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    Sntese, Belo Horizonte, v. 26, n. 85, 1999 205

    SNTESE - REV. DE FILOSOFIAV. 26 N. 85 (1999): 205-237

    AAAAA QUESTOQUESTOQUESTOQUESTOQUESTO DODODODODO SUJEITOSUJEITOSUJEITOSUJEITOSUJEITOEMEMEMEMEM PAULPAULPAULPAULPAUL RICOEURRICOEURRICOEURRICOEURRICOEUR

    Edgar Antonio Piva

    Resumo: A questo do sujeito em Paul Ricoeur. Neste artigo explicitamos os traosfundamentais da antropologia do sujei to em P. Ricoeur, sua estrutura reflexiva e suas

    mediaes interpessoais e institucionais. No pretendemos reconstruir sistemtica e

    historicamente a problemtica da subjetividade presente na vastssima obra de Ricoeur,

    mas apenas abordar a questo do sujeito no ltimo Ricoeur, especialmente a partir da

    sua ltima grande obra, Soi-mme comme un autre,na qual o problema central o da

    identidade pessoal do sujeito.Palavras-chave: subjetividade, intersubjetividade, tica, poltica, ontologia.

    Abstract:The Question on subject in Paul Ricoeur. In this article we explain the mainlines of the subjects anthropology in P. Ricoeur, its reflexive structure and its

    interpersonal and institutional mediations. We didnt intend to reconstruct systematic

    and historically the problem of the present subjectivity in the vast work of Ricoeur, but

    just to approach the question on subject in last Ricoeur, especially starting from its last

    great work, Soi-mme comme un autre, in which the central problem is it of the

    subjects personal identity.

    Key word s: subjectivity, intersubjectivity, ethics, politics, ontology.

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    A problemtica da subjetividade no uma problemtica tardiaem Ricoeur. Nas dcadas de 60 e 70, Ricoeur enfrentara estaquesto na p olmica com a p sicanlise e o estrutu ralismo1. Jnas dcadas de 80 e 90, ele se confronta com a filosofia analtica.

    I. A constituio do homem capaz ou

    sujeito prt ico

    O sujeito corresponde a um movimento do si, pronome reflexivo detodos os p ronom es gramaticais, pessoais e impessoais, que p ercorren-do seus atos, experincias e objetivaes capaz de se retomar refle-xivamente, de se aprop riar de sua iden tidade. Mas este movimento do

    si seria incompleto sem uma considerao da intersubjetividade e dapoltica. Ricoeur reafirma sua confiana no sujeito, na sua capacidadede agir, razovel e responsavelmente.

    O pensamento de Ricoeur desenvolve-se no horizonte de uma teoriado sujeito, de um a reflexo sobre a p essoa como sujeito capaz, d o-tado de capacidades, potencialidades e disposies cuja realizao spode ser alcanad a no nvel intersubjetivo e institucional. Ao contrr ioda filosofia analtica e de outras correntes filosficas contemporneas,ele v a necessidade de restaurar o sentido de um discurso sobre osujeito no interior do discurso filosfico. Em Soi-mme comme unautre 2 ele prefere chamar a p roblemtica d a subjetividade de ipseidad e(ipse) para marcar distncia em relao s filosofias do cogito ou dosujeito. Seu ponto de partida no o Eu da 1a. pessoa (eu penso, eusou), mas o Si, reflexivo de todas as pessoas 3.

    A questo do sujeito, distinto do eu (ego) e da conscincia, decisivapara o camp o tanto d a poltica como da tica. Se no temos a idia queum sujeito de direito , ao mesmo temp o, um sujeito por si mesmo,

    um sujeito capaz, e um sujeito poltico, como podemos sustentar edefender uma poltica dos direitos do homem?4. Os direitos do

    1 P. RICOEUR, A questo do sujeito: o desafio da semiologia, in ID., Conflito dasinterpretaes: ensaios de hermenutica, Rio de Janeiro: Imago, 1978, 199-223.2 Ao longo deste artigo, a referncia a esta obra bsica ser abreviada pela indica-o do ano de sua publicao, isto , 1990, seguida do nmero da pgina.3 Ricoeur no usa o pronome eu, que tem somente funo de sujeito da proposio,mas o reflexivo si, que pode ser usado tambm na terceira pessoa e pode portantoser aplicado ao sujeito, seja na sua unicidade irrepetvel (ipse), seja enquanto

    marcado por caracteres objetivos, identificveis como um mesmo (idem).4 Un philosophe au-dessus de tout soupon (un entretien avec Paul Ricoeur), Le Nouvel Observateur, 11 au 17 mars 1983.

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    homem, isto , os direitos ligados ao homem enquanto tal, e noenquanto mem bro de uma comu nidad e poltica, concebida como fontede direitos positivos, precedem o Estado, embora este sujeito somentese torna um sujeito real de direitos na medida em que passa pelamediao interpessoal e institucional. Eliminar os sujeitos eliminar opoltico, reduzi-lo s ideologias totalitrias ou tecnocrticas quequerem determinar, de forma cientfica, o bem poltico, eliminand o asubjetividade, o julgamento poltico dos cidados. A subjetividade voltaento sob uma forma patolgica: culto personalidade, demagogia,etc.

    No p lano tico-moral, necessrio admitir, contra Lvinas, uma sub-jetividade capaz de iniciativa e de responder interpelao vinda dooutro . Se no h na subjetividade uma capacidade de iniciativa,como responder Eis-me aqui? 5. Esta capacidade de iniciativa e de

    acolher a injun o vind a do outro fruto d a capacidade do su jeito deautodesignar-se, fruto de sua estrutura reflexiva, de sua capacidadede se retomar a partir de suas objetivaes lingsticas, prticas, his-tricas e tico-polticas. Se na ordem tica a primazia dada inici-ativa do outro que me convoca responsabil idade, na ordemepistemolgica, na ordem da compreenso, a primazia do sujeitoreflexivo. Mas, aproximando-se de Lvinas para quem o sujeito refm do outro, pura passividade, Ricoeur no pensa o sujeito comopura atividade, pura capacidade de iniciativa. O sujeito marcadotambm, como veremos mais ad iante , por exper incias dedespojamento, de passividade e de alteridade.

    1. A estrutura dialtica da identidade do sujeito

    A reflexo filosfico-hermenutica sobre a ipseidade responde no n-vel conceptual aos traos lingstico-gramaticais da ipseidade, do si-mesmo, a saber: pr imeiro, o si designa o reflexivo d e todos os p rono-mes pessoais e impessoais6; segundo, o mesmo tem a dupla signifi-

    cao de idem (uso comparativo do mesmo no sentido de idntico,

    5 A quoi pensent les philosophes? (entretien avec P. Ricoeur). Revue Autrement,nov. 1988.6 Na maioria das lnguas naturais o si o pronome reflexivo da terceira pessoa(ele, ela, eles/ elas). Ricoeur , porm, retira esta restrio ao aproximar o termo sido termo se, transportando este para os verbos no modo infinitivo dizemosapresentar-se, nomear-se. Esse uso, para ns exemplar, confirma um dosensinamentos do lingista G. Guilherme, segundo o qual no infinitivo e ainda atcerto ponto no particpio que o verbo exprime a plenitude de sua significao, antes

    de se distribuir entre os tempos verbais e as pessoas gramaticais; o se designaento o reflexivo de todos os pronomes pessoais e mesmo de pronomes impessoaistais como cada um, qualquer um,.... (1990, 11).

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    semelhante) e de ipse (uso do mesmo para reforar a expresso si,para indicar que se trata do ser ou da coisa em questo); terceiro, acorrelao entre si e diverso de si: a alteridade no tem somente osentido d e um a comp arao em qu e a alteridade figuraria ao lado dosantnimos do mesmo, isto ., de contrrio, d istinto, diverso,mas tem sobretudo o sentido de uma implicao, de uma alteridadeconstitutiva da prpria ipseidad e. este o sentido d o livro Soi-mmecomme un autre de P. Ricoeur.

    sobre estes trs traos gramaticais que Ricoeur baseia as trs d ialticasda hermenutica d o si: o d esvio d a reflexo pela anlise ou d ialticada reflexo e da anlise, a dialtica da ipseidade e da mesmidade e adialtica da ipseidade e da alteridade.

    Na primeira dialtica, o desvio da reflexo pela anlise, aparece aestrutura reflexiva do sujeito. A primeira inteno de Ricoeur demarcar o primad o da m ediao reflexiva sobre a posio imediata dosujeito, tal como ela se exprime na primeira pessoa do singular: eupenso, eu sou (1990, 11). Assim, o sujeito, por seu estatuto reflexivoe indireto (isto , no se pe absoluta e imed iatamente) passa por u masrie de desvios, pelo desvio da anlise da experincia em que sedesenvolve progressivamente a identidade do si: a experincia lin-gstica, prtica, narrativa e tica. Atravs destes desvios, a ipseidadese apropria de sua identidade ao retomar reflexivamente suasobjetivaes. O sujeito opaco a si mesmo e no se reapropria seno

    pelo desvio dos sinais, das obras e dos monumentos sados de suaatividade.

    E sobre esta primeira dialtica, Ricoeur enxerta a dialtica entre duassignificaes da identidad e do sujeito: a identidade-idem ou mesmidadee a identidade-ipse ou ipseidade7. Esta dialtica estar presente emtodos os momentos do percurso da ipseidade, mas de forma decisivano registro da narrao, quinto e sexto estud os de Soi-mme...., quan-do o problema da identidade pessoal estar ligado questo datemporalidade. na noo de identidade narrativa que se articular

    dialeticamente mesmidade e ipseidade. A mesmidade designar o seridntico a si e imutvel enquanto a ipseidade designar a identidadepessoal e reflexiva constituda de uma alteridade intrnseca. Amesmidade designa os caracteres objetivos, identificveis e estveis deum sujeito, enquanto a ipseidade designa a unicidade irrepetvel dosujeito.

    7 Ricoeur, de certo modo, reencontra esta distino entre mesmidade e ipseidade na

    distino que Lvinas faz entre a identidade tematizada ou identificada que apa-rece no nome prprio, e a identidade verdadeira, no tematizvel, dada peladestinao responsabilidade pelo outro.

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    E, finalmente, a concepo da identidade do sujeito como ipseidadeabrir para a questo da alteridade na constituio do sujeito.

    2. O sujeito: entre a certeza e a iluso

    A questo do su jeito retomad a por Ricoeur nu m quad ro que u ltra-passa a oposio entre a exaltao cartesiana do sujeito e sua hu milha-o nietzscheana, entre o triunfalismo do cogito de Descartes e oniilismo do anti-cogito de Nietzsche. Segund o Ricoeur , a oposio entrea exaltao do Cogito e a sua d eposio se situa n o horizonte de um apretenso de fundamentao ltima. Ou o eu afirmado como aprimeira certeza ou verdade primeira (Descartes), ou rebaixado aograu de iluso (Nietzsche). Na primeira alternativa, a subjetividade o fund amento, a certeza da certeza da filosofia, enquanto na segun-

    da o sujeito desconstrudo, interpretado apenas como uma ilusoque consistiria em imaginar um substrato de sujeito ou substnciano qual os atos de pensamento teriam sua origem. Isto , segundoNietzsche, pr um substrato de sujeito sob o cogito seria um simpleshbito gramatical, o de ligar um agente a cada ao.

    Ricoeur v nesta alternativa uma falsa alternativa, pois o si distintodo eu. O eu se p e ou d eposto, exaltado ou humilhado, enquan too si est implicado reflexivamente nas operaes cuja anlise precedeo retorno a si mesmo (1990, 30). O eu, formulado na primeira pessoa

    do singular (eu penso, eu sou, eu existo) exprime a posioimediata, absoluta do sujeito, sem confrontao com o outro. O si,pronome reflexivo d e todas as pessoas gramaticais, exprime o p rima-do da mediao reflexiva, da posio indireta do sujeito.

    Assim, o sujeito no um eu, uma espcie de substrato metafsico,desancorad o em relao a todas as referncias espao-temp orais, foradas condies de interlocuo, uma identidade pontual, a-histrica,mas um si, uma d eterminao singu lar que aparece em relao com oque Ricoeur chamar locutor, agente, personagem de narrao, sujei-to de imputao moral, etc. (1990, 18). Ricoeur compreende, destemodo, a subjetividade essencialmen te como ato, ao. A constitui-o do sujeito se d concomitantemente com a constituio da aonos seu s d iversos nveis: ling stica, prtica, narrativa e tico-poltica.A idia de uma constituio co-originria da ipseidade e da ao central nos d ez estudos desenvolvidos em Soi-mme comme un autre.Ricoeur pergunta pelo sujeito que age, mas tanto o sujeito quanto aao so noes polissmicas, visto a pluralidade das manifestaesdo sujeito e as formas diversas da prxis.

    A renncia p retenso de fund amentao ltima ou au tofund ao dosujeito no significa cair no niilismo ou no ceticismo. Para alm da

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    certeza do cogito e do niilismo do anti-cogito, a ipseidade reivindicapara si um tipo de certeza que Ricoeur denomina de atestao (Cf1990, 33-35)8. O sujeito se fundamenta numa atestao. A atestao o modo altico ou veritativo apropriado hermenutica do si querenuncia p retenso de uma fund amentao ltima d o saber, a umacerteza primeira. A atestao do si uma certeza, mas uma certezasem garantia, uma certeza frgil, vulnervel, sem fundao, que seexprime na ameaa permanente da suspeita como contrrio da atesta-o. Ricoeur aproxima a atestao da categoria do testemun ho. A ates-tao enquanto u m tipo d e crena ou confiana no sentido filosfico seinscreve na gramtica do eu creio em do testemunho. Do mesmomod o que no h ou tro recurso contra o falso testemu nho qu e outrotestemunho mais verossmil, tambm no h outro recurso contra asuspeita que uma atestao mais confivel. Por isso, para Ricoeur, aatestao se ope mais pretenso de fundao ltima do cogito do

    que ao critrio de verificao dos saberes objetivos.A atestao , em relao certeza do cogito, crena sem garantia,certeza sem hipercerteza, mas em relao ao cogito humilhado, aoant i-cogito, ela confiana mais forte que toda suspeita: confiana daipseidade no poder de dizer, de fazer, de se reconhecer personagemdo relato, de responder acusao pelo acusativo: eis-me aqui!...(1990, 34-35). Em termos ontolgicos, a atestao a certeza acrena e a confiana de existir sobre o modo da ipseidade (1990,351), a segurana que cada um tem de existir como um mesmo no

    sentido da ipseidade, de ser si mesmo. Em outros termos, a atestaoou testemu nho a crena e a confiana de ser o sujeito de seu d iscur-so, de sua ao, dos relatos que se faz de si mesmo, da responsabili-dade enfim pela qual o si se reconhece idntico em sua histria e emseus compromissos.

    Para Ricoeur, a atestao no simplesmente o contrrio da suspeita.H uma relao original entre elas. A suspeita tambm o caminho

    para e a travessia na atestao. Ela habita a atestao, como o falsotestemunho habita o verdadeiro testemunho (1990, 350-351). Esta

    dialtica aberta entre atestao e suspeita, certeza ou afirmao dosi e suas apor ias e parad oxos, estar presente ao longo de todo p ercur-so da ipseidad e pelas suas determinaes. A passagem pelos mestresda susp eita (Freud , Nietzsche, Marx), pelo estru turalismo, etc., repre-senta para a hermenutica do si uma exigncia de interpretar pelasuspeita. Mas contra o ceticismo contemporneo, Ricoeur reitera umaconfiana na possibilidade de uma ao histrica, uma confiana emsi, no outro e na histria.

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    A problemtica da atestao o fio que acompanha o desenvolvimento dos dezestudos de Soi-mme... A noo de atestao permitiu a Ricoeur encontrar o cami-nho entre os dois extremos da absolutizao do sujeito e de sua negao.

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    3. O sujeito falante

    Ricoeur coloca-se o problema da identificao deste sujeito, referenteltimo do respeito moral e do reconhecimento do homem como sujeitode direito 9. A identificao deste sujeito, introduzida por Ricoeurpela questo quem?, no se coloca imediatamente a p artir de um p ontode vista ontolgico, mas se d concomitantemente com a constituioda ao nos seus d iversos nveis: o falar, o agir, o narrar e o imp utar .Ricoeur se pergu nta como o sujeito torna-se um sujeito agente e quaisso as etapas que permitem ao sujeito agente tornar-se um sujeitosempre mais responsvel. Trata-se do processo de identificao dosujeito da ao: da ao do sujeito falante, do fazer do agente da ao,do ato de narrar e da ao de imputar. Ricoeur tenta reconstruir osestgios atravs dos quais a ipseidade se apropr ia de sua identidad e10.

    O ponto de partida de Ricoeur na abordagem do sujeito semntico-lingstico. A abordagem semntica da linguagem torna possvel aperspectiva individualizante de um si potencial e a implicaoreferencial do indivduo.

    A linguagem possui procedimentos que permitem designar o indivi-dual, tido como a amostra indivisvel de qualquer espcie. Estes pro-cedimentos lingsticos que designam o individual so chamados deoperadores de individualizao. Estes so as descries definidas,os nomes prp rios e os ind icadores (os pronomes pessoais, os demons-

    trativos, os advrbios de lugar, de tempo e de modo, e os temposverbais). O indivduo humano aparece aqui apenas como um si, umapessoa potencial, mas no ainda como um sujeito capaz de auto-designao, somente alcanada no plano da pragmtica. Esta aborda-gem acentua a singularidade das pessoas virtuais.

    Ricoeur u tiliza a estratgia d e P.F. Straw son em Os indivduos, queconsiste em isolar, entre todos os par ticulares aos qu ais ns pod emosnos referir para os identificar, particulares privilegiados que Strawsonchama de particulares de base ou conceitos primitivos de toda

    referncia identificante no sentido de que no poderamos remontarpara alm d eles sem pressup-los no argum ento que p retend ia deriv-los de outra coisa. Estes particulares de base so os corpos fsicos eas pessoas. Segundo esta estratgia, impossvel identificar um parti-

    9 Chi il soggetto di diritto?, Prospettiva Persona, ano III, n.7 (1994): 11.10 Em Indivduo e identidade pessoal, in VV.AA., Indivduo e Poder, Lisboa: Ed.70, 1987, Ricoeur divide este percurso do si em 3 etapas, a saber, a individualizao,a identificao e a imputao, ligadas por duas transies: a pragmtica e a ope-

    rao narrativa. Vamos seguir, aqui, o itinerrio sugerido por Ricoeur em Soi-mme.... Esta ordenao apenas didtica: no implica uma sucesso lgica decategorias. Este percurso tambm no de ordem histrica, mas sistemtica.

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    cular sem o classificar ou entre os corpos, ou entre as pessoas. A pes-soa aparece, portanto, como um particular de base, uma refernciaidentificante. Mas como definir a pessoa como particular de base?Ricoeur conserva trs teses de Strawson: 1.-ns nos atribumos doistipos de predicados, predicados fsicos e predicados psquicos (X pesa60kg, X se lembra de uma viagem recente); 2.- mesma entidade, a

    pessoa, e no a duas entidades distintas, a alma e o corpo, que ns predicamos os dois tipos de propriedade; 3.- os predicados psquicosso tais que conservam a mesma significao, quer sejam atribudos asi-mesmo ou a um diverso de si (eu compreendo a inveja, mesmo queela seja dita de Pedro, de Paulo ou de mim) 11.

    Ricoeur v nestas teses uma srie de vantagens. Ao definir a pessoacomo u m particular d e base, um a referncia da qual falamos, a anliseda pessoa colocada sobre o plano da referncia pblica, objetiva e

    no no plano da referncia privada, isto , dos eventos mentais taiscomo as representaes, os pensamentos e a conscincia pura. Nestaabordagem, os eventos mentais so desalojados da posio de referen-tes ltimos que ocupam num idealismo subjetivista.

    A abord agem da p essoa p ela referncia identificante significa aind a asup erao de uma antrop ologia du alista, pois a pessoa o n ico refe-rente dotado de duas sries de predicados, fsicos e psquicos. Trata-se de uma dupla atribuio sem dupla referncia: duas sries depredicados para uma nica e mesma entidade. Assim, o conceito de

    pessoa no um segundo referente distinto do corpo, como a almacartesiana em relao ao corpo.

    A pessoa como p articular d e base, embora no seja ainda um si capazde se autodesignar a si-mesmo, um eu reflexivo, permite dar plenodireito terceira p essoa gram atical, que s se tornar verd adeiramen-te um si no plano da pragmtica. A atribuio dos predicados fsicose psquicos pode ser feita a qualquer um, a todas as pessoas grama-ticais, sem privilgio de eu e do tu como seria o caso na pragmtica.

    Contudo, na abordagem da pessoa pela teoria da refernciaidentificante, a identidad e da pessoa compreendida como mesmidade,como identidad e de atribuio. No s a mesma coisa ou entida-de que recebe dois tipos de predicados, mas a prpria atribuio dospredicados psquicos, quer se faa a si ou a outrem , conserva o m es-mo sentido. Esta abordagem privilegia os critrios de identificao ede reidentificao do mesmo. Isto significa o esquecimento da iden-tidade como ipseidade, a referncia a si do sujeito falante, tanto dos

    11 Le concept de responsabilit. Essai danalyse smantique, Esprit, vol. 11, n. 206(1994): 36.

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    predicados psquicos quanto fsicos. A pessoa como par ticular d e base incapaz de identificar-se a si-mesma, de autodesignar-se; incapazde compreender a maneira pela qual nosso prprio corpo , ao mes-mo tempo, um corpo qualquer, objetivamente situado entre os corpos,e um aspecto do si, sua maneira de ser no mundo (1990, 46); inca-paz de pensar os eventos psquicos como um aspecto do si.

    Entretanto, lembra-nos Ricoeur, a superao da teoria da refernciaidentificante pela teoria reflexiva da enunciao ou pragmtica nosignifica a abolio da abordagem referencial da pessoa, sob pena dese deixar levar nas aporias do solipsismo e da experincia privada(1990, 54).

    A abordagem pragmtica, ou seja, a teoria da linguagem tal como aempregamos nos contextos da interlocuo (1990, 55), vai permitir apassagem da pessoa como particular de base a um sujeito capaz deautodesignar-se, pessoa como um si. A pragmtica, cuja pea mestra a teoria dos atos de discurso de Austin e Searle, permite pensar apessoa como um si, o engajamen to do sujeito falante no seu d iscurso,a reflexividad e implicada n os atos de d iscurso. Assim, na persp ectivareflexiva da pragmtica a pessoa primeiramente um eu que fala aum tu. Aqui, a primeira e segunda pessoas, isto , o locutor e ointerlocutor, so elevadas ao primeiro plano, pois o acento no estmais no enunciado, mas no ato de dizer, no ato do d iscurso. Todo a tode d iscurso designa reflexivamente seu locutor. Em todo ato d e d izer,

    tanto nos atos performativos quanto nos constatativos, h uma forailocutria, uma implicao do locutor e do fazer no dizer. No atoilocucionrio, ato que consiste naquilo que o locutor faz falando, osujeito falante se designa a si mesmo como au tor do d iscurso. No snos performativos propriamente ditos, nos quais a implicao do su- jeito e do fazer so mais evidentes, mas tambm nos prpriosconstatativos, um fazer est includo, freqentemente no dito, mas

    podemos explicit-lo precedendo o enunciado por um prefixo da for-ma eu afirmo que, comparvel ao eu prometo que... (1990, 58-59).Por exemplo: ao enu nciado constatativo o gato est sobre a esteira,posso acrescentar o prefixo eu afirmo que o gato est sobre a estei-ra conservando o mesmo valor de verdade.

    A abordagem reflexiva da pragmtico-lingstica permitiu a Ricoeurpensar o aparecimento da ipseidad e, da pessoa como um su jeito capazde designar-se a si mesmo como su jeito falante. no n vel do discurso,do ato de d izer, e no da lngu a, que se coloca propriamente a qu estodo sujeito, a questo quem fala?.

    Os pronomes pessoais, eu, tu, ele, so antes de mais nada fatos delngu a. Eles pod em ser subm etidos a um a anlise estrutural conformefizera E. Benveniste. Assim, eu e tu opem-se conjuntamente a ele,

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    como a pessoa no-pessoa, e opem-se entre si. Mas este estudoestrutural no esgota a inteligncia dessas relaes. A significao eus formada no instante em que aquele que fala apropria-se de seusentido para se d esignar a si mesmo. A significao eu nica a cadavez. Fora dessa referncia a um ind ivduo p articular qu e se designa asi mesmo dizendo eu, o pronome pessoal um signo vazio do qualqualquer um pode se apoderar.

    Mas Ricoeur no ingnuo a ponto de desconhecer as aporias e pa-radoxos relativos ao estatuto do sujeito da enu nciao enquan to tal, aoestatuto do eu: como conjugar o sujeito ou eu reflexivo, limite domundo, ponto de perspectiva singular e privilegiada sobre o mundoque cada sujeito falante e a pessoa como particular d e base ou nomeprprio que designa uma pessoa real cuja existncia atestada peloestado civil, objeto d a referncia identificante? Como conciliar o car-

    ter substituvel do eu como termo viajante (shifter) ou disponvel e ocarter insubstituvel da ancoragem do eu qu e designa cada vez u manica pessoa?.

    Ricoeur encontra a soluo desta aporia na operao de inscrio. Oeu reflexivo, sujeito da enunciao, literalmente inscrito, em virtudeda fora ilocucionria de um ato de discurso particular, a nomeao,sobre a lista pblica de nomes prprios, seguindo as regras convenci-onais que regem a atribuio dos patronmicos e dos prenomes...(1990, 71). Esta inscrio do eu reflexivo operada pelo ato de nome-

    ao: Eu, Paul Ricoeur.... , por exemplo. Quando eu digo. eu, P. R.,nascido em..., no dia..., designo simultaneamente a minha existnciainsubstituvel e o meu lugar no estado civil 12.

    Assim, no plano da linguagem, o sujeito advm como aquele que capaz de designar-se a si mesmo como locutor, como sujeito falante,que capaz de apropriar-se do sentido de uma lngua, de usar seussignos, para se designar a si mesmo. A linguagem como evento dapalavra, ato de discurso, tem portanto uma funo identificante.

    4. O sujeito agente

    A filosofia da lingu agem serve de organon para a teoria da ao, pois nos atos de discurso que o agente da ao se designa como aqueleque age (1990, 25). Mas a teoria da ao no se reduz a uma simplesaplicao da anlise lingstica. Designar-se a si mesmo como agentesignifica m ais do que au todesignar-se como locutor. O vnculo entre aao e seu agen te original em relao ao vnculo entre a linguagem

    12 Indivduo e identidade pessoal, in VV. AA., Indivduo e poder, 77.

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    e seu locutor. Por isso, a teoria da ao acrescenta uma nova signifi-cao subjetividade, identidade pessoal do sujeito.

    A questo que Ricoeur aborda aqu i a imp licao do agente na ao,a atribuio (ascrio) ou referncia da ao a seu agente, a questoquem?, quem age?, mas suspendendo as d eterminaes tico-morais

    tanto da ao quanto do agente. A relao entre a ao e seu agente abordada do ponto de vista pr-moral. Ricoeur encontra emAristteles, na tica a Nicmaco, livro III, os antecedentes desta abor-dagem, na medida em que Aristteles precedeu sua tica pela anlisede um ato fund amental, a escolha preferencial (proairesis), na qual seexprime um a potncia de agir mais primitiva que o carter censurvelou louvvel da ao produzida(1990, 123).

    Segundo Ricoeur, esta referncia ao sujeito falante esquecida pelateoria semntica da ao, pela anlise lgica das frases de ao, desen-volvidas por autores como E. Anscombe e D. Davidson. Nesta aborda-gem semntica da ao o acento posto na questo d a descrio e daexplicao da ao, isto , na descrio do que conta como aohu man a e na explicao d a ao atravs de causas, motivos, intenes,razes de agir, etc. O sujeito da ao a mencionado atravs de umnome prprio, um indicador ou uma descrio definida. Mas oagente da ao identificado apenas como algum que faz ou sofre aao, faltando-lhe a capacidade de autodesignao do sujeito agente.Somente a abordagem p ragmtica da ao, na medida em que leva em

    conta a situao de interao, capaz de abordar a qu esto da atribui-o explcita da ao a um sujeito, o poder do agente de designar-sea si mesmo como autor de suas aes.

    Esta questo da responsabilidad e pr-moral do sujeito por seus atos uma questo decisiva para a moral e o direito, pois a capacidade deum agente humano designar-se a si mesmo como o autor de seus atostem um significado considervel para a atribuio ulterior de direitose deveres 13. A atribuio da ao a um agente o pressuposto daatribuio de responsabilidade no sentido tico-jurdico.

    Mas Ricoeur reconhece que a referncia da ao a um sujeito agentelevanta algumas aporias e dificuldades:

    Primeiro. As aes e paixes poder ser compreendidas na suspensode toda atribuio explcita a um sujeito. Estas conservam o mesmosentido, quando atribuda ao si-mesmo e a um diverso de si, podemser compreendidas nelas mesmas, fora de toda atribuio explcita aum sujeito. isto que constitui o psquico. Este o pressupostopresente em tod os os Tratados d as Paixes, de Aristteles Espinoza,

    13 Chi il soggetto di diritto?, Prospettiva Persona, ano III, n.7 (1994): 12.

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    ond e as paixes e as aes podem ser enumerad as sem levar em contaas pessoas nas suas diferenas.

    Segundo. A atribuio da ao a um sujeito, a ascrio, tem umaambigidade entre a descrio da ao e a imputao moral. Aatribuio da ao a um agente ou ascrio no descrever a

    ao. Isto se deve a certa afinidade e parentesco da ascrio com aimputao moral e jurdica que consiste no ato de considerar umagente responsvel das aes consideradas elas prprias como permi-tidas ou no permitidas (1990, 121). Mas a ascrio se diferencia daimputao moral. A imputao moral supe mais ou menos umaincriminao, portanto, a possibilidade de considerar o agente comoculpvel ou no. A ascrio , ao mesmo tempo, mais simples emais obscura do que a imputao moral; mais simples no sentido deque ela no tem necessariamente uma colorao moral: ela visa sim-

    plesmente atribuir um segmento de mudana no mundo a algum que dito ser o agente. Mas esta relao tomada na sua dimenso pr-moral muito obscura, no sentido de que nos conduz ao velho proble-ma da potncia e do ato; (...) 14, da potncia de agir.

    Terceiro. A terceira aporia diz respeito noo de capacidade oupotncia de agir como noo que exprime a relao pr-moral ecausal entre a ao e seu agente. Ricoeur reporta-se a Aristteles parasublinhar o carter enigmtico e obscuro desta relao ao-agente.Ricoeur lembra que Aristteles usou de metforas: uma metfora fa-

    miliar e outra poltica. Na primeira, o agente o pai das prpriasaes como ele de seus filhos; na segund a, o agente o senhor d esuas aes. Em Aristteles, a relao ao-agente expressa tambmpela conjugao entre o conceito genrico de princpio (arche) e opronome pessoal si (autos) pela mediao da preposio de (epi).A expresso desta relao ao-agente reside na frmula que faz doagente o princpio de suas aes. Mas a relao entre princpio esi tambm metafrico: o princpio visto como si e o si comoprincpio. Neste sentido, as metforas da paternidade e do domnio

    seriam a nica maneira de trazer linguagem a ligao oriunda docurto-circuito entre princpio e si (1990, 115). Contudo, segundoRicoeur, esta potncia de agir pode ser entendida no s com me-tforas, mas tam bm com a idia pr imitiva d e causa eficiente, reti-rada da fsica por Galileu e Newton e que, agora, com a teoria daascrio, retornaria ao seu lugar de origem, que a experincia do

    poder exercido sobre nossos rgos e, atravs destes, sobre o curso dascoisas 15.

    14 Lectues 2. La contre des philosophes, Paris: Seuil, 1992, 214.15 Chi il soggetto di diritto?, Prospettiva Persona, ano III, n.7 (1994): 12.

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    Ricoeur en tende a potncia de agir do agente como u m fato primi-tivo a partir de u ma d ialtica que se desenvolve em d ois temp os: umestgio disjuntivo que afirma a especificidade e o carter antagonis-ta de uma causalidade primitiva do agente em relao aos outrosmod os de causalidade, e outro conjun tivo que coordena esta causa-lidade primitiva do agente com outras formas de causalidade.

    Nu m primeiro momento, Ricoeur, cruzando com o argumento kantianoda Terceira antinomia cosmolgica da razo pura, a saber, com aantinomia da causalidade livre e da causalidade segundo as leis danatureza, ope a causalidade primitiva do agente, sua potncia deagir com as demais causalidades. Esta causalidade primitiva do agente definida como capacidade de comear de si mesmo. A causalidadelivre do agente implica a idia de comeo que, por sua vez, implicaum a interrup o no curso do mu nd o, um a interrup o da srie causalilimitada. A potncia de agir comeo absoluto em relao a umasrie particular d e eventos: ela comea absolutamente um a nova sriecausal. Esta potncia de agir do agente um comeo absolutam enteprimeiro no quanto ao tempo, mas quanto causalidade.

    Ricoeur, depois de ter passado pelo carter antinmico da noo depotncia de agir, pensa, inspirando-se no prprio Kant, a conjunoentre a causalidade primitiva do agente com as demais causalidades. Talconjuno pensada a partir de um fenmeno especfico do campo prtico,a saber, do fenmeno da iniciativa. A conjuno entre vrios tipos decausalidade reconhecida como um constrangimento ligado estrutu rada ao enquanto iniciativa. Esta conjuno realizada no fenmeno dainiciativa resulta, segundo Ricoeur, da prpria necessidade de juntar oquem? ao o qu-por qu? da ao, a ascrio descrio da ao.

    devido ao entrelaamen to entre a ao do agente e o curso fsico dascoisas que agir p rodu zir mud anas no mun do. A ao do agente sse produz a si mesma em circunstncias que ela no produziu. Soas leis da natureza que se responsabilizam pela continuidade de nos-sas iniciativas (1990, 130). Mais: os efeitos de uma ao se separam dealgum mod o do agente, ela tem efeitos no desejados e mesmo perver-sos provenientes dos projetos mais bem concebidos. Ricoeur v a,contra a crena iluminista de que os homens so cada vez mais ca-

    pazes defazer a sua histria 16, o princpio da no coincidncia entreteoria da histria e teoria da ao.

    A iniciativa, a instaurao de um comeo no curso total do m undo fazemergir o p roblema d o alcance do comeo e da responsabilidade doagente, isto , at onde se estende a eficcia do comeo e, por conse-qncia, a responsabilidade do agente, em relao ao carter ilimitado

    16 Du texte laction. Essais dhermneutique II, Paris: Seuil, 1986, 273.

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    da srie das conseqncias fsicas? (1990, 129). Se do lado das causasa meno do agente, da causalidade do agente, punha fim busca dacausa, do lado dos efeitos o alcance da eficcia do comeo parece semlimites. Ricoeur reconhece que a identificao de um agente umaoperao muito d ifcil. Um agente no est nas conseqncias longn-quas como est no gesto imediato. O p roblema consiste em d elimitara esfera dos eventos da qual podemos torn-lo responsvel, em atri-buir a um agente particular uma srie determinada de eventos. Estetrabalho dificultado pelo entrelaamento da ao do sujeito com ocurso do mun do e com a ao dos outros. A atribuio de responsabi-lidade de uma ao a um agente, nesta situao aportica, assuntode deciso, de uma phronesis, antes que d e um a constatao. Mas estadelimitao, decisiva tambm para historiadores, juristas e outros, dasesferas respectivas de responsabilidade entre os atores de uma aocomplexa no se reveste necessariamente de um aspecto de incriminao

    e de condenao. Ricoeur considera importante a distino entre aascrio de uma ao a um agente e a imputao tico-jurdica,distino reencontrada, de certo modo, em R. Aron e M. Weber quandodistinguem responsabilidade histrica e responsabilidade moral.

    A inteno de Ricoeur com esta dialtica da potncia de agir entreo estgio disjuntivo e o conjuntivo elevar a um nvel reflexivoe crtico o qu e est j p r-compreend ido nesta certeza ou atestao qu eo agente tem de poder-fazer, de produzir mudanas no mundo. As-sim, a teoria da ao revela um sujeito agente capaz de se designar a

    si mesmo como autor responsvel de seus atos, capaz de agir segundointenes e de ter iniciativas.

    5. A identidade narrativa do sujeito: mesmidade e ipseidade

    Ricoeur encontra na teoria narrativa os recursos para enfrentar osproblemas, at aqui no abord ados, ligados considerao do tempo17

    na constituio da p essoa e da ao human a. O problema consiste em

    pensar a identidad e pessoal na histria de uma vida, no curso total deuma vida. Ora, o que faz problema o simples fato de que a pessoas existe sob o regime de uma vida que se desenvolve do nascimento morte. O que constitui o que podemos chamar o encadeamento de

    17 Ricoeur j se defrontou com o problema do tempo na trilogia do Temps et Rcit.Diante do fracasso das abordagens especulativo-filosficas sobre o tempo, ele en-controu na narrao, tanto na narrao histrica quanto na narrao de fico, orecurso adequado para enfrentar as aporias do tempo. O tempo torna-se humano

    na medida em que articulado sobre um modo narrativo e a narrao alcana suasignificao plena quando torna-se uma condio da existncia temporal (Temps etRcit, I, 85).

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    uma vida? Colocado em termos filosficos, este problema o da iden-tidade. O que permanece idntico no curso de uma vida humana?18.

    A considerao das imp licaes temporais da iden tidade pessoal elevaao primeiro plano a confrontao de dois modelos de identidade, amesmidade e a ipseidad e, que se fundam em d ois modelos de p erma-

    nncia no tempo. A mesmidade funda-se na permanncia de umasubstncia imu tvel, de um substrato, de u ma estrutura que o temp ono afeta. Este o caso da permanncia do cdigo gentico de umindivduo biolgico. J a ipseidade funda-se na manuteno de si napromessa, na du rao da promessa med iante a qual o si se mantm namanuteno da palavra dada.

    Aplicand o estes modelos p essoa, Ricoeur encontra na permannciado carter19, isto , nas disposies, hbitos e identificaes adquiri-das com as quais reconhecemos uma pessoa, o modelo da permann-

    cia no tempo da mesmidade. Eu entendo aqui por carter o conjuntodas marcas distintivas que permitem reidentificar um indivduo hu-mano como sendo o mesmo. Pelos traos primitivos que vamos dizer,ele rene a identidade numrica e qualitativa, a continuidadeininterrupta e a permanncia no tempo. por isso que ele designa, demaneira emblemtica, a mesmidade da pessoa (1990, 144).

    O carter, mediante os hbitos adquiridos e as identificaes-comvalores, ideais, heris, etc., nos quais a pessoa se reconhece, recebeuma estabilidade que faz com que a identidad e do carter exprima u m

    recobrimento da ipseidade pela mesmidade, uma coincidncia entreipseidade e mesmidade, isto , meu carter sou eu. O carter ver-dadeiramente o qu do quem. No , mais exatamente, o qu ain-da exterior ao quem,..... Trata-se realmente aqui do recobrimento doquem? pelo o qu?, o qual faz passar da questo: quem sou eu? questo: o que sou eu? (1990, 147).

    Ricoeur encontra n a manuteno da promessa o modelo de permann-cia no tempo oposto do carter. A estabilidade do carter se ope fidelidade palavra dada. Enquanto no carter a ipseidade e a

    mesmidade coincidem, na fidelidade promessa a ipseidade no tem

    18 Lectures 2. La contre des philosophes, 217.19 Ricoeur j tematizara o carter em outras obras sob outras perspectivas. Assimem Le Volontaire et linvolontaire, o carter aparecia como o involuntrio abso-luto em oposio ao involuntrio relativo dos motivos e dos poderes, como aesfera de nossa existncia que ns no podemos mudar, como um destino, mas aoqual precisamos consentir. Em LHomme faillible o carter, em contraste com ainfinitude representada pela noo de felicidade, aparecia como a perspectiva finitada existncia do homem, a abertura limitada ao mundo das coisas, das idias, dos

    valores, das pessoas. Em Soi-mme comme un autre o carter aparece ainda comoo outro plo de uma polaridade existencial fundamental, como o plo em quemesmidade e ipseidade se recobrem em oposio pura ipseidade da promessa.

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    o suporte da mesmidad e, o si se dissocia do mesmo, pura ipseidade.A manuteno de si, noo essencialmente tica, para a pessoa amaneira de se comportar tal que o outro possa contar com ela. Porquealgum conta comigo, eu sou responsvel por minhas aes diante deum outro(1990, 195). A manu teno de si na p romessa enunciada pelaresposta Eis-me aqui pergunta Onde ests? colocada pelo outro.

    Ricoeur recorre constantemente figura da promessa ao longo d e suaobra como o ato de discurso por excelncia. Aqui ela funda a ex-presso mais alta da identidade como a manuteno de si atravs dotempo como oposta simp les permanncia de um a coisa, mesmidadedo carter. Na promessa a identidade adquire uma marca tica cujaobrigao de responder confiana que o outro pe na minha fide-lidade, na minha palavra.

    O problema consiste na busca de uma mediao entre estes dois modelos

    de permanncia da pessoa no tempo, entre o plo da mesmidade docarter e o plo da pura ipseidade da manuteno de si mesmo napromessa. Ricoeur encontra esta mediao na noo de identidade nar-rativa. Somente a identidade narrativa pode mediar os traos imutveisque esta deve ancoragem da histria de uma vida num carter, e ostraos que tendem a dissociar a identidade do si da mesmidade do ca-rter (1990, 148). Em Temps et Rcit, III, p. 355, Ricoeur afirma: Sema ajuda da narrao, o problema da identidade pessoal est com efeitocondenado a uma antinomia sem soluo: ou se pensa um sujeito idn-tico a si mesmo na diversidade de seus estados, ou, segundo Hume e

    Nietzsche, se sustenta que este sujeito no seno uma ilusosubstancialista, cuja eliminao no deixa lugar seno a uma pura diver-sidade de cognies, emoes e volies. O dilema desaparece se, iden-tidade compreendida no sentido de um mesmo (idem), opomos a iden-tidade compreendida como um si mesmo (ipse); a diferena entre ideme ipse no outra que a diferena entre uma identidade substancial ou

    formal e a identidade narrativa. A ipseidade pode escapar ao dilema do Mesmo e do Outro, na medida em que sua identidade repousa numaestrutura temporal conforme o modelo de identidade dinmica, origina-

    da da composio potica de um texto narrativo. O si mesmo pode destamaneira dizer-se refigurado pela aplicao reflexiva das configuraesnarrativas. Diferentemente da identidade abstrata do Mesmo, a identida-de narrativa, constitutiva da ipseidade, pode incluir a mudana, amutabilidade, na coeso de uma vida.

    Ricoeur confronta a teoria narrativa da identidade pessoal com asteorias analticas da identidade tais como as teorias de Locke, Humee Derek Parfit, principal adversrio da tese da identidade narrativa.As teorias analticas ignoram a d istino ricoeuriana entre m esmidad ee ipseidade, como tambm os recursos da narratividade para a solu-o dos paradoxos da identidad e pessoal. A tentativa de definio doscritrios de identidade por parte destas teorias, a saber, a identidade

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    numrica, a identidade qualitativa ou semelhana extrema, a continuida-de ininterrupta, a permanncia no tempo como uma estrutu ra invariante,redu z a identidad e pessoal identidade-mesmidad e. Estas tentativas dedefinir a identidade pessoal revelam o carter ap ortico da prpria ques-to da identidade. Mas, para Ricoeur, estas aporias no so paralisantes.Elas tornam-se produtivas quando mediadas pelas reflexes sobre aidentidade narrativa. O carter aportico da identidad e pessoal no sig-nifica, ao contrrio de Parfit, que a qu esto da identidade seja vazia, semsentido, mas que ela permanece uma questo aberta.

    Assim, em Hume, a idia de uma identidade pessoal uma iluso,tendo em vista que no exame do seu interior s encontra um a diver-sidade de experincias e nenhu ma impresso invarivel relativa idiade um si. Para Hume a idia de uma identidade pessoal fruto daimaginao e da crena. O ceticismo d e Hu me funda-se na reduo daidentidade ao nico modelo da mesmidade: a permanncia de umaimpresso invarivel. Ricoeur v sugerida sutilmente em Hume aassimilao da unidade da personalidade de uma repblica cujosmembros no cessam de mudar enquanto os laos de associao per-manecem. O confronto maior de Ricoeur, contudo, com as teses deDerek Parfit sobre a identidade pessoal desenvolvidas em Reasonsand Persons. Suas teses criticam as crenas de base subjacentes rei-vindicao da identidade pessoal.

    Voltemos ao modelo narrativo da identidade, o nico capaz de dar

    conta dos paradoxos levantados pela questo da identidade. A iden-tidade narrativa permite articular a coeso de uma pessoa no encade-amento de uma vida humana e a disperso das impresses, comovemos em Hume e Nietzsche. Quais so os recursos da narratividadeque permitem a constituio conceptu al da identidade pessoal? Apoi-ando-se na Potica de Aristteles, Ricoeur encontra na composioda intriga (mythos) o instrumento desta dialtica. A intriga ou con-figurao narrativa opera a mediao entre a concordncia do princ-pio de ordem e a discordncia dos revezes, entre o diverso dos even-tos e a unidade temporal da histria narrada, entre os componentes

    dspares da ao, intenes, causas e acasos, e o encadeamento dahistria; entre a pura sucesso e a unidade da forma temporal (1990,169). O ato configurante tem um poder de unificao, de sntese doheterogneo, de mediar concordncia e discordncia. A intriga, dife-rente d a d isperso ep isdica, inverte o efeito de contingncia d a aocomo algo inesperad o, surp reendente em efeito de necessidad e narra-tiva. Unificando o heterogneo, a operao narrativa desenvolve umconceito completamente original de identidad e d inmica, que conciliaa identidad e e a diversidade. Mas a concepo narrativa da identidad epessoal se constitui quando passamos do plano da ao ao plano dopersonagem. No somente a ao subm etida ao ato configurante quede uma multiplicidade de eventos e incidentes extrai a unidade de

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    um a histria, mas tambm o p ersonagem d a histria narrada. O per-sonagem ele mesmo comp osto na intriga, isto , ele u ma categorianarrativa. com efeito na histria narrada com seus caracteres deunidade, de articulao interna e de completude, conferidas pela ope-rao de composio da intriga, que o personagem conserva ao longoda histria uma identidade correlativa da identidade da prpria his-tria (1990, 170). Esta dialtica entre personagem e composio daintriga Ricoeur encontra p rimeiramente em Aristteles e d epois, con-firmada na narratologia contempornea de Propp, em Morphologie

    du conte, de Claude Bremond, em Logique du rcit , e de Greimas noseu modelo actancial.

    A identidade narrativa do personagem surge da dialtica entre, nalinha d a concordncia, a singularidad e da un idade d a vida d o perso-nagem como totalidade temporal ela prpria singular e, na linha da

    discordncia, a ameaa d e rup tura desta totalidade temporal provocadapor eventos imprevisveis.

    Ricoeur inscreve esta d ialtica de concordncia discordante do p erso-nagem na d ialtica da identidade p essoal da mesmidad e e da ipseidade.A identidade narrativa tem uma funo mediadora entre os doismodelos de identidade, de permanncia no tempo, a saber, a perma-nncia do carter e a manuteno de si-mesmo na promessa. A iden-tidade narrativa se situa entre os dois: narrativizando o carter, anarrao lhe d seu movimento, abolido nas disposies adquiridas,

    nas identificaes-com sedimentadas. Narrativizando a perspectiva davida verdadeira, ela lhe d os traos reconhecveis de personagensamados e respeitados. A identidade narrativa mantm juntos os doisextremos da cadeia: a permanncia no tempo do carter e a da manu-teno de si (1990, 195-196).

    Ricoeur, ao distinguir entre o hbito em vias de ser e o hbito jadqu irido, d um a d imenso temporal e narrativa ao carter. O que asedimentao do carter aboliu, a narrao pode tornar a desenvolver.A manuteno de si na promessa, figura da identidade tica e da

    perspectiva da vida verdadeira, est despojada dos traos estveis ereconhecveis do carter. A narrao d manuteno de si os traosestveis e reconhecveis dos personagens. Se na experincia cotidianaa estabilidade do carter e a manuteno de si na promessa tendem ase recobrir na medida em que contar com algum , ao mesmo tem-

    po, apoiar-se na estabilidade do carter e prever que o outro mante-nha a palavra... (1990, 176), na literatura a identidade narrativa sesitua entre dois plos extremos. No primeiro plo extremo, h umrecobrimento entre a coerncia do personagem da histria e a estabi-lidade do carter, isto , o personagem um carter identificvel ereidentificvel como mesmo. Este o estatuto do personagem doscontos de fada e d o folclore. Num espao intermedirio, o personagem

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    sofre transformaes, a identificao d o mesmo d ecresce sem desapa-recer. o caso do romance clssico. E no plo inverso ap arecem casosdesconcertantes ou variaes imaginativas em qu e a identidad e d opersonagem parece se dissolver completamente, deixa de ser umcarter identificvel. o caso do romance ps-clssico, os roman-ces contemporneos de Kafka, Joyce e Robert Musil20. Com os ca-sos d esconcertantes d as var iaes imaginativas d a fico literria,do m esmo mod o que os puzz ling cases d a fico cientfica, pr ovo-cam uma crise na ipseidade, levantam a hiptese da perda edissoluo da identidade. Mais uma vez a investigao sobre aident idade pessoal adquire um tom dramtico, aport ico emRicoeur. Estes casos par ad oxais, porm , no significam a n egaoda ipseidade, mas somente a perda, por parte da ipseidade, dosuporte da mesmidade.

    Assim, a identidade narrativa, tanto individual quanto coletiva, aocontrrio da identidade das coisas, da identidade-mesmidade que sefunda na imu tabilidad e e estabilidade d e um a estrutura ou substncia,admite a mudana, a mobilidade, as crises e as transformaes, pr-prias da identidade do si. Esta mobilidade aquela dos personagensdas histrias que ns contamos.

    A narrao, mediante a relao dialtica entre intriga e persona-gem, permitiu uma determinao mais rica da identidade pessoalporque p ermitiu ao mesmo tempo u m alargamento do campo pr-

    tico em termos d e prticas, planos de vida e unidade narrativa deuma vida.

    A forma narrativa permite a apreenso da vida humana na suaun icidade, a autodesignao da pessoa no encadeamento de um a vidahumana. Aqui a ao, mediada narrativamente, adquire a extenso daunidade global da vida de uma pessoa, de um sujeito agente. MasRicoeur no recorre ingenuamente noo de unidade narrativa deuma vida. No momento da aplicao ou da apropriao da ficoliterria vida surge uma srie de tenses inexpugnveis, mas estas

    dificuldades no so capazes de negar a dialtica de apropriao queh entre literatura e vida, pois a narrao faz parte da vida antes dese exilar na escritura (1990, 193). A narrao ajuda-nos a nos tornar-mos co-autores, se no quanto existncia, ao menos quanto ao sen-tido da vida; nos ajud a, diante d o carter evasivo d a vida real, a fixaros comeos reais, as iniciativas e o contorno dos fins provisrios de

    20 Ricoeur toma como exemplo O homem sem qualidades de R. Musil em que hum eclipse da identidade do personagem como tambm da composio da intriga.

    Os paradigmas clssicos do personagem, do heri identificvel e da configurao daintriga entraram em crise. O nome prprio torna-se suprfluo e o gnero literrioaproxima-se mais do ensaio do que da narrao.

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    nossas aes e de nossa vida; ajuda-nos a compreender o entrelaa-mento das histrias de vida u mas nas outras; e, finalmente, ajud a-nosa articular narrativamente retrospeco e prospeco.

    A mediao narrativa, contudo, adquire, em certos casos paradoxais,um tom problemtico em Ricoeur, sobretudo no que se refere ques-

    to da identidade. Por um lado, a identidade narrativa, pela qual apessoa se designa a si mesma no temp o como a u nidade n arrativa deuma vida, a condio de possibilidade de se pensar um sujeitomoral, uma imputao moral das aes a um sujeito. Por outro lado,esta relao entre identidad e narrativa e imp utao moral ou identida-de tica est marcada por ten ses. Nos casos desconcertan tes da ficoliterria e da fico cientfica, onde a identidade do personagemparece dissolver-se, ond e a p essoa na leitur a d e um a narr ativa defico defronta-se com a hiptese da perd a d e sua prp ria identi-

    dade, de seu nada, a identidade narrativa, longe de confirmar aidentidade tica figurada pela manuteno de si na promessa,pa rece antes retirar-lhe tod o ponto d e apoio. Ricoeur v um a esp-cie de tenso, de tenso frutuosa, entre o carter problemtico d aipseida de n o plano n arrativo, expresso na q uesto: quem sou eu ?,e seu carter afirmativo no plano do engajamento tico que res-pond e expectativa d o outro med iante a expresso Eis-me aqui.A partir desta tenso, Ricoeur v uma transformao da idia deipseidad e. Estes momentos de sombra da identidad e que se ques-tiona a respeito de si mesma revela que a ipseidade no se carac-teriza apenas pela noo de posse, de pertena entre a pessoa eseus pen samen tos, aes, paixes, experincias, etc., mas tam bmpela noo de despojamento . Os casos limites produzidos pelaimaginao narrativa sugerem uma dialtica da posse e dodespojamento, da preocupao e da despreocupao, da afirmaode si e do desaparecimento de si (1990, 198).

    A ipseidade parece assim habitada por uma espcie de falha secretaque afeta tambm o engajamento tico, aproximando a identidade

    pessoal mais da m odstia da man uteno de si na p romessa do que d oorgulho estico da constncia a si. Em certo sentido, Ricoeur afirmacom Parfit que a questo da identidad e pessoal no o que importa,pois esta relao de posse e de pertena de nossas experincias, apreocupao com a identidade pode ter um sentido ambguo, podegerar u m egosmo qu e imped e a racionalidad e da escolha tica. Ricoeurrelaciona esta dialtica de posse e despojamento da ipseidade com oprimado do outro no plano tico. Que este despojamento... tenharelao com o primado tico do outro em relao ao si, isto claro. necessrio ainda que a irrupo do outro, que quebra o fechamento domesmo, encontre a cumplicidade desse movimento de desaparecimen-to pelo qual o si se torna disponvel ao outro. Pois no necessrio

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    que a crise da ipseidade tenha como efeito substituir a estima de sipelo dio de si (1990, 198). Diante da am eaa d a p erda d a identidad e,do questionamento do seu prprio nada, Ricoeur d um carter deci-sivo ao projeto tico.

    6. O sujeito tico-poltico

    Ricoeur somente desenvolve uma reflexo tica aps ter examina-do a linguagem, a ao e a narrao. Ele no se apressa demasia-damente em fazer uma reflexo tica. preciso dar ateno aoselementos pr-ticos. A linguagem, a ao e a narrao d cons-tituio da tica um enraizamento antropolgico, constituindo-ano como algo que vem de fora, mas como desejo de ser, esforopor existir. Assim, a tica emerge progressivamente do plano dalinguagem, da ao e da narrao 21.

    N o plan o tico-poltico, a subjetivid ad e recebe um a nov a d etermi-nao. At aqui, o sujeito foi compreendido como sujeito capazde se designar como locutor, de se reconhecer como autor de suasaes e de se identificar como p ersonagem d e um relato d e vida.

    A tica ricoeuriana, denominada em Soi-mme comme un autre d epequena tica, arquitetada a partir de uma circularidade, deuma dialtica inacabada constituda de trs momentos: a inten-o tica, a norm a m oral e a sabedor ia pr tica. Ricoeur estabelece:

    1) o primado da tica sobre a moral; 2) a necessidade, contudo, para a inteno tica, de passar pelo crivo da norma; 3) a legitimi-dade de um recurso da norma inteno, quando a norma conduza conflitos para os quais a nica sada uma sabedoria prtica que

    21 A narrao ocupa uma funo mediadora entre a teoria da ao e a teoria tica.

    Do lado da teoria da ao, a narrao exprime um alargamento do campo prtico,e do lado da teoria tica, ela se impe como um laboratrio do julgamento moral,uma propedutica tica. A configurao narrativa permite estender o domnio daao em termos de prticas, planos de vida e unidade narrativa de uma vida. Estasaes longas e complexas serviro de ponto de apoio para a inteno tica, para odesejo de uma vida realizada. As prticas (do ingls, practice) so aes longascomo profisses, artes e jogos. Estas prticas supem longas cadeias de ao e deencaixe ou subordinao entre aes parciais e aes totais. Os planos de vida sounidades prticas ainda mais vastas que designamos como vida profissional, vidafamiliar, vida de lazer, etc., que se situam entre as prticas e o horizonte dos ideaisde um projeto global de uma existncia. Na unidade narrativa de uma vida soreunidos as prticas e os planos de vida. A forma narrativa permite a apreenso

    da vida humana na sua unicidade, a autodesignao da pessoa no encadeamentode uma vida humana. Aqui a ao, mediada narrativamente, adquire a extenso daunidade global da vida de uma pessoa.

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    reenvia quilo que, na inteno tica, mais atento singularidadedas situaes 22.

    Esta trplice distino tenta articular, primeiramente, contra aquelesque opem Antigos e Modernos, a tradio teleolgica aristotlica e atradio deontolgica kantiana, e, em segundo lugar, uma moral de

    princpios, seja aristotlica ou kantiana, e uma moral de situao.

    A distino entre moral e tica no se impe nem pela etimologia enem p ela histria do uso dos termos. Ambos nos remetem para a idiade costume (ethos em grego, mores em latim). Ricoeur, por simplesconveno, reserva o termo tica para a inteno de uma vida reali-

    zada e o de moral para a articulao desta inteno nasnormas , carac-terizadas, ao mesmo tempo, pela pretenso universalidade e por umefeito de constrangimento (1990, 200). A tica se refere ao que es-timado bom e a moral ao que se impe como obrigatrio. Ricoeurtenta, assim, articular a exigncia tica de uma vida realizada e felize a exigncia moral de universalizao. O lugar desta mediao dar-se- no plano da sabedoria prtica, sabedoria ligada escolha emsituao, ao julgamento moral em situao.

    Ricoeur d efine a tica, no p lano da inteno tica, como o d esejo davida boa com e para os outros nas instituies justas (1990, 202). Atica parte da convico de que existe uma maneira melhor de agire de viver. Ela visa o bem-pensar, o bem-viver e o bem-agir.Esta inteno da vida boa funciona como uma espcie de horizonteou d e idia-limite para a vida tica, e na med ida em que esta inteno[vise] o fim ltimo da ao, ela constitui o primeiro momento datica. Ela designa aquilo que estimado bom por um indivduo oucomunidade singular. Por isso ela est sempre ligada singularidadedas pessoas e das comunidades histricas.

    A tica, portanto, neste primeiro momento, se funda no desejo , nodesejo da vida boa , feliz ou realizada e no no dever ou obrigaomoral. O ponto de partida da tica, a primeira pulso tica aafirmao do desejo de ser, do esforo por existir, do desejo funda-mental de ser uma pessoa realizada; a afirmao ou atestao origi-nria de si como sujeito agente, como sujeito capaz.

    A inteno tica tem uma estrutura ternria: a estima de si, a soli-citud e ou cuidad o pelo outro e a p reocup ao pelas instituies justas.No plano da inteno tica o sujeito compreendido pela estimade si. A estima de si, primeira componente e ponto de partida datica, constitui o momento reflexivo do desejo da vida boa ou rea-lizada, a aplicao do predicado bom no plano da ao compre-

    22 Lectures 1. Autour du Politique, Paris: Seuil, 1991, 256.

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    caso sem cair n o arbtrio do situacionismo moral. A sabedoria prtica,que nas situaes graves rompe a fronteira entre o permitido e o proi-bido, busca o justo meio, a mediania, situando-se na linha do bomconselho, sem valor de princpio universal, mas que requer um tatomoral desenvolvido. O arbtrio do julgamento moral e poltico emsituao ser tanto m enor qu anto m ais o que d ecide, seja legislador ouno, se aconselhar com homens e mulheres mais competentes, se be-neficiar de um debate pblico.

    II. As mediaes intersubjetivas e polticas da

    subjetividade

    1. A mediao da alteridade na constituio do sujeito

    A passagem pelos planos da linguagem, da ao, da narrao e datica possibilitou a Ricoeur identificar um sujeito capaz de designar-se a si mesmo como locutor, de reconhecer-se como autor de suasaes, de identificar-se como personagem d e um relato de vida e de seimputar moralmente a responsabilidade de seus prprios atos. O Su- jeito capaz de retomar-se a si mesmo nas suas objetivaes lings-

    ticas, prticas, narrativas e ticas.

    Por outro lado, para Ricoeur, aproximando-se de Lvinas, o sujeitono pura atividade, pura capacidade de autodesignao nos seusatos e experincias. O su jeito m arcado tam bm por experincias dedespojamento, passividade e de alteridade. Ricoeur distingue trsexperincias de passividade-alteridade: a do corpo prprio; a do ou-tro, do outro como rosto no face-a-face e do outro como o cada u mda relao de justia; e a experincia da escuta da conscincia moralinteriorizada. Em Ricoeur, ao contrrio de Lvinas, para o qual aalteridade significa unicamente a exterioridade absoluta do outro, aalteridade uma noo polissmica (Cf 1990, 369).

    A questo decisiva para Ricoeur a constituio dialgica, intersu bjetivada ipseidade, da identidade do sujeito, a mediao do outro na cons-tituio da identidade do sujeito, pois o si s constitui sua identidadenuma estrutura relacional que faz prevalecer a dimenso dialgicasobre a dimenso monolgica 24. A identidade do sujeito compreen-dida como ipseidad e pod e escapar ao dilema do Mesmo e d o Outro,

    24 Le Juste, ditions Esprit, 1995, 14.

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    ao problema do solipsismo, na medida em que sua identidad e repousano modelo da identidade dinmica que incluiria a mudana, amutabilidade e a diversidade na coeso e unidade de uma vida. Aidentidade-ipse utiliza uma dialtica complementar dialtica damesmidade e da ipseidade, a saber, a dialtica do si e do diverso dosi. Ricoeur pensa numa alteridade constitutiva da prpria ipseidade.Soi-mme comme un autre sugere desde o comeo que a ipseidadedo si-mesmo implica a alteridade num grau to ntimo que uma nose deixa pensar sem a outra, que uma passa antes na outra, comodiramos em linguagem hegeliana (1990, 14).

    No processo da constituio da ipseidad e, isto , da identidade pesso-al nica e irrepetvel do sujeito, est implicado, simultaneamente, oprocesso de constituio da alteridade. Assim, para Ricoeur, aipseidade e a alteridade so co-originais. Originariamente o si e o

    outro no so rivais, mas implicam-se mutuamente. A relaobsica, originr ia, de confiana, no d e susp eita, embor a Ricoeurno desconhea a presena do mal nas relaes interpessoais. Aalteridade no se ajunta de fora ipseidade, mas pertence ao con-ted o de sentido d a ipseidad e. Esta dialtica interd ita ao si ocu pa ro lugar de fundamento, se identificar com o cogito ou com a cons-cincia tran scend ental.

    O corpo prprio e a conscincia moral designam lugares de umaforma original da dialtica entre ipseidade e alteridade (Cf 1990,

    369-380, 393ss). Limitar-nos-emos aqui alteridade do outro, sejao outro da relaes interpessoais , seja o outro das relaesinstitucionais.

    Ricoeur reconstri, no nvel fenomenolgico e ontolgico, a dialticaentre ipseidade e alteridade do outrem de forma cruzada e no uni-lateral, isto , cruzando o movimento da ipseidade para a alteridadee o da alteridade para a ipseidade, cruzando a tentativa husserliana ea lvinasiana. Esta dialtica s pode ser pensada a partir da dialticaanterior entre m esmidade e ipseidad e, a partir d as d uas significa-

    es da identidade do sujeito. Esta nova dialtica vai possibilitaruma significao mais rica da identidade do sujeito: a identidade entendid a, ao mesmo temp o, como capa cid ad e de autod esignaodo sujeito, desde a capacidade de autodesignar-se como sujeitofalante at capacidade de ser responsvel moralmente de seusatos, e como identidade dada pela destinao responsabilidadepelo outr o. Pensar a d ialtica entre ipseidad e e alteridad e pensardialeticamente a destinao responsabilidade pelo outro e o po-der de autod esignao do sujeito.

    Para Ricoeur a articulao desta dialtica passa necessariamente pelareviso das tentativas de Husserl e de Lvinas. Ricoeur tenta pensar

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    jun tos o mod elo hu sserliano e hegeliano d a reciprocidade e o modeloda dissimetria em favor do outro de Lvinas. Husserl, na quintaMeditao Cartesiana, pretende derivar o alter ego a partir do ego, epara isso reduz tud o esfera do prprio, suspendendo toda refernciad a experincia comu m ao ou tro. Assim, o nico caminho p ara cons-tituir o sentido do outro em e a partir do prprio. Mas, paraRicoeur, na epoch husserliana, comparvel dvida de Descar-tes, o outro est, desde o comeo, pressuposto: de uma maneiraou de outra, eu sempre soube que o outro no um de meusobjetos de pensamento, mas, como eu, um sujeito de pensamen-to;... (1990, 383). O outro s pode ser atestado, e no constitudopela intencionalidad e da conscincia. O outro p ressup osto no sna epoch, mas tambm na prpria formao do sentido da esferado p rprio: esta experincia d o p rprio s totalizvel com o au xliodo outro que me ajuda a me reunir, a manter-me na minha iden-

    tidade.

    A fenomenologia transcendental de Husserl herda as mesmas aporiasda filosofia de Descartes. incapaz de compreender, devido a suaposio egolgica, como a alteridade possa inscrever-se na conscin-cia. A aporia fundamental das filosofias do sujeito, segundo Ricoeur,consiste no fato de que o cogito, com a pretenso de fundartranscendentalmente a objetividad e a p artir de sua posio egolgica,suspendendo toda relao interlocutiva e histrica, incapaz de darconta de sua ident idade l imi tando-se a uma subje t iv idadedesancorad a, a uma identidade incerta, sem valor objetivo; e quan doo outro reconhecido, ou a sua irrupo pr iva o ego de toda dimensoprpria, como o caso de H um e, Espinoza e d e Nietzsche, ou o outro produzido mediante uma duplicao do cogito que exaltado comoo fund amento que se fun da em si mesmo, como o caso de Descar-tes, Kant e Husserl (Cf.1990, 15-22). Ou seja, se o sujeito parte de umaposio egolgica, no mom ento da irrup o da alteridade ou o su jeito destitudo de sua posio de fund amento ou a alteridad e reduzidaa um a dup licao do su jeito, constituda em e a p artir do p rpr io, da

    intencionalidade da conscincia.

    Mas, segundo Ricoeur, o fracasso da constituio do outro pelafenomenologia tran scendental de Husserl foi, paradoxalmente, a oca-sio de uma autntica descoberta, a saber, a descoberta do carterparadoxal do modo d e doao do outrem , que Husserl denominou d eApresentao: as intencionalidades que visam o outro como estra-nho, isto , diverso de mim, excedem a esfera do prprio na qual,todavia, se enrazam (1990, 384). No posso experimentar o outrocomo experimento a mim mesmo, minhas prp rias vivncias. A Apre-sentao, dis t inta da Representao, consis te na percepoanalogizante ou transferncia analgica mediante a qual o sentido

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    ego transferido a um outro corpo que, enquanto carne, reveste eletambm o sentido ego (1990, 386), isto , o sentido ego transferido,por uma percepo analogizante, ao alter ego. O outro algum quecomo eu diz eu. O termo ego, cujo sentido primeiro constitudono su jeito, na primeira pessoa, transferido analogicamente segund ae terceira pessoas. Se a transferncia no cria a alteridade, semprepressuposta, ela lhe confere uma significao especfica. Ela faz comque o outro no fique condenado em permanecer um estranho, maspode tornar-se meu semelhante, algum que como eu diz eu, al-gum que como eu capaz d e autodesignar-se na linguagem , na ao,na narrao e na imputao moral. O homem o meu semelhante,mesmo quando no est prximo de mim, sobretudo quando estdistante de mim... 25.

    Mas esta transferncia analgica de mim ao outro, descoberta por

    Husserl no plano gnoseolgico, s produz frutos, segundo Ricoeur,coordenada com a d estinao responsabilidad e pelo outro no pla-no tico tematizado por Lvinas. Se no plano gnoseolgico, o movi-mento de mim ao outro tem primazia, no plano tico, tem primazia omovimento inverso do outro a mim.

    Em Lvinas, a relao entre o eu e o outro uma no-relao, umarelao assimtrica e no recproca, pois no h nenhum a semelhanaentre o eu e o outro. O Eu significa totalizao, separao, vontade defechamento, assimilao e captu ra d o Ou tro. Segundo Ricoeur, a d is-

    tino entre ipse e idem no levada em conta por Lvinas. Destemodo a alteridade s pode aparecer como exterioridade absoluta, di-ferena rad ical. O outro absolve-se da relao, me probe o assassinatocom o mandamento no matars e me constitui responsvel. ParaLvinas, esta iniciativa d o outro qu e me convoca responsabilidadeque funda a tica.

    Ricoeur interpreta a ruptu ra da relao entre o mesmo e o outro comofruto do uso de duas hiprboles por parte de Lvinas, hiprbole daepoch husserliana: do lado do Mesmo, a hiprbole da separao,

    pela qual o eu diante do outro um eu obstinadamente fechado,entregue vontade de fazer crculo consigo mesmo, de se identificar,separado (1990, 389); do lado do Outro, a hiprbole da epifania ouda exterioridade absoluta, pela qual o outro aparece como ummestre de justia que me instrui, desde o alto como um Sinai(hiprbole da Altura) e desde o exterior (hiprbole da Exterioridade).

    Mas para Ricoeur, o despertar de uma resposta responsvel ao apelodo outro, a destinao responsabilidade pelo outro, pressupe no si

    25 Du texte laction ..., 295.

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    uma capacidade de entendimento e acolhimento deste apelo, dediscernimento das vrias figuras do outro: o mestre de justia doofensor, do carrasco, do senhor de escravo, etc. Esta capacidaderesultaria, segundo Ricoeur, da estrutura reflexiva da ipseidade.Assim, a relao distncia pretensamente absoluta entre o euseparad o e o outro d eve ser sobreposta, segund o Ricoeur, por u marelao de reciprocidade pela qual o Mesmo se abre ao Outro e avoz do Outro se interioriza no Mesmo. na linguagem, pela trocados pronomes pessoais, e principalmente no ato de fala da pro-messa, que Ricoeur encontra este modelo da reciprocidade: deti, me diz o outro, espero que mantenhas tua palavra; a ti, eurespondo, tu podes contar comigo (1990, 312). na promessa,pela sua estrutura didica, que a ipseidade se mostra constitudapor u ma alterid ade: a obrigao de man ter-se a si mesmo, man ten-do su as prom essas, fruto d a resposta expectativa d o outro qu e

    conta comigo, exigncia do outro. A manuteno da promessa enela, a manuteno de si, fruto da resposta expectativa dooutro que conta comigo , e no da dureza estica da simples cons-tncia. Um ou tro, contand o comigo, torna-me responsvel dos m eusatos, desperta m inha capacidad e de d esignar-me como o au tor dosprp rios atos. Por outro lad o, a responsabilidad e pelo outro su peno sujeito a capacidad e de ser autor ou responsvel pelos prp riosatos: se ns no pudssemos, com as coisas feitas, retomar numabreve rememorao o curso de nossos atos, reunindo-os em torno

    a um plo que dizemos ser ns-mesmos, autores dos nossos atos,ningum poderia mais contar conosco, esperar que mantenhamosas nossas promessas26. Ricoeur pensa junto a acepo contempo-rn ea d a resp onsabilid ad e pelo outr o, pelo frgil, pelo futu ro, etc.,e a acepo tradicional da responsabilidade como imputabilidade,como afirmao de si mesmo como autor dos prprios atos.

    Ricoeur v, finalmente, no tema da substituio, tema que rompecom a primazia da ipseidade sobre a alteridade, um tipo de in-verso da inverso. A destinao responsabilidade pelo outro

    interpretada em termos de p assividad e (o sujeito refm d o ou-tro), se inverte num lan de abnegao em que o si se atesta noprprio movimento no qual ele se destitui. O Mesmo no maisd efinid o p ela separao, mas p ela substituio, pela expiao. Pordetrs do tema da substituio, Ricoeur v ressurgir a temtica daipseidade. A responsabilidade pelo outro, a substituio, por maispassiva que seja, exige um quem, um si-mesmo, que no sejatematicamente tematizvel, mas um si-mesmo.

    26 Le sfide e le speranze del nostro comune futuro, Prospettiva Persona, n .1/ 2(1992): 8.

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    Deste confronto entre H usserl e Lvinas resulta que os d ois movimen-tos do Si para o Outro e do Outro para o Si no se anulam, mas secruzam. Ele cruza o critrio perceptivo da ap resentao do outrem deHusserl e o critrio tico-moral da injuno vind a do outro d e Lvinas.Ricoeur corrige Husserl com Lvinas quando a reflexividade corre orisco de fechar-se sobre si mesma, e corrige Lvinas com Husserlquando a alteridade tende a suprimir a reflexividade. Injuno ticavinda do outro e capacidade de autodesignao remetem-se mutua-mente. Ricoeur quer pensar um sujeito capaz como co-originrio destinao responsabilidade pelo outro.

    2. O sujeito institucionalmente mediatizado

    Vimos que o sujeito humano se distingue por suas disposies epotencialidades, mas que estas s se desenvolvem no espaointerpessoal e institucional, na relao de proximidade com o outrocomo um tu, a saber, na amizade, no amor, etc., e na relao com ooutro mediada pelas instituies. Somente num meio societal espec-fico que as capacidad es e disposies do su jeito podem desenvolver-se, que o indivduo se torna humano. Aqui decisiva a distinoantropolgica entre capacidade ou potencialidade e efetuao ou rea-lizao.

    Esta mediao institucional do sujeito j aparecera, em Ricoeur, nostrs planos antropolgicos da linguagem, da ao e da narrao. Alingu agem, e dentro d ela, o ato de fala da promessa, o parad igmada passagem p ela instituio. A situao de interlocuo pela qu al umeu e um tu so capazes de autodesignarem-se como sujeitos falantess completa quando referida instituio mesma da linguagem, suas regras, na qu al se enqu adra a relao interpessoal do d ilogo. Asregras comuns da lngua englobam todos os locutores de uma mesmalngua natura l que no se conhecem, mas qu e esto ligados pelo reco-nhecimento de regras comuns, pela confiana mtua entre os mem-

    bros da comunidade lingstica. Assim a promessa no se resume mtua obrigao entre indivduos, mas exige uma dimenso pblica,societal. S existe obrigao m tu a entre indivdu os movendo-se nu mplano de fund o de u ma obrigao que um quase-contrato, um a p ro-messa da promessa. Segundo Ricoeur, o princpio de fidelidade ou aobrigao de cumprir a prom essa no deriva da promessa em si entredois indivduos, mas de uma dimenso pblica que diz que temosque manter as nossas promessas para aumentar a confiana de todosno esquema de cooperao da comunidade 27. A estrutura da promes-

    27 Indivduo e identidade pessoal, 84-85.

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    sa mantm a referncia instituio que mediatiza a confiana mtuaentre os sujeitos. Como veremos no terceiro captulo, esta dimensop blica e plural da p romessa vai coincidir com a p roblemtica da justia.

    O sujeito humano s se torna um sujeito de poderes e direitos reais,um cidado, na medida em que entra no espao de uma pluralidade

    de iguais, de uma ordem de reconhecimento, de uma relao comterceiros, com todos aqueles que o face-a-face entre o eu e o tu deixafora, englobando qualquer um que vive sob as mesmas leis, desdea cidade at humanidade inteira. Deste modo, o poltico aparece,entre as mediaes institucionais, como lugar por excelncia de reali-zao das potencialidades humanas. no plano poltico que a medi-ao das instituies encontra seu lugar por excelncia. Da o grandefascnio e tentao que a idia hegeliana da Sittlichkeit, entend ida comoo conjunto das mediaes institucionais de realizao da liberdade,exerce sobre o pensamento de Ricoeur. Ricoeur desmistifica, porm,des-absolutiza o papel do p oder p oltico e do Estado nesta arqu iteturade med iaes entre as potencialidades do sujeito e sua realizao nascondies de cidado. O Estado no o divino entre ns, a recon-ciliao definitiva entre a vontade subjetiva e a vontade coletiva. Eleocup a um a posio ambgua e paradoxal na medida em que por rela-o justia, constitui um a esfera de justia entre ou tras, e, ao mesmotempo, aquilo que compreende todas as esferas; , ao mesmo tempo,todo e p arte. Alm d o mais, o Estado-Nao no h oje a nica medi-ao poltica da ao humana. Hoje, segundo Ricoeur, assistimos ao

    aparecimento de mediaes polticas infra e supra-estatais, trazendonovas possibilidades, mas tambm novos problemas.

    O p oltico est constitudo por um a srie de paradoxos. O poltico aomesmo tempo a relao horizontal-consensual constituda pelo que-rer e agir em comum de uma comunidade histrica e a relao ver-tical-hierrquica constituda pela relao de autoridade. O poltico sedefine por este pod er em comu m, por este projeto de viver e agir emcomum de u ma comunidade histrica tomada indivisamente, por u mprojeto de vida feliz em comu m, e p or regras e organizaes jur dico-

    polticas constrangedoras. Este paradoxo entre a relao horizontal dopoder em comum e a relao vertical da autoridade reaparece naprpria estrutura estatal onde se confrontam a Forma jurdica, aracionalidade do Estado, e a Fora ou a violncia do Estado. O acentosobre a Forma privilegia o aspecto racional e constitucional de umEstado de direito comp reend ido como o Estado qu e fixa as cond iesreais e as garantias da igualdade de todos perante a lei, privilegia oformalismo jurdico, a independncia da funo pblica e dos juizes,a burocracia profissional e ntegra, o controle parlamentar, etc. Mas oEstado de d ireito est marcado tambm pela violncia, pela alienao,pela mentira e pelas contradies: pela violncia fundadora dos acu-mu ladores de terra, dos tiranos fazedores de histria, etc., pela violn-

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    cia residual da fora policial, do monoplio da violncia mesmo quelegtima, da representao desigual das foras sociais no Estado, e doprprio carter particular e emprico do Estado.

    O poltico e suas instituies so frgeis, a relao de pertena a umcorpo poltico pode ser esquecida. Segundo Ricoeur, esta fragilidade

    pode dar lugar a idia de responsabilidade. Diante delas o sujeito interpelado a ser responsvel por elas. O frgil conta conosco, esperaa nossa ajuda e o nosso cuidado. Assim, a confiana e esperana queRicoeur pe na histria no depende de um pretendido sentido dahistria, de um progresso ilimitado ou de uma providncia, mas doengajamento e da responsabilidade dos sujeitos face aos desafios,embora seja uma esperana sem garantia de sucesso28 .

    O que est em questo, aqui, a interpretao da p ertena poltica dosujeito human o, do lugar do poltico na ao hum ana, e do conseqen-

    te estatuto da obrigao que liga o sujeito comunidade poltica.Ricoeur destaca duas interpretaes da pertena poltica do sujeito,que correspondem a duas verses do liberalismo. Na verso ultra-individualista, cuja expresso mais notvel a tradio do ContratoSocial, o sujeito hum ano individual concebido como sujeito de pod e-res e direitos antes de entrar na relao societal, contratual, sendo asua associao a outros indivduos num corpo poltico extrnseca, ale-atria e revogvel. Assim, a pertena comunidade poltica e a conse-qente obrigao de servir estas instituies extrnseca e revogvel,

    pois o sujeito j se encontra completo e desenvolvido. Na segunda ver-so, para a qual Ricoeur manifesta sua preferncia, sem a mediaoinstitucional, o indivduo humano no seno um esboo do homem,um homem virtual, sendo sua pertena a um corpo poltico intrnseca,necessria para seu desenvolvimento humano e, neste sentido, ela nopode ser revogada. A d imenso poltica constitutiva do ser do homem.

    Na perspectiva ricoeuriana, o sujeito , por si mesmo, um sujeito decapacidades e potencialidad es, um sujeito de d ireitos humanos, isto, de direitos ligados ao homem enquanto tal, s suas capacidade e

    potencialidad es, e no enqu anto membro de um a comu nidad e polticaconcebida como fonte de direitos positivos. Mas, contra o atomismojurdico-poltico, este sujeito somente se torna um sujeito real d e d irei-tos na medida em que passa pela mediao institucional. A represen-tao de um sujeito portador de direitos, fora de todo lao comunit-rio, arbitrria.

    A relao do sujeito com a comunidade poltica , portanto, pensadapor Ricoeur a partir da relao recproca entre as capacidades imedi-

    28 Cf. Le sfide e le speranze del nostro comune futuro, Prospettiva Persona, ano II,n. 4 (1993).

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    atamente dignas de respeito e a instituio poltica que mediatiza aatualizao destas capacidades 29 (1991 a, 164), entre a autonomiaindiv idual e a per tena ins t i tuc ional ou sent imento de umendividamento mtuo.

    III. Qual ontologia do sujeito?

    Em Soi-mme comme un autre, Ricoeur aborda inicialmente a subje-tividade no do ponto de vista ontolgico (que espcie de ser ou en-tidade o si), mas d o ponto d e vista lingstico (como o si designadopela linguagem), depois do ponto de vista prtico, narrativo e tico-poltico. Uma ontologia do sujeito s pod e ser pensad a depois de passar

    pelo longo desvio da hermenutica do si nas suas mltiplas deter-minaes. Nesta obra, a herm enutica do si introd uzida pela ques-to qu em?: quem fala?, quem age?, quem descrito?, quem o sujeito moral de imputao?. Somente no 10o e ltimo estudo,Ricoeur esboar uma abordagem ontolgica. Para ele a ontologia um discurso de segund o grau em relao ao discurso fenomenolgico-hermenutico.

    A filosofia de Ricoeur marcada d esde o incio por uma preocup aoontolgica, pela pergun ta pelo ser, pelo ser d o sujeito que pensa, que

    age, que sente, que vive. Esta inteno ontolgica obedece a uma con-vico ontolgica: a de qu e o sujeito, antes que sujeito de conhecimen-to, afirmao originria ... ato [de ser] mais do que forma, afirmaoviva, poder de existir e de fazer existir 30. Isto significa a primazia daexistncia, do ato de ser sobre o ato reflexivo, isto , sobre a conscin-cia, a representao e o pensar. A verdade primeira no cogito ergosum , mas sum ergo cogito. A representao in te lec tual e aintencionalidade notica manifestao do ato de ser, interpretadopor Ricoeur como esforo por existir, apetite, desejo de ser. Ricoeurreinterpreta a ontologia aristotlica do ato-potncia, do ser como ato,

    atravs de Espinoza e de Leibniz. Ele relaciona o ato de ser com oconatus de Espinoza e com o appetitus de Leibniz. Portanto, o atoreflexivo mediante o qual o sujeito se retoma, se apreende e se iden-tifica, manifestao do ato de ser, do esforo por existir. A reflexo,segundo Ricoeur, a apropriao de nosso esforo por existir, de nossodesejo d e ser. Mas a reflexo no intu io nem comp reenso d ireta,imediata, de si por si mesmo. No possvel a apreenso imediata ed ireta de si por si mesmo med iante um ato de reflexo que identifique

    29 Lectures 1. Autour du Politique, 164.30 Histoire et vrit, Paris: Seuil, coll. Esprit, 1955.

  • 8/6/2019 sujeito tico-poltico ricoeur

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    intuio e reflexo. No possvel que o sujeito d conta de seu pr-prio ser por meio unicamente da atividade notico-reflexiva. Ricoeurse situa dentro da tradio da filosofia reflexiva e da fenomenologia,mas critica sua p retenso imed iatez e transp arncia. Ricoeur aban-dona tanto a pretenso cartesiana do fundamento ltimo, como a ilu-so fenomenolgica de um eu transcendental, origem do sentido. Comoveremos mais adiante, a reflexo, a volta a si do sujeito, marcadapelo carter mediato e indireto. Ela mediatizada pela interpretao,pela hermenutica dos signos, smbolos e textos nos quais o sujeito seobjetiva. Por isso, a filosofia reflexiva e fenomenologia se convertemem hermenut ica. E a hermenut ica faz a mediao entre afenomenologia e a ontologia. Toda compreenso de si dever sermediatizada pela anlise dos smbolos, signos, textos, etc. Ahermenutica , para Ricoeur, a via obrigatria que a reflexo deveatravessar para a reapropriao de seu ser e de seu desejo de existir.

    Ricoeur define a hermenutica como a decifrao mesma da vida noespelho do texto31, a decifrao da nossa existncia no espelho dossmbolos, textos, documentos, etc.

    Assim, a compreenso ontolgica do sujeito, sua identidade, fica pen-dente da interpretao hermenutica. Por isso, a questo ontolgica sempre adiada por Ricoeur como discurso de segundo grau, como umaterra prometida. E posto que no possvel uma hermenutica nicae universal, cada hermenutica descobrir um aspecto da existncia,tornando possvel apenas uma ontologia m ilitante, sempre contingen-

    te, do sujeito. O sujeito no pode ser identificado adequadamente. Osujeito ferido, fragmentado 32 pela mu ltiplicidade de op eraes emque se exprime, pela fragmentao e disperso das expresses da vidado sujeito, mas tambm pela d istncia entre a existncia (o ser) e a refle-xo. necessrio ento unir atestao de nosso esforo por existir, afirmao ontolgica a confisso de uma douta ignorncia, as aporiase paradoxos do sujeito. Por isso, a questo quem?, quem sou?, apergunta kantiana o que o homem? continua sempre aberta paraRicoeur. Ricoeur, porm, conserva sempre em seu pensamento u ma in-teno ontolgica unificante, uma pretenso de totalidade como funo

    regulativa, sem jamais aceder a um saber absoluto.

    Endereo do Autor:Rua Contendas, 749 Apto 20130.430-480 Belo Horizonte MG

    31 P. RICOEUR, O conflito das interpretaes. Ensaios de hermenutica. 322.32

    O sujeito ferido , para Ricoeur, a expresso, no plano da compreenso de si,da sistematicidade quebrada, do pensamento fragmentrio que caracteriza nossapoca.