunitárias. Outro coronel destaca a im-portância da integração das ações de organizações poli-ciais, outras organizações governamentais e organizaçõesda sociedade num mesmo Estado, bem como de intercâm-bio de experiências entre organizações policiais em esta-dos diferentes.

Um coronel faz referência à necessidade de valoriza-ção dos profissionais de polícia e outro faz referência ànecessidade de aperfeiçoamento da formação e qualifica-ção profissional dos policiais e da gestão das organiza-ções policiais, visando diminuir a corrupção e a violênciana polícia, aumentar a sua eficácia e eficiência e princi-palmente a sua legitimidade perante a sociedade.

INTEGRAÇÃO DA POLÍCIA COM ACOMUNIDADE

Na visão dos coronéis, o policiamento é uma das ativi-dades necessárias para a prevenção criminal, mas, isola-damente, tem efeitos limitados sobre a situação da segu-rança pública no Estado. Apesar destas limitações, opoliciamento comunitário é considerado um tipo de poli-ciamento capaz de contribuir para a melhoria da seguran-ça pública, principalmente quando promover a integraçãode esforços da polícia e da comunidade no desenvolvi-mento de programas de prevenção do crime e gestão lo-cal da segurança pública.

As razões pelas quais o policiamento comunitário éconsiderado eficaz na prevenção do crime são variadasna visão dos coronéis. Primeiro, o policiamento comuni-tário é um tipo de policiamento voltado para a prevençãocriminal, e não apenas para o atendimento de ocorrênciase investigação criminal. Segundo, o policiamento comu-nitário promove a integração dos esforços da polícia e dacomunidade na tentativa de eliminar as causas da violência.Terceiro, o policiamento comunitário integra a polícia e acomunidade na definição de prioridades em relação àprevenção criminal e permite a adequação da atuação dapolícia às necessidades da comunidade. Quarto, opoliciamento comunitário, pela aproximação entre a políciae a comunidade, é um tipo de policiamento que permite amelhor administração e resolução de conflitos e problemasna sua origem. Quinto, o policiamento comunitário,também pela aproximação entre a polícia e a comunidade,é um tipo de policiamento que a aumenta a segurança e amotivação dos policiais e dos membros da comunidadeno enfretamento da criminalidade.

Os coronéis apontam a redução da criminalidade etambém o aumento da confiança da comunidade na políciacomo as principais evidências da eficácia do policiamentocomunitário, e acreditam que a efetiva implantação dopoliciamento comunitário contribui para a prevenção docrime e o aumento da sensação de segurança da população.Fazem referência a experiências internacionais, parti-cularmente nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Japão,para mostrar que a efetiva implantação do policiamentocomunitário contribui para a redução da criminalidade.

Em relação a experiências no Brasil, os coronéis men-cionam avanços e retrocessos na tentativa de implantaçãodo policiamento comunitário, mas apontam como exem-plo de experiência bem-sucedida o policiamento comuni-tário implantado em algumas regiões da cidade de São

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Paulo (Jardim Ângela, Belém, Centro, Brás, Santana,Brooklin, Higienópolis, Favela Pantanal e Favela Alba),Santo André (Sacadura Cabral), Ribeirão Preto (Oeste),Bauru, Presidente Prudente, Andradina, Araraquara, SãoJosé dos Campos, Jundiaí e Santos (Campo Grande).

IMPLANTAÇÃO E RESULTADOS

Em relação à adoção do policiamento comunitário comofilosofia e estratégia organizacional pela Polícia Militar em1997, os coronéis fazem referência à influência de três fa-tores, que podem ser considerados complementares.

O primeiro diz respeito à busca da excelência por par-te da Polícia Militar, a partir da incorporação de lições deexperiências locais e de experiências internacionais depoliciamento comunitário. Outro exemplo desta busca daexcelência, paralelo e complementar à adoção do policia-mento comunitário, seria a adoção do programa da quali-dade pela Polícia Militar.

O segundo diz respeito à busca de uma nova filosofia eestratégia organizacional por parte da Polícia Militar, maiscentrada em ações de natureza preventiva, que valorizas-se o policiamento ostensivo. Esta busca aconteceria apóso fracasso de um projeto denominado “rádio patrulhamentopadrão”, devido a não participação da comunidade noprojeto e à pressa em desenvolvê-lo por razões políticas,e, especialmente, após o escândalo e a cobrança de mu-danças na estrutura e no funcionamento da polícia na se-qüência da denúncia de um caso de corrupção e violênciapolicial na Favela Naval, em Diadema, cidade da RegiãoMetropolitana de São Paulo.

Um terceiro fator mencionado pelos coronéis dizrespeito ao processo de organização e mobilização dasociedade e à busca pela Polícia Militar de mudançasorganizacionais e operacionais, particularmente no seurelacionamento com a sociedade, visando dar respostas anovas expectativas da sociedade e integrar esforços dapolícia e da sociedade na direção de objetivos comuns.

Há, entretanto, visões diferentes sobre a natureza dopoliciamento comunitário. Na visão de um dos coronéis,o policiamento comunitário seria um tipo de policiamen-to que reforça idéias e práticas que sempre existiram napolícia, através de uma maior aproximação entre a polí-cia e a comunidade. Na opinião de outro coronel, entre-tanto, o policiamento comunitário seria uma solução emer-gencial, diante da situação de abandono de muitascomunidades, até que seja possível a implementação depolíticas econômicas, sociais e culturais de maior alcan-

ce, mais do que uma nova filosofia e estratégia organiza-cional da Polícia Militar.

Na visão dos coronéis, o policiamento comunitário podeser considerado implantado no Estado, mas precisa deajustes e aperfeiçoamentos e ainda não está consolidado.Os coronéis enfatizam a importância da difusão de infor-mações sobre a filosofia de policiamento comunitário naPolícia Militar através de normas internas e cursos de for-mação e aperfeiçoamento profissional. Enfatizam tambémo estabelecimento de bases de polícia comunitária, e aformação de parcerias entre a Polícia Militar e a comuni-dade para a melhoria da segurança pública em áreas demaior incidência de crimes.

Por outro lado, alguns coronéis registram dúvidas sobreo enraizamento dos princípios de polícia comunitária. Naopinião de um coronel, o modelo tradicional de policia-mento ainda se encontra fortemente arraigado na práticapolicial. Outro coronel diz que o modelo de tradicionalde policiamento muitas vezes se mantém sob a roupagemdo policiamento comunitário. Dois coronéis dizem que opoliciamento comunitário ainda é muito dependente dasiniciativas individuais de profissionais de polícia.

Os coronéis apontam algumas dificuldades para a im-plantação e consolidação do policiamento comunitário.Estas dificuldades incluem a falta de apoio por parte desetores do governo, da sociedade e mesmo da polícia,muitas vezes atribuído ao desconhecimento das caracte-rísticas do policiamento comunitário, e especialmente àidéia de que o policiamento comunitário implica ofavorecimento ou tratamento especial dos setores da co-munidade que colaboram com a polícia e/ou de que o po-liciamento comunitário reduz a capacidade de ação repres-siva da polícia. Incluem também a resistência de oficiaise/ou praças da Polícia Militar, e também dos policiais ci-vis, decorrentes da cultura tradicional da polícia, e da cren-ça de que o policiamento comunitário é um fenômenopassageiro. Estes fatores contribuiriam para a insuficiên-cia dos recursos humanos e materiais direcionados para opoliciamento comunitário.

Os coronéis apontam ainda dificuldades de gestão, in-cluindo planejamento, execução, monitoramento e ava-liação do processo de implantação do policiamento co-munitário, que deixam o processo de implantação, emgrande parte, na dependência das idéias e interesses dosresponsáveis por cada unidade policial e, assim, aumen-tam o risco de desvios na implantação deste tipo de po-liciamento. Um problema específico nesta área, citadopor dois coronéis, é a rotatividade dos policiais e a difi-

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culdade de fixar os policiais em uma função ou área, emtodos os níveis da organização. Outro problema é a pressana implantação do policiamento comunitário, devido arazões políticas, sendo que, na visão de quase todos, aimplantação do policiamento comunitário é um proces-so lento e de longo prazo. Outra dificuldade menciona-da ainda é a diversidade de situações locais e as particu-laridades de cada comunidade, que exigem estilosdiferentes e estratégias diferentes de implantação do poli-ciamento comunitário.

Na esfera local, uma dificuldade seria a adequada com-preensão das necessidades da comunidade em matéria desegurança pública, por parte da polícia e da comunidade,a partir da troca de informações, do conhecimento dosfatos, para definição consensual, não unilateral, dos pro-cedimentos a serem adotados pela polícia e pela comuni-dade para prevenção do crime.

Apesar destas dificuldades, os coronéis considerambem-sucedido o processo de implantação do policiamen-to comunitário no Estado e apontam, como principais re-sultados da implantação deste tipo de policiamento, a apro-ximação entre a Polícia Militar e a comunidade e aformação de parcerias entre as mesmas para o desenvol-vimento de programas de prevenção do crime. Os coro-néis apontam também a redução da criminalidade e o au-mento da sensação de segurança da população nos locaisem que o policiamento comunitário foi implantado comoum resultado deste tipo de policiamento. Um coronel che-gou a relacionar a implantação do policiamento comuni-tário à estabilização e até redução das taxas de diversoscrimes no Estado a partir do ano 2000. Ao mesmo tempo,um coronel observa que, nos locais onde o policiamentocomunitário é implantado, a polícia passa a ser mais pro-curada pela população e há um aumento do número de re-gistros de ocorrências de alguns crimes que antes deixa-vam de ser registrados.

CONSOLIDAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO

Para os coronéis que responderam o questionário, aconsolidação e o aperfeiçoamento do policiamento comu-nitário constituem objetivo desejável, mas dependente deuma série de fatores, alguns deles dentro e outros fora doalcance da Polícia Militar.

Um fator é a ação constante e determinada das lideran-ças da polícia no fortalecimento do policiamento comu-nitário, particularmente na formação e aperfeiçoamentoprofissional dos policiais, na ampliação dos recursos

humanos e materiais destinados ao policiamento comu-nitário, e no monitoramento e avaliação dos resultados dasexperiências de policiamento comunitário. Um coronelenfatizou a importância do fortalecimento do papel docomandante de companhia como gestor local da segurançapública. Nesta visão, os comandantes de companhia seriamresponsáveis pela resolução dos problemas e melhoria dasegurança pública, a partir da adequada utilização dosrecursos policiais e comunitários disponíveis na área, eos resultados obtidos seriam constantemente monitoradose avaliados pelo comando da polícia.

Outro fator é o engajamento efetivo da polícia e da co-munidade no policiamento comunitário, na discussão edesenvolvimento de práticas de policiamento comunitá-rio e programas de prevenção do crime e da violência.Neste sentido, foi também ressaltada a importância dasensibilização da mídia e de lideranças da polícia e da co-munidade, e de campanhas para difusão de informaçãosobre as características do policiamento comunitário edivulgação de experiências bem-sucedidas de policiamentocomunitário. Um coronel mencionou a necessidade deimplantação de bases comunitárias em todo o Estado, res-saltando, entretanto, que a implantação não deve imobili-zar os policiais, uma vez que os policiais devem se apro-ximar da comunidade para desenvolver projetos voltadospara a prevenção do crime.

Um terceiro fator é um engajamento do governo esta-dual, do governo federal e dos governos municipais, in-cluindo um maior envolvimento na implantação da polí-cia comunitária da polícia civil, polícia técnico-científicae outras agências do governo estadual, e parcerias com asguardas municipais.

CONCLUSÃO

O objetivo deste artigo é principalmente apresentar avisão de um grupo de coronéis da Polícia Militar sobre opoliciamento comunitário e a prevenção do crime no Es-tado de São Paulo. O artigo não teve por objetivo expli-car ou interpretar, e muito menos comentar, criticar ouelogiar, a visão dos coronéis. Mas pretendeu estabelecerrelações entre a visão dos coronéis e as idéias presentesna literatura sobre o policiamento comunitário, e contri-buir para a compreensão do processo de implantação des-te tipo de policiamento no Estado de São Paulo.

Esta breve apresentação da visão dos coronéis mostraa complexidade do processo de implantação e consolida-ção do policiamento comunitário, bem como a diversida-

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de de pontos de vistas existente na Polícia Militar em re-lação a este processo. Mostra também que, na visão doscoronéis, apresentada no artigo, o policiamento comuni-tário foi implantado no Estado de São Paulo devido aoempenho de lideranças e grupos situados no interior daPolícia Militar, com apoio de organizações e grupos dasociedade civil, mas sem muito apoio da Polícia Civil ede outras organizações do governo estadual, das prefeitu-ras municipais e do governo federal. De acordo com estavisão, o maior envolvimento do governo estadual e dasprefeituras municipais, com apoio do governo federal, épercebido como fator importante para a consolidação e oaperfeiçoamento do policiamento comunitário e a preven-ção do crime no Estado.

Entretanto, na visão dos coronéis, as dificuldades naimplantação do policiamento comunitário derivam nãoapenas de fatores externos, mas também de fatores inter-nos à Polícia Militar, que estão freqüentemente relacio-nados aos externos, sendo que muitas dificuldades apon-tadas pelos coronéis coincidem com as dificuldadesapontadas pela literatura sobre o policiamento comunitá-rio. Entre as dificuldades de natureza interna à polícia ci-tadas pelos coronéis, chama atenção a dificuldade de ges-tão da organização, particularmente para planejar,implementar, monitorar e avaliar uma mudança organiza-cional, que implica uma certo grau de descentralizaçãodo comando, com a participação de policiais de todos ossetores da organização e lideranças da comunidade. Nes-te sentido, parece importante procurar compreender asrazões pelas quais a Polícia Militar implementa de formaparalela e quase segregada os processos de implantaçãodo policiamento comunitário e da gestão pela qualidade,apresentados como exemplo da busca de excelência porum dos coronéis, e, eventualmente, verificar a possibili-dade de integrar os dois processos em benefício do aper-feiçoamento da atuação da polícia na prevenção do crimee da melhoria da segurança pública.

NOTAS

1. O autor agradece a colaboração do Departamento de Polícia Comu-nitária e Direitos Humanos da Polícia Militar do Estado de São Pauloe dos sete coronéis que contribuíram para a realização deste estudo,respondendo a perguntas de um questionário sobre policiamento co-munitário e prevenção do crime: Cel. Res. PM Carlos Adelmar Ferreira,Cel. Res. PM Cid Monteiro de Barros, Cel. Res. PM Luis FranciscoCoscione, Cel. Res. PM Rui César Melo, Cel. PM Noel Miranda deCastro, Cel. PM Renato Penteado Perrenoud e Cel. PM Rubens Casa-do. O autor agradece também a atenção dos outros coronéis que parti-

cipam ou participaram da direção da Comissão Estadual de PolíciaComunitária, que foram contatados, mas por razões diversas não pu-deram responder o questionário dentro do prazo solicitado.

2. Um estilo de policiamento comunitário centrado no estabelecimentode postos de polícia denominados Koban foi implantado no Japão apósa 2a Guerra Mundial, resultado da combinação de um modelo tradicionalde polícia desenvolvido no Japão no século XIX e ideais democráticosnorte-americanos (Bayley; Skolnick, 2002:52). Entretanto, foi apenasnas décadas de 70 e 80, com o desenvolvimento de experiências depoliciamento na América do Norte e Europa Ocidental que esse tipode policiamento tornou-se mais conhecido internacionalmente.

3. O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo eo Centro de Pesquisa e Educação em Direitos Humanos da Universi-dade Ottawa desenvolveram um programa de intercâmbio internacio-nal através do qual policiais civis e militares e líderes comunitáriospaulistas realizaram visitas ao Canadá e policiais e líderes comunitá-rios canadenses realizaram visitas ao Brasil, para trocar informações eexperiências na área do policiamento comunitário e do controle exter-no da polícia. A Polícia Militar do Estado de São Paulo desenvolveuum programa de intercâmbio com a Polícia Nacional do Japão, atra-vés do qual policiais japoneses realizam visitas ao Brasil e policiaismilitares brasileiros realizam visitas ao Japão para trocar informaçõese experiências na área do policiamento comunitário. A experiência dosEstados Unidos ficou conhecida principalmente através do livro Poli-ciamento Comunitário: Como Começar (Trojanowicz; Bucqueroux,1994), traduzido para o português pela Polícia Militar do Rio de Ja-neiro e reeditado pela Polícia Militar de São Paulo em 1999.

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PAULO DE MESQUITA NETO: Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violên-cia da Universidade de São Paulo, Secretário-Executivo do Instituto SãoPaulo Contra a Violência ([email protected]).

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OFÍCIO DE POLÍCIA, VIOLÊNCIA POLICIAL E LUTA POR CIDADANIA EM MATO GROSSO

A

OFÍCIO DE POLÍCIA, VIOLÊNCIAPOLICIAL E LUTA POR CIDADANIA

EM MATO GROSSO

Resumo: O ofício de polícia em Mato Grosso tem sido marcado pela violência policial nas práticas de contro-le social. Isso vem fomentando a luta por cidadania e o respeito ao Estado Democrático de Direito. O artigotrabalha ainda com idéia de que a universidade tem um papel importante na formação e construção de umapolícia cidadã.Palavras-chave: violência policial; controle social; cidadania.

Abstract: The police force in Mato Grosso State is considered violent in the manner in which it executessocial control. This has fueled the struggle for civil rights and for a respect for democratic rule of law. Thearticle further explores the idea that the university has an important role to play in the formation and constructionof the police-citizen.Key words: police violence; social control; citizen rights.

NALDSON RAMOS DA COSTA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 111-118, 2004

problemática da violência e da criminalidade nasociedade mato-grossense nestas duas últimasdécadas tomou proporções que vêm preocupan-

do as autoridades e gerando a insegurança entre a popula-ção. Assim como no Brasil, a violência encontra-se difu-sa por todas as redes de sociabilidade e poder. Nas redesde sociabilidade mato-grossense é comum o emprego daviolência como forma de resolver os conflitos entre asrelações interpessoais e nas que contrapõem os interessesdas elites e das não-elites.

Ela está presente inclusive nas instituições encarrega-das de combater a violência e de promover a justiça. Osórgãos de segurança, representados pelas polícias Civil eMilitar, aparecem constantemente envolvidos em violên-cia policial cometida principalmente contra as populaçõessegregadas e suspeitas de algum crime.

O entendimento da origem da violência policial e dacriminalidade em Mato Grosso passa pela tese desenvol-vida por O’Donnell (1988), segundo a qual essa violênciatem suas raízes num passado marcado pelo “autoritaris-mo socialmente implantado”. Para Pinheiro (1997:47), aspráticas autoritárias seriam ainda resultado direto da con-tinuidade e de uma longa tradição de autoritarismo das

elites contra as não-elites que, por sua vez, são repro-duzidas entre os mais pobres. Essas práticas autoritárias eviolentas são empregadas também pelos órgãos encarre-gados de fazer a segurança e promover a justiça em nossopaís. Pinheiro reforça sua tese dizendo que essa violênciaé “endêmica” e faz parte, desde o Brasil tradicional, daestrutura social e política brasileira. Ela continua presen-te nessas estruturas sociais e de poder mesmo depois doperíodo republicano e pós-redemocratização do país em1988. O maior dilema das autoridades brasileiras tem sidoa dificuldade de mantê-la sob o controle dos governos,num país tão marcado por desigualdades e onde as leissão constantemente desrespeitadas pelas elites e até mes-mo pelas autoridades. Ainda segundo Pinheiro (1997), háno Brasil um enorme gap entre o que está escrito na lei ea realidade brutal da aplicação da mesma.

Na visão de Skolnick (1966), no que se refere à vio-lência policial, no entanto, a experiência policial e as suaspráticas girariam em torno da combinação de perigo eautoridade. É o perigo que vai pôr em risco o emprego daautoridade. Desta forma a adesão do policial às normaslegais variaria de acordo com o perigo a que é exposto.Assim, o policial pode empregar o uso da força ilegal de

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acordo com o perigo a que ele se sente submetido, ouquando a sua autoridade é questionada ou desrespeitada.Contra os cidadãos oriundos das camadas populares, deonde vem a maioria dos delinqüentes, o policial acabaagindo como mais rigor ou com excesso de poder e ar-bitrariedade, porque os julgam, com base em critériossubjetivos e baseados na condição de classe ou de cor,como criminosos em potencial que colocariam em risconão só a ordem social, como a sua própria vida. Já no re-lacionamento com as elites, ele tende a ser mais civiliza-do, porque teoricamente essas pessoas não oferecem ne-nhum risco à sua segurança, exceto quando ele nãoreconhece o prestígio e o poder dessa pessoa como mem-bro de um grupo ou de uma classe social considerada pri-vilegiada.

Por essas razões é que Caldeira (2000) afirma que existeum hiato entre a legalidade formal e a cidadania. Essa ci-são entre democracia formal e práticas de controle socialdeu origem ao que ela denomina de “democracia dis-juntiva”. Essa disjunção reflete-se no descompasso entrecidadania política e cidadania civil. A tradição de umacultura autoritária, violenta, enraizada como costumeira,somada ao gap e ao descompasso entre a lei e a cidadaniacivil, faz com que a democracia não se efetive para a maio-ria da população, visto que ela não tem razão de não te-rem acesso aos instrumentos legais de defesa dos seusdireitos, configurando-se naquilo que Tavares dos Santos(1993) denominou de “cidadania dilacerada”.

Em Mato Grosso, o ofício de Polícia está fortementeassociado a esse passado autoritário, marcado pelo usoilegítimo da força para conter o aumento da criminalida-de. As políticas de segurança pública no Estado das duasúltimas décadas vêm encontrando dificuldades em arbi-trar os conflitos e combater a criminalidade, respeitandoo monopólio legítimo da violência e os direitos dos cida-dãos. As formas e as práticas de controle social têm resul-tado em violência policial e no desrespeito aos direitoshumanos. Essas são as premissas das quais partimos parasituar o ofício de polícia e a violência em Mato Grosso.

A prática de controle social baseada numa cultura au-toritária e no uso ilegítimo da força (excesso de poder)vem comprometendo o Estado Democrático e atentandocontra os direitos humanos. Nesse contexto, trabalho coma hipótese de que as universidades e as academias têm umpapel de destaque na formação de uma polícia que atuede acordo com as normas e preceitos democráticos.

A violência e a criminalidade foram aceleradas em MatoGrosso, em particular na capital Cuiabá, devido ao pro-cesso de ocupação e expansão das suas fronteiras agríco-

las mediante uma política de colonização oficial e parti-cular (Tavares dos Santos, 1997a), que deu origem a umaurbanização acelerada e desordenada, ao lado do cresci-mento dos problemas sociais e da criminalidade, tanto nocampo como nas cidades.

Mas é partir da década de 90 que emergem os conflitosque resultarão no aumento da exclusão social, da violên-cia e da criminalidade. Os conflitos, nesse novo espaçode sociabilidade, ao invés de caminharem em direção aodesenvolvimento integrado e ao “processo civilizatório”(Elias, 1999), como era de se esperar, tiveram uma dire-ção bem diversa. A violência logo tornou-se realidade nasperiferias das cidades e entre as redes de poder.

Em virtude dos conflitos decorrentes das redes de so-ciabilidade e poder e do aumento da criminalidade, sãomuito comuns em Mato Grosso, nos dias atuais, as práti-cas de controle social ou de solução dos conflitos combase no uso ilegítimo da força policial ou de crimes depistolagem e violência privada. Essas práticas encontram-se fora do controle do “monopólio legítimo da violência”(Weber, 1991), fazendo de Cuiabá uma das cidades maisviolentas.1 O aumento da violência policial,2 por sua vez,vem atentando contra os direitos humanos e o Estado deDireito.

Em síntese, esse é o quadro da criminalidade e da vio-lência que vem se agravando no Estado de Mato Grosso(Tabela 1), nos últimos anos, a ponto de fazer de Cuiabáa 3a capital mais violenta do país, sendo ainda a campeãno aumento em número de homicídios contra os jovens,conforme pesquisa da Unesco sobre violência nas capi-tais brasileiras (Unesco, 2000) divulgada em 2000.3

TABELA 1

Ocorrências PoliciaisMato Grosso – 1997-2000

Violência contra a Pessoa 1997 1998 1999 (1) 2000 (2)

Agressões 2.269 2.378 1.603 -Tentativas de Homicídios 1.277 1.400 306 -

Homicídios 369 473 319 180

Fonte: Secretaria de Segurança Pública – Polícia Militar; IML-MT.(1) Dados do 1o semestre.(2) Dados do 1o semestre. Homicídios na imprensa de Mato Grosso.

A violência policial encontra-se presente em todas ascorporações policiais brasileiras. As possibilidades decontrole e sua diminuição estão relacionadas à realizaçãode reforço dos sistemas de accountability4 (Chavigny,1995).Enquanto os policiais não forem responsabilizados e punidospor atitudes ilegais e extralegais, a violência e os abusos

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tendem a permanecer como uma prática usual e comum doofício de polícia. A impunidade tem sido considerada aprincipal motivadora do emprego indiscriminado da força,como se o uso ilegítimo da força fosse considerado inerenteà atividade policial.

A falta de controle da violência, difusa e policial, vemrevelando a fragilidade das políticas de formação e con-trole do ofício de polícia. Por isso, as fronteiras entre olegal e o ilegal são instáveis. Como os abusos policiaissão cometidos, na maioria das vezes, impunemente, nãosó a polícia é temida, mas também os sistemas de justiçacriminais são deslegitimados e não percebidos como re-curso confiável na busca dos meios legais de solução dosconflitos (Caldeira, 2000:155).

Os desvios no ofício de polícia, em Mato Grosso, nãodiferem muito dos padrões praticados na maioria das fede-rações brasileiras. As práticas e a cultura do ofício, segundoBretas (1997:82) estão muito associadas ao autoritarismo,ao conservadorismo, ao cinismo, ao pessimismo, ao ma-chismo, que resultam em truculência e na idéia de queexiste um inimigo da sociedade. Isso contrapõe-se aosdireitos humanos, aos códigos de conduta ética e profissio-nal ensinados nas Academias e Centros de FormaçãoProfissional.

O crescimento da violência policial vem sendo associa-do ainda à ineficiência do aparelho policial, à ineficiên-cia do Judiciário e à impunidade dentro das corporaçõesde ofício. Essa impunidade e ineficiência do sistema cri-minal são motivadoras e incentivadoras das açõestruculentas e ilegais dos grupos privados e dos órgãos desegurança. Alguns policiais (civis e militares), devido aobaixo controle, consideram-se acima da lei e acreditamque a solução para a violência e a criminalidade está naação truculenta das forças policiais. Esses policiais con-tam ainda com o apoio de parte da população e com apossibilidade de não serem denunciados, julgados e puni-dos exemplarmente por suas atitudes violentas e arbitrá-rias. Alguns depoimentos na imprensa local deixam claraa visão da sociedade e policiais.5

No Mato Grosso, essas denúncias pela imprensa deviolência policial ou de “justiceiros” revelam como a vio-lência encontra-se privatizada e presente nas práticas e nacultura do ofício de polícia, contando com apoio inclusi-ve de parte da população e de alguns programas televisivosque têm como matéria-prima a notícia policial. Essas no-tícias de jornais ilustram como Cuiabá continua sendo umacidade violenta, apesar dos esforços das autoridades daárea de segurança. Os dados de 1999, relacionados aonúmero de homicídios, por exemplo, indicam que a rela-

ção de mortos por habitantes atingiu a faixa de 51 para100 mil/habitantes (Viana, 2000:26).

O modelo de polícia e de controle social em Mato Gros-so encontra-se ainda associado ao militarismo e ao autori-tarismo, tendo como missão a idéia de que existe “um ini-migo” da sociedade e do Estado. Para ser eficientes narepressão, alguns policiais acham que têm de combater ocriminoso a todo custo e com todos os meios. Com isso,acabam identificando o delito (crime) ao criminoso, o quejustifica o uso da força física. Esse “inimigo” é visto comouma ameaça à segurança do Estado e à ordem social.

Chavigny (2000:65) afirma que o papel da polícia naAmérica Latina foi definido erroneamente, pois “muitospolíticos de forma impensada aceitam um modelosemimilitar no qual o papel da polícia é ‘combater’ o ini-migo ‘crime’, incorporado à pessoa do criminoso”.

Esta definição do papel da polícia é que tem geradouma interpretação equivocada da missão do policial emgarantir segurança para si e para sociedade. É com basenesse modelo de polícia que vários governos vêm plane-jando suas políticas de segurança e ditando as práticas decontrole social baseadas no aumento da repressão ao cri-me de forma violenta.

Esse modelo é responsável, em grande medida, pelodesvio de conduta, pela violência policial e pela não efe-tivação do Estado de Direito no Brasil. O modelo semi-militar veicula que, para ser “eficiente” em sua missão decontrolar a população e de “combater o inimigo”, é preci-so fazer uso constante da força ilegítima para imobilizaros oponentes da lei. Outra prática que tem extrapolado oslimites legais do uso da força é a representada pela utili-zação indiscriminada da arma de fogo, a exemplo do queocorre no Rio de Janeiro, onde é grande o número demortos e feridos em confronto com a polícia (Cano, 1997).

Em algumas Academias de Polícia, ainda permanecenos currículos a idéia do “policial guerreiro” e da exis-tência de um “inimigo da sociedade” que precisa ser der-rotado a todo custo, a fim de resguardar os nossos valorese preservar a vida e a propriedade. Essa cultura acaba porreforçar a violência no ofício de polícia, conforme demons-tra o trabalho desenvolvido por Albuquerque (1999). Nessetrabalho, o autor demonstra a relação estreita entre o cur-rículo existente na Academia de Polícia associada com essaimagem guerreira, militar, em que se celebra um tempono qual a polícia tinha prestígio, o monopólio da forçabruta, e era por isto legitimada. Em Mato Grosso, até ofinal da década de 90, era muito comum os instrutores daAcademia e do Centro de Formação Profissional – Cefapempregarem técnicas e táticas militares que valorizavam

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a idéia de policial “guerreiro”, ou humilhações do tipo:“beber sangue de galinha”, ser afogado, arrastar-se na lama,levar “tapa na cara”.

Essas formas variadas assumidas pela violência difusae a violência decorrente do ofício de polícia é que vemcomprometendo o Estado Democrático de Direito e des-respeitando os direitos humanos em Mato Grosso.

LUTAS SOCIAIS CONTRA AVIOLÊNCIA POLICIAL

Para contrapor-se a essa onda de violência presente nasredes de sociabilidade e poder, representada pelas práti-cas de torturas, pelas execuções sumárias, pela violêncianos presídios, pela violação dos direitos humanos em MatoGrosso, várias instituições vêm trabalhando no sentido dedenunciar essas práticas e exigindo das autoridades do Exe-cutivo e do Judiciário a punição dos responsáveis. Entreessas instituições, destacam-se os Centros de Defesa dosDireitos Humanos ligados à Igreja: Centro de Defesa dosDireitos Humanos Henrique Trindade (Cuiabá), Centro deDefesa dos Direitos Humanos Simão Bororo (Rondo-nópolis), Centro de Defesa dos Direitos Humanos deCáceres (Cáceres); a Ordem dos Advogados/OAB-MT; aAssociação dos Familiares e Vítimas de Violência –AFVV; a Associação de Proteção e Assistência aos Con-denados – APAC; a Comissão de Direitos Humanos daAssembléia Legislativa (1999) e da Câmara dos Verea-dores de Cuiabá (1999), entre outras manifestações pú-blicas envolvendo partidos políticos de esquerda, CUT,sindicatos e universidade.

Foram essas instituições da sociedade civil que deramsubsídios para a elaboração do relatório em que o represen-tante da Comissão de Direitos Humanos da ONU, NigelRodley, incluiu Mato Grosso como um Estado que viola osdireitos humanos. Este relatório divulgado em Genebra(Suíça), no dia 11 de abril de 2001, reforça o que já era doconhecimento de toda a sociedade e das autoridades go-vernamentais. Em determinada parte afirma-se textualmenteque “a tortura está entronizada não apenas como técnica deinvestigação da polícia, mas em métodos de controledisciplinar nas instituições penais, servindo também parafortalecer esquemas de extorsão em seus bastidores”.

Esse relatório da ONU de certa forma foi confirmadopelas autoridades locais e pelos representantes dos direi-tos humanos. Conforme declarações dadas ao Diário deCuiabá, de 22/04/2001, reconhecendo a existência e aprática de tortura no ofício de polícia, bem como a neces-sidade de controlá-la.

O aumento da criminalidade e da violência policial emMato Grosso, na década de 90 e início de 2000, vem obri-gando governo e sociedade civil a se organizarem para fa-zer frente ao desrespeito aos direitos humanos e para res-guardar o Estado Democrático de Direito, fortalecendo destaforma a cidadania civil. As denúncias de vítimas da violên-cia policial são constantes e nem sempre esclarecidas epunidas exemplarmente. Policiais e autoridades admitemessa prática com a maior naturalidade, apesar de reconhe-cerem que ela compromete a imagem das corporações eatentam contra os direitos humanos. Notícias como estassão bastante comuns nos meios de imprensa locais:– Ussiel Tavares, presidente da OAB em MT. Para ele “aassistência jurídica gratuita, principalmente no estágio dedetenção, é ilusão para 85% dos presos. Criticou o fatode o governo do Estado ter contratado apenas 43 defen-sores públicos para atender a população carente do Esta-do. Sobre o relatório, disse que OAB pretende retomarimediatamente as discussões a respeito da garantia aosdireitos humanos e, especialmente, das variadas formasde violência policial”.– Corregedorias de Polícias: Civil e Militar. “Todas asdenúncias são apuradas e, caso comprovadas, resultam empunição dos responsáveis, sem exceção”, sustenta SilasTadeu Caldeira, corregedor da Polícia Civil. Segundo ele,desde 1995, quando foi criada a corregedoria, 70 agentesforam demitidos, por crimes que vão da tortura ao abusode poder. Outros 200 foram suspensos, advertidos ou re-preendidos. Ao todo, mais de mil denúncias foramregistradas contra policiais neste período.– Na Polícia Militar, o corregedor Cel. Jorge RobertoFerreira da Cruz incentiva o cidadão que se sentir preju-dicado pela ação da policial a procurá-lo diretamente.Desde a sua criação, em 1994, a Corregedoria Militar abriu671 IPMs, 971 sindicâncias e 243 PADMs para apurar aconduta de integrantes da corporação. Ao todo, 127 fo-ram excluídos, sendo quatro oficiais.– Desembargadora Shelma Lombardi de Kato. “As nor-mas e tratados internacionais sobre direitos humanos as-sinados pelo Brasil têm a força de matéria constitucional.Mas não é isso que acontece na prática. Isso porque a fal-ta de capacitação na matéria leva muitos juízes e promo-tores a abrandar penas de torturadores. Em relação à tor-tura, o Poder Legislativo é incoerente e o Executivo éomisso. O Judiciário peca pela falta de capacitação de seusmembros em relação aos Direitos Humanos”.– Delegado Dirceu Vicente Lino, presidente do Sindicatodos Delegados de Polícia (Sindepol). “A tortura, apesar

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de ainda ser utilizada como instrumento de investigação,é uma prática em desuso. As resistências a mudanças euatribuo ao despreparo e à falta de condições de trabalho.Aquele policial do pau-de-arara, que acha que confessaré obrigatório, está sendo banido do nosso contexto. Apolícia vem mudando mas, infelizmente, ainda há colegasque defendem este tipo de comportamento”.– Teobaldo Witter, pastor, coordenador do Centro deDefesa de Direitos Humanos Henrique Trindade deCuiabá. “A PM foi treinada para fazer guerra contra opovo. E, até hoje, não perdeu essa mania de vê-lo comoinimigo. Problemas sociais não se trata com polícia, mascom política. A missão da polícia tem a ver com o comba-te e a prevenção do crime. A atuação da polícia em MatoGrosso não foge à descrição contida no relatório da ONU.A tortura é uma realidade nos nossos presídios e delega-cias, alimentada pela certeza da impunidade. Os tortura-dores têm certeza que nada irá acontecer”.

As denúncias reconhecendo as práticas de tortura quepartem da sociedade civil e de entidades de direitos humanospor si só não reduzem os índices de violência, como édemonstrado pelos dados do Mapa da Violência de Cuiabá,6apresentados pelo deputado do PT, Gilney Viana (2000).No entanto, essas entidades têm sido importantes aliadasdas pessoas que tiveram seus direitos desrespeitados. Apesardessas lutas, Cuiabá é uma cidade cada vez mais violentapor continuar apresentando índices crescentes de crimi-nalidade e de desrespeito ao Estado Democrático.7

Todavia, adverte Mesquita Neto (1999:147) “em regi-mes políticos democráticos, como acontece no Brasil, éinútil, além de desumano em relação aos policiais, criti-car e procurar controlar a violência policial recorrendosimplesmente a mecanismos de controle formal, sejam elesinternos ou internos à organização policial, e mecanismosde controle informal externo, sem oferecer aos policiais acapacitação profissional necessária para o desempenho desuas funções com um uso mínimo da força física”.

Esta constatação representa um avanço na busca de umamelhor qualificação para os policiais e em direção à cons-trução de uma segurança e uma polícia cidadã. As univer-sidades e os movimentos sociais, principalmente o movi-mento de direitos humanos, estão percebendo que a questãoda segurança e da cidadania é uma construção social. Nãobasta, portanto, ficarmos cobrando ou só denunciando osabusos, os excessos e a violência cometida por agentesestatais. É necessária uma aproximação desses setores paraconhecer melhor a realidade e as condições de trabalhodestes servidores públicos e, juntos, construirmos novosmodelos e novas práticas voltadas para aumentar a segu-

rança dos cidadãos e fortalecermos os processos de deci-são democráticos. Faz-se necessário sair do estranhamentopara o reconhecimento. O estranhamento é marcado pelopreconceito, juízos de valor negativos e pela incom-preensão. Já o reconhecimento pressupõe a idéia de queninguém é dono da verdade, que não existe verdade abso-luta, que é nas diferenças que se constrói a unidade, a buscade alternativas consensuais, e que se valoriza e se reco-nhece a importância do trabalho do outro. As questõessociais, como a violação dos direitos humanos, represen-tada pela tortura, pela violência policial, pela violênciacontra a criança e o adolescente, contra a mulher, são pro-blemas que requerem uma reflexão pluridisciplinar,multifocal e interinstitucional. É desse diálogo, aberto,franco, democrático, que surgem consensos e propostasvisando uma melhor qualificação dos profissionais da se-gurança do cidadão e que podem aproximar as institui-ções policiais e as universidades.

PAPEL DA UNIVERSIDADE NA FORMAÇÃO ECONSTRUÇÃO DE UMA POLÍCIA CIDADÃ

Preocupada em proporcionar uma melhor formação aosseus policiais, a Polícia Militar de Mato Grosso firmouum convênio com a Universidade Federal de Mato Gros-so, em 1993,8 mediante o qual esta se responsabilizavapela realização do vestibular que dá acesso à carreira deoficial da polícia do Estado – iniciativa inédita no país.A universidade encarregava-se também de oferecer aosfuturos oficiais disciplinas nas áreas de humanidades, taiscomo: sociologia, filosofia, direito, psicologia, entre ou-tras. Em 2000, o currículo da Academia de Polícia da CostaVerde, do município de Várzea Grande, MT, passou porreformulações, de modo a adequar a formação destes pro-fissionais à nova proposta curricular elaborada pela Fun-dação João Pinheiro e pelo Ministério da Justiça.

Esse novo currículo incorporou novas disciplinas, ten-do em vista ampliar o debate acerca da questão da segu-rança pública e do respeito ao Estado de Direito. Entre asdisciplinas integradas ao novo Projeto Político Pedagógi-co da Academia da Costa Verde estavam: Ofício de Polí-cia e Políticas de Segurança Pública, Sociologia da Vio-lência e da Criminalidade, Abordagens Sociopsicológicada Violência, Filosofia e Ética, Direitos Humanos, Filo-sofia de Polícia Comunitária – todas elas visando, na áreade direito, o respeito ao Estado de Direito e a promoçãoda cidadania.

No segundo semestre de 2002, a Universidade Federale a Polícia Militar assinaram protocolo de intenções para

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a instalação de um posto avançado de policiamento co-munitário no campus universitário, para garantir a segu-rança de seus freqüentadores. A universidade está em fasefinal de construção do prédio que irá abrigar o posto e apolícia já vem fazendo o policiamento de bicicletas ou acavalo. Acredita-se que a partir desse policiamento e des-sa experiência se possa estabelecer um “projeto-piloto”de policiamento comunitário que poderia ser levado paraoutros bairros e regiões.

No segundo semestre de 2002, iniciou-se na univer-sidade um debate envolvendo professores interessados emformar um Núcleo de Estudos da Violência e da Cidadania.Os debates concluíram pela importância de aglutinarprofessores e outras instituições interessadas no estudo daviolência e da criminalidade, bem como de encontrarrespostas para superar a cultura da violência difusa nasociedade e nas polícias. Manifestou-se também a intençãode promover pesquisas com os mais diferentes enfoquese nas mais diferentes áreas a fim de subsidiar políticas desegurança pública nas esferas e governo municipal,estadual e federal.

A proposta aprovada no âmbito da Universidade Federaldo Mato Grosso/Instituto de Ciências Humanas e Sociais– UFMT/ICHS visa agregar professores de diferentesáreas, em uma perspectiva pluridisciplinar, representantesde ONGs, líderes comunitários, militantes de direitoshumanos, membros do Ministério Público, OAB, Igrejas,membros das Polícias Militar e Civil e outras instituiçõesou pessoas preocupadas com a questão da violência nasociedade mato-grossense. Por essa razão, optou-se pelacriação de um Núcleo Interistitucional – NIEVCI comparticipação de professores pesquisadores e demaispessoas ligadas a instituições não-governamentais egovernamentais nas três esferas da administração pública.

Para contrapor-se a essa onda de violência policial eao modelo de polícia baseado na ideologia militarista éque se faz importante a parceria entre as universidades,academias de polícia e governos (municipal, estadual efederal), já que o controle institucional dessa violência,feita pelas corregedorias, e a luta pelos direitos humanosnão têm sido capazes de colocar um freio nessa escaladada violência policial. A impunidade tem sido a responsá-vel pela continuidade dessas práticas no interior das cor-porações, de tal forma que às vezes pensamos que a vio-lência policial é inerente à atividade de segurança pública.Entretanto, mais do que controlar e punir é precisoprofissionalizar a polícia, assegurar melhores condiçõesde trabalho, pois esse é um passo importante e necessáriopara o controle da violência policial.

De fato, a melhoria dos serviços prestados pelos pro-fissionais da segurança do cidadão passa necessariamentepela questão da formação desses profissionais. Porém, nãodeve entender essa formação como sendo capaz de cor-rigir e impedir a violência policial, pois sabemos que outrosfatores também influenciam os excessos que são cometidospor esses policiais que acabam extrapolando o monopólioda violência legítima e o Estado Democrático de Direito.É preciso pensar a questão da formação como um processoeducativo que pode provocar mudanças de comportamento,como um momento de reflexão, onde policiais, professores,instrutores e movimentos sociais possam falar de igual paraigual, sem os ranços do autoritarismo e do militarismo.Nesse processo de reflexão, procura-se mostrar que existeum inimigo da sociedade a ser combatido, que o milita-rismo e a ideologia militar não contribuem para entenderos conflitos decorrentes das redes de sociabilidade e poder,que a segurança pública deve estar a serviço do cidadão eque as práticas de controle social e repressão à crimina-lidade não são incompatíveis com os direitos humanos eo Estado de Direito. Entender que a solução para o proble-ma da criminalidade e da violência policial está além dasleis e dos códigos criminais. Nesse sentido, as ciênciashumanas (sociologia, psicologia, antropologia, direitoshumanos, filosofia) podem ser parceiras no diagnóstico ena busca de compreensão do aumento da violência e dacriminalidade na sociedade atual. Neste início de séculoXXI, vivemos um “novo tempo” que nos desafia a pensarsoluções e práticas inovadoras, capazes de dar respostasaos novos problemas e às novas questões sociais colocadaspara a sociedade e para o governo. Essas questões exigemreflexões e soluções coletivas. Foi-se o tempo da soluçãotomada de forma isolada, sem planejamento, sem aparticipação da sociedade, vinda de “cima para baixo”. Otempo democrático, baseado na democracia e reguladopelo Estado de Direito, exige de todos os atores sociaisresponsabilidades e parcerias na busca de soluções para aquestão da violação dos direitos humanos e o fortale-cimento da cidadania.

O debate acerca do controle da violência policial é maisdo que justo e necessário, porém, não se pode continuarcriticando e punindo policiais sem que se corrijam as dis-torções na sua formação e se ofereçam oportunidades parase capacitarem. O modelo de controle social em vigordurante os regimes autoritários, em que o uso indiscrimi-nado da força que resultava em violência policial era to-lerado e por vezes estimulado por governantes, requerreformas urgentes na formação, planejamento e gestão derecursos humanos. Precisamos entender que a cultura da

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OFÍCIO DE POLÍCIA, VIOLÊNCIA POLICIAL E LUTA POR CIDADANIA EM MATO GROSSO

violência é uma construção social, surge e desenvolve-seem contextos sociais onde as redes de solidariedade estãoem crise ou passando por mudanças profundas. A violên-cia desenvolve-se também dentro de organizações que nãorespeitam as regras e as normas aproveitando-se da faltade controle dos serviços oferecidos à população. A ideo-logia do militarismo, ainda presente nas corporações po-liciais, precisa ser, de vez, (des)construída e desvaloriza-da como orientadora das práticas dos profissionais dasegurança do cidadão. Essa ideologia não condiz com operfil dos profissionais de segurança e não contribui parao fortalecimento da cidadania civil numa sociedade mar-cada pelo Estado de Direito.

Para finalizar, reproduziria uma tese de O’Donnel ePaulo Sérgio Pinheiro (1997:47) segundo o qual: “empaíses de democracias recentes a transição para o Estadode Direito se dá em dois momentos: o primeiro de resgateda ordem jurídica legítima e segundo momento é aqueleem que colocamos em prática as conquistas da nova ordemdemocrática”. Mato Grosso encontra-se ainda nessaprimeira fase de transição. Conquistamos a democracia,mas ainda não conseguimos construir modelos de proce-dimentos e práticas de controle social que não firam aordem democrática, isto é, que respeitem a cidadania e asleis em vigor. Esse continua sendo o grande desafio dasnossas instituições policiais, assim como das universidadese de seus centros de pesquisa na busca da construção deum modelo de polícia cidadã no Brasil e em Mato Grosso.

Mas, desde a transição democrática e a instalação doEstado Democrático de Direito no Brasil, foi somente apartir da segunda metade dos anos 90 que, de fato, a so-ciedade e os governantes começaram a se preocupar coma questão da violência policial e com a necessidade dereformulação nos currículos voltados para os profissio-nais de segurança pública. Passaram a pensar em umapolícia que não fosse apenas defensora dos direitos hu-manos, mas também resguardadora e promotora dos di-reitos humanos (Balestrelli, 1998). É preciso, portanto, queas universidades repensem o seu papel no ensino policialà luz dos novos paradigmas voltados para o fortalecimen-to da cidadania. Só assim poderemos cobrar mais das nos-sas polícias em relação aos comportamentos antipro-fissionais. De fato, não dá mais para tolerar um modelode polícia baseado no uso da força de forma indiscrimi-nada, injustificada, como se admitia antes da conquistado Estado de Direito.

Por isso, é importante insistir que a formulação de umnovo modelo de polícia deve começar, necessariamente,por um projeto político pedagógico que contemple novos

referenciais teóricos metodológicos adequados ao novomomento que estamos vivendo na área da segurança pú-blica. Estas são questões sociais e teóricas que dizem res-peito diretamente ao papel e à responsabilidade das uni-versidades. A UFMT caminha a passos firmes nos últimosanos na construção de um modelo de polícia cidadã, sin-tonizada com as novas questões sociais que emergiram emnossa realidade, que deve respeitar e, ao mesmo tempo,promover os direitos humanos e da cidadania. Investir emnovas metodologias, visando uma melhor profissionali-zação, o gerenciamento de crises e de controle social maisa eficiência na prevenção ao crime e nas investigaçõescriminais, é uma prioridade inadiável. Punir policiais comoforma de dar exemplo e não deixar que os maus exemploscontagiem toda a instituição é necessário. Porém, é preci-so ir além do “vigiar e punir” (Foucault, 1987). É precisopensar na formação e na profissionalização dos quadrosde segurança pública. As novas políticas não podem con-tinuar focadas apenas na repressão ao crime e nos exces-sos de poder praticados no ofício de polícia. Portanto, paracontrolar efetivamente a violência policial é preciso va-lorizar o policial, investir em novas metodologias e ins-trumentos de controle social, profissionalizar os policiaispara que minimizem o uso da força física e implementarpolíticas de segurança voltadas para a prevenção, geren-ciamento de crises, solução e/ou administração de confli-tos sociais com o emprego mínimo da violência ilegítimaou legítima. Para finalizar, pode-se dizer: culturas boas,eticamente defensáveis devem ser preservadas; já aque-las baseadas na violência, no desrespeito às diferenças detoda natureza, às leis e ao Estado de Direito devem sersuprimidas das nossas relações sociais. Parece, assim, quenem à polícia, nem à sociedade interessa uma políciadespreparada para lidar com os novos conflitos sociais ecom a criminalidade crescente. A universidade, nesse sen-tido, tem uma dívida com a sociedade que começa a serregatada com sua contribuição para a construção de umaPolícia Democrática e Cidadã. Esse é o nosso desafio,urgente e inadiável.

NOTAS

1. “Cuiabá é mais violenta que Nova York. A maior cidade norte-ame-ricana teve o ano passado 10 mortes por 100 mil habitantes, em Cuiabáeste índice foi de 45 mortes por 100 mil. Com pelo menos 290 assas-sinatos registrados o ano passado (1998), Cuiabá é quatro vezes e meiamais violenta que a região de Nova York que, no mesmo período teve730 homicídios(...), o que representa 10 mortes por 100 mil habitan-tes.(...) Cuiabá e Várzea Grande, possui uma taxa de 45 mortes por100 mil habitantes onde moram cerca de 630.000 pessoas. No Brasil,a Grande Cuiabá perde somente para as cidades de São Paulo e Rio de

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Janeiro, em número de mortes violentas. A média brasileira é de 25.(...) Polícia culpa os traficantes pelo aumento dos índices”. Diário deCuiabá. Cuiabá, 18/04/1999.

2. Desde a sua criação, em 1994, a Corregedoria Militar abriu 671 IPMs,971 sindicâncias e 243 PADMs para apurar a conduta de integrantesda corporação. Ao todo, 127 foram excluídos, sendo quatro oficiais.Dados da Corregedoria de Polícia Militar de Mato Grosso. 2001.

3. “Tragédia Nacional: Cuiabá é a quarta cidade mais violenta do Bra-sil”, diz Unesco. A Gazeta. Cuiabá, 15/08/2000. Noticiário Geral.“Vergonha: Cuiabá é a capital campeã em assassinatos contra jovens”.A Gazeta. Cuiabá, 17/08/2000. Noticiário Geral.

4. Significa a adequação entre o comportamento da polícia e os obje-tivos da comunidade.

5. “Vingança – Comerciante defende a pistolagem. Comerciantes quejá foram vítimas de bandidos não escondem que, se for preciso, atépagam para matar um bandido.(...) Não tem essa não. Se assaltaremmais uma vez minha casa ou meu comércio e se a polícia não prenderos bandidos, eu vou pagar para matá-los. Hoje, minha casa vive cerca-da de segurança”. A Gazeta. Cuiabá, 02/07/2000.

“Policial admite que ‘bater em preso é normal’. A tortura de presos érotina em delegacias de Mato Grosso, contrariando a ConstituiçãoFederal, que garante integridade física e psicológica aos detentos. Aconstatação é baseada na resposta de um policial civil da capital, quenão quis se identificar. Ele falou da tortura policial com a naturalida-de de quem comenta a missa”. A Gazeta. Cuiabá, 29/08/2000.

“Policial afirma que as pessoas mortas por ela não fazem falta(...) Mui-to pelo contrário, as pessoas até aplaudem quando um bandido tomba.Nunca sequer pensei no que fiz. Sempre dormi tranqüilo ao lado de minhaesposa e de meus filhos(...). O oficial da PM diz(...) que os bandidosestão agindo a vontade, porque não existe um modelo definido de segu-rança. (...) O pior é que quem está matando agora são os justiceiros. OCabeção, por exemplo, é um deles. Ele já matou muita gente, inclusivepessoas inocentes. Isso é perigoso, pois até para matar é preciso ter arte”,afirma oficial da Polícia Militar que assume que já matou 11 pessoas. Omesmo oficial declara que, se as polícias Civil e Militar estivessem “tra-balhando como antigamente” não apenas os índices de roubos e latrocí-nios teriam diminuídos, mas também os casos de homicídios não esta-riam tão elevados. A Gazeta. Cuiabá, 09/07/2000. Polícia.

“Vítima morreu implorando clemência. Em agosto de 1997, o soldadoJosé Moretti do Espírito Santo, o ‘Rambo’, matou a tiros de metralha-dora os únicos dois filhos de Cacilda Rosa Ferreira, além de atirar nopé do marido dela, Manoel Ferreira.(...) Depois de receber sua cerve-ja, ele reclamou que a bebida estava quente. Disse que, caso não rece-besse uma bebida gelada, iria resolver o problema do seu jeito”. A Ga-zeta. Cuiabá, 17/11/2000.

6. A violência em Cuiabá, segundos os dados divulgados por Viana(2000), apresenta três características básicas: está em curva ascenden-te (é bem maior em 1999 do que em anos anteriores); esta cada vezmais qualificada, ao contrário de muitas capitais brasileiras em quevêm crescendo mais os crimes contra o patrimônio; em Cuiabá os cri-mes que mais crescem são os crimes contra a vida. Ressalta-se ainda ofato dessa violência estar concentrada em bairros onde vivem as popu-lações pobres e segregadas (em 15% dos bairros concentram-se 50%das ocorrências registradas).

7. Os indicadores utilizados por Viana (2000) revelaram em 1999 umgrau de violência semelhante ao de São Paulo, cidade 20 vezes maiordo que Cuiabá. O índice de violência para 1999 é estimado em 831ocorrências por 100 mil/habitantes, contra 975 por 100 mil/habitantesde São Paulo. Já o índice de violência contra o patrimônio foi de 3.094por 100 mil em Cuiabá, contra 3.813 mil por 100 mil para São Paulo.

8. O convênio foi assinado em 10/07/93 entre a PMMT, representadapelo comandante Cel. PM Dival Pinto Martins Correa, e a reitora daUniversidade Federal de Mato Grosso, Profa Luzia Guimarães.

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NALDSON RAMOS DA COSTA: Professor do Departamento de Sociologia ePolítica da UFMT, faz parte do Grupo de Pesquisa “Violência e Cidada-nia” na UFRGS. Membro-fundador do Núcleo Interinstitucional deEstudos da Violência e Cidadania na UFMT.

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A TRANSIÇÃO DE UMA POLÍCIA DE CONTROLE PARA UMA POLÍCIA CIDADÃ

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A TRANSIÇÃO DE UMA POLÍCIA DECONTROLE PARA UMA POLÍCIA CIDADÃ

Resumo: Este texto discute as possibilidades de uma polícia diferente em uma sociedade democrática.A concretização dessas possibilidades passa por alguns eixos: mudanças nas políticas de qualificação profis-sional; programa de modernização; e processos de mudanças estruturais e culturais que discutam questõescentrais para a polícia.Palavras-chave: cidadania; segurança pública; polícia cidadã.

Abstract: This text discusses the possibility of a different kind of police force in a democratic society. Thispossibility is becoming more concrete by turns: changes in professional qualification policies; a modernizationprogram, and a process of structural and cultural modification that addresses issues of central importance.Key words: citizenship; public safety; citizen police force.

JORGE LUIZ PAZ BENGOCHEA

LUIZ BRENNER GUIMARÃES

MARTIN LUIZ GOMES

SÉRGIO ROBERTO DE ABREU

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 119-131, 2004

processo de redemocratização do Brasil, a partirda década de 80, vem provocando nas institui-ções públicas, em especial nas corporações po-

liciais, transformações decorrentes do questionamento dasociedade brasileira sobre a real função pública que de-vem assumir diante do Estado Democrático de Direito.

No início dos anos 90, as corporações policiais, cujaspráticas históricas foram enrijecidas pelo período ditato-rial, começaram um processo de rompimento do modelohistórico do sistema policial, em decorrência das trans-formações em andamento na sociedade brasileira, em es-pecial o crescimento das práticas democráticas e o forta-lecimento da cidadania. O descompasso entre as mudançassociais e políticas e a prática policial produz uma crisenas polícias brasileiras, que não é uma crise de dentro dacorporação para fora, mas sim o inverso, da relação so-ciedade-Estado, em conseqüência da falta de sintonia en-tre o avanço social e a prática policial, ampliada pela au-sência de um processo dinâmico e otimizado que façafuncionar um sistema de segurança pública para a reali-dade brasileira.

Na verdade, há uma reação da sociedade brasileira queindica a necessária mudança no modelo atual, em que a

Justiça é morosa, o sistema prisional é desumano e inó-cuo e a polícia atual é enfraquecida, fracionada, autoritá-ria e afastada das comunidades, despreparada e obsoletana sua estrutura, não conseguindo responder às exigên-cias impostas pelo contexto social atual.

É possível ter uma polícia diferente numa sociedadedemocrática? A concretização dessa possibilidade passapor alguns eixos. Primeiro, por mudanças nas políticas dequalificação profissional, por um programa de moderni-zação e por processos de mudanças estruturais e culturaisque discutam questões centrais para a polícia: as relaçõescom a comunidade, contemplando a espacialidade das ci-dades; a mediação de conflitos do cotidiano como o prin-cipal papel de sua atuação; e o instrumental técnico evalorativo do uso da força e da arma de fogo. São eixosfundamentais na revisão da função da polícia.

No modelo tradicional, a força tem sido o primeiro equase único instrumento de intervenção, sendo usada fre-qüentemente da forma não profissional, desqualificada einconseqüente, não poucas vezes à margem da legalida-de. É possível, portanto, ter um outro modelo de polícia,desde que passe a centrar sua função na garantia e efeti-vação dos direitos fundamentais dos cidadãos e na intera-

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ção com a comunidade, estabelecendo a mediação e anegociação como instrumento principal; uma polícia al-tamente preparada para a eventual utilização da força epara a decisão de usá-la. Tudo isso tendo como base polí-ticas públicas que privilegiem investimentos na qualifi-cação, na modernização e nas mudanças estruturais e cul-turais adequadas.

No momento em que começa a existir essa transforma-ção política e social e a compreensão da sociedade comoum ambiente conflitivo, no qual os problemas da violên-cia e da criminalidade são complexos, a polícia passa aser demandada para garantir não mais uma ordem públicadeterminada, mas sim os direitos, como está colocado naConstituição de 88. Neste novo contexto, a ordem públi-ca passa a ser definida também no cotidiano, exigindo umaatuação estatal mediadora dos conflitos e interesses difusose, muitas vezes, confusos. Por isso, a democracia exigejustamente uma função policial protetora de direitos doscidadãos em um ambiente de conflitos. A ação da políciaocorre em um campo de incertezas, ou seja, o policial,quando sai para a rua, não sabe o que vai enfrentar direta-mente; ele não tem uma ação determinada a fazer e entranum campo de conflitividade social. Isso exige não umagarantia da ordem pública, como na polícia tradicional,sustentada somente nas ações repressivas, pelas quais oato consiste em reprimir para resolver o problema. O cam-po da garantia de direitos exige uma ação mais preventi-va, porque não tem um ponto determinado e certo pararesolver.

UM PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO EMANDAMENTO DESDE OS ANOS 90

A violência e a crescente criminalidade estão diluídaspor toda a sociedade. Para se chegar à resolução dos pro-blemas, as polícias precisarão fazer uma articulação deações, compreensão e identificação do seu núcleo, bus-cando melhores soluções. Ou seja, cada fato que se apre-senta hoje para polícia merece um tratamento diferencia-do, e esta exigência está estabelecida para a ação da políciano ambiente democrático. Assim, pode-se perceber que afunção policial necessita ser vista, também, como de deli-cada complexidade e, para ser bem exercida, tornam-seimperativos sua qualificação, o reaparelhamento tecnoló-gico, a atualização das técnicas policiais e, principalmen-te, sua revisão conceitual.

A sociedade, por sua vez, deve assumir que é uma so-ciedade complexa, na qual os conflitos acontecem no dia-

a-dia e a todo o momento, exigindo da segurança públicaações diferenciadas. Não é possível se fazer hoje um pro-cedimento padrão para o policial no seu trabalho cotidia-no. Ele precisa ter a capacidade de ampliar o espaço dedecisão nas escolhas das ações e intervenções para cadafato que enfrenta. Então, neste momento, a postura media-dora passa a ser uma função importantíssima na ação dapolícia.

O PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA E AINSEGURANÇA COLETIVA: CAUSAS SOCIAISDA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE

O grande problema é justamente descrever ou concei-tuar a segurança pública. Hoje a percepção coletiva con-sidera a segurança pública centrada somente na atividadeda polícia e, por mais que se pretenda montar uma políciacidadã, somente haverá sucesso se for redefinida e amplia-da a conceituação da segurança pública.

A segurança pública é um processo sistêmico e oti-mizado que envolve um conjunto de ações públicas ecomunitárias, visando assegurar a proteção do indivíduoe da coletividade e a aplicação da justiça na punição,recuperação e tratamento dos que violam a lei, garantindodireitos e cidadania a todos. Um processo sistêmico porqueenvolve, num mesmo cenário, um conjunto de conheci-mentos e ferramentas de competência dos poderes cons-tituídos e ao alcance da comunidade organizada, inte-ragindo e compartilhando visão, compromissos e objetivoscomuns; e otimizado porque depende de decisões rápidase de resultados imediatos.

A polícia cidadã, sintonizada e apoiada pelos anseiosda comunidade, só terá sucesso se estiver voltada para arecuperação de quem ela prende, pois, caso contrário, serásimplesmente uma polícia formadora de bandido, querdizer, ela vai recrutar bandido, vai marginalizar ainda mais.É necessário incluir, nesta análise, todo o sistema depersecução penal e de política social. Esta é a tarefa queprecisa ser desenvolvida.

Qual é o modelo que a sociedade quer? É uma polícia“linha dura”? É um Judiciário “duro”, com altas penas? Éuma prisão de segurança máxima? Em relação a criançase adolescentes também medidas de endurecimento dasações repressivas? Existe, na verdade, um aumento dacriminalidade em todo o mundo, por razões estruturais,assim como há um senso comum pedindo uma polícia re-pressiva. A discussão pública e a tendência política brasi-leira têm apontado como soluções salvadoras o endureci-

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mento da repressão, especialmente quando ocorrem cri-mes violentos, que assumem amplos espaços na mídia,influenciando a formação da opinião pública.

O cidadão faz a seguinte pergunta: qual é o papel dapolícia no momento em que estão em crise o emprego, afamília e a escola? Quer dizer, estão em crise as institui-ções de controle social informal que funcionavam há 20anos: será que a polícia hoje só pode seguir o modelo deuma polícia, digamos, do tipo tolerância zero? Estaremoscondenados a tal? Ou é possível pensar, em um país comoo Brasil, outro tipo de policiamento, outra técnica polici-al, outro tipo de trabalho policial? Porque essa é a grandeignorância vigente na sociedade brasileira: o que signifi-ca o trabalho policial?

A questão central é a percepção histórica do fenômenoda insegurança coletiva pela sociedade, a qual não dispõede um debate profundo e qualificado sobre o tema, ao mes-mo tempo em que o próprio poder público carece destedebate, como demonstra a escassez de políticas públicase as manifestações das autoridades, que trazem uma visãoparcial desse fenômeno, ligada apenas a um dos compo-nentes deste sistema, ou seja, a Justiça e a Polícia. A ques-tão da insegurança cresce diante da compreensão de quea Justiça e a Polícia têm problema e, a partir daí, todo osistema é demandado a achar uma solução para a questãodo funcionamento da Justiça e da Polícia. São descon-siderados neste debate os demais setores públicos e so-ciais que são agentes intervenientes neste sistema.

A Justiça e a Polícia, por si só, provavelmente, são ofator de intervenção de menor capacidade de influenciarnas mudanças das condições desse fenômeno – insegurançapública. Enquanto não se conseguir estabelecer outra for-ma de percepção desse problema, visualizando o maiornúmero de elementos que o compõem, estaremos obten-do os mesmos resultados de curar uma doença infecciosa,por exemplo, somente com remédio contra a dor, aumen-tando sucessivamente as doses, tendo, como conseqüên-cia, seu crescimento contínuo.

Ao se considerar o fenômeno em seu conjunto, e nãosomente em partes limitadas, verificar-se-á que outros mo-delos e tipos de trabalhos da polícia serão possíveis e neces-sários. Cabe destacar que vários estudos têm mostrado queaproximadamente 70% das intervenções policiais não sãona área policial, mas sim na social, denominada, aqui naBrigada Militar, de assistência e resolução de pequenosconflitos que não se constituem em infrações penais. Nos30% restantes, provavelmente se apontará que a grandemaioria das intervenções corresponde a pequenos delitos.

Atualmente a polícia, na sua cultura histórica, só tra-balha com um instrumento que é a reação pela força; qual-quer conflito e dificuldade são resolvidos pela força. Hámuita dificuldade de trabalhar com as situações cuja res-ponsabilidade e culpabilidade não estão bem definidas.Geralmente, em todo o conflito em que a polícia inter-vém, a tendência é criminalizar a conduta, nem que sejapor desacato ou desrespeito, efetivando a solução pelo usoda força e pela prisão. Por conseguinte, outra questão podeser formulada: numa sociedade democrática, qual o mo-delo de polícia a ser adotado?

A QUESTÃO POLICIAL NA AGENDA POLÍTICA:O MODELO DE POLÍCIA EM DISCUSSÃO

A polícia representa o resultado da correlação de for-ças políticas existente na própria sociedade. No Brasil, apolícia foi criada no século XVIII, para atender a ummodelo de sociedade extremamente autocrático, autoritá-rio e dirigido por uma pequena classe dominante. A polí-cia foi desenvolvida para proteger essa pequena classe do-minante, da grande classe de excluídos, sendo que foi nessaperspectiva seu desenvolvimento histórico. Uma políciapara servir de barreira física entre os ditos “bons” e “maus”da sociedade. Uma polícia que precisava somente de vi-gor físico e da coragem inconseqüente; uma polícia queatuava com grande influência de estigmas e de preconcei-tos.

Em outras palavras, a questão policial é um item cen-tral na agenda de desenvolvimento social e sustentável dasociedade brasileira. O modelo realmente precisa mudar,pois não resolve e não ajuda, porque a técnica policial ésuperada. Pode-se abordar esta questão, por exemplo, ve-rificando como as polícias começam a se diferenciar pelaforma como compreendem a segurança, percebendo a in-tervenção apenas da ótica da repressão, a ponto de umchefe de polícia vir a público e dizer o seguinte: “se vocêsquerem resolver o problema da segurança, vocês termi-nem com o artigo quinto da Constituição Federal”. Ter-minando com o artigo quinto, a polícia vai resolver o pro-blema de insegurança. Qual a influência desta declaraçãona ação dessa polícia? O que acontece?

É necessário formatar o sistema de segurança no Bra-sil, um sistema que estabeleça responsabilidades aos go-vernantes, ao Judiciário, ao Ministério Público, ao órgãopenitenciário e às polícias, criando ligações técnicas eoperacionais e determinando objetivos sociais de preven-ção, tratamento e recuperação. Entende-se que o sistema

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de segurança tem de ser sistêmico, rápido, um processoque envolva não só atividades preventivas ou de conten-ção: precisa ter um início, que é a prevenção, e um final,que é recuperar e tratar os autores do delito, pois, casocontrário, eles voltarão ao crime, e o objetivo é não daressa oportunidade de reincidência ou aliciamento pelocrime.

Nesse sistema não apenas a polícia é a responsável, oJudiciário, o Ministério Público e a sociedade em geraltêm que participar do debate deste tema. É possível teruma polícia mais eficiente, diferente da atual, que estárepartida ao meio: uma trabalha só com a parte inves-tigativa; outra só com a parte pericial; outra só com a par-te ostensiva, encasteladas em seus corporativismos. Énecessário um trabalho de conjunto e de integração.

Há duas dimensões nesta questão: existe a polícia maispreventiva, que amplia seu campo de atuação, sendo umapolícia das obrigações positivas; e há, também, a políciamais de controle social, com campo de atuação restrito,voltada para obrigações negativas. A polícia tem centra-do suas ações somente nas obrigações negativas: prender,vistoriar, revistar, etc.

O Corpo de Bombeiros, por exemplo, cumpre umaobrigação positiva. A prevenção é a obrigação positivaem que a polícia não avança, e é aí que está o problema.Hoje a polícia não faz mais prevenção, ela faz atendimen-to de ocorrência. Se estivessem trabalhando em um pro-cesso mais amplo e com todas as variáveis, a intervençãoda polícia estaria diminuindo e possibilitando um papelmais de interação.

O policial precisará ter uma outra visão de seu objetode trabalho, uma outra compreensão e, principalmente, tercapacidade e habilidade de estar reconhecendo e com-preendendo a diversidade social. Há muita dificuldade detrabalhar com as situações hoje, cuja responsabilidade eculpabilidade não estão bem definidas. Atualmente a po-lícia, na sua cultura histórica, só trabalha com um instru-mento, que é a ação-reação, utilizando-se da força; qual-quer conflito deve ser resolvido pela força.

A HISTÓRIA DA BRIGADA MILITAR E ACULTURA PROFISSIONAL VIGENTE

Existem experiências em algumas unidades da Briga-da Militar que são consideradas exemplos de Batalhõesverdadeiramente policiais. Nestas unidades, encontra-sea cultura dos “Rambos”, havendo uma diferença entre ospoliciais de fé, os chamados “Kentacky” (guerreiros), ou

“quentuchos”, e os policiais comuns ou falsos policiais.Os chamados policiais de fé constituem o grupo dos poli-ciais “quentes”, corajosos, que vão para a ocorrência en-frentando o bandido, prendendo ou eliminando-o, normal-mente, desprovidos dos mínimos cuidados técnicos.

A ação violenta, com uso da força desnecessária e ile-gítima, caracteriza-se como requisito para atingir estaconceituação. Nesses locais, até as paredes transmitem acultura. Quando se transita nos corredores, parece que elasestão dizendo o que fazer para ser o “bom policial”, opolicial respeitado pelo grupo; isso é reproduzido nas fa-las, nas expressões, nos elogios, nas punições.

Esse fenômeno da cultura também se reproduz na dis-seminação de Grupos Especiais, que representam aproxi-madamente 30% do efetivo e que são os policiais de ver-dade; o resto é o resto. Em termos de modelo, o quesignificam esses policiais especiais? São os super-heróis,os “rambos”, em geral sustentados no amadorismo, compouca capacitação e em ações de violência.

Todo agrupamento policial que não seja um posto po-licial comunitário precisa contar com um grupo tático es-pecial para responder a chamados que envolvam reféns eenfrentamentos, demandando uma equipe com maior po-der de fogo, disciplina e técnica apurada para estes tiposde ocorrências. Porém, jamais uma equipe como esta de-veria ser utilizada para abordagens ou patrulhamento, comoatualmente muitas unidades assim o fazem, desviando-sedas funções para as quais estas equipes especiais foramtreinadas e preparadas.

Ao se analisar a história da Brigada, por exemplo, ve-rifica-se que ela foi criada em plena Revolução Farrou-pilha, dois anos depois de iniciada. Constituía-se, então,em um exército dentro do Estado que participou de várioscombates; de todas aquelas revoluções, a Brigada partici-pou, ativamente, como se fosse uma guerra, quer dizer,essa força militar foi formatada conforme focos militares,com pelotão, companhia. Aos poucos, na história, a bri-gada começou a se transformar em polícia, agregou a guar-da civil e, depois, recebeu a missão do policiamento os-tensivo fardado, gerando a polícia ostensiva separada dainvestigação.

Será que não seria possível distinguir, por hipótese,entre uma tradição guerreira e uma militar? Na tradiçãoguerreira, desde 1837 e sucessivamente, segundo a sociolo-gia, o guerreiro tem uma legitimidade social muito grande.A vocação militar foi cunhada a partir de 1967, com a dita-dura militar, que realizou uma intervenção em todas aspolícias militares e que impôs às Polícias um Comandante

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A TRANSIÇÃO DE UMA POLÍCIA DE CONTROLE PARA UMA POLÍCIA CIDADÃ

do Exército, com exceção do Rio Grande do Sul, mas quecontinua com a Inspeção Geral das Polícias Militares.

Refletir sobre essa hipótese seria importante até pararefazer a identidade e a história das polícias militares, poisuma tradição guerreira tem legitimidade social, enquantouma tradição militar teria menos, pois segue a ótica doinimigo: ou o inimigo é do outro país ou o inimigo é dooutro grupo.

Em verdade, perdemos muitas características militares,o padrão do tipo exército, no decorrer dessa transiçãoporque nossa geração entrou na época da ditadura quan-do já começava o processo de transformação. Nossa polí-cia sempre foi uma das mais militares entre as brasileiras.Até recentemente no regime disciplinar policial-militar,o servidor, ao cometer uma infração administrativa, nãotinha direito à ampla defesa, ao contraditório, ou seja, exis-tia uma autoridade coercitiva. Era possível dizer: “está er-rado, então vai ser punido”, e ele não podia contradizerisso. Então, o modelo de estrutura, de organização, de hie-rarquia e de disciplina vem do militar e tem um estilo. Porexemplo, na guerra, não pode haver o contraditório, al-guém que diga assim: “vai lá e cumpre a missão”, eu nãoposso perguntar por quê. A Brigada Militar foi uma dasprimeiras no país que mudou esse conceito de disciplina;hoje, o próprio policial militar tem a possibilidade docontraditório e da ampla defesa. Isso foi estabelecido pormeio da mudança do Regulamento Disciplinar em agostode 2001, que eliminou ainda a prisão administrativa e subs-tituiu essa penalidade por suspensão. Por outro lado, vol-tamos a considerar o seguinte: estamos muito centradosnessa questão da cultura, ou seja, a cultura dominante aindaé o modelo histórico, de polícia tradicional.

O conflito social cria produtos de associação social,ou seja, o conflito gera uma forma de sociabilidade que ésuperior à anterior, à medida que esta reconhece as dife-renças e o conflito, o que é uma forma de impedir a vio-lência dos dois lados.

Tanto o movimento dos proprietários rurais quanto odos sem-terras, ao se posicionarem num campo de confli-to em relação à propriedade da terra, exigem da políciaum comportamento: primeiro, de Estado, ou seja, direcio-nado a todos os cidadãos, indistintamente; segundo, demediação do conflito; e, terceiro, de que essa mediaçãotem que ser tão fina, tão delicada, tão precisa que qual-quer deslize tem um significado político brutal. Trata-sede um aprendizado para a sociedade, para os atores so-ciais, mas o interessante é que há uma percepção, no inte-rior das organizações policiais, de que sua tarefa é com-

plexa, delicada e sutil, exigindo uma competência muitomaior do que uma ótica penal, exige uma ótica da com-plexidade.

DILEMAS DO OFÍCIO DE POLÍCIA

Há outra questão, que é o corporativismo, pois, evi-dentemente, as instituições policiais são extremamentecorporativistas, pelas suas próprias características. Se háum déficit de compreensão do fenômeno segurança e dapolícia, o corporativismo apropria-se disso no seu inte-resse. Então, se a sociedade não consegue compreender apolícia, não consegue provocar as mudanças necessárias.

No Rio Grande do Sul, foi essa a grande disputa dogoverno Olívio Dutra (1999-2002) tentando realizar mu-danças no sistema que mexiam com questões corporati-vas, como a coordenação única de comando, o registro deocorrência policial único, o banco de dados integrados, aconfecção do Termo Circunstanciado pelas duas organi-zações policiais, o ensino integrado, ações de inteligên-cia em conjunto, o controle das polícias e a reforma dasCorregedorias. Porém, o debate público foi muito medío-cre e não houve discussão do mérito dessas ações, sendoque a visibilidade e o senso comum se renderam a muitosmitos corporativos de manutenção de privilégios.

O que está acontecendo no Estado, em 2003? Pratica-mente, os projetos de integração na área de operações, en-sino, inteligência e comando foram abandonados e a falapública da Secretaria de Justiça e de Segurança é sobre adevolução da autonomia às polícias, de maneira que cadauma faça a sua parte e o faça de maneira separada, cadauma na sua, inclusive com o estímulo ao modelo culturaldos “Rambos”, a partir de afirmações reiteradas de quepolícia faz a luta do bem contra o mal e que entre o poli-cial e o bandido, o policial deve sempre se sobrepor evencer de qualquer maneira. Estamos ouvindo falar doseguinte: “agora nós retomamos a auto-estima da polícia”.O que é a auto-estima da polícia? É cada um fazer o quequer? São as polícias atuando sem controle, sem necessi-dade de explicar seus atos, quando a violência ocorre com“supostos criminosos”?

O crescente índice de violência e da criminalidade leva,no âmbito das organizações policiais, a um verdadeiro“jogo de empurra” de responsabilidades. Os dilemas daspolícias fundam-se em uma separação: a polícia de inves-tigação diz que o problema é da prevenção; a polícia deprevenção diz que o problema é da investigação; uma estáestratificada em relação à outra. Para se ter uma idéia, no

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Rio Grande do Sul, ocorrem em torno de 700 mil delitospor ano: a polícia encaminha para o Ministério Públicoem torno de 300 mil inquéritos, procedimentos e termoscircunstanciados; o Ministério Público consegue denun-ciar aproximadamente 35 mil; o Poder Judiciário conse-gue condenar, ou fazer um encaminhamento para pena, àsvezes até nem é de reclusão, mas é alguma medida social,em torno de 6 a 8 mil.

É necessário investir em uma concepção de polícia ci-dadã, que é um conceito que se desdobra numa série dedimensões. Por exemplo, a questão da participação co-munitária, que inexiste na polícia tradicional, uma vez queela não foi concebida para isto, é um fator permanente napolícia cidadã, pela aproximação de seus integrantes àpopulação e pelo comprometimento com a segurança pú-blica no local de trabalho, surgindo aí o policiamento co-munitário.

No tocante ao uso da arma e da força, a polícia tradi-cional age mais no impulso de defesa e reação, tendo altograu de liberdade para agir, muitas vezes, sem critériosbem definidos, enquanto na polícia cidadã é preciso terum treinamento prático mais apurado, envolvendo emo-ções e efeitos, que determine padrões limitados de açãoque partem de princípios estabelecidos por normas inter-nacionais, acordadas entre países.

Outro fator refere-se à distribuição dos policiais, que,na polícia tradicional, é feita por interferência política,intuição da chefia, dando resposta a uma crise ou em bus-ca de condições financeiras favoráveis à ação policial. Jáa polícia cidadã busca distribuir os policiais em bairros,dentro de critérios técnicos e científicos, estabelecendoterritórios de responsabilidade e comprometimento dachefia com o estado de segurança. Logicamente que o nú-mero de policiais aumentaria, assim como sua integraçãoe seu valor profissional para com a comunidade.

A legislação, por sua vez, privilegia o financeiro (gra-tificações) e a ascensão dos amigos do poder. Por exem-plo, toda a legislação da polícia, hoje, privilegia quem estápróximo do poder, quem está na Casa Militar e esta é umaoutra discussão que precisa ser feita. Assim, todas as di-mensões financeiras e de poder estão associadas a essapossibilidade da polícia tradicional. Agora, a questão dalegislação precisaria, para a polícia cidadã, ser voltada paratodos, com a valorização de quem desempenha a ativida-de-fim, que é uma coisa que não consegue reverter esseprocesso; hoje, o policial que está na atividade-fim ganhamenos, tem ascensão mais dificultada e não possui capa-cidade de agregação política. A polícia tradicional tam-

bém tem baixos salários, com um distanciamento elevadoentre o primeiro e o último nível, e a polícia cidadã preci-sa ter um salário razoável, com pouco distanciamento en-tre os níveis hierárquicos, como, por exemplo, a políciarodoviária federal.

Um soldado, um policial patrulheiro – até esse nomesoldado não é adequado – tinha que ser substituído poroutro qualificativo que melhor identificasse a função,como: patrulheiro, oficial de rua, oficial de polícia, etc. Apresença dos policiais na rua sob a ótica da polícia tradi-cional está basicamente onde circula as classes alta e mé-dia.

Uma polícia cidadã tem de estar presente em todos osbairros, na forma real ou potencial, atuando com ênfasena prevenção dos delitos, especialmente naqueles locaisde maior vulnerabilidade social e de elevado nível deconflitualidade. É claro que isso é muito complexo e de-pende da visão de mundo. Tudo isso proporciona um cam-po profundo para discussões, porque não são coisas quepodem ser resolvidas com uma pequena conversa, numaentrevista com curto tempo de duração. Entretanto, comoelemento para futuro debate, pode-se aprofundar elemen-tos dessa visão do mundo. A polícia tradicional parte doprincípio de que existe dois mundos: o do bem e o do mal.A polícia de controle (tradicional) parte com essa visão,ou seja, o traficante é o traficante e o cidadão é o cidadão,por exemplo.

CONTROLE SOCIAL LEGÍTIMODE UMA POLÍCIA CIDADÃ

O controle social de uma polícia cidadã é aquele quesai da sociedade e entra para a polícia. É uma visão com-pletamente diferente da atualmente existente. Para a Polí-cia Civil o assunto é mais temido do que para a PolíciaMilitar. O próprio Ministério Público, que tem como umade suas responsabilidades o controle da polícia, afirma queessa tarefa é difícil. Para a sociedade, que carece de segu-rança pública, o peso é maior. Há muito tempo a socieda-de está afastada dessa discussão.

Somente nos últimos anos, com casos de violência maisgraves, iniciou-se uma discussão nacional na qual apare-ceram debates sobre a participação da sociedade, políciacomunitária, controles sociais. Os Estados brasileiros seorganizaram com Ouvidorias e as organizações refor-mularam as corregedorias policiais. A sociedade demo-crática brasileira sentiu a necessidade de discutir o tema,e os legisladores aprovaram o princípio participativo de

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segurança pública na Constituição, ao instituírem que a“segurança pública é um dever do Estado e responsabili-dade de todos”. Portanto, o controle social da polícia éuma garantia constitucional. A polícia, que tem legalmenteo dever do uso da força e das armas, necessita de um olharcontrolador pela sociedade. Isso é o início da passagemda polícia que controla para a polícia que é controlada.

É possível imaginar como deveria ser a transformaçãode uma polícia que controla para uma polícia cidadã, emalguns pontos de sua estrutura e funcionamento: a logísticaatual da polícia de controle é pesada, enquanto a da polí-cia cidadã é leve; a formação da polícia de controle é boa,mas é etnocêntrica, não integrada, e a da polícia cidadã émais interativa, unificada; a disciplina na polícia de con-trole é autoritária, centrada nas atitudes inadequadas, naapresentação, na uniformização de policiais, enquanto napolícia cidadã deve estar baseada na ampla defesa do po-licial, na possibilidade de ter o contraditório e tambémcentrada na conduta operacional asséptica à corrupção,por exemplo, a hierarquia, na primeira, tem muitos graus(soldado, cabo, sargento, subtenente, tenente, capitão,major, tenente-coronel, coronel), o que, na polícia cida-dã, precisa ser adaptado, ou seja, deveria ter os níveisadequados à ação que produz.

A polícia atual prende para investigar, enquanto a po-lícia cidadã deveria investigar para prender, seria umapolícia mais inteligente. A polícia de controle usa técni-cas de troca de favores, de alcagüete, com dinheiro parapagar os informantes, e a polícia cidadã usa outra tecno-logia, como a escuta judicial, técnicas de prova científi-cas (DNA), que possibilitam um avanço muito forte naperícia. Os bancos de dados são separados na atual orga-nização policial. A polícia cidadã teria um banco unifica-do ou bancos inter-relacionados. Também sobre essa ques-tão dos bancos de dados e a produção das estatísticas, napolícia de controle o uso das informações segue a regrado segredo, de não repassar informações, de deixar es-condido, de não ter a transparência. Já a polícia cidadãcolocaria a base de dados disponível, socializada, permi-tindo o acesso de estudiosos e pesquisadores. Essa cultu-ra do segredo precisa ser redefinida e instalada nas orga-nizações a fim de não representar uma dimensão de poder.

Na polícia de controle, a polícia é o poder, enquantona polícia cidadã, a polícia é serviço. As políticas de se-gurança pública, na polícia de controle, são isoladas e opolítico não interfere. Portanto, a concepção de que só apolícia tem que resolver a política de segurança pública eque esse assunto é de responsabilidade dos técnicos deve

perder força para uma nova estratégia, em que a comuni-dade cada vez mais assuma sua participação, discutindo oassunto, apropriando-se e exercendo o controle social so-bre as ações públicas de segurança e das políticas de se-gurança pública.

A questão dos bombeiros, atualmente, está mais atre-lada ao corporativismo do que à funcionalidade adminis-trativa, voltada totalmente para a logística. Os bombeirosintegram, no Rio Grande do Sul, a Polícia Militar, nãotendo autonomia financeira e administrativa. Eles acabamfazendo parte dessa logística que precisa ter poder. Já numaestrutura de polícia cidadã, esses bombeiros seriam vin-culados à Defesa Civil.

A presença dos policiais, na polícia de controle, estábasicamente onde circula a classe média; as viaturas fi-cam paradas em cruzamentos de grande circulação, parapoder chamar a atenção da sociedade que mais tem re-percussão sobre a questão da mídia. A polícia cidadãdeveria estar mais presente nos locais de vulnerabilida-de social.

A grande dificuldade da polícia cidadã é a seguinte:numa ocorrência de violência policial, o próprio policialtem dificuldade de entender porquê isso está acontecen-do; essas são questões que deveriam ser desdobradas, maspode-se afirmar que a polícia, numa sociedade democrá-tica, é uma instituição que não será o centro do processoda segurança, mas sim um ente complementar a uma sériede outras ações, devendo ser extremamente técnica por-que precisa reconhecer e compreender a diversidade econviver com todo esse processo de diversidade social.Na concepção de uma polícia cidadã, um soldado, umpolicial, deveria ser patrulheiro, oficial de rua, oficial depolícia.

Existe a necessidade do administrador público ter acoragem de fazer com que haja interferência no proces-so, através da reativação da Corregedoria Externa, dasOuvidorias, de um processo de discussão, que possibili-te às pessoas se queixarem, falarem e terem respaldo, quenão seja um simulacro ou represente insegurança. Atual-mente, o controle das polícias e dos demais órgãos dosistema penal é muito frágil, limitando-se às Corre-gedorias internas, sem que haja qualquer preocupaçãode ser criado um espaço que permita e encoraje as pes-soas a apontar as irregularidades da prestação do servi-ço na área da segurança pública. O modelo atual é, ain-da, predominantemente intimidatório e carregado deproteção corporativa. Desejamos reafirmar: na polícia ci-dadã, a polícia é serviço.

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OS GRUPOS EM VULNERABILIDADESOCIAL E A POLÍCIA

Todas as políticas públicas devem ser direcionadas agrupos mais vulneráveis, como é o caso do jovem, do ne-gro, do deficiente físico, das mulheres, dos índios e dosprofissionais do sexo. Na formação da polícia deveriahaver espaço para se tratar desses grupos, pois, pela suavulnerabilidade, são os mais visados pela polícia.

No Rio Grande do Sul, iniciou-se um trabalho, com aformação integrada de policiais, em que algumas oficinastratavam do problema com instrutores específicos e mili-tantes desses movimentos. No início, não foi fácil o tra-balho, pois rompia a cultura existente, mas, em seguida,pôde-se perceber alguns avanços, como é o caso da ma-neira da polícia denominar determinados grupos segrega-dos pela sociedade.

A surpresa foi quando estávamos interessados em fa-zer uma pesquisa por palavra de ocorrências registradas epercebemos que os termos “homossexual” e “bicha” ha-viam sido trocados por “profissional do sexo”. Isso é uminício do processo de reconhecimento e de qualificaçãodos policiais em relação aos grupos mais vulneráveis. Épreciso retirar o conceito que a polícia tem sobre o “ele-mento suspeito”. O jovem e os grupos vulneráveis nãopodem mais sofrer essa discriminação e violência por parteda polícia. A mudança começa na formação da polícia ena busca de políticas sociais de atendimento e geração deemprego e renda. Essa reformulação interna da políciadepende também dos movimentos da sociedade e, por isso,o controle social não é um controle da polícia sobre a so-ciedade, mas tem que ser um controle da sociedade sobrea polícia. O jovem não pode mais ser tratado como umcaso de polícia.

Por que o policial não trata melhor o jovem? Ele nãotrata melhor porque o modelo policial é autoritário. O jo-vem possui o espírito de querer respostas rápidas, objeti-vas e tem o “critério da verdade pela argumentação”. Parao policial, acostumado com o “critério da autoridade”,quando aborda um jovem e esse quer saber “porquê?”, issopode ser entendido como uma ofensa. O policial necessi-ta cada vez mais se afastar do modelo autoritário, passan-do para uma ação mais fundamentada na argumentação,na mediação e na resolução de conflitos. Para alguns seg-mentos da polícia, isso é confundido com quebra da dis-ciplina e da hierarquia. A passagem da identidade da Po-lícia Militar para a polícia policial ainda levará alguns anos.Esse resíduo cultural de disciplina e hierarquia militar ten-

derá a ser transformado em instância mais organizativado que concepção ideológica de ação policial. Esse saltoé a passagem para uma polícia mais inteligente, mais de-mocrática e mais comunitária. No passado a Brigada teve,por um período da sua história, a denominação de Briga-da Policial. Talvez possamos começar a mudança dessaorganização trocando seu nome, porque nem o exército émilitar, é exército brasileiro. No entanto, a mudança é maisprofunda, uma vez que está em disputa a cultura de umaforma de agir.

A POLÍCIA NOS CONFLITOS AGRÁRIOS

A sobreposição da repressão em vez da negociaçãointermediada e do entendimento legal na ação policial estápresente não somente na atuação dirigida aos jovens, mastambém nos conflitos agrários. Essa forma de ação dapolícia nos assentamentos ou nos conflitos agrários, naqual a Polícia Militar tem uma autoridade real, pode re-sultar em violência, em excesso de poder, se não forempreviamente planejadas suas ações em conjunto com asautoridades civis envolvidas. Tal situação está muito li-gada ao próprio conceito do que é ordem pública hoje noBrasil. Entretanto, quem é que determina esse conceitode ordem pública?

Tivemos a experiência de trabalhar em nove invasõesde terra e em três conflitos envolvendo indígenas no nor-te do Estado. Nestas ocasiões, sempre existiu por partedo Comando da Força Policial a preocupação de não in-correr nos erros da desocupação da Fazenda Santa Elmira,propriedade de 2.200 hectares, entre os municípios de Saltodo Jacuí e Tupanciretã. Nesta desocupação, em março de1989, numa operação de guerra, ocorreu um confrontoarmado e corporal, que terminou com dezessete colonose quatro policiais militares feridos a bala, além de deze-nas de feridos leves e vinte e um colonos presos. A rela-ção dos direitos humanos e dos aspectos sociais e políti-cos que envolvem uma ocupação de terra começou ainfluenciar as decisões dos comandos, tornando as nego-ciações mais importantes que a ação direta de desocupa-ção, e o cumprimento de decisão judicial deveria buscar agarantia de segurança de todos os envolvidos, entenden-do que cada parte tinha suas razões.

Ocorreram situações, por exemplo, em que tivemos deintervir retirando policiais que estavam comendo churrascocom carne doada pelos proprietários da fazenda envolvi-dos no conflito, quando a força policial deveria estar isentapara poder cumprir suas tarefas. E ocorreu uma reação

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muito grande por parte dos fazendeiros, pois não espera-vam aquela atitude porque sempre tinham a Polícia Mili-tar para proteger sua fazenda, e a medida adotada teve gran-de repercussão.

Houve, também, a preocupação de colocar, nas nego-ciações e no cenário que envolve esses fatos, o Judiciárioe o Ministério Público como partes ativas da resolução. AJustiça para dar o suporte legal e o Ministério Público paraas questões que envolvessem crianças e adolescentes,porque na Fazenda Santa Elmira crianças e adolescentesforam usados como proteção diante da ação policial. Essapreocupação teve uma repercussão positiva para a solu-ção pacífica das ocupações que ocorreram a partir daí.

Quando há a presença do índio, em conflitos de terra,a situação é ainda mais complexa. Nesses casos, é primor-dial o envolvimento da Justiça Federal, do Ministério Pú-blico Federal e da Funai para estabelecer uma negocia-ção. Numa determinada ocasião, na Reserva de Nonoai,tivemos que providenciar um policial que falasse a línguanativa “Kaigangue” para estabelecer o diálogo com o ca-cique e os índios.

O MST, por exemplo, não é visto pelo Estado, pelaadministração, como uma questão de disputa de direitos àpropriedade da terra, mas sim como um conceito de or-dem pública, em que o MST é inimigo. Em setembro, foirealizado na Av. Borges de Medeiros, no Centro de PortoAlegre, um ato devido à morte do soldado Valdeci, numconflito que ocorreu na Praça da Matriz. Entretanto, quempensou aquele ato o está realizando em razão de todo oconflito hoje existente, para tentar dar legitimidade a umaação mais violenta da corporação; quem fez aquele atoestá pensando em resguardar a corporação, num modelode enfrentamento e tradição.

Então, esse conceito é determinado e, nessa disputa, sefala da violência do MST na marcha, mas quem é que estáprovocando a violência? Os atos violentos são todos dogrupo ruralista. As inspeções que deveriam ser feitas nocampo foram proibidas de ser e, quanto à desapropriaçãodessa fazenda em questão, o Supremo deu ganho de causae mandado de segurança, pois, por um ato formal, não hou-ve a notificação da vistoria. Por que não houve a notifica-ção da vistoria? Porque o proprietário fugiu e, além dis-so, foram erguidas barreiras para impedir que a equipe doIncra chegasse ali.

No caso dos conflitos agrários, existem no Brasil ex-periências lamentáveis de ação de policiais militares, masseria possível ter um outro tipo de ação de policiais mili-tares em ocorrências, inclusive de retirada de pessoas,

condenadas pela Justiça por esbulho possessório, ou porentrave de circulação em estradas federais. Reconhece-mos que nessas situações em que o Judiciário emite umadecisão, cabe ao governo do Estado cumpri-la e isso éfunção das polícias, em especial da militar, mas poderiahaver um outro tipo de ação.

No centro disso está a compreensão desse fenômeno,porque uma coisa é trabalhar com uma ocorrência que estáeminentemente tipificada como crime – um assalto, umarrombamento, um seqüestro –, outra coisa é estar desen-volvendo uma intervenção que envolve movimentos so-ciais de todas as formas – a greve, qualquer movimentoque tende a pressionar, por exemplo, e o MST é um movi-mento social. Qual é a grande diferença? Se compreende-mos que esse movimento está sendo feito e o analisarmosnuma perspectiva criminalizante, ou seja, é um crime,vamos reagir contra esse movimento da mesma forma queagimos contra um assalto a supermercado que precisa serreprimido. Entretanto, não é a mesma coisa.

A CARÊNCIA DE TÉCNICAS POLICIAISINOVADORAS

Quais são as técnicas policiais de prevenção: quantomais visível possível melhor? O que avançou em termosde técnicas de prevenção na polícia ostensiva? Avançoumuito pouco, a polícia não está preparada, organizada.Outra discussão é a falta de democratização da polícia,pois ela não entrou nesse processo de democratização, sefechou e não funciona.

Poucos policiais dominam as tecnologias de informa-ção mais sofisticadas e necessárias, como o georreferen-ciamento, o cruzamento de dados. O caso da digitalizaçãodas impressões digitais é exemplar: hoje, para procurarum criminoso, a polícia precisa consultar milhares de fi-chas. No ano passado começou o processo de digitalização,ou seja, já têm em torno de 50 ou 100 mil pessoas quepassaram pela polícia e agora, por meio da consulta noterminal, é possível saber, pela impressão digital, a situa-ção policial e criminal da pessoa. Nossos controles sãoainda muito rudimentares; é um processo caótico e preci-sa de grande investimento.

Quando acontece um crime, a força policial precisa estarcompleta no local: perito, investigador e policiamento os-tensivo para fazer o isolamento do local. Isso não se veri-fica no Brasil, além de freqüentemente ocorrerem brigascorporativas nesses locais. A técnica da perícia é muitoineficiente: por exemplo, de cada dez perícias que são

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feitas em Porto Alegre, em torno de 4 a 5 são erradas por-que a polícia não sabe chamar o perito e/ou apontar suasreais necessidades para a investigação. E a perícia é fun-damental para a investigação criminal e a produção dasprovas.

O policial de rua, o policial de policiamento, é o mes-mo policial, mas a técnica, a instrução do policial de ruanão é a mesma de uma operação específica, tanto é que autilização é da tropa especial, que faz realmente a deso-cupação em caso de necessidade. O isolamento é feito nolocal com os policiais de rua.

A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍCIA CIDADÃ

A polícia cidadã é uma concepção de polícia queproblematiza a segurança, discute sua complexidade edivide responsabilidades. O consumo e o tráfico da drogasão práticas comuns de todas as classes sociais e, portan-to, é falsa a divisão entre o bem e o mal. Não pode-se di-zer: “olha, eu estou do lado dos de bem”, como se os ho-mens de bem não fossem o lado mal da sociedade também,como se a sociedade tivesse isolado os de bem de um ladoe os de mal do outro. A sociedade é complexa, e a ilegali-dade ou infração é perpassada por todas as classes e osníveis.

Na preparação de uma aula para Guarda Municipal, ocapitão afirmou: “não, a gente faz abordagem e hoje a gentetem que abordar também os caras de colarinho, de grava-ta, eles assaltam bancos também”. Então, o que ele querdizer com isso? Ele quer dizer que tem uma cultura queprecisa ser mudada, ou seja, que bandido não é só o caraque está mal arrumado, o negro, o homossexual ou tra-vesti ou o cara de vila ou o que está com a roupa suja.Agora começa a desenvolver a compreensão de que tam-bém o cara de gravata pode assaltar um banco; e aí existeuma outra concepção, pois a visão muito fragmentada dapolícia não resolve e nunca resolverá os problemas. É pre-ciso ter interdisciplinaridade, multiagencialidade, visãosolidária de responsabilidades, bem como visão da pró-pria competência das polícias, que precisam ser solidá-rias e compartilhadas e não divididas.

No Rio Grande do Sul, o sistema policial avançou muitoaté o presente momento. A adoção do boletim de ocor-rências único para as polícias Civil e Militar, expresso oracomo termo circunstanciado ou registro de ocorrências, éo ponto fundamental da integração das polícias, possi-bilitando atendimento mais imediato ao cidadão, aperfei-çoando a coleta de informações no local do crime, per-

mitindo medidas periciais com maior dinamismo e, prin-cipalmente, no tocante às ocorrências de menor potencialofensivo, o encaminhamento direto do local do conflitopara o Poder Judiciário, onde será resolvido terminante-mente. Este procedimento atende de forma eficaz a umdos maiores problemas da atualidade quando o cidadãoestá diante de um conflito: o acesso à Justiça, de formacélere, imediata e imparcial, sem intermediações burocrá-ticas. Até então, o policial tinha o processo de apenasconduzir e não interagia com o próprio delito, isentava-sede qualquer responsabilidade de interferência, inclusivenão conhecia essa relação porque não tinha capacidadenem competência para tanto. A instituição do termo cir-cunstanciado não consiste simplesmente num formulárioa ser preenchido. Nele, está subjacente um novo conceitode polícia, em que o policial deve estar preparado paraentender os conflitos das pessoas, aceitar que existam es-ses conflitos, que são inerentes à sociedade e que ele temque tomar uma posição central em que ele não pesa nempara A nem para B, compreendendo as posições do A e asdo B, para poder encaminhar aquele conflito à Justiça.Precisa, então, possuir essa habilidade de organização doespaço, da composição do conflito, para que possa serencaminhado.

Além disso, na concepção da polícia tradicional, há umaidéia de que ela é final, ou seja, de que prendeu, terminouo criminoso, não tem mais aquele crime. Na verdade, apolícia é um elemento inicial no processo de persecuçãocriminal. Quando um policial efetua uma prisão, o infratorserá submetido ao processo criminal e, tendo ele obtidoum habeas corpus ou, no caso de flagrante, sua prisão nãofor homologada, ele recuperará sua liberdade. Se ele viera cometer outro delito, a função da polícia é voltar a pren-dê-lo, fazer novas provas para que ele retorne ao sistemaprisional. Isto faz parte da função policial, não é estanquea sua atividade, irá sempre se repetir como parte da ativi-dade policial, sendo por isso um meio e não o fim desseprocesso. A sociedade coloca a polícia como determinantedo fim do processo, quando na realidade atual é o iníciodo processo de persecução criminal, em que a decisão final– a aplicação da lei – será feita pelo Juiz de Direito.

No contexto do controle social e da constituição de umapolícia cidadã, os mecanismos de acesso dos cidadãos àpolícia através de Ouvidorias são importantes para a trans-parência das práticas policiais. Existe a necessidade doadministrador público ter a coragem de fazer com que hajaparticipação dos cidadãos no processo, por meio da reati-vação, por exemplo, da Corregedoria externa, das Ouvi-

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dorias, de um processo de discussão que possibilite àspessoas direcionarem suas denúncias, questionamentos esugestões. Atualmente, o controle das polícias e dos de-mais órgãos do sistema penal é muito frágil, limitando-seàs Corregedorias internas, sem que haja qualquer preocu-pação de se criar um espaço que permita e encoraje aspessoas a apontar as irregularidades da prestação do ser-viço na área da segurança pública. O modelo atual é, ain-da predominantemente intimidatório e carregado de pro-teção corporativa.

Parte do processo de compreensão dos policiais é oreconhecimento de que intervir no movimento social nãoé o mesmo que estar intervindo na criminalidade. A partirdesse entendimento, a polícia terá uma perspectiva de queela precisa reestabelecer a ordem e cumprir a ordem judi-cial, mas tem de preservar as pessoas que estão ali e reco-nhecer que o movimento possui certa legitimidade, fazendoo processo de mediação. Se fizermos isto, estaremos en-caminhando soluções que trarão menos processos de en-frentamento ou de violência.

Com este objetivo, passou-se para um procedimentode negociação e mediação do conflito com os movimen-tos sociais. Os processos de mediação exigem maior tem-po para sua implementação. É possível uma polícia tratarda questão dos movimentos sociais de uma forma dife-rente, e nisso, a Brigada Militar agregou muito nos quatroúltimos anos.

Há experiências promissoras e apropriadas na polícia.A Brigada Militar começou um processo interno de for-mação, tanto operacional como técnico, que sedimentouconteúdos, para além de mudanças de governos políticos.Do ponto de vista da democracia, é importante no sentidoque estamos conseguindo verificar que existe a constitui-ção de um corpo de funcionários do Estado e não apenasde funcionários de Governo. Hoje a Brigada tem comopadrão de referência, na ação policial dos movimentos so-ciais, o acompanhamento, a negociação e a mediação.Existe, ainda, envolvimento da Justiça, do Ministério Pú-blico e de todos os outros setores, para que eles tambémparticipem na resolução do problema. Os conceitos estãomudando.

O grande desafio colocado no processo de democrati-zação dos países da América Latina, hoje, quanto às Or-ganizações Policiais, é a questão da função da polícia, doconceito de polícia. Essa definição é manifestada pelatransposição da polícia tradicional, voltada exclusivamentepara uma ordem pública predeterminada e estabelecidapelo poder dominante, para uma polícia cidadã, direcio-

nada para efetivação e garantia dos direitos humanos fun-damentais de todos os cidadãos.

A relação com a comunidade precisa ser trabalhada emtodas as variáveis, trabalhar a mobilização comunitária,outros processos de intervenções nas áreas sociais quevenham interferir na melhoria da vida em coletividade. Aprópria gestão e o sistema precisam ser sincronizados, querdizer, não se compreende mais, no atual modelo, que aspolícias tenham um banco de dados cada uma e que umnão conversa com o outro e não conseguem se comple-mentar.

Outro obstáculo consiste na inexistência de áreas deresponsabilidades que sejam coincidentes para todos osorganismos do sistema de persecução penal e também paraa divisão política e comunitária dos municípios. Essa de-ficiência, até aqui, tem contribuído para que não haja da-dos estatísticos, indicadores e índices de conjunto em re-lação a um espaço territorial, agregando as informaçõesproduzidas por todos os subsistemas. Contribui, também,para a ausência de implantação de planos de atividadesem conjunto, bem como para a falta de aproximação des-ses órgãos com suas comunidades locais.

Deve-se discutir, primeiramente, a questão dos proble-mas do sistema, o ciclo de polícia, o inquérito policial, ainteligência única e a formação adequada e integrada. Aproposta de que a guarda municipal será uma soluçãoimediata não se sustenta sem abordagem dos problemasmencionados anteriormente e somente reproduzirá o mo-delo que está aí, consistindo em uma lógica de resolver ofenômeno da insegurança pública somente por meio demedidas quantitativas. Precisamos intervir nos problemasdo sistema para depois discutir a polícia municipal.

Defendemos a construção de um aparelho policial com-pleto, que tenha suas divisões investigativa, pericial e os-tensiva, além de forças especiais para atuar somente nosmomentos de crise; também uma polícia municipal paraaumentar os efetivos de patrulhamento comunitário e de-terminar responsabilidades ao Executivo municipal nasegurança de sua comunidade.

A polícia estadual, do jeito que está retratada, só in-centiva o corporativismo, a corrupção, a omissão, a faltade responsabilidade com o local de trabalho e as dificul-dades na elucidação dos ilícitos. Temos uma políciainvestigativa que, apesar de trabalhar a civil, está sendoempregada ostensivamente com fardamento preto e via-turas padronizadas, enquanto a outra, que deveria ser pre-ventiva, continua atuando dentro de estratégias militarese ações puramente repressivas.

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Para o país, novos conceitos de sistema de segurançadevem ser revistos e escritos, envolvendo o Judiciário norecebimento das ocorrências, no trato imediato e menosburocrático dos ilícitos, nos processuais, no julgamento,na aplicação e execução da pena, no acompanhamento dosbenefícios legais e na recuperação social dos apenados.O inquérito policial tem de ser extinto, pois há necessida-de de um novo instrumento mais rápido, desburocratizadoe eficaz realizado pela Justiça e não mais pela polícia, aqual ficará responsável pelo levantamento das provas,preocupando-se com a investigação e a elucidação dos de-litos. As atividades de polícia devem ser compartilhadase estruturadas em ciclo único de intervenção e prestaçãode serviço.

AS MUDANÇAS NA FORMAÇÃO POLICIALE AS UNIVERSIDADES

Historicamente, verifica-se que as Secretarias de Se-gurança são ocupadas por juristas positivistas ou milita-res das Forças Armadas, que trazem seus conceitos paradentro desse processo. A abordagem somente através daideologia positivista ou pela ideologia militarizada é in-suficiente e não apresenta soluções eficientes.

Existe um deficit, uma lacuna, uma ausência de discus-são, na sociedade brasileira, no Estado, na sociedade ci-vil, no setor empresarial, em todos os setores, sobre aquestão do sistema de segurança pública que esteja deacordo com a sociedade brasileira e que estabeleça osprocessos de relacionamento entre as instituições e seusobjetivos sociais, o papel do Judiciário, do MinistérioPúblico e das penitenciárias, e que modelo de polícia asociedade quer construir para a segurança de todos os ci-dadãos. Neste contexto, o papel das universidades públi-cas é fundamental.

O policial precisa ter uma formação acadêmica multi-disciplinar, em que as áreas humanísticas, jurídicas, admi-nistrativas e técnicas-profissionais sejam abordadas deforma interdisciplinar e com temas fundamentais de cadauma delas, ensejando a transversalidade do currículo. Oestado da arte de cada área deve ser enfocado sob a óticado ofício de polícia. O currículo de formação e qualifica-ção dos policiais deve proporcionar sua autonomia parapoder enfrentar os conflitos e buscar a melhor solução.

O policial precisa ter uma formação própria, pois ape-nas o Direito não forma um policial, a Administração nãoforma um policial, a Sociologia não forma um policial;ou seja, o policial, pela complexidade da sua atividade e

importância das atividades de prevenção, teria que ter todoum processo de conteúdo próprio.

Há uma questão polêmica: no momento em que a Bri-gada Militar adotou como condição essencial para ingres-so no curso de oficial o bacharelado em Direito, em 1997,decisão apoiada por 99% dos brigadianos, alguns consi-deraram que houve um retrocesso na nossa caminhada parauma polícia adequada aos momentos atuais e futuros. Essaopinião provavelmente não representa 1% dos policiaismilitares. Havia o entendimento de que a única forma dese manter um processo isonômico econômico com os de-legados de Polícia e as carreiras jurídicas era ter o Direitocomo exigência de ingresso. Essa polêmica permanece atéhoje.

Houve todo um movimento de transformação na Bri-gada Militar. Nesse sentido, possuímos uma visão da im-portância da criação do Instituto de Pesquisa. Começa-mos a trabalhar um pouco a epistemologia da questão daviolência, uma maior aproximação com a universidade,sair do casulo, ter uma visão fora do etnocentrismo e bus-car a constituição de uma massa crítica que pudesse fazerum agregado de uma outra polícia que sempre queríamosque existisse.

O policial é aquele que deve estar preparado para re-solver a ocorrência sozinho, pois não há um superior paraajudá-lo naquele momento. Para ele estar preparado, temque haver um investimento muito grande do Estado paradar capacitação adequada em qualquer situação. Para ha-ver esse trabalho, tem que existir investimento na polícia.

Atualmente, no meio acadêmico, não há o domínio doconceito de polícia, porque a polícia sempre foi percebi-da por todos como uma mão-de-obra não especializada,uma atividade extremamente fácil. Por que ela é uma ati-vidade extremamente fácil? Porque, segundo tal idéia, elaé uma atividade que precisa somente de vigor físico e co-ragem inconseqüente. Então, não necessita de inteligên-cia, de intelectualidade, estar estudando isso; precisa so-mente ser uma barreira física para separar o bom do ruime assim ela foi construída. Por conseqüência, segundo estaconcepção, de que precisaria a polícia? A polícia precisa-ria ter vigor físico e coragem inconseqüente para pegaralguém a unha e servir mesmo como um robozinho, ouseja, separar o bem do mal.

Precisamos trabalhar essa idéia de pensar a polícia en-quanto uma atividade complexa e de difícil execução. Énecessário que ela seja pensada, também, de dentro parafora, inclusive levantando os problemas e colocando ascoisas como são mesmo. Isso é muito importante no sen-

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tido de se construir, junto com a universidade, um debateprofundo e sério.

A convicção predominante no grupo é a de que as mu-danças na polícia só podem sair de dentro da polícia, emconjunto com os campos mais avançados, que são os pes-quisadores e especialistas desta área do conhecimento.Então, esse processo de estimulação é uma função da uni-versidade, que instiga, propõe e questiona. A própria po-lícia tem que disponibilizar as informações e abrir suasorganizações, por mais conservadores que sejam.

Ocorre, atualmente, um processo de se inserir no cam-po universitário a discussão da complexidade da seguran-ça pública e da gestão através da polícia. Essa é a nossaencruzilhada, nesse momento: a compreensão do fenôme-no, ou seja, quem dirige a administração pública, paradesenvolver políticas de segurança, não compreende ofenômeno.

O problema todo é o seguinte: há um deficit enorme decompreensão sobre esse fenômeno para que se possa formaruma massa crítica para realizar a intervenção políticaconstruindo políticas de segurança, pois a abordagemsomente pela ideologia positivista ou pela ideologia mili-tarizada é insuficiente e não apresenta perspectivas de solu-ção. Neste contexto, o papel da universidade é fundamental,como tem sido em outras políticas. Todo conceito que éconstruído pela problematização é mais perene, articuladoe dinâmico e tende a ser um conceito da sociedade modernaque também acompanha esses princípios.

O grande desafio colocado no processo de democrati-zação dos países da América Latina, hoje, quanto às or-ganizações policiais, é a questão da função da polícia, doconceito de polícia. Esta definição é manifestada pelatransposição da polícia tradicional, voltada exclusivamentea uma ordem pública predeterminada e estabelecida pelopoder dominante, para uma polícia cidadã, direcionadapara efetivação e garantias dos direitos humanos funda-mentais de todos os cidadãos.

NOTA

Este texto é o resultado de uma entrevista realizada com os autorespelo Professor José Vicente Tavares dos Santos, responsável pela re-dação final, juntamente com os sociólogos Dani Rudniki e CarinaFüsternau, em Porto Alegre, na primavera de 2003.

JORGE LUIZ PAZ BENGOCHEA: Coronel da RR da Brigada Militar/RS. Autordos livros “Policiamento Comunitário: como conquistar a confiança daComunidade” e “Uma Nova Ordem na Segurança”.

LUIZ BRENNER GUIMARÃES: Coronel da RR da Brigada Militar/RS, Coor-denador de Segurança Urbana da Secretaria Municipal de DireitosHumanos e Segurança Urbana da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

MARTIN LUIZ GOMES: Ten. Cel. RR, Assessor de Pesquisa e Formação daSecretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana.

SÉRGIO ROBERTO DE ABREU: Tenente Coronel da BMRS, Chefe do EstadoMaior do Comando Regional do Litoral Norte do RS.

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O

POLÍCIA E VIOLÊNCIArepresentações sociais de elites

policiais do Distrito Federal

Resumo: O texto analisa as representações sociais de elites policiais – civis, militares e do exército – sobre aviolência policial. O foco da análise são as relações entre cultura organizacional e as formas e modelos deestruturação organizacional e de gestão das atividades policiais, levando em conta a função policial e as rela-ções entre polícia e sociedade.Palavras-chaves: violência policial; gestão e organização policial; representações sociais.

Abstract: This text analyses the public statements made by elite members of the police force – civil, militaryand army – on the subject of police violence. The focus of the analysis is on the relationship between theorganizational culture and the forms and models of organizational structuring, and the management of policeactivities, keeping in mind the role of the police and its relationship to society.Key words: police violence; police management and organization; public statements.

MARIA STELA GROSSI PORTO

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 132-141, 2004

artigo tem como tema a análise das representa-ções sociais de policiais civis e militares (sobre-tudo aqueles ligados à estrutura da Secretaria de

Segurança Pública do Distrito Federal) sobre a violênciapolicial. A ênfase da análise incide sobre as formas/mo-delos e modos de estruturação organizacional da Segu-rança Pública no Distrito Federal, visando avaliar as raí-zes desse tipo de violência. Questiona-se: em que medidae quanto da atuação policial é percebida por dirigentesdas organizações da área de segurança pública como vio-lenta; em que medida (quando percebida) é representadacomo efeito, direto ou indireto:- do déficit de eficiência/competência organizacional daárea de segurança;- como conseqüência de lacunas na formação profissionaldo policial;- do descrédito generalizado no sistema judiciário queproduz e reproduz a impunidade;- como parte estrutural do ethos e da cultura organiza-cional predominante nos modelos de polícia em vigor.Nesse caso, está em questão o caráter de legitimidade/ile-gitimidade da violência como parte da função policial.

Antes de iniciar a análise das representações pro-priamente ditas, vale ressaltar que para se definir ouentender o que faz a polícia, nos termos de Monjardet(2003:15), deve-se lembrar que “a ação policial é postaem movimento [cotidianamente, numa delegacia] por trêsfontes. Certas tarefas são prescritas de maneira imperativapela hierarquia superior (...) Outras são respostas mais oumenos obrigatórias às solicitações do público (...) Outrasenfim são de iniciativa policial (...) Essa simples obser-vação permite inferir que o aparelho policial é indis-sociavelmente: um instrumento de poder que lhe dá ordens;um serviço público, suscetível de ser requisitado por todos;uma profissão, que desenvolve seus próprios interesses.Tripla determinação que não tem razão alguma para fundir-se em perfeita harmonia. Ao contrário, essas três dimensõespodem se confrontar como lógicas de ação distintas econcorrentes”. Essas dimensões, e suas tensões, estãopresentes, de forma implícita ou explícita, nas repre-sentações analisadas, apontando para a necessidade deapreendê-las em suas inter-relações, enquanto aspectos deum mesmo e único processo.

O senso comum, a mídia e também análises de cunhoacadêmico têm revelado grande consenso ao insistir no

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caráter violento da atuação policial, além de enfatizarque essa violência é o estopim para outros tipos deviolência protagonizados pelo cidadão comum, numaresposta em cadeia, que se converte em uma espécie decírculo vicioso.

Essa violência, contida estruturalmente no ethos e nacultura organizacional dos modelos de polícia em vigorno Brasil (e em outros contextos também), poderia, emcerto sentido, ser pensada como expressão (ou parte) daviolência que, enquanto representação social, estrutura eregulamenta relações sociais (Machado, 2003). A socie-dade se representa como violenta, as políticas públicas desegurança estão referidas a esse conteúdo do imagináriosocial, deixando emergir sentimentos ambíguos e mesmocontraditórios: por um lado, a exigência, quase obsessi-va, de que a impunidade seja enfrentada e combatida pe-los poderes competentes aponta na direção de uma recusada violência como forma de resolução de conflitos propi-ciando a inserção no processo civilizatório, tal como pro-posto por Elias (1990); por outro, o recrudescimento daviolência em determinados contextos, espaços, e/ou seg-mentos sociais conforma “ilhas de violência” e traz à tonauma outra noção do mesmo autor, a de des-civilização,que caracteriza a reversão desse processo civilizatório,configurando contextos de retrocesso. É dessa segundarepresentação que emergem as demandas por aumento decontrole social e repressão, colocando em evidência a re-levância de se analisar e compreender o segmento respon-sável pela organização, gestão e prática desse controle,ou seja, o segmento policial.

No contexto desse artigo, a reflexão concentra-se emcomo esse segmento reflete sobre as formas do exercíciodesse controle realizado mediante práticas que são, en-quanto tal, percebidas como violentas, legítimas ou não.Busca-se compreender como policiais se representam nacondição de agentes da violência. Nesse sentido, tomam-se, como representações sociais os discursos de policiais– civis, militares e do Exército atuantes na área da Segu-rança Pública do DF – e, com base neles, concentram-seas reflexões e indagações do texto. Esses indivíduos, pelasua condição de dirigentes, são pessoas-chave na cons-trução/consolidação dos valores que compõem o ethosinstitucional das corporações. Além disso, em decorrên-cia da posição que ocupam, dispõem objetivamente deautonomia para definir e modificar normas e procedimen-tos, e detêm subjetivamente competências “requeridas”para o exercício da distinção (Bourdieu, 1989), da qualse apropriam em função do cargo.

Quando se trabalha com análise de representações so-ciais – nas quais as afirmações e a argumentação elabora-das pelos entrevistados estão permeadas por conteúdosvalorativos (muito das afirmações do senso comum pos-suem essa característica) – o não-dito, as lacunas, asfissuras conformam, tanto quanto o dito, o conjunto domaterial a ser analisado, pois é do confronto entre as afir-mações e os “esquecimentos” que poderá emergir um maiorconhecimento acerca da realidade, objeto da fala. Entre odito e o interdito, o pesquisador tem a tarefa de produzirsuas análises, lembrando sempre que é no interior da pró-pria formação discursiva (que abarca tanto o permitidoquanto o proibido) que se encontram os não-ditos e osinterditos.

Afirma Orlandi (1988:10-11;58): “A formação discur-siva se define como aquilo que numa formação ideológi-ca dada (isto é, a partir de uma posição dada em uma con-juntura sócio-histórica dada) determina o que pode e deveser dito”. Em uma outra passagem acrescenta a autora: “asformações discursivas, ao mesmo tempo em que determi-nam uma posição, não a preenchem de sentido. Se, no iní-cio, essa noção foi compreendida como regiões fechadase estabilizadas, logo se percebeu que elas são atravessa-das (eu diria mesmo constituídas) pelas diferenças, pelascontradições e pelo movimento. Elas não são definidas apriori como evidências ou lugares estabelecidos mas comoregiões do conjunto dos sentidos”.

Essa abordagem guarda grande proximidade com cer-tos pressupostos que orientam a análise das representa-ções sociais, conforme a apropriação que aqui se está fa-zendo dessa noção, enquanto estratégia metodológica,conforme explicitado a seguir.

VIOLÊNCIA E REPRESENTAÇÃO

Quer se trate de análises especializadas ou de afirma-ções feitas pelo senso comum, as discussões sobre a rea-lidade da violência nas sociedades contemporâneas têmsido articuladas a partir do pressuposto, raramente ques-tionado, de seu crescimento. Ainda que esse não seja otema desse artigo, valeria a pena mencionar que, assimexpressa, a afirmação não tem sustentação empírica maissubstantiva, a não ser a que recorre às constantes remis-sões aos noticiários, os quais não se cansam de atestar talcrescimento. O crescimento de um fenômeno plural epolissêmico como o da violência é algo sobre o que nãose pode decidir se não se distingue com clareza e exati-dão que parâmetros estão sendo utilizados, e a partir de

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que critérios, para se definir violência. Sem intenção dese deter nessa questão e sem a utilização, agora, do recur-so de aplicação da análise estatística aos dados empíri-cos, o que permitiria atestar o aumento ou a diminuiçãodo fenômeno, registra-se que a relevância do olhar socio-lógico sobre a questão não tem, neste texto, uma visadaquantitativa: articuladas à realidade objetiva e concretada violência, suas representações sociais elaboradas pe-los mais diferentes setores da população constroem a vio-lência como uma categoria explicativa das relações so-ciais, percebendo-a, cada vez mais, como um modoconcreto de regulamentação da vida social e de resoluçãode conflitos, consubstanciando o que Machado (2003:5)analisa como a violência enquanto representação de umaordem social.

“Existe uma expressão muito difundida e coletivamen-te aceita pelas populações urbanas para a) descrevercognitivamente e b) organizar o sentido subjetivo das prá-ticas que envolvem o que legalmente se define como cri-me comum violento e suas vítimas atuais e ou potenciais– violência urbana. Narrativas que visam explicar moti-vos de ação, assim como avaliações morais de condutas efenômenos da vida cotidiana nas grandes cidades funda-mentam-se nessa expressão para serem aceitas e compre-endidas. Isso permite tomar a violência urbana como umarepresentação coletiva, categoria de senso comum consti-tutiva de uma ‘forma de vida’” (grifos do autor).

Conforme ressalvado em outro texto (Porto, 2002:157),a apropriação da noção de representações sociais comoestratégia metodológica deve-se ao reconhecimento de queas representações sociais permitem avançar o conhecimen-to da realidade na medida em que a) “embora resultadoda experiência individual, (...) são condicionadas pelo tipode inserção social dos indivíduos que as produzem; b)expressam visões de mundo objetivando explicar e darsentido aos fenômenos dos quais se ocupam, ao mesmotempo em que, por sua condição de representação social,participam da constituição desses mesmos fenômenos; c)em decorrência do exposto em ‘b’, apresentam-se comomáximas orientadoras de conduta; d) existe uma conexãode sentido entre os fenômenos e suas representações so-ciais, que, portanto, não são nem falsas nem verdadeiras,mas a matéria prima do fazer sociológico”.

É possível analisar, a partir dessa ótica, as entrevistasfeitas com os dirigentes policiais do Distrito Federal. Fo-ram entrevistados policiais civis, militares e do Exército deambos os sexos. Os (poucos) depoimentos transcritos sãotomados como exemplos de representações por eles elabo-

radas e funcionam como recurso metodológico, ajudandoa refletir sobre os novos sentidos e as re-significações queos discursos sobre a violência não cessam de produzir.

PENSANDO MODELOS E FORMAS DEORGANIZAÇÃO POLICIAL

Uma das representações das elites policiais entrevista-das no DF é a de que a sociedade brasileira é uma socie-dade violenta, que essa violência não é específica ao con-texto brasileiro, mas que aqui há particularidades que nãopodem ser subestimadas, uma delas, o fato de a popula-ção, em função de seus medos e inseguranças, ser umapopulação que se arma cada vez mais.

Situação que justifica, segundo um dos entrevistados,o fato da polícia não poder se desarmar, à semelhança dapolícia londrina.

“Agora, tem por exemplo, as pessoas se baseiamàs vezes em legislações e pontos das polícias deoutros países que a realidade do outro país é dife-rente. Então por exemplo, a polícia da Inglaterranão usa arma, na Inglaterra praticamente não háarma porque a legislação pra arma ela é rigoro-síssima, então o número de armas existentes no paísé muito baixo (...) porque se você colocar uma po-lícia do Brasil desarmada amanhã não tem nenhumpolicial vivo, tamanha a quantidade de arma quetem na mão dos bandidos. E eles sabendo que apolícia está desarmada eles vão matar nós todos (...)Então a polícia tem que sofrer algumas modifica-ções, passar por uma parte mais social indiscuti-velmente, mas a mentalidade da sociedade tambémtem que mudar, sabe porque? Você vê que o que aspessoas querem da polícia é uma segurança parti-cular, a pessoa quer um policial dentro da sua casa,ela não tá preocupada com a segurança da comuni-dade, ela tá preocupada com o seu problema, o seufilho” (Entrevista n.1).

E, um pouco mais abaixo,“Então quem é vítima acha que isso a gente vê tododia até pela imprensa, que a justiça não serve pra nada,que a polícia não toma providência, porque quando apessoa é vítima ela acha que o seu caso é o maisimportante do mundo e que a polícia tem a obrigaçãode parar tudo, ir lá e pegar aquela pessoa e fazer algumacoisa, preferencialmente matar” (Entrevista n. 1).

Nos depoimentos colhidos, a violência como repre-sentação, mais do que a violência vivida, é o conteúdo

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através do qual o policial define comportamentos doconjunto da sociedade e ressalta as ambigüidades e as solida-riedades entre as formas de agir da polícia e da sociedade:

“Mais uma vez eu acho que é um problema cultural.Nós não nos importamos quando um policial é mor-to. Essa questão do treinamento policial, no que dizrespeito ao cuidado da própria vida e a questão doemprego da arma de fogo contra pessoas que estãotransgredindo, às vezes, a gente tenta fazer isso mui-to artificialmente (...) Então, eu acredito que se tenhaque mudar a maneira de perceber essa questão do tra-balho policial dos dois lados. Primeiro, que aquelepolicial é uma pessoa (...) Ah, só falam quando mor-re bandido. Quando o policial morre, ninguém correpara lá para falar alguma coisa. Ele morreu em prin-cípio defendendo a sociedade. Também quando eusaco uma arma de fogo e atiro em alguém (...) Se hojehá essa mortandade no Brasil é porque de algumaforma isso é aceito. Socialmente, é aceito (...) Em SãoPaulo, eu vi uma multidão de pessoas. Estavam espe-rando a saída da Rota. Há um culto da violência. Aspessoas querem ir lá para ver aquele aparato de for-ça. Se o comportamento da Rota não fosse aceito,socialmente, não fosse aceito, eles já tinha desmon-tado a Rota (...) Tudo isso está mais ligado a umaquestão cultural. Para a sociedade, não importam tantoesses conflitos... Ah, morreu bandido. Devia ter mor-rido mais. Enquanto não se modificar essa cultura, eunão posso falar em procedimentos” (Entrevista n. 2).

As representações acima não apenas buscam organizare dar sentido ao fenômeno da violência, com o qual osujeito que as elabora interage, como, ao fazê-lo, “defi-nem” como violento o contexto no interior do qual sedesenvolve a atuação policial, impregnada, ela mesma, devalores que informam práticas sociais e culturais doconjunto da sociedade. A afirmação contém, ainda que deforma velada, a crença socialmente construída segundo aqual os bandidos, mais do que a polícia, têm merecidotratamento privilegiado, aliada ao igualmente velado reco-nhecimento da baixa auto-estima que conforma e define aidentidade de policial informando, igualmente, formasviolentas de atuação do policial, quando no exercício desuas funções.

A dimensão organizacional das corporações policiaisé um locus privilegiado para se perceber o quanto a vio-lência, representada enquanto categoria organizadora dasrelações sociais e portadora de sentido para a ação, infor-ma a filosofia e o modelo de atuação policial. Por exem-

plo, vários são os depoimentos que insistem no caráterreativo da ação policial, contrapondo a ele uma forma deatuação que seria pró-ativa, uma outra linguagem para dizero mesmo, a lógica da repressão e não a da prevenção pre-domina enquanto modus operandi da segurança públicaem seu conjunto.

A prevenção é uma possibilidade de orientação da açãopolicial que, segundo a avaliação de alguns dirigentes,apenas começa a tomar forma nos novos modelos de or-ganização e gestão que vão sendo apresentados e discuti-dos nas organizações policiais, à espera, como parecemquerer dizer os dirigentes, de que a sociedade também semodifique. Nessa medida, representam a violência poli-cial como resposta, expressão ou efeito da violência so-cial. Avaliam que, enquanto modelo de controle social, arepressão encontra eco em (e ao mesmo tempo sinaliza)valores societais autoritários a partir dos quais se assumeque, até prova em contrário, todos são culpados, e a lei ea ordem têm de ser garantidas (aqui vale acrescentar queessa presunção de culpabilidade não está isenta de discri-minação e particularismos). Essa característica alia-se auma outra: a desconfiança em face do cidadão acarretaprocedimentos muito burocratizados – cada instância ra-tifica e/ou retifica a anterior e isso se traduz, segundo osentrevistados, em práticas morosas e ineficientes, cujoefeito é o descrédito nas instituições policiais:

“(...) a organização das polícias, em si elas são muitoburocráticas, muito, e principalmente a polícia militar,que tem uma estrutura militar de hierarquia, entendeu?É quartel, batalhão, companhia e por aí a fora, aquelaestrutura eminentemente burocratizada. A polícia civila mesma coisa, a ação da polícia civil é muito burocrá-tica ainda. Por isso reclamam que um inquérito demo-ra, porque ele é muito burocrático. [Essa burocratiza-ção] (...) É traço de uma cultura organizacional vindalá do império, antes do império, entendeu? Quando secriou as primeiras polícias com aquele modelo portu-guês, que é, que era muito burocrático, entendeu? (...)Primeiro a polícia militar que era uma guarda, depoisas necessidades de investigar os crimes, e aí uma polí-cia que não usasse farda, para poder fazer um serviçovelado, aí criou-se uma polícia civil, entendeu? (...) apolícia tá sempre buscando o inimigo, então ela pas-sou a ver o cidadão sempre como inimigo, não é isso?Porque principalmente com relação à formação mili-tar, preparado para enfrentar o inimigo, e as mesmasestratégias do militar, então o cidadão era inimigo, étanto que tinha termos próprios, chamava sempre pai-

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sana, essa linguagem, esse linguajar do policial é umaforma, assim, de que ele e o cidadão são, estão em pon-tos diferentes, entendeu? Em oposição. Essa é ainda...é essa cultura nossa. E na polícia numa forma geral, napolícia civil também se tem, de alguma forma, esse tra-ço, né isso? (...) Aí vem aquela história do prender paraaveriguação, você não tem documento, fica preso atéprovar quem você é, sua palavra não vale.. e de 88 paracá, contraria o princípio da Constituição (...)” (Entre-vista n. 9).Segundo a cultura predominante no interior das corpo-

rações, as distinções entre o cidadão comum e o policialparecem ser profundas: os policiais explicitam-nas atémesmo em termos existenciais. Quando um policial, aofalar da função ou missão dos policiais, admite que anatureza dessa função faz do policial alguém diferente docidadão comum – pois cumprir sua função nesse caso podeser sinônimo de matar ou morrer –, ele afirma que, emcerto sentido, o poder sobre a vida e a morte (Porto, 2001)é o diferencial entre ser policial ou civil, e que esse dife-rencial acarreta certas prerrogativas: morrendo ele o fazem nome da lei e matando também, razão pela qual, e aías conseqüências se desdobram, ele não pode, na avaliaçãode um entrevistado, ser julgado por um tribunal civil. Aviolência representada como modus operandi da sociedadeé levada às últimas conseqüências. A convicção de que opolicial não é um cidadão, um indivíduo como os demais,funciona no sentido de colocá-lo fora dos parâmetroslegais: “‘a missão’ o coloca acima da lei e algumas vezesaté mesmo contra a lei, na medida em que respeitá-la éver-se impossibilitado de cumprir com seu dever.” Talconvicção encontra, de algum modo, solidariedade de partede segmentos da população civil que representam comolegítima a violência policial que visa o combate àcriminalidade e à violência. Para esses, “a criminalidadechegou a tal ponto que seria absurdo o policial cumprir asnormas legais”. Nessa mesma direção, acreditam que“como último recurso para garantir a ordem social opolicial deve usar o poder das armas.” (Porto, 2001).Retoma-se a idéia de profissão de Monjardet (2003), à qualse poderia acrescentar a de identidade profissional.

O efeito possível desses conteúdos valorativos é que,na prática, o policial se percebe “protegido” por uma cul-tura institucional que inclui a violência como possibilida-de para conter a violência (e as transgressões de modomais amplo). Entre o dito, o não-dito e o interdito estãosentidos, valores e visões de mundo que orientam práti-cas e conduzem ao agir em uma dada direção. Implícita

na linguagem do inimigo, contida em uma das entrevistasrealizadas, está a metáfora (não explicitada) da guerra: aoinimigo não se pode dar trégua, apresentar-se desguar-necido, desarmado é arriscar-se a perder a vida. Do pontode vista metodológico, o que ensina Foucault (1986:37)sobre a constituição dos enunciados e da unidade de umdado objeto, no caso a loucura, é pertinente para elucidaros enunciados do fenômeno violência: “(...) a doença men-tal foi constituída pelo conjunto do que foi dito no grupode todos os enunciados que a nomeavam, recortavam, des-creviam, explicavam, contavam seus desenvolvimentos,indicavam suas diversas correlações, julgavam-na e, even-tualmente, emprestavam-lhe a palavra articulando, em seunome, discursos que deveriam passar por seus. Mas, hámais ainda: esse conjunto de enunciados está longe de serelacionar com um único objeto, formado de maneira de-finitiva, e de conservá-lo indefinidamente como seu hori-zonte de idealidade inesgotável (...)”.

A polissemia e os deslocamentos são a constante dequalquer formação discursiva.

“A questão de ser militar. Às vezes, a gente confun-de o militar. Ele é militar porque é uma organizaçãobaseada na hierarquia e na disciplina. A Igreja tam-bém é. O Banco do Brasil também é. O Itamaratytambém é. É militar porque anda fardado. Uma sé-rie de entidades aí andam de uniforme e não sãomilitares. (...) O caráter de sentido do militar é a mis-são dele. O militar é um grupo social que cumpre aatividade dele às últimas conseqüências. Dele e dequem se opõe a ele. Não há limite. Não há limite delei, mesmo porque o inimigo não está subordinadoa nenhuma legislação. Ele não está amparado à cons-tituição brasileira. Se eu tiver que dizimá-lo, é dizi-mado e acabou. Os exemplos históricos são sempreassim. (...) Então, o caráter militar é que não há li-mite para esse cumprir o dever (...) a socializaçãodele é diferente do civil. Os valores deles são dife-rentes do civil. Então, ele não poderia ser julgadopor um civil, em cima do princípio que os pares ojulgam, que eles têm os mesmos valores, as mesmascrenças (...) E a sociedade diz que eu tenho que teresses valores diferentes. O maior aspecto disso é quea profissão militar é antinatural. Quer dizer, quandoeu digo que ele deve sacrificar a vida dele no cum-primento da missão, isso é um comportamentoantinatural (...) Quando chega a lei Bicudo e diz as-sim, o militar que cometer crime contra a vida vaiser julgado pelo tribunal do júri, ele sinaliza bem

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para o legislador brasileiro esse caráter do cumprira missão às últimas conseqüências não existe. Eletem que cumprir as atividades dele com os valoresda sociedade civil (...) Então, eu não posso ter umconfronto com o marginal e levar isso às últimasconseqüências” (Entrevista n. 2).

Distinguindo civis e militares, com base em critérios li-gados ao caráter e à natureza da função dos últimos, taisdiscursos (representações) abrem espaço (não-dito) paradesobrigar o policial de se orientar, em termos de organi-zação da conduta, pelas normas legais, principalmente quan-do não está atuando no cumprimento de suas funções; jáque não são mencionadas situações nas quais o policial éprotagonista de violências que se dão fora do exercício dafunção. São representações que reafirmam um ethos e um“espírito de corpo” próprios, e conferem ao exercício daviolência o sentido de cumprimento do dever. À violênciaassim representada confere-se estatuto de legitimidade, poisapoiada nas prerrogativas que a função confere ao policial.Aqui se insere a questão – teórica e empírica – do Estadocomo instância detentora do monopólio legítimo da forçafísica (violência). Nesses termos, no entanto, essa questãonão aparece contemplada nas representações sociais dosdirigentes policiais os quais, como se vê, enfatizam sobre-tudo a questão em sua dimensão valorativa e não legal.

Como foi discutido em texto anterior, a propósito dadefinição weberiana do Estado (Porto, 1999), para certasdimensões da vida social, a econômica, sobretudo a noçãode monopólio, contém algo de restritivo, na medida emque é um processo que subtrai ao mercado bens, materiaisou não, impedindo, ao fazê-lo, sua livre circulação. Omesmo não ocorre no âmbito da política: “(...) quando estáem questão a esfera política, a restrição efetuada pelomonopólio da violência no âmbito do Estado tem sentidodistinto, apresentando-se como pré-requisito ou condiçãode possibilidade para a construção de uma sociedade maisdemocrática: ao impedir a livre circulação da violência,tal restrição cria, em tese, as condições para inibir suaexistência de forma difusa no conjunto da sociedade,excluindo-a das formas e práticas de interação cotidianasno âmbito da sociedade civil” (Porto, 2001:313). Essemovimento corresponde à constituição do Estado moderno,racional-legal e à passagem de procedimentos maisparticularistas e arbitrários para outros mais igualitáriosporque fundados em normas e regras do direito racional,impessoais e mais universalistas. Ou seja, nesse contexto,a noção de monopólio nada teria de negativo; se traduziria,ao contrário, em condição de pacificação social. Trata-se

“de uma legitimidade de caráter racional, que repousa nacrença na legalidade dos regulamentos instituídos. Aautoridade só é autoridade em função de processoslegalmente sancionados” (Porto, 2001:314). Pensando apartir de um outro ângulo: “A polícia está, salvo exceçõesem que são impostos limites, habilitada a intervir em todosos lugares, em todos os tempos, e em relação a qualquerum. Nesse sentido a força pública é, em seu território,universal e, caso se faça questão de conservar a idéia demonopólio, pode-se dizer que a polícia detém o monopólioem relação a todos (grifos do autor) (...) Mas não éindispensável atribuir à polícia um ‘monopólio’ no sentidomais restrito do termo para definir sua especificidade. Omonopólio não é necessário se a polícia detém forçasuficiente para regular o emprego que dela fazem todosos outros detentores” (Monjardet, 2003:26).

Entretanto, em suas representações sobre a violênciapolicial, os policiais não enfatizam essa dimensão delegitimidade como condição de pacificação social. As repre-sentações, ao contrário, estão sempre voltadas a um meaculpa que sugere uma defesa prévia para impedir a acusação.Ou, algo que apenas aparentemente pode ser contraditóriocom o que se acaba de afirmar, utiliza-se uma estratégia deauto-ataque que é, ato contínuo, a forma de construir suadefesa. Bretas (1997: 81), citando Skolnick em análise sobrea atuação policial, introduz uma outra variável ao argumentarque, “na versão de Skolnick, o centro da experiência policialgiraria em torno da combinação perigo e autoridade, emque a presença da perigo colocaria em risco o discernimentonecessário para o uso da autoridade. Assim, a adesão policialàs normas legais variaria de acordo com o perigo a que osmesmos são expostos”. E prossegue apontando, por um lado,que a presença constante da ameaça é um potencializadordo desvirtuamento da autoridade e, por outro, que, implícitanesses comportamentos, estaria atuante a “cultura policial,que não obedece a limites nacionais” (Bretas, 1997:81), emque pesem as distinções próprias a cada organização. Comouma característica dessa cultura, o policial julga severamentea sociedade ou segmentos dessa, e acredita que poderiadesenvolver muito melhor sua atividade se não tivesse quese ater aos limites legais (Bretas, 1997). Essa dimensãotambém não transparece nas representações.

Além do que, como acima mencionado, essa cultura ouesse ethos pode passar a orientar a conduta do policial emoutras situações do cotidiano, aí incluídos aqueles momen-tos nos quais ele não se encontra em serviço (Porto, 2001).

Uma outra distinção presente em algumas representa-ções é entre o policial de rua e o que atua no interior dascorporações. Por essa distinção, o policial de rua é visto

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como alguém que é violento à semelhança da sociedadeda qual se origina, mas também para responder às expec-tativas e anseios dessa mesma sociedade. O depoimento aseguir procura reforçar a idéia de que se a associação en-tre a função policial e a violência é algo profundamentearraigado na cultura militar, esse sentido valorativo vem,por assim dizer, da própria sociedade. Nesse caso, o diri-gente deixa de levar em consideração que o policial derua está submetido a um risco e a uma pressão que emnada se compara à função desempenhada pelo policial queatua no interior das burocracias e dos quartéis. A violên-cia como representação não apenas orienta como tambémjustifica condutas.

“Então, normalmente, é difícil da gente mudar o focodas nossas questões. Então, a gente observa muitoque o policial de rua, o foco dele é prender bandidoe não o de proteger a sociedade. Então, se ele vêuma pessoa chegando de madrugada, uma senhoradirigindo um carro que vai entrar na garagem demadrugada (...) Ele não fica ali para observar paraver se está tudo bem. Então, ele acha que essa não éuma atribuição dele, que a atribuição dele é de pren-der bandidos. Então, é um foco diferente” (Entre-vista n. 3).

Essa representação (inconsciente) da violência comocategoria simbólica que organiza as relações sociais e dásentido às condutas de distintos atores propicia um tipo dereciprocidade perversa entre sociedade civil e organizaçõespoliciais em função da qual a polícia tende a orientar con-dutas violentas a partir do que ela supõe que a sociedadeespera dela como responsável pela lei e pela ordem. Essalógica, não isenta de ambigüidades, faz com que a socieda-de movida pelo combustível do medo e da insegurança co-bre sempre mais e mais rapidez, eficiência e agilidade daatuação policial, fazendo do policial um herói, se sua fun-ção de garantidor da ordem for por ela avaliada como bem-sucedida, mas não hesitando em identificá-lo ao bandido,caso se dê o contrário (Porto, 2001).

“Então, a expectativa da própria sociedade é do po-licial violento (...) Quantas e quantas vezes a gentevê a mãe que o filho não quer comer: olha, se nãocomer, eu chamo o guarda. Então, o mecanismo re-pressivo é uma coisa que está também num incons-ciente coletivo (...) Mas no momento de colocar emprática realmente o que está arraigado no seu senti-mento, é que se não obedecerem ao policial, ele temo direito de fazer uso da força e até mesmo ser vio-lento para conseguir concretizar as suas ações e ser

respeitado (...) Cultura organizacional, isso do poli-cial de rua. Porque a expectativa social é sempre essa.Quantas e quantas vezes, nós somos chamados parabater em alguém, não importa se é para solucionarum caso em revide ou não. Não é solucionar um pro-blema, é bater em alguém. Então, a expectativa dasociedade, quando chamam a polícia, é essa. E nãoa de solucionar. Então, ao longo do tempo, tem quehaver uma reciclagem policial e tem que haver umareciclagem social.” (Entrevista n. 3).

Esses discursos apontam para as estreitas relações exis-tentes entre as produções simbólicas – práticas culturais– e as práticas sociais. A violência policial, como dizemalguns entrevistados, é uma estratégia de afirmação de umacategoria profissional pouco reconhecida e que visualizanas bravuras/bravatas de atos de violência, transformadosem espetáculo, o fio da meada para a valorização social.“(...) a polícia recorre com muito menos freqüência à ‘for-ça’ do que à força ‘simbólica’, ou à representação da for-ça” (Monjardet, 2003:27). Afirmação que é válida tam-bém para as representações que setores da sociedade fazemdo policial.

Outro tema bastante complexo diz respeito às questõesde unificação/integração das atividades de segurança; outroàs de municipalização, que vem, muitas vezes, no bojo danoção de policiamento comunitário, polícia comunitária,segurança comunitária. Pecado mortal ou salvação da pá-tria, a unificação é sempre “empunhada” e “empurrada”como solução para o futuro. Mesmo os que a representampositivamente, consideram impensável sua implantaçãoimediata: distintas formações profissionais, disputa decompetências, diferenças salariais, culturas organizacio-nais distintas, indefinição de atribuições, quaisquer quesejam as razões arroladas, elas parecem ter como raízes,além das histórias de cada corporação, uma questão depoder, de busca de legitimidade, de valorização e de re-conhecimento. Forma abrandada de unificação, a integra-ção passa a ser vista como solução quase mágica, para adesarticulação das ações de segurança, desarticulação queleva à morosidade, ineficácia e descrédito e, como umefeito em cascata, conduz à impunidade geradora de vio-lência.

Entre o dito e o não-dito, e ainda que se admita, quaseem caráter de unanimidade, a situação de superioridade daspolícias no DF comparada às de outros Estados, ainda as-sim, a questão da formação profissional parece ocupar lu-gar importante nas representações dos policiais, como umadas raízes da violência policial. Afirma-se que o despreparo,

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a falta de uma maior concentração curricular em discipli-nas das áreas sociais e de humanidades e a ênfase que cer-tos conteúdos curriculares atribuem à força como requeri-mento para o trabalho do policial são componentes daatuação violenta do policial. Aliados a isso também apare-cem o estresse, o risco de vida e, com menos ênfase, oscomponentes individuais. Todos esses motivos figuram nasrepresentações dos dirigentes policiais e contêm, implici-tamente, como não-dito, um outro conteúdo que permeia,informa e justifica as condutas violentas: para uma socie-dade violenta, uma polícia também violenta.

REFLEXÕES E DESLOCAMENTOS POSSÍVEISDO SENTIDO: DAS REPRESENTAÇÕES DAVIOLÊNCIA À VIOLÊNCIA COMOREPRESENTAÇÃO

Refletindo sobre esses discursos, tomados como repre-sentações, e considerando a dificuldade de formular afir-mações de caráter conclusivo, tender-se-ia a argumentar que:- a violência que alguns dirigentes detectam nas práticase na atuação dos profissionais da segurança não é analisa-da por eles como condição inerente às corporações comotal, mas como um efeito, um desdobramento, quase umaconseqüência, da cultura e da sociedade à qual pertencem.Ou seja, dizem eles, se ethos violento existe, ele tem ori-gem externamente à organização policial que o incorporae o reproduz;- essa representação da sociedade brasileira como umasociedade violenta faz da violência uma categoriaarticuladora e organizadora de ações. Constrói uma cone-xão de sentido entre o imaginário e as práticas, e abarcaamplos setores da vida social; envolve atores tanto nasociedade civil como no aparato de segurança. A ressalvavale de todos os modos, ainda que essa não seja uma es-pecificidade brasileira e, como alguns podem estar pen-sando, o mundo todo seja assim;- argumentaria ainda que, articulada à violência, comocategoria organizadora e explicativa da realidade, a hie-rarquia e as distinções sociais são outros traços da culturabrasileira que conformam também valores e conteúdosorientadores de condutas: inserida como está no conjuntoda população e condicionada pela cultura dos estratossocioeconômicos dos quais se origina, a instituição poli-cial produz, e é produzida por, uma sociedade de raízes ematrizes autoritárias. Tais matrizes “organizam”, por as-sim dizer, conteúdos e formas das relações sociais

centrados em um eixo de desigualdades, simbólica e ma-terial. Os indivíduos são diferentes e essa diferença se tra-duz, no âmbito da prática, em inferioridade e supe-rioridade, num jogo de submeter e ser submetido. Odesdobramento dessa situação é que o outro não é perce-bido como igual, como sujeito. Esse outro objetificadotorna-se presa fácil da (para a) violência, sempre que estáem questão a referência exacerbada ao eu e a seus dese-jos, expectativas, vontades. O narcisismo e o egoísmo con-temporâneos são o verso da medalha que tem no indivi-dualismo e na violência sua outra face, como uma tônicado mundo moderno (Porto, 2003). O mais específico nocontexto brasileiro seria a matriz hierárquica que faz dadistância social um conteúdo que, mesmo sendo do domí-nio do não-dito e muitas vezes do interdito, está na baseda organização das relações sociais.

Garland (2001) chama a atenção para o fato de que ocampo do controle social em sua atual reconfiguração éresultado de escolhas políticas e de decisões adminis-trativas, mas que ambas têm sua origem em uma novaestrutura de relações sociais, delineadas por novos padrõesde sensibilidade cultural, reafirmando, em outras palavras,a inter-relação que aqui se está ressaltando entre culturapolicial e os padrões culturais da sociedade em seuconjunto.

À semelhança da sociedade, sua polícia também parti-cipa desses valores. Quando está em questão o autorita-rismo policial, múltiplas formas de organização de con-duta podem ser possíveis, variando de uma práticaautoritária explícita até comportamentos bastante sutis que,muito antes de se imporem mediante a força e a violênciaexplícitas, o fazem mediante a violência simbólica, peloconvencimento imposto ao outro, por suas prerrogativascomo agente da lei e da ordem. Pelo dito dos discursos,os entrevistados afirmam conhecer o caráter violento daatuação policial, sua cultura autoritária e distante da so-ciedade e a necessidade de mudar; pelo não-dito fica su-bentendido que a condição sine qua non para isso é que asociedade também se modifique.

Esses discursos fazem lembrar, em sua quase totalidade,a pertinência da argumentação de Bourdieu (1989) sobreo poder e a eficácia das palavras ou, poder-se-ia dizer,das representações sociais, que, sobretudo considerandoquem as pronuncia, têm o poder de, ao formular umarepresentação, uma visão de mundo, uma atribuição desentido, formar, conformar, produzir e reproduzir arealidade. Ou seja, é construída uma espécie de simbioseentre objeto real e objeto do conhecimento, fenômeno e

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representação, tipo ideal e realidade. É como se osentrevistados estivessem a dizer “a realidade é assim” .

Esse potencial de fazer a vida social acontecer pela lin-guagem está também presente nas reflexões metodológi-cas de Giddens (1998:285) que ensina tomar por objeto a“variedade de usos pelos quais a linguagem é enunciadapelos atores sociais – não apenas aquelas que ‘descrevem’mas também aquelas que ‘argumentam’, ‘persuadem’,‘zombam’, ‘avaliam’, etc., etc.”.

É precisamente por esse viés que se chega a poder ana-lisar também a vida social por aquilo que o discurso (ou asrepresentações) não diz – mas que é do domínio do dizível– e que é função do analista buscar captar. “(...) a funçãodo analista e do crítico, [é] a de estar sempre submetendo otexto, o discurso, a novos sentidos, a outras leituras de acon-tecimento (linguagem de Pêcheux), sempre buscando nodiscurso um processo constante de reposição de sentidos(...) Os discursos falam pelos seus ditos, suas lembranças,esquecimentos e seus deslocamentos retóricos. Falam pelaboca de sua memória arqueológica, histórica e enunciativa.Os discursos falam pelos seus esquecimentos, por aquiloque não foi mencionado; mas o esquecido e o não-dito têmforça pragmática e dizível” (Dayrell Porto, 2003:1-2).

Sob esse aspecto, nos discursos analisados, um senti-do que não assume o estatuto de “coisas ditas” (para usarimpropriamente Bourdieu), mas parece fluir pelo não-dito,repondo e refazendo novas significações às representaçõesdas elites policiais entrevistadas, é o que se relaciona àforma como são pensados os novos modelos de policia-mento. Há um grande consenso – embora não unanimida-de – em torno da necessidade de implantação, concre-tização, adoção do policiamento ou segurança comunitária,estratégia capaz de produzir uma polícia cidadã, não vio-lenta, susceptível de captar os anseios da sociedade. Ora,aí se produzem algumas fissuras e “esquecimentos” dotexto: em nenhum momento se avança de que modo seriapossível alcançar sucesso na adoção do modelo se a cau-sa da violência está, segundo as representações, radicadana sociedade, seja porque a violência policial é o efeitoda violência social, seja porque a polícia lida com as “con-seqüências das mazelas sociais”. Seria exagero falar emcontradições discursivas, mas é possível pensar que, pe-las fissuras e lacunas do não-dito, as representações dei-xam aflorar as ambigüidades e os esquecimentos que par-ticipam da formação discursiva.

“A gente sabe, atualmente, que de 5% a 10% da vio-lência e da criminalidade têm a ver com o trabalhoda polícia, porque a polícia lida com a conseqüên-cia da falência social. Então, na medida em que a

família se encontra desagregada, com outros pres-supostos, como, por exemplo, o que nos impele nasociedade de consumo extremamente materialista,nos impele a cada momento o desejo e, às vezes,muito mais a necessidade de consumir. As mulheressaem de casa e começam a dar maior valor a possuirbens materiais para a satisfação dos seus desejos.Em conseqüência, ela deixa os filhos sendo criadospela televisão, pela internet, pela babá. Então, aí, nóscomeçamos a ver a desagregação familiar no senti-do antigo da mãe, que ficava ao lado, tinha aquelecarinho, aquele amor, de está conduzindo a educa-ção dos filhos e formando as bases morais sólidasde seus filhos. Hoje, o que nós vemos é sempre amãe saindo de casa para conseguir um quantitativofinanceiro maior para que possam ter uma vida maisconfortável. Em segundo plano, a gente já parte paraa escola, que deveria funcionar como ratificadoradesses padrões morais. Além da instrução natural,ela já não cumpre mais esse papel. Ela já deixou decumprir o papel de confirmar esses valores éticos emorais, que nem mesmo são dados pela família. Apartir daí, ainda, temos um outro aspecto que cola-bora muito, que é a igreja. A igreja tem um papelmuito importante na sociedade, na medida em quepelo menos tenta religar o homem a Deus. Serviriaaté em termos psicológicos de ser o super-ego, a cen-sura das pessoas. No entanto, ela também não faz oseu papel, hoje, à vista de, pelos menos parte dela,está voltada também para o que preconiza a socie-dade de consumo” (Entrevista n. 3).

Com referência ao modelo de policiamento comunitá-rio, Adorno (2002) chama a atenção para controvérsiasrecentes em torno das implicações de sua adoção, no quediz respeito à questão, acima discutida, sobre a funçãopacificadora do monopólio do uso legítimo da violênciapelo Estado. Aponta Garland como o autor que vê nessemodelo de polícia (ao lado de outras causas) um risco dedesconcentração do monopólio estatal, com transferênciapara o âmbito do privado de atividades e funções públi-cas. Adorno ainda aponta Herbet como o autor que, basean-do-se em estatísticas de aumento da intervenção estatalno combate ao crime e na análise da filosofia da atuaçãoprofissional – que não abriria mão de suas prerrogativaspunitivas –, contesta tal tese.

Em função do que se assumiu metodologicamente comoopção, não faz sentido falar em falso, verdadeiro, certo,errado, justo, injusto ou qualquer outra avaliação de cu-nho moral, quando se faz análise de representações so-

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ciais. Elas são um recurso para avançar o conhecimentosobre a sociedade.

“A linguagem comum é o meio pelo qual a vida socialé organizada como significativa por seus atores constituin-tes; (....) um recurso a que todo observador antropólogoou sociólogo precisa recorrer para ter acesso ao seu ‘temaprincipal de pesquisa’, já que os conceitos do ‘senso co-mum’ e [da] linguagem cotidiana pela qual se expressamsão utilizados por atores leigos para ‘fazerem a vida so-cial acontecer’” (Giddens, 1998:285; 287).

As reflexões aqui suscitadas apontam para a necessi-dade de se aperfeiçoar cada vez mais o conhecimento dasrepresentações sociais como uma das formas possíveis dese avançar o conhecimento dos sentidos e conteúdos daspráticas que fazem do policial alguém que, de uma formaou de outra, convive cotidianamente com a violência.

Correndo-se o risco de ser talvez excessivamente eco-nômica na linguagem, poder-se-ia dizer que lembrançase esquecimentos são partes constitutivas de toda e qual-quer representação. Assim, nas representações analisa-das, pode-se apreender tanto o que é lembrado quanto oque é esquecido. Em poucas palavras, nos discursos ana-lisados o dito usual seria: a sociedade é que é violenta, opolicial apenas herdaria um contexto. O não-dito: o po-licial seria violento, independentemente de sua herançasocial. Por sua vez, o inter-dito (interdito), que a rigorcompreende dois sentidos – aquilo que está entre o ditoe o não-dito e aquilo que é proibido –, seria assim repre-sentado: o policial é a materialização da própria violên-cia, independente da sociedade que o cerca, algo muitopróximo ao não-dito. E, finalmente, o dizível, mas quenão se manifestou nas representações analisadas: a vio-lência policial só pode ser pensada como legítima namedida em que se circunscreve e se restringe ao âmbitolegal. É no espaço de produção das representações so-ciais elaboradas pelos policiais sobre sua atuação pro-fissional que se situa essa intrincada questão, acima le-vantada, da legitimidade do uso da violência como formade controle social, prerrogativa da qual, para o bem epara o mal, esses agentes, como responsáveis pela ga-rantia da lei e da ordem, são, e se reconhecem como tal,os únicos detentores de direito.

NOTA

Esse trabalho foi apresentado no XI Congresso da Sociedade Brasilei-ra de Sociologia. Campinas, set. 2003.

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MARIA STELA GROSSI PORTO: Professora do Departamento de Sociologiada Universidade de Brasília e Presidente da Sociedade Brasileira deSociologia.

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SEGURANÇA CIDADÃ

Resumo: Valendo-se de estudo empírico com mulheres policiais da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, iráse discutir o processo de inserção feminina no aparelho policial militar e como a violência, presente na culturainstitucional desta polícia, funciona como um dispositivo estratégico que transforma as mulheres em policiaismilitares.Palavras-chave: cultura; gênero; trabalho; subjetividade.

Abstract: Based on empiric observations of female members of the Military Brigade of the State of Rio Gran-de do Sul, this article will discuss the process of women’s insertion into the military police structure. It willfurther address how violence, present in the institutional culture of this police force, acts as a strategic tool inthis insertion.Key words: culture; gender; work; subjectivity.

MÁRCIA ESTEVES DE CALAZANS

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o Brasil, é muito recente o debate integrado en-tre as reformas policiais, as políticas de açõesafirmativas e as concepções de segurança públi-

ca quanto à inserção feminina nas polícias militares. Talquadro acentua-se no que concerne ao entendimento doaparelho policial militar enquanto uma nova tecnologiada produção social na constituição de homens e mulheresem policiais. Por muito tempo, esse debate esteve à mar-gem das discussões do mundo acadêmico, da sociedadecivil e das gestões de segurança, adquirindo relevâncianesses espaços somente a partir da década de 90, com acrise da segurança. Contudo, os elementos da tríade re-forma policial, concepções de segurança pública e inser-ção feminina nas polícias militares brasileiras não apare-cem interseccionados nessas discussões. Assim, essainserção e suas práticas cotidianas no ofício de policial,quando chegam ao debate, colocam-se sob o olhar natu-ralista, essencialista, segundo o qual as mulheres são me-nos violentas por “natureza”.

Observa-se que pesquisas sobre a participação dasmulheres nas forças policiais responsáveis pelo policia-mento ostensivo são ainda raras no Brasil, e há poucosestudos disponíveis nesse campo. Estes estudos,1 assim

como aqueles realizados em outros países, como França(1991), Espanha (1994), Austrália (1999), Inglaterra(1990) e EUA (2000), revelam uma multiplicidade dequestões decorrentes da presença feminina nas polícias,porém, poucos deles abordam as relações entre os aspec-tos de formação nas academias de polícia, construção degênero, constituições dessas mulheres em policiais e suaspráticas cotidianas no policiamento ostensivo. Nesses tra-balhos, observamos o predomínio da metodologia quan-titativa, apresentando uma espécie de mapeamento da dis-tribuição de mulheres em unidades de policiamento. Poroutro lado, autores como Delhomez (França, 1991) eFernández (Espanha, 1994) trouxeram contribuições re-levantes para nossos objetivos, visto que desenvolveramestudos com base em uma metodologia qualitativa,centrados no eixo da dificuldade de inserção feminina nasforças policiais, analisando as políticas de ações afirma-tivas. Essa abordagem pode ser justificada pela existên-cia, em seus países, de leis antidiscriminatórias, as quaisalavancaram o ingresso feminino nas forças policiais.Porém, não encontramos estudos que concebessem o apa-relho policial como uma tecnologia da produção social naconstituição de mulheres em policiais e analisassem o

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modo como essas mulheres constituem-se e colocam-senas práticas cotidianas do ofício de polícia, em especialno policiamento ostensivo.

No Brasil, a filosofia tradicional de policiamento émovida pelo espírito belicoso do Exército Nacional e porideologias machistas, assim, o tratamento para a inserçãode mulheres nos quadros das polícias dá-se de uma formamuito limitada e com pouca visibilidade. Atualmente, nosestados brasileiros, encontramos os mais diversos trata-mentos à incorporação de mulheres nas polícias milita-res, manifestos sobretudo por meio de restrições legais einformais, o que vem dificultando a inserção e a ascensãona carreira. Por exemplo, no Distrito Federal, há uma leide 1998 que restringe a 10% a participação feminina noefetivo da PM, o mesmo ocorrendo no Mato Grosso, onde,em um concurso realizado em 2001, a participação femi-nina também foi limitada a 10% de um total de 800 vagasoferecidas. Atualmente, na maioria dos estados, o efetivode mulheres não pode ultrapassar 10% do total, e a parti-cipação feminina nas polícias militares corresponde a,aproximadamente, 5% do conjunto do efetivo.

Atualmente, em 26 estados da Federação brasileira, háa participação de mulheres no ofício de polícia. O Estadode São Paulo foi pioneiro na inserção feminina nos qua-dros policiais, no ano de 1955, e alguns outros estadoscriaram as companhias femininas na década de 70, tendohavido a grande concentração de inclusão de mulheres nadécada de 80. Essa inserção deu-se com a criação do Pe-lotão de Polícia Militar Feminina ou das Companhias Fe-mininas, particularidade na qual poucos estados diferem.

Seguindo o pensamento de Jennifer Brown (1997), doCollege of Police and Security Studies, da Eslovênia, apon-tamos que, em termos mundiais, o processo de inserçãoda mulher na polícia relaciona-se a quatro aspectos, a sa-ber: na Europa, o contexto do recrutamento de mulheressitua-se em momentos de crise das forças policiais (porexemplo, deslocamento do efetivo masculino em perío-dos de guerra, ou crises de credibilidade, com forte dete-rioração da imagem pública das polícias); existência deuma cultura policial feminina, que estaria identificada evalorizaria as formas preventivas – portanto, menostruculentas – de policiamento; a despeito dessa realidade,há restrições às tarefas femininas, sustentadas na noçãode que as mulheres não são capazes de assumir todas asformas de ação de polícia e a conseqüente tendência deatribuir-lhes sobretudo funções burocráticas ou ativida-des associadas, no imaginário, a extensões do mundo do-méstico; necessidade de equiparação de oportunidades(investimento em ações antidiscriminatórias e no enfren-

tamento dos casos de assédio sexual). Fazer-se um breveresumo da presença feminina em outras polícias do mun-do permite situar-se o quadro em que se movem as mu-lheres nas polícias, principalmente para uma análise re-flexiva acerca das semelhanças dos processos de inserçãoda mulher nesse aparelho.

Nos EUA, as mulheres entraram para a polícia (Prenzler,2000) no meio do século XIX, assumindo o poder de polí-cia em torno de 1910. Na maior parte do século XX, asmulheres atingiram 1% do efetivo de pessoal; ainda em 1972esse percentual chegava a 2% e, em 1997, havia chegadoapenas a 12%.

Na Austrália, ocorreu uma expansão rápida do númerode policiais femininas nos anos 80, principalmente em nívelestadual, onde o policiamento é concentrado. Em 1991,17,6% da polícia federal australiana era composta demulheres. A maioria dos estados, agora, tem a admissãode mulheres em níveis entre 25% a 35%. Contudo, elasdesempenham de 9% a 13% dos trabalhos inferiores nobaixo escalão. Os números de 1991/92 indicam que o cres-cimento do recrutamento feminino ficou em torno de 30%,mas poucas mulheres ocupam níveis mais elevados, no altoescalão.

Na Inglaterra, as barreiras discriminatórias foram der-rubadas em 1989, parcialmente em antecipação à legisla-ção introduzida em 1992. No caso do serviço de políciado sul do País de Gales, no início dos anos 80, uma açãotomada como ato antidiscriminação, acionada por candi-datas femininas rejeitadas no serviço policial, levou aoabandono do sistema de quotas. Assim, nestes países, asmulheres entraram para a polícia em grande número devi-do à proteção da legislação antidiscriminatória.

Em 1934, as mulheres começam a participar da políciafrancesa ocupando um cargo denominado assistente depolícia, com uma carreira limitada quanto às atribuiçõespoliciais, cumprindo missões voltadas para crianças emsituação de riscos morais ou psíquicos e prestando vigi-lância em via pública. Pouco a pouco, elas passaram aingressar no corpo de inspetores da prefeitura, ainda quepermanecendo restritas a serviços menores. Somente em1982, um projeto governamental garantiu condições deemprego à força feminina, quando o conselho superior dafunção pública autorizou igualdade para o recrutamentode homens e mulheres, observando uma proporção limitepor antecipação, garantia essa que elevou de 10% para20% a participação feminina. Tal medida considerava queas resistências à inserção feminina nas polícias eram reais,e que ignorar as diferenças gerava um erro na luta pelaigualdade e legalidade. Assim, apoiando-se na ação

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diretiva européia de 1976 contra a discriminação, esseprojeto governamental assegurava melhores condições deemprego, a exemplo do que se verificou em outros paísesonde essa legislação atuou como elemento catalisador paramudanças dessa natureza.

Em alguns países, as porcentagens de ingresso de mu-lheres na força policial têm se incrementando considera-velmente nos últimos tempos, como no caso da Alema-nha, onde esse índice fica entre 40% e 50%. Ainda assim,não podemos falar de uma autêntica representatividadefeminina na polícia (Walter, 1999:357), pois, em outrospaíses onde ela é também elevada, os percentuais chegama apenas 20%. No caso das polícias metropolitanas deLondres, da Inglaterra e de Gales, por exemplo, a partici-pação das mulheres é de 14%, e na Grécia e na Estônia,de 15%.

No Brasil, a concentração de entrada das mulheres napolícia deu-se na década de 1980, coincidindo com ummomento de crise da própria instituição policial que, porsua vez, refletia uma crise mais ampla do próprio modode organização do trabalho nas sociedades contemporâ-neas. O trabalho policial, que vinha sendo visto, necessa-riamente, como uma ocupação masculina, apresenta des-de então uma estrutura que está sofrendo mudanças, namedida em que entram em crise valores característicos daorganização, como a força física e a identificação tradi-cional com a figura masculina. Passaram-se a buscar ou-tros valores condizentes com a realidade atual, como ainteligência, a capacidade de resolução de conflitos, a ino-vação e o trabalho em equipe, uma vez que os policiaisdefrontam-se com novas situações em que não é tão ne-cessária a força física, tais como a redução de situaçõespotencialmente violentas e conflituosas e o atendimento acoletivos que exigem tratamento diferenciado. Contudo,a ausência de estudos sobre a inserção feminina nas polí-cias militares brasileiras, focalizando a constituição dasmulheres em policiais, e o fato de, no imaginário da po-pulação e dos operadores de segurança pública, existir acrença de que a violência presente nas forças policiais émenor entre as mulheres e que, por isso, elas teriam umpapel saneador, são elementos os quais, de alguma for-ma, têm contribuído para a efetivação e atualização deações violentas nas práticas cotidianas do policiamentoostensivo.

No âmbito do projeto financiado pela Fundação FordAlternativas Democráticas do Ofício de Polícia para oSéculo XXI, Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania –IFCH/UFRHS, coordenado pelo Prof. Dr. José VicenteTavares dos Santos, concluímos, em abril de 2003, o es-

tudo intitulado A Constituição de Mulheres em Policiais:um estudo sobre policiais femininas na Brigada Militardo Rio Grande do Sul. Este trabalho dá visibilidade aoprocesso de inserção feminina no aparelho policial mili-tar e, sobretudo, ao modo como a violência presente nacultura dessa polícia funciona como um dispositivo estra-tégico constituinte de mulheres em policiais militares,evocando as práticas arbitrárias no ofício de policial. Opresente artigo articula-se nesse campo empírico. Delimi-taremos, de modo mais sistematizado, os pressupostosamplos e gerais que sustentam essa discussão e a análiseque efetivamos, os quais compõem um relatório de pes-quisa (Tavares dos Santos, 2003) e uma dissertação demestrado.2

O primeiro pressuposto deste artigo permite conceber-se a cultura como um campo de luta e contestação em quese produzem tanto os sentidos quanto os sujeitos que cons-tituem os diferentes grupos sociais em sua singularidade.Stuart Hall é um dos autores atuantes no campo dos Estu-dos Culturais que discute a centralidade da cultura nacontemporaneidade e para quem a expressão “centralida-de da cultura indica a forma como a cultura penetra emcada recanto da vida social contemporânea, fazendo pro-liferar ambientes secundários, mediando tudo” (Stuart Hall,1997:22). Compreende-se, assim, que a cultura precisa seranalisada quanto ao seu impacto “na constituição da sub-jetividade, da própria identidade e da pessoa como um atorsocial” (Stuart Hall, 1997:24). Dessa forma, entendemosque os processos de produção de identidades não são sim-plesmente influenciados pela cultura, mas que as identi-dades são, elas mesmas, produções culturais (Wortmann,2001).

O segundo pressuposto enfatiza compreendermos o tra-balho como conjunto de processos pelos quais indivíduossão constituídos ou se constituem em sujeitos de uma cul-tura, o que envolve um complexo de forças e de proces-sos de aprendizagem.

O terceiro pressuposto ressignifica o processo de sub-jetivação como uma série de forças e vetores e compreen-de singularidade, a saber, o modo pelo qual o indivíduoapropria-se dessas forças e cria modos particulares de ser.Desta forma, compreendemos a subjetividade como umprocesso de formação e dissolução de figuras, uma sériede forças e vetores incidentes sobre os meios que habitama subjetividade, produzindo uma configuração, as quaisprovocam uma reação a um modo de existência. Esse éum processo contínuo de formação e diluição, o que fazda subjetividade um sempre outro. A experiência da de-sestabilização é reiteradamente repetida ao longo de nos-

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sa existência, e a experiência criadora tem a ver com aforma como vamos lidar com o mal-estar provocado peladesestabilização originando em modos singulares de ser(Guattari; Rolnik, 1986). Porém, ao longo da nossa pes-quisa, observamos que os dispositivos disciplinares quepautam a relação interna do aparelho policial militar apon-tam um processo de formatação da subjetividade nos ter-mos de um modelo hegemônico e de uma impossibilidadede ruptura com este modelo. O modo burocrático-disci-plinar presente na organização do trabalho policial confi-gura um espaço hegemônico, como uma tecnologia daprodução social, basilar para a compreensão da constitui-ção de mulheres e homens em policiais militares.

Finalmente, o quarto pressuposto amplia a noção degênero para além da discussão de papéis e funções demulher e de homem, para argumentar que ela engloba to-das as formas de construção social, cultural e modos desubjetivação. Para Meyer, se o conceito de gênero marcaa questão relacional e a construção de homens e mulhe-res, seus discursos devem incluir uma pluralidade de for-mas de existir, ocorrendo uma ampliação para as diferen-tes pertenças a distintos grupos. Torna-se importante aarticulação de outros marcadores sociais como classe, raça,nacionalidade, profissão, etnia, entre outros, os quais sãoconstruídos e significados socialmente, assinalando dife-renças, produzindo desigualdades e formando hierarquias.

Em suma, o suporte teórico brevemente esclarecidopermite compreendermos o aparelho policial militar comouma tecnologia da produção social na constituição demulheres e homens em policiais militares.

A ausência de problematização das concepções de se-gurança pública, atividade policial e inserção feminina nosquadros da Polícia Militar permite formar-se, no imaginá-rio dos gestores de segurança pública e da população emgeral, a crença de que as mulheres são mais democráticas,menos violentas no exercício do policiamento ostensivo.Assim, à medida que surgem novas concepções de segu-rança pública, levando a alterações nas ações de polícia (pormeio de políticas preventivas, como o policiamento comu-nitário), associadas à crescente feminização do mercado detrabalho, esse imaginário permite supor-se haver um “novo”lugar para as policiais femininas. Tal idéia sugere que asmulheres estão se beneficiando da lógica institucional, dalógica do capital, uma vez que ingressam na organizaçãopelas habilidades construídas no seu processo de socializa-ção na família, na escola e nos demais diversos grupos einstituições, atendendo, então, ao novo perfil do policial.

No processo de inserção de mulheres no aparelho po-licial militar, quando os sujeitos trabalhadores assumem

novos postos na hierarquia dos círculos de convivência,seu gênero é fonte de status e poder, condicionando o modode inserção e posicionamento nos postos de trabalho, oque vai definindo o processo de exclusão-dominação.Dessa forma, observa-se que, mesmo na inclusão dasmulheres na força policial, é evidente a permanência demodos de exclusão-dominação, posto que suas habilida-des colocam-se como inatas, encaradas simplesmente comoum modo “natural” de ser mulher. Portanto, a inserçãofeminina nos quadros das polícias do mundo é ilustradapor um processo de exclusão-dominação, variável presentenos estudos qualitativos encontrados a partir de uma revi-são bibliográfica internacional e nacional.

Beneficiando-se da lógica do capital, as mulheres che-garam às instituições policiais no momento de mutações,precarização, globalização e de feminização do mundo dotrabalho e encontraram, no interior do aparelho policialmilitar, uma estrutura vertical, pautada pela divisão hie-rárquica do trabalho, como um modo e meio totalizantede mediação de relações. Esses modo e meio são determi-nados, envolvidos e sustentados institucionalmente peloschamados círculos de convivência de oficiais e praças,passando a ter, no gênero dos trabalhadores, mais umafonte de referência nas diversas lutas de poder. Assim,identificamos que o processo de inserção feminina naspolícias constitui um processo de características mundiais,guardadas as devidas proporções, o qual se caracteriza porum modo de inclusão-exclusão-dominação.

Observamos que, para se adequarem ao rigor do “serpolicial”, essas mulheres suportaram uma longa e árduaaprendizagem, como uma espécie de sacrifício físico, en-contrando, na suportabilidade, a garantia de tornaram-se“donas de si”, de apropriarem-se de seus destinos, aindaque tal “propriedade” fosse limitada, principalmente, quan-to à autonomia no ambiente de trabalho e que as aspiran-tes fossem levadas à exacerbada submissão ao autorita-rismo próprio da instituição. O desejo de tornarem-se donasde seus destinos, buscando estabilidade no mundo do tra-balho, o qual se encontrava em franca precarização, mos-trava-se consoante o momento de “transformações” noofício de polícia, pois as “novas” concepções de seguran-ça pública mostravam-se orientadas para os cuidados eprevenções, além de estarem mais burocratizadas, encon-trando, nas mulheres, qualidades necessárias a essa im-plementação. Há, logo, uma associação entre a profissio-nalização do trabalho policial e o ingresso de mulheresno aparelho policial militar, na perspectiva de uma polí-cia menos voltada para o uso da força e mais direcionadapara a capacidade estratégica, exigências advindas das

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transformações pelas quais vêm passando o modelo depolícia e o próprio mundo do trabalho.

O INTERIOR DO APARELHOPOLICIAL MILITAR

Observamos que a convivência e as relações estabele-cidas no interior do aparelho policial militar pressupõemque o poder das estruturas não vale para um sujeito senãoem sua expressão encarnada, sua presença real, tanto parahomens, como para mulheres. Nesse entendimento, ascondutas dos sujeitos tornam-se simbólicas (Melman,2000) de uma falta, de uma falta essencial, a falta de acessoao objeto que conta, que comanda, a falta do encontro como que sua auto-referência diz que ela é. Essa dinâmica dainstitucionalidade cultural da Polícia Militar é origináriada cisão institucional e, nessa cisão, encontra a sobrede-terminação militar, a qual define e evoca as práticas arbi-trárias do ofício de polícia. Assim, a violência coloca-seestrategicamente na institucionalidade cultural da políciamilitar, como dispositivo constituinte de homens e mu-lheres em policiais militares.

Instaurar o medo e inibir e cercear o outro são meiospelos quais se consegue fazer respeitar os preceitos hie-rárquicos. Então, é sob os círculos que se estabelece oprotótipo do sistema disciplinar, objetivando os compor-tamentos condicionados e enfatizando um compromissocom o bem-estar maior da corporação e um bem-estarmenor do sujeito. A sobredeterminação militar e o fato dea polícia ser uma instituição secularmente masculina fa-zem com que os homens sejam o paradigma de emancipa-ção e qualificação do desempenho profissional. A identi-dade feminina policial e a feminização da profissão policialganham visibilidade na inserção em subgrupos de traba-lho, ou mesmo em subtrabalhos dentro da instituição, dadoo domínio masculino desse ofício, rechaçando-se, de di-versas formas, a presença da mulher. O regime discipli-nar e as sanções impostas aos descumprimentos de com-portamentos esperados mostram que, nesse espaço detrabalho, não há uma relação de criação e de processo desingularização, pois, no constituir-se mulheres policiais,elas se apropriam dos componentes de subjetivação daprópria instituição, tais como os recebem. Nesse contex-to, é muito ilustrativo o fato de que, na cisão da institu-cionalidade cultural dessa polícia, a violência coloca-secomo um dispositivo estratégico, como um componenteda subjetivação. Não casualmente, observamos que, paraas mulheres, o processo de aprendizagem do ofício de po-lícia seja iniciado na Jornada de Instrução Militar – JIM,3

e tal aprendizagem efetiva-se na “rua”, quando osensinamentos da JIM são colocados em prática.

Atividade Extracurricular: Jornada de InstruçãoMilitar – o Sentido de Ser Policial

A sobredeterminação militar ganha visibilidade desdeo curso de formação, quando as praças “iniciam-se” noofício de polícia. Observamos, pelos relatos, que a Aca-demia de Polícia Militar desenvolve atividades extracur-riculares em que as práticas de JIM, ou práticas de cam-po, são vivenciadas por meio de técnicas, que sãoverdadeiras simulações de “campos de batalhas”, onde osujeito busca a sobrevivência. Baseada no sofrimento fí-sico e psíquico, essa experiência leva o sujeito ao limite.Tais práticas refletem “os conflitos da polícia militar bra-sileira, que, pressionada a diluir seu caráter militar, in-corpora novas exigências democráticas, mas, ao mesmotempo, resiste em perder seus vínculos profundos com omilitarismo” (Albuquerque; Machado, 2001:2). A fala aseguir, de uma praça, refere-se ao comando do treinamento:

“É, ele dizia assim... Ele dizia que os nossos rostinhosangelicais eram feitos pra matar. Ele dizia assim: ‘Essesrostinhos angelicais foram feitos pra matar, matar, ma-tar e matar’. Ia matutando aquilo na tua cabeça, que tuachava que tu era a Mulher Maravilha, né, podia tudo.”Os treinamentos de JIM apontam a desautorização da

modernização na Academia de Polícia Militar, obliterandoa capacidade de uma nova formação, imprimindo umaimagem militarizada dos policiais, sejam homens ou mu-lheres – Rambo, Mulher Maravilha. Nesse tipo de treina-mento, a transmissão de códigos culturais dá-se sob a dorfísica, e seus conteúdos deixam as marcas de uma identi-dade policial, a qual se constitui a partir de uma “memó-ria-corpo”. Ao mesmo tempo em que dizem querer esque-cer o que vivenciaram, as praças identificam, nessa prática,a verdadeira preparação para o ofício de polícia, como sehouvesse uma correlação entre aquilo que praticaram notreinamento e as atividades que desenvolverão no policia-mento. Quando indagada sobre a aplicabilidade dos co-nhecimentos desenvolvidos na JIM, particularmente quan-to ao uso da raiva mobilizada nessa vivência, uma policialdiz: “Acho que sim, tu sai querendo matar...” A idéia datécnica e da inteligência sobreporem-se ao uso da forçafísica fica rechaçada, conforme se constata por algunsdepoimentos, o afrouxamento dessas práticas é visto comouma permissividade:

“Houve um curso de Sargento lá em Santa Maria, em2000, e foi justamente lá porque eles tavam com sede

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de levar a turma pro rio, pro morro de noite e conse-guiram. Só que, daí, aconteceu o seguinte ó, ligaçõesdos próprios alunos pra Secretaria de Segurança, soli-citando que acabassem com aquilo, porque os direitoshumanos... e aí, o que aconteceu? Acabou.”Sob a égide de uma “nova polícia”, o movimento para

se extinguirem as ações violentas sofridas pelos praças ga-nhou visibilidade durante o governo Olívio Dutra (1999-2002), por meio do projeto de unificação de polícias, quecontemplava cursos de formação unificados da Secretariade Justiça e Segurança para quadros da Brigada Militar,Polícia Civil, Susepe e IGP. Esse projeto contemplava aatenuação da sobredeterminação militar, assim como a ex-tinção das “Jornadas de Instrução” como atividadesextracurriculares. Porém, pelas falas de algumas entrevis-tadas, pode-se perceber que a atividade extracurricular fun-damentada em “técnicas de sobrevivência”, de cunho mi-litar, ainda hoje, no imaginário de algumas policiais praças,é o que dá sentido à aprendizagem para se transformaremem policiais:

“Porque aqui não dava para fazer, tinha aqui... tavafazendo um curso integrado. A única coisa que eles fa-ziam era correr de madrugada. Foi no finalzinho de1999/2000. Nós fomos pra lá, três turmas foram lá. Essaque tá tendo agora (...), teve um pouco em Montenegro,né, um pouco em Santa Maria, esconderam todo mun-do. Porque lá, quando nós chegamos, eles fizeram oque eles queriam com a gente. Ali tava fechado, a gen-te tava no buraco, né? Cheguei lá, parecia que tava ven-do um Coronel Massot na minha frente, umas grosseri-as e um oficial dizendo assim, ó: ‘te posiciona, militar.Um militar não se apresenta assim. Volta lá’. Eu fica-va escandalizada, né? Mas o que é isso? E, daqui a umtempo, eu já tava achando: ‘tem que ser assim mesmo,tem que ser assim mesmo’. A gente vai entrando nu-mas assim, que tu vê que tem necessidade disso. E,quando a gente tá lá, a gente fica se queixando: ‘maspra que isso? Pra quê? Pra quê? E aí, quando tu sai, tuvê assim, ó: tinha necessidade por causa disso’.”A atividade extracurricular por intermédio das JIM “(...)

assume proporções na transmissão da identidade profis-sional maiores que o conjunto de disciplinas que compõemo amplo quadro curricular (Albuquerque; Machado,2001:3). Nesse sentido, algumas praças referem que essetipo de treinamento (JIM) está consonante as práticas co-tidianas a serem enfrentadas, e que essa atividade preparapara a realidade a ser encontrada no ofício de polícia, emespecial nas atividades de policiamento ostensivo. Obser-vamos que a inserção feminina nas polícias militares bra-

sileiras dá-se em meio ao conflito entre a “nova” polícia ea “velha” polícia. O interessante é que, sobretudo, algu-mas entrevistadas referem que as práticas de jornadas deinstrução militar têm certa mobilidade:

“Agora ficou (...) da minha turma, ficou a sargento ‘A’,querendo passar pros próximos, pras próximas turmas,as mesmas situações que nós tivemos, aí, ela me comen-tou o seguinte, ó, ela disse que se sentia amarrada, queela nem podia cobrar o fardamento engomado dos alu-nos. Não pode, não pode, porque é uma questãopolítica.”À formação dessas alunas praças, incorporou-se o trei-

namento na selva ao estilo do exército militar, associadoa atividades do tipo JIM e àquelas desenvolvidas nas ruas,no policiamento ostensivo. Conforme observamos, o ob-jetivo dessas práticas é levar as alunas a perceberem quea identidade policial-guerreiro precede a legalidade. Emuma espécie de tortura desconstrutora da identidade e daautoridade simbólica, inscrevendo no corpo da aprendizque ali se inicia uma lei para a qual não há apelação, énesses treinamentos de “campo”, em atividade extracur-ricular, “que se inicia a construção da polícia” (Albu-querque; Machado, 2001:14) contra a polis e de uma po-lícia sem polis. Nessas práticas, a “força” começa aconsolidar-se numa “pirâmide hierárquica”, pois bem sa-bemos que elas são coordenadas por oficiais. Instaura-seum processo de “mortificação do eu”, como afirmaBaumam (1998a). A modernidade trouxe-nos, com a bu-rocratização, a racionalidade instrumental, dando origemà “desumanização” dos objetos e a perspectiva de que elesnão merecem reivindicação alguma a uma subjetividade,surgindo a tendência a subordinar pensamento e ação àpraticidade da economia e eficiência. A minúcia burocrá-tica, facilita as práticas dissociativas (Bauman, 1998b),constitui uma cultura burocrática que nos possibilita vera sociedade como objeto de administração.

“Nós sentadas no meio do pátio o dia inteiro, doze horas(...) um mês depois, eu não sabia que roupa botar pra irnuma festa. Eu não sabia me vestir, não sabia mais mevestir (...)Eu chegava em casa, falava grosso, eu comecei a agircom as pessoas de fora de uma tal forma que, um dia,alguém disse assim: ‘dá um tempo, que tu não tá naBM’, sabe.”Podemos compreender que o processo de mortificação

do eu busca não obliterar a eficiência do aparelho poli-cial, buscando desenvolver a devoção ao bem-estar da ins-tituição também pelo distanciamento dos objetos visadospela operação burocrática. Assim as praças ficam reduzi-

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das a mero número, desprovidas de qualidade (Bauman,1998b): os seres humanos perdem sua identidade, pois osobjetos humanos da execução de tarefas burocráticas sãovistos com indiferença ética, e objetos desumanizados nãopodem ter uma causa, muito menos uma causa justa, ouapresentar alguma reivindicação de subjetividade.

Efetivação da Aprendizagem das Jornadasde Instruções Militares

É na rua, no policiamento ostensivo, que as policiaisconfrontam-se com as ações legais e ilegais, onde o tra-balhar desenvolve-se no “estado de liminaridade”. Servirà noite ou ao dia ganha diferentes visibilidades, desde ocontrole sustentado pela hierarquia, ao controle da comu-nidade. É na rua, preferencialmente à noite, onde ocorreo momento em que o currículo do militarismo, o currícu-lo “oculto”, o qual desenvolveu a supressão dos direitosindividuais e a mentalidade do inimigo, associados àvolatilização do estranho (Bauman, 1998a), efetiva o sermulher policial militar:

“Inexoravelmente despertou como um guerreiro sel-vático que viu a morte pessoal e experimentou a nuli-dade da instituição democrática. É agora submisso àlei da selva e, portanto, pode retornar a polis. Na sel-va, pareceria que o uso excessivo da força se faz natu-ral, instituindo a competição extrema como núcleo dasrelações de poder. Nesse ritmo batismal podemos su-por que cumpriu-se uma passagem, subjetivamenteemergiu na obediência esperada” (Albuquerque; Ma-chado, 2001:14).A matriz institucional/cultural está presente no exercí-

cio discricionário do/a policial; o ato de complementari-dade necessária entre a norma legal e ação individual,decorrente de uma “livre escolha” ou do julgamento doindivíduo em função de um determinado objeto, proble-ma ou moral, traz a inscrição da cultura:

“Acho que a ocasião faz o ladrão. Então, eu, na noite,já apanhei, já bati. Também é uma coisa que tu te des-conhece, mas, no dia, é diferente. Acontece também,sabe, mas as formas, digamos assim, até as técnicasaplicadas, as técnicas policiais, são diferentes, porqueé uma outra situação, até, porque durante o dia, tu nãopode (...) policial agir com violência, quem disser quenão, tá mentindo, pra própria segurança da gente, se tujá não chegar na noite empurrando, gritando, dizendoo que eles querem ouvir, porque não é com educaçãoque a gente consegue nada. Eles não entendem estelinguajar que a gente usa assim no dia-a-dia. A lingua-

gem dele é outra né, então, tem que chegar assim, senão, a gente se dá mal.”Pelos relatos, observamos que todo o processo de in-

corporação e integração das mulheres-praças ao aparelhopolicial está marcado por uma compreensão binária deigual e unitário, construída em uma noção de desigualda-de que esconde o múltiplo jogo de diferenças, mantendosua irrelevância e invisibilidade. Essa prerrogativa apare-ce sustentada nas “novas” concepções de segurança pú-blica, com afirmativas segundo as quais a feminilidade,além de predispor as mulheres para determinado tipo detrabalho, determina que elas não são violentas nas práti-cas do policiamento ostensivo.

Observamos que esse processo de naturalização sobre-põe-se, inclusive, aos relatos de ações violentas concreti-zadas pelas próprias mulheres e estende-se para além dosmuros do quartel. A esse respeito, em pesquisa realizadapor Cônsul, investigando o posicionamento da comuni-dade quanto à inserção feminina na polícia militar, cons-tatou-se que um dos primeiros quesitos apontados foi a“docilidade feminina” e que as mulheres são mais educa-das, gentis, como se as diferenças que caracterizam o gê-nero fossem definidas por atributos conferidos por atri-buições biológicas essenciais. Como aponta Fonseca(2000a:116), supõe-se que tudo que existe dentro de cadacategoria – masculino/feminino – componha uma unida-de que suprime/reprime, por conseguinte, as possíveisdiferenças existentes em cada uma das categorias.

O processo de inserção feminina no aparelho policialmilitar passa por um processo de formatação, o qual pode-mos chamar de policização, modelo hegemônico com oqual não há uma ruptura. Assim, nesse sentido, não pode-mos falar de “processo de singularização” no interior doaparelho policial, da forma como Guattari e Rolnik (1986)utilizam o conceito. O processo de constituição de mulhe-res em policiais militares revela o aparelho policial comouma máquina de produção da subjetividade, impedindoqualquer forma de singularização, tanto para policiaismasculinos como policiais femininos. Para as singula-rizações, existem sanções, portanto, o aparelho policialmilitar é um espaço que busca modos hegemônicos de sere tem a violência como um dispositivo estratégico na cons-tituição de homens e mulheres em policiais militares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que, no Brasil, é muito incipiente o debateacerca das modalidades de mecanismos de integração social,largamente adotados, nos Estados Unidos da América, sob

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MULHERES NO POLICIAMENTO OSTENSIVO E A PERSPECTIVA DE UMA ...

a denominação de affirmative action (ação afirmativa) e,na Europa, referidos como discrimination positive (discri-minação positiva) e action positive (ação positiva). Deve-ríamos avançar nesse debate como forma de alavancarmosa inserção feminina nas polícias militares brasileiras, porémenquanto discussão articulada às questões das reformaspoliciais, sobretudo compreendendo o aparelho policialmilitar enquanto uma nova tecnologia da produção socialna constituição de mulheres em policiais.

Como um instrumento da modernidade, o aparelho po-licial militar é representativo e emblemático da coerçãoestatal, trazendo consigo a burocracia e a racionalidadeinstrumental características do modo de produçãocapitalístico e funcionando como um modelizador da sub-jetivação. Nesse sentido, a cultura do aparelho, enquantodispositivo estratégico de um discurso dominante, ocupa-se da sujeição subjetiva das próprias pessoas que o com-põem, no intuito de prepará-las para o desempenho do ofí-cio de polícia. Contudo, a sobredeterminação militar nesseofício não funciona como uma passagem para a vida mili-tar, uma vez que o ofício policial não está definido paraações militares. Por meio dessa concepção, pode-se darvisibilidade ao grande conflito das polícias militares bra-sileiras, as quais incorporam novas exigências democrá-ticas, mas, ao mesmo tempo, resistem em perder seus vín-culos profundos com o militarismo.

Portanto, aqui, o rito de militarização não constitui ummarco divisório de pertença ao espírito policial, afinal,essa militarização não é um exercício próprio da polícia(Tavares dos Santos, 1997), mas encontra, na violência, odispositivo estratégico constituinte de homens e mulhe-res em policiais militares.

A evidência de um processo de constituição de mulhe-res em policiais militares leva-nos a reconhecer que astransformações que o mundo do trabalho vem sofrendonão podem ser reduzidas somente às perdas econômicas,pois elas se refletem igualmente na construção dos sujei-tos. Nesse contexto, observamos que o gênero deve sercompreendido como elemento constitutivo das relaçõessociais, abrigado por um conceito eminentemente rela-cional que dá visibilidade à construção social dos modosde tornar-se homem e de tornar-se mulher. Assim, nosconstituímos homens e mulheres nas mais diversas insti-tuições ao longo de nossas vidas. Dessa forma, a inserçãofeminina nas polícias militares brasileiras, sustentada navisão de que há um modo natural de ser mulher e de queas mulheres, enquanto minoria simbólica, terão papel sa-neador na instituição e o não-reconhecimento do papel dainstituição policial militar na constituição de mulheres em

policiais, levam-nos a perceber a crise nas “novas” con-cepções de segurança pública e práticas sociais e a refle-tir sobre quais pilares construiremos a noção de seguran-ça cidadã.

NOTAS

A autora é Coordenadora Regional/RS do Centro de Estudos de Segu-rança e Cidadania da Universidade Candido Mendes/RJ, para a pes-quisa em desenvolvimento sobre Mulheres Policiais: impactos da par-ticipação feminina nos quadros das polícias militares brasileiras. Pes-quisa financiada pela Fundação Ford, sob coordenação nacional deBarbara Soares.

1. Por meio de levantamento realizado em bancos bibliográficos, loca-lizamos as seguintes referências sobre mulheres policiais militares: Maia(1993); e Meneli (1991). Além desses, cinco trabalhos sobre o temaforam encontrados nas próprias polícias militares, entre as monografiasde formação de oficiais, quatro no Instituto de Pesquisa da BrigadaMilitar de Porto Alegre e um no Instituto de Pesquisa da Polícia Mili-tar do Mato Grosso. Estes não aparecem nos bancos de dados de pro-dução acadêmica, nem nos sistemas de busca pela Internet. Destaca-mos: Cônsul (1999); Rechden (2001); Bengochea (1992); Borneo(1991); e Machado (2001).

2. Cf. Calazans (2003). Dissertação concluída no âmbito do projetoAlternativas democráticas para o ofício de polícia no século XXI(Tavares dos Santos, 2003).

3. JIM ou Campo: espaços de treinamento baseados em técnicas desobrevivência.

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MÁRCIA ESTEVES DE CALAZANS: Psicóloga-Pesquisadora, Integrante doGrupo de Pesquisa Violência e Cidadania da IFCH/UFRGS.

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SEGURANÇA, CONFIANÇA E TOLERÂNCIA: COMANDOS NA SOCIEDADE DE CONTROLE

O

SEGURANÇA, CONFIANÇA E TOLERÂNCIAcomandos na sociedade de controle

Resumo: A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle redimensiona os itinerários desegurança, confiança e tolerância. Convoca à participação democrática, consagra uma pletora de diretos, exi-ge adesão aos fluxos produtivos. É a era da disseminação do trabalho intelectual, em que as resistências não sefazem notar por algaravias, mas pelo silêncio.Palavras-chave: sociedade de controle; tolerância; segurança.

Abstract: The transition of a disciplinary society to a society of control reorders the coordinates of security,trust and tolerance. It sounds a call for democratic participation, consagrates a plethora of rights, and demandsadhesion to productive activity. It is the age of the dissemination of intellectual labor, in which protest isregistered not through chaos, but rather through silence.Key words: society of control; tolerance; security.

EDSON PASSETTI

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s sustos provocam instantes inéditos na história.Eles são descontínuos. Aparecem quando menosse espera, retiram a pessoa de um estado de tran-

qüilidade, de absorção, de sonho, levando do impacto aotorpor, à embriaguez, ao sono, e educam o assustado a seprecaver contra aquele tipo de susto. Provocam ruídos,fazem correr, saltar, gritar, sair do esperado, rir até gar-galhar, chorar, atirar-se nos braços desejados, desmaiar,morrer. Os sustos são inevitáveis. Não são poucos e nospegam. Não cessam: no silêncio uma criança berra, fazexplodir uma bola de ar nas suas orelhas, te empurra es-cada abaixo, com sua ingenuidade e humanidade.

Prevenir pela boa educação é a maneira ética deresponsabilizar cada um pelo desassossego provocado como prazer de assustar, ainda que para isso seja necessárioaterrorizar difundindo o medo dos fantasmas, dos sons,dos monstros noturnos, dos esfarrapados, dos pobres quepodem te assaltar, dos miseráveis, dos outros. Forma-seum contínuo em que se fica a mercê de uma educaçãoresponsável para gerar segurança social e que esperaconfiantes retribuições. Em nossa sociedade, os paisencontram-se no centro confiável das crianças. Com elesinicia-se a aprendizagem sobre a moral superior, que zela

pela segurança do subordinado e estabelece uma relaçãode mando e cuidados sobre o inferior obediente. Dianteda inevitabilidade dos sustos, incluindo o abuso deautoridade do superior, a sociedade exige a educação paraa constante restauração da responsabilidade coletiva,suprimindo o exacerbado individualismo egoísta incor-porado no tirano, incentivando a tolerante atuação na lidacom assimetrias. A intolerância, por conseguinte, de cimapara baixo ou vice-versa, compõe um conjunto totalitárioinaceitável. Somente a democracia por meio dos direitosuniversais reconhece a assimetria e afirma a tolerânciacomo maneira pela qual os cidadãos e as elites perpetuamo ideal de aperfeiçoamento pacífico das relações sociais.É tolerando as exceções que se afirmam as regras, os plura-lismos, as normas da obediência. Recomenda-se, portanto,de baixo para cima, cuidar para que se evite o tirano, e decima para baixo, para que se reduzam as assimetrias.

A vida moderna é garantida com base na crença noEstado com monopólio das armas, exército, polícias, e ins-tituições que previnem, asseguram e cuidam das popula-ções e de suas felicidades. Um Estado bem governadoprotege os súditos de muitos sustos, evitando a eclosãode uma guerra civil (em que uma parte pretende governar

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a sociedade em nome de todos) e do envolvimento numdispendioso conflito bélico externo. O Estado, por meiodos seus governos, precisa dar garantias de segurança. Nointerior, mostrando-se confiável e capaz de absorver pelaprática parlamentar o máximo de demandas formuladaspelos obedientes cidadãos; em relação ao exterior, exer-citando protocolos diplomáticos como redutores dobelicismo. O Estado é o agente de guerra e o lugar da ins-titucionalização do conflito: ele é o nosso defensor. Mos-tra saber governar pelos efeitos da representação políticae da biopolítica: zela por nós por meio da rotina parla-mentar, pelas políticas de intervenção na vida da popula-ção e pela diplomacia externa em nome da consolidaçãoda paz perpétua. O sossego oferecido pelo bom governoresume-se em proteger o cidadão dos inimigos de dentroe de fora, e cuidar da vida de cada um, como um pastorque administra a saúde, os traslados e as vontades de seusseguidores.

Do mesmo modo que uma criança abala a ordem dascoisas afirmando sua liberdade diante das regras fixas quelhes são apresentadas, o sossego do governo do Estado éabalado por aqueles que agitam provocando riscos. Elessão insuportáveis. Assim como a criança que precisa sereducada, os agitadores devem ser localizados, identifica-dos, castigados e reeducados. Ambos (crianças e subver-sivos) são caracterizados, pelas leis e pelos saberes cien-tíficos, como pessoas perigosas, elementos que pertencema grupos que necessitam de tutorias, curas, punições,banimentos. Formam, numa só pessoa, um duplo que ca-rece de educação para superar a infância da existência eadentrar à vida adulta responsável dos que trabalham,pagam impostos, votam, cumprem deveres e se vanglo-riam de obter direitos. As prescrições tolerantes – que fun-cionam até o ponto em que se possam extrair demonstra-ções acerca da absorção dos cânones da moral da boasociedade ao exporem seus limites –, instituem o comple-mentar conjunto punitivo necessário para a sua continui-dade. Ultrapassado o âmbito da prevenção geral expostoem leis e normas ao cidadão e ao futuro cidadão (criançase jovens), o inevitável castigo se reafirma como relaçãonatural. Para uma sociedade produtiva, equilibrada, segurae com redução de assimetrias é preciso confiança nos su-periores (dos pais ao Estado e do Estado aos pais). A vir-tude do moderno cidadão está em demonstrar obediênciaaos superiores sob a forma de prevenção geral, preferen-cialmente democrática. Está em confiar em seu Estado pormeio de governos que garantam a paz interna e com rela-ção aos outros Estados; na substituição do governo que

fere a constitucionalidade e o direito do cidadão, pela viapacífica, legal ou da revolta. Da mesma maneira, todoaquele que atentar contra a continuidade do Estado atentacontra a sociedade. Fica estabelecida uma relação de mãodupla de vigilâncias e cuidados do Estado para com a so-ciedade e desta para com o Estado, cabendo ao cidadão opapel de soldado das garantias. O Estado moderno resul-ta da confiança dos cidadãos em uma autoridade superiortolerante capaz de lhes dar segurança diante dos perigosimediatos internos ou externos.

Desde o século XIX, a sociedade disciplinar, apesardos cuidados e dispositivos de seguranças, vivenciou re-viravoltas políticas que foram da tirania à democracia, dademocracia ao socialismo, do socialismo à ditadura. Dorei como o monstro traidor do povo configurado pelosefeitos da Revolução Francesa – combatido pelos idealis-tas democratas que com suas defesas de direitos e divi-sões de poderes configuraram a continuidade das desigual-dades sociais e dos privilégios, e pelos socialistas queconquistaram o Estado pretendendo atingir a emancipa-ção humana, mas apenas construíram ditaduras, terminandoreféns dos democratas juramentados –, aos anarquistas, omonstro político moderno foi redimensionado (Foucault,2001a). Agora, inversamente ao rei, os anarquistas, osmonstros de baixo para cima, abalam a sociedade disci-plinar por mostrá-la produtiva tanto no capitalismo quan-to no socialismo.

A sociedade disciplinar criou aperfeiçoamentos de vi-gilâncias cujos ápices se encontraram na transformaçãodo campo de concentração em campo de extermínio e dovôo panorâmico do avião em fumegante bomba atômica.Ela encurtou distâncias para lucrar e guerrear de manei-ras certeiras. Gerou velocidades instantâneas, começou acontrolar o espaço sideral e conseguiu produtividadesinimagináveis. A cada busca mais desesperada por obe-diências, diante da iminência de um outro susto, consa-grou necessidades de afirmar um pacificador estratégicotemporário, tolerando muitas vezes ditadores como o malmenor; dentre eles, fascistas e nazistas. Democracia e so-cialismo estatal, até a terceira parte do século XX, rivali-zaram como forças políticas preponderantes pretendendoafirmarem-se como a verdade verdadeira. Diante da uni-formidade de uma com base no pluralismo1 consagrandoa maioria, a outra, ditatorial, justificou-se na suposta le-gitimidade para a realização da justiça social para a tota-lidade. A massa, acreditando no poder de redução e su-pressão de assimetrias pelo Estado, fez da democracia edo socialismo suas religiões do rebanho moderno.

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SEGURANÇA, CONFIANÇA E TOLERÂNCIA: COMANDOS NA SOCIEDADE DE CONTROLE

Na sociedade disciplinar, o espaço preponderante deocupação dos corpos efetivou-se pelo trabalho manualcomandado pelo trabalho intelectual. Foi a era das má-quinas energéticas. Era das maiorias sob o comando deminorias, de produtividade privada da empresa em con-flito com o procedimento estatal, de mercados livres emonopolizados contra Estados intervencionistas ehomogeneizadores, de sindicatos em negócios com em-presários e Estado, de mecanização e eletrificação, decontroles territoriais sobre a população, níveis de escola-ridades e saúde, direitos sociais, uma infinidade de idas evindas que caracterizaram expressões da realização dejustiças sociais na iniqüidade. A sociedade disciplinar foia época da busca de equilíbrio entre produção da riqueza,sua apropriação e gerenciamento de misérias, cujos ápi-ces rivalizaram Welfare State e Estado socialista. Socie-dade disciplinar foi investimento no corpo produtivo, ocorpo que adquiriu vida num momento podendo perdê-laa qualquer instante; uma sociedade de vivos e mortos con-vivendo segundo a produtividade e a docilidade política.Vivo era o produtivo, a verdade afirmada pelo inquérito ea disciplina obtida por meio dos exemplos, dos procedi-mentos, das prevenções e punições regulamentadas. Nes-ta sociedade, uma parte viva e quase morta recusou a pu-trefação exigida na vida capitalista. Combateu na lutacontra a exploração material e a dominação política lide-rada por uma minoria sapiente – também capaz de provo-car sustos –, feita representante dos trabalhadores e mise-ráveis, portando nova e superior consciência estruturada.Instalou-se no Estado, pela planificação da economia econsagração do trabalho intelectual, após sua ocupaçãorevolucionária, prometendo levar à dissolução do domí-nio do capital sobre o trabalho, do trabalho intelectualsobre o manual e da propriedade privada sobre a riquezasocial. Despertou a esperança no socialismo de Estado efoi subjugada pela realidade ditatorial.

A sociedade disciplinar foi a era das minorias (elitesou vanguardas) governando as massas (pela democraciaou pelo socialismo estatal), segundo a representação for-mal ou a representação da consciência em movimento,formalizando a luta pela eqüidade (os democratas em nomeda igualdade política, os socialistas autoritários em nomeda igualdade econômica): eis o arco que deu nos coman-dos de segurança, confiança e proteção, na continuidadeda dominação em que a sociedade disciplinar se mantevediante de sustos democráticos, ditatoriais, socialistas elibertários provocados aqui e ali. Trata-se de um mesmoarco (de regimes políticos), para o mesmo alvo (as mas-

sas) e a mesma flecha (partidos políticos), uma continui-dade das representações numa era dominada pela lingua-gem das metáforas. Venceu a sociedade disciplinar, comou sem revolução socialista, como continuidade em trans-formação, assimilando os sustos, educando as crianças eexigindo a consagrada obediência.

ITINERÁRIOS

Michel Foucault interessou-se pelo que veio a caracte-rizar como sociedade disciplinar, relacionando os posi-cionamentos nelas exigidos e ressaltando que a dessa-cralização do espaço não havia acompanhado o processoanálogo ocorrido com o tempo na história.2 Avançou, se-gundo Gilles Deleuze (1988, 1992), anunciando a socie-dade de controle que, desde a segunda metade do séculoXX, provoca a dessacralização do espaço com a comuni-cação permanente, a convocação à participação na políti-ca e na economia e com a organização baseada na disse-minação do trabalho intelectual. Se a sociedade disciplinarpotencializou a dessacralização do tempo, a sociedade decontrole fará desaparecer fronteiras entre público e pri-vado, nação e território, lugar de trabalho e produtivida-de, homem e cidadão.

A sociedade de controle não abdica das práticas disci-plinares, dos funcionamentos por simultaneidade, justa-posição, dispersão, proximidade e distância formando re-des. Elas, agora, são redimensionadas segundo fluxos,abolindo as fronteiras conhecidas, pela desterritorializa-ção constante, liberando o trabalhador do confinamentoterritorial rígido. Na sociedade de controle, o trabalha-dor, segundo protocolos, poderá circular por outros paí-ses independentemente de limites fronteiriços ou permis-sões circunstanciais. Forma-se uma nova cidadaniaampliada sobre a nacional. O trabalhador não está maisconfinado a um território segundo a soberania do Estadomoderno. Esta foi ampliada, abolindo-se a continuidadede fronteiras, com os Estados nacionais transformando-se em Uniões, como acontece desde os anos 90. Novoscontroles de terra e ar aparecerão, tanto quanto novas re-sistências. A internacionalização dos trabalhadores ganhanova dimensão como parte da continuidade da internacio-nalização constante do trabalho, fazendo implodir sindi-catos e lutas convencionais. O aparecimento da globali-zação varre os socialismos para uma nova produtividadecom a universalização da democracia, como na Rússia,ou com a manutenção da ditadura, como na China. A so-ciedade dos limites – como foi a de disciplina em que o

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poder não ocupava lugar algum, formando situações es-tratégicas enquanto as resistências atravessavam frontei-ras de contornos de classe, grupos, pessoas, instituições edireitos –, demarcava itinerários caracterizando os cami-nhos possíveis, esperados e recomendados para a boa vidaem sociedade. Ela criou positividades de poder, caracte-rizando-se como uma sociedade diferente da sociedade desoberania que a antecedeu e não suprimiu, acrescentan-do-lhe novos trajetos. Da mesma maneira, a sociedade decontrole não destrói o que a antecedeu: redimensiona odomínio de maneira mais sutil.

A sociedade de controle é uma sociedade de segurançaque se pauta num triângulo formado pela reafirmação daincerteza assentada no aperfeiçoamento do inacabado –característica marcante do trabalho intelectual –, pela con-fiança nos programas – de governo, organizações e com-putação – e pela tolerância como maneira de lidar comassimetrias e dissemetrias. Funda a era da democracia, daconvocação à participação redimensionando a represen-tação por uma pletora de direitos que suprimem os espe-cíficos direitos sociais, anteriormente conseguidos(Passetti, 2003). Constrói-se uma vida em fluxos regidossegundo protocolos, uma vida diplomática em que nãoprepondera mais o Estado diante do exterior, mas em quese afirma o exterior organizado segundo o modelo estatalsobre o interior: era do cosmopolitismo, da hospitalidadeaos assemelhados, da crença na paz perpétua, do empíri-co, da comparação, do pluralismo e do relativismo cultu-ral. Nem Hegel, nem Marx, mas era de Kant.

Na sociedade de controle exige-se segurança, convoca-se à participação e demarcam-se novos itinerários (progra-mas) que pretendem orientar o trânsito nos fluxos. Da mes-ma maneira que a sociedade de soberania e disciplina, asociedade de controle depende de itinerários, de localiza-dores, agora de terra, mar, ar e do celestial. A representaçãodas partes para garantir o todo combina-se com a partici-pação direta de cada agente econômico, fazendo com queas negociações se territorializem segundo negociações lo-cais, superando as atribuições nacionais dos sindicatos. Nasociedade disciplinar as representações se nacionalizavam;na sociedade de controle exigem-se flexibilidades, combi-nações de elementos locais, com regionais, nacionais e trans-nacionais. O fluxo produtivo orienta-se sem espaços demar-cados e a representação política, que combinava seletividadeeleitoral (partidária) com as demandas organizadas (movi-mentos), visando influir na governamentalidade, cede vezà participação imediata na produção por meio de criação,aperfeiçoamento ou superação de programas econômicos

que se expandem para os fluxos não-governamentais arti-culados com governos. Os lugares vão dando vez aos flu-xos e as redes com seus nós e espaços de localização nãosão mais lugares característicos atravessados por relaçõesde poder e resistências. As redes são elas mesmas atraves-sadas por fluxos que perfuram nós, vazam dos espaços de-marcados, misturam-se a outros fluxos que se atualizamorientando itinerários, formando mapas de relevos de su-perfícies e profundidades e mapas celestiais, em que pro-fundidade e superfície se confundem. Não há mais itinerá-rio de ida e volta, apenas fluxos atualizados: nesta sociedade,o fim é estar no meio e na mídia.

A convocação à participação traz outra novidade. Elapretende manter hierarquias dissolvendo as resistências,naturalizando as relações de poder como inevitáveis do-mínios e perpetuar assujeitamentos mediante novos pro-cessos de subjetivação, que vão da auto-ajuda à ajuda aoalheio, num espetáculo contínuo de filantropias e de mul-tiplicação das compaixões que pretendem integrar a to-dos: quem é produtivo, quem é morto circunstancial, amoralidade e a piedade. Os corpos não precisam mais daforça e da perfeita compleição físicas: a produtividadeexige os comandos do cérebro e seus resultados devemmostrar a saúde e a jovialidade da pessoa. O poder positi-vo e produtivo da sociedade disciplinar é superado, semser suprimido, pelo poder relativista da sociedade de con-trole, de comunicação contínua, de avaliação constante.A qualquer momento poderá haver algo produtivo ema-nando de um cérebro. O hacker que hoje abala a seguran-ça dos programas de computador pode ser daqui a instan-tes o seu anjo da guarda. A operação ilegal que você acaboude praticar em seu computador, será corriqueira e legalcom um novo programa. Linguagens de poder e religiãomisturam-se no interior da programação com a mesmadestreza que o puritanismo tomou as teorias da adminis-tração no século XIX e XX, e a mesma esperteza com queacomodaram as comunicações constantes, a partir de El-ton Mayo (Tragtenberg, 1974). Na sociedade de contro-le, diferentemente da disciplinar, atesta-se democratica-mente que ninguém está morto-vivo para sempre; faz-secrer, pelos mercados e pelas políticas transnacionais, quehaverá luz no final do túnel e segurança para todos, desdeque haja confiança e tolerância: os fluxos precisam meapanhar, a vida está dentro deles, numa velocidade queexige que você a domine para ser absorvido(a), não seperder no itinerário e cair fora dele.

Os espaços planetários de superfície e profundidade,pelos quais os navegadores chegavam na época moderna

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às descobertas de outros continentes, geravam implicaçõesque oscilavam entre os empreendimentos dos Estados, dascompanhias e das atuações de corsários, todos guiados pelobarco, singrando os mares, as superfícies lisas, descobrindoe colonizando lugares novos, passíveis de efetivação deuma certa utopia. Eram lugares que se transformavam emterritórios, incluíam e dizimavam populações nativas quepassavam a viver segundo um governo central. Os pro-gramas de conquistas siderais alcançados após a II Guer-ra Mundial redimensionaram os locais, as extensões, osposicionamentos, os navegadores e seus protocolos. Agoraas pessoas deslocam-se para habitar territórios não maisapenas de barcos, navios, submarinos e aviões, mas atra-vessam continentes pela informatização, visitam lugares,conhecem pessoas (falam com elas, escrevem para elas,reconhecem-se em movimento) pelo telefone, televisão ecomputadores móveis. Não há mais lugar para se traba-lhar, tudo ficou móvel, em fluxos pelos itinerários da so-ciedade de controle. O mar cedeu lugar ao ar, o barco aoavião, os foguetes aos satélites e às estações orbitais, afábrica à empresa, o operário ao funcionário, as multidõesde pessoas – distribuídas como fragmentos de massa, pe-los espaços públicos, segundo o multiculturalismo, atuandonas praças e na Internet – substituem classes, povos, gru-pos e massas; cada pessoa está remetida a mais de umareferência simultânea segundo a pletora de direitos e exi-gências do trabalho: o especialista cedeu lugar ao poliva-lente, a moral ao moralista e à transcendentalidade da éti-ca. As diversidades dos exercícios múltiplos entre soberanoe súditos nos sentidos ascendentes e descendentes de po-der, as vigilâncias panópticas criando positividades depoder com base na utilidade do corpo produtivo e suacorrelata docilidade política combinam-se com as infin-dáveis expectativas de produtividades pela participaçãoque a sociedade de programas, comunicação veloz e con-vocação constante espera de cada um. Os itinerários sãoconhecidos e reconhecidos, situados, redimensionados eatravessados cada vez de maneira mais rápida que a ante-rior. Cada alfabetizado ou alijado eletronicamente geracapacidade para ler e acoplar linguagens e nova carênciailuminista, decodificar secretos enigmas, gerar programas,sabotar.

A sociedade de controle forma infindáveis bancos dedados e nos apanha divisíveis, não mais como populaçãomas como “dividualidades”, segundo os fluxos: não serepresenta mais uma multiplicidade de papéis segundo oposicionamento, mas transformações constantes, metamor-foses de acordo com o programa. Não há mais massa

clamando pelo líder e o risco da dissolução do indivíduo.Como multidão, configura-se uma profusão de “divíduos”,uma multicultural forma de existir como ser cosmopolita,que busca saturar a ação com permissões e protocolos. Amultidão age segundo os programas, é convocada, encenasuas passeatas, atos, simulações, intervenções estéticas queapartam os miseráveis, e depois regressa feliz, segura eprotegida para suas residências, por ter seguido diploma-ticamente os itinerários, por investir em mudança segundoa ordem. É preciso outra globalização (Hardt; Negri,2000): este é seu limite.3 A passeata está incorporada àfelicidade geral, ao bem-estar de todos, não assusta mais,não gera riscos e testa programas de segurança. Consagra-se a polícia nas ruas desde a criação dos programas de“tolerância zero” iniciados pelos estadunidenses, nos anos80, como política de direito e em pouco tempo incorporadapelas esquerdas estatistas (Wacquant, 2002; Bourdieu,1998). Ampliam-se as funções de polícia de reprimir ecuidar, punir e prevenir. Ela passa a ser também uma formade zelo pela própria conduta, criando-se a polícia dapolícia, desdobrando-se vigilâncias.

Na passagem da sociedade disciplinar para a socie-dade de controle o outro ainda prepara um susto inevitá-vel. Vive-se o tempo em que a passeata e as mobiliza-ções nas ruas devem ocorrer segundo regras acordadasantes entre advogados e polícia; advogados, polícia emídia; acertos entre governo, organizações não-gover-namentais e mídia. Correto: a política da correção temduplo sentido, o da retidão moral e o do itinerário reco-mendado. Exige-se um viver feliz para além de nós, commais e mais pastores eletrônicos (do anchorman ao lí-der religioso) desvendando desconhecidos siderais, crian-do parcerias surpreendentes para a até então diplomaciaunilateral da sociedade disciplinar. Não está mais nocentro do saber a relação finitude individual/infinitudeda espécie. Não há mais o Homem como identidadeaglutinadora. O humanismo renascido se transfigurou emhumanitarismo. A grandiosidade transcendental de um étrocada pela etérea luminosidade dos efeitos midiáticosinstantâneos do outro. Cada um aprende a ser solidáriocom o que está em evidência, não havendo uma direçãoa ser seguida (assistir aos pobres, aos doentes e aos aban-donados), mas apenas escolhas sinalizadas pelo acordofilantrópico, sob a forma de fórum temático, nacional einternacional, com realização de agenda, uma profícuaproliferação de velozes celebrações entre governos, mí-dias e organizações não-governamentais. A era da liber-dade e da igualdade cede vez à época da fraternidade.

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Não se está mais sob o signo da liberdade negativa doliberalismo impedindo o que consagra a lei. Agora a coi-sa é pessoal, implica auto-censura, elogio às condutas,reconhecimento dos organizados, culto à ética da respon-sabilidade como o politicamente correto. A política estádentro e fora das instituições governamentais, cumpre iti-nerários. Não surpreende mais a noção moderna de polí-tica elaborada por Michel Foucault: a política é uma guerrapermanente por outros meios, atravessando as existências,definindo comandos e obediências, disciplinando em lu-gares, e agora também comunicando em fluxos, exigindopolícia, consagrando a segurança. Não há tolerância semperpetuação de relações assimétricas, e, como políticacorreta, a tolerância tem por utopia o zero, a sua próprianegação, a intolerância: os termos se misturam, rela-tivizam-se e não se sabe mais o que é uma ou outra; ape-nas que é preciso perseguir o dissidente, o perigoso, omonstro. No passado recente ficava claro quando um con-servador considerava o socialista intolerante; agora elesaprendem entre si e concordam sobre os alvos, como sedepreende desde a sistematização elaborada por AnthonyGiddens (1995).

Diante da pletora de direitos, exige-se a denúncia emnome da ética, da moral, da sobrevivência, da tolerânciazero. Denúncia de vivos sobre vivos, humanos ou naturezarepresentados por organizações. A vigilância por cada um,em nome da sociedade e do Estado para o corpo são. Épreciso regras para tudo, uma moral sólida regida por éticasresponsáveis, aplacando os sustos: é preciso seguro dianteda Aids, do pedófilo, do sexo. O relativismo preponderapacificando o sexo em casamentos indiscriminados entreheterossexuais e homossexuais ou homoeróticos. O sexonão está mais excluído, como afirmou Foucault em Aordem do discurso. Ele deve estar incluído, transitarlivremente, desde que pacificado e policiado, como sefosse possível cessar a transgressão, o que permanecesurpreendente, o susto. Espera-se tolerar o que for possívelacomodar, identificando e combatendo os outros, osmonstros.

Buscam-se parcerias e potencializações do finito-ili-mitado (do indivíduo dimensionado como dividualidades,envolvido com nanotecnologias de cura e reprodução),provocando controle dos fluxos, demarcando interfaces,confirmando múltiplas diplomacias, pluralismo político,valorização da participação em todos os empreendimen-tos em nome da colaboração e da tolerância, tendo pormeta conter sabotagens e aperfeiçoar itinerários. Socie-dade de controle é sociedade de segurança, de confiança

nos programas, de tolerância, veloz e inacabada; consa-grando o ideal liberal da razão competente e da sociedadeaberta, o liberalismo conservador pluralista, o comunis-mo de multidão.

ASSUJEITAMENTOS

Sabemos desde tempos remotos que os itinerários sãopossíveis de registros em diversos objetos e que estes fun-cionam como mapas. Ali encontramos os desenhos quemostram, segundo as sociedades, os caminhos para sechegar a um lugar ou até mesmo as suas característicasmais precisas naquele momento. O conhecimento acumu-lado e sintetizado no mapa envolve distâncias, relevos,regime dos ventos ou marés, múltiplas referências sinteti-camente condensadas em signos e escalas, mostrando ositinerários de deslocamentos em direção a lugares, segun-do critérios universalizantes ou singulares códigos aguar-dando decifradores. Os mapas são corrigidos à medida quese usam, remetendo à precisão e facilitando alcançar o alvo.Saberes específicos acumulam-se para realizar a tarefa detraduzir a versão atual do itinerário inicial num outro ob-jeto de uso durável, próximo à perfectibilidade. Mapasdesta natureza nos levam a lugares conhecidos e tambémao ponto de inflexão para uma nova descoberta. O objeti-vo de suas existências e permanências está na criação parao uso de uma cartografia geral do planeta, na qual se en-contram outras múltiplas e parciais cartografias como ados países, das cidades, dos bairros, dos seus rios, cor-reios, fábricas, postos de assistências, delegacias, prisões,cemitérios, escondidas armas de dizimação em massa,armazéns de armamentos regulados por tratados interna-cionais, sistemas circulatórios, zonas de infecção e peste.Os mapas se multiplicam, compartimentalizam informa-ções e estão dispostos segundo regimes de poder de ma-nuseio, leituras e decifrações de segredos.

Os cartógrafos detêm um saber centralizador elaboran-do mapotecas de itinerários que colaboram com a produ-ção da riqueza: identificam minas e fontes de extração dasprofundidades, esquadrinham cidades em centros e zonasperiféricas, expressam graficamente o poder das estatísti-cas, visibilizando as constatações e metas do controle,delimitam trânsitos populacionais, confinam grupos. Acartografia de itinerários funciona também para controlede população, prática de Estado e de biopoder contempo-râneo.

Os mapas são geradores de confianças no traçado paraencurtamentos ou detalhamentos de distâncias. Neles es-

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tão registrados os itinerários de confiança na sociedadedisciplinar, produzidos por quem vigia (e todos vigiam;esta é a produtividade extraída dos corpos na sociedadedisciplinar e que ultrapassa os efeitos da relação hierár-quica descensional). Nos simples mapas de deslocamen-tos que orientam o motorista de ônibus para o trajeto, tan-to quanto nas cartas constitucionais, códigos civis e penais,sistemas biológicos, físicas espaciais, diagramações defábricas, instalações elétricas na rua, no escritório, na pró-pria residência, os mapas confiáveis registram itinerários,conhecidos por quem deles faz uso, e suas sobreposiçõespropiciam cartografias dos corpos planetários, continen-tais, mares, pessoas, coisas e de seus respectivos posi-cionamentos.

Na sociedade de controle, o corpo da população deixade ser o alvo do Estado. Não se pretende mais dele ex-trair, pela disciplina, o máximo de energias econômicaspara reduzir as forças políticas de resistências, esperandodocilidades. Persegue-se a convocação à participaçãonuma velocidade capaz de suprimir resistências, integrandoa todos. Uma nova era de produtividade toma a dianteirae desloca-se para o interior do corpo, para os nervos, su-perando a mecânica industrial para afirmar a programáti-ca computacional. Deslocamento da subordinação do tra-balho manual pelo trabalho intelectual de planejamento,de domínio no capitalismo e no socialismo, para a prima-zia do trabalho nervoso, pessoal, narcisista, em que o tra-balhador é chamado a atuar como criador, obtendo a ma-terialidade da transcendência. O trabalho intelectual nãomais organiza o trabalho manual, mas o dissolve emrobótica e em computação. No limite – se for possível falarem fronteiras na sociedade de controle – permaneceinabalada a noção de política como guerra prolongada poroutros meios, acrescida, a partir de agora, da difusão daiminência da paz eterna a ser conseguida pela afirmaçãodas práticas democráticas no trabalho e na política.Imateriais saberes convocam cada um a participar na eco-nomia política dos fluxos, em que os territórios demarca-dos são superados pela desterritorialização constante. Aospoucos, a autoridade localizada na hierarquia em pessoaou procedimento burocrático é substituída pela atuaçãonos programas, revitalizando-os, criando novos, ou ape-nas utilizando aplicações, estabelecendo itinerários nointerior de uma economia intelectual. Se no passado a ló-gica exigia excluir, agora a miséria criada pela riqueza(em todos os cantos do planeta) e docilizada pela demo-cracia (ou pelas tiranias religiosas) é incluída: não esta-mos mais num processo de formação da riqueza das na-

ções ou das classes, mas numa potencialização da riquezaplanetária; não mais guerra das raças ou luta de classes,mas convivência na cidadania (o paradoxo que mantêm ooutro como o mesmo). O outro não é mais o selvagem, obárbaro, o oriental, mas o indivíduo ou grupo subversivoque reafirma para o civilizado a resistência à sua inferio-ridade diante do civilizado, segundo seu próprio padrão.Trata-se do efeito da retórica relativista da pacificação,consagrando a proliferação de guerras rápidas e devasta-doras, por meio de agenciamentos de organizações inter-nacionais, mobilizações de organizações não-governamen-tais, bravatas de políticos de Estados inexpressíveis,associações de forças estatais para rivalizar com a forçado Império. Há guerra e inevitavelmente, guerrilhas, eter-nas batalhas de extermínios em nome da democracia, dosdireitos, da tolerância, da segurança (na sociedade disci-plinar contra as armas nucleares, na de controle, inaugu-rada com a guerra de prevenção contra armas biológicas),do cidadão.

A inclusão não se dá apenas nas circunvizinhanças en-tre legalidade e ilegalidade como na sociedade discipli-nar, segundo a lucratividade da segurança, transformadanão mais em locais de controle de zonas que iam da polí-cia ao exército. Convocado a participar, cada cidadão éintimado a denunciar, vigiar, defender bens e valores. Umamoral de civilidade cosmopolita se forma e se fortalece,exigindo ética de responsabilidades acrescidas de cuida-dos com os outros e zelo pela conservação de seus bens esaúde. É preciso policiar: com guardas armados, comuni-tários, programas de segurança nas periferias e nos com-putadores; policiar a si próprio para poder ascender, cui-dar do outro para ele vir a ser incluído, proteger-se dasbalas e dos vícios, rejuvenescer. Recomenda-se policiaro próprio corpo porque na sociedade de controle exige-sejovialidade, sorriso, bem-vestir, polimento, o elogio aooutro como forma de prestígio obtido e reconhecido,nivelamentos trazendo cada outro para próximo de si,humanitariamente. Hermes precisa encurtar distâncias comvelocidade. Não há mais mapas ou itinerários registradosem objetos. Os caminhos são traçados de maneira efêmerapelos fluxos, e a cartografia é cada vez mais móvel, tantoquanto os mapas se tornam minuciosos em pormenores,do planeta às bactérias.

Da mesma maneira que a economia vai da superfície eprofundidade ao espaço celestial, os surpreendentes mo-mentos siderais e os sustos imprevistos é que ensinarão aelaboração de novas cartografias. A sociedade de contro-le nos convoca a participar democraticamente da econo-

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mia dos programas. Ela nos faz acreditar que cada umdetém o domínio da produção, numa fase, num instante, osaber do poder. Ao nos levar a constatar que participa-mos diretamente na construção da produção, aparece aperplexidade diante do risco de subversão, lado a lado como incentivo à participação democrática. Inevitabilidade dosusto e eficácia de contenção se rearranjam. A participa-ção deve ser vivida por todos, redesenhando a igualdadepolítica liberal e a igualdade socialista de acesso aos meiosde produção, como igualdade de acesso à dinâmica pro-dutiva. A participação é para todos porque todos podemser acionistas, investidores, inventores.

O inabalável poder da estatística como poder de Esta-do sobre a população permanece incólume, aperfeiçoadopelos diagramas e pelas projeções que podem serreelaboradas a cada efeito surpreendente. Da mesma ma-neira, permanece a propriedade sobre os meios de produ-ção. Seguem, na sociedade de controle, outros assujei-tamentos que acoplam punições e disciplinas, prisões eliberdades assistidas, manicômios e hospitais-dia, ampu-tações e próteses, abulimias e flacidez, drogas ilegais edrogas medicadas, psicanalistas, psicos, socios, antropos,disciplinares; inter, multi, pluralistas prefixos para desig-nar uma reforma constante nas relações de saber e poder.Estado e organizações não-governamentais ajustam obje-tivos, interesses, negociações e domínios, caracterizandoa era da vida fundada na confiabilidade nas reformas, natolerância com os programas governamentais escolhidosdemocraticamente por eleições regulares, na busca de se-gurança na polícia, no exército, no sindicato, no patrão,no chefe, no pastor, na casa, como elogio à fidelidade, oideal de felicidade.

Nesta sociedade, espera-se por silêncios, sorrisos, sus-surros, acertos, gestos comedidos, assentimentos, nego-ciações abafando discordâncias, confiando em segurançanas instituições e consagrando a tolerância. Nela, deve-seevitar o berro, a gargalhada, a contestação, o desassosse-go, o incômodo. A algaravia proletária da sociedade dis-ciplinar definitivamente está pacificada, o ouvir está nor-malizado pela escuta, o grito pelo gemido. As empresasestão limpas como o hospital, como a oficina de aviões,navios e automóveis, os espaços de guarda de computa-dores, a escola eletrônica (que acomoda ensino, culturacorporal, dinâmica local, procurando pelo efeito da parti-cipação imobilizar a população no local, gerando a cren-ça de que não há nada melhor do que melhorar o lugaronde se mora, fazendo da periferia autênticos campos deconcentração sem arame farpado), a base de lançamentos

de satélites, tudo limpo, habitado não mais pela fuligem,graxa e lama, mas, agora, por bactérias e vírus. A sujeirapermanece lá longe de onde se reciclam esgotos e lixos,nas periferias onde moram pessoas com as espeluncas dosseus equipamentos sociais. O mundo do trabalhador inte-lectual é seguro, vigiado eletronicamente, comandado porprogramas informacionais, divertido segundo a televisãoa cabo, rápido e ágil de acordo com a produtividadecomputacional que torna quase tudo obsoleto em poucotempo, repleto de sincretismos religiosos e musicalidades,feito para um cidadão cosmopolita.

Velocidade. O falso é também vitorioso. Como parteconstitutiva também relativiza: a roupa de grife para quemtem, com falsa etiqueta para quem tem menos. Novos pi-ratas atacam nas praças, nas feiras e nos computadoresderramando cópias, abalando a segurança e exigindo se-guradoras de seguranças. Nesta sociedade importa pare-cer igual e para tal a igualdade se explicita pelo direitouniversal à diferença caracterizando a nova uniformida-de. Ninguém é mais classe, isso ou aquilo, é cidadão,multidão. Pague e obtenha. Participe e serás bem quisto!A sociedade de controle inclui, ainda que você jamaischegue a desconfiar que está dentro permanecendo fora.

Assujeitamentos4 são intermináveis capturas de nósmesmos e auto-censura, fazendo cada um súdito de si, dooutro, do que inibe o auto-governo. É preciso crer quedependo do outro, da sua superioridade, da nossacapacidade de reformar, de obter uma cidadania universal.De ser trabalhador com as territorialidades expandidassegundo a superioridade de povos europeus, nivelamentoentre sul-americanos, daqui deste lugar no Brasil, naAmérica do Sul, no hemisfério Sul, transitando comocapitais via fluxos eletrônicos, mas ainda limitado segundoa territorialidade soberana do Estado do Brasil ou da UniãoEuropéia. Como trabalhador da União Européia sou maislivre que antes, minha prisão voluntária tem outros murosque não são os das cercas eletrificadas, ou do territórionacional, do derrubado vergonhoso muro de Berlim aofortalecido muro que separa Estados Unidos do México.Os trabalhadores do Brasil também beneficiam-se destaconquista. Eles têm ampliado seu espaço territorial livrede ação, segundo a procedência nacional de seus ante-passados imigrantes, fazendo soar uma complementarmistura de direito universal e direito de herança, reafir-mando o privilégio: o descendente de europeus tem maisliberdades de trânsito que os demais, ainda que permaneçasob o controle universal das emissões de passaportes,vistos, permissões. Os descendentes de escravos adquirem

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vez por meio de políticas afirmativas (distribuindo cotaspara acesso a bens culturais); e, enfim, redimensiona-se opluralismo que no passado se ajustava a relações entreetnias, raças e religiões como aglutinadores de indivíduoslivres. O liberalismo conservador se metamorfoseia emneoliberalismo, liberalismo social...

A vida desterritorializada redimensiona fronteiras. Nãoé só território, nem corpo produtivo e obediente o queimporta na sociedade de controle. O planeta é o corpo aser preservado pelos trabalhadores saudáveis atendidospelos seus respectivos seguros (propriedade, saúde,vida...). A prevenção geral entre humanos desloca-se, en-tão, para o planeta: selvagem e civilizado passam a com-por o duplo complementar. No mundo do espaço celestiala biopolítica cede lugar à ecopolítica. Tudo se desloca pararelações complementares entre o exterior e o interior.5 Oinvestimento do Estado deixa de ser na produtividade docorpo. Ele agora destina-se ao corpo saudável, intelectuale a cuidados do planeta no cosmos. De resto, organiza-ções não-governamentais e filantropias administram o querestou. Se os trabalhadores intelectuais participam direta-mente no mundo dos programas, os demais participam pelacrença na reforma, na melhoria das condições de vida.Enquanto a economia globalizante atravessa o planeta, ocidadão comum fica parado, pregado no chão diante datelevisão, formando a grande multidão diante da TV, opanóptico invertido. Para alguns, vida longa, chips, alte-rações genéticas, novas tecnologias. Para os demais, o lixodo silício. Os assujeitamentos na sociedade de controleformam subjetividades que defendem segurança, no limi-te da tolerância zero, lá na periferia, onde continua nas-cendo o pedreiro e o presidiário, o infrator e o perigoso, ocrime e o delinqüente, o seguidor do pastor, o pobre mor-tal voltado para a auto-ajuda, para receber ajuda, para aju-dar, a pessoa atravessada pelas regras do obsoleto itine-rário. É pela confiança na superioridade do outro, nosprotocolos, que seguem os condutores, que desestabilizamdemocracias pela possível reemergência da ditadura. Defato, a sociedade de controle traz a democracia para a pro-dução, os fluxos econômicos como mercados, nos mol-des liberais. A democracia política fica restrita aos efei-tos relativos, midiáticos e de sondagens, atestando aeficácia dos objetivos dos regimes autoritários, instituí-dos por meio de golpes de Estado, desde os anos 60, queprometiam normalidade democrática. Diante disso, inter-puseram-se imprevistos gerados pelos efeitos de guerra,como intolerâncias transnacionais (a repercussão da tole-rância zero em âmbito internacional), redesenhando a in-

tolerância ocidental do passado que se fundamentava nanegação do socialismo; agora, na sociedade de controle,ela se projeta pelos intransigentes grupos anti-americanosarmados vindos do oriente, com forte inspiração religio-sa, que compõem o arco que vai dos palestinos ao terro-rismo sideral inaugurado com o episódio de 11 de setem-bro de 2001 contra o símbolo capitalista, as torres gêmeasdo World Trade Center.

SILÊNCIOS

Silêncio, a música que emana deste ambiente é a do de-dilhar no teclado do computador. Silenciosos e solitárioseles navegam pela Internet, trabalhando e se divertindo,estudando e conversando, produzindo e participando, vi-giando e assegurando protocolos confiáveis. Tolerantes, as-sistem invasões por vírus, acionam seus programas de se-gurança, clinicam os computadores. Mas não há só o silênciodecorrente dos ruídos provocados pelos dedos suavementesobre as teclas. Há também múltiplas sonoridades musicaise visuais celebrando a continuidade solitária. Tudo mudarapidamente para parecer mais novo, ágil, jovial e comple-to: a voz está incorporada ao comando, brevemente a pelee os nervos, o calor, o hálito, o estalido. Sobre este silêncioe esta solidão irrompe a musicalidade anarquista de JohnCage (Ferrua, 2003), resistências.6 Sem a musicalidade dosilêncio para estancar e surpreender só há fluxo a atraves-sar, como uma adaga que penetra o peito, gira 180o, e aosair deixa uma mortal hemorragia; como uma bactéria queinvade o seu interior burlando mapas, desviando de anti-bióticos, destruindo. Isso é pouco mais que um susto, umasabotagem. Um silêncio é um susto.

NOTAS

1. Na apresentação da obra realizada em conjunto, Wolff, Moore eMarcuse (1970:10) afirmam: “Concluímos todos, ao analisar as teori-as e práticas predominantes da tolerância, que elas são, em graus vari-áveis, máscaras hipócritas a ocultar aterradoras realidades políticas”.Segundo os autores, “o pluralismo é uma teoria de funcionamento dasmodernas democracias industriais, com especial ênfase nos EstadosUnidos. Constitui, outrossim, modelo ideal de como a sociedade de-via ser moralmente organizada, seja de fato ou não. Encarada comoteoria descritiva, o pluralismo exige comprovação empírica do tipo quelegiões de cientistas políticos procuram fornecer em décadas recentes.Vista como teoria normativa, porém, é preciso defendê-la apelando paraalgum princípio de virtude, ou ideal de boa sociedade. (...) Cada defe-sa do pluralismo corresponde uma defesa da tolerância” (Wolff et al.,1970:22, 27). Contudo, na sociedade norte-americana, matriz da con-cepção democrático-pluralista desde a passagem do século XIX para oXX, “encontramos uma mistura da maior tolerância pelo que podería-

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mos denominar grupos tradicionais e uma intolerância igualmente gran-de pelo dissidente” (Wolff et al., 1970:44). Trata-se de um liberalismoconservador que se funda na tolerância coletiva (redução de conflitosentre grupos antagônicos) e intolerância individual. Enfim, “o plura-lismo freia a mudança social” (Wolff et al., 1970:52).

2. É conhecida a meticulosa análise empreendida por Foucault sobre asociedade disciplinar desde Vigiar e punir. Entretanto, um pequenoartigo anterior ao seu contundente livro, escrito em 1967, orienta al-gumas reflexões aqui propostas sobre a dessacralização do espaço pú-blico, num momento de transferências de comandos da sociedade dis-ciplinar para a sociedade de controle (Foucault, 2001b).

3. Para Hardt e Negri (2000), é preciso inventar uma multidão demo-crática, reverso da multidão descrita pelos teóricos contratualistas, quenão é mais plebe ou povo. É formada não só por cidadãos, mas portrabalhadores intelectuais.” Hoje, afirma Negri (2001:31), a “multi-dão é isso – uma multidão que subtrai ao poder toda transcendênciapossível e que não pode ser dominada senão de forma parasitária, por-tanto feroz”. Sua compreensão da vida pós-moderna, em que a socie-dade se subordina ao capital, caracteriza-se como sendo a fase dabiopolítica produtiva. Dizendo atualizar a noção de Foucault, Negriafirma que a biopolítica deixa de ser política descendente do aparelhode Estado (própria da era do Estado-nação). O Estado deixa de ser osujeito da conexão com a sociedade. Agora, o sujeito que “organiza oconjunto das condições de reprodução da vida da sociedade e não so-mente da ‘economia’” (Negri, 2001:35-36) é, ao mesmo tempo, umempreendedor de subjetividade e de igualdade. É o empreendedorbiopolítico que vive um máximo de liberdade e de ruptura em relaçãoà disciplina da fábrica. Este é o trabalhador intelectual realizando “umfranciscanismo laico e ateu” (Negri, 2001:51), ocupando o tempo decada um com responsabilidades. O comunismo de Marx é redi-mensionado como a “multidão que se torna comum” (Negri, 2001:32).Negri circunscreve-se ao campo anexo ao da compaixão cívica, carac-terizado por Sennett (1997) como campo das carências, de retomadados desvios da “compreensão religiosa”. Ao imaginar opor resistên-cias reescreve relações de poder na sociedade de controle, que reco-menda participação constante e responsável. A outra globalização é amáscara complementar para o uso do mesmo rosto (da mesma maneiraque capitalismo e socialismo autoritário se ajustavam à sociedade dis-ciplinar). Negri redimensiona Marx para a fase em que o trabalho in-telectual prepondera na globalização capitalista, sem que fosse neces-sária a passagem para o socialismo. Ressoa em seu projeto uma espe-rança de retomada dos sovietes pré-revolução de outubro de 1917: anova mesma multidão com suas diversidades suprimidas a partir dahegemonia bolchevista.

4. Guilherme Castelo Branco informa que escolheu a “expressãoassujeitamento ao invés de sujeitamento para seguir à risca a idéia deFoucault: trata-se de um modo de realização do controle da subjetivi-dade pela constituição mesma da individualidade, ou seja, da constru-ção de uma subjetividade dobrada sobre si e cindida dos outros. Den-tre as lutas de resistências, as que se prestam ao foco de Foucault sãoas lutas contra “o assujeitamento, contra as diversas formas de subje-tividade e submissão” (Castelo Branco, 2000:326, 315).

5. Sobre a relação interior-exterior, incluindo uma nova atuação dasciências humanas, “trata-se doravante de proteger um cosmos no inte-rior do qual voltamos a nos tornar uma mera parte, mesmo que sejauma parte motriz. Hoje, lutamos entre nós, os homens, pelos belos olhosde uma natureza violada que se tornou miserável e frágil, masenglobante. Todos os combates por uma parte dos meios ambientessão combates contra grupos sociais” (Latour; Schwartz; Charvolin,1998:96).

6. “Certos silêncios podem implicar hostilidade virulenta; outros, poroutro lado, são indicativos de uma amizade profunda, de uma admira-

ção emocionada, de um amor. Eu lembro muito bem que quando euencontrei o cineasta Daniel Schmid, vindo me visitar, não sei maiscom que propósito ele e eu descobrimos, ao fim de alguns minutos,que nós não tínhamos verdadeiramente nada a nos dizer. Desta forma,ficamos juntos desde as três horas da tarde até meia-noite. Bebemos,fumamos haxixe, jantamos. Eu não creio que tenhamos falado mais doque vinte minutos durante essas dez horas. Este foi o ponto de partidade uma amizade bastante longa. Era, para mim, a primeira vez queuma amizade nascia de uma relação estritamente silenciosa” (Foucault,1994:525).

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EDSON PASSETTI: Professor do Departamento de Política do Programa deEstudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e Coordenador do Núcleo deSociabilidade Libertária da PUC-SP.

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Resumo: Esse artigo trata de algumas diferenças entre as sociedades disciplinares e a sociedade de controle.Ele toma por base as reflexões do filósofo Gilles Deleuze sobre o trabalho de Michel Foucault. Aborda tam-bém as recentes tecnologias de controle e os mais recentes projetos do governo norte-americano para rastrearas ações de indivíduos no planeta.Palavras-chave: sociedade de controle; código; modulação social.

Abstract: This article examines some of the differences among disciplinary societies and the society of control.It takes as its starting point the reflections of the philosopher Gilles Deleuze regarding the work of MichelFoucault. It also discusses the new technologies of control and the most recent projects of the United Statesgovernment, capable of tracking the activities of individuals anywhere on the planet.Key words: society of control; code; social modulation.

ROGÉRIO DA COSTA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 161-167, 2004

um artigo intitulado “Post-Scriptum sobre asSociedades de Controle”, o filósofo GillesDeleuze (1990) indicava alguns aspectos que

poderiam distinguir uma sociedade disciplinar de umasociedade de controle. As sociedades disciplinares podemser situadas num período que vai do século XVIII até aSegunda Grande Guerra, sendo que os anos da segundametade do século XX estariam marcados por seu declínioe pela respectiva ascensão da sociedade de controle. Se-guindo as análises de Michel Foucault, Deleuze percebeno enclausuramento a operação fundamental da socieda-

Não há necessidade de ficção científica para conceber ummecanismo de controle que forneça a cada instante a posição de um

elemento em meio aberto, animal numa reserva, homem numaempresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginava uma cidadeonde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro,graças ao seu cartão eletrônico, que removeria qualquer barreira;

mas, do mesmo modo, o cartão poderia ser rejeitado tal dia, ouentre tais horas; o que conta não é a barreira, mas o computadorque localiza a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma

modulação universal

Gilles Deleuze (1990)

de disciplinar, com sua repartição do espaço em meiosfechados (escolas, hospitais, indústrias, prisão...), e suaordenação do tempo de trabalho. Ele chamou esses pro-cessos de moldagem, pois um mesmo molde fixo e defini-do poderia ser aplicado às mais diversas formas sociais.Já a sociedade de controle seria marcada pela inter-penetração dos espaços, por sua suposta ausência de limi-tes definidos (a rede) e pela instauração de um tempo con-tínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminarcoisa nenhuma, pois estariam sempre enredados numa es-pécie de formação permanente, de dívida impagável, pri-sioneiros em campo aberto. O que haveria aqui, segundoDeleuze, seria uma espécie de modulação constante e uni-versal que atravessaria e regularia as malhas do tecidosocial.

Deleuze sugere ainda que as sociedades disciplinarespossuem dois pólos, “a assinatura que indica o indivíduo,e o número de matrícula que indica sua posição numamassa”. Nas sociedades de controle, “o essencial não se-ria mais a assinatura nem um número, mas uma cifra: acifra é uma senha (...) A linguagem digital do controle éfeita de cifras, que marcam o acesso ou a recusa a umainformação” (Deleuze, 1990). A força dessa interpretação

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reside em um aspecto que gostaríamos de analisar nesteartigo: a relação entre identidade pessoal e códigointransferível (ou cifra, como diz Deleuze). A passagemde um a outro implica que os indivíduos deixam de ser,justamente, indivisíveis, pois passam a sofrer uma espé-cie de divisão, que resulta do estado de sua senha, de seucódigo (ora aceito, ora recusado). Além disso, as massas,por sua vez, tornam-se amostras, dados, mercados, queprecisam ser rastreados, cartografados e analisados paraque padrões de comportamentos repetitivos possam serpercebidos.

Para tentar compreender melhor essas distinções, eesclarecendo desde já que há muitas maneiras de se abor-dar a recente sociedade de controle e seus mecanismos(Hardt, 1998; Lessig, 1999; Rheingold, 2002; Shapiro,1999), vamos abordar aqui a forma como os dispositivosde controle se ocupam de informações resultantes dasvárias ações dos indivíduos. Chamadas telefônicas, com-pras de passagem aérea, câmbio, transferência financeira,uso de cartão de crédito, etc. O que se pretenderia obteratravés da análise de um tal conjunto de informações? Éseu conteúdo que interessa, ou é seu padrão de composi-ção e acesso? Enquanto os conteúdos apontam para aspessoas, para os sujeitos no sentido singular da informa-ção (conversou tal assunto, foi para tal país, trocou tantosdólares...), os padrões, por sua vez, nos remeteriam ao quê?Aos indivíduos como códigos digitais dentro de uma amos-tra específica? Há diferença entre viajar uma única vezou vinte vezes em seis meses a um mesmo país? Essesparecem ser aspectos cruciais na mudança das estratégiasque nos conduziram dos modelos tradicionais de discipli-na aos modelos mais sofisticados de controle atuais.

Há que se notar um aspecto básico, o de que sociedadesdisciplinares e de controle estruturaram de forma diferentesuas informações. No primeiro tipo de sociedade, teríamosuma organização vertical e hierárquica das informações.Neste caso, o problema do acesso à informação, porexemplo, confunde-se com a posição do indivíduo numahierarquia, seja ela de função, posto, antiguidade, etc. Alémdisso, as informações parecem adequar-se à estratégia decompartimentalização que configura o dispositivodisciplinar. Dessa forma, cada instituição detém seuquinhão de informação, como algo que pertence ao seupróprio espaço físico. Há uma associação profunda entreo local, o espaço físico e o sentido de propriedade dosbens imateriais. Há uma intensa regulação dos fluxosimateriais no interior dos edifícios e entre eles, de talmaneira que a resposta à pergunta “onde está?” parece

indicar ao mesmo tempo o lugar físico e a propriedade dainformação.

Cabe lembrar que nos dispositivos disciplinares, comonos mostra Foucault (1998), há uma espécie de polariza-ção entre a opacidade do poder e a transparência dos in-divíduos. Lembremos da famosa imagem do panóptico.O poder, devido a sua situação privilegiada, se manteriafora do alcance dos indivíduos, enquanto estes últimosestariam numa situação de constante observação, sendoportanto transparentes aos seus olhos (Foucault, 1998;Rheingold, 2002). Numa tal situação, parece que a rei-vindicação fundamental seria: maior transparência dopoder, para que possamos ver quem vive nos espiando econtrolando.

Essa crença acabou alimentando uma série de reflexõessobre a suposta transparência que a web nos ofereceria,e sua conseqüente força diante dos obscurantistas quedefendem os velhos esquemas de poder. Assim, pode-ríamos ter finalmente com a web a liberdade de expressão,o acesso às informações democratizado, etc.1 Claro quenada disso é desprezível, sendo mesmo algo que nospermite uma mobilidade sem precedentes. Mas, o que sepassa, então, com o advento da sociedade de controle,que é predominantemente reticular, interconectada? Háuma mudança de natureza do próprio poder, que não émais hierárquico, e sim disperso numa rede planetária,difuso. Isso pode significar que a antiga dicotomiaopacidade-transparência não seja mais pertinente. Comodiz Deleuze (1990), os anéis da serpente são maiscomplexos... O poder hoje seria cada vez mais iloca-lizável, porque disseminado entre os nós das redes. Suaação não seria mais vertical, como anteriormente, mashorizontal e impessoal. É verdade que a verticalidadesempre esteve associada à imagem de alguém: é o íconeque preenche o lugar do poder. Mas numa sociedadeinteiramente axiomatizada, as instâncias de poder estãodissolvidas por entre os indivíduos, o poder não tem maisuma cara. Sua ação agora não se restringe apenas àcontenção das massas, à construção de muros dividindocidades, à retenção financeira para conter o consumo.Essas são estratégias que pertencem ao passado.

Hoje, o importante parece ser essa atividade de modu-lação constante dos mais diversos fluxos sociais, seja decontrole do fluxo financeiro internacional, seja de reati-vação constante do consumo (marketing) para regular osfluxos do desejo ou, não esqueçamos, da expansão ilimi-tada dos fluxos de comunicação. Por outro lado, da mes-ma forma que o terrorismo é uma conseqüência do terror

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imposto pelo Estado, a ação não localizada dos hackers,produzindo disfunções e rupturas nas redes, parece ser oefeito que corresponde adequadamente aos novos modosde atuação do poder. Nenhuma forma de poder parece sertão sofisticada quanto aquela que regula os elementosimateriais de uma sociedade: informação, conhecimento,comunicação. O Estado, que era como um grande parasi-ta nas sociedades disciplinares, extraindo mais-valia dosfluxos que os indivíduos faziam circular, hoje está se tor-nando uma verdadeira matriz onipresente, modulando-oscontinuamente segundo variáveis cada vez mais comple-xas. Na sociedade de controle, estaríamos passando dasestratégias de interceptação de mensagens ao rastreamentode padrões de comportamento...

INTERCEPTAÇÃO DE MENSAGENS:SISTEMA ECHELON

Boa parte do sistema atual de vigilância eletrônica glo-bal ainda é baseada na interceptação de mensagens. Essessistemas são a conseqüência inevitável da invenção darádio, e estão ligados à própria essência das telecomuni-cações. Assim como o rádio possibilitou a transmissão demensagens para além dos continentes, do mesmo modopermitiu que qualquer um as escutasse. Não há dúvidasde que foi a invenção da rádio que deu uma nova impor-tância à criptografia, a arte e a ciência de criar códigossecretos. Ela estaria na origem do mercado de intercepta-ção de sinais.

Um dos sistemas mais famosos de vigilância planetá-ria desenvolveu-se principalmente em decorrência dosconflitos da Segunda Guerra Mundial. Duncan Campbell(2001), autor de um relatório para o Parlamento Europeusobre o sistema Echelon, conta que durante a SegundaGrande Guerra, enormes organizações de decodificaçãopertencentes às forças aliadas, na Inglaterra e nos EUA,leram e analisaram centenas de milhares de sinais alemãese japoneses. Foi nesse período que entrou em funciona-mento uma rede de escuta planetária chamada Ukusa, umacordo firmado em 1947 entre os governos dos EUA, In-glaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Num esfor-ço de vigilância jamais visto, a Agência de SegurançaNacional dos Estados Unidos – NSA, criou um sistemaglobal de espionagem chamado Echelon (dentro do acor-do Ukusa), que hoje tenta capturar e analisar virtualmen-te todas as chamadas telefônicas e mensagens de fax, e-mail e telex enviadas de qualquer ponto do planeta. Osistema Echelon é muito simples em seu desenho: esta-

ções de interceptação de sinais em todo o mundo captu-ram todo o tráfego de comunicações via satélite, micro-ondas, celular e fibra ótica, processando essas informa-ções em computadores de alta capacidade. Isso incluiprogramas de reconhecimento de voz, programas de re-conhecimento de caracteres, procura por palavras-chavee frases no dicionário Echelon, que capacitam o compu-tador a marcar as mensagens, gravá-las e transcrevê-laspara futuras análises.

O projeto Echelon enquadra-se numa perspectiva decontrole baseada na interceptação de sinais e de comuni-cação, e na quebra de seu código para se chegar a seuconteúdo. Trata-se, portanto, de vasculhar o conteúdo demensagens transmitidas por diversos meios e trocadas pelasmais diferentes instâncias, como indivíduos, governos,organizações internacionais, organismos privados ecomerciais.

Nos anos 40, o primeiro foco das operações do Echelonfoi a espionagem militar e diplomática. Já nos anos 60, naesteira do crescimento do comércio internacional, a inter-ceptação de informações acabou incluindo os campos eco-nômico e científico. Só recentemente a atenção dessa redede vigilância planetária voltou-se para o tráfico de dro-gas, a lavagem de dinheiro, o terrorismo e o crime organi-zado. O governo Clinton, por exemplo, teria apoiado, em1993, a atuação das operações de interceptação no planocomercial. É significativa a lista apresentada por Campbelldas empresas americanas que teriam vencido concorrên-cias graças à intervenção do governo norte-americano ecom a ajuda de informações obtidas pela NSA (o projetoSivam, do Brasil, por exemplo, encontra-se entre os cita-dos). Já o atual governo Bush tem trabalhado incansavel-mente na interceptação de informações das redes terroris-tas e do crime organizado.

Deve-se notar, no entanto, que nos últimos 15 anos aevolução tecnológica da rede Echelon deixou de estaradiante de seu tempo, sendo hoje alcançada pelas redesindustriais e acadêmicas com seus equipamentos de últi-ma geração. O chamado “ciclo da informação”, compos-to pela interceptação, coleta, seleção, tratamento e entre-ga das mensagens relevantes aos “clientes”, que ainda écumprido quando se trata de transmissões em alta freqüên-cia, em ondas curtas, cabos submarinos, satélites de co-municação ou Internet, agora tem dificuldades com as re-des de fibra ótica de alta capacidade e com redes desatélites do tipo Iridium. Além disso, como afirmaCampbell (2001), “os organismos de espionagem dos si-nais reconhecem que a longa batalha contra a criptografia

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civil e comercial foi perdida. Uma comunidade acadêmi-ca e industrial sólida está agora voltada para a criptografiae a criptologia. Reconhecendo esse fato, os EUA libera-ram em janeiro de 2000 seu serviço de exportação demétodos de criptografia, permitindo a cidadãos e a em-presas não-americanas comprar e utilizar produtos de co-dificação potentes” (tradução do autor).

Isso significa que, de algum modo, a percepção sobrea prática da interceptação de mensagens está mudando, enão porque se trate apenas de aprimorar as técnicas decriptografia, mas também de mudar a forma de aborda-gem do controle. Afinal, apesar de todo o poder do proje-to Echelon e de vários outros do mesmo gênero, os ata-ques terroristas continuaram passando sem interceptaçõessignificativas. Por conta disso, atualmente, dezenas deempresas trabalham para o Departamento de Defesa dosEUA, muitas delas localizadas no Vale do Silício. Duasdas mais importantes são AST e The Ideas Operation, di-rigidas por antigos funcionários do alto escalão da NSA.As duas trabalham no desenvolvimento de softwares defiltragem, tratamento de dados, análise de fac-símiles, aná-lise do tráfego de informações, reconhecimento de pala-vras-chave, análise por temas, sistemas de reconhecimen-to de voz, etc. São empresas que possuem pleno domíniodas novas técnicas desenvolvidas para rastrear as maisdiversas ações dos indivíduos e, a partir disso, construirpadrões de comportamento.

A QUESTÃO DA VIGILÂNCIA

O projeto Echelon representa, portanto, um caso exem-plar, pois pode ser considerado o último grande descen-dente dos sonhos de uma sociedade disciplinar e de suaconcepção de vigilância, sendo ao mesmo tempo o ances-tral de nossa sociedade de controle. Isso porque ele en-frentou a transição nos sistemas de comunicação do pla-neta, provocada pela revolução da informática.

Há aqui uma modificação no sentido de vigilância, quepassa da sociedade disciplinar à sociedade de controle. Naprimeira, a idéia de vigilância remetia ao confinamento e,portanto, à situação física que caracterizava as preocupaçõesdessa sociedade. O problema era o movimento físico dosindivíduos, seu deslocamento espacial. Vigiar era, basi-camente, regular os passos das pessoas, era olhar. Com aexplosão das comunicações, uma nova figura ganha força:a vigilância das mensagens, do trânsito de comunicações.É a época dos espiões, dos agentes secretos. UltrapassamosSherlock Holmes, que seguia os índices e pistas dos

movimentos dos suspeitos, e alcançamos 007, envolvidoem tramas internacionais via satélite. Vigiar passou asignificar, sobretudo, interceptar, ouvir, interpretar.

Com a explosão da web alguma coisa está mudando.Devido à nova forma como as informações são estru-turadas, em rede e reproduzidas em n pontos, acabamosgerando uma nova forma de vigilância, que se preocupaem saber de que modo essas informações estão sendoacessadas pelos indivíduos. Parece que o mais importanteagora é a vigilância sobre a dinâmica da comunicação nãoapenas entre as pessoas, mas sobretudo entre estas e asempresas, os serviços on-line, o sistema financeiro, enfim,todo o campo possível de circulação de mensagens. O queparece interessar, acima de tudo, é como cada um semovimenta no espaço informacional. Isso parece dizertanto ou mais sobre as pessoas do que seus movimentosfísicos ou o conteúdo de suas mensagens. A vigilânciaconstante sobre as trilhas que os indivíduos deixam na web,por exemplo, tornou-se objeto de inúmeras discussões eespeculações. Afinal, quem somos nós? Para onde vamos,o que fazemos, o que dizemos? Ou o que pensamos? Omodo como nos deslocamos por entre informações revelamuito do como pensamos, pois mostra como associamoselementos díspares ou semelhantes.

O tracking generalizado nos chama a atenção. Há umaespécie de vigilância disseminada no social, já que todospodem, de certa forma, seguir os passos de todos. O con-trole exercido é generalizado, multilateral. As empresascontrolam seus clientes; as ONGs controlam as empresase os governos; os governos controlam os cidadãos; e oscidadãos controlam a si mesmos, já que precisam estaratentos ao que fazem.

A BUSCA POR PADRÕES DECOMPORTAMENTO

Como lembra o matemático e sociólogo francês MichelAuthier, “o sentido de um documento está menos nele pró-prio do que nas pessoas que o consultam”.2 Isso significaque os vários sentidos de um documento vêm sobretudo dosinteresses de quem o consulta e que, dessa forma, no senti-do inverso, o mapeamento da afluência de grupos de usuá-rios a um determinado tipo de informação pode revelar muitosobre cada indivíduo e seus pares. Estamos falando aqui daimportância da construção do perfil do usuário, termo quecom o advento da web passou a ter um significado e usomais amplo do que o atribuído pelos departamentos de RH.Na Internet, não temos uma identidade, mas um perfil3

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(Costa, 2002). Com a explosão da web, no início dos anos90, muitos foram os sites que começaram a utilizar a decla-ração do perfil de cada usuário para uma série de opera-ções: oferta de produtos, de notícias, de programação nosveículos de mídia, endereçamento de perguntas, encontrode parceiros, etc. Já na virada do milênio, o desenvolvi-mento da tecnologia de agentes inteligentes permitia ma-pear os perfis de usuários da web de maneira dinâmica,acompanhando suas atividades e aprendendo sobre seushábitos. Essas novas ferramentas trabalham hoje não ape-nas orientadas por palavras-chave, mas também relacionan-do as consultas realizadas por todos os usuários em sua basede dados. Isso é feito com a finalidade de se encontrar pa-drões que possam auxiliar o próprio sistema na sua relaçãocom os usuários, antecipando a oferta de produtos e servi-ços (Costa, 2002).

Um dos casos mais interessantes e conhecidos dessetipo de tecnologia que funciona no ciberespaço é o queauxilia as pessoas a selecionarem filmes, livros, progra-mas televisivos e shows a partir, exclusivamente, da cor-relação entre os gostos pessoais de vários usuários (Maes,1997). O site mais conhecido que possui esse tipo de agenteinteligente é o da livraria Amazon.com. Todos aqueles quejá o consultaram a procura de um título, tiveram a oportu-nidade de receber como sugestão do site uma lista de quatroa seis outros títulos que também interessaram a outraspessoas que compraram o livro ou produto em questão.Essa lista é produzida a partir do rastreamento feito porum agente inteligente que constrói um perfil dinâmico dapessoa, tendo como referência o que ela adquire atravésdo site (como livros, CDs, vídeos, brinquedos, etc.). Des-sa forma, é possível apresentar uma lista de sugestões aousuário, com base naquilo que outras pessoas de perfilsemelhante ao dele compraram. Trata-se da construção depadrões de interesse, a partir dos quais indivíduos quecompartilham os mesmos gostos funcionam como um pa-drão para indicações interessantes que podem ser cruza-das dentro de um mesmo grupo (Costa, 2002).

Essa técnica de rastreamento das atividades dos usuáriosé usada também em sites como o Abuzz.com, do New YorkTimes, uma comunidade virtual que funciona em torno deperguntas e respostas enviadas por seus participantes. Oagente inteligente de Abuzz acompanha cada usuário emsuas atividades, construindo um perfil de acordo com suasperguntas e respostas, com os temas tratados, com afreqüência de suas ações, etc. Isso permite à ferramentaendereçar adequadamente perguntas para aqueles que maisse aproximam do perfil dos que podem responder.

Um outro exemplo do que está sendo dito, mas agorafora do campo da Internet, é o da TV digital interativa. Aempresa líder no mercado mundial, OpenTV, desenvol-veu um pequeno agente inteligente que é capaz de traçara silhueta de uma pessoa através de sua ação cotidianasobre o controle remoto. Nesse caso, o agente constrói asilhueta rastreando a ação pura e simples do telespectadorjunto ao televisor. Ele atua registrando e associando vá-rias coisas automaticamente: os momentos em que a pes-soa assiste a TV, os programas que ela assiste e, o maisimportante, o ritmo de mudança de canais. De posse des-ses dados, o agente consegue estabelecer, para uma famí-lia usual (quatro ou cinco pessoas), os hábitos televisivosdos adultos homens, dos adultos mulheres e das crianças.Ou seja, ele constrói um conjunto de padrões de compor-tamento a partir das ações dos próprios usuários. Isso sig-nifica que não há nenhuma tabela a priori de padrões paraele se orientar. Com o tempo, ele consegue reconhecer cadaum no momento mesmo em que liga a TV, e pode assimlhe oferecer alguma sugestão (Costa, 2002).

RASTREANDO O PLANETA – O PROJETO TIA

É toda essa tecnologia que vem sendo agora incorporadapelos mais recentes projetos que alimentam a sociedadede controle. Um exemplo importante, e recente, é o projetoamericano TIA – Total “Terrorism” InformationAwareness, que propõe abertamente capturar a “assinatura-informação” das pessoas. Dessa forma, o governo poderiarastrear terroristas potenciais e criminosos envolvidos emtipos de crimes contra o Estado de difícil detecção.4

A estratégia do projeto é rastrear indivíduos, coletan-do tanta informação quanto possível e usando softwaresinteligentes e análise humana para detectar suas ativida-des potenciais. O projeto está investindo no desenvolvi-mento de uma tecnologia revolucionária para a armaze-nagem de uma quantidade enorme de todo tipo de fontede informação, associando essas múltiplas fontes para criarum “grande banco de dados, virtual e centralizado”. Adiferença aqui é que essa grande memória seria alimenta-da a partir das transações contidas em diversos bancos dedados, tais como os registros financeiros, registros médi-cos, registros de comunicação, registros de viagens, etc.É com esse material que o rastreamento das informaçõesserá possível, e com ele a construção de padrões e asso-ciações entre os dados. O reconhecimento de padrões estádiretamente ligado à mudança nos métodos de controledas ações individuais.

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Ora, aquilo que na web é a construção de um perfil di-nâmico de usuários com fins comerciais, que serve paraalimentar a sociedade de controle light do marketing, agorano TIA passa a ser a construção do perfil total, que será oresultado do cruzamento das ligações telefônicas de umindivíduo (sua origem, destino, data e duração), as despe-sas efetuadas em cartões de crédito (quanto, onde, quan-do) e, a partir destas, as operações comerciais mais diver-sas. O que o projeto almeja, com esse esforço, é a produçãode uma visão dos padrões de comportamento de amostrasda população. O objetivo básico do projeto é auxiliar ana-listas a compreender e mesmo prever uma ação futura, nocaso uma ação terrorista. Mas o mais importante é que,diferentemente da estratégia de interceptação de mensa-gens que já conhecemos no Echelon, onde o que se pro-cura de forma direta são conteúdos específicos associa-dos a pessoas específicas, no TIA o processo seria emprincípio indireto, pois é pelo negativo dos padrões quese intercepta um comportamento suspeito. E com a im-plantação de um tal projeto, chegamos definitivamente namodulação contínua da sociedade de controle de que nosfala Deleuze, pois deixamos de olhar para as informaçõescomo associadas a indivíduos, e sim como relacionadasentre si dentro de um quadro maior. É justamente essaamostra ou conjunto de dados que deve ser modulado.

DA IDENTIDADE AO CÓDIGO

Quando assinamos um documento, um cheque, estamosimprimindo ali nossa identidade. A assinatura, historica-mente, sempre foi o signo maior da identidade pessoal. OCPF, que é o número de registro numa massa, assegura aoindivíduo seu estatuto de existente regulamentado. Com asociedade de controle, a assinatura é posta em dúvida, deveser verificada, e o CPF é usado para checar seus movi-mentos financeiros. Mas o controle inventa ainda seuspróprios dispositivos: o código e a senha no lugar da assi-natura. A diferença é que a assinatura é produzida peloindivíduo, e o código é produzido pelo sistema, para oindivíduo: é dito intransferível, pois, dado que foi feitopor você, como sua marca própria e singular, pode serpassado a outro. É interessante notar que, enquanto noscartões de crédito, a operação de débito automático re-quer o uso de senha, a operação de crédito, pelo menospor enquanto, requer a assinatura (além do número docartão). A senha é checada na hora porque estamosacessando o sistema, ao passo que a operação de crédito érealizada apenas posteriormente. Acontece que, muitas

vezes, mesmo sem motivo aparente, sua senha é recusa-da! Não há nada a fazer, você não é mais você para aque-la operação, mesmo que continue sendo você para pagarde outra forma. Você é você para algumas coisas, e não évocê para outras... porque sua senha num sistema não foiaceita. Esse é o conceito de modulação universal de quenos fala Deleuze, onde o indivíduo passa a ser divisível,ora podendo, ora não podendo. Na verdade, a modulaçãoocorre sobre um conjunto ou grupo de códigos, o indiví-duo podendo ou não ter acesso a um serviço liberado pelosistema (overbooking, rodízio de carros, sistema pay-per-view, acesso a provedor...).

Também do ponto de vista da geografia, o código vemsubstituindo gradativamente a identidade. As noções deidentidade e corpo físico sempre estiveram associadas umaa outra. Com o advento do espaço urbano partilhado ad-ministrativo, há a emergência de um duplo do corpo: osistema numérico que nos identifica. Assim, o telefone, ocartão de crédito, o número da previdência, etc. permi-tem, cada vez mais, expandir ou restringir nossa mobili-dade no espaço físico. Hoje já temos a clareza de estar-mos vivendo sob um novo conceito: o de ser humano emrede (Boullier, 2000).

Numa sociedade disciplinar, atrelada ao espaço físico,um indivíduo era referenciado por seu endereço postal,que remetia a um lugar físico que não era mais que umponto numa rede geográfica de longa duração. Hoje, umhabitante se define como inscrito numa rede variável, ondea prova de domicílio não é mais o título de propriedadeou o pagamento de aluguel, mas a fatura de água, de ele-tricidade ou gás, de telefone, etc. É nossa inscrição nes-sas redes, nosso estatuto de consumidor de fluxos técni-cos que serve como prova jurídica de nosso pertencimentoespacial (Boullier, 2000). Somos humanamente definidoscomo membros de múltiplas redes.

As redes sociotécnicas são muitas: água, transportes,comércio, telecomunicação, telefonia, comunicação, TV,jornal, computação, web, portáteis. Estamos dentro demuitas redes simultaneamente e permanentemente. Alwayson and everywhere (Rheingold, 2002). Na cidade digital,em casa ou no trabalho, pelo fato de essas redes estareminterconectadas, podemos acessar múltiplos serviços sema necessidade de nos deslocarmos. Temos entrega de pro-dutos, pagamentos tipo homebanking, serviços públicos,trabalho e muitas outras coisas possíveis pelo fato de quea cidade está digitalizada. Por outro lado, em trânsito, te-mos acesso à cidade digital via cartões multiserviços, ter-minais eletrônicos, aparelhos portáteis. Uma nova lógica,

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portanto, está em curso, no que diz respeito aos desloca-mentos e acessos.

Não esqueçamos, no entanto, que essa ubiqüidade dosseres só é possível por causa do dinheiro eletrônico. Elerepresenta mais uma mutação do capitalismo, pois se odinheiro papel é caro e sem controle em sua circulação, odinheiro eletrônico, além de reduzir os custos, acaba ge-rando mais controle sobre os indivíduos e a circulação docapital. O papel moeda é anônimo, o dinheiro eletrôniconão. É o caso do imposto CPMF criado no Brasil, atravésdo qual é possível controlar toda a circulação financeiradigital do país.

Outro aspecto fundamental da modulação na geografiaé o monitoramento da localização de portáteis. Isso já éuma realidade para usuários de celulares ou palms. Elesfuncionam através do sistema GPS – Global PositioningSystem e de redes celulares.5 Segundo Pfeiffer (2003) “osconsumidores terão à sua disposição um conjunto detecnologias trabalhando juntas para assegurar que alguémou alguma rede sempre saiba onde você está, o que vocêestá procurando e aonde você precisa chegar”. Pense nisso,diz ele, “como um Big Brother consentido – um irmão maisvelho com bom senso de direção”. Em princípio, essalocalização funcionaria para que os usuários pudessemsolicitar serviços diversos, como o restaurante maispróximo, cinemas, estações de metrô, mapas e informaçõessobre a área em que se encontra. O serviço de emergência,911, já teria inclusive uma lei de obrigatoriedade delocalização automática, para facilitar a chegada de socorro.Mas os usuários podem também optar por recebermensagens de marketing. Com isso, estando numa áreapróxima a um certo comerciante, é possível receber umapromoção exclusiva, personalizada, pelo simples fato dousuário se encontrar próximo do ponto de venda.

Bem, se somarmos a isso todos os sistemas de vigilân-cia por câmeras, disponíveis para os departamentos detrânsito, estaremos finalmente desembarcando no mundode Minority Report, onde a grande questão não é simples-mente antecipar os crimes do futuro, mas estabelecer essamodulação contínua, no presente, de todos os comporta-mentos, com os indivíduos não sendo mais que pontoslocalizáveis numa série de redes que se entrecruzam. As-sim, só resta aos usuários controlar todo o tempo as infor-mações pessoalmente identificáveis que eles estão forne-cendo ao sistema continuamente. Como nos alerta Deleuze(1990), “diante das próximas formas de controle inces-sante em meio aberto, é possível que os mais rígidos sis-temas de clausura nos pareçam pertencer a um passadodelicioso e agrádavel”.

NOTAS

1. Pierre Lévy (2002) é um dos que mais defende essa posição, de quea transparência da web seria uma forma de resistência ao poder.

2. Michel Authier é conhecido por seus trabalhos filosóficos com PierreLévy e também por seus estudos matemáticos, sobretudo pela inven-ção do algoritmo do mecanismo de busca por proximidade chamadoUmap e das Árvores de Conhecimentos.

3. Tracking de cookie ou número IP - Internet Protocol.

4. Ver dois sites importantes para informações sobre as ações de con-trole dos EUA: <http://cryptome.org> e <http://www.epic.org/privacy/profiling/tia/>.

5. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos lançou o GPS em1978 para possibilitar o bombardeio com armas de precisão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DELEUZE, G. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

HARDT, M. La société mondiale de contrôle. In: ALLIEZ, E. (Org.).Gilles Deleuze, une vie philosophique. Paris: Synthélabo, 1998.p.359-376.

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TIA. Electronic Privacy Information Center. Disponível em:<http://www.epic.org/privacy/profiling/tia/>.

ROGÉRIO DA COSTA: Filósofo, Professor na Pós-Graduação em Comuni-cação e Semiótica da PUC-SP, Coordenador do Laboratório de Inteligên-cia Coletiva ([email protected], www.pucsp.br/linc).

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N

CONTROLE SOCIALnotas em torno de uma noção polêmica

Resumo: O artigo recupera aspectos da trajetória da noção de controle social, desde suas raízes nas discussõesclássicas de Émile Durkheim sobre a integração social, passando pela criação e utilização do termo na Socio-logia norte-americana até chegar à contraposição com as reflexões de Michel Foucault acerca do poder e naindicação da situação atual desse debate no interior do pensamento social contemporâneo.Palavras-chave: controle social; pensamento social; Michel Foucault.

Abstract: This article summarizes the history of the notion of social control, from its roots in the classicaldiscourse of Émile Durkheim on social integration to the creation and use of the term in American sociology.It also examines the juxtaposition between Michel Foucault’s reflections on power and the current state of thisdebate within the sphere of contemporary social thought.Key words: social control; social thought; Michel Foucault.

MARCOS CÉSAR ALVAREZ

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ão é uma tarefa promissora, no campo das Ciên-cias Sociais, tentar estabelecer um significadounívoco para determinados conceitos ou noções.

Em primeiro lugar, porque com freqüência conceitos ori-ginalmente elaborados no interior de uma tradição teóri-ca são depois apropriados por outras tradições e recon-figurados de tal modo que o significado original se perdee novas e inesperadas questões surgem sob a mesma de-nominação. Em segundo lugar, porque a relação entre asCiências Sociais e seu objeto é marcada por uma “herme-nêutica dupla”, pois tanto o desenvolvimento do pensa-mento social é influenciado pelas noções produzidas pe-los agentes sociais quanto as “noções cunhadas nasmetalinguagens das Ciências Sociais retornam rotineira-mente ao universo das ações onde foram inicialmente for-muladas para descrevê-lo ou explicá-lo” (Giddens,1991:24).

Diante deste quadro complexo, qualquer tentativa deencontrar o significado unívoco e original de conceitos enoções está previamente condenado ao fracasso ou aoexercício acadêmico estéril. Em contrapartida, recuperaras trajetórias das idéias ao longo dos debates realizadosno interior das disciplinas que constituem as Ciências

Sociais é, com freqüência, uma tarefa metodológica es-sencial nos momentos em que se busca avançar na produ-ção de conhecimento acerca de determinado aspecto domundo social. Ao recuperar os usos permanentementecambiantes dos conceitos, torna-se possível perceber quaisas questões que estão em jogo em determinado campo depesquisa e quais as opções teóricas e metodológicas quese escondem por trás de denominações aparentementehomogêneas.

As considerações anteriores aplicam-se perfeitamen-te à discussão do significado da noção de “controle so-cial” no pensamento social. Esta noção é com freqüên-cia utilizada pelos mais diversos autores e em contextosteóricos e metodológicos igualmente heterogêneos.1 Suautilização extrapolou mesmo o âmbito das discussões aca-dêmicas especializadas, de tal modo que não é incomumque a expressão seja empregada em debates públicosacerca de temas como da violência, do funcionamentoda justiça criminal, das políticas de segurança, etc. Aprópria vulgarização do termo parece conspirar para queseja abandonado como instrumental analítico rigoroso esubstituído por noções mais precisas. Mas para quaisquestões no interior do pensamento social aponta essa

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CONTROLE SOCIAL: NOTAS EM TORNO DE UMA NOÇÃO POLÊMICA

expressão? Em que contextos teóricos e metodológicosela tem sido utilizada? Qual sua pertinência no debateatual das Ciências Sociais? Ao buscar recuperar aspec-tos da história da noção no âmbito do pensamento so-cial,2 pretende-se neste artigo contribuir justamente paraque a avaliação teórica e metodológica das questões aíenvolvidas seja mais conseqüente, de modo a que não seproclame a morte precipitada de idéias e questões queainda possam ser atuais.

DO PROBLEMA DA INTEGRAÇÃO SOCIAL ÀNOÇÃO DE CONTROLE SOCIAL

No âmbito da Sociologia, a expressão “controle social”geralmente é caracterizada nos dicionários como circuns-crevendo uma temática relativamente autônoma de pes-quisa, voltada para o estudo do “conjunto dos recursosmateriais e simbólicos de que uma sociedade dispõe paraassegurar a conformidade do comportamento de seusmembros a um conjunto de regras e princípios prescritose sancionados” (Boudon; Bourricaud, 1993:101).3 Tal de-finição sintética, no entanto, pouco avança na caracteri-zação precisa das questões que estariam envolvidas nessadiscussão, inclusive porque a noção parece sobrepor-se aoutras, como as de poder ou de autoridade. Deste modo,mesmo nos dicionários busca-se com freqüência precisarmelhor a noção a partir de uma recuperação de sua histó-ria, cujas raízes mais remotas podem ser encontradas nasformulações clássicas de Émile Durkheim (1858-1917)acerca do problema da ordem e da integração social.

Não é novidade afirmar que a Sociologia de Durkheimprivilegia os problemas relativos à manutenção da ordemsocial. Esta preocupação está presente tanto nas formula-ções metodológicas mais gerais, como no livro As Regrasdo Método Sociológico (Durkheim, 1978), quanto emconceitos que desenham um diagnóstico acerca da socie-dade moderna, como por exemplo o conceito de “anomia”.No entanto, Durkheim se detém igualmente em fenôme-nos como o crime e a pena, que dizem respeito aos meca-nismos empregados pela sociedade no momento em quealguém desobedece as normas sociais e ameaça a ordemsocial. Se o crime “ofende certos sentimentos coletivosdotados de uma energia e de uma clareza particulares”(Durkheim, 1978:120), a pena é a reação coletiva que,embora aparentemente voltada para o criminoso, visa narealidade reforçar a solidariedade social entre os demaismembros da sociedade e, conseqüentemente, garantir a in-tegração social.4

Nestas e em outras reflexões, já se percebe queDurkheim aponta tanto para os mecanismos gerais demanutenção da ordem social quanto para fenômenos ouinstituições específicas que buscam fortalecer a integra-ção e reafirmar a ordem social quando esta se encontraameaçada. Mas a unidade de análise nas discussões deDurkheim e de outros autores do século XIX era o con-junto da sociedade, e o problema principal consistia, demodo mais geral, em como estabelecer um grau necessá-rio de organização e de regulação da sociedade de acordocom determinados princípios morais, mas sem o empregoexcessivo da pura coerção (Cohen; Scull, 1985:5). Maisespecificamente, as reflexões do próprio Durkheim, porsua vez, inscreviam-se no contexto histórico da constru-ção da Terceira República, que buscava justamenterearticular um consenso na sociedade francesa num pe-ríodo social e politicamente bastante conturbado (Ortiz,1989).

Se as reflexões de Durkheim antecipam as questõesrelativas ao controle social, a expressão propriamente ditaserá cunhada e posteriormente desenvolvida pela Socio-logia norte-americana, sobretudo no século XX. Em au-tores como George Herbert Mead (1863-1931) e EdwardAlsworth Ross (1866-1951) – que geralmente é indicadocomo o primeiro a utilizar a expressão em inglês paradefinir um campo específico de estudos (Lapiere, 1954;Chunn; Gavigan, 1988) –, o termo passa a ser utilizadopara apreender sobretudo os mecanismos de cooperaçãoe de coesão voluntária da sociedade norte-americana(Rothman, 1981). Ao invés de pensar a ordem social comoregulada pelo Estado, os pioneiros do tema na Sociologianorte-americana estavam mais interessados em encontrarna própria sociedade as raízes da coesão social. O acentoconservador desta perspectiva – e que também já estavapresente nas idéias de Durkheim – torna-se evidente: de-sejava-se entender muito mais as raízes da ordem e da har-monia social do que as condições da transformação e damudança social. Apesar da continuidade, a análise deslo-ca-se mais para o plano das questões “micro” do que“macrossociológicas”, ao prevalecer a perspectiva – querem termos funcionalistas, quer em termos interacionistas– da psicologia social que permanece dominante nos anosseguintes na assim chamada Escola de Chicago.

Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, aexpressão começa a apontar para uma direção oposta.Sobretudo estudos no campo da Sociologia e da Históriado crime e do desvio recuperam, por um lado, questõesmacrossociológicas, como a da relação do Estado com os

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mecanismos de controle social. Por outro lado, a coesãosocial não será mais vista como resultado da solidariedadee da integração social, mas sim como resultado de práticasde dominação organizadas pelo Estado ou pelas “classesdominantes”. Será esta orientação negativa da temática docontrole social que ganhará cada vez mais importânciatanto na Sociologia quanto na História5 a partir dos anos60 do século XX, ao voltar-se para pesquisas empíricassobre prisões, asilos, hospitais, etc. Uma história “revisio-nista” das práticas penais, por exemplo, inverte o sentidodas mudanças ocorridas nesse campo desde a emergênciada modernidade, que não serão mais vistas como ineren-temente progressistas, mas sim como constitutivas de novasformas de manutenção da ordem social. Nesta novaperspectiva, entrecruzam-se novamente tanto autores delíngua inglesa quanto autores franceses – como EdwardPalmer Thompson (1924-1993) e Michel Foucault (1926-1984) – e distintas tradições teóricas, tais como as domarxismo e do pós-estruturalismo.

Sem dúvida, essa perspectiva mais crítica acerca dosmecanismos de controle social presentes na sociedademoderna estimulará um rico conjunto de trabalhos volta-dos tanto para as instituições diretamente envolvidas coma questão do desvio, do crime e da criminalidade – polí-cia, justiça criminal, prisão – quanto para aquelas só indi-retamente envolvidas com o problema – hospital, asilo,escola, família, etc. A partir dos anos 80 do século XX,no entanto, também essa abordagem revisionista dos me-canismos de controle social sofre um novo conjunto decríticas. Na verdade, a mudança da valorização do pro-blema ao longo do século XX – ou seja, que a temática docontrole social deveria ser vista em termos de dominaçãoe não de cooperação – não alterou o núcleo original dadiscussão, que permaneceu quase sempre dependente datradição inaugurada por Durkheim, que consiste em pen-sar as instituições sociais a partir de uma concepção rela-tivamente unificada da sociedade, ou seja, tendo aindacomo pano de fundo a questão da integração social(Castell, 1988).

De forma paradoxal, portanto, ao longo das discussõesem torno da noção de controle social desde o final do sé-culo XIX até o final do século XX, a teoria social pareceter se limitado, neste aspecto, a simplesmente inverter ospólos de uma mesma equação – a onipresença de uma in-tegração social que garantiria a ordem social para alémde todos os conflitos da modernidade foi simplesmentesubstituída pela onipresença de uma dominação que sub-meteria qualquer forma de resistência – ou a reproduzir,

por caminhos curiosamente tortuosos, uma vulgata do diag-nóstico de Max Weber (1864-1920) acerca do processode racionalização da modernidade como desenvolvimen-to incontornável da “férrea prisão”.6

Assim, já no final do século XX a noção encontraráamplo descrédito. Por exemplo, Cohen (1989), ao reali-zar um dos muitos balanços críticos sobre a temática, apon-ta que mesmo a abordagem revisionista do controle so-cial acabou por tomá-lo como uma força nefasta ecoerentemente organizada, que faz total tábula rasa da-queles que estão submetidos a seu controle, privilegian-do-se também o papel do Estado e das práticas formaliza-das de controle social em detrimento das práticas“informais”, mais próximas dos grupos sociais específi-cos. Ainda segundo Cohen, a noção só voltaria a ser útilcaso, entre outros aspectos, fosse capaz de:- indicar a que práticas sociais específicas corresponde;- recuperar as diferentes respostas dos agentes submeti-dos aos mecanismos de controle;- mostrar que essas práticas podem ser produtivas e nãoapenas repressivas, já que podem produzir comportamen-tos em indivíduos e grupos sociais e não somente restrin-gir e controlar as ações;- evitar a dicotomia Estado/sociedade e pensar as práticasde controle social constituindo-se na relação entre as di-versas dimensões institucionais da modernidade;- não cair numa visão por demais finalista da racionalida-de dos mecanismos de controle social.

Essa parece ser a situação atual das pesquisas desen-volvidas sob o rótulo da expressão controle social: deve-se ultrapassar uma visão por demais instrumentalista efuncionalista do controle social como uma misteriosa ra-cionalidade voltada para a manutenção da ordem social ebuscar, em contrapartida, formas mais multidimensionaisde pensar o problema, capazes de dar conta dos comple-xos mecanismos que não propriamente controlam massobretudo produzem comportamentos considerados ade-quados ou inadequados com relação a determinadas nor-mas e instituições sociais.

Analisar de modo mais aprofundado o pensamento deum dos autores que mais influenciou esses debates recen-tes em torno da temática do controle social – MichelFoucault – pode ajudar a perceber melhor o que se encon-tra atualmente em jogo nessa discussão. Acima de tudoporque, embora tenha sido tomado por diversas vezes comoautor por excelência dos estudos sobre os mecanismos decontrole social na modernidade, Foucault na verdade nãoutiliza essa expressão de modo significativo, mas busca

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uma perspectiva mais complexa, que visa justamente pen-sar as práticas de poder – que não se reduzem às formasinstrumentais e funcionais de controle social (Lacombe,1996) – como produtoras de comportamentos, de formasde saber e de formas de subjetividade.

CONTROLE SOCIAL OU PRÁTICAS DE PODER?

Como já foi mencionado, Michel Foucault foi um au-tor de fundamental importância para a construção de no-vas formas críticas de pensar a questão do controle so-cial no âmbito do pensamento social contemporâneo.Desde o início dos anos 60, em trabalhos como Históriada Loucura, os estudos de Foucault já se voltavam, emgrande medida, para as práticas e instituições sociais que,na aurora da modernidade, configuraram novos espaçosde exclusão ou de normalização de determinadas formasde comportamento e de subjetividade. Ao estudar a for-mação de saberes como a psiquiatria, a clínica moderna,as Ciências Humanas e seus respectivos âmbitos institu-cionais, Foucault perseguia justamente aspectos da vidasocial que o processo de racionalização da modernidadeou excluía ou tomava como desvios a serem norma-lizados. Mas é sobretudo no assim chamado segundomomento de sua trajetória, nos estudos convencionalmen-te circunscritos ao que Foucault chamará de “genealogiado poder”, que a vizinhança de suas pesquisas com astemáticas reunidas em torno da noção de controle socialtorna-se mais evidente. Sem nenhuma dúvida, a obradessa fase que terá maior impacto no âmbito do pensa-mento social contemporâneo será Vigiar e Punir, publi-cada em 1975.

Embora Foucault admita em Vigiar e Punir seu débitopara com o estudo pioneiro de orientação marxista elabo-rado por Rusche e Kirchheimer – Punishment and socialstructure, publicado em 1939 –, sua análise acerca do sen-tido da punição na modernidade irá desconstruir tanto aconcepção liberal, que vê no nascimento da prisão mo-derna um avanço em termos de humanização das práticaspenais em relação às formas brutais de punição da era pré-moderna, quanto à concepção marxista, que vê as trans-formações nas penalidades apenas como um mero epi-fenômeno do modo de produção (Lacombe, 1996). Emcontrapartida, ao abordar as práticas de punição como “tec-nologias de poder” complexamente articuladas às demaispráticas sociais, Foucault abre espaço para interpretaçõesmais multidimensionais acerca das transformações dapunição na sociedade moderna.

Em virtude desta perspectiva, Foucault, ao analisar aspráticas punitivas na modernidade, não partirá nem dasteorias penais existentes no período, nem apenas da for-ma estatal dominante, nem mesmo de uma genérica domi-nação de classe, mas sim da instituição que melhorcorporifica a tecnologia de poder específica da moderni-dade: essa instituição é a prisão e a tecnologia de poderque aí tão bem se aplica é a disciplina.

Assim, em Vigiar e Punir, Michel Foucault estuda astransformações das práticas penais na França, da ÉpocaClássica ao século XIX. E no interior destas transforma-ções, um problema se destaca: o papel central que a pri-são passa a desempenhar na penalidade moderna. O autorpergunta por que a prisão se tornou a pena por excelên-cia, pena esta não mais voltada para o suplício ou o casti-go simbólico e exemplar, mas sim para a disciplina docorpo e da “alma” do detento. Na verdade, a análise pro-cura mostrar que as práticas disciplinares próprias da pri-são têm um alcance que irá muito além dos muros da ins-tituição, ao constituírem tecnologias de poder que, partindodas práticas prisionais, espalham-se por toda a socieda-de, em instituições como fábricas, hospitais, escolas, etc.

Ao contrapor o suplício – pena utilizada no AntigoRegime – e a prisão moderna, com sua rígida organizaçãodo tempo e distribuição dos corpos, Foucault busca argu-mentar que ambos definem diferentes estilos penais, pró-prios de cada período. A análise se voltará, deste modo,para a especificidade destes diferentes estilos penais. Aspráticas do suplício, longe de serem apenas atos selva-gens, revelam uma lógica específica: o suplício é, ao mes-mo tempo, um procedimento técnico e um ritual. Comoprocedimento técnico, o suplício pretende produzir umaquantidade de sofrimento que possa ser apreciada, com-parada, hierarquizada, modulada de acordo com o crimecometido. Como ritual, visa marcar o corpo da vítima,tornar infame o criminoso, ao mesmo tempo em que estaviolência que marca é ostensiva, caracterizada pela de-monstração excessiva do poder daquele que pune, pois nosuplício o que está em jogo é o poder do soberano.

Em contrapartida, as disciplinas são novas técnicas decontrole minucioso das operações do corpo, que realizama sujeição constante de suas forças e lhes impõem umarelação de docilidade-utilidade. As práticas disciplinarescaracterizam-se por distribuir os indivíduos em espaçosfechados e heterogêneos, onde cada indivíduo tem um lugarespecificado, ao desempenhar também aí uma função útil.Estes locais são ainda intercambiáveis e hierarquizados.Em termos espaciais, portanto, cada indivíduo ocupa um

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lugar ao mesmo tempo funcional e hierarquizado, forman-do um quadro espacial onde se distribui a multiplicidadede indivíduos para deles tirar o maior número de efeitospossíveis. As disciplinas implicam também um controledas atividades dos indivíduos, estritamente coordenadasem relação aos horários, ao conjunto dos demais movi-mentos corporais e aos objetos a serem manipulados, aobuscar obter assim uma utilização crescente de todas ati-vidades ao longo do tempo. Distribuídos espacialmente econtrolados temporalmente os indivíduos, as disciplinasainda os combinam de modo a obter um funcionamentoeficiente do conjunto através da composição das forçasindividuais.

O novo poder disciplinar será, deste modo, um podervoltado para o “adestramento” dos indivíduos. E, para isso,esse poder utilizará alguns mecanismos simples: o olharhierárquico, a sanção normalizadora e o exame. A vigi-lância hierárquica induz, através do olhar, efeitos de po-der: o indivíduo adestrado deve se sentir permanentementevigiado. A sanção normalizadora implica toda umamicropenalidade do tempo, da atividade, da maneira deser, do corpo, da sexualidade visando os comportamentosdesviantes. O exame, por fim, indica uma técnica de con-trole normalizante que permite qualificar, classificar epunir ininterruptamente os indivíduos que são alvos dopoder disciplinar.

Ao definir as práticas como tecnologias de poder, porsua vez, Foucault mostrará que são aplicáveis não apenasno interior do sistema penal, mas igualmente em contex-tos os mais diversos: tanto em instituições especializadas(penitenciárias, escolas, hospitais) quanto em instituiçõesde “socialização” (como a família), etc. Foucault esclare-ce ainda que uma série de processos históricos mais am-plos estão articulados de maneira complexa à emergênciadas disciplinas a partir do século XVIII: explosão demo-gráfica, crescimento do aparelho de produção, mudançasnas estruturas jurídico-políticas da sociedade, etc. Mastanto o poder disciplinar não é mero reflexo desses pro-cessos como também é a partir de sua caracterização queé possível perceber certa coerência nas muitas transfor-mações que ocorreram no período.

Deste modo, a forma-prisão, que pré-existia ao processode generalização das disciplinas e que nem ao menos eraa forma básica de penalidade no Antigo Regime, tornar-se-á peça-chave das novas práticas penais, ao colonizaras instituições judiciárias já no princípio do século XIX eao relegar ao esquecimento outros tipos de punições. Comisso, compreende-se também a “naturalidade” da pena

prisão, que se torna rapidamente hegemônica e de certomodo incontestável, já que Foucault mostra que as críticasàs práticas prisionais modernas são contemporâneas de suaprópria ascensão, mas que nunca colocam em causa aprópria existência da prisão como a pena por excelência.De acordo com Foucault, se a prisão permanece é porqueapesar das críticas que lhe são dirigidas desde o início (nãodiminui a taxa de criminalidade, provoca a reincidência,fabrica delinqüentes), ela desempenha funções importantesna manutenção das relações de poder na sociedademoderna – na verdade, a principal função desempenhadapela prisão é que ela permite gerir as ilegalidades dasclasses dominadas, criando um meio delinqüente fechado,separado e útil em termos políticos. Muito simpli-ficadamente, a prisão transformaria a criminalidade emuma das engrenagens essenciais da maquinaria de poderdisciplinar que permearia a sociedade moderna. Interligadaa toda a série de outras instituições disciplinares além dasfronteiras do direito penal, toda uma rede carcerária sutilenvolveria o corpo social, suporte do tipo de poder própriodo mundo moderno, poder produtivo e múltiplo, imanenteàs práticas sociais da sociedade disciplinar.

O estudo realizado por Foucault em Vigiar e Punir teveum enorme impacto no campo de análise das práticas depunição e das políticas criminais, tornando-se paulatina-mente, como já foi dito, um paradigma de abordagem al-ternativo em relação às concepções mais ortodoxas doLiberalismo e do Marxismo. Tanto as formas de puniçãoserão analisadas, de modo até então inédito, como verda-deiras tecnologias em ação quanto à relação destas tecno-logias com o conjunto da sociedade mostrar-se-á muitomais complexa do que em outros tipos de análise. E, mui-to mais além, a partir de seus trabalhos, um olhar nuançadopermitirá perceber como as práticas penais têm um alcan-ce que ultrapassa o campo da lei e do Estado, ao consti-tuírem formas de regulação dos comportamentos, de pro-dução de conhecimento e de formas de subjetividade namodernidade.

No entanto, a vulgarização das idéias de Foucault tantopelos críticos quanto por muito seguidores acabou porreinscrever a análise do poder disciplinar a um registropuramente funcionalista (Lacombe, 1996). A “perspectivado poder” (Garland, 1993), tão ricamente empregada porFoucault, torna-se, deste modo, apenas mais uma novaversão do diagnóstico unidimensional acerca do avançoirresistível das formas de controle social da modernidade.

Foucault buscou, entretanto, contornar esse equívocoao enfatizar, por diversas vezes, que sua análise implica-

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va uma postura metodológica que se afastava das formastradicionais de pensar o poder e o controle social. No pri-meiro volume de sua História da Sexualidade, publicadaposteriormente a Vigiar e Punir, Foucault explicita asproposições metodológicas necessárias para analisar osmecanismos na sociedade. Em primeiro lugar, o poder nãoé algo que se adquira ou detenha, mas algo que se exerceem contextos sempre cambiantes. Em segundo lugar, opoder não se encontra em posição de exterioridade a ou-tros tipos de relações, mas é imanente às relações econô-micas, de conhecimento, sexuais, etc. Ou seja, o poder nãoé superestrutura, mas possui um papel produtor. Tambémas relações de poder não podem ser reduzidas a uma opo-sição binária entre dominadores e dominados pois sãomuito mais heterogêneas, convergências sempre provisó-rias produzidas pelos muitos enfrentamentos locais. Aomesmo tempo que intencionais, as relações de poder nãosão subjetivas, ou seja, embora o poder se exerça por meiode uma série de miras e objetivos, não resulta da escolhade um sujeito individual ou coletivo. Finalmente, “lá ondehá poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por issomesmo), esta nunca se encontra em posição de exterio-ridade em relação ao poder” (Foucault, 1999:91).

Na verdade, essa mudança de perspectiva proposta porFoucault é necessária pois as formas de poder e controlesocial da modernidade são efetivamente muito mais pro-dutivas, multidimensionais e complexas que as formasanteriores. Longe do modelo da lei soberana, que se ba-seava no direito de morte ou de deixar viver, as práticasde poder na modernidade caminham na direção de formasde poder que buscam gerir a vida, “poder destinado a pro-duzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do quea barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” (Foucault, 1977:128).Ao desenvolver novas noções, como a de biopoder – “po-der que se exerce, positivamente, sobre a vida, que em-preende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação”(Foucault, 1999:129) – e ao enfatizar, em seus últimosescritos, o problema da subjetividade, Foucault mostrou-se coerente na busca de alternativas teóricas e metodoló-gicas capazes de dar conta das complexas inter-relaçõesentre práticas de poder, de saber e de subjetivação na so-ciedade moderna.

Deste modo, a partir das discussões travadas porFoucault em Vigiar e Punir, mas também nos estudosposteriores sobre temáticas como as do biopoder ou dagovernamentalidade, fica evidente que a noção de poderem Foucault não pode ser reduzida nem a um simples diag-nóstico da intensificação do controle social nem a uma

visão do poder como unidimensionalmente repressivo pois,embora o poder produza certamente controle, ele produzigualmente outras coisas (Lacombe, 1996:337). Ao enfa-tizar o poder como rede de relações de força, como meca-nismo que tanto obriga quanto habilita para a ação, aocolocar igualmente a resistência no cerne das práticas depoder, ao negar que os efeitos do poder sejam unifor-mizadores ou unitários, Foucault distancia-se das tesessimplistas acerca da intensificação crescente do controlesocial (Lacombe, 1996:342).

A partir de uma leitura mais rigorosa de seus trabalhos,portanto, torna-se possível perceber como as reflexões epesquisas empreendidas por Foucault podem fornecer saí-das aos impasses anteriormente diagnosticados no campode estudos recoberto pela noção de controle social.7 Ofuturo das pesquisas neste campo de estudos depende dareavaliação dos trabalhos deste autor e de uma série deoutros que atualmente trilham os caminhos abertos pelosdebates até aqui recuperados. Alguns destes autores eperspectivas serão mencionados a seguir.

UM BALANÇO PROVISÓRIO

A partir do que foi discutido até aqui, pode-se especularque a noção de controle social parece assemelhar-se maisa uma espécie de andaime – que permite o acesso a umlugar determinado mas que depois é descartado quandonovas fundações já estão construídas – do que a umverdadeiro conceito analítico. Mas, sem nenhuma dúvida,as questões levantadas pela polêmica em torno dautilização da noção apontam para discussões que perma-necem atuais no interior do pensamento social con-temporâneo.

Assim, a despeito da precariedade analítica da noção,muitos pesquisadores contemporâneos buscam desenvol-ver as questões abertas pelos debates em torno das suaspossibilidades e insuficiências. Permanece, deste modo,a discussão sobre os mecanismos mais gerais de regula-ção e controle dos comportamentos na sociedade contem-porânea.

Anthony Giddens, por exemplo, chama a atenção paraos mecanismos de vigilância como uma das principaisdimensões institucionais da modernidade. Para esse au-tor, a concentração administrativa que caracteriza os es-tados modernos em geral depende do desenvolvimento decondições de vigilância voltadas para a supervisão dasatividades da população súdita, quer por meio da super-visão direta – em instituições como as prisões, as escolas,

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os locais de trabalho, etc. – quer por meio indireto, sobre-tudo a partir do controle da informação (Giddens,1991:63).

Gilles Deleuze, por sua vez, apontava para uma ruptu-ra dos mecanismos de regulação dos comportamentos naatualidade, ao considerar que as sociedades contemporâ-neas não seriam mais “sociedades disciplinares”, tal comopensadas por Foucault, mas sim “sociedades de contro-le”, nas quais os mecanismos de confinamento estariamsendo substituídos por novas tecnologias eletrônicas einformacionais de supervisão e controle dos indivíduos edas populações (Deleuze, 1992).8

Já o filósofo italiano Giorgio Agamben (2002) buscaexplicar essas transformações da sociedade contemporâ-nea a partir de outra noção desenvolvida por Foucault, anoção de biopoder. Para Agamben, o que caracteriza opoder soberano no Ocidente é a politização crescente da“vida nua”, da vida natural ou biológica tanto do corpoindividual quanto da própria espécie. O poder estatal di-rige-se cada vez mais ao gerenciamento da vida em todosos seus aspectos, intensificando assim seu aspecto “pro-dutivo”, já enfatizado anteriormente por Foucault.

Algumas discussões ensaiam mesmo explicar a própriacrise da noção de controle social a partir das transforma-ções nas formas de regulação social ocorridas entre o fi-nal do século XX e início do XXI. Robert Castel, por exem-plo, já identificava na crise da noção de controle social osintoma de uma crise mais geral das correntes da Sociolo-gia que desde Durkheim pensaram o problema da integra-ção social. Para Castel, o próprio social, como conjuntode dispositivos assistenciais voltados para restabelecer umacerta solidariedade entre os diferentes grupos da socieda-de moderna, e o Estado Providência a ele associado é queestariam efetivamente em crise. A mudança de valoriza-ção pela qual passou a noção de controle social no finaldo século XX – do papel positivo em termos de integra-ção social para o papel negativo em termos de dominação– mostraria justamente a avaliação crítica crescente doscustos dos dispositivos montados pelo Estado Providên-cia. Outros autores contemporâneos têm seguido, por ca-minhos diversos, a direção dessas reflexões ao discutirem,mais especificamente, as mudanças nas políticas criminaise de segurança na modernidade tardia, na qual estaria ocor-rendo a substituição do projeto de um Estado Social peloprojeto de um Estado Penal (Garland, 2001; Wacquant,2002a e 2002b, Christie, 1999).

No Brasil, um balanço mais aprofundado das dis-cussões relativas ao controle social, tal como desenvol-

vido até aqui, ainda está por ser feito. É possível apontar,no entanto, que as concepções críticas acerca do problemado controle social – influenciadas por Foucault, mas nãosomente – penetram nos debates do pensamento socialno Brasil já no final dos anos 70 do século XX. Porexemplo, diversas pesquisas históricas voltaram-se parao período específico da Primeira República como ummomento privilegiado para o estudo da emergência deestratégias de controle social dirigidas à classe operáriaou à população pobre em geral, sobretudo nos dois maisdestacados centros urbanos do período, Rio de Janeiro eSão Paulo. Surgiram, assim, trabalhos sobre o controlesocial dos trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro e SãoPaulo no período (Chalhoub, 1986; Rago, 1985), arespeito da regulação dos padrões femininos de conduta(Soihet, 1989), sobre o tratamento jurídico e institucionalda infância pobre (Alvarez, 1989; Londoño, 1991), acercada institucionalização da doença mental (Cunha, 1986;Barbosa, 1992), sobre a organização e controle dosespaços urbanos e da pobreza urbana (Sevcenko, 1984;Adorno, 1990; Adorno; Castro, 1987; Schindler, 1992),entre muitos outros.

Se essas abordagens inovaram ao desvelar novos cam-pos de pesquisa, seus desdobramentos apontaram paraobstáculos metodológicos idênticos ao já discutidos comrespeito à vulgarização da noção de controle social nadiscussão internacional. Assim, percebeu-se que a ênfaseexagerada no caráter unidirecional das práticas de con-trole social impedia que fossem analisadas as formas pormeio das quais aqueles que eram sujeitados por essas prá-ticas resistiam, negociavam ou mesmo compactuavam comelas. Trabalhos mais sensíveis a esses problemas metodo-lógicos passaram a buscar a outra face destas transforma-ções, ou seja, as formas como os diversos gruposassujeitados se posicionavam diante dos códigos de com-portamento impostos pelas elites dominantes, como ostrabalhos de Esteves (1989), em que a autora confrontouo discurso jurídico e o cotidiano das relações amorosasno Rio de Janeiro da Belle Époque, e o trabalho de Rago(1991), no qual foi estudado o modo como as prostitutasse constituíram como sujeitos morais diante dos discur-sos disciplinadores da Medicina e do Direito na cidade deSão Paulo entre os anos de 1890 e 1930. Ainda permane-ce aberto um vasto campo de pesquisa sócio-históricaenvolvendo as complexas relações entre estratégias decontrole social das elites, modos de vida das populaçõespobres, campos de saber voltados para o estudo da crimi-nalidade e do desvio,9 etc.

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Também devem ser destacados os inúmeros estudos10

realizados no campo das Ciências Sociais que, voltadospara o sistema penal no Brasil, analisam criticamente seufuncionamento nos mais diversos âmbitos – polícia, justi-ça criminal, prisões, políticas de segurança pública, etc. –o que mostra ser esse um campo igualmente promissor depesquisa.11

NOTAS

1. Como afirmam Chunn e Gavigan (1988:149), num balanço críticosobre o tema, a noção de controle social tem sido utilizada de maneirafreqüentemente acrítica tanto por funcionalistas quanto por intera-cionistas, tanto por marxistas quanto por não-marxistas.

2. Dada a diversidade de usos da expressão pelos mais diversos auto-res no interior do pensamento social, é praticamente impossível reali-zar uma revisão detalhada dos inúmeros trabalhos que a empregaram.Por isso, reconstruímos apenas parte do contexto de utilização da no-ção, ao tomar por base uma série de balanços sobre o tema publicadosnos últimos anos, sobretudo os de Rothman (1981), Cohen e Scull(1985), Castel (1988), Chunn e Gavigan (1988), Cohen (1989),Lacombe (1996), Lianos (2003).

3. Outra definição: “esse conceito descreve a capacidade da sociedadede se auto-regular, bem como os meios que ela utiliza para induzir asubmissão a seus próprios padrões” (Zedner, 1996:138).

4. Para uma análise mais aprofundada do pensamento de Durkheim noâmbito da Sociologia da punição, consultar Garland (1990).

5. Para uma exposição mais específica das discussões críticas aqui apre-sentadas no campo da História, consultar Ignatieff (1987) e Cohen eScull (1985).

6. Na verdade, em Weber o processo de racionalização que caracte-riza a modernidade não se confunde de modo nenhum com a expan-são de um controle social que, a partir de um centro, dominaria todaa sociedade. Ao contrário, a racionalização seria muito mais umalógica das ações sociais na modernidade que, ao paulatinamente pre-sidir os mais diversos âmbitos da experiência, levaria à autonomia eà tensão crescente entre as diversas esferas da vida social. Sua análi-se das disciplinas, por sua vez, está muito mais próxima das discus-sões feitas por Michel Foucault, que veremos mais adiante, o quetem levado alguns comentadores a aproximá-los no que diz respeitoà análise das transformações da punição na modernidade (Garland,1990).

7. Mesmo um autor como David Garland, que valoriza a contribuiçãodada pela perspectiva do poder no âmbito da Sociologia da punição,atribui a Foucault uma concepção por demais instrumental e funcio-nalista, a partir da qual as práticas penais apareceriam exclusivamentecomo formas de controle social, uma vez que ao identificar punição epoder Foucault perderia de vista, ainda segundo Garland, outras di-mensões das práticas penais já exploradas anteriormente por autorescomo Durkheim. A crítica de Garland, no entanto, baseia-se igualmentena idéia de que Foucault pensaria o poder exclusivamente como formade controle e administração dos corpos individuais, posição essa difi-cilmente defensável já que, como foi visto, o próprio Foucault por di-versas vezes enfatizará a necessidade de uma concepção mais multidi-mensional do poder e, sobretudo nos seus últimos trabalhos, colocaráem relevo as práticas de subjetivação como indissociáveis da temáticamais vulgarizada acerca da relação poder-saber. Ironicamente, Matthews(2002) faz uma crítica similar ao último trabalho do próprio Garland(2001), ao afirmar que o diagnóstico que este realiza a respeito dastransformações da natureza do controle do crime na modernidade tar-

dia permaneceria por demais unidirecional, ao apontar exclusivamen-te para um crescimento contínuo e mais restritivo das formas de regu-lação dos comportamentos na atualidade.

8. Para uma interessante discussão acerca das tendências contemporâ-neas nos campos da segurança pública e da polícia, inspirada na idéiade “sociedade de controle”, consultar Souza (2000).

9. Entre outros exemplos, a história da Criminologia no Brasil e desua influência no estabelecimento de estratégias de controle social temsido explorada em alguns trabalhos, como os de Corrêa (1998), Carrara(1998) e Alvarez (2003).

10. A produção neste campo já é consideravelmente vasta no Brasil enão haveria espaço para uma discussão mais detalhada a esse respeitoainda neste artigo. As resenhas bibliográficas realizadas por Adorno(1993), Zaluar (1999) e Misse et al. (2000) fornecem boas caracteri-zações dos atuais desafios teóricos e metodológicos deste campo depesquisa.

11. Agradeço a Fernando Salla e a Luis Antônio Francisco de Souzapelas sugestões dadas durante a elaboração deste texto.

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MARCOS CÉSAR ALVAREZ: Professor da Unesp, campus de Marília, Pes-quisador colaborador junto ao Núcleo de Estudos da Violência da USP([email protected]).