O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

24
Literatura: teoría, historia, crítica 23·1 (2021) · pp. 161-184 ISSN 0123-5931 (impreso) · 2256-5450 (en línea) http://dx.doi.org/10.15446/lthc.v23n1.90598 O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação literária: o dilema pós-colonial Marcelo Brandão Mattos Universidade Federal Fluminense, Fluminense, Brasil [email protected] A aproximação acadêmica entre a literatura comparada e os estudos culturais, importante vertente das pesquisas pós-coloniais, produziu desafiadoras hipóteses científicas. Neste artigo discutimos as impli- cações acadêmico-científicas na utilização do conceito sociológico de “lugar de fala” para a análise da enunciação literária. Para tanto, estão aqui referidas teorias do discurso ficcional e da narrativa, teorias pós-coloniais e conceitos sociológicos acerca da representatividade de grupos sociais minoritários. Como ilustração das ideias propostas, ao final, alguns escritores literários africanos representantes do mundo pós-colonial estão referidos. Palavras-chave: estudos culturais; literaturas pós-coloniais; lugar de fala; pós-colonialismo. Cómo citar este artículo (mla): Brandão Mattos, Marcelo. “O ‘lugar de fala’ e as ‘falas do lugar’ na enunciação literária: o dilema pós-colonial”. Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 23, núm. 1, 2021, págs. 161-184. Artículo original. Recibido: 20/05/20; aceptado: 04/09/20. Publicado en línea: 01/01/21.

Transcript of O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

Page 1: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184ISSN 0123-5931 (impreso) middot 2256-5450 (en liacutenea)

httpdxdoiorg1015446lthcv23n190598

O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteria o dilema poacutes-colonial

Marcelo Brandatildeo MattosUniversidade Federal Fluminense Fluminense Brasil

marcelobmattosglobocom

A aproximaccedilatildeo acadecircmica entre a literatura comparada e os estudos culturais importante vertente das pesquisas poacutes-coloniais produziu desafiadoras hipoacuteteses cientiacuteficas Neste artigo discutimos as impli-caccedilotildees acadecircmico-cientiacuteficas na utilizaccedilatildeo do conceito socioloacutegico de ldquolugar de falardquo para a anaacutelise da enunciaccedilatildeo literaacuteria Para tanto estatildeo aqui referidas teorias do discurso ficcional e da narrativa teorias poacutes-coloniais e conceitos socioloacutegicos acerca da representatividade de grupos sociais minoritaacuterios Como ilustraccedilatildeo das ideias propostas ao final alguns escritores literaacuterios africanos representantes do mundo poacutes-colonial estatildeo referidos

Palavras-chave estudos culturais literaturas poacutes-coloniais lugar de fala poacutes-colonialismo

Coacutemo citar este artiacuteculo (mla) Brandatildeo Mattos Marcelo ldquoO lsquolugar de falarsquo e as lsquofalas do lugarrsquo na enunciaccedilatildeo literaacuteria o dilema poacutes-colonialrdquo Literatura teoriacutea historia criacutetica vol 23 nuacutem 1 2021 paacutegs 161-184

Artiacuteculo original Recibido 200520 aceptado 040920 Publicado en liacutenea 010121

162

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

El ldquolugar de hablardquo y los ldquodiscursos desde el lugarrdquo en la enunciacioacuten literaria el dilema poscolonial

El enfoque acadeacutemico entre la literatura comparada y los estudios culturales un aspecto importante de la investigacioacuten poscolonial ha producido hipoacutetesis cientiacuteficas desafiantes En este artiacuteculo discutimos las implicaciones acadeacutemico-cientiacuteficas del uso del concepto socioloacutegico de ldquolugar de hablardquo para el anaacutelisis de la enunciacioacuten literaria Para este propoacutesito se hace referencia a las teoriacuteas del discurso ficticio y la narrativa las teoriacuteas poscoloniales y los conceptos socioloacutegicos sobre la representatividad de los grupos sociales minoritarios Como ilustracioacuten de las ideas propuestas al final se mencionan algunos escritores literarios africanos representantes del mundo poscolonial

Palabras clave estudios culturales literatura poscolonial lugar de habla poscolonialismo

The ldquoPlace of Speakrdquo and ldquoSpeaking from the Placerdquo in Literary Enunciation the Post-Colonial Dilema

The academic approach between comparative literature and cultural studies a relevant aspect of post-colonial research has produced challenging scientific hypotheses In this article we discuss the academic-scientific implications of using the sociological concept of ldquoplace of speechrdquo for the analysis of literary enunciation For this purpose we refer to theories of fictional discourse and narrative post-colonial theories and sociological concepts about the representativeness of minority social groups As an illustration of the proposed ideas in the end we mention African literary writers representatives of the post-colonial world

Keywords cultural studies post-colonial literature place of speech post-colonialism

163

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Notas introdutoacuterias

O viacutenculo acadecircmico entre literatura e estudos culturais se intensificou com o desenvolvimento das pesquisas poacutes-coloniais sobretudo aquelas dedicadas agraves culturas latino-americanas e

africanas em meados do seacuteculo xx No ensaio ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo publicado como o capiacutetulo introdutoacuterio do livro Literatura e Estudos Culturais a pesquisadora Else Vieira aponta para o que denomina ldquouma mudanccedila paradigmaacutetica o deslocamento dos Estudos Literaacuterios para o acircmbito dos Estudos Culturaisrdquo (9) O ldquodeslocamento paradigmaacuteticordquo proposto pela professora nada mais eacute do que uma (re)conduccedilatildeo das literaturas a um espaccedilo de diaacutelogo com a sociologia a antropologia a histoacuteria e a geografia A ldquoliteratura em-si-mesmardquo mdash um importante vieacutes analiacutetico proposto pelos criacuteticos estruturalistas sobre os quais pensaremos adiante jaacute natildeo contempla(va) plenamente aquilo que muitos autores pesquisadores e ateacute leitores-comuns passaram a debater a partir da leitura de textos literaacuterios

A busca por uma representatividade social nos textos ficcionais natildeo era apenas da ordem do desejo mas da necessidade histoacuterica Teoacutericos como Homi Bhabha e Edward Said dentre tantos outros dissertam acerca do silenciamento histoacuterico-cultural que se deu nos povos colonizados em virtude da imposiccedilatildeo de tradiccedilotildees euro-ocidentais uma estrateacutegia poliacutetica de dominaccedilatildeo O ldquoapagamento de registrosrdquo contudo sempre foi (e seraacute) meramente protocolar uma vez que natildeo se apaga a memoacuteria coletiva Aos ficcionistas agrave sombra dos discursos oficiais eacute possiacutevel documentar o indiziacutevel (no sentido censor da palavra) fazer histoacuteria pela literatura obviamente sem a pretensatildeo de substituiacute-la Esse eacute o principal ponto de encontro entre os leitores que buscam registros reais na literatura rasgada a historiografia eacute legiacutetimo recorrer agrave narrativa ficcional em busca dos ldquosinais de vidardquo histoacuterico-culturais

O vieacutes histoacuterico de leitura no entanto natildeo deve implicar agrave ficccedilatildeo a obrigatoriedade da funccedilatildeo documental pondo em prejuiacutezo sua liberdade artiacutestica Haacute que se preservar no que tange agrave criaccedilatildeo literaacuteria o espaccedilo ldquodiegeacuteticordquo mdash tatildeo caro aos Estudos Literaacuterios conforme define Geacuterard Genette em ldquoDiscurso da Narrativardquo mdash sendo este o ldquoambienterdquo que

164

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

desligado da realidade passa a representaacute-la A representaccedilatildeo artiacutestica eacute a garantia de que toda obra possa transpor o autor e suas vinculaccedilotildees espaciotemporais A teoria estruturalista conforme eacute referida antes (res)salvou a obra artiacutestica-literaacuteria de sua matriz de produccedilatildeo de modo a permitir-lhe seguir o proacuteprio curso com consideraacutevel autonomia (alguns diratildeo autonomia demais)

A tensatildeo conceptual proposta nestes paraacutegrafos introdutoacuterios eacute o ponto crucial de nossas pretensotildees argumentativas neste artigo quanto o texto literaacuterio tem ou natildeo tem viacutenculos com o seu autor e as amarras histoacutericas que lhe satildeo proacuteprias Entretanto nem mesmo aqueles que defendem a vinculaccedilatildeo histoacuterico-cultural dos textos literaacuterios podem negar a libertaccedilatildeo da ldquoidentidade ficcionalrdquo (um termo aqui proposto) eacute uma garantia da arte literaacuteria da qual natildeo se pode prescindir Houve um tempo em que os leitores dos iniciantes aos criacuteticos buscavam nas obras uma ldquoaurardquo do seu criador tornando a leitura uma pesquisa da persona-autora Esse fenocircmeno eacute descrito por Roland Barthes no emblemaacutetico texto em que propotildee para a anaacutelise literaacuteria o consagrado conceito da ldquomorte do autorrdquo

O autor reina ainda nos manuais de histoacuteria literaacuteria nas biografias de escritores nas entrevistas das revistas e na proacutepria consciecircncia dos literatos preocupados em juntar graccedilas ao seu diaacuterio iacutentimo a sua pessoa e a sua obra a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente eacute tiranicamente centrada no autor na sua pessoa na sua histoacuteria nos seus gostos nas suas paixotildees a criacutetica consiste ainda a maior parte das vezes em dizer que a obra de Baudelaire eacute o falhanccedilo do homem Baudelaire que a de Van Gogh eacute a sua loucura a de Tchaikovsky o seu viacutecio a explicaccedilatildeo da obra eacute sempre procurada do lado de quem a produziu como se atraveacutes da alegoria mais ou menos transparente da ficccedilatildeo fosse sempre afinal a voz de uma soacute e mesma pessoa o autor que nos entregasse a sua ldquoconfidecircnciardquo (50)

No ldquoreinado tiracircnico do autorrdquo conforme assinala o teoacuterico francecircs natildeo se admite a libertaccedilatildeo do enunciador na medida em que o vieacutes de leitura eacute o ldquoda confidecircnciardquo No entanto sabem os escritores e os leitores maduros1 o texto literaacuterio eacute sempre uma encenaccedilatildeo Aquilo que Fernando

1 O termo leitor maduro eacute de uso corrente entre os teoacutericos que avaliam a habilidade leitora Segundo Marisa Lajolo ldquoleitor maduro eacute aquele para quem cada nova leitura desloca e

165

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Pessoa reproduziu ludicamente com seus heterocircnimos eacute a siacutentese da criaccedilatildeo literaacuteria a identidade do enunciador eacute um jogo-de-cena mesmo quando ele se pretende imprimir Pessoanamente isso quer dizer que ateacute o eu--liacuterico ldquoFernando Pessoa Ele-mesmordquo como se convencionou chamar por diferenciaccedilatildeo aos seus heterocircnimos natildeo pode ser confundido com o autor que de maneira homocircnima se reconhece no registro civil com a patente da obra Diraacute Barthes a respeito

Natildeo seraacute jamais possiacutevel saber [a verdadeira ldquoidentidaderdquo do autor] pela simples razatildeo que a escritura eacute a destruiccedilatildeo de toda voz de toda origem A escritura eacute esse neutro esse composto esse obliacutequo pelo qual foge o nosso sujeito o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade a comeccedilar pela do corpo que escreve (57)

A neutralidade proposta pela teoria barthesiana se tornou um fundamento dos estudos literaacuterios que na visatildeo de muitos pesquisadores afetados pela linha estruturalista impedia qualquer identificaccedilatildeo de um rastro autoral nas obras literaacuterias Lido agrave risca Barthes se tornou o algoz dos autores condenando-os a uma sepultura de onde jaacute natildeo poderiam enunciar Eacute possiacutevel no entanto advertir para o fato de o teoacuterico natildeo ter necessariamente preconizado o desaparecimento integral de qualquer sintoma autoral em especial naquilo que corresponde agrave mente criadora inexoravelmente perpassada por valores que se traduzem nas escolhas de produccedilatildeo artiacutestica Seu intuito foi o de dissipar a enunciaccedilatildeo para aleacutem do que seria uma autoria ldquomonocoacuterdiardquo centrada na ilusatildeo de um sujeito integral (que natildeo considera a desconstruccedilatildeo subjetiva tatildeo difundida na poacutes-modernidade) Isso se deduz no trecho em que Roland Barthes afirma

Sabemos agora que um texto natildeo eacute feito de uma linha de palavras a produzir um sentido uacutenico de certa maneira teoloacutegico (que seria a ldquomensagemrdquo do Autor-Deus) mas um espaccedilo de dimensotildees muacuteltiplas onde se casam e se contestam escrituras variadas das quais nenhuma eacute original o texto eacute um tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos mil focos da cultura(Barthes 68-69)

altera o significado de tudo o que ele jaacute leu tornando mais profunda sua compreensatildeo dos livros das gentes e da vidardquo (53)

166

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Para advogar em defesa do teoacuterico injustamente acusado por um crime que natildeo cometeu2 registre-se o fato de que nas entrelinhas do seu texto pode-se entender a figura do autor como depositaacuterio das ldquodimensotildees muacutel-tiplasrdquo o instrumento por onde se alinhavam as ldquocitaccedilotildeesrdquo e os ldquomil focos de culturardquo Nesse sentido a ldquosentenccedila de morterdquo da teoria barthesiana que impediria aos adeptos qualquer discussatildeo sobre autoria pode ser entendida como efeito de uma deturpada interpretaccedilatildeo textual incapaz de modalizar e contextualizar o que fora escrito

Em sincronia com o texto de Barthes embora seja distinta sua orien-taccedilatildeo epistemoloacutegica Mikhail Bakhtin propotildee uma duplicaccedilatildeo da autoria de modo que o enunciador do plano ficcional mdash que ele chama de autor secundaacuterio mdash se desprenda da entidade primaacuteria autoral (o ldquoautor em sirdquo) tornando-a oculta sem contudo sentenciaacute-la agrave morte mdash efeito que Gyoumlrgy Lukaacutecs define como ldquoironiardquo3 Por esse vieacutes teoacuterico passou a ser aceitaacutevel aos estudiosos voltados agraves linhas de pesquisa que exploram os viacutenculos entre a literatura e os estudos culturais ldquoressuscitarrdquo o autor e sua voz se natildeo no plano diegeacutetico ao menos nas entrelinhas textuais ou pensando do ponto de vista linguiacutestico no niacutevel do discurso4

A voz do autor poacutes-colonial

Sem a identificaccedilatildeo da entidade autoral natildeo seria possiacutevel forjar os estudos dedicados a compreender e inclusive definir as coletacircneas literaacuterias latino-americana e africana Eacute preciso considerar que a produccedilatildeo literaacuteria nesses espaccedilos poacutes-coloniais se deu de iniacutecio por intermeacutedio (ou influecircn-cia) da gestatildeo colonial e se registra graficamente nas liacutenguas herdadas dos colonizadores Nesse sentido a se considerarem ldquomortos os autoresrdquo as obras publicadas nas naccedilotildees latino-americanas e africanas independentes

2 A fonte em itaacutelico foi utilizada para apontar um jogo a linguagem criminal faz referecircncia agrave utilizaccedilatildeo do termo morte aqui repensado

3 O termo natildeo se confunde com a figura de linguagem que permite a eliacuteptica negaccedilatildeo da mensagem na forma pela qual o ldquoditordquo eacute o ldquonatildeo ditordquo Nas palavras de Lukaacutecs a ironia estaacute em ldquodizer por outrordquo preservando as intenccedilotildees primaacuterias a um universo oculto que alguns poderatildeo depreender nos subtextos acessiacuteveis apenas no aprofundado plano da exegese

4 ldquoO discurso eacute socialmente construiacutedo [] constituindo os sujeitos sociais as relaccedilotildees sociais e os sistemas de conhecimento e crenccedila e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideoloacutegicos construtivosrdquo (Fairclough 58)

167

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metroacutepoles mdash que por forccedila das circunstacircncias poliacuteticas agrave altura compunham (hoje com-potildeem) o que se passou a denominar internacionalmente como ldquoliteratura universalrdquo Eacute contudo na diferenccedila ao ldquoOcidenterdquo mdash pensado nas palavras de Walter Mignolo natildeo para ldquoreferir agrave geografia por si soacute mas agrave geopoliacutetica do conhecimentordquo (290) mdash que se constituem esses grupamentos literaacuterios poacutes-coloniais

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas passou a interessar um estudo de reconhecimento natildeo apenas dos conteuacutedos locais (ou vinculados ao espaccedilo local em oposiccedilatildeo ao global) mas mdash e sobre-tudo mdash dos recursos formais que na fratura leacutexico-sintaacutetica das liacutenguas importadas expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental Evidentemente tais estudos soacute se desenvolveram a partir do conhecimento da linguiacutestica como ciecircncia mdash falamos portanto do trabalho de Fernand de Saussure em seu ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo publicado em 1916 a desenvolver a noccedilatildeo de variedade linguiacutestica geograacutefica mdash e a partir daiacute da consciecircncia de que a literatura nacional natildeo se devia curvar agraves exigecircncias formais da comunidade artiacutestico-intelectual eurocecircntrica

Do ponto de vista da produccedilatildeo literaacuteria mdash evidentemente em conexatildeo com essa cronologia cientiacutefica mdash observam-se no mesmo periacuteodo (no iniacutecio do seacuteculo xx) a eclosatildeo de movimentos artiacutesticos libertadores como o mo-dernismo brasileiro a propor uma espeacutecie de novo grito de independecircncia sob a oacutetica linguiacutestico-cultural intermediado pelos ideais antropofaacutegicos O conceito de ldquoantropofagia culturalrdquo popularizado textualmente por Oswald de Andrade se disseminou por toda a Ameacuterica Latina e atravessou o Atlacircntico ecoando nas reuniotildees secretas dos intelectuais libertaacuterios africanos Tendo por base (dentre outros) esse conceito as jovens naccedilotildees independentes de Aacutefrica decretaram a ruptura com as letras europeias (entatildeo metropolitanas) e ao mesmo tempo o nascimento de novos corpus literaacuterios cunhados a partir da noccedilatildeo identitaacuteria apenas o autor que obtivesse ldquocertidatildeo africanardquo poderia representar de maneira simboacutelica e artistica ao continente5

5 A questatildeo da certificaccedilatildeo identitaacuteria evidentemente natildeo eacute simples nem banal ndash seja na Aacutefrica ou em qualquer territoacuterio poacutes-colonial A complexa noccedilatildeo importa inclusive agrave discussatildeo proposta neste artigo mas seraacute postergada para o trecho adiante em que se propotildee discutir o identitarismo como um ldquopressuposto ficcionalrdquo

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 2: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

162

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

El ldquolugar de hablardquo y los ldquodiscursos desde el lugarrdquo en la enunciacioacuten literaria el dilema poscolonial

El enfoque acadeacutemico entre la literatura comparada y los estudios culturales un aspecto importante de la investigacioacuten poscolonial ha producido hipoacutetesis cientiacuteficas desafiantes En este artiacuteculo discutimos las implicaciones acadeacutemico-cientiacuteficas del uso del concepto socioloacutegico de ldquolugar de hablardquo para el anaacutelisis de la enunciacioacuten literaria Para este propoacutesito se hace referencia a las teoriacuteas del discurso ficticio y la narrativa las teoriacuteas poscoloniales y los conceptos socioloacutegicos sobre la representatividad de los grupos sociales minoritarios Como ilustracioacuten de las ideas propuestas al final se mencionan algunos escritores literarios africanos representantes del mundo poscolonial

Palabras clave estudios culturales literatura poscolonial lugar de habla poscolonialismo

The ldquoPlace of Speakrdquo and ldquoSpeaking from the Placerdquo in Literary Enunciation the Post-Colonial Dilema

The academic approach between comparative literature and cultural studies a relevant aspect of post-colonial research has produced challenging scientific hypotheses In this article we discuss the academic-scientific implications of using the sociological concept of ldquoplace of speechrdquo for the analysis of literary enunciation For this purpose we refer to theories of fictional discourse and narrative post-colonial theories and sociological concepts about the representativeness of minority social groups As an illustration of the proposed ideas in the end we mention African literary writers representatives of the post-colonial world

Keywords cultural studies post-colonial literature place of speech post-colonialism

163

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Notas introdutoacuterias

O viacutenculo acadecircmico entre literatura e estudos culturais se intensificou com o desenvolvimento das pesquisas poacutes-coloniais sobretudo aquelas dedicadas agraves culturas latino-americanas e

africanas em meados do seacuteculo xx No ensaio ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo publicado como o capiacutetulo introdutoacuterio do livro Literatura e Estudos Culturais a pesquisadora Else Vieira aponta para o que denomina ldquouma mudanccedila paradigmaacutetica o deslocamento dos Estudos Literaacuterios para o acircmbito dos Estudos Culturaisrdquo (9) O ldquodeslocamento paradigmaacuteticordquo proposto pela professora nada mais eacute do que uma (re)conduccedilatildeo das literaturas a um espaccedilo de diaacutelogo com a sociologia a antropologia a histoacuteria e a geografia A ldquoliteratura em-si-mesmardquo mdash um importante vieacutes analiacutetico proposto pelos criacuteticos estruturalistas sobre os quais pensaremos adiante jaacute natildeo contempla(va) plenamente aquilo que muitos autores pesquisadores e ateacute leitores-comuns passaram a debater a partir da leitura de textos literaacuterios

A busca por uma representatividade social nos textos ficcionais natildeo era apenas da ordem do desejo mas da necessidade histoacuterica Teoacutericos como Homi Bhabha e Edward Said dentre tantos outros dissertam acerca do silenciamento histoacuterico-cultural que se deu nos povos colonizados em virtude da imposiccedilatildeo de tradiccedilotildees euro-ocidentais uma estrateacutegia poliacutetica de dominaccedilatildeo O ldquoapagamento de registrosrdquo contudo sempre foi (e seraacute) meramente protocolar uma vez que natildeo se apaga a memoacuteria coletiva Aos ficcionistas agrave sombra dos discursos oficiais eacute possiacutevel documentar o indiziacutevel (no sentido censor da palavra) fazer histoacuteria pela literatura obviamente sem a pretensatildeo de substituiacute-la Esse eacute o principal ponto de encontro entre os leitores que buscam registros reais na literatura rasgada a historiografia eacute legiacutetimo recorrer agrave narrativa ficcional em busca dos ldquosinais de vidardquo histoacuterico-culturais

O vieacutes histoacuterico de leitura no entanto natildeo deve implicar agrave ficccedilatildeo a obrigatoriedade da funccedilatildeo documental pondo em prejuiacutezo sua liberdade artiacutestica Haacute que se preservar no que tange agrave criaccedilatildeo literaacuteria o espaccedilo ldquodiegeacuteticordquo mdash tatildeo caro aos Estudos Literaacuterios conforme define Geacuterard Genette em ldquoDiscurso da Narrativardquo mdash sendo este o ldquoambienterdquo que

164

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

desligado da realidade passa a representaacute-la A representaccedilatildeo artiacutestica eacute a garantia de que toda obra possa transpor o autor e suas vinculaccedilotildees espaciotemporais A teoria estruturalista conforme eacute referida antes (res)salvou a obra artiacutestica-literaacuteria de sua matriz de produccedilatildeo de modo a permitir-lhe seguir o proacuteprio curso com consideraacutevel autonomia (alguns diratildeo autonomia demais)

A tensatildeo conceptual proposta nestes paraacutegrafos introdutoacuterios eacute o ponto crucial de nossas pretensotildees argumentativas neste artigo quanto o texto literaacuterio tem ou natildeo tem viacutenculos com o seu autor e as amarras histoacutericas que lhe satildeo proacuteprias Entretanto nem mesmo aqueles que defendem a vinculaccedilatildeo histoacuterico-cultural dos textos literaacuterios podem negar a libertaccedilatildeo da ldquoidentidade ficcionalrdquo (um termo aqui proposto) eacute uma garantia da arte literaacuteria da qual natildeo se pode prescindir Houve um tempo em que os leitores dos iniciantes aos criacuteticos buscavam nas obras uma ldquoaurardquo do seu criador tornando a leitura uma pesquisa da persona-autora Esse fenocircmeno eacute descrito por Roland Barthes no emblemaacutetico texto em que propotildee para a anaacutelise literaacuteria o consagrado conceito da ldquomorte do autorrdquo

O autor reina ainda nos manuais de histoacuteria literaacuteria nas biografias de escritores nas entrevistas das revistas e na proacutepria consciecircncia dos literatos preocupados em juntar graccedilas ao seu diaacuterio iacutentimo a sua pessoa e a sua obra a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente eacute tiranicamente centrada no autor na sua pessoa na sua histoacuteria nos seus gostos nas suas paixotildees a criacutetica consiste ainda a maior parte das vezes em dizer que a obra de Baudelaire eacute o falhanccedilo do homem Baudelaire que a de Van Gogh eacute a sua loucura a de Tchaikovsky o seu viacutecio a explicaccedilatildeo da obra eacute sempre procurada do lado de quem a produziu como se atraveacutes da alegoria mais ou menos transparente da ficccedilatildeo fosse sempre afinal a voz de uma soacute e mesma pessoa o autor que nos entregasse a sua ldquoconfidecircnciardquo (50)

No ldquoreinado tiracircnico do autorrdquo conforme assinala o teoacuterico francecircs natildeo se admite a libertaccedilatildeo do enunciador na medida em que o vieacutes de leitura eacute o ldquoda confidecircnciardquo No entanto sabem os escritores e os leitores maduros1 o texto literaacuterio eacute sempre uma encenaccedilatildeo Aquilo que Fernando

1 O termo leitor maduro eacute de uso corrente entre os teoacutericos que avaliam a habilidade leitora Segundo Marisa Lajolo ldquoleitor maduro eacute aquele para quem cada nova leitura desloca e

165

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Pessoa reproduziu ludicamente com seus heterocircnimos eacute a siacutentese da criaccedilatildeo literaacuteria a identidade do enunciador eacute um jogo-de-cena mesmo quando ele se pretende imprimir Pessoanamente isso quer dizer que ateacute o eu--liacuterico ldquoFernando Pessoa Ele-mesmordquo como se convencionou chamar por diferenciaccedilatildeo aos seus heterocircnimos natildeo pode ser confundido com o autor que de maneira homocircnima se reconhece no registro civil com a patente da obra Diraacute Barthes a respeito

Natildeo seraacute jamais possiacutevel saber [a verdadeira ldquoidentidaderdquo do autor] pela simples razatildeo que a escritura eacute a destruiccedilatildeo de toda voz de toda origem A escritura eacute esse neutro esse composto esse obliacutequo pelo qual foge o nosso sujeito o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade a comeccedilar pela do corpo que escreve (57)

A neutralidade proposta pela teoria barthesiana se tornou um fundamento dos estudos literaacuterios que na visatildeo de muitos pesquisadores afetados pela linha estruturalista impedia qualquer identificaccedilatildeo de um rastro autoral nas obras literaacuterias Lido agrave risca Barthes se tornou o algoz dos autores condenando-os a uma sepultura de onde jaacute natildeo poderiam enunciar Eacute possiacutevel no entanto advertir para o fato de o teoacuterico natildeo ter necessariamente preconizado o desaparecimento integral de qualquer sintoma autoral em especial naquilo que corresponde agrave mente criadora inexoravelmente perpassada por valores que se traduzem nas escolhas de produccedilatildeo artiacutestica Seu intuito foi o de dissipar a enunciaccedilatildeo para aleacutem do que seria uma autoria ldquomonocoacuterdiardquo centrada na ilusatildeo de um sujeito integral (que natildeo considera a desconstruccedilatildeo subjetiva tatildeo difundida na poacutes-modernidade) Isso se deduz no trecho em que Roland Barthes afirma

Sabemos agora que um texto natildeo eacute feito de uma linha de palavras a produzir um sentido uacutenico de certa maneira teoloacutegico (que seria a ldquomensagemrdquo do Autor-Deus) mas um espaccedilo de dimensotildees muacuteltiplas onde se casam e se contestam escrituras variadas das quais nenhuma eacute original o texto eacute um tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos mil focos da cultura(Barthes 68-69)

altera o significado de tudo o que ele jaacute leu tornando mais profunda sua compreensatildeo dos livros das gentes e da vidardquo (53)

166

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Para advogar em defesa do teoacuterico injustamente acusado por um crime que natildeo cometeu2 registre-se o fato de que nas entrelinhas do seu texto pode-se entender a figura do autor como depositaacuterio das ldquodimensotildees muacutel-tiplasrdquo o instrumento por onde se alinhavam as ldquocitaccedilotildeesrdquo e os ldquomil focos de culturardquo Nesse sentido a ldquosentenccedila de morterdquo da teoria barthesiana que impediria aos adeptos qualquer discussatildeo sobre autoria pode ser entendida como efeito de uma deturpada interpretaccedilatildeo textual incapaz de modalizar e contextualizar o que fora escrito

Em sincronia com o texto de Barthes embora seja distinta sua orien-taccedilatildeo epistemoloacutegica Mikhail Bakhtin propotildee uma duplicaccedilatildeo da autoria de modo que o enunciador do plano ficcional mdash que ele chama de autor secundaacuterio mdash se desprenda da entidade primaacuteria autoral (o ldquoautor em sirdquo) tornando-a oculta sem contudo sentenciaacute-la agrave morte mdash efeito que Gyoumlrgy Lukaacutecs define como ldquoironiardquo3 Por esse vieacutes teoacuterico passou a ser aceitaacutevel aos estudiosos voltados agraves linhas de pesquisa que exploram os viacutenculos entre a literatura e os estudos culturais ldquoressuscitarrdquo o autor e sua voz se natildeo no plano diegeacutetico ao menos nas entrelinhas textuais ou pensando do ponto de vista linguiacutestico no niacutevel do discurso4

A voz do autor poacutes-colonial

Sem a identificaccedilatildeo da entidade autoral natildeo seria possiacutevel forjar os estudos dedicados a compreender e inclusive definir as coletacircneas literaacuterias latino-americana e africana Eacute preciso considerar que a produccedilatildeo literaacuteria nesses espaccedilos poacutes-coloniais se deu de iniacutecio por intermeacutedio (ou influecircn-cia) da gestatildeo colonial e se registra graficamente nas liacutenguas herdadas dos colonizadores Nesse sentido a se considerarem ldquomortos os autoresrdquo as obras publicadas nas naccedilotildees latino-americanas e africanas independentes

2 A fonte em itaacutelico foi utilizada para apontar um jogo a linguagem criminal faz referecircncia agrave utilizaccedilatildeo do termo morte aqui repensado

3 O termo natildeo se confunde com a figura de linguagem que permite a eliacuteptica negaccedilatildeo da mensagem na forma pela qual o ldquoditordquo eacute o ldquonatildeo ditordquo Nas palavras de Lukaacutecs a ironia estaacute em ldquodizer por outrordquo preservando as intenccedilotildees primaacuterias a um universo oculto que alguns poderatildeo depreender nos subtextos acessiacuteveis apenas no aprofundado plano da exegese

4 ldquoO discurso eacute socialmente construiacutedo [] constituindo os sujeitos sociais as relaccedilotildees sociais e os sistemas de conhecimento e crenccedila e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideoloacutegicos construtivosrdquo (Fairclough 58)

167

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metroacutepoles mdash que por forccedila das circunstacircncias poliacuteticas agrave altura compunham (hoje com-potildeem) o que se passou a denominar internacionalmente como ldquoliteratura universalrdquo Eacute contudo na diferenccedila ao ldquoOcidenterdquo mdash pensado nas palavras de Walter Mignolo natildeo para ldquoreferir agrave geografia por si soacute mas agrave geopoliacutetica do conhecimentordquo (290) mdash que se constituem esses grupamentos literaacuterios poacutes-coloniais

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas passou a interessar um estudo de reconhecimento natildeo apenas dos conteuacutedos locais (ou vinculados ao espaccedilo local em oposiccedilatildeo ao global) mas mdash e sobre-tudo mdash dos recursos formais que na fratura leacutexico-sintaacutetica das liacutenguas importadas expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental Evidentemente tais estudos soacute se desenvolveram a partir do conhecimento da linguiacutestica como ciecircncia mdash falamos portanto do trabalho de Fernand de Saussure em seu ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo publicado em 1916 a desenvolver a noccedilatildeo de variedade linguiacutestica geograacutefica mdash e a partir daiacute da consciecircncia de que a literatura nacional natildeo se devia curvar agraves exigecircncias formais da comunidade artiacutestico-intelectual eurocecircntrica

Do ponto de vista da produccedilatildeo literaacuteria mdash evidentemente em conexatildeo com essa cronologia cientiacutefica mdash observam-se no mesmo periacuteodo (no iniacutecio do seacuteculo xx) a eclosatildeo de movimentos artiacutesticos libertadores como o mo-dernismo brasileiro a propor uma espeacutecie de novo grito de independecircncia sob a oacutetica linguiacutestico-cultural intermediado pelos ideais antropofaacutegicos O conceito de ldquoantropofagia culturalrdquo popularizado textualmente por Oswald de Andrade se disseminou por toda a Ameacuterica Latina e atravessou o Atlacircntico ecoando nas reuniotildees secretas dos intelectuais libertaacuterios africanos Tendo por base (dentre outros) esse conceito as jovens naccedilotildees independentes de Aacutefrica decretaram a ruptura com as letras europeias (entatildeo metropolitanas) e ao mesmo tempo o nascimento de novos corpus literaacuterios cunhados a partir da noccedilatildeo identitaacuteria apenas o autor que obtivesse ldquocertidatildeo africanardquo poderia representar de maneira simboacutelica e artistica ao continente5

5 A questatildeo da certificaccedilatildeo identitaacuteria evidentemente natildeo eacute simples nem banal ndash seja na Aacutefrica ou em qualquer territoacuterio poacutes-colonial A complexa noccedilatildeo importa inclusive agrave discussatildeo proposta neste artigo mas seraacute postergada para o trecho adiante em que se propotildee discutir o identitarismo como um ldquopressuposto ficcionalrdquo

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 3: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

163

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Notas introdutoacuterias

O viacutenculo acadecircmico entre literatura e estudos culturais se intensificou com o desenvolvimento das pesquisas poacutes-coloniais sobretudo aquelas dedicadas agraves culturas latino-americanas e

africanas em meados do seacuteculo xx No ensaio ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo publicado como o capiacutetulo introdutoacuterio do livro Literatura e Estudos Culturais a pesquisadora Else Vieira aponta para o que denomina ldquouma mudanccedila paradigmaacutetica o deslocamento dos Estudos Literaacuterios para o acircmbito dos Estudos Culturaisrdquo (9) O ldquodeslocamento paradigmaacuteticordquo proposto pela professora nada mais eacute do que uma (re)conduccedilatildeo das literaturas a um espaccedilo de diaacutelogo com a sociologia a antropologia a histoacuteria e a geografia A ldquoliteratura em-si-mesmardquo mdash um importante vieacutes analiacutetico proposto pelos criacuteticos estruturalistas sobre os quais pensaremos adiante jaacute natildeo contempla(va) plenamente aquilo que muitos autores pesquisadores e ateacute leitores-comuns passaram a debater a partir da leitura de textos literaacuterios

A busca por uma representatividade social nos textos ficcionais natildeo era apenas da ordem do desejo mas da necessidade histoacuterica Teoacutericos como Homi Bhabha e Edward Said dentre tantos outros dissertam acerca do silenciamento histoacuterico-cultural que se deu nos povos colonizados em virtude da imposiccedilatildeo de tradiccedilotildees euro-ocidentais uma estrateacutegia poliacutetica de dominaccedilatildeo O ldquoapagamento de registrosrdquo contudo sempre foi (e seraacute) meramente protocolar uma vez que natildeo se apaga a memoacuteria coletiva Aos ficcionistas agrave sombra dos discursos oficiais eacute possiacutevel documentar o indiziacutevel (no sentido censor da palavra) fazer histoacuteria pela literatura obviamente sem a pretensatildeo de substituiacute-la Esse eacute o principal ponto de encontro entre os leitores que buscam registros reais na literatura rasgada a historiografia eacute legiacutetimo recorrer agrave narrativa ficcional em busca dos ldquosinais de vidardquo histoacuterico-culturais

O vieacutes histoacuterico de leitura no entanto natildeo deve implicar agrave ficccedilatildeo a obrigatoriedade da funccedilatildeo documental pondo em prejuiacutezo sua liberdade artiacutestica Haacute que se preservar no que tange agrave criaccedilatildeo literaacuteria o espaccedilo ldquodiegeacuteticordquo mdash tatildeo caro aos Estudos Literaacuterios conforme define Geacuterard Genette em ldquoDiscurso da Narrativardquo mdash sendo este o ldquoambienterdquo que

164

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

desligado da realidade passa a representaacute-la A representaccedilatildeo artiacutestica eacute a garantia de que toda obra possa transpor o autor e suas vinculaccedilotildees espaciotemporais A teoria estruturalista conforme eacute referida antes (res)salvou a obra artiacutestica-literaacuteria de sua matriz de produccedilatildeo de modo a permitir-lhe seguir o proacuteprio curso com consideraacutevel autonomia (alguns diratildeo autonomia demais)

A tensatildeo conceptual proposta nestes paraacutegrafos introdutoacuterios eacute o ponto crucial de nossas pretensotildees argumentativas neste artigo quanto o texto literaacuterio tem ou natildeo tem viacutenculos com o seu autor e as amarras histoacutericas que lhe satildeo proacuteprias Entretanto nem mesmo aqueles que defendem a vinculaccedilatildeo histoacuterico-cultural dos textos literaacuterios podem negar a libertaccedilatildeo da ldquoidentidade ficcionalrdquo (um termo aqui proposto) eacute uma garantia da arte literaacuteria da qual natildeo se pode prescindir Houve um tempo em que os leitores dos iniciantes aos criacuteticos buscavam nas obras uma ldquoaurardquo do seu criador tornando a leitura uma pesquisa da persona-autora Esse fenocircmeno eacute descrito por Roland Barthes no emblemaacutetico texto em que propotildee para a anaacutelise literaacuteria o consagrado conceito da ldquomorte do autorrdquo

O autor reina ainda nos manuais de histoacuteria literaacuteria nas biografias de escritores nas entrevistas das revistas e na proacutepria consciecircncia dos literatos preocupados em juntar graccedilas ao seu diaacuterio iacutentimo a sua pessoa e a sua obra a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente eacute tiranicamente centrada no autor na sua pessoa na sua histoacuteria nos seus gostos nas suas paixotildees a criacutetica consiste ainda a maior parte das vezes em dizer que a obra de Baudelaire eacute o falhanccedilo do homem Baudelaire que a de Van Gogh eacute a sua loucura a de Tchaikovsky o seu viacutecio a explicaccedilatildeo da obra eacute sempre procurada do lado de quem a produziu como se atraveacutes da alegoria mais ou menos transparente da ficccedilatildeo fosse sempre afinal a voz de uma soacute e mesma pessoa o autor que nos entregasse a sua ldquoconfidecircnciardquo (50)

No ldquoreinado tiracircnico do autorrdquo conforme assinala o teoacuterico francecircs natildeo se admite a libertaccedilatildeo do enunciador na medida em que o vieacutes de leitura eacute o ldquoda confidecircnciardquo No entanto sabem os escritores e os leitores maduros1 o texto literaacuterio eacute sempre uma encenaccedilatildeo Aquilo que Fernando

1 O termo leitor maduro eacute de uso corrente entre os teoacutericos que avaliam a habilidade leitora Segundo Marisa Lajolo ldquoleitor maduro eacute aquele para quem cada nova leitura desloca e

165

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Pessoa reproduziu ludicamente com seus heterocircnimos eacute a siacutentese da criaccedilatildeo literaacuteria a identidade do enunciador eacute um jogo-de-cena mesmo quando ele se pretende imprimir Pessoanamente isso quer dizer que ateacute o eu--liacuterico ldquoFernando Pessoa Ele-mesmordquo como se convencionou chamar por diferenciaccedilatildeo aos seus heterocircnimos natildeo pode ser confundido com o autor que de maneira homocircnima se reconhece no registro civil com a patente da obra Diraacute Barthes a respeito

Natildeo seraacute jamais possiacutevel saber [a verdadeira ldquoidentidaderdquo do autor] pela simples razatildeo que a escritura eacute a destruiccedilatildeo de toda voz de toda origem A escritura eacute esse neutro esse composto esse obliacutequo pelo qual foge o nosso sujeito o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade a comeccedilar pela do corpo que escreve (57)

A neutralidade proposta pela teoria barthesiana se tornou um fundamento dos estudos literaacuterios que na visatildeo de muitos pesquisadores afetados pela linha estruturalista impedia qualquer identificaccedilatildeo de um rastro autoral nas obras literaacuterias Lido agrave risca Barthes se tornou o algoz dos autores condenando-os a uma sepultura de onde jaacute natildeo poderiam enunciar Eacute possiacutevel no entanto advertir para o fato de o teoacuterico natildeo ter necessariamente preconizado o desaparecimento integral de qualquer sintoma autoral em especial naquilo que corresponde agrave mente criadora inexoravelmente perpassada por valores que se traduzem nas escolhas de produccedilatildeo artiacutestica Seu intuito foi o de dissipar a enunciaccedilatildeo para aleacutem do que seria uma autoria ldquomonocoacuterdiardquo centrada na ilusatildeo de um sujeito integral (que natildeo considera a desconstruccedilatildeo subjetiva tatildeo difundida na poacutes-modernidade) Isso se deduz no trecho em que Roland Barthes afirma

Sabemos agora que um texto natildeo eacute feito de uma linha de palavras a produzir um sentido uacutenico de certa maneira teoloacutegico (que seria a ldquomensagemrdquo do Autor-Deus) mas um espaccedilo de dimensotildees muacuteltiplas onde se casam e se contestam escrituras variadas das quais nenhuma eacute original o texto eacute um tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos mil focos da cultura(Barthes 68-69)

altera o significado de tudo o que ele jaacute leu tornando mais profunda sua compreensatildeo dos livros das gentes e da vidardquo (53)

166

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Para advogar em defesa do teoacuterico injustamente acusado por um crime que natildeo cometeu2 registre-se o fato de que nas entrelinhas do seu texto pode-se entender a figura do autor como depositaacuterio das ldquodimensotildees muacutel-tiplasrdquo o instrumento por onde se alinhavam as ldquocitaccedilotildeesrdquo e os ldquomil focos de culturardquo Nesse sentido a ldquosentenccedila de morterdquo da teoria barthesiana que impediria aos adeptos qualquer discussatildeo sobre autoria pode ser entendida como efeito de uma deturpada interpretaccedilatildeo textual incapaz de modalizar e contextualizar o que fora escrito

Em sincronia com o texto de Barthes embora seja distinta sua orien-taccedilatildeo epistemoloacutegica Mikhail Bakhtin propotildee uma duplicaccedilatildeo da autoria de modo que o enunciador do plano ficcional mdash que ele chama de autor secundaacuterio mdash se desprenda da entidade primaacuteria autoral (o ldquoautor em sirdquo) tornando-a oculta sem contudo sentenciaacute-la agrave morte mdash efeito que Gyoumlrgy Lukaacutecs define como ldquoironiardquo3 Por esse vieacutes teoacuterico passou a ser aceitaacutevel aos estudiosos voltados agraves linhas de pesquisa que exploram os viacutenculos entre a literatura e os estudos culturais ldquoressuscitarrdquo o autor e sua voz se natildeo no plano diegeacutetico ao menos nas entrelinhas textuais ou pensando do ponto de vista linguiacutestico no niacutevel do discurso4

A voz do autor poacutes-colonial

Sem a identificaccedilatildeo da entidade autoral natildeo seria possiacutevel forjar os estudos dedicados a compreender e inclusive definir as coletacircneas literaacuterias latino-americana e africana Eacute preciso considerar que a produccedilatildeo literaacuteria nesses espaccedilos poacutes-coloniais se deu de iniacutecio por intermeacutedio (ou influecircn-cia) da gestatildeo colonial e se registra graficamente nas liacutenguas herdadas dos colonizadores Nesse sentido a se considerarem ldquomortos os autoresrdquo as obras publicadas nas naccedilotildees latino-americanas e africanas independentes

2 A fonte em itaacutelico foi utilizada para apontar um jogo a linguagem criminal faz referecircncia agrave utilizaccedilatildeo do termo morte aqui repensado

3 O termo natildeo se confunde com a figura de linguagem que permite a eliacuteptica negaccedilatildeo da mensagem na forma pela qual o ldquoditordquo eacute o ldquonatildeo ditordquo Nas palavras de Lukaacutecs a ironia estaacute em ldquodizer por outrordquo preservando as intenccedilotildees primaacuterias a um universo oculto que alguns poderatildeo depreender nos subtextos acessiacuteveis apenas no aprofundado plano da exegese

4 ldquoO discurso eacute socialmente construiacutedo [] constituindo os sujeitos sociais as relaccedilotildees sociais e os sistemas de conhecimento e crenccedila e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideoloacutegicos construtivosrdquo (Fairclough 58)

167

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metroacutepoles mdash que por forccedila das circunstacircncias poliacuteticas agrave altura compunham (hoje com-potildeem) o que se passou a denominar internacionalmente como ldquoliteratura universalrdquo Eacute contudo na diferenccedila ao ldquoOcidenterdquo mdash pensado nas palavras de Walter Mignolo natildeo para ldquoreferir agrave geografia por si soacute mas agrave geopoliacutetica do conhecimentordquo (290) mdash que se constituem esses grupamentos literaacuterios poacutes-coloniais

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas passou a interessar um estudo de reconhecimento natildeo apenas dos conteuacutedos locais (ou vinculados ao espaccedilo local em oposiccedilatildeo ao global) mas mdash e sobre-tudo mdash dos recursos formais que na fratura leacutexico-sintaacutetica das liacutenguas importadas expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental Evidentemente tais estudos soacute se desenvolveram a partir do conhecimento da linguiacutestica como ciecircncia mdash falamos portanto do trabalho de Fernand de Saussure em seu ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo publicado em 1916 a desenvolver a noccedilatildeo de variedade linguiacutestica geograacutefica mdash e a partir daiacute da consciecircncia de que a literatura nacional natildeo se devia curvar agraves exigecircncias formais da comunidade artiacutestico-intelectual eurocecircntrica

Do ponto de vista da produccedilatildeo literaacuteria mdash evidentemente em conexatildeo com essa cronologia cientiacutefica mdash observam-se no mesmo periacuteodo (no iniacutecio do seacuteculo xx) a eclosatildeo de movimentos artiacutesticos libertadores como o mo-dernismo brasileiro a propor uma espeacutecie de novo grito de independecircncia sob a oacutetica linguiacutestico-cultural intermediado pelos ideais antropofaacutegicos O conceito de ldquoantropofagia culturalrdquo popularizado textualmente por Oswald de Andrade se disseminou por toda a Ameacuterica Latina e atravessou o Atlacircntico ecoando nas reuniotildees secretas dos intelectuais libertaacuterios africanos Tendo por base (dentre outros) esse conceito as jovens naccedilotildees independentes de Aacutefrica decretaram a ruptura com as letras europeias (entatildeo metropolitanas) e ao mesmo tempo o nascimento de novos corpus literaacuterios cunhados a partir da noccedilatildeo identitaacuteria apenas o autor que obtivesse ldquocertidatildeo africanardquo poderia representar de maneira simboacutelica e artistica ao continente5

5 A questatildeo da certificaccedilatildeo identitaacuteria evidentemente natildeo eacute simples nem banal ndash seja na Aacutefrica ou em qualquer territoacuterio poacutes-colonial A complexa noccedilatildeo importa inclusive agrave discussatildeo proposta neste artigo mas seraacute postergada para o trecho adiante em que se propotildee discutir o identitarismo como um ldquopressuposto ficcionalrdquo

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 4: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

164

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

desligado da realidade passa a representaacute-la A representaccedilatildeo artiacutestica eacute a garantia de que toda obra possa transpor o autor e suas vinculaccedilotildees espaciotemporais A teoria estruturalista conforme eacute referida antes (res)salvou a obra artiacutestica-literaacuteria de sua matriz de produccedilatildeo de modo a permitir-lhe seguir o proacuteprio curso com consideraacutevel autonomia (alguns diratildeo autonomia demais)

A tensatildeo conceptual proposta nestes paraacutegrafos introdutoacuterios eacute o ponto crucial de nossas pretensotildees argumentativas neste artigo quanto o texto literaacuterio tem ou natildeo tem viacutenculos com o seu autor e as amarras histoacutericas que lhe satildeo proacuteprias Entretanto nem mesmo aqueles que defendem a vinculaccedilatildeo histoacuterico-cultural dos textos literaacuterios podem negar a libertaccedilatildeo da ldquoidentidade ficcionalrdquo (um termo aqui proposto) eacute uma garantia da arte literaacuteria da qual natildeo se pode prescindir Houve um tempo em que os leitores dos iniciantes aos criacuteticos buscavam nas obras uma ldquoaurardquo do seu criador tornando a leitura uma pesquisa da persona-autora Esse fenocircmeno eacute descrito por Roland Barthes no emblemaacutetico texto em que propotildee para a anaacutelise literaacuteria o consagrado conceito da ldquomorte do autorrdquo

O autor reina ainda nos manuais de histoacuteria literaacuteria nas biografias de escritores nas entrevistas das revistas e na proacutepria consciecircncia dos literatos preocupados em juntar graccedilas ao seu diaacuterio iacutentimo a sua pessoa e a sua obra a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente eacute tiranicamente centrada no autor na sua pessoa na sua histoacuteria nos seus gostos nas suas paixotildees a criacutetica consiste ainda a maior parte das vezes em dizer que a obra de Baudelaire eacute o falhanccedilo do homem Baudelaire que a de Van Gogh eacute a sua loucura a de Tchaikovsky o seu viacutecio a explicaccedilatildeo da obra eacute sempre procurada do lado de quem a produziu como se atraveacutes da alegoria mais ou menos transparente da ficccedilatildeo fosse sempre afinal a voz de uma soacute e mesma pessoa o autor que nos entregasse a sua ldquoconfidecircnciardquo (50)

No ldquoreinado tiracircnico do autorrdquo conforme assinala o teoacuterico francecircs natildeo se admite a libertaccedilatildeo do enunciador na medida em que o vieacutes de leitura eacute o ldquoda confidecircnciardquo No entanto sabem os escritores e os leitores maduros1 o texto literaacuterio eacute sempre uma encenaccedilatildeo Aquilo que Fernando

1 O termo leitor maduro eacute de uso corrente entre os teoacutericos que avaliam a habilidade leitora Segundo Marisa Lajolo ldquoleitor maduro eacute aquele para quem cada nova leitura desloca e

165

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Pessoa reproduziu ludicamente com seus heterocircnimos eacute a siacutentese da criaccedilatildeo literaacuteria a identidade do enunciador eacute um jogo-de-cena mesmo quando ele se pretende imprimir Pessoanamente isso quer dizer que ateacute o eu--liacuterico ldquoFernando Pessoa Ele-mesmordquo como se convencionou chamar por diferenciaccedilatildeo aos seus heterocircnimos natildeo pode ser confundido com o autor que de maneira homocircnima se reconhece no registro civil com a patente da obra Diraacute Barthes a respeito

Natildeo seraacute jamais possiacutevel saber [a verdadeira ldquoidentidaderdquo do autor] pela simples razatildeo que a escritura eacute a destruiccedilatildeo de toda voz de toda origem A escritura eacute esse neutro esse composto esse obliacutequo pelo qual foge o nosso sujeito o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade a comeccedilar pela do corpo que escreve (57)

A neutralidade proposta pela teoria barthesiana se tornou um fundamento dos estudos literaacuterios que na visatildeo de muitos pesquisadores afetados pela linha estruturalista impedia qualquer identificaccedilatildeo de um rastro autoral nas obras literaacuterias Lido agrave risca Barthes se tornou o algoz dos autores condenando-os a uma sepultura de onde jaacute natildeo poderiam enunciar Eacute possiacutevel no entanto advertir para o fato de o teoacuterico natildeo ter necessariamente preconizado o desaparecimento integral de qualquer sintoma autoral em especial naquilo que corresponde agrave mente criadora inexoravelmente perpassada por valores que se traduzem nas escolhas de produccedilatildeo artiacutestica Seu intuito foi o de dissipar a enunciaccedilatildeo para aleacutem do que seria uma autoria ldquomonocoacuterdiardquo centrada na ilusatildeo de um sujeito integral (que natildeo considera a desconstruccedilatildeo subjetiva tatildeo difundida na poacutes-modernidade) Isso se deduz no trecho em que Roland Barthes afirma

Sabemos agora que um texto natildeo eacute feito de uma linha de palavras a produzir um sentido uacutenico de certa maneira teoloacutegico (que seria a ldquomensagemrdquo do Autor-Deus) mas um espaccedilo de dimensotildees muacuteltiplas onde se casam e se contestam escrituras variadas das quais nenhuma eacute original o texto eacute um tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos mil focos da cultura(Barthes 68-69)

altera o significado de tudo o que ele jaacute leu tornando mais profunda sua compreensatildeo dos livros das gentes e da vidardquo (53)

166

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Para advogar em defesa do teoacuterico injustamente acusado por um crime que natildeo cometeu2 registre-se o fato de que nas entrelinhas do seu texto pode-se entender a figura do autor como depositaacuterio das ldquodimensotildees muacutel-tiplasrdquo o instrumento por onde se alinhavam as ldquocitaccedilotildeesrdquo e os ldquomil focos de culturardquo Nesse sentido a ldquosentenccedila de morterdquo da teoria barthesiana que impediria aos adeptos qualquer discussatildeo sobre autoria pode ser entendida como efeito de uma deturpada interpretaccedilatildeo textual incapaz de modalizar e contextualizar o que fora escrito

Em sincronia com o texto de Barthes embora seja distinta sua orien-taccedilatildeo epistemoloacutegica Mikhail Bakhtin propotildee uma duplicaccedilatildeo da autoria de modo que o enunciador do plano ficcional mdash que ele chama de autor secundaacuterio mdash se desprenda da entidade primaacuteria autoral (o ldquoautor em sirdquo) tornando-a oculta sem contudo sentenciaacute-la agrave morte mdash efeito que Gyoumlrgy Lukaacutecs define como ldquoironiardquo3 Por esse vieacutes teoacuterico passou a ser aceitaacutevel aos estudiosos voltados agraves linhas de pesquisa que exploram os viacutenculos entre a literatura e os estudos culturais ldquoressuscitarrdquo o autor e sua voz se natildeo no plano diegeacutetico ao menos nas entrelinhas textuais ou pensando do ponto de vista linguiacutestico no niacutevel do discurso4

A voz do autor poacutes-colonial

Sem a identificaccedilatildeo da entidade autoral natildeo seria possiacutevel forjar os estudos dedicados a compreender e inclusive definir as coletacircneas literaacuterias latino-americana e africana Eacute preciso considerar que a produccedilatildeo literaacuteria nesses espaccedilos poacutes-coloniais se deu de iniacutecio por intermeacutedio (ou influecircn-cia) da gestatildeo colonial e se registra graficamente nas liacutenguas herdadas dos colonizadores Nesse sentido a se considerarem ldquomortos os autoresrdquo as obras publicadas nas naccedilotildees latino-americanas e africanas independentes

2 A fonte em itaacutelico foi utilizada para apontar um jogo a linguagem criminal faz referecircncia agrave utilizaccedilatildeo do termo morte aqui repensado

3 O termo natildeo se confunde com a figura de linguagem que permite a eliacuteptica negaccedilatildeo da mensagem na forma pela qual o ldquoditordquo eacute o ldquonatildeo ditordquo Nas palavras de Lukaacutecs a ironia estaacute em ldquodizer por outrordquo preservando as intenccedilotildees primaacuterias a um universo oculto que alguns poderatildeo depreender nos subtextos acessiacuteveis apenas no aprofundado plano da exegese

4 ldquoO discurso eacute socialmente construiacutedo [] constituindo os sujeitos sociais as relaccedilotildees sociais e os sistemas de conhecimento e crenccedila e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideoloacutegicos construtivosrdquo (Fairclough 58)

167

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metroacutepoles mdash que por forccedila das circunstacircncias poliacuteticas agrave altura compunham (hoje com-potildeem) o que se passou a denominar internacionalmente como ldquoliteratura universalrdquo Eacute contudo na diferenccedila ao ldquoOcidenterdquo mdash pensado nas palavras de Walter Mignolo natildeo para ldquoreferir agrave geografia por si soacute mas agrave geopoliacutetica do conhecimentordquo (290) mdash que se constituem esses grupamentos literaacuterios poacutes-coloniais

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas passou a interessar um estudo de reconhecimento natildeo apenas dos conteuacutedos locais (ou vinculados ao espaccedilo local em oposiccedilatildeo ao global) mas mdash e sobre-tudo mdash dos recursos formais que na fratura leacutexico-sintaacutetica das liacutenguas importadas expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental Evidentemente tais estudos soacute se desenvolveram a partir do conhecimento da linguiacutestica como ciecircncia mdash falamos portanto do trabalho de Fernand de Saussure em seu ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo publicado em 1916 a desenvolver a noccedilatildeo de variedade linguiacutestica geograacutefica mdash e a partir daiacute da consciecircncia de que a literatura nacional natildeo se devia curvar agraves exigecircncias formais da comunidade artiacutestico-intelectual eurocecircntrica

Do ponto de vista da produccedilatildeo literaacuteria mdash evidentemente em conexatildeo com essa cronologia cientiacutefica mdash observam-se no mesmo periacuteodo (no iniacutecio do seacuteculo xx) a eclosatildeo de movimentos artiacutesticos libertadores como o mo-dernismo brasileiro a propor uma espeacutecie de novo grito de independecircncia sob a oacutetica linguiacutestico-cultural intermediado pelos ideais antropofaacutegicos O conceito de ldquoantropofagia culturalrdquo popularizado textualmente por Oswald de Andrade se disseminou por toda a Ameacuterica Latina e atravessou o Atlacircntico ecoando nas reuniotildees secretas dos intelectuais libertaacuterios africanos Tendo por base (dentre outros) esse conceito as jovens naccedilotildees independentes de Aacutefrica decretaram a ruptura com as letras europeias (entatildeo metropolitanas) e ao mesmo tempo o nascimento de novos corpus literaacuterios cunhados a partir da noccedilatildeo identitaacuteria apenas o autor que obtivesse ldquocertidatildeo africanardquo poderia representar de maneira simboacutelica e artistica ao continente5

5 A questatildeo da certificaccedilatildeo identitaacuteria evidentemente natildeo eacute simples nem banal ndash seja na Aacutefrica ou em qualquer territoacuterio poacutes-colonial A complexa noccedilatildeo importa inclusive agrave discussatildeo proposta neste artigo mas seraacute postergada para o trecho adiante em que se propotildee discutir o identitarismo como um ldquopressuposto ficcionalrdquo

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 5: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

165

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Pessoa reproduziu ludicamente com seus heterocircnimos eacute a siacutentese da criaccedilatildeo literaacuteria a identidade do enunciador eacute um jogo-de-cena mesmo quando ele se pretende imprimir Pessoanamente isso quer dizer que ateacute o eu--liacuterico ldquoFernando Pessoa Ele-mesmordquo como se convencionou chamar por diferenciaccedilatildeo aos seus heterocircnimos natildeo pode ser confundido com o autor que de maneira homocircnima se reconhece no registro civil com a patente da obra Diraacute Barthes a respeito

Natildeo seraacute jamais possiacutevel saber [a verdadeira ldquoidentidaderdquo do autor] pela simples razatildeo que a escritura eacute a destruiccedilatildeo de toda voz de toda origem A escritura eacute esse neutro esse composto esse obliacutequo pelo qual foge o nosso sujeito o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade a comeccedilar pela do corpo que escreve (57)

A neutralidade proposta pela teoria barthesiana se tornou um fundamento dos estudos literaacuterios que na visatildeo de muitos pesquisadores afetados pela linha estruturalista impedia qualquer identificaccedilatildeo de um rastro autoral nas obras literaacuterias Lido agrave risca Barthes se tornou o algoz dos autores condenando-os a uma sepultura de onde jaacute natildeo poderiam enunciar Eacute possiacutevel no entanto advertir para o fato de o teoacuterico natildeo ter necessariamente preconizado o desaparecimento integral de qualquer sintoma autoral em especial naquilo que corresponde agrave mente criadora inexoravelmente perpassada por valores que se traduzem nas escolhas de produccedilatildeo artiacutestica Seu intuito foi o de dissipar a enunciaccedilatildeo para aleacutem do que seria uma autoria ldquomonocoacuterdiardquo centrada na ilusatildeo de um sujeito integral (que natildeo considera a desconstruccedilatildeo subjetiva tatildeo difundida na poacutes-modernidade) Isso se deduz no trecho em que Roland Barthes afirma

Sabemos agora que um texto natildeo eacute feito de uma linha de palavras a produzir um sentido uacutenico de certa maneira teoloacutegico (que seria a ldquomensagemrdquo do Autor-Deus) mas um espaccedilo de dimensotildees muacuteltiplas onde se casam e se contestam escrituras variadas das quais nenhuma eacute original o texto eacute um tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos mil focos da cultura(Barthes 68-69)

altera o significado de tudo o que ele jaacute leu tornando mais profunda sua compreensatildeo dos livros das gentes e da vidardquo (53)

166

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Para advogar em defesa do teoacuterico injustamente acusado por um crime que natildeo cometeu2 registre-se o fato de que nas entrelinhas do seu texto pode-se entender a figura do autor como depositaacuterio das ldquodimensotildees muacutel-tiplasrdquo o instrumento por onde se alinhavam as ldquocitaccedilotildeesrdquo e os ldquomil focos de culturardquo Nesse sentido a ldquosentenccedila de morterdquo da teoria barthesiana que impediria aos adeptos qualquer discussatildeo sobre autoria pode ser entendida como efeito de uma deturpada interpretaccedilatildeo textual incapaz de modalizar e contextualizar o que fora escrito

Em sincronia com o texto de Barthes embora seja distinta sua orien-taccedilatildeo epistemoloacutegica Mikhail Bakhtin propotildee uma duplicaccedilatildeo da autoria de modo que o enunciador do plano ficcional mdash que ele chama de autor secundaacuterio mdash se desprenda da entidade primaacuteria autoral (o ldquoautor em sirdquo) tornando-a oculta sem contudo sentenciaacute-la agrave morte mdash efeito que Gyoumlrgy Lukaacutecs define como ldquoironiardquo3 Por esse vieacutes teoacuterico passou a ser aceitaacutevel aos estudiosos voltados agraves linhas de pesquisa que exploram os viacutenculos entre a literatura e os estudos culturais ldquoressuscitarrdquo o autor e sua voz se natildeo no plano diegeacutetico ao menos nas entrelinhas textuais ou pensando do ponto de vista linguiacutestico no niacutevel do discurso4

A voz do autor poacutes-colonial

Sem a identificaccedilatildeo da entidade autoral natildeo seria possiacutevel forjar os estudos dedicados a compreender e inclusive definir as coletacircneas literaacuterias latino-americana e africana Eacute preciso considerar que a produccedilatildeo literaacuteria nesses espaccedilos poacutes-coloniais se deu de iniacutecio por intermeacutedio (ou influecircn-cia) da gestatildeo colonial e se registra graficamente nas liacutenguas herdadas dos colonizadores Nesse sentido a se considerarem ldquomortos os autoresrdquo as obras publicadas nas naccedilotildees latino-americanas e africanas independentes

2 A fonte em itaacutelico foi utilizada para apontar um jogo a linguagem criminal faz referecircncia agrave utilizaccedilatildeo do termo morte aqui repensado

3 O termo natildeo se confunde com a figura de linguagem que permite a eliacuteptica negaccedilatildeo da mensagem na forma pela qual o ldquoditordquo eacute o ldquonatildeo ditordquo Nas palavras de Lukaacutecs a ironia estaacute em ldquodizer por outrordquo preservando as intenccedilotildees primaacuterias a um universo oculto que alguns poderatildeo depreender nos subtextos acessiacuteveis apenas no aprofundado plano da exegese

4 ldquoO discurso eacute socialmente construiacutedo [] constituindo os sujeitos sociais as relaccedilotildees sociais e os sistemas de conhecimento e crenccedila e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideoloacutegicos construtivosrdquo (Fairclough 58)

167

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metroacutepoles mdash que por forccedila das circunstacircncias poliacuteticas agrave altura compunham (hoje com-potildeem) o que se passou a denominar internacionalmente como ldquoliteratura universalrdquo Eacute contudo na diferenccedila ao ldquoOcidenterdquo mdash pensado nas palavras de Walter Mignolo natildeo para ldquoreferir agrave geografia por si soacute mas agrave geopoliacutetica do conhecimentordquo (290) mdash que se constituem esses grupamentos literaacuterios poacutes-coloniais

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas passou a interessar um estudo de reconhecimento natildeo apenas dos conteuacutedos locais (ou vinculados ao espaccedilo local em oposiccedilatildeo ao global) mas mdash e sobre-tudo mdash dos recursos formais que na fratura leacutexico-sintaacutetica das liacutenguas importadas expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental Evidentemente tais estudos soacute se desenvolveram a partir do conhecimento da linguiacutestica como ciecircncia mdash falamos portanto do trabalho de Fernand de Saussure em seu ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo publicado em 1916 a desenvolver a noccedilatildeo de variedade linguiacutestica geograacutefica mdash e a partir daiacute da consciecircncia de que a literatura nacional natildeo se devia curvar agraves exigecircncias formais da comunidade artiacutestico-intelectual eurocecircntrica

Do ponto de vista da produccedilatildeo literaacuteria mdash evidentemente em conexatildeo com essa cronologia cientiacutefica mdash observam-se no mesmo periacuteodo (no iniacutecio do seacuteculo xx) a eclosatildeo de movimentos artiacutesticos libertadores como o mo-dernismo brasileiro a propor uma espeacutecie de novo grito de independecircncia sob a oacutetica linguiacutestico-cultural intermediado pelos ideais antropofaacutegicos O conceito de ldquoantropofagia culturalrdquo popularizado textualmente por Oswald de Andrade se disseminou por toda a Ameacuterica Latina e atravessou o Atlacircntico ecoando nas reuniotildees secretas dos intelectuais libertaacuterios africanos Tendo por base (dentre outros) esse conceito as jovens naccedilotildees independentes de Aacutefrica decretaram a ruptura com as letras europeias (entatildeo metropolitanas) e ao mesmo tempo o nascimento de novos corpus literaacuterios cunhados a partir da noccedilatildeo identitaacuteria apenas o autor que obtivesse ldquocertidatildeo africanardquo poderia representar de maneira simboacutelica e artistica ao continente5

5 A questatildeo da certificaccedilatildeo identitaacuteria evidentemente natildeo eacute simples nem banal ndash seja na Aacutefrica ou em qualquer territoacuterio poacutes-colonial A complexa noccedilatildeo importa inclusive agrave discussatildeo proposta neste artigo mas seraacute postergada para o trecho adiante em que se propotildee discutir o identitarismo como um ldquopressuposto ficcionalrdquo

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 6: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

166

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Para advogar em defesa do teoacuterico injustamente acusado por um crime que natildeo cometeu2 registre-se o fato de que nas entrelinhas do seu texto pode-se entender a figura do autor como depositaacuterio das ldquodimensotildees muacutel-tiplasrdquo o instrumento por onde se alinhavam as ldquocitaccedilotildeesrdquo e os ldquomil focos de culturardquo Nesse sentido a ldquosentenccedila de morterdquo da teoria barthesiana que impediria aos adeptos qualquer discussatildeo sobre autoria pode ser entendida como efeito de uma deturpada interpretaccedilatildeo textual incapaz de modalizar e contextualizar o que fora escrito

Em sincronia com o texto de Barthes embora seja distinta sua orien-taccedilatildeo epistemoloacutegica Mikhail Bakhtin propotildee uma duplicaccedilatildeo da autoria de modo que o enunciador do plano ficcional mdash que ele chama de autor secundaacuterio mdash se desprenda da entidade primaacuteria autoral (o ldquoautor em sirdquo) tornando-a oculta sem contudo sentenciaacute-la agrave morte mdash efeito que Gyoumlrgy Lukaacutecs define como ldquoironiardquo3 Por esse vieacutes teoacuterico passou a ser aceitaacutevel aos estudiosos voltados agraves linhas de pesquisa que exploram os viacutenculos entre a literatura e os estudos culturais ldquoressuscitarrdquo o autor e sua voz se natildeo no plano diegeacutetico ao menos nas entrelinhas textuais ou pensando do ponto de vista linguiacutestico no niacutevel do discurso4

A voz do autor poacutes-colonial

Sem a identificaccedilatildeo da entidade autoral natildeo seria possiacutevel forjar os estudos dedicados a compreender e inclusive definir as coletacircneas literaacuterias latino-americana e africana Eacute preciso considerar que a produccedilatildeo literaacuteria nesses espaccedilos poacutes-coloniais se deu de iniacutecio por intermeacutedio (ou influecircn-cia) da gestatildeo colonial e se registra graficamente nas liacutenguas herdadas dos colonizadores Nesse sentido a se considerarem ldquomortos os autoresrdquo as obras publicadas nas naccedilotildees latino-americanas e africanas independentes

2 A fonte em itaacutelico foi utilizada para apontar um jogo a linguagem criminal faz referecircncia agrave utilizaccedilatildeo do termo morte aqui repensado

3 O termo natildeo se confunde com a figura de linguagem que permite a eliacuteptica negaccedilatildeo da mensagem na forma pela qual o ldquoditordquo eacute o ldquonatildeo ditordquo Nas palavras de Lukaacutecs a ironia estaacute em ldquodizer por outrordquo preservando as intenccedilotildees primaacuterias a um universo oculto que alguns poderatildeo depreender nos subtextos acessiacuteveis apenas no aprofundado plano da exegese

4 ldquoO discurso eacute socialmente construiacutedo [] constituindo os sujeitos sociais as relaccedilotildees sociais e os sistemas de conhecimento e crenccedila e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideoloacutegicos construtivosrdquo (Fairclough 58)

167

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metroacutepoles mdash que por forccedila das circunstacircncias poliacuteticas agrave altura compunham (hoje com-potildeem) o que se passou a denominar internacionalmente como ldquoliteratura universalrdquo Eacute contudo na diferenccedila ao ldquoOcidenterdquo mdash pensado nas palavras de Walter Mignolo natildeo para ldquoreferir agrave geografia por si soacute mas agrave geopoliacutetica do conhecimentordquo (290) mdash que se constituem esses grupamentos literaacuterios poacutes-coloniais

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas passou a interessar um estudo de reconhecimento natildeo apenas dos conteuacutedos locais (ou vinculados ao espaccedilo local em oposiccedilatildeo ao global) mas mdash e sobre-tudo mdash dos recursos formais que na fratura leacutexico-sintaacutetica das liacutenguas importadas expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental Evidentemente tais estudos soacute se desenvolveram a partir do conhecimento da linguiacutestica como ciecircncia mdash falamos portanto do trabalho de Fernand de Saussure em seu ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo publicado em 1916 a desenvolver a noccedilatildeo de variedade linguiacutestica geograacutefica mdash e a partir daiacute da consciecircncia de que a literatura nacional natildeo se devia curvar agraves exigecircncias formais da comunidade artiacutestico-intelectual eurocecircntrica

Do ponto de vista da produccedilatildeo literaacuteria mdash evidentemente em conexatildeo com essa cronologia cientiacutefica mdash observam-se no mesmo periacuteodo (no iniacutecio do seacuteculo xx) a eclosatildeo de movimentos artiacutesticos libertadores como o mo-dernismo brasileiro a propor uma espeacutecie de novo grito de independecircncia sob a oacutetica linguiacutestico-cultural intermediado pelos ideais antropofaacutegicos O conceito de ldquoantropofagia culturalrdquo popularizado textualmente por Oswald de Andrade se disseminou por toda a Ameacuterica Latina e atravessou o Atlacircntico ecoando nas reuniotildees secretas dos intelectuais libertaacuterios africanos Tendo por base (dentre outros) esse conceito as jovens naccedilotildees independentes de Aacutefrica decretaram a ruptura com as letras europeias (entatildeo metropolitanas) e ao mesmo tempo o nascimento de novos corpus literaacuterios cunhados a partir da noccedilatildeo identitaacuteria apenas o autor que obtivesse ldquocertidatildeo africanardquo poderia representar de maneira simboacutelica e artistica ao continente5

5 A questatildeo da certificaccedilatildeo identitaacuteria evidentemente natildeo eacute simples nem banal ndash seja na Aacutefrica ou em qualquer territoacuterio poacutes-colonial A complexa noccedilatildeo importa inclusive agrave discussatildeo proposta neste artigo mas seraacute postergada para o trecho adiante em que se propotildee discutir o identitarismo como um ldquopressuposto ficcionalrdquo

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 7: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

167

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metroacutepoles mdash que por forccedila das circunstacircncias poliacuteticas agrave altura compunham (hoje com-potildeem) o que se passou a denominar internacionalmente como ldquoliteratura universalrdquo Eacute contudo na diferenccedila ao ldquoOcidenterdquo mdash pensado nas palavras de Walter Mignolo natildeo para ldquoreferir agrave geografia por si soacute mas agrave geopoliacutetica do conhecimentordquo (290) mdash que se constituem esses grupamentos literaacuterios poacutes-coloniais

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas passou a interessar um estudo de reconhecimento natildeo apenas dos conteuacutedos locais (ou vinculados ao espaccedilo local em oposiccedilatildeo ao global) mas mdash e sobre-tudo mdash dos recursos formais que na fratura leacutexico-sintaacutetica das liacutenguas importadas expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental Evidentemente tais estudos soacute se desenvolveram a partir do conhecimento da linguiacutestica como ciecircncia mdash falamos portanto do trabalho de Fernand de Saussure em seu ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo publicado em 1916 a desenvolver a noccedilatildeo de variedade linguiacutestica geograacutefica mdash e a partir daiacute da consciecircncia de que a literatura nacional natildeo se devia curvar agraves exigecircncias formais da comunidade artiacutestico-intelectual eurocecircntrica

Do ponto de vista da produccedilatildeo literaacuteria mdash evidentemente em conexatildeo com essa cronologia cientiacutefica mdash observam-se no mesmo periacuteodo (no iniacutecio do seacuteculo xx) a eclosatildeo de movimentos artiacutesticos libertadores como o mo-dernismo brasileiro a propor uma espeacutecie de novo grito de independecircncia sob a oacutetica linguiacutestico-cultural intermediado pelos ideais antropofaacutegicos O conceito de ldquoantropofagia culturalrdquo popularizado textualmente por Oswald de Andrade se disseminou por toda a Ameacuterica Latina e atravessou o Atlacircntico ecoando nas reuniotildees secretas dos intelectuais libertaacuterios africanos Tendo por base (dentre outros) esse conceito as jovens naccedilotildees independentes de Aacutefrica decretaram a ruptura com as letras europeias (entatildeo metropolitanas) e ao mesmo tempo o nascimento de novos corpus literaacuterios cunhados a partir da noccedilatildeo identitaacuteria apenas o autor que obtivesse ldquocertidatildeo africanardquo poderia representar de maneira simboacutelica e artistica ao continente5

5 A questatildeo da certificaccedilatildeo identitaacuteria evidentemente natildeo eacute simples nem banal ndash seja na Aacutefrica ou em qualquer territoacuterio poacutes-colonial A complexa noccedilatildeo importa inclusive agrave discussatildeo proposta neste artigo mas seraacute postergada para o trecho adiante em que se propotildee discutir o identitarismo como um ldquopressuposto ficcionalrdquo

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 8: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

168

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

A proposta de uma cisatildeo cultural entre os espaccedilos poacutes-coloniais e a Europa se perpetua ateacute a contemporaneidade em funccedilatildeo do trabalho de muitos teoacutericos que ajudaram a definir o lugar de resistecircncia das ex-colocircnias mdash hoje naccedilotildees independentes mdash em um contexto internacional que por motivos histoacutericos e geopoliacuteticos eacute ainda protagonizado de forma hegemocircnica pelo bloco europeu mdash sobretudo no que diz respeito agrave produccedilatildeo acadecircmico--cientiacutefica Em outras palavras os teoacutericos poacutes-coloniais defendem unacircnimes o que Mignolo denomina desobediecircncia epistecircmica (287-324) uma ruptura com o pensamento hegemocircnico sem a qual a produccedilatildeo cultural da naccedilatildeo livre ldquopermaneceraacute presa em jogos controlados pela teoria poliacutetica e pela economia poliacutetica eurocecircntricasrdquo (Mignolo 287)

O confronto com o eurocentrismo se daraacute a partir da consciecircncia por parte do indiviacuteduo poacutes-colonial acerca da importacircncia de repensar sua identidade coletiva (o que poderiacuteamos designar como ldquoautodeterminaccedilatildeo soacutecio-identitaacuteriardquo) tendo por base referecircncias que natildeo sejam forjadas mdash natildeo todas elas ao menos mdash pela epistemologia ocidental Nesse sentido eacute emblemaacutetico o trabalho de pesquisa de Edward Said quando descreve o Orientalismo como ldquoum sistema de conhecimento sobre o Oriente uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciecircncia ocidental assim como o mesmo investimento multiplicou mdash na verdade tornou verdadeiramente produtivas mdash as afirmaccedilotildees que transitam do Orientalismo para a cultura em geralrdquo (34)

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente eacute uma ldquoinvenccedilatildeo do Ocidenterdquo (este inclusive eacute o subtiacutetulo do seu livro) o teoacuterico palestino induz a uma ressignificaccedilatildeo identitaacuteria das naccedilotildees poacutes-coloniais ou seja a necessidade de reapresentar-se ou ateacute reinventar-se para os seus e para o mundo a partir de referecircncias nas histoacuterias e memoacuterias locais Seguindo a mesma linha o pesquisador anglo-ganecircs Kwame Anthony Appiah no livro Na casa do meu pai em seu ensaio de abertura dedica-se a discutir ldquoA invenccedilatildeo da Aacutefricardquo tambeacutem mdash segundo o teoacuterico mdash um constructo do Ocidente E no mesmo ldquocorordquo o semioacutelogo argentino Walter Mignolo a repensar identidades na Ameacuterica Latina que diraacute terem sido ldquoalocadas por discursos imperiaisrdquo afirma ldquonatildeo havia iacutendios nos continentes americanos ateacute a chegada dos espanhoacuteis e natildeo havia negros ateacute o comeccedilo do comeacutercio massivo de escravos no Atlacircnticordquo(289) em assertiva referecircncia agraves forccedilosas

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 9: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

169

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

generalizaccedilotildees fundadoras das identidades indiacutegena e negra no continente necessariamente a partir do estranhamento do colonizador

O repensar das identidades poacutes-coloniais resvala para o universo ficcional ao ser o texto literaacuterio um poderoso siacutembolo histoacuterico-cultural O autor literaacuterio poacutes-colonial portanto seraacute lido mdash em parte mdash pela sua credencial identitaacuteria expressa pela distinccedilatildeo eacutetico-esteacutetica6 de sua obra sendo ele um representante das vozes locais Nesse acircmbito embora natildeo se neguem as contribuiccedilotildees dos escritores latino-americanos e africanos para o cacircnone literaacuterio internacional buscar-se-atildeo neles mdash a partir de uma consciecircncia da poacutes-colonialidade mdash os traccedilos de oralidade presentes na escrita os neologismos e a neossintaxe popular a temaacutetica autoacutectone as referecircncias simboacutelicas nas tradiccedilotildees tribais enfim sinais locais desafiadores da ordem epistemoloacutegica e linguiacutestica eurocecircntrica

A noccedilatildeo de uma ldquolegitimidade representativa do autorrdquo se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7) quando transborda da nacionalidade poacutes-colonial para os coletivos identitaacuterios8 na medida em que esses natildeo se localizam em espaccedilos de produccedilatildeo cultural nos limites geograacuteficos previstos pela antropologia social A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporacircnea em especial quando eacute vocacionada a entender as representaccedilotildees artiacutestico-culturais dos grupos sociais minoritaacuterios A ldquovoz do autor primaacuteriordquo torna-se entatildeo uma espeacutecie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido agraves minorias Nesse contexto surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido os grupos em defesa das mulheres vatildeo se fixar na ldquoliteratura femininardquo os movimentos antirracistas vatildeo delimitar a ldquoliteratura negrardquo e mais recentemente pes-quisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletacircneas de uma ldquoliteratura homoafetivardquo Todos eles evidentemente pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritaacuterio A grande discussatildeo que se impotildee a essas linhas de pesquisa mdash em uma espeacutecie de uma encruzilhada

6 Tem-se por base neste ponto a ideia de ldquoparadigma esteacuteticordquo tatildeo cara agrave obra de Feacutelix Guattari

7 O teoacuterico define no livro O pensamento complexo a aacuterdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos na medida em que ldquoa totalidade eacute simultaneamente verdade e natildeo verdaderdquo (97)

8 Eacute notoacuteria a proximidade e inter-relaccedilatildeo nos centros acadecircmicos entre as pesquisas dedicadas aos estudos poacutes-coloniais e aos estudos de gecircnero e de raccedila Tal fato justifica a menccedilatildeo ao ldquotransbordamentordquo na abordagem referida

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 10: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

170

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

conceptual mdash eacute o ldquoser ou natildeo serrdquo daquilo que a sociologia contemporacircnea denomina lugar de fala quando na anaacutelise do autor ficcional

O ldquolugar de falardquo do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitaccedilatildeo da experiecircncia do sujeito da enunciaccedilatildeo enquanto produtora de sentidos O conceito foi receacutem descrito com muita proprie-dade pela filoacutesofa contemporacircnea brasileira Djamila Ribeiro no livro que tem como tiacutetulo o termo em questatildeo e haacute quem lhe atribua a autoria do conceito embora natildeo haja um consenso a esse respeito considerando que as miacutedias digitais mdash importantes instrumentos de discussatildeo sobre a defesa dos grupos sociais mdash tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocaacutebulos e expressotildees De toda forma seja ou natildeo seja uma denominaccedilatildeo atribuiacuteda agrave pesquisadora haacute precedentes teoacutericos que natildeo podem ser desprezados em sua discussatildeo conceptual proposta

A expressatildeo lugar de fala estaacute matricialmente relacionada agrave teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak referida com relevacircncia no livro Pode o subalterno falar Na obra a teoacuterica discute mdash dentre outros temas mdash a subalternidade feminina sobretudo nos paiacuteses do terceiro mundo refletida no natildeo-dizer da sua experiecircncia sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental poacutes-colonial A essas ideias soma-se a contribuiccedilatildeo da filoacutesofa panamenha Linda Alcoff em The Problem of Speaking for Others [O problema de falar pelos outros] quando reflete acerca da hierarquizaccedilatildeo social nos atos da ldquotomada de palavrardquo Diz a teoacuterica

[C]ertas localizaccedilotildees privilegiadas satildeo discursivamente perigosas Em particular a praacutetica de certos indiviacuteduos privilegiados de falar em nome de indiviacuteduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforccedilo na opressatildeo do grupo do qual se fala por (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teoacuterico as discussotildees propostas pela pro-fessora Avtar Brah doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck a respeito da ldquoteorizaccedilatildeo das diferenccedilasrdquo e das categorias sociais enquanto ldquosujeitos poliacuteticosrdquo (Brah 332) no artigo cientiacutefico ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 11: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

171

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Contesting Indentities A pesquisadora discute em resumo a inconsistecircncia de termos definidores de raccedila e gecircnero para abarcar a diversidade das vozes e experiecircncias afrodescendentes e femininas respectivamente Com esse pressuposto adverte para o risco da substituiccedilatildeo da autorreferecircncia pela teorizaccedilatildeo por outrem sendo o teoacuterico um representante do centro hegemocircnico A ideia de que a formaccedilatildeo discursiva eacute um ldquolugar de poderrdquo deriva evidentemente do pensamento bakhtiniano a respeito do caraacuteter ideoloacutegico de todo discurso Sendo a liacutengua um instrumento de poder o reconhecimento da voz eacute um ato de resistecircncia

Sobre todo esse manancial teoacuterico se apoia o conceito de ldquolugar de falardquo que mdash conforme jaacute o dissemos mdash tem no Brasil a filoacutesofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente Em seu livro O que eacute lugar de fala a autora questiona o ldquolocus socialrdquo dos sujeitos marginalizados ldquonuma matriz de dominaccedilatildeo e opressatildeordquo (68) a partir das oportunidades que tecircm (ou natildeo tecircm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiecircncia social Essa demarcaccedilatildeo soacutecio-espacial alerta a autora natildeo refuta a adesatildeo de indiviacuteduos natildeo-marginalizados aos movimentos sociais mdash de homens na defesa dos direitos femininos de brancos na campanha antirracista de heterossexuais na legitimaccedilatildeo das pautas lgbt mdash mas eacute importante compreender que ldquopor mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressotildees elas natildeo deixaratildeo de ser beneficiadas estruturalmente falando pelas opressotildees que infligem a outros gruposrdquo (Ribeiro 68)

No que tange agrave produccedilatildeo intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados deve-se considerar mdash com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro mdash o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratizaccedilatildeo nos processos de produccedilatildeo eou divulgaccedilatildeo Nas palavras da pesquisadora

As experiecircncias desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e natildeo humanizada faz com que as produccedilotildees intelectuais saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado aleacutem das condiccedilotildees sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente Isso de forma alguma significa que esses grupos natildeo criam ferramentas para enfrentar esses silecircncios institucionais ao contraacuterio existem vaacuterias formas de organizaccedilatildeo

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 12: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

172

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

poliacuteticas culturais e intelectuais A questatildeo eacute que essas condiccedilotildees sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produccedilotildees (Ribeiro 63)

O ldquolugar de falardquo portanto tem alcance natildeo apenas em depoimentos e relatos propriamente ditos mas em toda criaccedilatildeo discursiva inclusive acadecircmica e artiacutestica Por esse vieacutes eacute que se iniciam os debates que buscam a vinculaccedilatildeo do conceito agrave produccedilatildeo cultural em especial a literaacuteria Uma vez conscientes do quanto o ldquofalar pelo outrordquo pode ser em si um gesto opressor muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o ldquolugar de falardquo como preacute-requisito da produccedilatildeo cultural e acadecircmica quando esta diga respeito agravequela O conceito entatildeo assume a sua vocaccedilatildeo poliacutetica e sobre ele natildeo haveria incocircmodo algum natildeo fosse a determinaccedilatildeo dos pesquisadores com relaccedilatildeo agrave precisatildeo cientiacutefica dos seus trabalhos Eacute a obstinaccedilatildeo pela ciecircncia mdash acima inclusive do desejo pela luta mdash que levanta duacutevida acerca da validade desse fator para a anaacutelise literaacuteria

Por detraacutes dessa ldquobrigardquo cientiacutefica haacute uma ancoragem nos princiacutepios estruturalistas mdash com os devidos descontos aos radicalismos jaacute aqui dis-cutidos mdash como atributos da criaccedilatildeo literaacuteria Neste ponto deve-se evocar a contribuiccedilatildeo de Michel Foucault em O que eacute um autor acerca da ideia de arte como representaccedilatildeo e por este vieacutes de um autor literaacuterio que eacute menos sujeito (em si) e mais funccedilatildeo discursiva Para o filoacutesofo tal funccedilatildeo

[N]atildeo se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos em todas as eacutepocas e em todas as formas de civilizaccedilatildeo natildeo se define pela atribuiccedilatildeo espontacircnea de um discurso ao seu produtor mas atraveacutes de uma seacuterie de oposiccedilotildees especiacuteficas e complexas natildeo reenvia pura e simplesmente para um indiviacuteduo real podendo dar lugar a vaacuterios ldquoeusrdquo em simultacircneo a vaacuterias posiccedilotildees-sujeito que classes diferentes de indiviacuteduos podem ocupar (56)

As posiccedilotildees-sujeito a que se refere o autor questionam a discussatildeo acerca de um ldquolugar de falardquo autoral na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciaccedilatildeo Pode-se fazer neste ponto inclusive uma conexatildeo da ideia de Foucault com a emblemaacutetica noccedilatildeo bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional mdash em consequecircncia um recurso autoral Eacute como se juntos os teoacutericos propusessem um deslo-camento do que seria a ideia de um ldquolugar de falardquo autoral para aquilo que

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 13: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

173

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor A partir de um ponto de observaccedilatildeo a ser ocupado pelo indiviacuteduo da enunciaccedilatildeo haacute uma gama de ldquoposiccedilotildees de falardquo os ldquovaacuterios eusrdquo do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispotildee ao discurso Em primeiro lugar a unidade subjetiva eacute uma ilusatildeo um constructo (necessaacuterio muitas vezes agrave causa poliacutetica) levando-se em conta o entendimento poacutes-moderno sobre a fragmentaccedilatildeo subjetiva9 Se a esse conceito for acrescida a noccedilatildeo de que a produccedilatildeo artiacutestica mais do que outra atividade textual revela o oculto na mente humana mdash o que Freud chamou de subconsciente mdash seraacute dedutiacutevel a multiplicidade subjetiva como um caraacuteter da formulaccedilatildeo das vozes literaacuterias

A aceitaccedilatildeo da ideia de um muacuteltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva agrave qual se poderia atribuir na literatura um ldquolugar de falardquo mdash se natildeo para negaacute-la ao menos para questionar sua validade cientiacutefica Ora reflitamos com base em situaccedilotildees especiacuteficas afinal a ficccedilatildeo representa a negritude na materialidade do texto ou na revelaccedilatildeo da identidade de seu autor Haveraacute ldquoalma femininardquo no texto escrito ou na certidatildeo de quem escreve Natildeo se pensem as questotildees como provocaccedilotildees agraves causas minoritaacuterias todas elas fundamentais do ponto de vista poliacutetico Mas a quem interessar o estudo literaacuterio em nome da ciecircncia natildeo se deve furtar agrave luta de enfrentar o conflito dos conceitos

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensatildeo conceptual Em 2016 uma situaccedilatildeo ocorrida na Itaacutelia serviu para aquecer esse debate A escritora best seller Elena Ferrante10 mdash pseudocircnimo de um(a) autor(a) anocircnimo(a) mdash passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e em funccedilatildeo da anaacutelise de transaccedilotildees financeiras da editora correspondentes agrave venda dos livros suspeitou-se de que ldquoelardquo talvez fosse ldquoelerdquo o escritor Domenico Starnone A suposta revelaccedilatildeo (ateacute hoje a pessoa por traacutes de Ferrante eacute um misteacuterio) levou o puacuteblico leitor a uma comoccedilatildeo negativa na medida em que a escritora ateacute entatildeo fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das anguacutestias femininas O frisson soacute acalmou quando se levantou a hipoacutetese de que na verdade Elena seria a esposa de Starnone a tradutora Anita Raja e natildeo o proacuteprio Como ainda natildeo haacute confirmaccedilatildeo a respeito a questatildeo ainda gera discussotildees natildeo apenas sobre a identidade da autora mas sobre a sua ldquolegitimidade enquanto mulherrdquo

9 Sobre isso destaca-se o ldquodescentramento do sujeitordquo na teoria de Stuart Hall 10 Ver Pron

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 14: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

174

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Outro caso exemplar da discussatildeo sobre o suposto ldquolugar de falardquo na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudocircnimo de Artur Carlos Mauriacutecio Pestana dos Santos) Em 2008 na livraria Travessa do Leblon no Rio de Janeiro em entrevista coletiva11 para o lanccedilamento do seu romance Predadores o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji O romance de Pepetela lanccedilado em 1989 narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres Lueji uma jovem que se torna rainha do reino Lunda depois da morte de Kondi seu pai e a jovem Lu que 400 anos depois busca recriar a histoacuteria de Lueji No evento da Travessa o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) ldquoautora negra de Luejirdquo relatando a percepccedilatildeo de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tatildeo iacutentima (o nome Pepetela terminado em ldquoardquo e a certidatildeo africana do autor levaram-nas agrave equivocada suposiccedilatildeo) O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou na qual agradeceu muito o contato relevando contudo que se tratava de um homem branco o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato

Os casos supracitados embora natildeo tenham a pretensatildeo da certificaccedilatildeo cientiacutefica satildeo reveladores do ponto de vista empiacuterico Satildeo situaccedilotildees em que a percepccedilatildeo de uma obra literaacuteria na qual o autor se revela posteriormente como algueacutem que natildeo corresponde ao sujeito da enunciaccedilatildeo (em especial em termos de raccedila e gecircnero) eacute alterada em funccedilatildeo de uma expectativa dos leitores quanto agrave identificaccedilatildeo da autoria Experiecircncias como essas contribuem para a inferecircncia de que talvez o que se poderia julgar como um ldquolugar de falardquo ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto Em outras palavras a hipoacutetese de um ldquolugar de falardquo do autor literaacuterio inviabiliza o distanciamento entre a obra literaacuteria e o seu criador ainda que o miacutenimo necessaacuterio para que se decirc o jogo de simulaccedilatildeo da arte o cachimbo de Magritte No entanto as ldquofalas do lugarrdquo impotildeem um limite inexoraacutevel agraves vinculaccedilotildees possiacuteveis entre autor e obra Evidentemente admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima) natildeo se estaraacute aceitando a livre

11 Fonte notas pessoais durante o evento

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 15: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

175

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

vinculaccedilatildeo Recorrendo de novo agrave teoria de Foucault eacute imperioso afirmar que os ldquovaacuterios eusrdquo ou as ldquovaacuterias posiccedilotildees-sujeitordquo que se podem manifestar na autoria estatildeo circunscritos agrave vivecircncia do sujeito-autor porque os seus potenciais ldquoeusrdquo satildeo constituiacutedos na vida natildeo inerentes

Neste ponto apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor em uma leitura criacutetica das teorias de Foucault e Barthes Diz o teoacuterico

O sujeito mdash assim como o autor como a vida dos homens infames mdash natildeo eacute algo que possa ser alcanccedilado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar pelo contraacuterio ele eacute o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto mdash se pocircs mdash em jogo Isso porque tambeacutem a escritura mdash toda escritura e natildeo soacute a dos chanceleres do arquivo da infacircmia mdash eacute um dispositivo e a histoacuteria dos homens talvez natildeo seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram mdash antes de qualquer outro a linguagem E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e no entanto precisamente desse modo testemunha a proacutepria presenccedila irredutiacutevel tambeacutem a subjetividade se mostra e resiste com mais forccedila no ponto em que os dispositivos a capturam e potildeem em jogo (63)

O autor portanto eacute um jogo de presenccedila-ausecircncia pondo-se entre a condiccedilatildeo inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posiccedilatildeo de testemunha de sua irredutiacutevel presenccedila sob forma de linguagem (e do agente da sua formulaccedilatildeo) Tudo o que se expressa na composiccedilatildeo da obra eacute resultado de sua existecircncia e das suas conexotildees possiacuteveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caraacuteter muacuteltiplo)

As falas do lugar poacutes-colonial

Se a multiplicidade eacute uma condiccedilatildeo inerente a toda identidade mais intenso seraacute o caraacuteter muacuteltiplo da identidade poacutes-colonial por razotildees justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais O professor Silviano Santiago no artigo ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo (11-28) publicado em 1978 disserta acerca do componente

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 16: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

176

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

fronteiriccedilo do discurso latino-americano expressatildeo de identidades entre o ldquopreacute-rdquo e o ldquopoacutes-rdquo colonial entre o estrangeiro e o autoacutectone entre o global e o local Desenvolvendo esse conceito Homi Bhabha no ceacutelebre livro O lugar da cultura publicado em 1994 afirma

O afastamento das singularidades de ldquoclasserdquo ou ldquogecircnerordquo como categorias conceituais e organizacionais baacutesicas resultou em uma consciecircncia das posiccedilotildees do sujeito mdash raccedila gecircnero geraccedilatildeo local institucional localidade geopoliacutetica orientaccedilatildeo sexual mdash que habitam qualquer pretensatildeo agrave identidade no mundo moderno O que eacute teoricamente inovador e politicamente crucial eacute a necessidade de passar aleacutem das narrativas de subjetividades originaacuterias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais Esses ldquoentrelugaresrdquo fornecem o terreno para a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de subjetivaccedilatildeo mdash singular ou coletivandashque datildeo iniacutecio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo no ato de definir a proacutepria ideia de sociedade (19-20)

Haacute portanto um entrecruzamento de posiccedilotildees identitaacuterias formador das subjetividades em jogo na definiccedilatildeo do que seja uma sociedade O plu-ralismo das naccedilotildees poacutes-coloniais inerente ao processo de formaccedilatildeo social nesses espaccedilos nacionais tensiona o tracircnsito das fronteiras identitaacuterias ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaccedilos de pertenccedila batizados por ambos os teoacutericos supracitados mdash ainda que por perspec-tivas diferentes mdash como entrelugares Uma noccedilatildeo similar se encontra em Boaventura de Souza Santos quando o teoacuterico diz no livro Pela matildeo de Alice ldquoSabemos hoje [na poacutes-modernidade dos tempos poacutes-coloniais] que as identidades culturais natildeo satildeo riacutegidas nem muito menos imutaacuteveis Satildeo resultados sempre transitoacuterios e fugazes de processos de identificaccedilatildeordquo (135)

O autor poacutes-colonial dentro dessa perspectiva eacute um sujeito constituiacutedo em um espaccedilo de intensos tracircnsitos de identificaccedilatildeo que em funccedilatildeo da juventude de suas sociedades satildeo mais evidentes e contrastantes do que se nota nas naccedilotildees europeias um tanto mais homogeneizadas pelo tempo Embora haja tambeacutem na Europa diferenccedilas entre os componentes da naccedilatildeo (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes) existe ainda mdash ao menos imaginariamente mdash uma convergecircncia em direccedilatildeo a um totem identitaacuterio no centro da praccedila Os espaccedilos poacutes-coloniais ao contraacuterio sabem

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 17: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

177

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema Nesses locais as sociedades satildeo comunidades ldquoimaginadasrdquo12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural Por isso a tela Operaacuterios de Tarsila de Amaral eacute tatildeo simboacutelica para representar a brasilidade na medida em que um rosto apenas natildeo seria capaz de representar a identidade brasileira

O pluralismo raacutecico-cultural do mundo poacutes-colonial compotildee em alguma medida cada homem nele constituiacutedo Este eacute o ponto defendido por Serge Gruzinski em O pensamento mesticcedilo O indiviacuteduo poacutes-colonial eacute formado no (e pelo) conceito de mesticcedilagem o que torna sua autoimagem plural como efeito da pluralidade nacional E essa pluralidade componente da criaccedilatildeo artiacutestico-literaacuteria se converte em acentuado plurivocalismo decorrecircncia do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor Neste ponto propotildee-se (aqui) o termo ldquofalas do lugarrdquo em concorrecircncia ao pressuposto proble-matizado de um ldquolugar de falardquo ficcional Por este vieacutes eacute que pretendemos enlaccedilar as literaturas latino-americanas e africanas entendecirc-las por um caminho em que as representaccedilotildees socioeconocircmicas raciais geneacutericas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimaratildees Rosa ou do realismo maacutegico de Gabriel Garciacutea Maacuterquez em todo o mundo poacutes-colonial natildeo com o exotismo da recepccedilatildeo europeia mas com um sentido de identificaccedilatildeo As muacuteltiplas vozes e possibilidades de entendimento da proacutepria realidade pairam por sobre o ambiente poacutes-colonial estatildeo no ar que se respira e que inspira os seus criadores

Disso fala muito bem Mia Couto ficcionista moccedilambicano em entrevista agrave repoacuterter Mirella Nascimento Integrante branco de uma naccedilatildeo maciccedilamente negra o escritor africano eacute questionado sobre a presenccedila predominante negra de personagens e narradores em sua obra Em resposta Mia Couto afirma

[Q]uando eu escrevo uma histoacuteria os personagens que surgem satildeo negros Quando eu tenho que perceber que algueacutem natildeo eacute negro eu tenho que pensar e colocar isso como uma espeacutecie de marca de extensatildeo no texto Mas a minha imaginaccedilatildeo eacute toda construiacuteda nesse outro universo (Couto sect15)

12 As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson em sua obra homocircnima na qual o teoacuterico afirma que haacute entre os membros de uma naccedilatildeo um ideaacuterio a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 18: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

178

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Na sequecircncia interrogado sobre um suposto ldquolugar de falardquo do negro na literatura moccedilambicana responde ldquoa escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala ela morre Eu soacute escrevo porque eu viajo para outrosrdquo (sect19)

Em sua obra Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra mdash aliaacutes um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos independentemente da sua cor Isso porque a negritude eacute um estado africano um ldquoserestar no mundordquo A cor branca na Aacutefrica ainda estaacute simbolicamente associada aos colonizadores cujo rastro ainda se percebe nas relaccedilotildees de poder de-fora-para-dentro em funccedilatildeo das recentes independecircncias Embora sejam receptivos agrave mesticcedilagem que hoje compotildee as naccedilotildees em Aacutefrica os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo portanto assim se veem em um espelho geopoliacutetico mdash condiccedilatildeo bastante assimilaacutevel a um brasileiro ou um cubano por exemplo (tambeacutem de certa forma no leste da Colocircmbia) paiacuteses cuja demografia tem predominacircncia negra

Outro escritor africano de pele branca cuja obra reproduz a experiecircncia negro-africana de forma profunda eacute Luandino Vieira um dos maiores autores vivos em Aacutefrica Desde Luuanda livro que o projetou para o mundo o autor mdash por meio dos seus narradores mdash enuncia a condiccedilatildeo negra de modo a exibir seus dramas e conflitos a exploraccedilatildeo do homem da terra o sofrimento em ser subalternizado na proacutepria casa a rejeiccedilatildeo esteacutetica em meio a uma realidade de privileacutegios brancos Da mesma forma vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente sempre sob a perspectiva do negro iacutecone da experiecircncia africana Por isso o romance O livros dos rios o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada inicia com a seguinte declaraccedilatildeo do narrador-personagem Kapapa

Conheci riosPrimevos primitivos rios entes passados do mundo lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homensMinha alma escorre funda como a aacutegua desses riosSoacute que na guerra civil da minha vida eu negro dei de pensar satildeo rios demais ndash vi uns ouvi outros em todas mesmas aacuteguas me banhei eacute duas vezes (15)

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 19: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

179

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Os ldquorios demaisrdquo satildeo as veias que compotildeem o sangue africano um ldquocal-dordquo que mdash percebe o personagem mdash tambeacutem se nutre de alguns afluentes brancos incorporados agrave terra Em fluxos de memoacuteria Kapapa reviveraacute a sua relaccedilatildeo paternal com trecircs figuras influentes na sua histoacuteria (parte da Histoacuteria africana) o avocirc pescador siacutembolo da tradiccedilatildeo ancestral o pai assimilado mas consciente da sua condiccedilatildeo subalterna e Lopo Gavinho branco portuguecircs que embora representante dos colonizadores tornou--se um mestre afetuoso e dedicado tambeacutem importante em sua formaccedilatildeo identitaacuteria O livro propotildee um paradoxal caminho autorreflexivo o sujeito negro-africano contemporacircneo resgata as tradiccedilotildees autoacutectones e a consciecircncia a respeito da imposiccedilatildeo social contra toda forma de dominaccedilatildeo mas tambeacutem se prepara para uma aproximaccedilatildeo gradual com alguns viacutenculos europeus de modo a desfazer o muro simboacutelico que divide os dois mundos erguido para se vencer a guerra mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconocircmicos e culturais

Tambeacutem a obra de Pepetela mdash o escritor angolano branco referido neste artigo mdash eacute significativa para se pensar a enunciaccedilatildeo negro-africana Os seus narradores estatildeo de tal forma imbuiacutedos da ldquoalma negrardquo que dispensam a apresentaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo racial Ao contraacuterio disso os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade Haacute na narraccedilatildeo de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversatildeo em relaccedilatildeo agraves discussotildees socioloacutegicas acerca do destaque agrave diferenccedila negra Um dos pontos centrais de argumentaccedilatildeo do movimento negro eacute o quanto o indiviacuteduo de pele preta eacute sempre racialmente apontado (ldquodiscriminadordquo no duplo senti-do) o ldquoator negrordquo uma ldquonegra lindardquo etc De fato a diferenccedila apontada no discurso eacute excludente Em Pepetela o que se aponta eacute sempre o branco e entatildeo na ausecircncia de apresentaccedilotildees seus personagens satildeo sempre pretos

Esse efeito eacute evidenciado por exemplo no livro O quase fim do mundo um romance futurista que narra a sobrevivecircncia de alguns habitantes da Aacutefrica em funccedilatildeo de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta O romance eacute narrado no iniacutecio por Simba Ukolo meacutedico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhanccedila Essas satildeo suas as primeiras impressotildees de um mundo acabado mas natildeo seratildeo as uacutenicas Nas suas andanccedilas (e no avanccedilar das paacuteginas do livro) passa a encontrar um a um outros sobreviventes Geny mulher de meia-idade (16) Kiari um andarilho louco (26) Jude uma menina tiacutemida (31) um

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 20: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

180

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

pescador (55) Kiboro um ladratildeo (62) e o menino Nkunda (103) Ateacute entatildeo natildeo haacute na narrativa qualquer referecircncia agrave condiccedilatildeo racial dos personagens apresentados mas notar-se-atildeo negros no desenrolar da trama Adiante o personagem-narrador diz ldquoNeste momento havia outro poacutelo de atraccedilatildeo e bastante inesperado um casal de brancos Tive caacute um destes choques Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdaderdquo (107) Na forma como ldquoJanet e Janrdquo satildeo introduzidos na narrativa eacute que se confirma por oposiccedilatildeo a condiccedilatildeo eacutetnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens Na ontologia e epistemologia africana o que se destaca (em diferenccedila) eacute a condiccedilatildeo branca

Consideraccedilotildees finais

A aproximaccedilatildeo entre as pesquisas literaacuterias e os Estudos Culturais per-mitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes agrave sua condiccedilatildeo artiacutestica Haacute portanto nessa relaccedilatildeo um paradoxo vibrante que natildeo deve ser ignorado a obra literaacuteria pode ser encarada como o produto de um espaccedilo sociocultural (e suas implicaccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas) embora natildeo se possa fixar a uma experiecircncia individual tendo em vista ser o sujeito-autor algueacutem dotado de uma multiplicidade subjetiva tanto do ponto de vista psiacutequico quanto social Daiacute se depreende a substituiccedilatildeo da procura por um ldquolugar de falardquo ficcional pela admissibilidade de haver ldquofalas do lugarrdquo possiacuteveis a um criador formado em determinados contextos sobretudo quando se trata de espaccedilos poacutes-coloniais pluralizados pelos fluxos e tensotildees decorrentes de uma histoacuteria de negociaccedilotildees socioculturais ainda em curso

A questatildeo no entanto se limita ao plano diegeacutetico das obras literaacuterias mdash e evidentemente natildeo se pode desprezar as realidades soacutecio-histoacutericas econocircmicas e poliacutetico-culturais dentre as quais os objetos literaacuterios se inserem Em outras palavras o fato de se questionar a validade cientiacutefica do ldquolugar de falardquo como atributo autoral na ficccedilatildeo natildeo impede (nem faz resistecircncia a) o desenvolvimento de poliacuteticas de produccedilatildeo editorial com base em criteacuterios identitaacuterios Do ponto de vista socioloacutegico satildeo vaacutelidas e importantes as poliacuteticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletacircneas de autores negros por exemplo por ser necessaacuteria a afirmaccedilatildeo de accedilotildees compensatoacuterias ao fato de durante muitos anos (e em parte ateacute

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 21: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

181

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

hoje) as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cacircnones literaacuterios

Existem ainda proporcionalmente no mercado editorial menos autores negros (Damasceno) do que brancos Aleacutem disso as mulheres (Peacutecora) escritoras satildeo menos lidas do que homens Pesquisas recentes comprovam o disparate

Apoacutes analisar 258 romances publicados por trecircs grandes editoras entre 1990 e 2004 o estudo Literatura Brasileira Contemporacircnea mdash Um Territoacuterio Contestado (Editora Horizonteuerj) revelou que 939 dos autores publicados eram brancos 72 do sexo masculino e 68 residiam em Satildeo Paulo ou no Rio de Janeiro (Damasceno sect5)

O fenocircmeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestiacutegio que os escritores recebem da grande miacutedia Em relaccedilatildeo por exemplo agraves diferenccedilas entre autores e autoras observa-se no relatoacuterio anual norte-americano conhecido como ldquovida Countrdquo o seguinte dado

No ldquoLondon Review of Booksrdquo por exemplo foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres no ldquoNew York Review of Booksrdquo foram 307 contra 80 na revista ldquoThe New Yorkerrdquo 436 contra 136 na ldquoParis Reviewrdquo uma rara exceccedilatildeo por um livro as mulheres foram maioria (Peacutecora sect11)

Haacute portanto a urgecircncia por uma poliacutetica compensatoacuteria quanto agrave participaccedilatildeo de mulheres e negros no mercado de produccedilatildeo editorial como extensatildeo da luta pela presenccedila feminina e negra em todos os segmentos sociais A grande questatildeo eacute que isso natildeo se deve confundir com a expectativa de uma projeccedilatildeo identitaacuteria ficcional nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiecircncia pessoal pela via ficcional mas definitivamente pela precariedade de afericcedilatildeo cientiacutefica a respeito desse criteacuterio de avaliaccedilatildeo da obra literaacuteria Os autores seguem livres e multifacetados produzindo uma arte que reproduz a incontinecircncia de um sujeito criador em si mesmo porque afinal mdash parafraseando Mia Couto mdash escrever eacute viajar para outros

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 22: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

182

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Referecircncias

Agamben Giorgio ldquoO autor como gestordquo Profanaccedilotildees Traduzido por Selvino J Assmann Satildeo Paulo Boitempo 2007

Alcoff Linda ldquoThe Problem of Speaking for Othersrdquo Cultural Critique n 20 1991 pp 5-32 Web 05 de novembro de 2019

Amaral Tarsila do Operaacuterios Pintura a oacuteleo Palaacutecio Boa Vista Satildeo Paulo 1933

Anderson Benedict Comunidades imaginadas Reflexotildees sobre a origem e a difusatildeo do nacionalismo Traduzido por Denise Bottman Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Appiah Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura Traduzido por Vera Ribeiro Rio de Janeiro Contraponto 1997

Barthes Roland ldquoA Morte do Autorrdquo O Rumor da Liacutengua Traduzido por Mario Laranjeira Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

Bakhtin Mikhail Questotildees de literatura e de esteacutetica a teoria do romance Traduzido por Aurora Fornoni Bernadini et al Satildeo Paulo Editora unesp 1990

Bhabha Homi O local da cultura Traduzido por Myriam Aacutevila et al Belo Horizonte Editora ufmg 1998

Brah Avtar ldquoDiferenccedila diversidade diferenciaccedilatildeordquo Cadernos Pagu n 26 2006 pp 329-376 Web 05 de novembro de 2019

Couto Mia e Mirella Nascimiento ldquoQuestionar lugar de fala lsquomatarsquo literatura diz Mia Coutordquo uol 24 de maio de 2018 Web 03 de maio de 2020

Damasceno Victoria ldquoEscritores negros buscam espaccedilo em mercado dominado por brancosrdquo Carta Capital 03 dezembro de 2017 Web 14 de maio de 2020

Fairclough Norman Discurso e mudanccedila social Traduzido por Izabel Magalhatildees Brasiacutelia Editora unb 2001

Foucault Michel O que eacute um autor Traduzido por Antoacutenio Fernando Cascais Eduardo Cordeiro Lisboa Vega 1992

Freud Sigmund O mal-estar na civilizaccedilatildeo novas conferecircncias introdutoacuterias agrave psicanalise e outros textos (1930-1936) Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

Genette Gerad Discurso da narrativa Traduzido por Fernando Cabral Martins Lisboa Veja 1971

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 23: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

183

Literatura teoriacutea historia criacutetica 23middot1 (2021) middot pp 161-184

Gruzinski Serge O pensamento mesticcedilo Traduzido por Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

Guattari Feacutelix As trecircs ecologias Traduzido por Maria Cristina F Bittencourt Satildeo Paulo Editora Papirus 1990

Hall Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade 11ordf edTraduzido por Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro dpampa 2006

Lajolo Marisa ldquoO texto natildeo eacute pretextordquo Leitura em crise na escola as alternativas do professor 8 ed Organizado por Regina Zilberman Porto Alegre Mercado Aberto 1988

Lukaacutecs Gyoumlrgy A teoria do romance Traduzido por Joseacute Marcos Mariani de Macedo Satildeo Paulo Editora 34 Ltda 2007

Mignolo Walter ldquoDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo descolonial e o significado de identidade em poliacuteticardquo Traduzido por Acircngela Lopes Norte Cadernos de Letras da uff n 34 2008 pp 287-324

Morin Edgar Introduccedilatildeo ao pensamento complexo 3ed Traduzido por Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2007

Peacutecora Luiacutesa ldquoMulheres tecircm menos espaccedilo na literatura mas leem mais e dominam precircmiosrdquo Uacuteltimo Segundo 26 de maio de 2014 Web 14 de maio de 2020

Pepetela Lueji O nascimento de um impeacuterio Satildeo Paulo Leya 2015 Predadores Rio de Janeiro Liacutengua Geral 2008 O quase fim do mundo Lisboa Dom Quixote 2008

Pron Patricio ldquoSomos todos Elena Ferranterdquo El Paiacutes 21 novembro de 2015 Web 02 fevereiro de 2020

Ribeiro Djamila O que eacute lugar de fala Belo Horizonte Letramento 2017Said Edward W Orientalismo O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Traduzido

por Rosaura Eichenberg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007Santiago Silviano ldquoO entre-lugar do discurso latino americanordquo Uma literatura

nos troacutepicos ensaios sobre dependecircncia cultural Satildeo Paulo Perspectiva 1978Santos Boaventura de Souza Pela matildeo de Alice o social e o poliacutetico na poacutes-

modernidade Satildeo Paulo Cortez 2010Saussure Ferdinan de Curso de Linguiacutestica Geral 28a ed Traduzido por

Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2012

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes

Page 24: O “lugar de fala” e as “falas do lugar” na enunciação ...

184

Brandatildeo Mattos Marcelo O ldquolugar de falardquo e as ldquofalas do lugarrdquo na enunciaccedilatildeo literaacuteriahellip

Spivak Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Traduzido por Sandra Tegina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andreacute Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora da ufmg 2010

Vieira Else ldquoEstudos literaacuterios e estudos culturais territoacuterios dos caminhos que convergemrdquo Literatura e estudos culturais Organizado por Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenccedilo de Reis Belo Horizonte Editora da ufmg 2000

Vieira Luandino Luuanda Estoacuterias Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 O livro dos rios Luanda Editorial Nzila 2006

Sobre el autorDoctor en Letras con eacutenfasis en Estudios Culturales de la Universidade Federal

Fluminense (uff) donde tambieacuten obtuvo la maestriacutea en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje palavra maacutegica donde desarrolla desde 1998 actividades pedagoacutegicas orientadas al desarrollo de la produccioacuten escrita y habilitacioacuten de la lectura Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012 publicado por eduff seleccionado en un aviso puacuteblico) y la novela TestamentondashO livro de Ningueacutem (2016) de Ed Chiado (Lisboa) Su tesis doctoral A geraccedilatildeo da distopia Representaccedilotildees da angolanidade na ficccedilatildeo contemporacircnea fue contemplada por faperj (apq3-2014) para su publicacioacuten En 2019 fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Riacuteo de Janeiro (uerj) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugueacutes