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    Habitao Social, Habitao de Mercadoa confluncia entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro

    T E S E D E D O U T O R A D O

    L c i a Z a n i n S h i m b o

    Orientadora: Profa. Dra. Cibele Saliba RizekPrograma de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo

    Escola de Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo

    Junho/2010

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    LCIA ZANIN SHIMBO

    Habitao Social, Habitao de Mercadoa confluncia entre Estado, empresas construtoras e capital

    financeiro

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Arquitetura e Urbanismoda Escola de Engenharia de So Carlos,da Universidade de So Paulo, comoparte dos requisitos para a obteno dottulo de Doutor em Arquitetura eUrbanismo.

    Orientadora: Profa. Dra. Cibele SalibaRizek.

    So Carlos/SP2010

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    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO,PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Ficha catalogrfica preparada pela Seo de Tratamentoda Informao do Servio de Biblioteca - EESC/USP

    Shimbo, Lcia ZaninS556h Habitao social, habitao de mercado: a confluncia

    entre estado, empresas construtoras e capital financeiro; orientador Cibele Saliba Rizek. -- So Carlos, 2010.

    Tese (Doutorado-Programa de Ps-Graduao emArquitetura e Urbanismo e rea de Concentrao em Teoriae Histria da Arquitetura e do Urbanismo) -- Escola deEngenharia de So Carlos da Universidade de So Paulo,2010.

    1. Arquitetura. 2. Poltica habitacional. 3. Empresaconstrutora. 4. Mercado imobilirio. 5. Capitalfinanceiro. 6. Canteiro de obra. I. Ttulo.

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    FOI.IIA 1)1. .11 liiA.MKM'O

    Candidato(a): Arquiteto e Urbanista I.UCIA ZAMN SHIMBO.

    I csc delendida c juluada cm ll)/0fv2(H() perante a (omissao Juluadorn:

    s C -

    I'rol. Assixiada CIBI-LL SAMBA RIZFK - (Orientadora)

    (hscola dc liniicnlutria do Sao Carlos I'SPi

    /

    ./_u' _: r_Prof1. Dr. RAQUFI. ROLN'IK

    (lacuklado do Arquilcliira o l."rbanisnio'l :SP)

    ^

    \

    Prop. I'iUilar ANA FAN! ALtSSANDRI CARLOS

    (Paculdadc dc Pilosofia. Lclras c Cicncias I lumanas'L'SP)

    \

    Prof. Dr. PAULO CESAR XAVILR PLRLIRA

    (Paculdadc dc Arquiiciura c ITbanismo'L'SP)

    /

    -, \ {

    Pro!'. Dc JOAO MARCOS DE ALMEIDA LOPES (I

    -scola dc Pnucnharia do Sao Carlos I SP) N

    *i

    }c\k'K^ ' 0-

    A lUj.?j\

    *.-

    / /

    Prof. Titular RI.NATO III/. SOIiKAL ANELLI

    Coordcnador do Programa dc P6s-(iraduai;ao cm

    Arquitctura c Prbanismo

    /

    Prof Titular GKRALDO ROBERTO MARTINS DA * OSTA

    Prcsidcntc da Comissab da Pbs-Graduacao da KPSC

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    Para Iara e Lo

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    AGRADECIMENTOS

    Foram muitas mudanas nestes quatro anos de desenvolvimento do doutorado.

    Em todas elas, sejam de ordem pessoal, emprica ou analtica, a Profa. Cibele

    Saliba Rizek sempre me orientou e apoiou. Sua trajetria me motivava a seguir em

    frente. Eu a agradeo profundamente, sobretudo, pela sua pacincia frente s

    minhas inquietaes e ansiedades.

    Agradeo ao Prof. Joo Marcos de Almeida Lopes que me incentivou desde a

    ideia preliminar do projeto de pesquisa. E ao Prof. Paulo Csar Xavier Pereira,

    meu orientador de iniciao cientfica, que revisou a primeira verso do projeto.

    Ambos participaram do Exame de Qualificao e da Comisso Julgadora e

    contriburam bastante para esta verso final da tese.

    Profa. Ana Fani Alessandri Carlos por lanar uma importante questo ao meu

    trabalho j na primeira vez que nos vimos e por participar da banca final, trazendo as

    pertinentes crticas da geografia.

    Profa. Raquel Rolnik pelo seu testemunho, prprio de quem vivencia a poltica

    habitacional h muito tempo, feito durante a argio da banca, contribuindo para os

    argumentos desta tese. Profa. Akemi Ino, minha orientadora de mestrado, pelo apoio e carinho de

    sempre.

    Fapesp que concedeu o apoio financeiro, fundamental para o desenvolvimento

    da pesquisa. Graas a esse apoio, pude realizar o estgio de doutorado no exterior.

    Na Frana, trs professores me concederam ateno especial e deixo aqui meus

    agradecimentos. Ao meu supervisor de estgio na Universit Paris 8 - Saint Denis,

    Prof. Christophe Brochier, que me mostrou outros modos de fazer pesquisa e quecomentou atentamente a primeira verso do memorial de qualificao. Ao Prof.

    Daniel Cefa pelo apoio necessrio estadia na Frana e participao nos

    seminrios da cole de Hautes tudes en Sciences Sociales. Profa. Elisabeth

    Campagnac pelo dilogo sobre as questes intrnsecas ao estudo da construo

    civil.

    Ao apoio institucional dado pelo Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e

    Urbanismo da Escola de Engenharia de So Carlos (EESC-USP), em particular,

    ao seu secretrio, Marcelo Celestini. Aos professores responsveis pelas disciplinasque realizei durante o doutorado: Prof. Renato Anelli; Profa. Cibele Rizek; Prof.

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    Miguel Buzzar; Profa. Sarah Feldman, Prof. Carlos Martins e Prof. Adrin

    Gorelik; Prof. Joo Marcos de Almeida Lopes.

    Ao dilogo com a Profa. Carolina Pozzi de Castro que me deu segurana para

    continuar com minhas questes. Ao encontro com a Profa. Fernanda Furtado em

    Recife - e que possamos prosseguir a interlocuo. explicao sobre os dados

    econmicos dada pelo Prof. Carlos Alberto Bello. Aos dados enviados pelo Prof.

    Eduardo Marques e Julia Andrade. Aos contatos fornecidos pelo Prof. Jos Carlos

    Paliari, fundamentais para me aproximar dos engenheiros de obras.

    s reflexes do grupo de estudos dos orientandos da Profa. Cibele Rizek. Junto

    com Olvia, Roberta e Sandro pudemos discutir nossos projetos. interlocuo

    acadmica promovida pelo Laboratrio de Estudos do Ambiente Urbano

    Contemporneo (LEAUC - EESC/USP), sobretudo no momento da realizao dasua primeira Jornada Cientfica, quando as Profas. Ana Fani e Vera Pallamin

    comentaram meu trabalho e colocaram novas perguntas a ele. Bia Tone, Bia

    Rufino, Letcia e Luciana, colegas da FAU, pelas conversas sobre nossas pesquisas

    sobre o tal do mercado imobilirio.

    Aos engenheiros, arquitetos, mestre-de-obras e almoxarife que me abriram as

    portas fechadas da ECP; sem eles, eu no poderia entrar no canteiro, tampouco

    num escritrio de arquitetura para desenvolver minha pesquisa.

    amizade e parceria no trabalho: Du, Dani, Thas, Lu, Mag, Renata, Lis,Fernando e Tati. s amigas de infncia, Maju e Lud. Aos momentos de

    descontrao propiciados por Paulo Henrique e aos de introspeco nas aulas da

    Lila. Aos amigos brasileiros na Frana, Ronaldo, Artionka, Vnia e Helena. Aos

    amigos franceses, Max, Sarah, Alex, Laurent e David. Aos amigos mexicanos,

    Gloria, Ernesto e Constanza. Aos meus professores brasileiros de francs, Cristina e

    Cholo, e ao meu professor de francs-francs, Ms. Yves, funcionrio aposentado do

    BTP parisiense. Ao amigo Marcel, pela reviso do abstract.

    O meu caminho acadmico e profissional no seria possvel sem o apoio de meuspais, Maria e Shimbo. Eles me ensinaram a gostar de escola desde criana.

    minha irm, Jlia, que sempre esteve por perto por mais que morasse longe, e ao

    seu companheiro, Jonas. Regina, Toninho, Renata, Luciana e Paulo, pela

    acolhida familiar.

    Ao Gabriel, por nossa histria ao longo de doze anos. Sem ele, meus projetos no

    poderiam ser melhorados, sequer delineados. Aos nossos filhos, Iara e Lo, a

    quem dedico esta tese. Aos trs, simplesmente por estarmos no mundo, juntos.

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    Dada a reduo de liquidez verificada a partir no ltimo trimestre de2008, mostrou-se ser correta a estratgia de basear nosso crescimento emfuno de nossas disponibilidades de caixa. Embora o atual cenriomostre crescimento na oferta de crdito por meio do Programa MinhaCasa, Minha Vida e da reduo das taxas de juros, pretendemos reduzir,ainda mais, o emprego de capital prprio em nossas atividades deincorporao, repassando aos bancos e ao pblico o papel de financiadorde nossas necessidades de capital de giro e dos nossos clientes.

    (Prospecto de divulgao da segunda oferta de aes da Empresa ConstrutoraPesquisada na Bovespa, 2009)

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    RESUMO

    SHIMBO, Lcia Zanin. Habitao Social, Habitao de Mercado: a confluncia entreEstado, empresas construtoras e capital financeiro. Tese (Doutorado emArquitetura e Urbanismo) - Escola de Engenharia de So Carlos,Universidade de So Paulo, So Carlos, 2010.

    Esta tese se insere no debate sobre as dinmicas da produo e da poltica de

    habitao social no Brasil. Mais especificamente, trata da confluncia recente entre

    Estado, mercado imobilirio e capital financeiro, que acabou por ampliar a

    demanda por moradia atendida por grandes empresas construtoras e

    incorporadoras e, ao mesmo tempo, por contemplar uma determinada fatia do

    pblico-alvo da poltica habitacional. Essa poltica aqui compreendida noapenas pelo desenho institucional dos programas habitacionais, mas numa

    perspectiva analtica que pe em relevo o olhar e a atuao do mercadoimobilirio sobre a prpria poltica. Seu objetivo duplo e requisitou abordagens

    metodolgicas especficas para cada um deles. De um lado, busco compreender osprocessos que levaram ao crescimento exponencial de um tipo especfico de

    produo habitacional, promovida por grandes empresas construtoras e

    incorporadoras que abriram seu capital, voltada para imveis residenciais com

    valores at duzentos mil reais e para uma faixa da populao com renda familiar

    de at dez salrios mnimos. Trata-se do segmento econmico, assimconsiderado pelo mercado, ou da habitao social de mercado, como denomino

    nesta tese. Recorri a uma pesquisa documental e quantitativa a fim de analisar

    tanto os mecanismos regulatrios e institucionais promovidos pelo Estado, desde

    meados da dcada de 1990, quanto a aproximao de empresas do setorimobilirio e da construo civil ao mercado de capitais, a partir dos anos 2000. De

    outro lado, procuro compreender como se operacionaliza e se configura esse tipo de

    produo a partir de uma pesquisa de carter etnogrfico numa empresa, quechamei de Empresa Construtora Pesquisada (ECP), tomada como objeto

    heurstico da confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital financeiro.

    Entre 2006 e 2008, essa empresa foi capaz de octuplicar a produo de unidades

    habitacionais padronizadas, multiplicando por treze o valor de seu lucro lquido.

    Para tanto, sua produo apresenta um diferencial que busquei apreender desde o

    trabalho no canteiro de obras at suas relaes com o Estado e capital financeiro,passando pelo papel da arquitetura e da tecnologia.

    Palavras chave: poltica habitacional, empresa construtora, mercado imobilirio,

    capital financeiro, arquitetura, canteiro de obras.

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    ABSTRACT

    SHIMBO, Lcia Zanin. Social Housing, Market Housing: the confluence of State,construction companies and financial capital. Tese (Doutorado) - Escolade Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo, So Carlos,2010.

    This thesis contributes to the debate on the dynamics of production and of social

    housing policy in Brazil. More specifically, it analyses the recent confluence of

    State, real estate and finance capital that ultimately increased the demand for

    housing covered by large construction companies and developers and that, at the

    same time, met a particular fraction of the target public of housing policy. This

    policy is here understood not only by the institutional structure of housingprograms, but within an analytical perspective that emphasizes the point of view

    and performance of the property market on the policy itself. Its goal is twofoldand required specific methodological approaches to each one. On the first hand, I

    try to understand the processes that led to the exponential growth of a specific

    type of housing production, promoted by major construction companies and

    developers that have opened their capital, focused on residential properties with

    values up to two hundred thousand reais and for a population range with monthly

    income of up to ten minimum wages. This is the low-income segment, as

    considered by the market, or the social market housing as I call in this thesis. Iused a quantitative research to examine the regulatory and institutional

    mechanisms promoted by the State since the mid-1990s, and also the attempts toclose the gap between the construction companies and developers and capital

    market from the 2000s. On the other hand, I try to understand how this type of

    production operates from an ethnographic study of a company, that I have called

    Empresa Construtora Pesquisada (ECP), taken as a heuristic object of the

    confluence between the State, real estate and financial capital. Between 2006 and

    2008, this company was able to increase eight times the standardized productionof housing units and thirteen times the value of its profits. Therefore, its

    production has a differential that I sought to apprehend from the working on the

    construction site to its relations with the State and finance capital, including therole of architecture and technology.

    Keywords: housing policy, construction company, real estate, financial capital,

    architecture.

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    LISTAS

    Lista de Quadros

    Quadro 1: Programas habitacionais geridos pelo Ministrio das Cidades (2008). 79

    Quadro 2: Caractersticas dos programas habitacionais que contemplam as modalidades

    produo e aquisio de unidades habitacionais novas. 80

    Quadro 3: Nmero total de empresas e pessoal ocupado na construo civil (1980-2006). 109

    Quadro 4: Empresas listadas no segmento construo civil da Bovespa (set/2009). 121

    Quadro 5: Vinte maiores incorporadoras e construtoras atuantes na RMSP (2008). 127

    Quadro 6: Lanamentos residenciais e de escritrios na RMSP pelas incorporadoras de capital

    aberto e subsidirias (2008) 128

    Quadro 7: Lanamentos residenciais e de escritrios na RMSP pelas construtoras de capital aberto

    e subsidirias (2008) 128

    Quadro 8: Origem e caractersticas das incorporadoras e construtoras de capital aberto que atuam

    no segmento econmico. 139

    Quadro 9: Produo das empresas construtoras de capital aberto que atuam no segmento

    econmico. 146

    Quadro 10: Valores de VGV, de Vendas Contratadas e lucro lquido da ECP (2004-2009). 159

    Quadro 11: Receitas, despesas, custos e lucro da ECP antes das alteraes da Lei no 11.638/07

    (2004-2007). 166

    Quadro 12: Receitas, despesas, custos e lucro da ECP depois das alteraes da Lei no 11.638/07

    (2007-2008) 167

    Quadro 13: Nmero de empregados da ECP (2004 e 2008). 176

    Quadro 14: Caractersticas do estoque de terrenos da ECP (2006 a 2009). 182

    Quadro 15: Opes de financiamento para um empreendimento da ECP (2008). 189

    Quadro 16: Endividamento da ECP - em R$ mil (2006-2009). 196

    Quadro 17: Descrio das trs linhas de produtos da ECP (fotos, implantao e plantas). 219

    Quadro 18: Nmero de unidades vendidas por linha de produtos da ECP (2004 a 2008). 224

    Quadro 19: Nmero de unidades vendidas por faixa de preo da ECP (2004 a 2008). 224

    Quadro 20: Nmero de unidades vendidas por linha de produtos da ECP (1 sem/2008 e 1

    sem/2009). 225

    Quadro 21: Nmero de unidades vendidas por faixa de preo da ECP (1 sem/2008 e 1

    sem/2009). 225

    Quadro 22: ndices de produo e procedimentos de planejamento e controle adotados no

    canteiro da ECP. 242

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    Lista de Figuras

    Figura 1: Perspectivas ilustrativas e fotos de empreendimentos do segmento econmico. 144

    Figura 2: Organograma da ECP elaborado pela autora. 180Figura 3: Ilustraes das reas externas de empreendimentos da ECP. 218

    Figura 4: Modalidades de contratao de trabalhadores no canteiro da ECP. 308

    Figura 5: Foto de empreendimento localizado em Belo Horizonte (MG) e concepo artstica de

    empreendimento em So Jos do Rio Preto (SP). 345

    Lista de Grficos

    Grfico 1: Valores contratados FGTS (2000-2008), por programas. 84

    Grfico 2: Modalidades de financiamento das vendas contratadas pela ECP. 86Grfico 3: Valores contratados pelo SBPE-FGTS (2002-2008), em R$ bilhes. 90

    Grfico 4: Percentual de empresas de construo, de acordo com faixa de pessoal ocupado. 110

    Grfico 5: Percentual de pessoal ocupado nas empresas de construo. 110

    Grfico 6: Nmero de unidades residenciais lanadas na RMSP (1985-2008). 113

    Grfico 7: Valor lanado e tamanho mdio dos lanamentos na RMSP (1985-2008). 114

    Grfico 8: Lucro lquido de 14 empresas de capital aberto no 1 semestre/2007. (em R$ milhes)

    125

    Grfico 9: Lucro lquido de 16 empresas de capital aberto no 1 semestre/2008. (em R$ milhes)

    125

    Grfico 10: Lanamentos e vendas das empresas construtoras e incorporadoras de capital aberto

    no segmento econmico (em nmero de unidades). 146

    Grfico 11: Lanamentos e vendas das empresas construtoras e incorporadoras de capital aberto

    no segmento econmico (em R$ mil). 147

    Grfico 12: Nmero de unidades lanadas e tamanho mdio dos empreendimentos da ECP (2004-

    2008). 160

    Grfico 13: VGV da ECP - em R$ Mil (2004-2009). 161

    Grfico 14: Vendas Contratadas da ECP - em R$ Mil (2004-2009). 162

    Grfico 15: VGV versus Vendas Contratadas da ECP (2004-2009). 163

    Grfico 16: Lucro lquido da ECP - em R$ mil (2004-2008). 163

    Grfico 17: Demonstraes financeiras da ECP (2004-2008). 169

    Grfico 18: Custo dos imveis em relao ao total de sadas financeiras da ECP (2005). 239

    Lista de siglas e abreviaes

    BNH: Banco Nacional de Habitao

    BOVESPA: Bolsa de Valores de So Paulo

    CBIC: Cmara Brasileira da Indstria da Construo

    CEF: Caixa Econmica Federal

    CNPJ: Cadastro Nacional da Pessoa Jurdica

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    COFINS: Contribuio para Financiamento da Seguridade Social

    COHAB: Companhia Habitacional

    CPMF: Contribuio Provisria sobre Movimentao ou Transmisso de Valores e de Crditos e

    Direitos de Natureza Financeira

    CRI: Certificados de Recebveis Imobilirios

    CUB: Custo da Construo Residencial

    CVM: Comisso de Valores Mobilirios

    DIEESE: Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos

    EBITDA: Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization

    ECP: Empresa Construtora Pesquisada

    EMBRAESP: Empresa Brasileira de Estudos do Patrimnio

    FAF: Fundos de Aplicao FinanceiraFAR: Fundo de Arrendamento Residencial

    FAS: Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social

    FCP: Fundao da Casa Popular

    FDS: Fundo de Desenvolvimento Social

    FGTS: Fundo de Garantia do Tempo de Servio

    FGV: Fundao Getlio Vargas

    FHC: Fernando Henrique Cardoso

    FII: Fundo de Investimentos Imobilirios

    FJP: Fundao Joo Pinheiro

    FNHIS: Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social

    IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IGP-M: ndice Geral de Preos do Mercado

    INCC: ndice Nacional de Custos da Construo

    IPI: Imposto sobre Produtos Industrializados

    IPO: Initial Public Offering

    MCMV: Pacote Habitacional Minha Casa, Minha Vida

    OGU: Oramento Geral da Unio

    ONG: organizao no-governamentalOPA: Oferta Pblica de Aes

    OTPF: Organizao do Trabalho pela Prescrio Fluida

    PAC: Programa de Acelerao do Crescimento

    PAIC: Pesquisa Anual da Indstria da Construo

    PAR: Programa de Arrendamento Residencial

    PBQP-H: Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade do Habitat

    PIS: Programa de Integrao Social

    PNAD: Pesquisa Nacional por Amostras de Domiclio

    PNDU: Poltica Nacional de Desenvolvimento Urbano

    PNH: Poltica Nacional de Habitao

    PSH: Programa de Subsdio Habitao de Interesse Social

    PT: Partido dos TrabalhadoresRAIS: Relao Anual de Informaes Sociais

    RMSP: Regio Metropolitana de So Paulo

    SBPE: Sistema Brasileiro de Poupana e Emprstimo

    SFH: Sistema Financeiro da Habitao

    SFI: Sistema Financeiro Imobilirio

    SINAPI: Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e ndices da Construo Civil

    SM: Salrios Mnimos

    SNHIS: Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social

    SPE: Sociedade de Propsito Especfico

    TR: Taxa Referencial

    UH: Unidade Habitacional

    VGV: Valor Geral de Vendas

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    SUMRIO

    PARTE I Introduo

    ApresentaoOrganizao do texto

    Construo de uma perspectiva de pesquisaAs dinmicas da pesquisa

    As dimenses da produo da habitao no Brasilcontemporneo

    Fronteira de indistino entre as formas pblica e privada deproduoUm nico agente para todo o ciclo de produo

    PARTE II Estado, empresas construtoras e capital financeiro napoltica habitacional

    CAPTULO 1 Estado, mercado e capital financeiro: histria recente de

    uma conflunciaEstado e mercado na poltica habitacional brasileira: 1985 a 2002

    Da dissoluo do BNH ao governo de Itamar Franco (1985 a1994)Os governos de FHC (1995-2002)

    Entre a proposta e a concretizao da poltica habitacional nosgovernos Lula: 2003 a 2010

    A proposta da Poltica Nacional de Habitao (PNH)Pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida

    As etapas de aproximao entre capital financeiro e mercado

    imobilirioA aproximao truncada entre capital financeiro e setorimobilirio no Brasil: primeira etapa (1993 a 2004)

    A aproximao efetiva entre capital financeiro e setorimobilirio no Brasil: segunda etapa (2005 a 2010)

    CAPTULO 2 Empresas construtoras e capital financeiro: constituio dahabitao social de mercado

    O crescimento das grandes empresas e as dinmicas imobiliriasO crescimento da grande empresa do setor da construo civilA dinmica imobiliria na RMSP: ciclos de produo entre 1985

    21

    23

    29

    33

    38

    46

    47

    52

    59

    61

    63

    64

    66

    73

    7592

    97

    99

    102

    105

    107

    108

    112

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    e 2008

    Concentrao de capital nas empresas financeirizadasPico de abertura de capital e composio acionriaCrescimento e distribuio do lucro lquido

    O quanto representou a dinmica imobiliria capitalizada naRMSP

    As empresas de capital aberto que atuam na habitao social demercado

    Configurao e caractersticas da produoNmeros da produo e banco de terrenos

    CAPTULO 3A Empresa Construtora Pesquisada (ECP): a conflunciaem operao

    O processo de abertura de capital

    Os nmeros do crescimento agressivoAumento dos lanamentos e das vendas de unidadesresidenciaisDe onde vem o lucro?

    A estrutura de produo e de gestoInstncias de deciso e de gesto da empresaEtapas de produo

    Ampliao do financiamento aos clientes via bancos comerciais e

    CEF Vnculo direto com a CEFSimbiose com o Pacote Minha Casa, Minha Vida

    Captao de capital na Bolsa de Valores: financiamento produo

    Um banco mltiplo ligado empresa

    PARTE III O lugar da arquitetura, da tecnologia e do canteiro naproduo da ECP

    CAPTULO 4 O lugar do arquiteto: padronizao de produtos

    Precedentes: a relao entre arquitetura e indstria

    O trabalho do arquiteto na ECPO arquiteto autnomo contratado: dcada de 1990O arquiteto de escritrios terceirizados: padronizaoconsolidada nos anos 2000O arquiteto subcontratado pelo escritrio terceirizadoO arquiteto funcionrio da empresa

    Padronizao de produtos

    117

    120123

    125

    133

    136145

    149

    155

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    217

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    Consumo dos produtos

    CAPTULO 5 O lugar da tecnologia: padronizao do processo produtivo

    e sistema de controle

    Padronizao do processo de produoInstrumentos de prescrio

    Custo e controle

    Sistema online de controlendices de produo: cronograma, custos, consumo de materiaise moeda ECPProcedimentos Internos de Planejamento e de Controle: rankingdas obras e estoque online

    Procedimentos Externos de Controle: auditorias, supervises edivulgao de solues construtivasIncentivos: prmios e Banco de Ideias

    Alvenaria estrutural e re-trabalho: o (no) lugar das inovaestecnolgicas

    CAPTULO 6 O lugar do canteiro: trabalho controlado

    Perspectivas sobre o canteiro brasileiro: manufatura e atraso

    Os trabalhadores do canteiro nos anos 2000

    O processo de trabalhoA hierarquia a partir da entrada do sistema onlineA prescrio do trabalhoPropriedade dos instrumentos e ferramentas

    Regulamentao do trabalhoSubempreitada e terceirizaoRegistro em carteiraLiminaridades na regulamentao

    Sntese: o (no) lugar do arquiteto

    PARTE IVNotas finais

    Do servente ao investidor, do arquiteto ao gestor

    Habitao social de mercado servindo ao Estado e ao capitalfinanceiro?

    Padronizao de enclaves para a classe C

    Referncias bibliogrficas

    223

    227

    232

    233

    237

    240

    243

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    281296304307309317320

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    23/360

    PARTE I

    Introduo

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    25/360

    Apresentao

    Esta tese trata da poltica habitacional brasileira recente, descrevendo e

    analisando a confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital

    financeiro. Desde os anos 1990 vm se constituindo, no Brasil, mecanismos

    jurdicos e institucionais que prepararam o terreno para a ampliao e a

    consolidao da produo privada de moradias, inclusive para uma faixa de

    renda familiar que anteriormente no era atendida pelo mercado formal

    promovido por grandes empresas. Sem grande alarde, o mercado imobilirio

    passou a ocupar a posio de ator central na poltica brasileira recente de

    habitao.1

    A relao entre poltica pblica habitacional e produo privada de moradias

    jamais deixou de existir no Brasil.2 No entanto, ela se redesenhou com a

    entrada do capital financeiro nas grandes empresas construtoras e

    incorporadoras e com o aumento de recursos dos principais fundos pblicos e

    semipblicos - o Fundo de Garantia do Tempo de Servio (FGTS) e o

    Sistema Brasileiro de Poupana e Emprstimo (SBPE) -, do Sistema

    Financeiro da Habitao (SFH), a partir de meados dos anos 2000.

    1 Refiro-me aqui noo de poltica habitacional como resultado de uma articulao deinteresses polticos e econmicos e de um jogo de poder, no qual o Estado desempenha papelfundamental como legitimador dos interesses do capital. Portanto, no me refiro noo depoltica em seus contedos emancipatrios, como a formula Rancire (1996) - noo que temsido frequentemente citada na crtica ao neoliberalismo, como um contraponto ideia degesto promovida por atores institucionais (que o autor chama de polcia). Poltica, para oautor, supe o dissenso quanto entrada e quanto reivindicao da fala e da parceladaqueles que no tm parcela, na comunidade poltica, no entendida apenas como umterreno institucional. Nesse sentido, a noo de poltica habitacional, que utilizo, estaria maisprxima da ideia de polcia (ou gesto), no num sentido pejorativo (como ressaltaRancire), mas que delimita a cena poltica dos atores j constitudos que determinam,inclusive, o local e o modo como aqueles sem parcela podem entrar no terrenoinstitucional, e esse espao claro, no meu caso: como pblico-alvo dos programashabitacionais.2 Como destaca Arretche (1990), desde a poca do Banco Nacional de Habitao (BNH,1964-1985), que se constituiu a partir do padro de interveno e de centralizao estatal nosetor habitacional, prprio dos regimes militares do perodo, havia a segmentao da proviso dacasa prpria em dois mercados distintos: um voltado para os setores de renda mdia e alta, com

    financiamento e promoo privados; e outro, para os setores de baixa renda, a partir dapromoo pblica. Sobre a atuao do BNH, ver tambm: Azevedo (1982), Bolaffi (1982),Bonduki (1998), Sachs (1999) e Souza (1999).

    23

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    Com essa juno de recursos pblicos e privados, nos ltimos anos, vem

    ocorrendo um rpido crescimento da produo de moradias dessas grandes

    empresas, voltada para um pblico que pode acessar o crdito habitacional,

    operacionalizado pelo SFH. Trata-se do segmento econmico, assim denominado

    pelo mercado imobilirio, que se voltou para a produo de imveis

    residenciais com valores de at R$ 200.000,00, destinados s famlias com

    renda mensal entre trs e dez salrios mnimos. Esse segmento lanou, em

    2006, aproximadamente oito mil e quinhentas unidades habitacionais (em

    diversas cidades brasileiras), ao passo que, em 2008, foram mais de setenta e

    oito mil - ou seja, o nmero de unidades produzidas aumentou

    aproximadamente nove vezes em apenas dois anos.3

    Devido articulao recente entre Estado e mercado na poltica habitacional,

    eu denominarei nesta tese o segmento econmico como a habitao social de

    mercado, juntando dois nomes que anteriormente poderiam corresponder a

    sistemas de financiamento diferentes, o social e o de mercado. No Brasil,

    a partir da interveno estatal na habitao da era Vargas que se formula o

    conceito de habitao social que, segundo Bonduki (1998)4, a habitao

    produzida e financiada pelo Estado destinada populao de baixa renda.Interessante notar que houve, historicamente, diferentes nomes atribudos a

    esse tipo de produo (popular, econmica e social) e que hoje so

    apropriados pelo mercado imobilirio (o segmento econmico, o segmento

    popular, o segmento para baixa renda etc.) para designar esse seu novo

    nicho lucrativo de atuao.5

    A fim de compreender a natureza e as razes que levaram confluncia entre

    Estado, mercado imobilirio e capital financeiro e ao crescimento agressivodesse tipo de produo habitacional, busco responder nesta tese uma questo

    3 Dados obtidos nos relatrios de desempenho operacional e financeiro das empresas,organizados pela autora (2009). Segundo dados da Embraesp (2010), publicados em matria dojornal O Estado de So Paulo, entre 2005 e 2009, os lanamentos de imveis para a baixa rendamais do que triplicaram na Regio Metropolitana de So Paulo (RMSP), ocorrendo um aumentode 350%. Cf. PACHECO, 2010.4 BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitao social no Brasil. So Paulo: Estao Liberdade,FAPESP, 1998.

    5 A minha denominao, contudo, difere do nome tcnicohabitao de interesse social

    , quecontinua atendendo, preferencialmente, as faixas de renda que precisam de subsdio

    governamental e que tem o Estado como seu agente promotor principal.

    24

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    geral e bastante simples: como as empresas construtoras e incorporadoras

    expandiram sua produo nos ltimos anos no Brasil? Como se beneficiaram

    dos incentivos pblicos e, paralelamente, da tendncia mundial de

    financeirizao da economia, aumentando vertiginosamente o seu capital e

    ampliando geograficamente sua atuao?

    Para responder a essa questo, precisei abandonar a perspectiva analtica mais

    tradicionalmente utilizada no debate, que compreende a poltica habitacional

    apenas como o desenho dos programas ou polticas de governo. Procurei, ao

    contrrio, compreender a poltica habitacional tal como ela se mostrava em

    minha pesquisa de campo, ou seja, a partir do protagonismo do mercado

    privado. Mais precisamente, tratei de investigar os modos como uma grandeempresa construtora atua tanto em relao ao capital financeiro quanto s

    medidas governamentais; no apenas utilizando-se dos interditos e brechas

    deixadas pela regulao pblica, como tambm participando ativamente da

    elaborao de novos programas habitacionais.

    A nova poltica nacional de habitao, elaborada em 2004 pelo primeiro

    governo de Luiz Incio Lula da Silva (2003-2006), especificava dois

    subsistemas de habitao: o Subsistema de Habitao de Interesse Social e oSubsistema de Habitao de Mercado, separados de acordo com o perfil da

    demanda, cada um com suas fontes de recursos especficas. Alm disso, visava

    ampliar maciamente os recursos do FGTS e do SBPE para os financiamentos

    habitacionais e arregimentar outros fundos para esse fim, na perspectiva de se

    aumentar a produo subsidiada de habitao (para as faixas at trs salrios

    mnimos) e de se fomentar o mercado privado de habitao.

    Uma das intencionalidades dessa poltica era justamente ampliar o mercado

    para atingir os setores populares, permitindo a otimizao econmica dos

    recursos pblicos e privados investidos no setor habitacional.6 Para tanto, era

    prevista a criao de mecanismos tanto de proteo aos financiamentos

    habitacionais como de captao de recursos, entre os quais, aqueles disponveis

    no mercado de capitais.

    6 BRASIL. Ministrio das Cidades. Poltica Nacional de Habitao. Braslia: Ministrio dasCidades, 2004.

    25

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    Tais mecanismos previstos na nova poltica foram implementados

    paulatinamente, embora no tenham sido a princpio operacionalizados dentro de

    programas habitacionais especficos, o que aconteceria mais adiante.7 Desde

    aquele momento, entretanto, os agentes privados souberam atuar na

    liminaridade entre o que a poltica especificava como habitao de interesse

    social e como habitao de mercado, tirando proveito disso.

    Por um lado, houve um aumento exponencial nos valores de financiamento

    habitacional contratados pelo sistema FGTS-SBPE: em 2003, quando se

    iniciou o primeiro governo Lula, o valor total contratado era de

    aproximadamente cinco bilhes de reais; em 2008, na metade do segundo

    governo, esse valor excedeu quarenta bilhes de reais.8 Por outro, um conjuntode grandes empresas construtoras e incorporadoras se aproximou do mercado

    de capitais pela captao direta de recursos via oferta pblica de aes

    (OPA) ou, em ingls, IPO (Initial Public Offering), na Bolsa de Valores de So

    Paulo (Bovespa). At 2008, as vinte e cinco empresas listadas no segmento

    construo civil da Bovespa haviam captado mais de vinte bilhes de

    dlares.9

    Nesse contexto, surgiu um novo agente privado na produo de habitao, quedesempenha mltiplos papis, outrora delegados a agentes diferentes. A

    incorporadora e a empresa construtora, fundidas numa mesma figura jurdica,

    agora compra terrenos (e os reserva, num land bank), executa a construo,

    comercializa as unidades habitacionais, articula o financiamento habitacional

    7 O favorecimento atuao do mercado privado torna-se claro e desenhado enquantoprograma habitacional a partir de 2009, com o lanamento do Pacote Minha Casa, Minha

    Vida (MCMV).8 Conforme dados da CBIC (2008). Disponveis em: .

    Acesso em: 13 jul. 2009.9 Antes dessas empresas abrirem seu capital, j estava em curso, no Brasil, uma tendncia decrescimento e de concentrao de capital nas grandes empresas atuantes no mercadoimobilirio residencial, sobretudo, as incorporadoras e as construtoras. Aps a abertura decapital, a produo dessas empresas foi potencializada e abrangeu grande parte dos imveiscomercializados recentemente na RMSP, em especial. Para se ter uma ideia, segundo dadosapresentados por Volochko (2007), em 2000, as dez empresas com maior participao no

    valor geral dos negcios na RMSP abrangiam 20% do total do mercado imobilirio residenciallocal. Em 2005, essa porcentagem aumentou para 28%, como aponta o autor. Em 2008, de

    acordo com dados da Embraesp (2008), ela subiu para 36,5%, sendo que, dessas dez maioresempresas, apenas uma no havia aberto seu capital na Bovespa. Cf. IBGE (2006), Volochko(2007), Embraesp (2008) e Sigolo (2009).

    26

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    do cliente (fase de pr-aprovao na concesso do crdito) e captura recursos no

    mercado de capitais - alm daqueles do SFH.

    Ou seja, o mercado imobilirio se beneficiou duplamente ao conseguir acessar

    os recursos de ambos os subsistemas de financiamento inicialmente previstosna poltica de habitao. Royer (2009)10 aponta que houve recentemente no

    Brasil a financeirizao da poltica habitacional. Segundo a autora, a proviso

    habitacional migrou do discurso universalista dos direitos fundamentais para

    a lgica seletiva dos mercados, articulando-se de maneira inovadora com a

    arquitetura financeira dos novos padres de acumulao do capital.11

    Para caracterizar o modo como se operacionaliza essa financeirizao da

    poltica habitacional, recorri a uma abordagem metodolgica que concilioupesquisa documental e quantitativa (documentos das empresas e dados

    estatsticos) a uma pesquisa de carter etnogrfico em uma grande empresa

    construtora e incorporadora de capital aberto, entre 2007 e 2010.

    A Empresa Construtora Pesquisada (ECP), como a denominarei daqui por

    diante, um exemplo emblemtico daquele novo agente privado na produo

    de habitao. Por um lado, ela operacionaliza o vnculo com o Estado e com o

    capital financeiro, na medida em que obtm recursos pblicos ou sob gesto

    pblica advindos tanto dos crditos habitacionais, concedidos diretamente aos

    seus clientes, como ao financiamento produo em si; alm de captar

    recursos na Bolsa de Valores. Por outro, ela rene todas aquelas atribuies,

    citadas anteriormente (incorporadora, construtora, vendedora e financiadora);

    capaz de produzir mais de vinte mil unidades anuais em diversas cidades do

    10 ROYER, Luciana de Oliveira. Financeirizao da poltica habitacional: limites e perspectivas.Tese(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.11 ROYER, 2009, p. 14. Em sua tese de doutorado, recm defendida (no campo da arquiteturae urbanismo), Luciana Royer procurou compreender alguns resultados da poltica de crditohabitacional, analisando os principais fundings da poltica (o SBPE e o FGTS), o SistemaFinanceiro da Habitao (SFH) e o Sistema Financeiro Imobilirio (SFI). Ao buscar analisar o

    funcionamento do SFI na lgica de uma poltica pblica de habitao, a autora se aproximabastante de um dos argumentos aqui tratados. Para tanto, vale destacar que Royer utilizoudados primrios oriundos do Banco Central do Brasil e da Caixa Econmica Federal (CEF).

    27

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    pas, a partir de uma padronizao e de um sistema de controle do processo

    produtivo; e mantm uma alta taxa de solvabilidade.12

    A ECP apresenta, portanto, um valor heurstico em relao s dinmicas

    recentes da confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital financeiro,na medida em que norteou a pesquisa e contribuiu para a explicao das

    relaes que eu buscava compreender. Por isso, a minha escolha foi estud-la

    em profundidade, nas trs principais dimenses de sua produo: i)

    organizao do trabalho no canteiro de obras; ii) o papel da arquitetura e

    da tecnologia; iii) relaes com o Estado e o capital financeiro. Persigo,

    para tanto, as seguintes questes empricas: qual o diferencial da ECP na

    produo de moradias, que interessa tanto ao Estado como aos investidoresfinanceiros? Quais so as causas da elevada taxa de lucros dessa empresa?

    Como a arquitetura e a tecnologia contribuem para esse tipo de produo?

    Atravs da pesquisa de campo, procuro compreender como se

    operacionalizam os processos de gesto e de produo no interior da empresa,

    que garantem tal solvabilidade e estabelecem uma vinculao - possvel de

    reconstruir analiticamente - desde o papel do servente, no canteiro de obras,

    at o investidor no mercado financeiro. Mesmo no interagindo na realidade,esses dois personagens so representativos dos extremos da coetaneidade entre

    uma base de produo tradicional (a reproduo da explorao do trabalho no

    canteiro de obras e a presena da margem incompressvel do saber fazer do

    trabalhador)13 e a expresso mais atual do neoliberalismo, a autonomizao da

    acumulao financeira.14 Entre esses extremos, encontram-se o arquiteto e o

    engenheiro, outros personagens que fazem a mediao entre o canteiro e a

    esfera de deciso do investidor.

    12 Nos ltimos quatro anos, a faixa de lucro lquido da ECP girou em torno de 15 e 20% dototal da sua receita bruta, o que considerado como uma alta taxa de solvabilidade entre asempresas construtoras e incorporadoras. Entre 2007 e 2008, o valor do lucro lquido daempresa aumentou 440%.13 Expresso de Farah (1996).FARAH, Marta Ferreira Santos. Processo de trabalho na construo habitacional: tradio e mudana. So

    Paulo: Annablume, Fapesp,1996.14 Para Leda Paulani (2008), o Brasil se encontra, desde a dcada de 1990, numa condio deservido financeira, em relao cabine de comando do capitalismo contemporneo.

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    Fortalecendo essa perspectiva analtica, busco apreender como se opera

    empiricamente o vnculo entre mercado imobilirio e Estado, a partir das

    estratgias de produo que a ECP define de acordo com a poltica de crdito

    do governo federal.15 Os seus produtos so, em grande medida, encaixados

    nos limites dos valores dos imveis financiados pela Caixa Econmica Federal

    (CEF), que operacionaliza os recursos do FGTS e do SBPE. Esse vnculo, j

    presente h bastante tempo, torna-se evidente a partir do Programa Minha

    Casa, Minha Vida, lanado pelo governo federal em maro de 2009, ao ponto

    do presidente da ECP declarar que sua empresa participou ativamente da

    concepo do pacote e que ele vai ser feito a quatro mos: Caixa Econmica

    Federal mais construtoras.16

    Organizao do texto

    O texto da presente tese se organiza a partir das duas grandes questes

    esboadas anteriormente, relacionadas, no nvel analtico, ao modo como os

    agentes privados se beneficiaram dos incentivos pblicos e da presena do

    capital financeiro na produo de habitao; e, no nvel emprico, ao modo

    como determinada empresa, a ECP, garante sua lucratividade e d retorno,

    simultaneamente, poltica habitacional e ao mercado financeiro. Assim sendo,

    inicio pelo carter mais geral do vnculo entre Estado e mercado, analisando o

    histrico da poltica habitacional entre 1990 e 2010 e a aproximao do capital

    financeiro ao setor imobilirio; e finalizo com a operacionalizao especfica

    desse vnculo na ECP.

    Antes, porm, de entrar na discusso e na anlise dos dados propriamente

    ditos, coletados durante a pesquisa de doutorado, a Parte I desta tese traz: i)

    uma introduo s questes que procuro aqui analisar - j esboadas

    15 Para a ECP, inclusive, o setor imobilirio altamente dependente da disponibilidade decrdito no mercado e a poltica de crdito do Governo Federal afeta significativamente adisponibilidade de recursos para o financiamento imobilirio, influenciando o fornecimento ea demanda por propriedades (Texto extrado do prospecto pblico emitido pela EmpresaConstrutora Pesquisada, no momento da sua segunda oferta de aes na Bolsa de Valores, em2009).

    16 Declarao feita na teleconferncia dos resultados operacionais e financeiros de 2008 daECP, ocorrida um dia aps o anncio do pacote. Segundo reportagem do jornal O Estado de SoPaulo, as construtoras sero o principal agente do programa (OTTA, 2009).

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    anteriormente; ii) o processo de construo de uma perspectiva de pesquisa; e iii)

    o dilogo das questes desta tese com o debate acadmico sobre os agentes e as

    formas de produo da habitao.

    Na Parte II, procuro compreender as razes que levaram ao crescimentorecente das empresas construtoras e incorporadoras de capital aberto, seguindo

    trs caminhos analticos distintos, cujos processos foram praticamente

    concomitantes e que levaram confluncia entre mercado, Estado e capital

    financeiro. O primeiro caminho recupera o histrico da poltica habitacional,

    gestada no mbito federal, e do conjunto de medidas regulatrias que

    favoreceram a atuao privada na produo de moradias, desde o final da

    dcada de 1990. No segundo caminho, analiso a trajetria da aproximao docapital financeiro ao setor imobilirio - e esses dois caminhos encontram-se

    delineados no Captulo 1.

    No Captulo 2, percorro o terceiro caminho, analisando a tendncia de

    crescimento e de concentrao de capital nas grandes empresas do setor da

    construo civil, que culminou no processo de abertura de capital dessas

    empresas, a partir de 2005, sobretudo; e na atuao no segmento da habitao

    social de mercado. Ao final desse captulo, portanto, analiso a configurao e ascaractersticas dessas empresas financeirizadas, ou o real estate brasileira, e que

    destinaram uma parte, ou a totalidade, da sua produo para faixas de renda

    entre trs e dez salrios mnimos, que no eram anteriormente atendidas por essa

    vertente do mercado imobilirio.

    O Captulo 3 abre o estudo sobre a ECP e finaliza a Parte II ao apresentar a

    operacionalizao da confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital

    financeiro. Descrevo, primeiramente, a sua estrutura de gesto e discuto,

    posteriormente, o modo como se efetiva a simbiose entre os financiamentos

    habitacionais e as estratgias de produo da empresa. Tambm analiso o

    processo de aproximao ao mercado de capitais e qual foi o impacto do

    capital financeiro na sua produo. Nesse sentido, procuro identificar qual o

    critrio diferencial da ECP e por que ela cresceu de forma to acelerada

    recentemente.

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    Na Parte III, enfoco o lugar da arquitetura, da tecnologia e do canteiro de

    obras, que considero como elementos fundamentais para a compreenso da

    expertise da ECP. Em primeiro lugar, no Captulo 4, destaco o papel do

    arquiteto na elaborao da padronizao dos produtos da empresa. A partir da

    consolidao dessa padronizao, procuro analisar como a atividade desse

    profissional se reduziu ao agenciamento de tipologias padronizadas nos

    terrenos onde so implantados os empreendimentos, segundo cada legislao

    local - ao mesmo tempo em que a forma de contratao dos arquitetos foi se

    tornando cada vez mais precarizada. Alm disso, apresento os resultados dessa

    padronizao em termos da configurao arquitetnica e espacial de cada linha

    de produtos, bem como a proporo de vendas de unidades habitacionais, em

    cada uma dessas linhas.

    Acoplada padronizao de produtos, est presente na empresa outro tipo de

    padronizao, muito mais profunda, relacionada ao processo de produo.

    Essa padronizao do processo produtivo analisada no Captulo 5, a partir

    da descrio de seus mecanismos de prescrio e de controle sobre o trabalho

    no canteiro de obras. H uma memria de j-saberes na empresa que

    possibilita a padronizao dos gestos no canteiro e, consequentemente, umamaior facilidade no controle sobre os trabalhadores. H um saber tecnolgico,

    baseado nessa memria, na informatizao e na onipresena do controle, que

    se alia ao saber fazer presente h tempos na organizao do trabalho no canteiro

    de obras - e ambos os saberes respondem velocidade e linguagem da esfera

    financeira.

    A organizao do trabalho no canteiro tratada no Captulo 6. Procuro, num

    primeiro momento, caracterizar o processo de trabalho, a partir da hierarquiaali estabelecida, da prescrio das tarefas e da regulamentao dos

    trabalhadores, para ento identificar as relaes desse processo com o sistema

    online de controle. Ou seja, tornando a leitura do campo de foras presente no

    canteiro ainda mais complexa, o sistema online passa a ser mais um personagem

    que interage diretamente com o trip da obra (engenheiro, mestre-de-obras e

    almoxarife) que, por sua vez, lida e controla os demais trabalhadores. Alm

    dessa anlise do cotidiano da produo, procuro apreender como as estratgias

    31

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    definidas no topo da empresa, seguindo as tendncias do mercado financeiro e da

    poltica habitacional, so traduzidas e implementadas no canteiro.

    Por fim, a Parte IV procura alinhavar o conjunto de argumentos tratados em

    cada um dos captulos anteriores, apontando para possveis concluses destatese e para questes suscitadas pela sua reflexo. A ideia deste captulo final

    procurar encontrar uma coerncia interna entre a conformao do trabalho no

    canteiro; o lugar da arquitetura e da tecnologia nessa produo; as relaes da

    empresa com o Estado e com o capital financeiro; e, finalmente, a confluncia

    entre mercado, Estado e capital financeiro que se materializa na poltica

    habitacional brasileira recente.

    32

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    Construo de uma perspectiva de pesquisa

    As questes desta tese no se apresentavam dessa maneira no meu projeto de

    pesquisa de doutorado. Em 2006, o objetivo principal do projeto era analisar a

    produo da arquitetura a partir das relaes entre os trabalhadores da

    construo civil, e entre eles e os arquitetos no canteiro de obras. A pesquisa

    de carter etnogrfico se colocava para mim, naquele momento, como o

    caminho metodolgico que desvelaria as particularidades do fazer

    arquitetnico e das contradies imanentes da relao entre canteiro e

    desenho, como discutia Srgio Ferro, desde a dcada de 1970.

    Eu me propunha a observar e a interagir com o cotidiano da produo no

    canteiro de obras, mesmo no sabendo precisamente como isso se

    operacionalizaria. J havia participado de canteiros de obras exercendo minha

    profisso de arquiteta, em projetos de residncias, de escritrio e de habitao

    de interesse social - nesse ltimo caso, atuei como pesquisadora e arquiteta,

    pois se tratava de uma pesquisa-ao, empreendida no meu mestrado.17 No

    sabia, portanto, como poderia frequentar um canteiro de obras sem a

    necessidade do meu ofcio, na figura exclusiva de pesquisadora.

    Por isso mesmo, a fim de conhecer as implicaes tericas e prticas da

    etnografia, mais utilizada no campo da sociologia e da antropologia do que na

    arquitetura, realizei um estgio de doutorado na Frana, logo na passagem do

    primeiro para o segundo ano de desenvolvimento do doutorado.18 L pude

    conhecer socilogos que enfatizavam o carter etnogrfico da pesquisa de

    campo19

    , assim como pude ler autores clssicos vindos dessa tradio.20

    17 SHIMBO, Lcia Zanin. A casa o piv: mediaes entre o arquiteto, o morador e ahabitao rural. Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Engenharia deSo Carlos, Universidade de So Paulo, So Carlos, 2004.18 Estgio realizado sob orientao do Prof. Christophe Brochier (Groupe de RechercheEcole, Travail, Institutions - GETI, do Departamento de Sociologia, da Universidade Paris8/Saint-Denis), entre dezembro de 2006 e junho de 2007. Esse estgio possibilitou oacompanhamento de um semestre acadmico tanto da Universidade Paris 8/Saint-Denis,como da cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), onde me inscrevi comodoctorant libre

    a fim de cursar os seminrios oferecidos por esta instituio.19 Apesar de ser um termo cuja definio precisa no consenso nas cincias sociais, a

    pesquisa de campo se refere a um mtodo de investigao emprica que se desenvolveu na

    33

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    Essa imerso metodolgica me propiciou a problematizao de alguns

    preceitos de mtodos qualitativos de pesquisa que no tm a pretenso

    etnogrfica (mas que de modo algum os invalida) - como, por exemplo, levar

    questes objetivas e bem delimitadas ao campo, segundo as categorias

    analticas previamente elaboradas; considerar um apanhado de entrevistas

    como nica fonte de informao etc. Segui, a princpio, a postura do etngrafo

    de se deixar levar pelas questes que o prprio campo suscita ao pesquisador

    e, num primeiro momento, elaborar a descrio densa21 da situao observada e

    vivida, para ento se retirar as categorias de anlise dos fatos e fenmenos que

    se procura compreender.

    Foi, portanto, a partir dessa postura que pude construir minha perspectiva depesquisa. Eu no escolhi a ECP por saber a priori que ela representava a

    materializao da confluncia entre poltica habitacional e capital financeiro.

    Na fase de prospeco da minha pesquisa de campo, conversei com

    professores universitrios que j haviam realizado pesquisas em canteiros de

    obras, procurando obter contatos com as empresas construtoras. Um deles me

    perspectiva de se consolidar as pesquisas sociolgicas e antropolgicas como uma rea deconhecimento to cientfica quanto aquelas das cincias da natureza. De forma geral, esse tipode pesquisa, dentro de uma abordagem qualitativa, procura compreender uma situao social,a partir da observao dos fatos que se desenrolam nessa situao, de entrevistas com aspessoas ali envolvidas e de acesso a documentos. Tomo aqui como referncia o trabalho decompilao acerca das definies e histrico da pesquisa de campo realizado por Cefa (2003).Para esse autor, em sua essncia, a pesquisa de campo se move entre as mltiplas questes eenigmas que carecem de compreenso e de explicao por parte do pesquisador e que o levama buscar na observao e na descrio de uma dada situao social, suas respostas. Trata-sedesse vai-e-vem entre as diversas operaes de interao, de observao e de registro e osmomentos de codificao e de anlise que subsidia o processo de interpretao, decompreenso e de explicao da realidade em que o pesquisador mergulha e, ao mesmotempo, sobrevoa - estabelecendo pontes com outras realidades e outros nveis analticos.20 Iniciei pela leitura de autores da Escola de Chicago (como, por exemplo, Donald Roy,Howard Becker, Everett Hughes, William Foote Whyte etc.), com suas pesquisas etnogrficasque se tornaram clssicos desse tipo de abordagem metodolgica, realizadas nos EstadosUnidos entre as dcadas de 1930 e 1950. Ver: Roy (2006); Becker et al. (2007); Hughes (1996);

    Whyte (2005).21 Geertz (1989) ressalta que no se pode compreender a prtica da etnografia somente comouma questo de mtodos. Segundo a opinio dos livros-textos, praticar a etnografia estabelecer relaes, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapearcampos, manter um dirio, e assim por diante. Mas no so essas coisas, as tcnicas e os

    processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define o tipo de esforointelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrio densa (GEERTZ,1989, p. 23).

    34

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    indicou o Daniel22, que havia sido seu aluno na graduao, e que trabalhava

    como engenheiro de obras da ECP - esse mesmo professor j me adiantara

    que se tratava de uma construtora de atuao nacional. Por intermdio desse

    professor, Daniel me autorizou a frequentar o canteiro sob sua

    responsabilidade, o empreendimento residencial Monte Alto, localizado no

    municpio de So Carlos (SP).23 Passar os tapumes e pela placa proibida a

    entrada de pessoas sem autorizao uma das primeiras dificuldades quando se

    quer entrar num canteiro de obras, com autorizao.24 Meu critrio inicial de

    escolha foi, portanto, a obteno da autorizao.

    Obtive autorizao para entrar em outros canteiros localizados nessa cidade:

    um promovido por uma empresa de atuao local e outro promovido pelorgo responsvel pela produo de habitao de interesse social na Prefeitura

    Municipal de So Carlos, sob regime de construo em mutiro.25 E resolvi

    realizar uma incurso exploratria no campo de pesquisa, recm-aberto, com

    essas duas possibilidades, alm daquela da ECP. Frequentei simultaneamente

    os trs canteiros durante um ms. Abandonei em seguida o canteiro da

    22 Nome fictcio. Todos os nomes reais que poderiam revelar a identidade da empresa ou dapessoa mencionada foram trocados por nomes fictcios neste texto. Apenas os nomes citadosem reportagens e artigos de jornais e revistas - de circulao pblica, portanto -, no foramtrocados.23 O Monte Alto um edifcio residencial com quarenta apartamentos, divididos em cincopavimentos (incluindo a cobertura), num terreno com rea de 1500 m 2. Localizado na cidadede So Carlos (SP), o empreendimento se encontra num dos vetores de ocupao e deadensamento da cidade, voltado para a populao de renda mdia. So quatro tipos deunidades: apartamentos de dois e trs dormitrios (respectivamente, 61,7 m 2 e 66,3 m2) ecoberturas de dois e trs dormitrios (123,4 m2 e 132,6 m2). No h rea de lazer, apenasestacionamento no trreo e no subsolo. O sistema construtivo alvenaria estrutural emblocos de concreto. O apartamento mais barato do empreendimento custava R$ 96.080,00 (66m2), em abril de 2008, e o mais caro, a cobertura, no valor de R$ 137.518,00 (132,58 m2).Nessa mesma poca, havia ainda nove unidades venda, ou seja, o empreendimento japresentava 77,5% das unidades vendidas. Na ficha tcnica do empreendimento, que constano site da empresa, o projeto especificado como arquitetura neoclssica, e no h menosobre o seu autor.24 Cockell (2008), que analisou trajetrias ocupacionais de trabalhadores da construo civil,com foco na vulnerabilidade social, realizou suas entrevistas nas caladas, nos intervalos dealmoo, diante da dificuldade de se obter uma entrada oficial em canteiros de obras.25 O primeiro era um edifcio horizontal, contendo 36 apartamentos, incorporado econstrudo por uma construtora com atuao exclusiva em So Carlos. O canteiro do mutirohavia iniciado em 2004 e fazia parte de um programa habitacional do governo federal, no qual doisteros do financiamento a ser pago pelas famlias beneficiadas era subsidiado - a outra parte

    vinha do prprio rgo municipal, agente executor do programa. O mutiro

    contemplava 224 famlias, com renda familiar mensal de at trs salrios mnimos, queelegiam um de seus membros para ser o mutirante-titular, a fim de cumprir suas horas detrabalho na obra, durante os finais de semana.

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    construtora local, frente ao fato de que sua organizao se reproduzia, em

    menor escala, na ECP e de que essa ltima trazia tanto especificidades da

    organizao do trabalho quanto novidades de interesse analtico. Continuei,

    depois, com a pesquisa de campo nos canteiros do mutiro e da ECP durante

    mais cinco meses, perfazendo um total de seis meses de acompanhamento,

    durante o ano de 2008.

    Durante essa fase da pesquisa, eu ainda tinha como questo a anlise da

    organizao do trabalho no canteiro de obras em diferentes regimes de

    construo, ou seja, utilizando mo-de-obra contratada ou mutirante. No

    entanto, muitas das questes suscitadas no canteiro da ECP eram novas para

    mim e escapavam da minha compreenso, naquele momento - isso no querdizer que o mutiro no tivesse um interesse analtico especfico.26

    A primeira das questes estava relacionada regulamentao e forma de

    contratao dos trabalhadores na ECP. No segundo ms de acompanhamento

    do canteiro do Monte Alto, o contrato com a subempreiteira27, responsvel

    pela alvenaria, no foi renovado e sua equipe, que aportava quase dois teros

    dos trabalhadores presentes na obra, fora substituda por trabalhadores

    contratados diretamente pela construtora. Daniel, engenheiro de obras, me

    26 Pelo contrrio, esse mutiro ocorrido em So Carlos apresentava questes importantes deserem analisadas luz das experincias de autogesto que ocorreram durante as dcadas de1980 e 1990. No caso, os mutirantes eram organizados em grupos de trabalho, cada qual comseu lder, que, por sua vez, eram coordenados pela equipe tcnica do agente executor,formada por um engenheiro (ou arquiteto), um assistente social (ou socilogo) e estagirios.Para alguns servios ou para determinadas fases da obra, eram contratadas subempreiteiras,que trabalhavam durante a semana. Havia uma organizao do trabalho que misturava,portanto, mo-de-obra mutirante e contratada - em certas ocasies, trabalhavam juntas, emoutras, os prprios mutirantes eram contratados pelas subempreiteiras, tornando maiscomplexas as relaes ali estabelecidas. Nesse contexto, a precariedade e a morosidade para aexecuo do trabalho, bem como a recusa organizao coletiva por parte dos moradores e adificuldade de legitimao dos arquitetos e engenheiros, logo me espantaram. Eu tinha emmente outras experincias de mutiro, analisadas pelo debate acadmico, pautando-me em umcontedo normativo de como deveria ocorrer esse tipo de produo. Tambm precisavacompreender as relaes e os conflitos que permeavam o cotidiano de trabalho (uma vez,uma assistente social fora ameaada com uma arma por um mutirante) e por que no se tinhauma planilha real de custos realizados.27 Utilizo aqui a denominao encontrada no debate acadmico (cf. SERRA, 2001) quediferencia a empreiteira, que pode ser considerada a construtora principal e a subempreiteira,que a empresa subcontratada pela empreiteira. Portanto, as atividades subcontratadas pelaempreiteira podem ser denominadas como as subempreitadas. Interessante notar que o

    vocabulrio nativo, adotado pelos engenheiros, mestres-de-obras e trabalhadores do canteiro,no utiliza o termo subempreiteira, apenas empreiteira, para qualquer empresasubcontratada.

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    dissera que essa estratgia fazia parte de uma nova tendncia na empresa de

    contratao de equipe prpria de execuo da obra. Estranhei, a princpio,

    essa estratgia, pois no correspondia tendncia de terceirizao e

    subcontratao de servios no setor da construo civil. As explicaes dadas

    pelo engenheiro a respeito dessa mudana no foram suficientes para mim.28

    A segunda questo que me despertou interesse foi o fato da ECP ter vendido

    suas aes na Bolsa de Valores e ter captado, segundo o depoimento de

    Daniel, mais de um bilho de reais em apenas um dia. Tratava-se de uma

    empresa, cujo nmero de funcionrios o engenheiro no sabia me dizer

    precisamente (para ele, eram mais de cinco mil), que promovia

    simultaneamente duzentas obras em diversas cidades, localizadas nas regiesSul, Sudeste e Nordeste. Intrigava-me conhecer a fundo como se estruturava

    esse tipo de produo de habitao em escala e pulverizada geograficamente.

    A terceira questo estava relacionada ao projeto arquitetnico do

    empreendimento, que seguia as tipologias padronizadas pela ECP. Para o

    engenheiro, elaborar o projeto era como montar um Lego, dispondo os

    mdulos no terreno.29 Incomodou-me a comparao do trabalho do arquiteto

    ao jogo de Lego. Perguntei se ele j havia falado pessoalmente com o arquitetoque havia projetado o empreendimento, e a resposta foi: olha, arquiteto...

    Tanto que a gente no fala que eu no sei nem o nome da pessoa....30 O

    projeto havia sido feito por um escritrio terceirizado pela ECP que se

    localizava a aproximadamente oitocentos quilmetros de So Carlos e nenhum

    de seus arquitetos havia visitado o terreno, tampouco a obra.

    28 Como discutirei no Captulo 6, o engenheiro considerava queo fato do subempreiteiro noassumir integralmente as garantias trabalhistas aos seus trabalhadores acabava fomentando osprocessos jurdicos contra a prpria ECP. As vantagens da equipe prpria estavamcentradas, sobretudo, nas possibilidades de maior controle sobre os trabalhadores e dereduo de custos.29Se voc pegar tem um Monte Alto igualzinho l em Belo Horizonte ou l em Curitiba.Eles so meio padro. Eles s pegam o terreno e adaptam o prdio ao terreno. Eles falamassim: aqui d para a gente fazer um vagozo de dez apartamentos por laje, aqui d squatro, mais quatro de lado. [...] Hoje eles to fazendo um de seis. Um bloco com quatro eum bloco com seis, da eles articulam. [...] igual voc fazer o lego l, um mdulo que eles

    vo mexendo com ele dentro do terreno.

    (Depoimento do engenheiro de obras autora -fevereiro/2008).30 Depoimento do engenheiro de obras autora - fevereiro/2008.

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    As dinmicas da pesquisa

    Essas trs questes iniciais que a pesquisa de campo me colocara extravasavam

    a esfera do canteiro de obras da ECP. Eu precisava recorrer a outros

    caminhos, inclusive, de carter metodolgico, para compreender essas

    questes. Por isso, paralelamente ao acompanhamento do canteiro, procurei

    dados sobre a empresa, disponibilizados em seu site e divulgados na mdia31, e

    profissionais que se encontravam em posio acima daquela do engenheiro de

    obras na hierarquia da ECP - precisava conversar, sobretudo, com algum

    arquiteto. Na medida em que eu ampliava minhas fontes de informao e

    diversificava minhas estratgias de pesquisa, estendia-se tambm a esfera de

    anlise, como explicarei neste item.

    A partir desse momento, a pesquisa ocorreu a partir de cinco dinmicas

    diferentes e se desenrolou ao longo de dois anos, entre 2008 e 2010. A

    primeira delas dava continuidade ao acompanhamento do canteiro de obras

    do empreendimento Monte Alto, procurando ali responder s seguintes

    questes gerais - que constavam no projeto de doutorado: como ocorre o

    trabalho no canteiro de obras? Como ele se organiza? Quem so seustrabalhadores? Como se estabelecem as relaes entre eles? Como o arquiteto

    se relaciona com esses trabalhadores? Como ocorre a relao entre a

    organizao do canteiro e as outras esferas da ECP? Como so utilizados e

    apropriados os projetos tcnicos (incluindo o arquitetnico)?

    Para tanto, seguindo as estratgias da pesquisa de campo de carter

    etnogrfico, durante as minhas caminhadas pelo canteiro de obras, eu

    observava as dinmicas ali presentes e as atividades que os trabalhadoresrealizavam - e era, ao mesmo tempo, observada. O fato de ser mulher num

    canteiro de obras, com capacete branco (que utilizado por tcnicos, mestre-

    de-obras, estagirios e visitantes), que passou a frequentar e a se interessar por

    aquelas atividades cotidianas, j era presena estranha num ambiente

    preponderantemente masculino. Como no fui oficialmente apresentada a

    31 Como, por exemplo, jornais de grande veiculao, revistas de publicao semanal, jornaislocais.

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    todos os trabalhadores, eram poucos, a princpio, que sabiam o motivo da

    minha presena. Essa situao causava certo incmodo em mim: s vezes me

    sentia atrapalhando o trabalho (e talvez de fato estivesse, no mnimo,

    incomodando) e, por isso, evitava fazer perguntas durante a realizao de

    alguma atividade. Mas, aos poucos, conforme ia conversando individualmente

    com os trabalhadores, essa situao melhorou e a minha presena no era to

    estranha como no incio. Sempre enfatizei que eu era uma pesquisadora da

    Universidade.

    Procurei tambm presenciar algumas atividades importantes no cronograma de

    obras - como, por exemplo, a concretagem da laje - e procurei caminhar na

    obra em diferentes situaes: sozinha ou acompanhada pelo mestre-de-obras,ou pelo engenheiro, ou pelo estagirio. Finalmente, realizei entrevistas em

    profundidade, registradas em udio, com o engenheiro, mestre-de-obras e

    almoxarife, armador e pedreiro de acabamento - com outros trabalhadores

    (serventes e pedreiros, na maioria) fiz entrevistas mais curtas.32

    A segunda dinmica se referiu pesquisa documental que realizei nos

    relatrios trimestrais e anuais da ECP (contendo informaes sobre o seu

    desempenho operacional e financeiro), disponibilizados na seoRelacionamento com investidores do site da empresa - que serve como uma

    espcie de prestao de contas aos acionistas da empresa.33 Esse

    procedimento de publicizao dos resultados financeiros e operacionais um

    requisito exigido nas prticas de boa governana do Novo Mercado da

    32 As duas primeiras entrevistas, dirigidas ao engenheiro de obras e ao mestre-de-obras foramsemiestruturadas. A partir delas, refinei as minhas perguntas e elaborei um roteiro-padro paraentrevistar os demais trabalhadores. Esse roteiro foi dividido em cinco partes, quais sejam: 1)perfil (famlia e trabalho); 2) condies de moradia; 3) insero da famlia em programaspblicos; 4) trajetria e formao profissional; 5) organizao do trabalho e remunerao.33 Desde 2006, os relatrios anuais apresentam o seguinte contedo: mensagem aos acionistas;anlise do setor imobilirio naquele ano; fatos novos (aquisies de outras empresas, parceriasetc.); dados sobre desempenho operacional (lanamentos, vendas contratadas, banco deterrenos); dados sobre o desempenho financeiro (receitas, dedues, custo dos imveis,impostos, despesas operacionais, lucro etc.); anlise do mercado de aes; alteraes na

    estrutura societria; recursos humanos; parecer de auditores financeiros independentes (comoanexo). J os relatrios trimestrais apresentam os comentrios da administrao sobre operodo, a demonstrao financeira e operacional e projees futuras.

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    Bovespa, desde os anos 2000.34 A ECP iniciou essa divulgao quando abriu

    seu capital, em 2007, e integrou o Novo Mercado. Tambm consultei os

    artigos e as reportagens publicadas na mdia impressa e virtual sobre a ECP.

    Esse material coletado me possibilitava a compreenso sobre a estrutura daempresa como um todo, tanto em termos de nmeros e caractersticas de sua

    produo (unidades lanadas e vendidas; localizao e faixa de valor dos

    empreendimentos lanados e vendidos etc.), como em relao gesto

    (nmero de trabalhadores contratados; composio dos Conselhos e

    Departamentos; etapas da produo em geral etc.). Alm disso, esses relatrios

    apresentavam dados sobre o faturamento (receitas provenientes da

    incorporao imobiliria), as despesas (administrativas e operacionais), oscustos dos imveis e os lucros.

    Alm do acesso a esses documentos, presenciei as teleconferncias sobre os

    resultados trimestrais, apresentadas pelo Vice-Presidente de Relacionamento

    com Investidores e pelo Diretor-Presidente (fundador e acionista majoritrio

    da ECP). Aps a apresentao, os investidores que estavam online realizavam

    perguntas aos apresentadores, sendo um importante momento para se ouvir a

    posio e a opinio do mais alto nvel hierrquico da empresa. Nessa esfera,frequentemente, o cenrio poltico e econmico brasileiro era analisado pelos

    participantes, sobretudo, a relao da empresa com a poltica federal de crdito

    habitacional e, obviamente, com o mercado financeiro - que se encontrava de

    corpo presente.

    Nessas ltimas fontes, no constavam informaes precisas sobre o processo

    de elaborao do projeto arquitetnico e dos projetos tcnicos, tampouco

    sobre os profissionais envolvidos nessa atividade. Dessa forma, recorri a uma

    terceira dinmica de pesquisa a fim de perscrutar os caminhos do projeto de

    arquitetura e da elaborao da padronizao do processo de produo que

    ocorriam na empresa. Por isso, precisava ampliar a minha rede de informantes

    34 De acordo com informaes do site da empresa, em 2000, a Bovespa introduziu o NovoMercado com o objetivo de criar um mercado secundrio para valores mobilirios emitidospor companhias abertas brasileiras que sigam melhores prticas de governana corporativa.

    Dentro dessas prticas, so colocadas algumas regras, alm das obrigaes impostas pelalegislao brasileira em vigor, entre as quais uma poltica rgida de divulgao de negociaes ede resultados financeiros.

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    dentro da empresa, para alm do corpo tcnico e dos trabalhadores da obra.

    Coincidentemente, um amigo meu morava na cidade-sede da ECP. Ele tinha

    um primo que era engenheiro-supervisor da empresa, e um cunhado, que era

    arquiteto e que havia sido terceirizado pela ECP, entre o final da dcada de

    1990 e o incio dos anos 2000. Com esses contatos, pude realizar entrevistas,

    em profundidade, com esse engenheiro-supervisor e com arquitetos

    terceirizados.

    Paralelamente, procurei outros arquitetos que trabalhavam como funcionrios

    da ECP. Obtive o contato de uma arquiteta que trabalhava como

    coordenadora de projetos de uma regional da ECP que, por sua vez, indicou-

    me o processo-padro de atendimento s demandas externas: viaDepartamento de Marketing da empresa. No era exatamente esse caminho

    que eu procurava, queria apenas conversar com a arquiteta a respeito de seu

    trabalho na ECP.

    Mesmo assim, entrei em contato com esse Departamento e enviei um roteiro

    de perguntas e, aps trs meses, recebi a seguinte resposta: j haviam coletado

    todas as informaes solicitadas, no entanto, um responsvel por uma das

    respostas ficou em dvida se elas seriam de domnio pblico ou se poderiamrevelar a estratgia mercadolgica da ECP. Somente o vice-presidente da

    empresa poderia autorizar a divulgao, e ele negou. No recebi as respostas,

    tampouco esclarecimentos a respeito das razes que levaram negao. Eu

    havia elaborado questes relacionadas ao organograma da empresa e

    estrutura de elaborao e de gesto dos projetos de arquitetura e dos projetos

    tcnicos.

    Considero que, mesmo sem obter as respostas oficiais da ECP ao meu

    questionrio, os dados disponibilizados na internet so aqueles que poderiam

    ser acessados publicamente, de domnio pblico, contendo a opinio e a

    imagem que a empresa quer divulgar e que legitimam a ideia da

    transparncia das prticas de boa governana corporativa no Novo Mercado

    da Bovespa. Por detrs, h os dados sigilosos ou as estratgias

    mercadolgicas que no so divulgados - o que me levou a problematizar o

    prprio contedo de tal transparncia. Por isso, foi necessrio cruzar os dados

    41

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    coletados em seus relatrios com as anotaes de meu caderno de campo,

    elaborado durante o acompanhamento do canteiro de obras, e com o

    contedo das entrevistas realizadas com seus funcionrios ou ex-funcionrios ou,

    ainda, com os trabalhadores subcontratados.

    Concomitantemente ao acompanhamento da ECP, empreendi a quarta

    dinmica de pesquisa, suscitada a partir da constatao do seu rpido

    crescimento, de sua produo, bem como de seu lucro lquido - como

    mostrarei em detalhes no Captulo 3. Senti a necessidade de saber se esse

    mesmo processo estava ocorrendo em outras empresas construtoras e

    incorporadoras de capital aberto, com atuao semelhante ECP. Iniciei outra

    pesquisa documental, agora nos relatrios anuais e trimestrais de outrasconstrutoras e incorporadoras, que apresentavam um contedo bastante

    semelhante ao da ECP - seguindo as recomendaes sobre a padronizao das

    informaes e da divulgao pblica impostas pela Bolsa.

    Encontrei dezesseis empresas (contendo aqui subsidirias de grandes

    empresas) que destinavam a totalidade ou parte de sua produo ao segmento

    econmico. Para analisar esses dados, a dificuldade metodolgica foi identificar

    categorias comuns que os atravessassem. Explicando melhor, no mbito dosrelatrios das empresas, por mais que se pressuponha uma padronizao das

    informaes como prerrogativa de transparncia empresarial, h diferenas

    quanto classificao de faixas de preos das unidades produzidas, quanto

    localizao dos empreendimentos, quanto fatia de lucro lquido

    correspondente atuao no segmento econmico etc.

    Apesar desses dados serem, preferencialmente, definidos e escolhidos pelas

    empresas, os relatrios se apresentam como uma fonte preciosa de

    informaes, na medida em que detalham o desempenho operacional e

    financeiro, bem como transparecem o discurso que justifica as atuaes de

    cada uma delas.

    Mesmo assim, consegui extrair alguns dados que foram suficientes para indicar

    que no era apenas a ECP que crescia vertiginosamente, outras empresas

    seguiam o mesmo ritmo. O crescimento desse tipo de produo foi divulgado

    na mdia, que o nomeava como um novo boom imobilirio. A partir da,

    42

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    procurando saber a representatividade da produo dessas grandes empresas

    construtoras e incorporadoras de capital aberto no conjunto do mercado

    imobilirio e conhecer o impacto econmico da atuao do setor residencial da

    construo civil, recorri a quinta, e ltima, dinmica da pesquisa, relacionada

    leitura dos dados quantitativos fornecidos pelo Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatstica (IBGE) e pela Empresa Brasileira de Estudos do

    Patrimnio (Embraesp).35

    Em relao aos dados econmicos produzidos pelo IBGE, numa mesma

    pesquisa setorial, a Pesquisa Anual da Indstria da Construo (PAIC)36, h

    diferenas quanto ao universo da amostra estatstica - como, por exemplo,

    quanto classificao do tamanho das empresas de acordo com pessoalocupado -, que impossibilitam uma anlise transversal ao longo dos anos. Ou

    seja, assim como os relatrios das empresas, os dados quantitativos das

    grandes pesquisas econmicas tambm so construdos por categorias que se

    fecham, se abrem e se transmutam no tempo, apresentando-se como caixas-

    pretas, utilizando-me de uma expresso de Rizek (2005).37

    Apesar dessa dificuldade, foi possvel identificar a tendncia de crescimento e de

    concentrao de capital nas grandes empresas do setor da construo civil e doaumento da produo privada de edificaes residenciais, no Brasil, na

    passagem dos anos 1990 at meados dos anos 2000.

    35 Segundo Marques (2005), a Embraesp uma empresa que atua desde 1977, fazendoacompanhamento regular da dinmica imobiliria, cadastrando informaes de todos osempreendimentos verticais e horizontais que tenham sido objeto de propaganda em jornais,revistas, panfletos, assim como os aprovados pela Secretaria de Habitao do municpio de SoPaulo (MARQUES, 2005, p. 218).36 A Pesquisa Anual da Indstria da Construo (PAIC) identifica as caractersticas estruturaisbsicas do segmento empresarial da atividade de construo no pas, atravs de levantamentosanuais, tendo como base uma amostra de empresas de construo. Iniciou-se em 1990, tendocomo cadastro inicial, os Censos Econmicos de 1985 (IBGE, 2006).37 RIZEK, Cibele Saliba. Os dados e seu sentido: algumas interrogaes metodolgicas emsociologia do trabalho. In: GITAHY, L.; LEITE, M. P. de. (orgs.). Novas tramas produtivas: umadiscusso terico-metodolgica. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2005.Rizek problematiza o confronto entre dados quantitativos e qualitativos referentes aosestudos da sociologia do trabalho: as grandes bases de dados quantitativos so construdas

    por categorias que se apresentam comocaixas-pretas

    , abertas pontualmente porinvestigaes qualitativas que acabam por esclarecer algumas das questes relativas

    visibilidade e nomeao desses contingentes de trabalhadores (RIZEK, 2005, p. 61).

    43

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    J os dados da Embraesp me possibilitaram analisar a atuao das empresas

    construtoras e incorporadoras de capital aberto (no somente aquelas que

    atuam no segmento econmico) no mercado imobilirio residencial da Regio

    Metropolitana de So Paulo (RMSP). E, nesse caso, pude confirmar o aumento

    considervel dessa atuao, nos ltimos cinco anos. Esses dados tambm

    indicavam o destaque que o SFH ganhava entre os financiamentos

    habitacionais concedidos na RMSP - em 2008, correspondia a

    aproximadamente 70%.

    Esse ltimo aspecto tambm podia ser observado nos relatrios das empresas,

    medida que a grande maioria delas dependia dessa fonte de recursos para o

    financiamento de seus clientes e, de certa forma, tambm de sua produo. Apartir da, foi se tornando mais claro o vnculo dessas empresas, incluindo a

    ECP, com a poltica federal de crdito habitacional. Por isso, dando

    continuidade pesquisa em dados estatsticos, recorri s fontes de informao

    sobre a poltica habitacional como um todo, divulgadas pelo governo federal,

    tais como os dados veiculados pelo Ministrio das Cidades e pela Caixa

    Econmica Federal (CEF). Utilizei tambm uma fonte secundria, que

    sistematiza os dados da CEF e do Banco Central, proveniente do Banco deDados da Cmara Brasileira da Indstria da Construo (CBIC). Da anlise

    desses dados, pude montar o mapeamento dos programas habitacionais

    recentes e do destino dos recursos do FGTS-SBPE para os financiamentos

    habitacionais.

    Essas cinco dinmicas descritas anteriormente compuseram a trajetria da

    minha pesquisa, na qual a perspectiva analtica est intrinsecamente ligada

    dimenso emprica, e vice-versa. Dessa forma, pude consolidar umaperspectiva de pesquisa que, para analisar a poltica e a produo de habitao,

    conciliou a atuao de cada agente aqui envolvido (Estado, mercado

    imobilirio e mercado financeiro, no caso do contexto contemporneo) com as

    caractersticas da operacionalizao da prpria poltica e da produo em si das

    unidades habitacionais (desde sua dimenso produtiva, projetual e tecnolgica).

    Desse modo, houve uma reconfigurao das questes do meu projeto de

    pesquisa ao longo dos quatro anos de desenvolvimento do doutorado.

    44

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    Anteriormente, minha preocupao analtica estava centrada na organizao do

    trabalho no canteiro de obras e suas relaes com as dimenses da arquitetura.

    Como eu procurei mostrar at aqui, na medida em que eu me deparava com

    meus achados de pesquisa, novas questes se somaram quelas perguntas

    iniciais e, por vezes, alteraram-nas.

    45

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    As dimenses da produo da habitao no Brasil contemporneo

    A perspectiva de anlise que enfoca a estrutura de proviso de habitao a

    partir das relaes entre os agentes que dela participam est presente no

    trabalho de Michael Ball (1986 e 2006).38 Desde a dcada de 1980, Ball (1986)39

    critica as tendncias de anlise que se voltam apenas dimenso do consumo

    da habitao (consuptiom-orientated approach), ou seja, que enfatizam apenas o

    desenho institucional da poltica pblica, a questo da propriedade da

    habitao e dos custos. O autor refora as dimenses da proviso e da

    produo da habitao.

    importante estabelecer a distino entre essas dimenses. Proviso est

    relacionada ao arcabouo institucional dos agentes que possibilitam a produo

    da habitao. Nesta tese, apesar de analisar as relaes entre esses agentes,

    sobretudo, mercado e Estado, eu enfatizo a dimenso da produo. Alm

    disso, relaciono essas duas noes noo de poltica habitacional, como um

    conjunto de mecanismos regulatrios e institucionais que viabilizam essa

    proviso e favorecem a produo desses agentes. Em um texto recente, Ball

    (2006)40 considera que necessrio conciliar mercado imobilirio e setor da

    construo civil para analisar a cadeia de proviso e de transao de

    edificaes construdas, a partir do estudo sobre as empresas e organizaes que

    participam de ambos.41

    Esse enfoque de Ball vai ao encontro com as questes suscitadas pela minha

    pesquisa, realizada no contexto contemporneo da produo de habitao no

    38 Dentro da rea da economia urbana, Michael Ball analisa a estrutura de proviso e deproduo privada da habitao do contexto europeu, sobretudo o ingls, e estabelece relaescom outros contextos como, por exemplo, o dos pases em desenvolvimento. Cf. BALL, 1986e 2006.39 BALL, Michael. Housing analysis: time for a theoretical refocus? Housing Studies, v. 1, n. 3,p. 147-165, 1986.40 BALL, Michael. Markets & Institutions in Real Estate & Construction. Oxford: BlackwellPublishing, 2006.

    41 O autor utiliza o termo em ingls real estate, que no tem correlato em portugus. Nessemomento do texto, traduzi-o como mercado imobilirio, apesar de real estate extrapolar essanoo. Discutirei melhor essa questo no Captulo 2.

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    as obras de infraestrutura, os investimentos em determinados bairros, at a

    produo da habitao de interesse social.

    Essa ltima modalidade poderia se enquadrar analiticamente na produo

    pblica da habitao. Entretanto, empiricamente, pode estar to imbricadacom a dinmica privada que se torna difcil fazer a distino entre o que seria

    essencialmente uma habitao de interesse social e uma habitao de

    mercado. Por mais que se procure distinguir as formas de produo privada e

    pblica e quais prticas so formais e quais so informais, essas modalidades de

    produo se imiscuem e interagem no Brasil.45 H uma fronteira indistinta

    entre as diferentes formas de produo da habitao no Brasil, que torna difcil a

    sua tentativa de classificao e nomeao.Por um lado, dentro da produo privada de moradias, h um esforo de se

    distinguir conceitualmente a vertente formal daquela considerada

    informal, o que no se opera empiricamente de forma to clara. Por

    exemplo, a construo da habitao pelo prprio morador46, apesar de ser

    considerada como parte de um circuito informal de produo, ela pode

    integrar o mercado capitalista, por mais contraditrio que possa parecer.

    Inicialmente, na fase de ocupao do solo e de construo da edificao em si,ela pode se encontrar numa situao irregular de propriedade, vindo da a

    classificao como informal, por vezes, irregular. No entanto, aps a

    habitao ser edificada, ela pode integrar tanto um mercado informal de

    45 Essa transitividade entre formal e informal no se restringe produo de habitao.Como, por exemplo, Vera da Silva Telles (2009) reflete sobre o modo como as dinmicasurbanas so redefinidas a partir das novas formas de produo e de circulao de riquezas,prprias da experincia contempornea.46 H diversos termos no debate acadmico que definem essa modalidade de produo, como,por exemplo, autoconstruo ou autopromoo. Por no se encaixar ao esquema