Literatura Africana

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C O ~ I G O 0 . C O l f C A O

2 5 1 4 3 O . l O l

M A N U 4L D O PR O FESSO R

Compone nte c ur ric ula r: L iN GU A POR TUGU ES A

5111Moderna

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Paraentender a origem da literatura africana de Ifngua portuguesa, de-

v e m o s lembrar que a escravidao na maior colonia de Portugal - 0 Brasil

-durou quase quatro seculos, marcando profundamente a formacao da

nossaociedade e cultura.

Osescravoseram capturados e comprados na Africa e, depois, trazidos

aosmercadosbrasileiros, onde eram vendidos. E na Africa, em cada local

ondesportugueses se estabeleceram e criaram colonias, nasceu uma 50-

ciedadeue foi obrigada a usar a lingua portuguesa como meio de comuni-

(a~aoficial. As Ifnguas nativas continuaram a ser usadas na cornunicacao

diaria.Masnas escolas que com 0 tempo foram sendo criadas 56 se usava 0

~ortugues,ue assim se transformou em Ifngua de cultura nessas regi6es.

"lOVO S 6 no fim do seculo XX, com as guerras de independencia, as ex-colo-

niasportuguesas conseguiram se libertar politicamente de Portugal, mas

.0 asmarcasulturais de tantos seculos permaneceram, e assim 0 portugues

~assouser a lingua oficial de varias dessas ex-colonias.

o chamado mundo Iusofono, isto e, a comunidade dos parses de lingua

~ortuguesa,formado por: Brasil, Portugal, Timor teste, Angola, Cabo Ver-

de,Guine-Bissau,Moc;:ambique e Sao Tome e Principe.

ascinco ultimos pafses sao africanos, ao passo que Timor Leste fica no

sudestesiatico.

A L lT ER AT UR A A FR IC AN A EM L IN G UA P O RT UG U ES A

ra tura africana

d e lingua portuguesa

iia, 1993.

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------~- - - -- - .

U m a literatu ra de resistenciaA marca principal da literatura africana de lingua portuguesa e sua pos-

tura de resistencia a dorninacao estrangeira, de reivindicacao dos direitos

humanos basicos, bem como a denuncia da exploracao de que ainda sao

vftimas as populacoes mais pobres.

Muita gente se engajou nessa resistencia - cantores, pintores, poetas,

escritores, intelectuais, jornalistas. E,como milhOes de africanos foram tra-

zidos na condicao de escravos ao Brasil ao longo de varies seculos, boa par-

te da populacao brasileira se reconhece nessa resistencia. pois, afinal, sao

descendentes dessas pessoas, como virnos, por exemplo, na poesia "Sou

negro", do pernambucano Solano Trindade (1908-1974).

E hoje, gracas as facil idades de comunicacao, os contatos entre 0 Brasil

e esses pafses africanos de Ifngua portuguesa sao cada vez mais constan-

tes. Escritores e artistas de ambas as partes estao presentes em espetaculos,

congressos literarios etc. Livros de escritores africanos cornecarn a ser cada

vez mais editados aqui no Brasil. Enfim, embora 0 processo de integracao

cultural seja lento, ele e constante e deve continuar, porque nos enriquece a

todos. Por isso, e importante fecharmos esta colecao com alguns exemplos

da literatura africana produzida em Ifngua portuguese, em prosa e verso.

Analisarernos, prirneiro, uma selecao de poemas compostos por autores

de cada pars lus6fono e, no fim do capitulo, dois exemplos da prosa africa-

na de lingua portuguesa: um conto do rnocarnbicano Mia Couto e outro do

angolano Pepetela.

Parte 1- Poesia

o arquipelago de CaboVerde e formadopor dez ilhas e oito i lbeus, sendo as mais

populosas as i lhas de Santiago (onde f ica a

capital, Praia), Sao Vicente e Santo Antao,

destacando-se tarnbern a turistica ilha do

Sal. A cidade mais populosa e Mindelo, queaparece na foto, na ilha de Sao Vicente.

Foto de 2007.

~ lITERA TURA

CA BO VE RD E

Revolta

Ao E va nd ro Ma to s

Revolta dentro do peito

Por aquilo que nao fiz

E que eu devia ter feito.

Revolta dentro de mim

Por tropecar em mim mesmo,

Por nao saber onde estou ...

Por caminhar tanto a esmo

Que trago os passos perdidosNos pr6prios passos que dou.

Revolta desde menino

Por tantas horas perdidas

A procurar 0Destino

Nas sombras doutros destinos.

Revolta crua e sem fim ...

Tantos pedacos de mim

Que destrocei sem saber! ...

Revolta, sempre revolta,

Por urn pedaco do ceu

Que nao me dao ... e era meu ...

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Revolta, funda revolta,

Dentes rangendo na sombra.

No fundo de urn corredor

Crescem gemidos de dor

Dos escravos meus av6s

Grilhetas prendendo os pes,

Prendendo tambern a voz ...

E 0sangue formou urn rio

E 0 rio correu para 0mar

E foi chorar, noite e dia,

Nas praias de todo 0mundo.

Revolta dentro de n6s,

Revolta arrastando os passos ...

Vozes mancharam-me a voz,

Braces prenderam os braces ...

Voo desfeito no berco ...

Revolta crua e sem fim,

Revolta triste e infeliz,

Por trazer esta revolta

Fechada dentro de mim,

Num verso que nunca fiz.

FONSECA, Aguinaldo. Revolta. In: FERREIRA, Manuel (Org.).

No r ei no d e C a li ba n: antologia panoramica da poesia africana de

expressao portuguesa. Cabo Verde e Cuine-Bissau. Lisboa:

Seara Nova, 1975. v: 1, p. 160.

t ::~~,~~~~.:.

lanfuna«

2:rno(l"o. de fina90an

(., ...tuqu~ d. ~'~:~.~:-».0'· '.u..)•• f ~

Antievasao

Ao c amara da p oe ia

lo lio Var io

Pedirei

Suplicarei

Chorarei

Nao yOU para Pasargada

Atirar-me-ei ao chao

e prenderei nas maos convulsas

ervas e pedras de sangue

Nao yOU para Pasargada

Gritarei

Berrarei

Matarei

Nao yOU para Pasargada

: - ' : ' : : : : : 3 :.--- . . . . . . - ~ ." . . . . ...--.-

tancada em 1936, a revista C/ar idade foi

um marco na literatura caboverdiana. Os

c /arid oso s - como ficaram conhecidos

os colaboradores da revista, entre eles

Aguinaldo Fonseca (1922·) e Ovidio

Martins (1928-), de cuja producao

temos exemplos aqui - propunham a

ernancipacao cultural de CaboVerde, com

o abandono dos model os portugueses

e a crlacao de uma estetica pr6pria, que

refletisse melhor a realidade fisica e

social do arquipelago.

Caminhada, 1962

MARTINS, Ovidio. Antievasao, In: FERREIRA, Manuel (Org.).

No r ein o d e C al ib an : antologia panoramica da poesia africana de

expressao portuguesa. Cabo Verde e Guine-Bissau. Lisboa:

Seara Nova, 1975. v. 1, p. 186.

A L lTERATURA AFR ICANA EM L INGUA PORTUGUESA ~

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I',

Reinaldo Ferreira nasceu

em Barcelona, Espanha, em

1922,mas passou a maior parte

da vida em Lourenco Marques

(atual Maputo), Mo~ambique,

onde morreu em 1959. Sobre

ele escreve 0 entice Manoel de

Souza e Silva:

[...] Nao ha lugar para ele

[Reinaldo Ferreira] na lite-

ratura mocambicana. Na

literatura portuguesa, ele

e 0 intruso, 0 espiao, 0 que

esta sempre desconforta-

velrnente. Qual e , afinal, 0

seu Iugar? [...] 0 que ha de

certo e que Reinaldo Ferrei-ra caiu em Lourenco Mar-

ques: ali viveu, escreveu

poemas e morreu. E certo,tambem, que algumas pes-

soas enxergam em seus po-

emas a genialidade; outras,

a alienacao diante da mise-

ria da vida na colonia. To-

dos tern razao. [...]

SILVA, Manoel de Souza e.

Do alheio ao proprio: a poesia

em Mocambique. Sao Paulo:

Edusp: Coiania: Ed. da UFG,

1996. p. 107. (Fragmento).

I II

Durante 28 anos, Angola foi devastada

por uma sangrenta guerra civil , que 56

terminou em 2002. Devido a extracaode petr6leo, nos ultirnos anos 0 pais

vem experimentando um crescimento

explosivo do PIB,a uma media de 15%

ao ano. Nafoto (2009), vemos Luanda,

capital do pais.

LlTERATURA

FERREIRA, Reinaldo. In: SILVA, Manoel de Souza e. Do alhe io ao pr6pr io:

a poesia em Mocambique. Sao Paulo: Editora da Universidade de

Sao Paulo; Coiania: Editora da UFG, 1996. p. 108.

MOCAMBIQUE

Receita de heroi

Tome-se urn homem,

Feito de nada, como n6s,

E em tamanho natural.Embeba-se-lhe a carne,

Lentamente,

Duma certeza aguda, irracional,

Intensa como 06dio ou como a fome ..

Depois, perto do fim,

Agite-se urn pendao,

E toque-se urn clarim.

Serve-se morto.

ANGOLA

Rumo

E tempo, companheiro!

Caminhemos ...

Longe, a Terra chama por n6s,

e ninguem resiste a vozDa Terra ...

Nela,

o mesmo sol ardente nos queimou,

a mesma lua triste nos acariciou,

e se tu es negro e eu sou branco,

a mesma Terra nos gerou!

Vamos, companheiro ...

E tempo!

Que 0meu coracao

se abra a magoa das tuas magoas

e ao prazer dos teus prazeres

IrmaoQue as minhas maos brancas se estendam

Maputo, fevereiro

de 2001. A beira

do oceano indico,

Mo~ambique tem

quase 20 milh6es

de habitantes

(2005), dos quais

1,2rnilhao vivem

em Maputo, a

capital.

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para estreitar com amor

as tuas longas maos negras ...

E omeu suor

se junte ao teu suor,

quando rasgarmos os trilhos

de urn mundo melhor!

Vamos!

que outro oceano nos inflama ...

Ouves?

E a Terra que nos chama ...E tempo, companheiro!

Caminhemos ...

LARA, AIda. Rurno. In: NEVES, [oao Alves das (Org.), Poet as e c o ni is ia s

a jr ic an os d e e xp re ss do p or iu gu es a. Sao Paulo: Brasiliense, 1963. P : 51.

S AO T OM E E PRi NC IP E

Descoberta

Ap6s 0 ardor da reconquista

nao cairam manas sobre os nossos campos.

E na dura travessia do deserto

Aprendemos que a terra prometida

era aqui.

Ainda aqui e sempre aqui.

Duas ilhas ind6mitas a desbravar.

o padrao a ser erguido

pela nudez insepulta dos nossos punhos.

LIMA, Conceicao. Descoberta. Disponivel em:

<www ..revista.aguIha.nom.br/conclima.htrnl>.

Acesso em: 9 abr. 2010.

Ilha DUa

Coqueiros e palmares da Terra Natal

Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos seculos

Vegetacao densa no horizonte imenso dos nossos sonhos.

Verdura, oceano, calor tropical

Gritando a sede imensa do salgado mar

No deserto paradoxal das praias humanas

Sedentas de espa<;oe devida

Nos cantos amargos do ossobo

Anunciando 0 cair das chuvas

Varrendo de rijo a terra calcinada

Saturada do calor ardente

Mas faminta da irradiacao humana

llhas paradoxais do SuI do Sara

Os desertos humanos clamam

Na floresta virgem

Dos teus destinos sem planuras ...

ESpfRITO SANTO, AIda do. Disponivel ern:

<http://www.revista.agulha.nom.br// santo.htrnl».

Acesso em: 9 abr. 2010.

Repr es en ta nte da nova ger a-

~ao dos auto re s a fr ic anos lu s6 -

f onos, Conce lcao L ima nasceu

na ilha de Sao Tom e em 1961.

E stu do u jo rn alism o em P ortu -

g al e , de vo lta a s eu p ais, a tu ou

em d ive rsos orgaos de impr en -

sa. E m 1993 fu nd ou e d irig iu 0

ja e xtin to s ern an ario in de pe n-

dente 0 Pais Hoje. Atualmente

mora em L on dre s, o nde tra ba -

I ha c omo jo rn ali sta e p ro du to ra

dos services de L ingua P ortu-

guesa da BBe. Suas principalso bra s s ao 0 utero da casa, de

2004, e A dolorosa raiz do Mi-

cond6, de 2006.

A ida do E spiri to Santo nas-

ceu em Sao Tom e em 1926 e la

m orreu em 2010. Fo i mi l itante

ativa do m ovim ento de em an-

cipacao, tendo sido inclusive

p re sa pe la p olicia p olitica p er-

t uguesa . Ap6s a independencla,

o cu po u v arie s c arg os p ub lic osn o p ais, e ntre ele s 0 d e m in is -

tra d a E d uc ac ao e Cultu ra .

A L lTERATURA AFRICANA EM liNGUA PORTUGUESA ~

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Bissau, marco de 2009. Os habitantes

de Guine-Bissau (1,5 rnllhao, em 2006)

tern pouco acesso a recursos basicos, A

energia eletnca e escassa ate mesmo

na capital, Bissau. A parte disso,

Guine-Bissau exibe uma cultura rica e

extrema mente diversificada, oriunda das

mais de 15etnias que abriga.

r

GUINE-BISSAU

Helder Proenca nasceu em

1956 e participou da guerri-

Iha pela independencla de Gui-

ne-Bissau, vindo mais tarde, ja

com 0 pais l iberto, a exercer 0

cargo de ministro da Defesa.

Em2009 foi vitima da violencia

politica na regiao: foi assassi-

nado em uma estrada, na mes-

ma noite em que Baciro Dab6,

entao candidato a presidencia,

era morto em sua casa. Ambos

eram acusados de uma tenta-tiva de golpe de Estado. A prin-

cipal obra deixada por Prcenca

foi Noo posso adiar a palavra,

de 1982.

Antologia poetica

Quando te propus

um amanhecer diferente

a terra ainda fervia em lavas

e os homens ainda eram bestas ferozes

~ L lTERATURA

Quando te propus

a conquista do futuro

vazias eram as maos

negras como breu 0silencio da resposta

Quando te propuso acurnular de forcas

o sangue nomada e igual

coagula va em todos os carceres

em toda a terra

e em todos os homens

Quando te propus

urn arnanhecer diferente, arnor

a eternidade voraz das nossas dores

era igual a "Deus Pai todo poderoso criador dos ceus e da terra"

Quando te propus

olhos secos, pes na terra, e conviccao firme

surdos eram os ceus e a terra

receptivos as balas e punhais

as amaldicoavam cada existencia nossa

Quando te propus

abracar a historia, amor

tantas foram as esperancas comidas

insondavel a fe forjada

no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus

no circuito de Iagrimas e fogo, Povo meu

o hastear eterno do nosso sangue

para um arnanhecer diferente!

PROEN<;:A, Helder. Disponivel em:

<http.Z/Iusofonia.com.sapo.pt !uine.htm#antologia>. Acesso em: 9 abr. 2010.

1 O s poem as apresentados foram escritos por autores que viveram os

diffceis anos de luta pela independencia polftica de seus pafses, en-

frentando, m uitas vezes, sangrentas guerras civ is.

• Q ue caracterfsticas desses textos nos revelam essa ligacao entre

litera tu ra e c on tex te h ist6 ric o?

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2 Com que tex to da literatura brasileira 0 poem a "A ntievasao" trava

uma especie de d ialogo? E xplique como se da esse d ia logo.

3 Com relacao ao poema "R eceita para fazer urn her6 i", responda .

a) P or que 0 tex to tern esse tftu lo?

b) N o texto , que "ingred ientes" devem ser usados para criar urn

"her6i"?

c) Que concepcao de "her6 i" nasce dessa receita?

d) P ode-se d izer que ha ironia nesse poem a?

P arte 2 - P rosa

TEXTO 1

Enterro televisivo

"U ns olham p ara a ie leoisdo. O utros olham p ela te leoisiio."

(Dito de Sicrano)

Estranharam quando, no funeral do avo Sicrano, a viuva Estre-

lua proclamou:

- Um a ie leoisdo!

- Um a te leoisiio a q ue , a v6 ?

- Quero que m e com prem um a te leoistio.

Aquilo, assim, de romp ante em plenas oracoes, Dela se espera-

va mais ajustado desejo, urn ensejo solene de tristeza, urn suspiroanunciador do fim. Mas nao, ela queria naquele mesmo dia receber

urn aparelho novo.

- Mas a ap are lh o qu e vo ce s tin ha m ava rio u?

- Ndo. J I i ndo e x is te .

- C om o e i ss o, e niii o? Foi r ou b ado?

- N iio, foi enterrado.

- E nte rra do ?

- Sim , foi junto com a c orp o d o vo ss a fa le cid o p ai.

Tudo havia sido congeminado junto com 0 coveiro. A televisao,

desmontada nas suas quantas pe~as, tinha sido embalada no cai-

xao. Era urn requisito de quem ficava, selando a vontade de quemestava indo.

Na cerim6nia, todos se entreolharam. 0 pedido era estranho,

mas ninguem podia negar. 0 tio Ricardote ainda teve a lucidez de

inquirir:

- E a antena?

Esperassem, fez ela com a mao. Tudo estava arquitectado. 0 co-

veiro estava instruido para, ap6s a cerim6nia, colo car a antena so-

bre a lapide, amarrada na ponta da cruz, em espreitacao dos ceus.

Aquela mesma antena, feita de tamp as de panela, ampliaria as

electr6nicas nos sentidos do falecido. 0 velho Sicrano, la em baixo,

captaria os canais. E urn simples risco a diferenca entre a alma e a

onda rnagnetica. Por razao disso, a viuva Estrelua pediu que nao

cavassem fundo, deixassem 0defunto a superficie.

- Para apanhar bem a sinal - explicou a velha.

A lITERATURAAFR ICANA EM L INGUA PORTUGUESA ~

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Filho de portugueses, Mia

Couto nasceu na cidade de Bei-

ra, em Mo~ambique, em 1955.

Iniciou sua carreira literaria nos

anos 1970 e desde entao tran-

sitou por quase todos os gene-

ros - poemas, crcnicas, con-

tos e romances, dos quais se

destaca Terra sonambufa, de

1992. A parte disso, nunca del-

xou de exercer a profissao de

biologo, Nesta foto de 2008, 0

escri tor em entrevista real iza-

da na capital paulista durante

sua visi ta ao Brasi l.

Campa: tumulo, sepultura.

"(}=1- L l T E R A T U R A

o Padre Luciano se esforcou por disciplinar a rnultidao, ele querepresentava a ordem de uma s6voz divina. Com uns tantos berros

e ameacas ele reconduziu a multidao ao silencio. Mas foi 0sossego

de pouca dura. Logo, Estrelua espreitou em volta, e foi inquirindo

os condoidos presentes:

- E 0B ib ito , on de e stri?- 0 B ib ito? - se interrogaram os familiares.

Ninguem conhecia. Foi 0bisneto que esclareceu: Bibito era 0per-

sonagem da novela brasileira. A das seis, acrescentou ele, feliz por

lustrar conhecimento.

- E a Carmenzita que todas as noites nos visita e agom ruio comparece!

De novo, 0bisneto fez luz: rnais uma figura de uma telenovela.

56 que mexicana. 0 filho mais velho tentou apaziguar as visoes da

av6. Mas qual Bibito, qual Carmen?! Entao os filhos de osso e alma

estavam ali, lagrima empenhada, e ela s6 queria saber de persona-

gem noveleira? .

- Sim , mas esses ao m enos nos visitam . Porque a voces nunca m aieos oimos.

Esses que os demais teimavam em chamar de persona gens, eram

esses que adormeciam 0 casal de velhotes, noite ap6s noite. Verda-

de seja escrita que a tarefa se tornava cada vez mais facil. Bastava

urn repassar de cores e sonos para que as pestanas ganhassem peso.

Ate que era s6ligar e ja adormeciam.

- Quem uai Ligar 0 a pa re lh o h oje ?

- E m elhor ndo ser voce, m arido, pOl'que nouiro dia adorm eceu de pc.

De novo, 0 padre invocou a urgencia de urn silencio. Que ali

havia tanto filho e mais tanto neto e ninguem conseguia apazi-

guar a viuva? Os filhos descansaram 0 padre. Que sim, que iamconduzi-la dali para 0 resguardo da casa. Estrelua bern merecia 0

reparo de uma solidao. E prometeram a velha que nao precisavade urn outro aparelho, que eles iriam passar a visita-la, nunc a

mais a deixariam s6. A av6 sorriu, triste. E assim a conduziram

para casa.

Aquela noite, ainda viram a av6 Estrelua atravessar 0 escuro da

noite para se sentar sobre a campa de Sicrano. Deu urn jeito na an-

tena como que a orienta-l a rumo a Iua. Depois passon 0dedo pelos

olhos a roubar uma Iagrima. Passou essa aguinha pela tampa da

panela como se repuxasse brilho. De si para si murmurou: e para

c ap ta r m e lh or . Ninguern a escutou, porem, quando se inclinou sobrea terra e disse baixinho:

- Hoje e voce a ligar, Sicrano. V oce ligue que eu jli vou adorm ecendo.

COUTO, Mia. 0 f io das ini ssangas. Sao Paulo:

Cornpanhia das Letras, 2009. p. 121-123.

1 Embora se passe em Mocarnbique, esse conto pode ser visto como a

representacao de um problem a que afeta pessoas de qualquer parte

do m undo hoje. E xplique essa afirrnacao.

2 Que relacao podem os estabelecer entre 0 conto e a epfgrafe?

3 Que diferencas podem os destacar entre esse texto de M ia Couto e os

dem ais textos apresentados neste capitulo?

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TEXTO 2

A revelacao

omoleque parou de mastigar. Ficou suspenso, a boca cheia de

ginguba surripiada na panela que estalava sobre a fogueira. A voz

da mae repetiu 0 chamamento!

- Candimba, vem aqui.

omiudo levantou-se, engolindo rapidamente a massa de gingu-

ba e saliva. Aproximou-se em passo lento, maos nos bolsos dos cal-

coes, cabeca baixa. Mamae me viu roubar na panela e vai castigar?

o semblante da mulher aquietou-se. Nao tinha os olhos que fazia

quando descobria uma falta. Era entao para urn recado. 56 podia

ser isso. E ele preferia estar descansado a sombra da mandioqueira,

vigiando a mae: a espera de uma oportunidade para encher os bol-

sos com a ginguba.

- Candimba, vai na venda do 56 Ferreira. Compra sal ate encheristo mesmo.

E a mae entregou-Ihe uma caneca pequena, de mistura com al-

gumas moedas que tirou da dobra do pano. 0 miudo recebeu as

moedas, enfiou-as nos boIs os dos calcoes. Com a caneca na mao,

perguntou, aborrecido!

- Sal ' cabou, mama?

- Se te mando! Mania s6 de fazer perguntas! Vai depressa, hein?

E volta logo. Nao te quero ver com esses vadio da rua que nao tra-

baia nada. Se t'apanho a jogar a bola chapo-te mal. Toma conta!

- Posso tirar um bocadinho? 56 pra provar ...

Eo menino olhava gulosamente para a ginguba descascada, re-pousando num tabuleiro de folha. Em seguida, a mae deitaria os ba-

gos na panela de acucar em calda, mexendo com a colher. Depois de

deixar secar, dividiria em pacotinhos de papel de sed a que 0miudo

venderia na cidade. Cine' ost6es cada um, gritaria Miudo Candimba

pelas ruas. Quando ja esta distribuida pelos pacotes nao ha possibi-

lidade de petiscar. Ta tudo bem contado, mamae confere 0 dinheiro.

Topa logo se falta. Agora era a ultima ocasiao de poder saborear a

ginguba. Por isso os olhos luziram quando entendeu a resposta:

- Bom. Tira uma maozada. Mas anda depressa, tas ouvir?

Candimba encheu os bolsos precipitadamente, saiu a correr. Pas-

sou uma tangente na cerca de Dona Joana - essa gorda que s6 fala

mal dos outros - meteu pel a rua esburacada, insensivel aos cha-

mamentos dos companheiros. Parou a £rente da Ioja, Queria despa-

char-se rapidamente, ansiando meter 0dente naquela ginguba toda

que 0 esperava no tabuleiro. S'inda tenho tempo ...

A entrada, ouviu a voz irada de 56 Ferreira. Discutia com a Ma-

riana, rapariga que casou no ana passado com 0Chico da serracao,

Eue, manda zanga, pensou 0 miudo. Meteu a cabeca na porta, os

olhos muito grandes e redondos, espiando. 0 branco do balcao nao

reparou nele. Estava vermelho gesticulava, tudo acompanhado de

muitos berros. Miudo Candimba achou que ele nao era como as

outras pessoas, nele a voz e que acompanhava os gestos. Mariana

chorava, de costas para a porta, tapando a boca corn 0antebraco. 0molegue ouvia-a suplicar!

- 56 Ferreira! Meu marido vai saber. Filho sai mula to, Chico ve

logo nao e dele. Ele me mata, 56 Ferreira ...

A L I T E R A T U R A A F R I C A N A E M L I N G U A P O R T U G U E S A ~

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I I

I I

Escultura em madeira da cultura

Chokwe, Angola, seculo XIX.

Autoria desconhecida.

'(}J::- L l TERATURA

- Quero la saber! Que culpa tenho eu? Agora avia-te ... Ora bo-

las! Que provas tens que 0 filho e meu? Ainda nem nasceu! Como

e que podes saber?

__:.Sei, sim, juro com Deus. Senti mesmo!

Miudo Candimba esqueceu a ginguba na boca aberta, os assusta-

dos olhos tudo prescutando. Nao percebia bern a conversa. Embora

ja falasse aos companheiros ace rca dessas coisas proibidas, ainda

era muito pequeno para compreender imediatamente. Mas sentia

algo de terrivel nas palavras trocadas.

- Ouve la! Julgas que me levas assim? Como podes ter sentido?

Como se eu fosse parvo! ... 0 filho e do teu marido, dormiste com

ele muito mais vezes do que comigo.

- Mas eu seil Eu sei. [uro que vai sair mulato.

- E depois? E se fui eu que 0 fiz? Es casada com 0 teu homem,

nao tenho nada com isso.

o moleque ja percebera tudo. Fez-se mais pequenino, encostado

a porta. A mao apertava nervosamente a caneca de lata. Viu Ma-riana erguer decididamente a cabeca, passar os dedos pel a barriga

inchada, falar com raiva:

- So Ferreira prometeu. Te dou vestidos, vais mesmo na cidade,

vais p'ra minha casa. Te tiro da sanzala, te dou comida boa.Je dou

pulseiras e brincos. So Ferreira prometeu, jurou mesmo. Teu filho

vai mesmo ser meu no papel, lhe dou educacao. Nao vai ser meni-

no de sanzala, nao, Agora ja lhe dei tudo que que ria, ja se deitou

comigo, m' abandona. Nao quer saber mais de miml

- Entao? Prometi? Alguem ouviu? S6 tu mesmo.

Vai dizer no teu marido, ve Ia se ele acredita. Digo-lhe que e men-

tira, que foste tu que me pediste, que voces todas querem e dormircom os brancos. Vai na polfcia, se eles acreditam em ti ou em mim.

Mariana abateu-se novamente sobre 0 balcao. Os solucos volta-

ram a sacudir-lhe 0 corpo. Miudo Candimba, perturbado, chegou-

-se mais para dentro da loja. Embora a sua vontade fosse fugir como

urn bambi.

- Vou dizer no meu marido, sim, YOU mesmo. Me mata, mas

depois lhe vern matar a voce ... Nao e homem p'ra se ficar!

o comerciante riu, escarninho. Desfiriu uma palmada no balcao

para indicar que ja se fartava da discussao. Falou com voz rancorosa:

- Que venha! Tenho uma espingarda a espera dele. Dou-lhe tan-

tos tiros que fica como urn Cristo!Miudo Candimba sentiu urn arrepio percorrer-lhe a espinha ao

ouvir a ameaca. E voltou-se assustado quando, repentinamente,

uma mao lhe pousou no ombro. Acalmou-se ao contemplar 0 sorri-

so bondoso de Dona Marcelina.

- Que tas fazer aqui na porta? Me deixa entrar ...

o moleque sentiu os olhos do comerciante fixos nele. E Mariana

disfarcando 0 choro. Empurrou a velha Marcelina para 0 lado, e

desatou a fugir. Percorreu a rua, passou uma tangente na cerca de

Dona Joana, entrou no quintal da sua casa. Af susteve a corrida.

Respirando dificilmente, escondeu-se entre as moitas que abriga-

yam a capoeira. Olhou por entre os ramos e viu a mae acocoradasobre 0 tabuleiro, descascando a ginguba. 0 ar aborrecido indicava

que estranhava a demora do filho.

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Mas 0menino nao se preocupa com isso. Pensa, sim, no sem-

blante derrotado e os berros, misturam-se no seu cerebro, deixam-

-lhe uma sensacao de angustia revoltada. Nota repentinamenteo

coelho branquinho a sua frente. Olhos vermelhos como os do-So

Ferreira. Branco como ele, Coelho! Me puseram0

teu nome. Pru-que? Porque fazia assim como tu quando era pequeno, mexia 0

nariz, depressa, assim, assim, depress a, muito depressa, como tu

faz. Me chamaram Candimba. Af ficou meu nome. Mas nao sou

igual na ti, nao tenho os olho vermelho, nao tenho 0 pelo branco.

Estendeu a mao para 0animal. Este pulou para tras e ficou espian-

do, assustado, esperando 0pr6ximo gesto. 0 miiido nao se mexeu.

Via a Mariana chorando, suplicando e chorando, a barriga incha-

da, as maos a tremer. E 0 comerciante rindo 0 seu riso de gengivas

desdentadas, vermelhas como os olhos do coelho. Jogou com raiva

o punho fechado. Mas falhou 0golpe e 0 animal escapuliu-se para

perto das galinhas.o despeito fez as Iagrimas correrem, vagarosas na face escura

do moleque. E 0 coelho observando-o. Miudo Candimba de re-

pente, julgou-o penalizado com sua dor. Comoveu-se. Era apenas

urn pobre animal sem culpas, que 0 estimava, afinal. 0 coelho

nao fugiu a caricia da mao infantil. Deixou-se afagar e os olhos

vermelhos adocaram-se. Miudo Candimba estendeu-se no chao

de terra batida, insensfvel a umidade transpirada pelo solo. Ficou

assim, perdida a nocao do tempo, a vista fixa na bola branca que

se mexia. Arrependeu-se, em breve, do murro que the enviara.

Pensou' em pedir-lhe des culpas, justificar a acao com 0 estado de

espirito provocado pela cena da loja. Decidiu-se, porem, a nao 0

fazer. Coelho nao percebe palavras, percebe os gestos e as caricias,

e como as criancas.

Ouviu a mae chama-lo em alta grita, inquirir por ele as vizinhas,

sair de casa. Foi talvez a venda procura-lo. Mas nao voltou. Miudo

Candimba nao se deu ao trabalho de responder, de se mostrar. Que-

ria estar s6, contemplando 0novo amigo, aquele animalzinho bran-

co que parecia tao meigo. Queria fugir as gentes com seus dramas

e rancores, fechar-se na concha dos seus sonhos infantis. E sentia 0

intimo cheio de paz e ternura, esquecido ja da revolta que ha pouco

experimentara.

Miudo Candimba voltou a ter consciencia do Mundo ao escutargrande gritaria ali perto. Levantou-se com uma ultima carfcia ao

animal, afastou as moitas, e deitou uma olhada para 0 sitio onde

a mae preparava a ginguba. Deserto. Os gritos vinham da esquer-

da. 0 moleque atravessou a cerca entrou na rua e na luz do Sol.

Dirigiu-se a cas a para que concorriam as mulheres e as criancas. A

casa de Mariana. La chegando, percebeu imediatamente 0 que se

passara! Mariana morrera.

- Se matou. Uma facada mesmo no coracao!

- Aiue, se matou.

- Pruque? .. Pruque?

Miudo Candimba sentiu urn frio invadi-lo. Depois urn calor,quente, quente, era uma fogueira que nele se instalara. Novamente

o frio. Comecon a tremer. Deu uma espiada para 0 sftio da loja, viu

A L lTERATURA AFRICANA EM liNG UA PORTUGUESA ~

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I II

~ L lT ER A T U R A

S6Ferreira a porta, mirando, indiferente. Sematou! Pruque? Eu sei,eu sei, foi por causa daquilo qu' eu vi na venda.

o menino abriu a boca, ia gritar a razao do suicfdio, Mas nin-

guem reparou no gesto, as mulheres e as criancas empurravam-se

para observar 0 corpo banhado em sangue. Ouviu a voz da mae

lamentando a tragedia, sentiu uma vontade doida de se atirar nosseus braces e contar-lhe tudo. Mas havia uma multidao separando-

-0 do colo materno, nao encontrou coragem de a romper. Gritou 0

mais alto que podia!

- Eu sei pruque ela se matou' Eu sei, juro com Deus que sei

mesrno.

As mulheres nem voltaram os pesco<;osesticados. Nao fecharam

as bocas abertas de pasmo e tristeza. Os miudos continuaram a ten-

tar furar a rnultidao, nao ligaram ao aviso do companheiro. Miudo

Candimba apertou 0brace de Terezinha, falou gravemente:

Eu sei pruque foi...

Ela olhou-o, porem, sem interesse. Imediatamente redobrou osgritos larnentosos'

- Deixa ver, deixa ver...

Miudo Candimba, sentiu-se miseravelmente esquecido.

Era 0unico que sabia, alem de S6Ferreira, e ninguem 0escutava,

lhe prestava atencao. Saiu da multidao, afastando as criancas com

os braces magrinhos, os labios apertados para nao chorar.

- Com'e qu'ela'st? De boca aberta?

Nao se dignou responder a pergunta de Juca que se afadigava

por ver alguma coisa. Poderia ser urn born ouvinte, mas Miudo

Candimba ja nao se irnportava de revelar a verdade. Olhou 0vul-

to de S6Ferreira, parado a porta da loja. Adivinhou 0riso escarni-nho na boca do comerciante. Se nao era tao grande ... Sim, se nao

fosse tao grande e tao forte, era ele, Miudo Candirnba, que the fa-

ria morrer 0 riso de escarnio na boca. Mas viu-se pequeno e fraco,

uma crianca em que ninguem sequer acreditava, a que ninguern

sequer prestava atencao, Viu-se miseravel e inutil, urn bichinho

pequeno que para nada serve. Urn boneco talvez, um boneco sem

valor nem pre<;o.

Virou as costas aos curios os observadores do espetaculo morbi-

do, foi caminhando para casa. Devagarinho, a£ogando 0despeito

e a revolta nas pedras da rua. Atravessou a cerca, aproximou-

-se do tabuleiro de ginguba. Hoje nao iria vender a guloseima.Nunca mais grit aria pela cidade: cinc'ostoes cada pacote. Mes-

mo que morressem de fome. Nem que a mae xingasse, nem que

a mae lhe chapasse. Mexeu os bagos com a mao distraida, nao

se tentou tirar nenhum. Viu as moitas que limitavam a capoei-

ra, encaminhou-se para elas. Afastou os ramos com lentidao. 0

coelho branco fitou-o com seus olhos vermelhos. Iguais aos de

S6 Ferreira. 0 animal deixou-o aproximar-se, urn pouco receoso.

Mas nao fugiu. Talvez esperasse mais uma caricia, lembrando da

anterior cena de ternura.

Miudo Candimba sentiu-se enganado. Uma vergonha vinha

desde os olhos vermelhos, desde 0 pelo branco, incrustava-se noseu cerebra de menino. M' enganaste, coelho. Mariana matou-se,

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A L1T ER AT UR A A FR IC AN A E M LIN GU A P OR TU GU ES A ~

espetou a faca mesmo no coracao. Morreu num mar de sangue.

As lagrimas cafarn dos olhos do moleque. Me deram teu nome,

Candimba mesmo, mas nao sou igual na ti. Nao tenho os olho ver-

melho, pelo branco. Nao sou como tu. Pensei a gente ia ser amigo,

te fiz festa. Mariana se matou! Meteu a mao no bolso dos calcoes,tirou 0 canivete. Abriu-o e a lamina luziu. Agarrou no pesco<;odo

animal com 0 brace esquerdo. 0 coelho nao tentou escapulir-se.

Entao lentamente, refletidamente, Miudo Candimba enterrou-lhe

a lamina no peito.

Ficou venda 0 pequeno corpo estremecer, 0 sangue esvaindo-

-se, manchando de vermelho 0 pelo branquinho. A mancha alas-

trando, alastrando, correndo para as patas, para 0 chao de terra

batida. Depois urn estremecao mais violento. E os olhos ficaram

rigidos, enor~emente abertos, fitando-o firmemente. Miudo

Candimba nao encontrou uma acusacao naquele eterno olhar.

Pousou delicadamente 0 corpo no solo. Ajoelhou-se, uniu asmaos vermelhas de sangue, uma delas ainda segurando 0 cani-

vete aberto, e rezou:

- Nosso Senhor, faz que eu acertei bem no coracao.

PEPETELA (pseudonimo de Artur Pestana). In: NEVES, Joao Alves das (Org.).

Poe ta s e c on ii si as a ir ic anos d e e xpr es si io po rt ugu esa. Sao Paulo:

Brasiliense, 1963. p. 172-179.

1 E sse con to fo i e sc rito em 1962 (13 anos, porta n to , an te s da ind epen -

denc ia do pa is), e poca em que , segundo 0 au to r, in ic iou-se a [u ta

pe la libe rtac ao d e A ngola , quando os m otivo s ra c ia is sob repunham -

-se ao s po litico s .• P od em os obse rva r, no tex to , ind ic io s d essa te nsao rac ia l d e que

fala 0 au to r?

2 Q ue sig n ific a do tem no tex to 0 m odo com o 0 m en ino tra ta 0 coe lho?

, a ' W I · i J · 'i l{ · J : 1 4 '# : 1 4 ~ 'i 3 ; aH is t6 ria e L it er atu ra : escr ito res

a fr icanos de lingua po rtuguesa

P ropom os um a a tiv idade que envo lv e a s a re as d e H ist6 ria e L ite ra tu ra .S uge rim os que se ja fe ita um a pesqu isa sobre a h ist6 ria e a lite ra tu ra d e

cada pa is a fric a no e stud ado neste cap itu lo , am pliando a s in fo rrna coe s ja

v ista s. P orta n to , a tu rm a se ra d iv id ida em c inco grupos e c ada g rupo fic a ra

re sponsav e l po r um deste s pa ise s: A ngola , C abo Ve rde , G uine -B issau , M o -

cam bique e S ao T om e e P rinc ipe .

A a tiv id ad e consiste em elabora r um a an to log ia em ve rso e prosa d e e s-

c rito re s de c ad a pa is, p re c ed ida de um re sum o da h ist6 ria do luga r, d esd e

a epoca co lon ia l a te o s d ia s d e ho je .

D epois d a e labora cao d a an to log ia , o s g rupos d ev em fa ze r um a apre sen -

ta c ao ora l de seu trab a lho , e sco lhendo a lg uns tex tos pa ra le itu ra em voz

a lta . P ara fin aliza r, se ria in te re ssa nte en riq uec er 0 tra ba lho com a apre sen-ta cao d e ou tros aspec tos d a cu ltu ra do pa is, com o m usic a , a rte s v isua is,

a rtesa na to e tc .

Nascido em 1941, em Ben-

guela, Angola, Artur Carlos

Mauricio Pestana dos Santos,

codinominado Pepetela, e um

dos mais festejados autores

africanos lus6fonos. Em 1997

ganhou pelo conjunto da obra

o Premio Carnoes. concedidopelos governos de Brasil e Por-

tugal. A vasta obra de Pepete-

la inclui c ron icas, pecas teatrais

e romances, entre os quais se

destacam Mayombe (1980),0

I coo e os co/us (1985), 0 desejo

d e K ia nd a (1995) e Predadores

(2005). Foto de 1999.

[Percebia: entendia. JCapoeira: mato.

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'" Vale a pena ler

Poesia africana de lingua

portuguesa.

Maria A. Daskalos, Livia Apa,

Arlindo Barbeitos. Rio de Janeiro:

lacerda Editores, 2003.

B oa antologia para voce ter um a visao ge·

ra l d os p oe ta s a fric an os lu sO fo no s.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~ "'" Vale a pena assis tir

o.<t;

o-:: >ooII:(L

wII:

Amistad.

Direcao de Steven Spielberg.

Estados Unidos, 1997. Drama.

M agnffica reronstitu icao de um episodicreal: urn grupo de escravos africanos se

rebela em pleno m ar e tom a 0 c on tro le d o

navio negreiro que os conduzia; depois,

porem , sao aprisionados por outro navio

e levados a julgam ento nos E stados U ni-

dos, onde sao acusados de assassinato e

motim . Mas a dedicacao de um grupo de

a bo lic ion ista s p od e muda r 0 d es tin o d es -

ses escravos.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~ "'" Vale a pena acessar

http://mundoafro.atarde.com.br/

Atenc;:lio: milhares de sites sao cria-

dos ou desat ivados diariarnente. Por

esse motivo , alguns dos encerecos

tndicados podem nao estar mais dis-

ponlveis por ocasiao do acesso,

No blog M undo A fro, m antido por C leid iana R am os, reporter especia l do

jornal A Tarde, d e Sa lv ad or, v oc e e nc on tra ra in fo rrn ac oe s s ob re c ultu ra ,

id en tid ad e e re lig io sid ade n eg ra s n o B ra sil.

http://www.vidaslusofonas.pt/index.htm

A vida e obra de varios escritores lusofonos - entre brasileiros, portu-

gueses e africanos - pod em ser consultadas nesse site.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~ "~ L lTERATURA