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    Escola .Superior deTeologia

    Rostos do. ProtestantismoLatino-AmericanoJos MiGUEL BONiN

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    Jos Mguez Bonino

    Rostos do protestantismolatino-americano

    ~ E 5 c o l a

    ..,/1Superior de

    ~ . . . Teologia

    2003

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    Traduzdo do original Rastros deI protestantismo lattnoemertceno.publicado pela editora Nueva Creacin, Buenos Aires. flal deWilliamB. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Mchgan, EUA. 1995 ISEDET.Direitos em lngua portuguesa reservados Editora Sinodal 2003Rua Amadeo Rossi. 46793030-220 So Leopoldo - RS'TeI.: (51) 590-2366Fax: (51) 590-2664E-mail: [email protected] page: www.editorasinodal.com.brCapa: Editora SinodalTraduco: Lus M. SanderReviso: Letcia SchachCoordenao editorial: Lus M. SanderSrie: 'Teologia na Amrica LatinaPublicado sob a coordenao do Fundo de Publicaes 'Ieolgicas/Instituto Ecumnico de Ps-Graduao em Thologia (IEPG)da Escola Superior de Thologia (EST) da Igreja Evanglica deConfisso Luterana no Brasil (IECLB).

    CIP - Brasil Catalogao na PublicaoBibliotecria responsvel: Cristina ' Iroller CRB 10/1430

    B715r BONINO. Jos MguezRostos do Protestantismo Latino-Americano / Jos Mguez Bonina; Traduo Lus Marcos Sander - So Leopoldo. RS: Snodal , 2002.156 p.ISBN 85-233-0694-31.Luteranismo 2. Protestantismo 3. Amrica Latina I. Ttulo.

    CDU - 2 8 4CDD-284

    ndice para catlogo sistemtico1. Luteranismo - Amrica Latina 2842. Protestantismo - Amrica Latina 284

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    ndicePrefcio................................................................................ 5Captulo 1O rosto liberal do protestantismo latino-americano..... .. .. .. . 91. Existe essa relao e que importncia tem? 102. Que projeto liberal? 133. Renunciar herana liberal? 22Captulo 2O rosto evanglico do protestantismo latino-americano..... 311. Um protestantismo evanglico 312. Crescimento e diversificao 413. Sombras e luzes do "evanglico" 46Captulo 3O rosto pentecostal do protestantismo latno-amercano ... 531. O que representa o pentecostalismo dentro do

    protestantismo latino-americano?.............................. 552. A teologia do pentecostalismo 593. Uma teologia pentecostallatino-americana?.............. 62Captulo 4Um "rosto tnico" do protestantismo latino-americano? 751. Como aproximar-nos do tema? 762. Protestantismo de misso e protestantismo tnico..... 793. Nao, etnia e misso 91Captulo 5Em busca de coerncia teolgica: a trindade como critriohermenutico de uma teologia prostestante latino-americana 971. O futuro do protestantismo....... 972. O que significa a trindade como critriohermenutico? 1013. Rumo a uma crstologa trinitria.............................. 106Captulo 6Em busca da unidade: a misso como princpio materialde uma teologia protestante latino-americana.................. 1151. A ambigidade da defno missionria. 117

    2. Por que uma mssologa trinitria? 1223. Misso e evangelizao............................................... 126Notas 135

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    Prefcio

    O inesperado convite para apresentar as conferncias daCtedra Camahan em 1993 foi a tentao da qual nasceueste livro. No me pediram nem sugeriram um tema, mas sesupunha que tivesse algo a ver com "algum tema teolgico deseu interesse, no qual esteja trabalhando", como se costumadizer em cartas desse tipo. O tema que finalmente defini - soba presso de divulg-lo - de meu interesse. Para ser maisexato: quase uma obsesso. Porm no um tema no qualeu tenha trabalhado profunda e sistematicamente. Ademais,ele se move entre a histria da igreja, a histria da teologia, ateologia sistemtica e a interpretao social. Esta imprecisome liberta de aderir a uma metodologia estrita, mas me expefortemente improvisao e superficialidade. No obstante,a paixo venceu a sensatez e assim nasceram as confernciase o livro.At comear a embaraar-me no caminho, na busca dosfios do tema, na necessidade de envolver-me com temas e histrias que no conhecia, no me perguntei que esprito malfico me haveria tentado. No sou dado introspeco - talvez,por temor do que pudesse vir a encontrar -, mas cheguei concluso de que duas interrogaes so provavelmente asresponsveis pela escolha do tema. E ambas so vergonhosamente subjetivas. A primeira a necessidade, que na realidadenunca havia sentido explicitamente, de tomar clara para mimmesmo minha identidade confessional e doutrinal. E aqui tiveuma surpresa. J fui catalogado diversamente como conservador, revolucionrio, barthiano, liberal, catolizante, moderado,liberacionista. provvel que tudo isto esteja certo. No sou euquem tem de se pronunciar a respeito. Porm, se tento definirme em meu foro ntimo, o que "sai de dentro de mim" quesou evanglico. Nesse solo parecem haver-se afundado, ao largo de mais de 70 anos, as raizes de minha vida religiosa e deminha militncia eclesistica. Dessa fonte parecem haver brotado as alegrias e os conflitos, as satisfaes e as frustraesque se foram tecendo ao longo do tempo. A brotaram as ami-zades mais profundas e a se gestaram distanciamentos dolorosos; a descansam as memrias dos mortos queridos e a

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    6 Rostos do protestantismo latino-americanoesperana das geraes que vi nascer e crescer. Se verdadeiramente sou evanglico ou no, tampouco compete a mim dizlo. Nem me preocupa que outros o afirmem ou neguem. O quesou de verdade compete graa de Deus. Mas pelo menos isso o que eu sempre quis ser.Mas as coisas no so to simples e daqui parte a segunda interrogao. Que significa ser evanglico? E, ainda porcima, evanglico latino-americano? E ser evanglico latino-americano hoje?Nada disso to claro assim. Por um lado, haveriaque busc-lo em nossas histrias: de onde viemos? Algumasdessas histrias - por exemplo, as do protestantismo clssicoou as do catolicismo sobre cujo pano de fundo temos definidonossos perfis - estudei com certo cuidado. Outras - particularmente as trajetrias espirituais, teolgicas e sociais do mundo evanglico anglo-saxo - conheo s em traos muito gerais (e este trabalho me imps a feliz obrigao de aprenderalgo mais delas). Ainda outras - as de nossas igrejas e movimentos religiosos evanglicos latino-americanos - ainda noesto escritas, mas vo sendo perfiladas nos trabalhos de umasrie de jovens historiadores. E a teologia dos evanglicos latino-americanos? O territrio mais inexplorado ainda. H conferncias, livros, sermes, revistas nas quais os notveis destahistria escrevem. So uma rica pedreira, apenas aberta. Mascomo viviam teologicamente sua f os "simples crentes"? Ondeesto as histrias de vida, as expresses espontneas diante damorte ou do amor, ou mesmo da vida cotidiana? Como descobrir as "mentalidades"? Thdo isto est suficientemente fluidopara que algum se aventure a fazer conjecturas, propor hipteses ou imaginar cenrios sem a possibilidade (e, portanto,sem a responsabilidade) de sustent-las cientificamente. O queofereo no mais do que isto.

    Na Amrica Latina "protestante" e "evanglico" (ou "evangelista") tm sido sinnimos. H cerca de 40 anos, Adam F.Sosa questionava essa identificao e sustentava que nossasigrejas eram, na verdade, "evanglicas" e no, protestantes.Minha reao a essa tese foi negativa e procurei demonstrar afirme raiz protestante - "herdeiros da Reforma de Lutero eCalvino" - das igrejas evanglicas latino-americanas. Aindahoje sustento isso, porm preciso admitir que, no caso damaioria de nossas igrejas, a herana tem sido "re-monetarzada" em outras terras e com outros moldes e que a ignornciadesses processos de mediao foi um grave obstculo para queos evanglicos nos entendssemos a ns mesmos como protes-

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    Prefcio 7tantes. Este livro , em parte, uma tentativa de refletir sobreessa "transferncia".Neste ponto, precisamente, se inscreve minha maior frustrao durante essas conferncias. Decidi circunscrever o tema a "trs rostos" do protestantismo latino-americano - oliberal, o evangelical e o pentecostal-, excluindo conscientemente o que tem sido chamado de "protestantismo de imigrao" ou "igrejas de transplante" ou "igrejas tnicas". Minhasrazes, que eu acreditava serem suficientes, eram, em parte,que este tema requereria um enfoque e uma metodologia diferentes, mas principalmente que eu carecia - e ainda careo dos conhecimentos histricos e que no h suficiente trabalhode pesquisa do tema para que se possa falar com certa idoneidade sobre ele. lmpouco me ocorria que esta excluso fosseuma negao da importncia e significado dessas igrejas. Emuito menos, que no as considerasse uma autntica manifestao do protestantismo latino-americano. A reao francamente indignada de muitos pastores destas igrejas - queridoscompanheiros de estudo, amigos pessoais com os quais falamos com inteira franqueza, colegas no ministrio e na docnciacom os quais trabalhamos em toda sorte de tarefas comunstodos os dias - me demonstrou que eu no sabia o que haviafeito. Minha deciso, que eu acreditava ser simplesmente funcional e "econmca'', no podia ser entendida de outra maneira do que como uma tomada de posio. E, mais profundamente, demonstrava que, ainda que eu sentisse desde as maiores profundezas de meu corao e de minha experincia que"pertencemos juntos" como cristos e igrejas evanglicas, nosabia dar conta desse sentimento e dessa experincia em ter-mos histricos e teolgicos. Por isso, decidi incluir um novocaptulo, no porque haja encontrado uma resposta, e simporque no podemos nos conformar sem tent-lo: ser umcaptulo de interrogaes mtuas, algumas talvez irritantes, dequestes abertas, possivelmente de algumas propostas. Tudo,porm, presidido - ao menos de minha parte - pela convicode que Jesus Cristo nos constituiu j num sujeito de f singular e seu Esprito tomou isso visvel no caminho e nas tarefasque crescentemente temos feito e fazemos em comum.A imagem evocada pelo titulo que escolhi ambgua: so"rostos" distintos porque se trata de diferentes sujeitos? Ouso "mscaras" de um sujeito nico e, neste caso, qual orosto que se oculta atrs dessas mscaras? a busca de umaresposta que me levou a procurar uma chave hermenutica

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    8 Rostos do protestantismo latino-americanoque permita reconhecer a identidade nica, a diversidade reale a convivncia dessa identidade em cada uma das manifestaes desse sujeito que "o protestantismo latino-americano".Este o sentido da explorao teolgica dos dois ltimos captulos. A analogia trinitria no deve ser buscada, em todo caso,de forma direta ou atributiva - isso seria o pior erro -, masna unidade de inteno, de propsito, na comunho de amor.O que isto significa em termos das formas e expresses doutrinais, institucionais, missionrias, testemunhais, cultuais- dessa unicidade, uma tarefa que os evanglicos latinoamericanos ainda temos pela frente.

    Duas observaes para terminar esta apresentao e apologia pro liber meo. Ao reler o texto comprovo que s vezes otom passa da argumentao e da anlise para a retrica e aexortao. No me desculpo por isso. De que valem argumentos e anlises se no procuram convencer, se no esto aservio de uma paixo? Mas no quero ser interpretado comoquem pretende ter respostas definitivas, e sim como algumque convida a unir-se na reflexo e na paixo por esta promessa e esta dor que o protestantismo latino-americano. Foitambm a servio desse convite que me permiti uma dose talvez exagerada de notas como referncias e perguntas abertaspara um dilogo que acredito que nosso protestantismonecessita. de bom gosto incluir a esta altura do prefcio os agradecimentos. Isso resultaria num elenco interminvel de colegas, amigos, irmos e irms na f por todo o nosso continentee em outras partes. No quero deixar no anonimato os trsinterlocutores e amigos que me acompanharam nestas conferncias e nos seminrios das manhs, a professora EIsa 1.meze os professores Antnio Gouva Mendona e Bernardo Campos, cujos comentrios, informaes e crticas me ajudaram aaprofundar, ampliar e corrigir o texto inicial: sem dvida, muitos traos do esquema inicial dos "rostos" ganharam em preciso por sua ajuda. E seguramente, a meus trs filhos, que mefornecem, amide mesa familiar quando os netos o permitem, as informaes e referncias histricas, sociolgicas e bblicas que eu no poderia reunir por mim mesmo. Os 48 emque desfrutei da pacincia e da impacincia de Noem, minhaesposa, algo que est alm de todo reconhecimento.

    Jos Mguez BoninoBuenos Aires, maro de 1995

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    Captulo 1O rosto liberal do protestantismolatino-americanoCristianismo protestante na Amrica Latina? Por que ecomo? Comecemos com algumas opinies e juzos:[O protestantismo ] uma forma do capitalismo norte-americano, elemento conquistador, amigo do capitalista e inimigo dooperrio, que se props, mediante suas escolas, seus templos eseus esportes, a americanizao do povo. 1

    O protestantismo latino-americano, portanto, aqui se estabelece no bojo de uma invaso estrangeira e traz as marcas dosectarismo e do individualismo que o caracterizavam. Resultou,pois, numa aculturao que nada tem a ver com nossa origeme formao histrica, e num subproduto das conquistas polticas, econmicas e culturais dos sculos passados.Creio firmemente que estender a Reforma ao mundo latinoamericano de uma maneira inteligente e vigorosa provocar aslutas de conscincia nas quais so forjados e temperados osgrandes caracteres to necessrios para o engrandecimento e asalvao das repblicas e levar a ele o sopro vivificador dasliberdades de tal modo conquistadas pelos povos do norte.o controversista catlico, o protestante "arrependido" dadcada de 1960 e o entusiasta intelectual evanglico de 1916

    tm avaliaes muito diferentes. Parecem coincidir, porm, noreconhecimento da existncia de uma relao histrica e ideolgica entre o protestantismo latino-americano, o projeto liberal modernizador de setores politicos latino-americanos e ainfluncia norte-americana. Qualquer observadorisento de preconceitos ter de reconhecer nessa relao ao menos uma verossimilhana cronolgica. Com algumas especificaes queindicarei oportunamente, a segunda metade do sculo passado o lugar histrico onde convergem na Amrica Latina essestrs processos: o projeto liberal, o predorrnio da presena dosEstados Unidos e a entrada do protestantismo. Que relaoosliga, quais so as caracteristicas de cada um desses fatores,

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    10 Rostos do protestantismo latino-americanocomo avaliar histrica, ideolgica e teologicamente esse perodo: estas so as perguntas que tm sido objeto de apaixonadasdiscusses e que dizem respeito autoconscincia e identidade do protestantismo latino-americano. Minha contribuioa essa discusso se limita, neste contexto, a colocar trs perguntas: 1) Se existe uma relao, que importncia histricatem? 2) Onde reside a "afinidade" que teria tornado possvelessa relao? 3) Como respondemos os protestantes a esse"suposto" passado histrico em funo de nossa misso aqui eagora?

    1. Existe essa relao e que importncia tem?No vamos nos distrair com a anlise do que Jean-PierreBastianqualifica - e descarta - como a "hipteseconspratva'",Segundo ela (como o manifesta nossa primeira citao), asmisses protestantes no teriam sido outra coisa do que "aponta de lana", "o acompanhamento ideolgico" ou "a legitimao religiosa" da penetrao econmica, poltica e culturaldos Estados Unidos na Amrica Latina: em todo caso, uminstrumento consciente e deliberado do projeto neocolonial.

    Essa uma teoria que foi esgrimida amide por polemistascatlicos romanos, s vezes em aliana com os nacionalismosde direita, e depois por alguns marxistas, e que perturbou aconscincia de no poucos protestantes "progressistas" na dcada de 1960, levando s vezes a repdios e "confisses" prematuros.Excluindo as coincidncias no tempo, muito poucas evidncias respaldam tal teoria. Seria necessrio, inclusive, precisar os argumentos de datas, j que o projeto imperialista dos

    Estados Unidos s toma corpo na Amrica Latina aps a guerra de secesso naquele pas (1860), quando a presena protestante j tinha aqui mais de duas dcadas. Em todo caso, antes influncia e presso britnicas desde as guerras deindependncia que se deveria atribuir (para o bem ou para omal) a abertura do panorama religioso no continente.Por outro lado, muito difcil fazer generalizaes. Noobstante os elementos comuns que permitem falar de "umahistria da Amrica Latina", deve-se levar em conta a existn

    cia de uma grande diversidade entre as vrias naes e regiesem termos de cronologia, na orientao que tomaram os pasesindependentes, nas formas de sua incorporao ao processo

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    o rosto liberal 11neocolonial e nas caractersticas e tempos de entrada do protestantismo.

    Muito diferente - e, em minha opinio, muito melhorfundamentada - a "hiptese associativa", que o prprio Bastian formula nestes termos:Portanto, a razo de ser das sociedades protestantes na AmricaLatina durante essas dcadas tinha menos a ver com o "imperialismo norte-americano" do que com as lutas polticas e sociais internas ao continente e que se resumia no confronto entreuma cultura poltica autoritria e essas minorias que buscavamfundar uma modernidade burguesa baseada no indivduo redimido de sua origem de casta e, portanto, igualado numa democracia participativa e representantiva, esperando com isso prfim aos privilgios plursseculares."Certamente esta tese no impede Bastian de reconhecerque "o surgimento dos protestantismos de maneira sistemticaa partir da segunda metade do sculo 19 encontra sua explicao na expanso do modelo de produo capitalista, em escalacontnental'", nem que, particularmente por volta de 1916, omovimento missionrio adota o lema do "panamericanismo" eque, assim, "se abriu um caminho dificil" pelo qual "o protes

    tantismo se misturava com a penetrao ideolgica norte-americana no continente"?O valor desta hiptese reside no fato de reconhecer que aentrada do protestantismo se explica fundamentalmente por

    uma situao endgena Amrica Latina (a luta por uma modernizao liberal) e que a o protestantismo se alia com setores latino-americanos que impulsionam tal projeto, principalmente (na tese de Bastian) com as "associaes libertrias" dedistintos tipos (lojas manicas, associaes operrias, gruposde intelectuais, sociedades parapoliticas).Se aceitamos em princpio essa hiptese (mais tarde faremos algumas observaes crticas), cabe fazer vrias perguntas. Em primeiro lugar, quem so os protestantes que assu-mem essa "associao"?Dos estudos que tm sido realizadosultimamente parece depreender-se que se trata, ao menos ato fim do sculo 19 - que o perodo mais importante para estetema - de alguns missionrios vinculados a igrejas mais "liberais" (metodistas, presbiterianos e alguns batistas) e a alguns"intelectuais" (alguns dos quais so ex-sacerdotes dissidentes)que ingressaram cedo no protestantismo. O mais curioso que- como veremos - esses missionrios tm uma formao

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    12 Rostos do protestantismo latino-americanoespiritual e teolgica conservadora e pietista que combina malcom a orientao secularista de seus "scios" latino-americanos mais radicalizados. Cabe supor que a "associao" tenhaocorrido com base numa coincidncia em afirmar uma sociedade democrtica - para a qual o modelo norte-americanoatraa a todos - e, provavelmente mais ainda, na necessidademissionria de conseguir uma abertura para a liberdade deconscincia e de culto. Os dirigentes latino-americanos, porsua vez, encontravam nessa aliana um apoio para sua lutacontra a oposio clerical s reformas que pretendiam introduzir. No me parece exagerado suspeitar que tenhamos a maisuma convergncia de interesses do que uma semelhana deidias. Voltaremos a este tema no prximo captulo. Em todocaso, t rata-se das elites de um e de outro lado, enquanto que,no que diz respeito aos novos conversos que entravam no protestantismo oriundos de setores margnas da sociedade ( parte das repercusses no mbito da liberdade religiosa), a "associao" teve muito pouca importncia.

    Impe-se, todavia, uma segunda considerao. No encontrei estatsticas da populao protestante na Amrica Latina por volta de 1840, mas as referncias e informaes disponveis nos fazem pensar em poucas dezenas de milhares, dosquais a maoria eram estrangeiros ou produto da escassssimaobra missionria, quase reduzida colportagem e a "tentativas" de misso (Argentina, Brasil) muitas vezes frustradas. Omaior impacto no sc. 19 ocorre na segunda metade do sculo,com as condies abertas pelos triunfos dos setores liberais.Ainda assim, as estatsticas de 1903 mantm-se abaixo de 120mil pessoas'', Costuma-se dizer que a presena protestanteteve um peso muito maior do que seu nmero. Pode ser queassim seja. Porm curioso que isso s seja dito pelos protestantes. Uma consulta aos trabalhos histricos dos autores "seculares" mais reconhecidos (tanto latino-americanos quantode fala inglesa) mostra uma ausncia quase total de referndas presena protestante. Mesmo aqueles, como HalperinDongh ou o norte-americano Burns, que dedicam sees discusso da problemtica religiosa da poca e luta pelatolernca religiosa, no atr ibuem ao protestantismo nenhumpapel como "sujeito" desses processos. lapidar a conclusode John Iynch: "No obstante, depois de um sculo de crescimento, o protestantismo era um fenmeno raro e extico naAmrica Latina. Na luta pelas conscincias (minds), a f catlica tinha um rival mais forte [o positivismo)."9 Acaso vamos

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    o rosto liberal 13querer atribuir tal vazio apenas a "preconceitos" compartilhados por autores to diversos? No seria o caso, antes, que,desafiados pela necessidade de "inserir-se na histria" e dereivindicar sua legitimidade latino-americana, alguns dos primeiros historiadores ou intelectuais protestantes "inflamos"participaes ou aes limitadas e circunstanciais de protestantes ou o reconhecimento de latino-americanos notveis [Sarmiento, Alberdi, Jurez, Bel1o, etc.), amide em citaes seletivas e descontextualizadas na totalidade da obra desses autores, e as transformamos em chave hermenutica para entender uma histria na qual nossa presena naverdade foimarginal?

    Ironicamente, essa reivindicao voltaria como condenao frente crise do modelo ao qual se vinculava e, assim,desencadearia sentimentos de mal-estar, culpa e auto-rejeionuma gerao posterior.

    2. Que projeto liberal?A historiografia protestante mais recente coincide em situar no Congresso Evanglico do Panam (1916) um momentodecisivo na autoconscincia do protestantismo latino-americano. Com duas limitaes, concordo com essa interpretao.Em primeiro lugar, trata-se preponderantemente de um congresso "missionrio"; neste sentido, serve para delinear a concepo e estratgia da empresa missionria, que no deve serconfundida com a vida cotidiana, a piedade e a prtica dascongregaes evanglicas no continente. Em segundo lugar,trata-se de um congresso realizado sob a hegemonia das denominaes histricas "liberais" (utilizo este termo aqui em suaacepo norte-americana de "progressista" ou "avanado"), in

    fluenciadas em diversos graus pela teologia liberal e do evangelho social dos Estados Unidos: metodistas, presbiterianos,discpulos de Cristo, Conveno Batista Americana (do nortedos Estados Unidos) e, mais ainda, pelos setores missionrios"liberais" dessas denominaes. No esto presentes, ou notm influncia decisiva, as misses britnicas ou misses como a Conveno Batista do Sul, a Aliana Crist e Missionria,a Igreja do Nazareno ou os Irmos de Plymouth, que j estavam presentes na Amrica Latina e desempenhariam um papelmuito importante no perodo seguinte.Mesmo assim, o Congresso do Panam importante paranosso tema: condensa uma reflexo das misses norte-amer-

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    14 Rostos do protestantismo latino-americanocanas que, desde a Conferncia Missionria de Edimburgo de1910 (da qual foram marginalizadas as misses na AmricaLatina), vinha se desenvolvendo e adquirindo forma orgnica.E lana uma srie de iniciativas, particularmente o Comit deCooperao para a Amrica Latina (CCLA) como organismopermanente de coordenao, com os programas de consulta ede publicaes, que frutificam em conselhos ou federaes regionais e diversas formas de cooperao. Por tudo isso convmque nos detenhamos um pouco para situar o Congresso doPanam de 1916 sobre seu pano de fundo histrico, eclesial eteolgico.

    1. Estados Unidos e Amrica Latina desde meados do sc.19. O presidente Monroe havia definido em 1823 sua doutrina,resumida na expresso "a Amrica para os americanos", depois de diversas vacilaes e supostamente como proteo contra o risco de que a Europa consolidada da restaurao de1814 pretendesse recuperar posies na Amrica Latina. Seguramente, entretanto, a doutrina tinha um significado mais amplo: a reivindicao da Amrica Latina como um espao desegurana, controle poltico e hegemonia comercial dos Estados Unidos. A isso se deve, sem dvida, o fato de haver rejeitado a iniciativa da Gr-Bretanha de fazer essa declarao protetora em conjunto. As conseqncias no se fizeram sentir deimediato: tanto a concentrao na conquista do oeste quantoas crises internas e a preocupao em consolidar o controleterritorial e "a conquista dos mares" (Mahan) ocupavam o primeiro plano. Por volta de meados do sculo, porm, o velholema do "destino manifesto"lO interpretado como critrio darelao com os vizinhos do sul. Negociada a anexao da Flrida e das Luisianas, o controle do Caribe (particularmenteCuba e Porto Rico) aparece como a meta imediata. E as estratgias para incorporar o 'Iexas, o Novo Mxico e a baixa Califrnia - j explcitas desde a dcada de 1820 - vo desde aproposta de compra at a insero da populao e, finalmente,a guerra em 1845.

    A penetrao econmica mais lenta, e, at fins do sculo,a Gr-Bretanha mantm a hegemonia econmica e comercialna maior parte dos paises da Amrica Latina. As mudanas,contudo, iam favorecendo os Estados Unidos. E, ao fmal doperodo colonial, o modelo mercantilista perdia altura na Amrica Latina. Por algum tempo as revolues de emancipaosopraram em seu favor ao branquear e ampliar as relaes

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    o rosto liberal 15mercantis diversificadas que j existiam, fundamentalmentecom a Gr-Bretanha e a Frana. As elites crioulas que predominaram nas primeiras dcadas do sculo s tentavam transferir em beneficio prprio o monoplio comercial, o patronatoreligioso e a estrutura social coloniais. Durante certo tempoconseguiram faz-lo sem maiores dificuldades. Em breve, porm, tomou-se evidente que o modelo mercantil estava se esgotando e que era necessrio avanar rumo a um modelo produtivo. Isso implicava incorporar uma nova fora de trabalhoao sistema econmico, o que significava estimular a imigraoe a educao da prpria populao. Mas tudo isso s podia virde mos dadas com uma transformao da mentalidade, comnovos hbitos e valores: em suma, com a entrada na "modernidade" ilustrada11. E ai topam tambm com a resistncia deum Vaticano catlico que assumiu a bandeira da luta contra amodernidade liberal e que, pouco a pouco, recupera o controleda desorganizada igreja latino-americana que ficara derivaaps as lutas pela independncia. A nova elite que vai assumindo o poder - em longas e complexas lutas - a partir demeados do sc. 19 representa essa nova viso. Seus sonhosdemocrticos e progressistas e suas necessidades econmicasvo aproximando-a do modelo norte-americano, e, embora ain-da tenha reservas semelhantes s de seus antecessores, vai"gravitando naturalmente" nessa direo, como George Adamsj o predizia em 1823 12 A absoro econmica da AmricaCentral ocorre j nas ltimas dcadas do sculo; a hegemoniano Brasil e nos paises do norte da Amrica do Sul cresce apartir de fins do sculo, e o resto, s depois da Grande Guerra(1914-18).

    O rosto "conquistador" da poltica "panamercana" dos Estados Unidos desperta, como sabemos, reaes distintas naselites governantes da Amrica Latina. Alguns governos queremconservar relaes "europias" como freio de conteno; outrospropem uma espcie de "panamercansmo" bolivariano. Equase todos se manifestam - sinceramente ou no - contrrios a intervenes armadas. Por volta da dcada de 1880 osEstados Unidos comeam a redefinir sua poltica em termos de"panamertcansmo'' e em 1888 convocam a Washington todosos paises latino-americanos para participar da Primeira Conferncia In ternac ional de Estados Americanos. GordonConnell-Smith resume o problema de interpretao nas seguintes frases lapidares:

    'Iem sido um mito cuidadosamente cultivado que o sistema in-

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    16 Rostos do protestantismo latino-americanoteramencano. estabelecido de toda forma como resultado daconferncia de Washington, se basearta nos ideais de SimnBolivar, e que Bolivar seria o pai do panamericanismo (...) 1lmito (0.0) no se baseia na realidade; antes, o mito cra suaprpra realidade. 13Diferente o "panamercansmo" que campeou nos congressos continentais do Panam (1825), de Lima (1847), deSantiago do Chile (1856) e mais uma vez de Lima (1865) onde os Estados Unidos estiveram ausentes -, que se entenderam justamente como tentativas de criar defesas tanto frente ao avano norte-americano quanto ante a ameaa da Europa. A tenso entre essas duas concepes se evidencia na conferncia de 1888: a oposio de vrios governos (marcadamen

    te do governo argentino) frustrou vrias propostas norte-americanas (p. ex., a de uma unio alfandegria), e o veto dosEstados Unidos, por sua vez, rejeitou resolues contrrias ao"direito de conquista" ou "clusula Calvo", que teria impedido estrangeiros de apelar a outras leis que as que estivessemem vigor no pas onde moravam (00') e faziam negcios. A conduta posterior dos Estados Unidos sob Theodore Roosevelt(1901-1909), William 1ft (1909-1913) e inclusive WoodrowWilson (1913-1921) no fez seno confrmar os temores latinoamericanos. Esta ltima referncia importante porque o "discurso" de Wilson tenta dar uma definio "liberal" do panamericanismo.

    Neste hemsfro, o futuro ser muito diferente do passado (...)Os estados latno-amertcanos sofrerammais imposies [econmicas] (...) do que qualquer outro povo do mundo (...) Nada mecausa mais alegria do que pensar que em breve se emanciparodessas condies e que devemos ser os prmeros a contrburpara tal emancipao (o .) Devemos mostrar-nos amistosos eentender seu interesse, esteja ele de acordo com o nosso ou no. 14Mas quando o prprio Wilson destaca que, "como o comrciono conhece fronteiras, (o .. ) a bandeira desta nao dever iratrs deles [dos comerciantes norte-americanos] para derrubaras portas das naes que no queiram se abrir" e, unindo aao palavra, exerce presso sobre a politica interna do Mxico, incluindo intervenes armadas, e intervm no Caribe(Repblica Dominicana, Nicargua e Haiti), entende-se a concluso do historiador norte-americano van Alstyne que fala de

    "um forte cheirode farisasmo na diplomacia norte-americana" 152. Estamos assim em 1916. E na Amrica Latina a inter-

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    o rosto liberal 17pretao "latino-americana" do Congresso (evanglico) do Panam aparece escrita em portugus pelo distinto educador brasileiro Erasmo Braga e em espanhol pelo professor uruguaioEduardo Monteverde (os documentos oficiais esto s em ingls) sob o titulo Panamericanismo: aspecto religioso. Ingenuidade? Cumplicidade deliberada? Convico genuna? Provavelmente tudo isso e, ao mesmo tempo, nada disso. Na medida(limitada) em que o protestantismo latino-americano desse periodo est formulado e representado pelo Congresso do Panam, fica claro que trata-se de uma aliana explcita com "0panamericanismo". Mas que panamericanismo? O do discursode Wilson ou o de suas aes? O da Conferncia de Washington ou o dos "congressos continentais"? Est claro tambmque os lderes reunidos no Panam vem o futuro dos paseslatino-americanos como um "projeto liberal". Mas que projetoliberal? Ao referir-se aos governos progressistas da segundametade do sculo 19, Halperin os distingue e divide em liberais(Mxico, Rio da Prata, Uruguai), csaro-progressistas (Venezuela, Guatemala, Amrica Central, Equador) e oligrquicos(Colmbia, Peru, Chile), alm do Brasl-", claro que a problemtica neocolonial entendida e assimilada de maneiras muito diversas. O que representa o Congresso do Panam nessadiversidade?No posso me deter aqui num estudo detalhado da histria, dos contedos e das conseqncias desse evento. H umavasta bibliografia na qual se podem encontrar as diversastnterpretaes'". , alm disso, creio eu, um fato ambguo noqual se do diferenas, divergncias e contradies. No obstante, se se toma a opinio das pessoas que evidentementeconduziram o processo preparatrio e desempenharam um papel decisivo no desenvolvimento do congresso e na implementao de suas resolues, possvel achar uma viso bastantehomognea do protestantismo ilustrado que as inspira.No que diz respeito ao "panamericanismo", quase no necessrio argumentar em favor da rejeio do "intervencionismo" armado. Na verdade, vrios missionrios j o haviam condenado explicitamente em relao com a guerra contra o Mxico e as intervenes naAmrica Central, e haviam denunciado os interesses econmicos ocultos atrs delas. Dez anos depois, uma missionria conservadora como Susan Strachan falava, nos conflitos da administrao Cooldge com o governomexicano, do esforo "herico" de Calles, que "merecia as oraes e a simpatia de todo cristo verdadeiro em sua luta ggan-

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    18 Rostos do protestantismo latino-americanotesca". E acrescentava: "Ele se defronta com dois inimigos insaciveis, sendo um deles a igreja de Roma e o outro as empresas comerciais estrangeiras rivais que causaram os transtornos polticos do Mxico durante as duas ltimas dcadas, "18'Iudo isso, entretanto, para eles uma excrescncia de umarelao cultural, poltica e econmica que deve ser aberta, generosa e fecunda para ambas as "Amricas", Uma das seesdo informe do Congresso do Panam'? reconhece que "os ofensores foram agentes comerciais agressivos, o tipo de concessionrios que praticam pilhagens, gerentes e industriais cheios dearrogncia e insolncia, turistas fanfarres, representantes diplomticos e consulares malcriados e, ocasionalmente, missionrios complacentes", Considera, contudo, que a maioria dopovo norte-americano no assim, E o informe, citando oescritor Garcia Caldern, convida a olhar, antes, "o espetculodessa outra Amrica, que desdenha o materialismo violento ea cobia imoral dos homens prtcos'w. Por isso se insiste nanecessidade de um maior contato mtuo, de uma relao quedestrua os preconceitos e dissipe "os temores de que a novadoutrina [panamericanista] encerre o grmen do predomnioda guia do norte'v'. No obstante, no vacila em ver na abertura do Canal do Panam ou na recm-inaugurada Estrada deFerro Panamericana fatos auspiciosos que se destacam comopenhor dessa nova relao e no parecem maculados pelo "materialismo violento" ou pela "cobia",

    Seria possivel multiplicar quase ad inl initum as citaesque demonstram que, a partir dessa "ingenuidade", o trabalhodo CClA e de seus operadores na Amrica Latina, pessoascomo Guy Inman, Stanley Rycroft e outros, coloca-se a serviode uma relao crescente entre os Estados Unidos e a AmricaLatina, em nivel missionrio, educacional, social e econmico,So precisamente a unidade e interconexo desses aspectos oque caracteriza a verso de panamericanismo que eles promovem, evidente que as dimenses religiosa, educacional e social -especialmente de assistncia - predominam sobre aeconmica, mas no se desligam dela, S tentam "purific-la"denunciando suas corrupes, que atribuem a defeitos moraisde alguns de seus agentes e no a razes estruturais implcitasno sistema ou na ideologia que a promove,

    No protestantismo norte-americano nem todos compartilham dessa "ingenuidade", Num artigo publicado em 1929,Charles P, Miller, na poca presidente da Federao MundialCrist de Estudantes, fala da "invaso americana [dos Estados

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    o rosto liberal 19Unidos) do mundo" e a vincula nova "racionalidade" econmica que assume o controle da totalidade da vida da naonorte-americana. Duas breves citaes resumem sua anlise esua preocupao:Seja qual for o futuro que est nossa frente. o fato concreto que a estrutura fundamental (framework] nacional neste momento a da produo e do comrcio. a mquina da indstriae do comrcio norte-americanos que nos d a coeso nacional.O sistema e a tcnica que essa mquina gerou so as forasmais dinmicas de nossa vida nacional. Numa medida da qualainda no tomamos conscincia. essas foras esto mudandonossa mentalidade como indivduos e nossos costumes comosociedade (...) Este . em resumo. o quadro dos Estados Unidosvisto pelas naes que sentem o pleno impacto de sua invasoeconmca.-

    A influncia dessas idias no se far sentir no protestantismo latino-americano at duas ou trs dcadas mais tarde,mas o impacto do evangelho social. unido s preocupaesantiimperialistas introduzidas por socialistas e anarquistas nadiscusso poltica latino-americana. desperta em alguns lderes protestantes latino-americanos certos questionamentos danfase "panamercansta" do CCIA. Voltaremos a este ponto naseo 3.3. As incoerncias. Segundo minha interpretao, as incoerncias que se percebem no Panam - e que se transformaro em contradies mais abertas em Montevidu (1925) eHavana (1929) - provm de duas fontes. A primeira teolgicae tem a ver com uma dupla influncia na formao acadmicae na orientao espiritual dos dirigentes. verdade. como dizBastian, que muitos dos lderes missionrios fizeram seus estudos nas universidades liberais da Nova Inglaterra (Harvard,Yale. Columbia) e ai absorveram elementos das ideologias liberais progressistas, que em parte interpretaram teologicamentecom o evangelho social que se insinuava em suas igrejas desdeo comeo do sculo. Por outro lado. porm. o movimento missionrio ao que se somam est fortemente marcado pelo "segundo despertar", com sua soterologa individualista e subjetiva: a pessoa de John R MoU, talvez a figura simblica maisimportante em todo esse movimento, a ilustrao mais cabal

    dessa posio "conservadoramente progressista". Se a visoliberal os leva a esboar um modelo missionrio socialmentecomprometido, a soterologamissionria os obriga a aplicar de

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    20 Rostos do protestantismo latino-americanoimediato a surdina. A discusso surgida no Panam em tomoao Informe da Comisso de Mensagem, e que levou a umacorreo do tom teolgico ligeiramente liberal e progressista daproposta da Comisso, ilustra essa tenso, qual aludiremostambm no prximo captulos',A segunda razo da incoerncia surge da sobreposio dedois modelos democrticos debatidos na poca entre os tericos politicos norte-americanos. C. B. MacPherson os caracterizou muito bem ao distinguir as duas vises "liberais": "a democracia como proteo" e "a democracia como desenvolvimento".A primeira comea quando se d por assentada uma sociedadecapitalista regida pelo mercado e, por conseguinte, por umcerto conceito de ser humano e de sociedade: o ser humanocomo "maxmzador de utilidades" definido como o racionalmente mais eficiente, ou seja, o que obtm o maior ganho coma maior economia de esforo. A sociedade no seno umasoma de indivduos com interesses conflituosos, j que cadaum persegue essa "maxmzao'', inevitavelmente, em algumamedida, em detrimento dos outros. A formulao filosfica dessa viso foi o utili tarismo, expresso por Bentham como "o clculo de felicidade", a maior felicidade do maior nmero. Como,porm, medir a felicidade? Visto que necessria uma medidaquantitativa, o que aparece imediatamente o dinheiro: "Odinheiro o instrumento com o qual se mede a quantidade dedor ou de prazer" (Bentham). Qual poderia ser, pois, a funodo estado, das leis e do governo seno a proteo da "equanimidade" (fairness) desse processo social? Para tanto, devemassegurar o funcionamento livre e sem travas do mercado, eeste garantir, na luta da competitividade, a subsistncia, aabundncia, a igualdade e a segurana. O governo o "rbitro"que impede os "golpes baixos". O voto, secreto, universal efreqente, o instrumento suficiente que assegura que o estado cumpra esse papel (em principio, tanto Jeremy Benthamquanto James Mill pensavam num voto limitado ou qualificado, mas depois se convenceram de que os problemas que geraria tomavam prefervel um voto universal).

    Desde meados do sculo 19, entretanto - e isto importante para nosso tema -, aparece uma nova viso democrtica. A classe operria faz sentir seu peso, tanto pelo espetculode sua misria quanto pela fora de seu protesto. John StuartMill articula sua crtica da seguinte maneira:

    Confesso que no me alegra o ideal de vida sustentado pelas

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    o rosto liberal 21pessoas que crem que o estado normal dos seres humanos sejao da luta para vencer as dificuldades: que os empurres. cotoveladas e pisadelas no prximo sejam o destino mais desejvelpara a humanidade ou que no sejam seno meros sintomasdesagradveis de uma das fases do progresso ndustral."Por conseguinte. uma nova gerao de intelectuais - JohnStuart Mill, John Dewey, McIver - prope uma concepodiferente. O humano um ser que procura melhorar como sermoral e que no quer apenas acumular, mas desenvolver-se. Asociedade. por sua vez, um processo em busca de maiorliberdade e igualdade. Por conseguinte. a meta "o avano dacomunidade no tocante ao intelecto, virtude, atividade prtica e eficcia" (Stuart Mill). A partir dessa posio, critica omodelo de seu pai (James Mill), mas no rejeita o capitalismo.Como avanar, ento. rumo a uma sociedade diferente? A pergunta toma-se-lhe difcil: prope qualificaes do voto que assegurem uma melhor distribuio dos recursos, a criao decooperativas, os partidos polticos representativos. John Dewey d uma contribuio decisiva: o caminho a educao. Oobjetivo "desenvolver uma gerao melhor". Esta a linhaque predomina no Panam em 1916.4. O projeto educacional missionrio. No necessanauma grande perspiccia para perceber que na educao. muito mais do que no nvel poltico e social, que o protestantismomissionrio liberal encontra uma possibilidade de integrar seusdiversos fios: isso corresponde a uma tradio protestante quepode ser remontada at a Reforma e que desempenhou umpapel fundante no protestantismo norte-americano: a nfasena educao e na criao de escolas; oferece uma mediaoinobjetvel para com o social sem obrigar a pronunciar-se so

    bre regimes polticos ou definies econmicas; permite reconciliar a nfase "conversonsta" com a preocupao tica e anoo liberal de um desenvolvimento pessoal - "uma educao que forma carter" uma frase que permeia os programaseducacionais protestantes em todo o continente - e ofereceum amplo campo de colaborao com as novas elites ilustradas da Amrica Latina, obcecadas com a "redeno do povo"mediante a educao. As duas vertentes de aproximao aotema da educao que se esboam no projeto missionrio esto magnificamente ilustradas nas discusses registradas novolume 1 do informe do Panam-", De um lado esto os queencaram a misso educacional como um caminho para a dec-

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    22 Rostos do protestantismo latino-americanoso religiosa; do outro. os que esperam a converso como umdesenvolvimento do crescimento "integral" do aluno em contato com a educao de uma escola evanglica. Uns e outros.porm. coincidem - ao menos nessa etapa da histria do protestantismo no continente - em que a se cumprem os diversos propsitos da "colaborao missionria" para a redenodo povo e a construo de um novo nuturo para as naeslatino-americanas. Jether Pereira Ramalho resumiu muito bem- referindo-se ao Brasi l - a inspirao do projeto educacionalprotestante em toda a Amrica Latina:

    A proposio central deste trabalho [sua pesquisa) demonstrarque os princpios e as caractersticas da prtica educativa introduzidas no Brasil. no final do sculo passado e nas primeirasdcadas do atual, pelos colgios oriundos das denominaeshistricas do protestantismo, provenientes de misses norteamericanas, s podem ser interpretados na medida em que sorederidos: verso ideolgica que os inspira mais profundamente e lhes d sentido e s condies estruturais da nova sociedade em que vo atuar."

    3. Renunciar herana liberal?1. O fracasso do "projeto liberal": Rubem Alves o chamoude "projeto utpico" do protestantismo na Amrica Latina edescreveu seu naufrgio no "protestantismo da reta doutrna'V."Utpico" pode ter aqui o significado positivo de um "princpioprotestante" libertador que - como disse Tillich - foi incapazde abrir um caminho para a cultura ocidental que a levassealm da crise da Grande Guerra. E pode tambm ser lido nosentido negativo: uma expectativa sem fundamento na realidade. destinada a espatifar-se contra esta. No primeiro sentido assim o leram os apologistas do protestantismo latino-americano - sugerimos que suas conquistas foram historicamentemuito pouco significativas.Provavelmente deve-se concluir que. como projeto histrico concreto para a Amrica Latina desde meados do sculo 19e por mais de um sculo. o projeto fracassou. Olhando retrospectivamente. o que sempre tem a sabedoria dos fatos irreparveis. possvel perceber que o fracasso era inevitvel. Emprimeiro lugar. por causa da ambigidade de uma posturateolgica que no permitiu aos dirigentes missionrios. em suamaioria. integrar o projeto em sua autocompreenso teolgica

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    o rosto liberal 23e por causa de uma insuficincia analtica que no percebeu aincompatibilidade entre o projeto da "democracia do desenvolvimento humano" e a razo econmica e poltica que ditava ofuncionamento do "panamericanismo" dos Estados Unidos. Emsegundo lugar, porque no chegou a penetrar mais do que empequenos grupos dos membros de suas prprias igrejas e menos ainda nas igrejas das correntes de santidade e fundamen-talistas que entraram em grandes ondas na Amrica Latina jdesde o final do sculo e de alguma maneira impregnaram todoo protestantismo latino-americano. Em terceiro lugar - e fundamentalmente - porque o projeto em si era invivel na Amrica Latina: as prprias elites que o auspiciaram topavam comimpossibilidades devidas estrutura social e sua prpriaambivalncia e acabaram derrotadas ou absorvidas no modelocapitalista dependente.

    'Ialvez os primeiros anncios da crise se fazem sentir porvolta de 1930 e tm importncia para nosso tema. Com efeito,a crise do capitalismo mundial de 1929 teve conseqnciasdecisivas para a vida social, econmica e poltica da AmricaLatina. A recesso econmica expulsou milhares de trabalha-dores rurais, que buscaram um espao nas cidades ou nosnovos centros mineradores e industriais. O desemprego, a ano-mia social e a pobreza das massas despertaram o protestosocial e abriram as portas aos movimentos socialistas. A res-posta poltica do sistema foi o "populismo": a tentativa de geraruma mudana social mediante uma "aliana" de setores popu-lares e elites culturais e econmicas latino-americanas, dentrodas estruturas do sistema capitalista.

    A corrente protestante mais tradicional, ainda sob o impulso do movimento missionrio, tentou encontrar sua identidade e definir sua misso nessa nova situao como - usandoos termos de Bastian - "uma via humanizante que instauravaos valores fundadores numa sociedade dstorcda'?". "A independncia poltica", escrevia em 1942 o destacado missionriopresbiteriano W. Stanley Rycroft, "no trouxe liberdade para opovo, no verdadeiro sentido da palavra. Essa liberdade aindaprecisa ser conquistada, e est intimamente ligada difusodo cristianismo evanglico."29 Essa viso otimista se repete nosescritos de alguns dos jovens lderes protestantes da AmricaLatina: p. ex., os mexicanos Alberto Rembao e Gonzalo BezCamargo, o brasileiro Erasmo Braga, o argentino-norte-americano Jorge P. Howard e missionrios como Samuel Guy Inrnane Juan A. Mackay. Entre a brutalidade de um capitalismo

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    24 Rostos do protestantismo latino-americanodesalmado e o materialismo de um comunismo que pregava aluta de classes, esses lderes viram o protestantismo como aguarda avanada dessa democraciaverdadeira, socialmente progressista, modernizante e participativa da qual falamos na seo precedente. A nfase do "evangelho social" na redenosocial e a dos evanglicos na transformao da pessoa pareciam, assim, encontrar sua unidade.

    Nessa linha foram criados, nas dcadas de 1930 a 1950,"conselhos" ou "federaes" de igrejas na maior parte dos paises do continente. Seus propsitos declarados eram a cooperao na publicao de literatura, a representao comum anteas autoridades pblicas, a defesa da liberdade religiosa e acooperao na evangelizao e na educao crist. Indicamosacima quais eram a teologia e a ideologia dominantes. Umvigoroso programa de publicaes difundiu tradues de alguns dos clssicos antigos e moderno da teologia protestante;fundaram-se seminrios interdenominacionais em Cuba, naArgentina e em Porto Rico e renovaram-se os seminrios denominacionais de outros paises, nutrindo uma gerao de ldereslatino-americanos com mentalidade ecumnica e preocupaosocial que haveriam de emergir nas dcadas de 1950 e 1960. Aprimeira Conferncia Evanglica Latino-Americana (I CELA),convocada e orientada a partir do prprio continente, rene-seem Buenos Aires em 1949.

    Entre os lderes desse protestantismo no faltam aquelesque avanam mais um passo com uma critica decidida aomodelo burgus capitalista e uma simpatia explcita pelo socialismo democrtico. O prprio Mackay critica um informe doConselho Missionrio Internacional "que reproduz os desejos einteresses da sociedade burguesa ocidental que v o cristianismo como a alma de sua cultura, mas no como seu juz">'.Essa atitude critica aparece nos movimentos ecumnicos dejovens que, em 1941, se juntam como Unio de Ligas JuvenisEvanglicas (UIAJE), cujo primeiro congresso adota como lema "Com Cristo, um mundo novo" e conclama a uma lutacontra "o presente sistema capitalista baseado na opresso ena desigualdade econmica" e a favor de "um sistema de cooperao". Opes semelhantes aparecem nos documentos dasdcadas de 1930 e 1940 das assemblias da Igreja Metodistado Chile, do Uruguai e da Argentina. Na dcada de 1940 aparecem os "movimentos estudantis cristos" inspirados pela Federao Mundial Crist de Estudantes, orientada principalmente a partir da Frana nessa mesma linha e que posterior-

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    o rosto liberal 25mente, junto com a participao no movimento ecumnico dops-guerra e a partir de uma teologia mais europia, geraria asnovas lideranas das dcadas de 1950 e 1960.

    Enquanto isso, outra ala do protestantismo, nascida dosmovimentos de santidade do final do sc. 19 nos Estados Unidos, seguiria uma direo diferente. No prximo captulo tentaremos analisar esse desenvolvimento e as tenses que delese originaram. Agora, porm, precisamos dar mais um passona configurao da fisionomia do "rosto liberal". 'Iodo o mundocoincide em situar por volta de 1960 um momento critico quePrien chama de "a crise dos estados oligrquicos nacionais",Dussel de "a crise dos estados independentes" e "a crise dalibertao" e Bastian de "a crise do capitalismo dependente:entre a resistncia e a submisso". A promessa do projetodesenvolvimentista no qual o protestantismo - e boa parte do"mundo ilustrado" latino-americano - havia depositado suasesperanas se desvanece no fracasso dos planos de ajuda daAliana para o Progresso de Kennedy e dos projetos do Conselho Econmico para a Amrica Latina (CEPAL). Fica claro queo "socialismo utpico" que campeia nos documentos da ULAJE- e nos movimentos universitrios vinculados "reforma universitria" - requer uma poltica mais radical e uma fundamentao ideolgica mais slida. O rosto faminto das grandesmaiorias mostra-se nos cintures de misria que comeam aformar-se em tomo das grandes capitais. Faz-se necessriauma nova forma de analisar a dinmica das sociedades "perifricas". A "teoria [scio-econmica] da dependncia" propeuma verso prpria da anlise marxista, mudanas radicaisdas estruturas da relao entre mundo desenvolvido e mundodependente e um projeto socialista adequado s condies do'Iercero Mundo.

    No ambiente religioso, a conscincia dessa crise repercuteprofundamente na Amrica Latina. A renovao teolgica eeclesial do Vaticano II relida na tica da "transformao dasociedade" na Assemblia Episcopal de Medelln em 1968 e apreocupao do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) com "ospases em vias de desenvolvimento" converte-se em "transformao estrutural" na Conferncia de Genebra de 1966, onde adelegao latino-americana desempenhou um papel importante, e na Amrica Latina no movimento "Igreja e Sociedade naAmrica Latina' (ISAL) de 1960. A nova liderana que surgeassume essa perspectiva, apoiada numa viso teolgica de inspirao barthiana, que procura combinar uma teologia bblica

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    26 Rostos do protestantismo latino-americanode redeno numa tica histrica com um chamado militncia ativa nos movimentos sociais e polticos de libertao. Noprotestantismo, os nomes de Valdo Galland, Jorge Csar Motta, Richard Shaull, Emlio Castro, Jos Mguez Bonino e outrosabrem o caminho que Rubem Alves, Julio de Santa Ana, Gonzalo Castillo, Jether P. Ramalho, Ral Macn e outros, de diversas maneiras e com matizes diferentes, tentaro desenvolver.Do conjunto dessas linhas - e de desdobramentos anlogosno catolicismo - nasce por volta do fmal da dcada de 1960 achamada "teologia da Ibertao'?".

    2. O que fazer com esse fracasso? A gerao de 1960 percebe claramente o fracasso do modelo desenvolvimentista e,ante o n grdo representado pelo entrelaamento do idealhumanista e do capitalismo dependente, recorre tcnica deAlexandre Magno: desembainha a espada e corta o n: liberdade, democracia, desenvolvimento tomam-se termos pejorativos; uma interpretao unilateral da "teologia da crise" e umaaplicao igualmente parcial da anlise marxista alimentam oque chamarei, mais modestamente, de "estratgia da ruptura".Sem dvida, fatores psicolgicos tambm intervm na durezacom que a ruptura se manifesta em alguns setores do protestantismo (e tambm do catolcsmo): a tomada de conscinciade que a busca de justia a que a realidade humana do continente e a f crist os haviam impulsionado fora ideologicamente manipulada num sistema de opresso produz uma crisepessoal justamente nas pessoas mais lcidas e comprometidasdessa gerao. O ncleo central dessa crise, porm, dadopelos elementos objetivos que indicamos. Descartado o "protestantismo liberal" e vedado teolgica e ideologicamente o "protestantismo conservador", ocorre nesse protestantismo umacrise eclesial e teolgica que ainda no superamos. essa a nica resposta possvel ao "fracasso" histrico doprojeto liberal? A partir de setores do ps-modernismo, e ironicamente por razes opostas s da gerao de 1960, esta pareceser a nica possibilidade. Acabou-se a poca dos "grandes relatos" que assinalavam a senda da histria e inspiravam autopia do progresso; as ideologias morreram e chegamos aofm da histria. 'Iarnbm aqui a estratgia de Alexandre anica proposta para resolver o problema da crise da modernidade liberal. 'Ialvez seja mais penoso ainda o estado de nimode cinismo desesperanado que alguns "revolucionrios" dadcada de 1960 parecem assumir ante o poder avassalador e

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    o rosto liberal 27aparentemente invencvel do neoliberalismo e da "nova ordemeconmica internacional". necessrio reconhecer que a crise do modelo desenvolvimentista e a instalao do neoliberalismo implicam gravessuspeitas ante toda tentativa de recuperar a "herana humanista" que acompanhou e freqentemente legitimou os projetos desenvolvimentistas. Surgem perguntas como: por que oprojeto "liberal" se deixa absorver to facilmente e se coloca aservio dos interesses de uns poucos? Vale a pena fazer oesforo de separar os aspectos "humanistas" do projeto reformista e tentar reintegr-los em termos de uma "opo pelospobres"? No h uma contradio inerente totalidade ideolgica que o liberalismo representa e que impossibilita essarecuperao-? Ser que o liberalismo alguma vez foi "democrtico"?

    H, entretanto, tambm outras perguntas igualmente urgentes. Em algum momento, Gustavo Gutirrez caracterizou ateologia da libertao dizendo que "a meta a liberdade; alibertao o caminho". Se a liberdade sempre - historicamente, ao menos'< - "um alvo mvel" e a libertao - tambm hstorcamente - um caminho sem fim, temos direito dedesvincular uma da outra? Ou, antes, possvel desvincullas sem desvirtuar a libertao que buscamos? Como crentes,a "liberdade" que Jesus Cristo nos oferece gratuitamente no a raiz e o sentido de nossa participao na histra-? possvel renunciar "utopia da liberdade" sem destruir a esperana e tirar de qualquer busca de libertao sua qualidadehumana?

    Pessoalmente, proponho a "estratgia da pacincia": o esforo de "desatar os ns", tentar desenredar os fios e prepararnos para voltar a tecer, no tear de um momento histricodistinto, uma compreenso social e teolgica nova.

    Para tanto, creio que indispensvel recuperar alguns dosfios do tecido da modernidade. Creio, em outras palavras, queo chamado "projeto liberal" representa o encontro e a interaode fatores diferentes e parcialmente divergentes que geram umatenso no resolvida ao longo da histria moderna. Com efeito,no novidade para ningum que a "modernidade" herda umacomplexa srie de tradies nas quais se misturam de diversasmaneiras os "grandes relatos" bblicos e das culturas mediterrneas, que, por sua vez, em certas ocasies assumem e renterpretam vrios elementos. A variedade e multiplicidade de

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    28 Rostos do protestantismo latino-americanosentidos dessa herana clssica so ilustradas. p. ex .. na forma diversa em que ela "recuperada" pelo Renascimento italiano e pelo da Europa do Norte. Thdo isso se processa no novomolde cientifico, tecnolgico e econmico que vai se forjandona Europa nos sculos 16 a 19, at desembocar no capitalismoindustrial burgus. As grandes palavras de sua ideologia cobrem as ambigidades dessa histria. Os grandes lemas damodernidade - a razo. a liberdade, o indivduo, a democracia- so, de fato, entendidos e vvdos de maneira diversa - e,mais ainda, ambgua - nesse longo processo histrico gestadodesde o fmal da Idade Mdia. Assim, a razo a capacidadehumana de discernir e discernir-se a partir de si mesma e semse submeter a uma autoridade externa, e tambm a racionalidade tcnica que Vai resolvendo os problemas, a servio da"maxmzao'' da produo e da utilidade. A liberdade odireito inalienvel de cada ser humano de dispor de si mesmo,a suma dos direitos definidos secularmente na Carta da Revoluo Francesa e, em termos testas, na norte-americana, e ,ao mesmo tempo, o direito "sagrado" propriedade que s protegido no mercado livre da competitividade. O indivduo apessoa-sujeito que assume sua singularidade e responsabilidade sem se perder na coletividade, e tambm o indivduoauto-suficiente que defende sua privacidade como uma fortaleza dentro da qual se protege de todos os demais. A sociedade,por conseguinte, pode ser entendida como o "pacto" defensivodos interesses contrapostos dos indivduos (como diria Hobbes) ou como uma estrutura humana insita que conduz busca do bem comum; a democracia o governo "representativo" que assume e substitui a sociedade, e , ao mesmo tempo, a organizao "partcpatva" na qual a comunidade organiza sua convvnca.

    Os "e", "tambm" e "ao mesmo tempo" do pargrafo anterior poderiam ser multiplicados. Mas no constituem nem vi-ses equilibradas nem elementos integrados numa sintese. Somotivos em conflito que disputam o controle da superestrutura ideolgica das sociedades e, inclusive, convivem conflituosamente num autor ou em autores muito prximos, como bemse pode perceber numa comparao cuidadosa, p. ex., entre Ateor ia dos sentimentos morais (1759) e A r iqueza das naes(1776) de Adam Smth, ou na j mencionada divergncia naconcepo de liberalismo entre James Mill e seu filho JohnStuart Mill. Na crescente mar do triunfo da (suposta) liberdade econmica, da razo tcnica, do individualismo competitivo,

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    o rosto liberal 29da democracia puramente eleitoral, naufragaram as utopiashumanistas desde Kant at os socialistas utpicos - e poderamos dizer: at Marx!

    Na Amrca Latina, o protestantismo liberal ficou presonessa tragdia de duas maneiras: seu discurso "liberal" foiempregado - na escassa medida de seu peso social - comolegitimador do capitalismo interno e externo mais selvagem e,ao mesmo tempo, reinterpretado em suas prprias fileiras como "ideologia" da ascenso social ou como "teologia da prospe-ridade". Isto o que percebemos com razo na dcada de 1960.Acaso isso significa que os protestantes de hoje devemos repu-diar essa herana? Minha resposta : no. No, porque aherana protestante da liberdade, da identidade prpria e daresponsabilidade da pessoa na solidariedade da comunidade,da autonomia da razo humana (da razo da vida e do amorativo) na construo da cidade terrena, da racionalidade daesperana numa histria da qual Jesus Cristo Senhor. O quecabe a re-interpretao dessa histria como histria em bus-ca de um futuro, justamente como resposta negao de todofuturo, implcita e explcita na ideologia e na poltica do "Iim dahistria". Reclamamos a herana do protestantismo utpico daqual fala Rubem Alves, mas a reclamamos reinterpretada e revivida em nosso tempo, com os marginalizados de nossas sociedades e, a partir deles, como protesto frente ao suposto "fimda histria" e como programa na construo de um novo projeto histrico de nossos povos.

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    Captulo 2O rosto evanglico do protestantismolatino-americano

    1. Um protestantismo evanglico1. Os iniciadores do protestantismo "crioulo". Eles somissionrios - em sua maioria norte-americanos ou brtncos (entre estes vrios escoceses) - que chegam AmricaLatina a partir da dcada de 1840. notvel perceber que, noobstante sua diversidade confessional - metodistas, presbiterianos e batistas em sua maioria - e de origem - americanae britnica-, todos compartilham um mesmo horizonte teolgico, que se pode caracterizar com o termo evanglico - utilizado aqui em sua acepo anglo-sax! -, que Marsden definemuito bem dizendo que os evanglicos so "pessoas que professam uma total confiana na Bblia e se preocupam com amensagem da salvao que Deus oferece aos pecadores pormeio da morte de Jesus Cristo", e acrescentando: "Os evanglicos estavam convictos de que a aceitao sincera dessa mensagem do 'evangelho' era a chave para a virtude durante a vidapresente e para a vida eterna no cu e que sua rejeio significava seguir o caminho largo que termina nas torturas doinferno.'?'Iodos podemos reconhecer nesse resumo a teologia dopietismo e do Grande Despertar (ou avivamento) do sc. 18 queassociamos aos nomes de Wesley e Whitefield na Gr-Bretanhae de Jonathan Edwards nos Estados Unidos e que permeia amaior parte do protestantismo anglo-saxo e seguramente atotalidade de seu etos missionrio. Este o pano de fundoteolgico da misso Amrica Latina em suas origens na segunda metade do sc. 19. Porm essa teologia havia sofrido,desde meados do sculo, influncias significativas que vale apena salientar. Se fixamos - mais ou menos arbitrariamente- o ano de 1870 para fazer um balano, teriamos de anotar ao

    menos os seguintes dados:O segundo despertar, na dcada de 1850 (que podemosassociar comnomes comoos de IymanBeecher,TImothyDwight

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    32 Rostos do protestantismo latino-americanoe sobretudo Charles Finney), que continuado com a grandecruzada evangelizadora e missionria de Moody, tem caractersticas prprias:

    a) Corresponde ao crescimento da populao urbana, penetra nos colleges e nas universidades e em setores comerciaisda classe mdia e tem um prestigio religioso que no havia sidoalcanado pelo "avivamento" rural ou de fronteira.b) 'Ieologcamente supera - o que j se percebe no prprioJonathan Edwards - o conflito entre a tradio calvinista e aarminiana: na prtica, admite-se um certo livre-arbtrio (sejaqual for a forma em que justificado teologicamente) e umapossibilidade de crescimento na santidade.c) Ao individualismo j acentuado do primeiro despertaracrescenta-se um alto grau de subjetivismo: algum chamou aateno para a diferena entre a hindia do "primeiro desper

    tar", centrada na admirao pelo aspecto inefvel da graa (p.ex., "Mil vozes para proclamar", de Charles Wesley, e at Ama-zing grace, de John Newton), e a do segundo, que se detm nadescrio dos maravilhosos sentimentos que essa graadesperta:

    No seio de minha alma uma doce quietudese espalha inundando meu ser,uma calma infinita que s poderoos amados de Deus conhecer.Paz, paz, que doce paz aquela que o Pai nos d;peo-lhe que inunde para sempre meu sercom suas ondas de amor celestial [e de pazl."d) O despertar religioso e a reforma social (revival and

    reform) so vistos como estreitamente aliados: os evangelistasda dcada de 1850 assumem, junto com a causa da moralizao da sociedade, a da abolio da escravatura e a do combate pobreza.Concluda a guerra civil norte-americana (1865), o pasentra numa era de otimismo que contagia tambm o evangelicalismo. Os Estados Unidos aparecem agora como um modelodestinado a inspirar o mundo inteiro: o despertar evanglico,os avanos sociais e a educao se apiam e sustentam mutuamente. Nas palavras de um orador na reunio internacio

    nal da Aliana Evanglica Mundial (Nova Iorque, 1873), o verdadeiro cristianismo(...) educa os jovens, alimenta o faminto, cura o enfermo. Rego-

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    34 Rostos do protestantismo latino-americanovolvimento pessoal e comunitrio obriga o crente a preocuparse com as condies polticas que assegurem essa possibilidade: liberdade religiosa, secularizao de servios como a educao, o matrimnio ou os cemitrios, no-discriminao notrabalho e na educao e inclusive preocupao com a condio dos mais pobres. Porm deve-se notar que essa "dimensopblica" no integrada de maneira direta no horizonte de suaf: ela fica como "uma conseqnca" derivada ou como umaesfera "independente" em que se deve dar um testemunho dehonradez e responsabilidade. Quando as condies sociais nomais parecem exigir essa defesa das liberdades, ela facilmentese desprende dessas posies.

    2. Mudanas no horizonte teolgico evanglico. As idias eatitudes centrais dessa teologia evanglica modelam a f e avida das congregaes que vo se formando ao longo dessasdcadas e dominam o protestantismo crioulo pelo menos at aGrande Guerra. Pouco a pouco, entretanto, iro se insinuandodiferenas, ainda s larvadas em 1916, cujos efeitos tm marcado at hoje o protestantismo latino-americano. Para entend-las temos de voltar ao cenrio norte-americano. Ali, o protestantismo "evanglico" se confrontava, desde o ltimo terodo sculo, com os desafios de uma cultura urbana reclamadapelo secularismo, de uma cnca que colocava em xeque "verdades" crists consideradas fundamentais e do liberalismo teolgico - chamado genericamente de "modernismo" - que parecia ameaar a confiabilidade da Escritura e elementos centrais da crstologa e soterologa evanglica. Como responde oprotestantismo "evanglico" a esses desafios? Examinemos brevemente trs aspectos: a "piedade" evanglica, a tica social ea "defesa da f".

    a) O que caracteriza a piedade evanglica nas ltimas dcadas do sculo 19 "o movimento de santidade", que Marsden chamou de "a vida vitoriosa". Combinam-se aqui, comosalientvamos acima, a tradio wesleyana da santificao eperfeio crist e a tradio calvinista da luta permanente contra o pecado. Uma e outra, porm, coincidem em afmnar um"batismo do Esprito Santo" que permite ao crente libertar-sedo poder do pecado e viver uma vida crist "vitoriosa". "Serrepleto do Esprito", ser "totalmente consagrado" e expressessemelhantes constituem a linguagem simblica dessa piedade,tal como a expressa, por exemplo, o conhecido hino de Havergal":

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    o rosto evanglico 35Que minha vida inteira esteja consagrada a ti, Senhor, que minhas mos sejam guiadas pelo impulso de teu amor;que meus lbios possam dar testemunho de teu amor e euoferea meus bens somente a ti , Senhor;que meu tempo todo esteja dedicado a teu louvor e minha mentee seu poder sejam consagrados a tua honra;toma, Deus, minha vontade e faze-a tua, nada mais;toma, sim, meu corao e nele ters teu trono.No mundo da tradio wesleyana, a insistncia na experincia da "segunda bno" - a plenitude da santificao originou divises frente ao que alguns consideravam um abandono da busca de santidade por par te das igrejas metodistas:nascem assim, alm do Exrcito da Salvao (Inglaterra, 1880),

    a Igreja de Deus (Anderson, ID, 1880), a Aliana Crist e Missionria (1887), a Igreja do Nazareno (1908) e a Igreja dos Peregrinos (Pilgrim Holiness Church, 1897). A importncia dessedesenvolvimento para nosso tema pode ser percebido na datada entrada (de 1897 a 1914) de todas essas igrejas na AmricaLatina. No mundo evanglico de tradio reformada, o movimento de santidade tem o mesmo vigor e nfase. Derivou,entretanto, numa maior preocupao doutrinal, como indicasua participao na formao do grupo das "Conferncias deKeswick" e das Prophecy Conferences, antecedentes imediatosdo fundamentalismo.

    b) David Moberg falou da "grande inverso" que aconteceno evangelicalismo norte-americano nas primeiras dcadas dosculo 20 no tocante preocupao social". Com efeito, dafrmula revivel and reiorm se passa alternativa "evangelizao ou reforma social". A inverso parece ocorrer em duasetapas: a primeira (de 1870 a 1900) significa uma retrao daesfera poltica como meio de reforma social, concentrando-se aao no mbito privado da caridade; na segunda, como dizMarsden, "toda preocupao social progressista, poltica ouprivada, toma-se suspeita para os revivalistas evanglicos e relegada a um lugar mnmo'". Os historiadores costumamsugerir trs causas: 1) O triunfo do modelo metodista de santidade relega a tradio reformada muito ligada nos EstadosUnidos, desde o incio, "construo do reino de Deus" naAmrica. Por conseguinte, a santidade fica desconectada dahistria para transformar-se numa experincia subjetiva, individual - ou, quando muito, da pequena "comunidade" -, quereduz o servio a uma ao caritativa; 2) a experincia carismtica de viver numa espcie de "nova dspensao", numa

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    36 Rostos do protestantismo latino-americano"era do Esprito Santo", leva a desprender-se da "histria dasalvao", a relegar o Antigo 'Iestamento e, por conseguinte, apreocupao reformada com uma lei divina que deve ser instaurada tambm na sociedade: o predomnio crescente do prmilenarismo e o subseqente dispensacionalismo introduzidopor Nelson Darby e difundido amplamente no mundo evanglico consagram essa separao ao "dar por terminado" o perodo do "governo humano" e o perodo da lei e ao ver toda ahistria da salvao somente como etapas necessrias para aera presente, cujo nico objeto a pregao do evangelho; 3) aapario, a partir da dcada de 1910, do "evangelho social",que percebido como uma forma do modernismo ou liberalismo teolgico e produz uma rejeio nos setores evanglicos,pois estes o vem como a negao de doutrinas fundamentaisda f. C. S. Scofield, um dos mais bem-sucedidos promotoresdo dspensaconalsmo, dir sem rodeios que a nica respostade Cristo escravido, intemperana, prostituio, distribuio desigual das riquezas e opresso dos fracos pregara regenerao mediante o Esprito Santo'",

    c) O que chamamos de "fundarnentalsrno" um fenmeno complexo, e seria ridculo tentar abord-lo em poucas li-nhas. No obstante, imprescindvel dedicar-lhe alguma ateno aqui, com uma advertncia: referimo-nos s ao fundamentalismo como fenmeno do mundo evanglico no final do sc.19 e no incio do sc. 2011. A primeira observao histrica deimportnca que ser bom distinguir uma primeira etapa quese estende mais ou menos at o comeo da Grande Guerra e,posteriormente, uma segunda, muito mais espetacular. Caracterizamos estas etapas como "a defesa da f" e "a defesa daAmrica crist", respectivamente.

    1) O fundamentalismo aparece como a reao de uma fque se sente ameaada pelo avano do secularismo e de umacincia que nega a realidade do sobrenatural. Como responder? Basicamente se delineiam duas respostas, que refletemduas concepes filosficas. Uns distinguem o nvel da cinciado nvel da religio: o primeiro o mbito dos fatos objetivos; osegundo, o da experincia subjetiva, do sentimento: poderamos dizer que temos ai a expresso da herana romntica nacultura norte-americana. Outros, por sua vez, conhecem umnico critrio de verdade: o dos fatos e dados concretos darealidade, que qualquer pessoa pode observar diretamente: esta a tradio do "realismo do senso comum" de origem escocesa que predominou no pensamento norte-amercano '".

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    o rosto evanglico 37Para esta ltima perspectiva indispensvel ter uma fonteinfalvel, especfica e irrefutvel para afirmar os fatos do mundo sobrenatural com a mesma fora com que o "senso comum"afirma os do natural. Para isso se recorre Escri tura. Porconseguinte, quando as descobertas da cincia parecem entrarem conflito com as afirmaes da Escritura, trata-se de umahiptese cientifIca equivocada ou de uma interpretao erradada Escritura. As distintas formas do "concordsmo'' ou da "harmonizao" partem desta premissa. Alm disso, o nico critrio que pode ser aplicado leitura da Bblia que os textosdevem ser lidos e interpretados "literalmente" (a menos queeles mesmos indiquem outra coisa). "Literalmente", claro,significa neste caso de forma positivista, como dados objetivos

    comprovveis pela observao e razo (portanto, num sentidomuito diferente daquele que esse termo tem em seu uso medieval ou no uso que dele faz Lutero). Inspirao plena e verbal,interpretao literal e inerrncia so as muralhas indispensveis para proteger a verdade da f. Eis aqui o fundamentalismo.Uma posio desse teor parece exigir total intransigncia:no pode haver espaos indefInidos entre a verdade e o erro.No movimento de avivamento e santidade nem todos estavamdispostos a essa ntransgnca. Moody, por exemplo, sustentava: "Mantenhamos a verdade, mas, por todos os modos, mantenhamo-la com amor e no com um porrete (c1ub) teolgico."13Na tradio reformada, entretanto, tais concesses parecemindiferentismo: "-nos dito constantemente que no ataquemos, mas que simplesmente ensinemos a verdade. Este omtodo do covarde e conciliador, no foi o mtodo de Cristo",responde 'Iorrey, um dos colaboradores de Moody. Essas duasposies sempre existiram dentro do fundamentalismo, mas evidente que a segunda teve maior ascendncia e definiu athoje o perfil do fundamentalismo.Na combinao de literalismo e intransigncia se insere otema do pr-milenarismo. Como tal, a interpretao pr-mlenarista sempre existiu na discusso escatolgica. Ela salientaque vivemos antes do milnio, o qual inaugurar um tempodiferente, que precede o estabelecimento do reino de Deus (comdiversos esquemas na sucesso e natureza dos acontecimentos vindouros). A opinio dominante no protestantismo emgeral e no norte-americano em particular havia sido majoritariamente ps-mlenarsta. Segundo ela, as promessas apocalpticas do milnio, o derramamento do Esprito, a luta contrao anticristo (freqentemente identifIcado com o papa ou os

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    38 Rostos do protestantismo latino-americanochefes de outras religies) teriam lugar neste tempo e levariama uma era de ouro: o milnio de Apocalipse 20, a ltima pocada histria presente, em que o Esprito seria derramado e oevangelho seria difundido por todo o mundo, e em cujo finalaconteceria o retomo de Cristo e a histria chegaria a seu fim.Na disposio otimista e secularizante da segunda metade dosculo 19, a viso ps-mlenarsta se "naturaliza" cadavez mais:o caminho do Reino passa a ser identificado com o progressohumano e os avanos da cultura norte-americana so vistoscomo sinais de um futuro em que a conjuno da religio e doprogresso da civilizao criar uma nova era de paz, justia eprosperidade.

    Essa "naturalizao" da escatologia, da qual se acusava (eainda se acusa) o evangelho social, no poderia deixar de repugnar f evanglica. Por um lado, esta a via como umanegao da transcendncia (dr-se-a, em termos da poca, do"sobrenatural"). Por outro, transformava a revelao bblicanuma "fantasia potica" sobre a histria que o ser humano vaiforjando, e tal coisa totalmente inaceitvel na concepo deverdade do "realismo do senso comum". O pr-milenarismomostra-se, pois, como uma reao contracultural, que tira dacultura secular toda pretenso escatolgica: esta histria, estasociedade e estas igrejas, na medida em que algumas delas seadaptam ao mundo, so um campo de batalha onde o verdadeiro evangelho tem de ser pregado e os homens e as mulheres, chamados a reunir-se na congregao escatolgica queespera o "arrebatamento", o comeo do milnio ou "a apariodo Senhor".

    O escocs Nelson Darby d a essa viso uma hermenutica bblica baseada na interpretao dos livros de Daniel e Apocalipse, que conhecemos como "dspensaconalsrno'' e que temuma enorme influncia em todo o mundo evanglico. Seu discpulo norte-americano C. S. Scofield publica uma traduo daBblia cujas notas aplicam sistematicamente essa interpretao totalidade da Escritura e que teve uma enorme difuso.Enquanto que na Gr-Bretanha Darbyiniciou uma denominao independente - as igrejas dos Irmos de Plymouth ouIrmos livres e as que delas surgiram -, nos Estados Unidoso movimento vive no interior das igrejas exstentes'

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    o rosto evanglico 39Em seu livro Fundamentalism, o ingls James Barr o expressaassim:

    Para os fundamentalistas a Bblia mais do que a fonte daverdade para sua religio (...) Faz parte da prpria religio. narealidade praticamente o centro da religio (...) Namentalidadefundamentalsta, a Bblia funciona como uma espcie de correlato de Cristo (...) Cristo o Senhor e Salvador pessoal (00') aBblia uma entidade verbalizada, "nscrturada" ('00) Na medidaem que Cristo o Senhor e Salvador divino. a Bblia o smboloreligioso supremo, tangvel, articulado, que se pode possuir e acessvel ao ser humano na terra. 15Cristo est, claro, ontologicamente acima da Escritura,

    mas epstemologcamente est subordinado a ela. Por isso essencial ter a Bblia, honr-la, dar-lhe o lugar de honra nocorao e na mente, mas tambm na mesa da copa ou sobre ocriado-mudo, ao lado da cama. De alguma maneira, ela ocone e o sacramento da f.2) 1lvez no seja to estranho que esse movimento contracultural se transforme, especialmente a partir do incio daGrande Guerra. na defesa de uma cultura: a defesa da Amrica

    crist. Afinal de contas, todo universo simblico de ampla difuso desempenha um papel cultural na sociedade. No interessa agora investigar a gestao desse fenmeno, mas tambm no podemos passar por cima dele, porque desempenhaum papel significativo no movimento missionrio. Dentro dofundamentalismo evanglico coexistiam diferentes atitudes para com a cultura e a sociedade. Entretanto, predominavam asque poderamos chamar de mediadoras, representadas por umareafmnao do que se considera a "tradio evanglica norteamericana" ("the old time religion", que deveria ser defendidacontra os avanos do secularismo, do modernismo e da imoralidade), representada, por exemplo, pelo tristemente famosoWilliam J. Bryan (do "julgamento do macaco", que conhecemosna verso teatral de "Herdars o vento") e pela linha maisreformada de uma transformao da cultura sobre a base doensino cristo (p. ex., do professor J. Gresham Machen, dePrnceton).

    A Grande Guerra (1914-18) radicalizar as poses, Quase at a entrada dos Estados Unidos no conflito, os setoresevanglicos fundamentalistas se mostraram reticentes em relao a essa guerra: o mundo caminha para seu fm, as guerras nada podem melhorar. A partir de 1917 opera-se uma mu-

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    40 Rostos do protestantismo latino-americanodana. Revisam-se as interpretaes milenaristas e ao binmioclassicamente representativo do anticristo (o papa e os muulmanos) se acrescenta agora Bismarck. Participar dessa guerratorna-se um dever cristo:

    O Kaiser jogou impudicamente a luva: a Alemanha infiel [berodo liberalismo teolgico] contra o mundo crente - a Kulturcontra o cristianismo -, o evangelho do dio contra o evangelhodo amor. Assim Satans se personifica: "Eu e Deus" (...) Jamaisos cruzados levantaram o machado de combate numa guerramais santa contra os sarracenos do que a que hoje nossos soldados da cruz travam hoje contra o alemo.!"Trs elementos completam o quadro desse fundamentalismo no fmal da guerra: o acrscimo do "comunismo bolchevique" trindade do anticristo, substituindo o Kaiser agora derrotado; a batalha para desterrar da cultura norte-americanatudo que pudesse ameaar a pura f evanglica (dai o julgamento de Scopes contra o ensino da teoria da evoluo nasescolas'? e outras cruzadas semelhantes); e a transferncia dafrente de combate para o sul agrrio que legitima assim emtermos religiosos seu conflito com o norte industrial.Estamos, claro, tomando traos gerais: as coisas sempre

    so mais matizadas e diversificadas do que estes breves pargrafos sugerem. Porm o quadro me parece fundamentalmentecorreto como pano de fundo para entender aspectos de nossoprotestantismo latno-amercano". Como tudo isso afetou asigrejas? Os historiadores costumam falar de trs variantes: a)Nas denominaes mais tradicionais - episcopais, presbiterianos, metodistas, batistas - formam-se setores internos quelevam a batalha para o seio da denominao, com maior xitoem umas do que em outras, mas sem conseguir "expulsar"sistematicamente seus adversrios nem assumir o controle nacional da denominao (sem dvida, as batalhas mais durasocorreram na Conveno Batista do Sul-? e nas duas igrejaspresbiterianas maiores); b) Em algumas denominaes, particularmente das igrejas de santidade e dos nascentes movimentos pentecostais, sua tradio pietista e evanglica foi comoque moldada novamente pela influncia fundamentalsta: e c)alguns dos fundamentalistas mais extremos, particularmenteos dispensacionalistas para os quais a "separao" era umartigo de f, formaram suas prprias denomnaes-v.

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    o rosto evanglico2. Crescimento e diversificao

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    1) "Atomizao dos protestantismos". Jean-Pierre Bastianchama de "atomzao dos protestantismos" o perodo que elesitua entre 1949 e 1959. Essa caracterizao parece-me inadequada, porque pressupe uma identidade protestante prviadefinida pela "opo liberal". O erro provm, creio eu, do fatode julgar a "identidade" com base nas opes dos lideres missionrios e locais representados nas conferncias, e de noprestar suficiente ateno ao desenvolvimento da piedade evanglica como substrato real do protestantismo missionrio latino-americano. lmbm no melhor a interpretao de Hans.Jrgen Prien, que tende a englobar a maioria das missesnorte-americanas sob a qualificao de pietistas, conservadoras e fundamentalistas, sem esclarecer o que entende especificamente sob esses termos. S Pablo Deiros se mostra maismatizado e cuidadoso na anlise do penodo que chama de"desenvolvimento" e situa entre 1930 e 196()21. 1mbm eleadota uma classificao do protestantismo latino-americanoem trs grupos principais: libertacionistas, conservadores efundamentalstas'. Na apresentao>, contudo, torna-se evidente que trata-se, antes, de tendncias presentes no mundoevanglico como um todo e que se acentuam mais caracteristicamente em algumas ou outras igrejas do que de uma tpologa que permita distinguir entre estas.

    Creio que para abordar devidamente o tema necessriopartir do perodo anterior. E aqui minha tese que at 1916 oprotestantismo missionrio latino-americano basicamente "evanglico" segundo o modelo do evangelicalismo norte-americano do "segundo despertar": individualista, cristolgico-soteriolgico numa perspectiva basicamente subjetiva, com nfasena santificao.Ele tem um interesse social genuno, que se expressa nacaridade e na ajuda mtua, mas que carece de perspectivaestrutural e poltica, exceto no tocante defesa de sua liberdade e luta contra as discriminaes; portanto, tende a serpoliticamente democrtico e liberal,mas sem sustentar tal opo em sua f e sem fazer dela parte integrante de sua piedade.

    A partir do ps-guerra (1918) comeam a ocorrer mudanas dentro desse padro fundamental. A anlise dessas modificaes crucial para entender o fenmeno que Bast ian qualifica como "atomzao". Porm tal anlise s ser possvel namedida em que contarmos com uma pesquisa histrica que

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    42 Rostos do protestantismo latino-americanotrabalhe seriamente com a histria das mentalidades, as histrias de vida, a investigao do cotidiano: em suma, que resgate a vida objetiva e subjetiva das comunidades evanglicas eno s seus aspectos formais e insti tucionais. Ainda assim,atrevo-me a sugerir algumas pistas e hipteses:1)A partir do comeo do sculo, porm mais ainda depoisda Grande Guerra e aceleradamente a partir de 1930, engrossam o protestantismo evanglico uma srie de misses querepresentam o movimento de santidade e as linhas milenaristas e fundamentalistas da Gr-Bretanha e dos Estados Uni-dos. Damboriena, sempre obcecado com esse tema, fala de1.707 missionrios estrangeiros em 1916 e 6.361 em 195724 Depois da II Guerra Mundial ocorre uma nova onda de entradade missionrios. Mas tambm deve-se contabilizar o fato deque as prprias igrejas "mes", "clssicas" (metodistas, presbiterianos, batistas) so fortemente influenciadas por esses movimentos. 1bdo o protestantismo evanglico absorve em amplamedida as caractersticas dessa "nova onda" evanglica: umdualismo e espiritualismo mais acentuados, uma tica de se-parao do mundo acompanhada por rigidez legalista25 .

    2) A "mentalidade" de classe vai se definindo no protestantismo evanglico em direo aos nascentes estratos mdios. neste contexto que devemos situar, em minha opinio, a relao mais profunda entre protestantismo e liberalismo burgus.O aporte do protestantismo evanglico (e talvez tambm do de"transplante") para o desenvolvimento do liberalismo burgusna Amrica Latina no consiste tanto na influncia poltica oucomercial norte-americana, nem sequer na transferncia deuma ideologia como tal, e sim numa srie de atitudes e numhorizonte de significao que so gerados a partir de sua pr-pria converso e que coincidem com as aspiraes de ascensode certos setores da sociedadee com o etos do liberalismo burgus.Aqui, as categorias sociolgicas de MaxWeber ou a anliseestrutural de Durkheim so mais teis para entender essefenmenos do que a teoria poltica ou os determinismos econmicos. Em outro trabalho tentei salientar alguns dados paraesse tipo de anlise, que no repetirei agora-", Trata-se, emsntese, de destacar como o chamado converso como deciso pessoal, total e transformadora, que est no prprio centroda evangelizao, significa a recriao de uma identidade, aconstituio de um sujeito que se sente capaz de decidir por simesmo, responsvel e livre - "voc tem de decidir", ''voc est

  • 8/2/2019 8175rostos Do Protestantismo Latino Americano

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    o rosto evanglico 43s diante do Salvador" -, com uma nova conscincia de simesmo que o anima a tomar iniciativas. Em relao ao pentecostalismo, Doug Petersen falou neste sentido de uma "esser-tiveness", uma certa "segurana pessoal" como correlato daexperincia de converso e dos novos papis que ele assumena comunidade. Se acrescentamos a isso uma srie de valoresticos, temos o quadro de sujeitos eminentemente preparadospara o modelo lberal-modernzador.