7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
1/360
Habitao Social, Habitao de Mercadoa confluncia entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro
T E S E D E D O U T O R A D O
L c i a Z a n i n S h i m b o
Orientadora: Profa. Dra. Cibele Saliba RizekPrograma de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo
Escola de Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo
Junho/2010
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
2/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
3/360
LCIA ZANIN SHIMBO
Habitao Social, Habitao de Mercadoa confluncia entre Estado, empresas construtoras e capital
financeiro
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Arquitetura e Urbanismoda Escola de Engenharia de So Carlos,da Universidade de So Paulo, comoparte dos requisitos para a obteno dottulo de Doutor em Arquitetura eUrbanismo.
Orientadora: Profa. Dra. Cibele SalibaRizek.
So Carlos/SP2010
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
4/360
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO,PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Ficha catalogrfica preparada pela Seo de Tratamentoda Informao do Servio de Biblioteca - EESC/USP
Shimbo, Lcia ZaninS556h Habitao social, habitao de mercado: a confluncia
entre estado, empresas construtoras e capital financeiro; orientador Cibele Saliba Rizek. -- So Carlos, 2010.
Tese (Doutorado-Programa de Ps-Graduao emArquitetura e Urbanismo e rea de Concentrao em Teoriae Histria da Arquitetura e do Urbanismo) -- Escola deEngenharia de So Carlos da Universidade de So Paulo,2010.
1. Arquitetura. 2. Poltica habitacional. 3. Empresaconstrutora. 4. Mercado imobilirio. 5. Capitalfinanceiro. 6. Canteiro de obra. I. Ttulo.
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
5/360
FOI.IIA 1)1. .11 liiA.MKM'O
Candidato(a): Arquiteto e Urbanista I.UCIA ZAMN SHIMBO.
I csc delendida c juluada cm ll)/0fv2(H() perante a (omissao Juluadorn:
s C -
I'rol. Assixiada CIBI-LL SAMBA RIZFK - (Orientadora)
(hscola dc liniicnlutria do Sao Carlos I'SPi
/
./_u' _: r_Prof1. Dr. RAQUFI. ROLN'IK
(lacuklado do Arquilcliira o l."rbanisnio'l :SP)
^
\
Prop. I'iUilar ANA FAN! ALtSSANDRI CARLOS
(Paculdadc dc Pilosofia. Lclras c Cicncias I lumanas'L'SP)
\
Prof. Dr. PAULO CESAR XAVILR PLRLIRA
(Paculdadc dc Arquiiciura c ITbanismo'L'SP)
/
-, \ {
Pro!'. Dc JOAO MARCOS DE ALMEIDA LOPES (I
-scola dc Pnucnharia do Sao Carlos I SP) N
*i
}c\k'K^ ' 0-
A lUj.?j\
*.-
/ /
Prof. Titular RI.NATO III/. SOIiKAL ANELLI
Coordcnador do Programa dc P6s-(iraduai;ao cm
Arquitctura c Prbanismo
/
Prof Titular GKRALDO ROBERTO MARTINS DA * OSTA
Prcsidcntc da Comissab da Pbs-Graduacao da KPSC
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
6/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
7/360
Para Iara e Lo
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
8/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
9/360
AGRADECIMENTOS
Foram muitas mudanas nestes quatro anos de desenvolvimento do doutorado.
Em todas elas, sejam de ordem pessoal, emprica ou analtica, a Profa. Cibele
Saliba Rizek sempre me orientou e apoiou. Sua trajetria me motivava a seguir em
frente. Eu a agradeo profundamente, sobretudo, pela sua pacincia frente s
minhas inquietaes e ansiedades.
Agradeo ao Prof. Joo Marcos de Almeida Lopes que me incentivou desde a
ideia preliminar do projeto de pesquisa. E ao Prof. Paulo Csar Xavier Pereira,
meu orientador de iniciao cientfica, que revisou a primeira verso do projeto.
Ambos participaram do Exame de Qualificao e da Comisso Julgadora e
contriburam bastante para esta verso final da tese.
Profa. Ana Fani Alessandri Carlos por lanar uma importante questo ao meu
trabalho j na primeira vez que nos vimos e por participar da banca final, trazendo as
pertinentes crticas da geografia.
Profa. Raquel Rolnik pelo seu testemunho, prprio de quem vivencia a poltica
habitacional h muito tempo, feito durante a argio da banca, contribuindo para os
argumentos desta tese. Profa. Akemi Ino, minha orientadora de mestrado, pelo apoio e carinho de
sempre.
Fapesp que concedeu o apoio financeiro, fundamental para o desenvolvimento
da pesquisa. Graas a esse apoio, pude realizar o estgio de doutorado no exterior.
Na Frana, trs professores me concederam ateno especial e deixo aqui meus
agradecimentos. Ao meu supervisor de estgio na Universit Paris 8 - Saint Denis,
Prof. Christophe Brochier, que me mostrou outros modos de fazer pesquisa e quecomentou atentamente a primeira verso do memorial de qualificao. Ao Prof.
Daniel Cefa pelo apoio necessrio estadia na Frana e participao nos
seminrios da cole de Hautes tudes en Sciences Sociales. Profa. Elisabeth
Campagnac pelo dilogo sobre as questes intrnsecas ao estudo da construo
civil.
Ao apoio institucional dado pelo Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e
Urbanismo da Escola de Engenharia de So Carlos (EESC-USP), em particular,
ao seu secretrio, Marcelo Celestini. Aos professores responsveis pelas disciplinasque realizei durante o doutorado: Prof. Renato Anelli; Profa. Cibele Rizek; Prof.
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
10/360
Miguel Buzzar; Profa. Sarah Feldman, Prof. Carlos Martins e Prof. Adrin
Gorelik; Prof. Joo Marcos de Almeida Lopes.
Ao dilogo com a Profa. Carolina Pozzi de Castro que me deu segurana para
continuar com minhas questes. Ao encontro com a Profa. Fernanda Furtado em
Recife - e que possamos prosseguir a interlocuo. explicao sobre os dados
econmicos dada pelo Prof. Carlos Alberto Bello. Aos dados enviados pelo Prof.
Eduardo Marques e Julia Andrade. Aos contatos fornecidos pelo Prof. Jos Carlos
Paliari, fundamentais para me aproximar dos engenheiros de obras.
s reflexes do grupo de estudos dos orientandos da Profa. Cibele Rizek. Junto
com Olvia, Roberta e Sandro pudemos discutir nossos projetos. interlocuo
acadmica promovida pelo Laboratrio de Estudos do Ambiente Urbano
Contemporneo (LEAUC - EESC/USP), sobretudo no momento da realizao dasua primeira Jornada Cientfica, quando as Profas. Ana Fani e Vera Pallamin
comentaram meu trabalho e colocaram novas perguntas a ele. Bia Tone, Bia
Rufino, Letcia e Luciana, colegas da FAU, pelas conversas sobre nossas pesquisas
sobre o tal do mercado imobilirio.
Aos engenheiros, arquitetos, mestre-de-obras e almoxarife que me abriram as
portas fechadas da ECP; sem eles, eu no poderia entrar no canteiro, tampouco
num escritrio de arquitetura para desenvolver minha pesquisa.
amizade e parceria no trabalho: Du, Dani, Thas, Lu, Mag, Renata, Lis,Fernando e Tati. s amigas de infncia, Maju e Lud. Aos momentos de
descontrao propiciados por Paulo Henrique e aos de introspeco nas aulas da
Lila. Aos amigos brasileiros na Frana, Ronaldo, Artionka, Vnia e Helena. Aos
amigos franceses, Max, Sarah, Alex, Laurent e David. Aos amigos mexicanos,
Gloria, Ernesto e Constanza. Aos meus professores brasileiros de francs, Cristina e
Cholo, e ao meu professor de francs-francs, Ms. Yves, funcionrio aposentado do
BTP parisiense. Ao amigo Marcel, pela reviso do abstract.
O meu caminho acadmico e profissional no seria possvel sem o apoio de meuspais, Maria e Shimbo. Eles me ensinaram a gostar de escola desde criana.
minha irm, Jlia, que sempre esteve por perto por mais que morasse longe, e ao
seu companheiro, Jonas. Regina, Toninho, Renata, Luciana e Paulo, pela
acolhida familiar.
Ao Gabriel, por nossa histria ao longo de doze anos. Sem ele, meus projetos no
poderiam ser melhorados, sequer delineados. Aos nossos filhos, Iara e Lo, a
quem dedico esta tese. Aos trs, simplesmente por estarmos no mundo, juntos.
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
11/360
Dada a reduo de liquidez verificada a partir no ltimo trimestre de2008, mostrou-se ser correta a estratgia de basear nosso crescimento emfuno de nossas disponibilidades de caixa. Embora o atual cenriomostre crescimento na oferta de crdito por meio do Programa MinhaCasa, Minha Vida e da reduo das taxas de juros, pretendemos reduzir,ainda mais, o emprego de capital prprio em nossas atividades deincorporao, repassando aos bancos e ao pblico o papel de financiadorde nossas necessidades de capital de giro e dos nossos clientes.
(Prospecto de divulgao da segunda oferta de aes da Empresa ConstrutoraPesquisada na Bovespa, 2009)
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
12/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
13/360
RESUMO
SHIMBO, Lcia Zanin. Habitao Social, Habitao de Mercado: a confluncia entreEstado, empresas construtoras e capital financeiro. Tese (Doutorado emArquitetura e Urbanismo) - Escola de Engenharia de So Carlos,Universidade de So Paulo, So Carlos, 2010.
Esta tese se insere no debate sobre as dinmicas da produo e da poltica de
habitao social no Brasil. Mais especificamente, trata da confluncia recente entre
Estado, mercado imobilirio e capital financeiro, que acabou por ampliar a
demanda por moradia atendida por grandes empresas construtoras e
incorporadoras e, ao mesmo tempo, por contemplar uma determinada fatia do
pblico-alvo da poltica habitacional. Essa poltica aqui compreendida noapenas pelo desenho institucional dos programas habitacionais, mas numa
perspectiva analtica que pe em relevo o olhar e a atuao do mercadoimobilirio sobre a prpria poltica. Seu objetivo duplo e requisitou abordagens
metodolgicas especficas para cada um deles. De um lado, busco compreender osprocessos que levaram ao crescimento exponencial de um tipo especfico de
produo habitacional, promovida por grandes empresas construtoras e
incorporadoras que abriram seu capital, voltada para imveis residenciais com
valores at duzentos mil reais e para uma faixa da populao com renda familiar
de at dez salrios mnimos. Trata-se do segmento econmico, assimconsiderado pelo mercado, ou da habitao social de mercado, como denomino
nesta tese. Recorri a uma pesquisa documental e quantitativa a fim de analisar
tanto os mecanismos regulatrios e institucionais promovidos pelo Estado, desde
meados da dcada de 1990, quanto a aproximao de empresas do setorimobilirio e da construo civil ao mercado de capitais, a partir dos anos 2000. De
outro lado, procuro compreender como se operacionaliza e se configura esse tipo de
produo a partir de uma pesquisa de carter etnogrfico numa empresa, quechamei de Empresa Construtora Pesquisada (ECP), tomada como objeto
heurstico da confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital financeiro.
Entre 2006 e 2008, essa empresa foi capaz de octuplicar a produo de unidades
habitacionais padronizadas, multiplicando por treze o valor de seu lucro lquido.
Para tanto, sua produo apresenta um diferencial que busquei apreender desde o
trabalho no canteiro de obras at suas relaes com o Estado e capital financeiro,passando pelo papel da arquitetura e da tecnologia.
Palavras chave: poltica habitacional, empresa construtora, mercado imobilirio,
capital financeiro, arquitetura, canteiro de obras.
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
14/360
ABSTRACT
SHIMBO, Lcia Zanin. Social Housing, Market Housing: the confluence of State,construction companies and financial capital. Tese (Doutorado) - Escolade Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo, So Carlos,2010.
This thesis contributes to the debate on the dynamics of production and of social
housing policy in Brazil. More specifically, it analyses the recent confluence of
State, real estate and finance capital that ultimately increased the demand for
housing covered by large construction companies and developers and that, at the
same time, met a particular fraction of the target public of housing policy. This
policy is here understood not only by the institutional structure of housingprograms, but within an analytical perspective that emphasizes the point of view
and performance of the property market on the policy itself. Its goal is twofoldand required specific methodological approaches to each one. On the first hand, I
try to understand the processes that led to the exponential growth of a specific
type of housing production, promoted by major construction companies and
developers that have opened their capital, focused on residential properties with
values up to two hundred thousand reais and for a population range with monthly
income of up to ten minimum wages. This is the low-income segment, as
considered by the market, or the social market housing as I call in this thesis. Iused a quantitative research to examine the regulatory and institutional
mechanisms promoted by the State since the mid-1990s, and also the attempts toclose the gap between the construction companies and developers and capital
market from the 2000s. On the other hand, I try to understand how this type of
production operates from an ethnographic study of a company, that I have called
Empresa Construtora Pesquisada (ECP), taken as a heuristic object of the
confluence between the State, real estate and financial capital. Between 2006 and
2008, this company was able to increase eight times the standardized productionof housing units and thirteen times the value of its profits. Therefore, its
production has a differential that I sought to apprehend from the working on the
construction site to its relations with the State and finance capital, including therole of architecture and technology.
Keywords: housing policy, construction company, real estate, financial capital,
architecture.
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
15/360
LISTAS
Lista de Quadros
Quadro 1: Programas habitacionais geridos pelo Ministrio das Cidades (2008). 79
Quadro 2: Caractersticas dos programas habitacionais que contemplam as modalidades
produo e aquisio de unidades habitacionais novas. 80
Quadro 3: Nmero total de empresas e pessoal ocupado na construo civil (1980-2006). 109
Quadro 4: Empresas listadas no segmento construo civil da Bovespa (set/2009). 121
Quadro 5: Vinte maiores incorporadoras e construtoras atuantes na RMSP (2008). 127
Quadro 6: Lanamentos residenciais e de escritrios na RMSP pelas incorporadoras de capital
aberto e subsidirias (2008) 128
Quadro 7: Lanamentos residenciais e de escritrios na RMSP pelas construtoras de capital aberto
e subsidirias (2008) 128
Quadro 8: Origem e caractersticas das incorporadoras e construtoras de capital aberto que atuam
no segmento econmico. 139
Quadro 9: Produo das empresas construtoras de capital aberto que atuam no segmento
econmico. 146
Quadro 10: Valores de VGV, de Vendas Contratadas e lucro lquido da ECP (2004-2009). 159
Quadro 11: Receitas, despesas, custos e lucro da ECP antes das alteraes da Lei no 11.638/07
(2004-2007). 166
Quadro 12: Receitas, despesas, custos e lucro da ECP depois das alteraes da Lei no 11.638/07
(2007-2008) 167
Quadro 13: Nmero de empregados da ECP (2004 e 2008). 176
Quadro 14: Caractersticas do estoque de terrenos da ECP (2006 a 2009). 182
Quadro 15: Opes de financiamento para um empreendimento da ECP (2008). 189
Quadro 16: Endividamento da ECP - em R$ mil (2006-2009). 196
Quadro 17: Descrio das trs linhas de produtos da ECP (fotos, implantao e plantas). 219
Quadro 18: Nmero de unidades vendidas por linha de produtos da ECP (2004 a 2008). 224
Quadro 19: Nmero de unidades vendidas por faixa de preo da ECP (2004 a 2008). 224
Quadro 20: Nmero de unidades vendidas por linha de produtos da ECP (1 sem/2008 e 1
sem/2009). 225
Quadro 21: Nmero de unidades vendidas por faixa de preo da ECP (1 sem/2008 e 1
sem/2009). 225
Quadro 22: ndices de produo e procedimentos de planejamento e controle adotados no
canteiro da ECP. 242
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
16/360
Lista de Figuras
Figura 1: Perspectivas ilustrativas e fotos de empreendimentos do segmento econmico. 144
Figura 2: Organograma da ECP elaborado pela autora. 180Figura 3: Ilustraes das reas externas de empreendimentos da ECP. 218
Figura 4: Modalidades de contratao de trabalhadores no canteiro da ECP. 308
Figura 5: Foto de empreendimento localizado em Belo Horizonte (MG) e concepo artstica de
empreendimento em So Jos do Rio Preto (SP). 345
Lista de Grficos
Grfico 1: Valores contratados FGTS (2000-2008), por programas. 84
Grfico 2: Modalidades de financiamento das vendas contratadas pela ECP. 86Grfico 3: Valores contratados pelo SBPE-FGTS (2002-2008), em R$ bilhes. 90
Grfico 4: Percentual de empresas de construo, de acordo com faixa de pessoal ocupado. 110
Grfico 5: Percentual de pessoal ocupado nas empresas de construo. 110
Grfico 6: Nmero de unidades residenciais lanadas na RMSP (1985-2008). 113
Grfico 7: Valor lanado e tamanho mdio dos lanamentos na RMSP (1985-2008). 114
Grfico 8: Lucro lquido de 14 empresas de capital aberto no 1 semestre/2007. (em R$ milhes)
125
Grfico 9: Lucro lquido de 16 empresas de capital aberto no 1 semestre/2008. (em R$ milhes)
125
Grfico 10: Lanamentos e vendas das empresas construtoras e incorporadoras de capital aberto
no segmento econmico (em nmero de unidades). 146
Grfico 11: Lanamentos e vendas das empresas construtoras e incorporadoras de capital aberto
no segmento econmico (em R$ mil). 147
Grfico 12: Nmero de unidades lanadas e tamanho mdio dos empreendimentos da ECP (2004-
2008). 160
Grfico 13: VGV da ECP - em R$ Mil (2004-2009). 161
Grfico 14: Vendas Contratadas da ECP - em R$ Mil (2004-2009). 162
Grfico 15: VGV versus Vendas Contratadas da ECP (2004-2009). 163
Grfico 16: Lucro lquido da ECP - em R$ mil (2004-2008). 163
Grfico 17: Demonstraes financeiras da ECP (2004-2008). 169
Grfico 18: Custo dos imveis em relao ao total de sadas financeiras da ECP (2005). 239
Lista de siglas e abreviaes
BNH: Banco Nacional de Habitao
BOVESPA: Bolsa de Valores de So Paulo
CBIC: Cmara Brasileira da Indstria da Construo
CEF: Caixa Econmica Federal
CNPJ: Cadastro Nacional da Pessoa Jurdica
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
17/360
COFINS: Contribuio para Financiamento da Seguridade Social
COHAB: Companhia Habitacional
CPMF: Contribuio Provisria sobre Movimentao ou Transmisso de Valores e de Crditos e
Direitos de Natureza Financeira
CRI: Certificados de Recebveis Imobilirios
CUB: Custo da Construo Residencial
CVM: Comisso de Valores Mobilirios
DIEESE: Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos
EBITDA: Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization
ECP: Empresa Construtora Pesquisada
EMBRAESP: Empresa Brasileira de Estudos do Patrimnio
FAF: Fundos de Aplicao FinanceiraFAR: Fundo de Arrendamento Residencial
FAS: Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social
FCP: Fundao da Casa Popular
FDS: Fundo de Desenvolvimento Social
FGTS: Fundo de Garantia do Tempo de Servio
FGV: Fundao Getlio Vargas
FHC: Fernando Henrique Cardoso
FII: Fundo de Investimentos Imobilirios
FJP: Fundao Joo Pinheiro
FNHIS: Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IGP-M: ndice Geral de Preos do Mercado
INCC: ndice Nacional de Custos da Construo
IPI: Imposto sobre Produtos Industrializados
IPO: Initial Public Offering
MCMV: Pacote Habitacional Minha Casa, Minha Vida
OGU: Oramento Geral da Unio
ONG: organizao no-governamentalOPA: Oferta Pblica de Aes
OTPF: Organizao do Trabalho pela Prescrio Fluida
PAC: Programa de Acelerao do Crescimento
PAIC: Pesquisa Anual da Indstria da Construo
PAR: Programa de Arrendamento Residencial
PBQP-H: Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade do Habitat
PIS: Programa de Integrao Social
PNAD: Pesquisa Nacional por Amostras de Domiclio
PNDU: Poltica Nacional de Desenvolvimento Urbano
PNH: Poltica Nacional de Habitao
PSH: Programa de Subsdio Habitao de Interesse Social
PT: Partido dos TrabalhadoresRAIS: Relao Anual de Informaes Sociais
RMSP: Regio Metropolitana de So Paulo
SBPE: Sistema Brasileiro de Poupana e Emprstimo
SFH: Sistema Financeiro da Habitao
SFI: Sistema Financeiro Imobilirio
SINAPI: Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e ndices da Construo Civil
SM: Salrios Mnimos
SNHIS: Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social
SPE: Sociedade de Propsito Especfico
TR: Taxa Referencial
UH: Unidade Habitacional
VGV: Valor Geral de Vendas
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
18/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
19/360
SUMRIO
PARTE I Introduo
ApresentaoOrganizao do texto
Construo de uma perspectiva de pesquisaAs dinmicas da pesquisa
As dimenses da produo da habitao no Brasilcontemporneo
Fronteira de indistino entre as formas pblica e privada deproduoUm nico agente para todo o ciclo de produo
PARTE II Estado, empresas construtoras e capital financeiro napoltica habitacional
CAPTULO 1 Estado, mercado e capital financeiro: histria recente de
uma conflunciaEstado e mercado na poltica habitacional brasileira: 1985 a 2002
Da dissoluo do BNH ao governo de Itamar Franco (1985 a1994)Os governos de FHC (1995-2002)
Entre a proposta e a concretizao da poltica habitacional nosgovernos Lula: 2003 a 2010
A proposta da Poltica Nacional de Habitao (PNH)Pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida
As etapas de aproximao entre capital financeiro e mercado
imobilirioA aproximao truncada entre capital financeiro e setorimobilirio no Brasil: primeira etapa (1993 a 2004)
A aproximao efetiva entre capital financeiro e setorimobilirio no Brasil: segunda etapa (2005 a 2010)
CAPTULO 2 Empresas construtoras e capital financeiro: constituio dahabitao social de mercado
O crescimento das grandes empresas e as dinmicas imobiliriasO crescimento da grande empresa do setor da construo civilA dinmica imobiliria na RMSP: ciclos de produo entre 1985
21
23
29
33
38
46
47
52
59
61
63
64
66
73
7592
97
99
102
105
107
108
112
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
20/360
e 2008
Concentrao de capital nas empresas financeirizadasPico de abertura de capital e composio acionriaCrescimento e distribuio do lucro lquido
O quanto representou a dinmica imobiliria capitalizada naRMSP
As empresas de capital aberto que atuam na habitao social demercado
Configurao e caractersticas da produoNmeros da produo e banco de terrenos
CAPTULO 3A Empresa Construtora Pesquisada (ECP): a conflunciaem operao
O processo de abertura de capital
Os nmeros do crescimento agressivoAumento dos lanamentos e das vendas de unidadesresidenciaisDe onde vem o lucro?
A estrutura de produo e de gestoInstncias de deciso e de gesto da empresaEtapas de produo
Ampliao do financiamento aos clientes via bancos comerciais e
CEF Vnculo direto com a CEFSimbiose com o Pacote Minha Casa, Minha Vida
Captao de capital na Bolsa de Valores: financiamento produo
Um banco mltiplo ligado empresa
PARTE III O lugar da arquitetura, da tecnologia e do canteiro naproduo da ECP
CAPTULO 4 O lugar do arquiteto: padronizao de produtos
Precedentes: a relao entre arquitetura e indstria
O trabalho do arquiteto na ECPO arquiteto autnomo contratado: dcada de 1990O arquiteto de escritrios terceirizados: padronizaoconsolidada nos anos 2000O arquiteto subcontratado pelo escritrio terceirizadoO arquiteto funcionrio da empresa
Padronizao de produtos
117
120123
125
133
136145
149
155
158
158
164
176
177
181
190
191192
194
197
199
201
204
208
209
211
214
215
217
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
21/360
Consumo dos produtos
CAPTULO 5 O lugar da tecnologia: padronizao do processo produtivo
e sistema de controle
Padronizao do processo de produoInstrumentos de prescrio
Custo e controle
Sistema online de controlendices de produo: cronograma, custos, consumo de materiaise moeda ECPProcedimentos Internos de Planejamento e de Controle: rankingdas obras e estoque online
Procedimentos Externos de Controle: auditorias, supervises edivulgao de solues construtivasIncentivos: prmios e Banco de Ideias
Alvenaria estrutural e re-trabalho: o (no) lugar das inovaestecnolgicas
CAPTULO 6 O lugar do canteiro: trabalho controlado
Perspectivas sobre o canteiro brasileiro: manufatura e atraso
Os trabalhadores do canteiro nos anos 2000
O processo de trabalhoA hierarquia a partir da entrada do sistema onlineA prescrio do trabalhoPropriedade dos instrumentos e ferramentas
Regulamentao do trabalhoSubempreitada e terceirizaoRegistro em carteiraLiminaridades na regulamentao
Sntese: o (no) lugar do arquiteto
PARTE IVNotas finais
Do servente ao investidor, do arquiteto ao gestor
Habitao social de mercado servindo ao Estado e ao capitalfinanceiro?
Padronizao de enclaves para a classe C
Referncias bibliogrficas
223
227
232
233
237
240
243
246
248
250
253
259
263
269
278
281296304307309317320
323
327
329
339
343
347
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
22/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
23/360
PARTE I
Introduo
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
24/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
25/360
Apresentao
Esta tese trata da poltica habitacional brasileira recente, descrevendo e
analisando a confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital
financeiro. Desde os anos 1990 vm se constituindo, no Brasil, mecanismos
jurdicos e institucionais que prepararam o terreno para a ampliao e a
consolidao da produo privada de moradias, inclusive para uma faixa de
renda familiar que anteriormente no era atendida pelo mercado formal
promovido por grandes empresas. Sem grande alarde, o mercado imobilirio
passou a ocupar a posio de ator central na poltica brasileira recente de
habitao.1
A relao entre poltica pblica habitacional e produo privada de moradias
jamais deixou de existir no Brasil.2 No entanto, ela se redesenhou com a
entrada do capital financeiro nas grandes empresas construtoras e
incorporadoras e com o aumento de recursos dos principais fundos pblicos e
semipblicos - o Fundo de Garantia do Tempo de Servio (FGTS) e o
Sistema Brasileiro de Poupana e Emprstimo (SBPE) -, do Sistema
Financeiro da Habitao (SFH), a partir de meados dos anos 2000.
1 Refiro-me aqui noo de poltica habitacional como resultado de uma articulao deinteresses polticos e econmicos e de um jogo de poder, no qual o Estado desempenha papelfundamental como legitimador dos interesses do capital. Portanto, no me refiro noo depoltica em seus contedos emancipatrios, como a formula Rancire (1996) - noo que temsido frequentemente citada na crtica ao neoliberalismo, como um contraponto ideia degesto promovida por atores institucionais (que o autor chama de polcia). Poltica, para oautor, supe o dissenso quanto entrada e quanto reivindicao da fala e da parceladaqueles que no tm parcela, na comunidade poltica, no entendida apenas como umterreno institucional. Nesse sentido, a noo de poltica habitacional, que utilizo, estaria maisprxima da ideia de polcia (ou gesto), no num sentido pejorativo (como ressaltaRancire), mas que delimita a cena poltica dos atores j constitudos que determinam,inclusive, o local e o modo como aqueles sem parcela podem entrar no terrenoinstitucional, e esse espao claro, no meu caso: como pblico-alvo dos programashabitacionais.2 Como destaca Arretche (1990), desde a poca do Banco Nacional de Habitao (BNH,1964-1985), que se constituiu a partir do padro de interveno e de centralizao estatal nosetor habitacional, prprio dos regimes militares do perodo, havia a segmentao da proviso dacasa prpria em dois mercados distintos: um voltado para os setores de renda mdia e alta, com
financiamento e promoo privados; e outro, para os setores de baixa renda, a partir dapromoo pblica. Sobre a atuao do BNH, ver tambm: Azevedo (1982), Bolaffi (1982),Bonduki (1998), Sachs (1999) e Souza (1999).
23
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
26/360
Com essa juno de recursos pblicos e privados, nos ltimos anos, vem
ocorrendo um rpido crescimento da produo de moradias dessas grandes
empresas, voltada para um pblico que pode acessar o crdito habitacional,
operacionalizado pelo SFH. Trata-se do segmento econmico, assim denominado
pelo mercado imobilirio, que se voltou para a produo de imveis
residenciais com valores de at R$ 200.000,00, destinados s famlias com
renda mensal entre trs e dez salrios mnimos. Esse segmento lanou, em
2006, aproximadamente oito mil e quinhentas unidades habitacionais (em
diversas cidades brasileiras), ao passo que, em 2008, foram mais de setenta e
oito mil - ou seja, o nmero de unidades produzidas aumentou
aproximadamente nove vezes em apenas dois anos.3
Devido articulao recente entre Estado e mercado na poltica habitacional,
eu denominarei nesta tese o segmento econmico como a habitao social de
mercado, juntando dois nomes que anteriormente poderiam corresponder a
sistemas de financiamento diferentes, o social e o de mercado. No Brasil,
a partir da interveno estatal na habitao da era Vargas que se formula o
conceito de habitao social que, segundo Bonduki (1998)4, a habitao
produzida e financiada pelo Estado destinada populao de baixa renda.Interessante notar que houve, historicamente, diferentes nomes atribudos a
esse tipo de produo (popular, econmica e social) e que hoje so
apropriados pelo mercado imobilirio (o segmento econmico, o segmento
popular, o segmento para baixa renda etc.) para designar esse seu novo
nicho lucrativo de atuao.5
A fim de compreender a natureza e as razes que levaram confluncia entre
Estado, mercado imobilirio e capital financeiro e ao crescimento agressivodesse tipo de produo habitacional, busco responder nesta tese uma questo
3 Dados obtidos nos relatrios de desempenho operacional e financeiro das empresas,organizados pela autora (2009). Segundo dados da Embraesp (2010), publicados em matria dojornal O Estado de So Paulo, entre 2005 e 2009, os lanamentos de imveis para a baixa rendamais do que triplicaram na Regio Metropolitana de So Paulo (RMSP), ocorrendo um aumentode 350%. Cf. PACHECO, 2010.4 BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitao social no Brasil. So Paulo: Estao Liberdade,FAPESP, 1998.
5 A minha denominao, contudo, difere do nome tcnicohabitao de interesse social
, quecontinua atendendo, preferencialmente, as faixas de renda que precisam de subsdio
governamental e que tem o Estado como seu agente promotor principal.
24
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
27/360
geral e bastante simples: como as empresas construtoras e incorporadoras
expandiram sua produo nos ltimos anos no Brasil? Como se beneficiaram
dos incentivos pblicos e, paralelamente, da tendncia mundial de
financeirizao da economia, aumentando vertiginosamente o seu capital e
ampliando geograficamente sua atuao?
Para responder a essa questo, precisei abandonar a perspectiva analtica mais
tradicionalmente utilizada no debate, que compreende a poltica habitacional
apenas como o desenho dos programas ou polticas de governo. Procurei, ao
contrrio, compreender a poltica habitacional tal como ela se mostrava em
minha pesquisa de campo, ou seja, a partir do protagonismo do mercado
privado. Mais precisamente, tratei de investigar os modos como uma grandeempresa construtora atua tanto em relao ao capital financeiro quanto s
medidas governamentais; no apenas utilizando-se dos interditos e brechas
deixadas pela regulao pblica, como tambm participando ativamente da
elaborao de novos programas habitacionais.
A nova poltica nacional de habitao, elaborada em 2004 pelo primeiro
governo de Luiz Incio Lula da Silva (2003-2006), especificava dois
subsistemas de habitao: o Subsistema de Habitao de Interesse Social e oSubsistema de Habitao de Mercado, separados de acordo com o perfil da
demanda, cada um com suas fontes de recursos especficas. Alm disso, visava
ampliar maciamente os recursos do FGTS e do SBPE para os financiamentos
habitacionais e arregimentar outros fundos para esse fim, na perspectiva de se
aumentar a produo subsidiada de habitao (para as faixas at trs salrios
mnimos) e de se fomentar o mercado privado de habitao.
Uma das intencionalidades dessa poltica era justamente ampliar o mercado
para atingir os setores populares, permitindo a otimizao econmica dos
recursos pblicos e privados investidos no setor habitacional.6 Para tanto, era
prevista a criao de mecanismos tanto de proteo aos financiamentos
habitacionais como de captao de recursos, entre os quais, aqueles disponveis
no mercado de capitais.
6 BRASIL. Ministrio das Cidades. Poltica Nacional de Habitao. Braslia: Ministrio dasCidades, 2004.
25
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
28/360
Tais mecanismos previstos na nova poltica foram implementados
paulatinamente, embora no tenham sido a princpio operacionalizados dentro de
programas habitacionais especficos, o que aconteceria mais adiante.7 Desde
aquele momento, entretanto, os agentes privados souberam atuar na
liminaridade entre o que a poltica especificava como habitao de interesse
social e como habitao de mercado, tirando proveito disso.
Por um lado, houve um aumento exponencial nos valores de financiamento
habitacional contratados pelo sistema FGTS-SBPE: em 2003, quando se
iniciou o primeiro governo Lula, o valor total contratado era de
aproximadamente cinco bilhes de reais; em 2008, na metade do segundo
governo, esse valor excedeu quarenta bilhes de reais.8 Por outro, um conjuntode grandes empresas construtoras e incorporadoras se aproximou do mercado
de capitais pela captao direta de recursos via oferta pblica de aes
(OPA) ou, em ingls, IPO (Initial Public Offering), na Bolsa de Valores de So
Paulo (Bovespa). At 2008, as vinte e cinco empresas listadas no segmento
construo civil da Bovespa haviam captado mais de vinte bilhes de
dlares.9
Nesse contexto, surgiu um novo agente privado na produo de habitao, quedesempenha mltiplos papis, outrora delegados a agentes diferentes. A
incorporadora e a empresa construtora, fundidas numa mesma figura jurdica,
agora compra terrenos (e os reserva, num land bank), executa a construo,
comercializa as unidades habitacionais, articula o financiamento habitacional
7 O favorecimento atuao do mercado privado torna-se claro e desenhado enquantoprograma habitacional a partir de 2009, com o lanamento do Pacote Minha Casa, Minha
Vida (MCMV).8 Conforme dados da CBIC (2008). Disponveis em: .
Acesso em: 13 jul. 2009.9 Antes dessas empresas abrirem seu capital, j estava em curso, no Brasil, uma tendncia decrescimento e de concentrao de capital nas grandes empresas atuantes no mercadoimobilirio residencial, sobretudo, as incorporadoras e as construtoras. Aps a abertura decapital, a produo dessas empresas foi potencializada e abrangeu grande parte dos imveiscomercializados recentemente na RMSP, em especial. Para se ter uma ideia, segundo dadosapresentados por Volochko (2007), em 2000, as dez empresas com maior participao no
valor geral dos negcios na RMSP abrangiam 20% do total do mercado imobilirio residenciallocal. Em 2005, essa porcentagem aumentou para 28%, como aponta o autor. Em 2008, de
acordo com dados da Embraesp (2008), ela subiu para 36,5%, sendo que, dessas dez maioresempresas, apenas uma no havia aberto seu capital na Bovespa. Cf. IBGE (2006), Volochko(2007), Embraesp (2008) e Sigolo (2009).
26
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
29/360
do cliente (fase de pr-aprovao na concesso do crdito) e captura recursos no
mercado de capitais - alm daqueles do SFH.
Ou seja, o mercado imobilirio se beneficiou duplamente ao conseguir acessar
os recursos de ambos os subsistemas de financiamento inicialmente previstosna poltica de habitao. Royer (2009)10 aponta que houve recentemente no
Brasil a financeirizao da poltica habitacional. Segundo a autora, a proviso
habitacional migrou do discurso universalista dos direitos fundamentais para
a lgica seletiva dos mercados, articulando-se de maneira inovadora com a
arquitetura financeira dos novos padres de acumulao do capital.11
Para caracterizar o modo como se operacionaliza essa financeirizao da
poltica habitacional, recorri a uma abordagem metodolgica que concilioupesquisa documental e quantitativa (documentos das empresas e dados
estatsticos) a uma pesquisa de carter etnogrfico em uma grande empresa
construtora e incorporadora de capital aberto, entre 2007 e 2010.
A Empresa Construtora Pesquisada (ECP), como a denominarei daqui por
diante, um exemplo emblemtico daquele novo agente privado na produo
de habitao. Por um lado, ela operacionaliza o vnculo com o Estado e com o
capital financeiro, na medida em que obtm recursos pblicos ou sob gesto
pblica advindos tanto dos crditos habitacionais, concedidos diretamente aos
seus clientes, como ao financiamento produo em si; alm de captar
recursos na Bolsa de Valores. Por outro, ela rene todas aquelas atribuies,
citadas anteriormente (incorporadora, construtora, vendedora e financiadora);
capaz de produzir mais de vinte mil unidades anuais em diversas cidades do
10 ROYER, Luciana de Oliveira. Financeirizao da poltica habitacional: limites e perspectivas.Tese(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.11 ROYER, 2009, p. 14. Em sua tese de doutorado, recm defendida (no campo da arquiteturae urbanismo), Luciana Royer procurou compreender alguns resultados da poltica de crditohabitacional, analisando os principais fundings da poltica (o SBPE e o FGTS), o SistemaFinanceiro da Habitao (SFH) e o Sistema Financeiro Imobilirio (SFI). Ao buscar analisar o
funcionamento do SFI na lgica de uma poltica pblica de habitao, a autora se aproximabastante de um dos argumentos aqui tratados. Para tanto, vale destacar que Royer utilizoudados primrios oriundos do Banco Central do Brasil e da Caixa Econmica Federal (CEF).
27
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
30/360
pas, a partir de uma padronizao e de um sistema de controle do processo
produtivo; e mantm uma alta taxa de solvabilidade.12
A ECP apresenta, portanto, um valor heurstico em relao s dinmicas
recentes da confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital financeiro,na medida em que norteou a pesquisa e contribuiu para a explicao das
relaes que eu buscava compreender. Por isso, a minha escolha foi estud-la
em profundidade, nas trs principais dimenses de sua produo: i)
organizao do trabalho no canteiro de obras; ii) o papel da arquitetura e
da tecnologia; iii) relaes com o Estado e o capital financeiro. Persigo,
para tanto, as seguintes questes empricas: qual o diferencial da ECP na
produo de moradias, que interessa tanto ao Estado como aos investidoresfinanceiros? Quais so as causas da elevada taxa de lucros dessa empresa?
Como a arquitetura e a tecnologia contribuem para esse tipo de produo?
Atravs da pesquisa de campo, procuro compreender como se
operacionalizam os processos de gesto e de produo no interior da empresa,
que garantem tal solvabilidade e estabelecem uma vinculao - possvel de
reconstruir analiticamente - desde o papel do servente, no canteiro de obras,
at o investidor no mercado financeiro. Mesmo no interagindo na realidade,esses dois personagens so representativos dos extremos da coetaneidade entre
uma base de produo tradicional (a reproduo da explorao do trabalho no
canteiro de obras e a presena da margem incompressvel do saber fazer do
trabalhador)13 e a expresso mais atual do neoliberalismo, a autonomizao da
acumulao financeira.14 Entre esses extremos, encontram-se o arquiteto e o
engenheiro, outros personagens que fazem a mediao entre o canteiro e a
esfera de deciso do investidor.
12 Nos ltimos quatro anos, a faixa de lucro lquido da ECP girou em torno de 15 e 20% dototal da sua receita bruta, o que considerado como uma alta taxa de solvabilidade entre asempresas construtoras e incorporadoras. Entre 2007 e 2008, o valor do lucro lquido daempresa aumentou 440%.13 Expresso de Farah (1996).FARAH, Marta Ferreira Santos. Processo de trabalho na construo habitacional: tradio e mudana. So
Paulo: Annablume, Fapesp,1996.14 Para Leda Paulani (2008), o Brasil se encontra, desde a dcada de 1990, numa condio deservido financeira, em relao cabine de comando do capitalismo contemporneo.
28
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
31/360
Fortalecendo essa perspectiva analtica, busco apreender como se opera
empiricamente o vnculo entre mercado imobilirio e Estado, a partir das
estratgias de produo que a ECP define de acordo com a poltica de crdito
do governo federal.15 Os seus produtos so, em grande medida, encaixados
nos limites dos valores dos imveis financiados pela Caixa Econmica Federal
(CEF), que operacionaliza os recursos do FGTS e do SBPE. Esse vnculo, j
presente h bastante tempo, torna-se evidente a partir do Programa Minha
Casa, Minha Vida, lanado pelo governo federal em maro de 2009, ao ponto
do presidente da ECP declarar que sua empresa participou ativamente da
concepo do pacote e que ele vai ser feito a quatro mos: Caixa Econmica
Federal mais construtoras.16
Organizao do texto
O texto da presente tese se organiza a partir das duas grandes questes
esboadas anteriormente, relacionadas, no nvel analtico, ao modo como os
agentes privados se beneficiaram dos incentivos pblicos e da presena do
capital financeiro na produo de habitao; e, no nvel emprico, ao modo
como determinada empresa, a ECP, garante sua lucratividade e d retorno,
simultaneamente, poltica habitacional e ao mercado financeiro. Assim sendo,
inicio pelo carter mais geral do vnculo entre Estado e mercado, analisando o
histrico da poltica habitacional entre 1990 e 2010 e a aproximao do capital
financeiro ao setor imobilirio; e finalizo com a operacionalizao especfica
desse vnculo na ECP.
Antes, porm, de entrar na discusso e na anlise dos dados propriamente
ditos, coletados durante a pesquisa de doutorado, a Parte I desta tese traz: i)
uma introduo s questes que procuro aqui analisar - j esboadas
15 Para a ECP, inclusive, o setor imobilirio altamente dependente da disponibilidade decrdito no mercado e a poltica de crdito do Governo Federal afeta significativamente adisponibilidade de recursos para o financiamento imobilirio, influenciando o fornecimento ea demanda por propriedades (Texto extrado do prospecto pblico emitido pela EmpresaConstrutora Pesquisada, no momento da sua segunda oferta de aes na Bolsa de Valores, em2009).
16 Declarao feita na teleconferncia dos resultados operacionais e financeiros de 2008 daECP, ocorrida um dia aps o anncio do pacote. Segundo reportagem do jornal O Estado de SoPaulo, as construtoras sero o principal agente do programa (OTTA, 2009).
29
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
32/360
anteriormente; ii) o processo de construo de uma perspectiva de pesquisa; e iii)
o dilogo das questes desta tese com o debate acadmico sobre os agentes e as
formas de produo da habitao.
Na Parte II, procuro compreender as razes que levaram ao crescimentorecente das empresas construtoras e incorporadoras de capital aberto, seguindo
trs caminhos analticos distintos, cujos processos foram praticamente
concomitantes e que levaram confluncia entre mercado, Estado e capital
financeiro. O primeiro caminho recupera o histrico da poltica habitacional,
gestada no mbito federal, e do conjunto de medidas regulatrias que
favoreceram a atuao privada na produo de moradias, desde o final da
dcada de 1990. No segundo caminho, analiso a trajetria da aproximao docapital financeiro ao setor imobilirio - e esses dois caminhos encontram-se
delineados no Captulo 1.
No Captulo 2, percorro o terceiro caminho, analisando a tendncia de
crescimento e de concentrao de capital nas grandes empresas do setor da
construo civil, que culminou no processo de abertura de capital dessas
empresas, a partir de 2005, sobretudo; e na atuao no segmento da habitao
social de mercado. Ao final desse captulo, portanto, analiso a configurao e ascaractersticas dessas empresas financeirizadas, ou o real estate brasileira, e que
destinaram uma parte, ou a totalidade, da sua produo para faixas de renda
entre trs e dez salrios mnimos, que no eram anteriormente atendidas por essa
vertente do mercado imobilirio.
O Captulo 3 abre o estudo sobre a ECP e finaliza a Parte II ao apresentar a
operacionalizao da confluncia entre Estado, mercado imobilirio e capital
financeiro. Descrevo, primeiramente, a sua estrutura de gesto e discuto,
posteriormente, o modo como se efetiva a simbiose entre os financiamentos
habitacionais e as estratgias de produo da empresa. Tambm analiso o
processo de aproximao ao mercado de capitais e qual foi o impacto do
capital financeiro na sua produo. Nesse sentido, procuro identificar qual o
critrio diferencial da ECP e por que ela cresceu de forma to acelerada
recentemente.
30
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
33/360
Na Parte III, enfoco o lugar da arquitetura, da tecnologia e do canteiro de
obras, que considero como elementos fundamentais para a compreenso da
expertise da ECP. Em primeiro lugar, no Captulo 4, destaco o papel do
arquiteto na elaborao da padronizao dos produtos da empresa. A partir da
consolidao dessa padronizao, procuro analisar como a atividade desse
profissional se reduziu ao agenciamento de tipologias padronizadas nos
terrenos onde so implantados os empreendimentos, segundo cada legislao
local - ao mesmo tempo em que a forma de contratao dos arquitetos foi se
tornando cada vez mais precarizada. Alm disso, apresento os resultados dessa
padronizao em termos da configurao arquitetnica e espacial de cada linha
de produtos, bem como a proporo de vendas de unidades habitacionais, em
cada uma dessas linhas.
Acoplada padronizao de produtos, est presente na empresa outro tipo de
padronizao, muito mais profunda, relacionada ao processo de produo.
Essa padronizao do processo produtivo analisada no Captulo 5, a partir
da descrio de seus mecanismos de prescrio e de controle sobre o trabalho
no canteiro de obras. H uma memria de j-saberes na empresa que
possibilita a padronizao dos gestos no canteiro e, consequentemente, umamaior facilidade no controle sobre os trabalhadores. H um saber tecnolgico,
baseado nessa memria, na informatizao e na onipresena do controle, que
se alia ao saber fazer presente h tempos na organizao do trabalho no canteiro
de obras - e ambos os saberes respondem velocidade e linguagem da esfera
financeira.
A organizao do trabalho no canteiro tratada no Captulo 6. Procuro, num
primeiro momento, caracterizar o processo de trabalho, a partir da hierarquiaali estabelecida, da prescrio das tarefas e da regulamentao dos
trabalhadores, para ento identificar as relaes desse processo com o sistema
online de controle. Ou seja, tornando a leitura do campo de foras presente no
canteiro ainda mais complexa, o sistema online passa a ser mais um personagem
que interage diretamente com o trip da obra (engenheiro, mestre-de-obras e
almoxarife) que, por sua vez, lida e controla os demais trabalhadores. Alm
dessa anlise do cotidiano da produo, procuro apreender como as estratgias
31
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
34/360
definidas no topo da empresa, seguindo as tendncias do mercado financeiro e da
poltica habitacional, so traduzidas e implementadas no canteiro.
Por fim, a Parte IV procura alinhavar o conjunto de argumentos tratados em
cada um dos captulos anteriores, apontando para possveis concluses destatese e para questes suscitadas pela sua reflexo. A ideia deste captulo final
procurar encontrar uma coerncia interna entre a conformao do trabalho no
canteiro; o lugar da arquitetura e da tecnologia nessa produo; as relaes da
empresa com o Estado e com o capital financeiro; e, finalmente, a confluncia
entre mercado, Estado e capital financeiro que se materializa na poltica
habitacional brasileira recente.
32
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
35/360
Construo de uma perspectiva de pesquisa
As questes desta tese no se apresentavam dessa maneira no meu projeto de
pesquisa de doutorado. Em 2006, o objetivo principal do projeto era analisar a
produo da arquitetura a partir das relaes entre os trabalhadores da
construo civil, e entre eles e os arquitetos no canteiro de obras. A pesquisa
de carter etnogrfico se colocava para mim, naquele momento, como o
caminho metodolgico que desvelaria as particularidades do fazer
arquitetnico e das contradies imanentes da relao entre canteiro e
desenho, como discutia Srgio Ferro, desde a dcada de 1970.
Eu me propunha a observar e a interagir com o cotidiano da produo no
canteiro de obras, mesmo no sabendo precisamente como isso se
operacionalizaria. J havia participado de canteiros de obras exercendo minha
profisso de arquiteta, em projetos de residncias, de escritrio e de habitao
de interesse social - nesse ltimo caso, atuei como pesquisadora e arquiteta,
pois se tratava de uma pesquisa-ao, empreendida no meu mestrado.17 No
sabia, portanto, como poderia frequentar um canteiro de obras sem a
necessidade do meu ofcio, na figura exclusiva de pesquisadora.
Por isso mesmo, a fim de conhecer as implicaes tericas e prticas da
etnografia, mais utilizada no campo da sociologia e da antropologia do que na
arquitetura, realizei um estgio de doutorado na Frana, logo na passagem do
primeiro para o segundo ano de desenvolvimento do doutorado.18 L pude
conhecer socilogos que enfatizavam o carter etnogrfico da pesquisa de
campo19
, assim como pude ler autores clssicos vindos dessa tradio.20
17 SHIMBO, Lcia Zanin. A casa o piv: mediaes entre o arquiteto, o morador e ahabitao rural. Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Engenharia deSo Carlos, Universidade de So Paulo, So Carlos, 2004.18 Estgio realizado sob orientao do Prof. Christophe Brochier (Groupe de RechercheEcole, Travail, Institutions - GETI, do Departamento de Sociologia, da Universidade Paris8/Saint-Denis), entre dezembro de 2006 e junho de 2007. Esse estgio possibilitou oacompanhamento de um semestre acadmico tanto da Universidade Paris 8/Saint-Denis,como da cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), onde me inscrevi comodoctorant libre
a fim de cursar os seminrios oferecidos por esta instituio.19 Apesar de ser um termo cuja definio precisa no consenso nas cincias sociais, a
pesquisa de campo se refere a um mtodo de investigao emprica que se desenvolveu na
33
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
36/360
Essa imerso metodolgica me propiciou a problematizao de alguns
preceitos de mtodos qualitativos de pesquisa que no tm a pretenso
etnogrfica (mas que de modo algum os invalida) - como, por exemplo, levar
questes objetivas e bem delimitadas ao campo, segundo as categorias
analticas previamente elaboradas; considerar um apanhado de entrevistas
como nica fonte de informao etc. Segui, a princpio, a postura do etngrafo
de se deixar levar pelas questes que o prprio campo suscita ao pesquisador
e, num primeiro momento, elaborar a descrio densa21 da situao observada e
vivida, para ento se retirar as categorias de anlise dos fatos e fenmenos que
se procura compreender.
Foi, portanto, a partir dessa postura que pude construir minha perspectiva depesquisa. Eu no escolhi a ECP por saber a priori que ela representava a
materializao da confluncia entre poltica habitacional e capital financeiro.
Na fase de prospeco da minha pesquisa de campo, conversei com
professores universitrios que j haviam realizado pesquisas em canteiros de
obras, procurando obter contatos com as empresas construtoras. Um deles me
perspectiva de se consolidar as pesquisas sociolgicas e antropolgicas como uma rea deconhecimento to cientfica quanto aquelas das cincias da natureza. De forma geral, esse tipode pesquisa, dentro de uma abordagem qualitativa, procura compreender uma situao social,a partir da observao dos fatos que se desenrolam nessa situao, de entrevistas com aspessoas ali envolvidas e de acesso a documentos. Tomo aqui como referncia o trabalho decompilao acerca das definies e histrico da pesquisa de campo realizado por Cefa (2003).Para esse autor, em sua essncia, a pesquisa de campo se move entre as mltiplas questes eenigmas que carecem de compreenso e de explicao por parte do pesquisador e que o levama buscar na observao e na descrio de uma dada situao social, suas respostas. Trata-sedesse vai-e-vem entre as diversas operaes de interao, de observao e de registro e osmomentos de codificao e de anlise que subsidia o processo de interpretao, decompreenso e de explicao da realidade em que o pesquisador mergulha e, ao mesmotempo, sobrevoa - estabelecendo pontes com outras realidades e outros nveis analticos.20 Iniciei pela leitura de autores da Escola de Chicago (como, por exemplo, Donald Roy,Howard Becker, Everett Hughes, William Foote Whyte etc.), com suas pesquisas etnogrficasque se tornaram clssicos desse tipo de abordagem metodolgica, realizadas nos EstadosUnidos entre as dcadas de 1930 e 1950. Ver: Roy (2006); Becker et al. (2007); Hughes (1996);
Whyte (2005).21 Geertz (1989) ressalta que no se pode compreender a prtica da etnografia somente comouma questo de mtodos. Segundo a opinio dos livros-textos, praticar a etnografia estabelecer relaes, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapearcampos, manter um dirio, e assim por diante. Mas no so essas coisas, as tcnicas e os
processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define o tipo de esforointelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrio densa (GEERTZ,1989, p. 23).
34
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
37/360
indicou o Daniel22, que havia sido seu aluno na graduao, e que trabalhava
como engenheiro de obras da ECP - esse mesmo professor j me adiantara
que se tratava de uma construtora de atuao nacional. Por intermdio desse
professor, Daniel me autorizou a frequentar o canteiro sob sua
responsabilidade, o empreendimento residencial Monte Alto, localizado no
municpio de So Carlos (SP).23 Passar os tapumes e pela placa proibida a
entrada de pessoas sem autorizao uma das primeiras dificuldades quando se
quer entrar num canteiro de obras, com autorizao.24 Meu critrio inicial de
escolha foi, portanto, a obteno da autorizao.
Obtive autorizao para entrar em outros canteiros localizados nessa cidade:
um promovido por uma empresa de atuao local e outro promovido pelorgo responsvel pela produo de habitao de interesse social na Prefeitura
Municipal de So Carlos, sob regime de construo em mutiro.25 E resolvi
realizar uma incurso exploratria no campo de pesquisa, recm-aberto, com
essas duas possibilidades, alm daquela da ECP. Frequentei simultaneamente
os trs canteiros durante um ms. Abandonei em seguida o canteiro da
22 Nome fictcio. Todos os nomes reais que poderiam revelar a identidade da empresa ou dapessoa mencionada foram trocados por nomes fictcios neste texto. Apenas os nomes citadosem reportagens e artigos de jornais e revistas - de circulao pblica, portanto -, no foramtrocados.23 O Monte Alto um edifcio residencial com quarenta apartamentos, divididos em cincopavimentos (incluindo a cobertura), num terreno com rea de 1500 m 2. Localizado na cidadede So Carlos (SP), o empreendimento se encontra num dos vetores de ocupao e deadensamento da cidade, voltado para a populao de renda mdia. So quatro tipos deunidades: apartamentos de dois e trs dormitrios (respectivamente, 61,7 m 2 e 66,3 m2) ecoberturas de dois e trs dormitrios (123,4 m2 e 132,6 m2). No h rea de lazer, apenasestacionamento no trreo e no subsolo. O sistema construtivo alvenaria estrutural emblocos de concreto. O apartamento mais barato do empreendimento custava R$ 96.080,00 (66m2), em abril de 2008, e o mais caro, a cobertura, no valor de R$ 137.518,00 (132,58 m2).Nessa mesma poca, havia ainda nove unidades venda, ou seja, o empreendimento japresentava 77,5% das unidades vendidas. Na ficha tcnica do empreendimento, que constano site da empresa, o projeto especificado como arquitetura neoclssica, e no h menosobre o seu autor.24 Cockell (2008), que analisou trajetrias ocupacionais de trabalhadores da construo civil,com foco na vulnerabilidade social, realizou suas entrevistas nas caladas, nos intervalos dealmoo, diante da dificuldade de se obter uma entrada oficial em canteiros de obras.25 O primeiro era um edifcio horizontal, contendo 36 apartamentos, incorporado econstrudo por uma construtora com atuao exclusiva em So Carlos. O canteiro do mutirohavia iniciado em 2004 e fazia parte de um programa habitacional do governo federal, no qual doisteros do financiamento a ser pago pelas famlias beneficiadas era subsidiado - a outra parte
vinha do prprio rgo municipal, agente executor do programa. O mutiro
contemplava 224 famlias, com renda familiar mensal de at trs salrios mnimos, queelegiam um de seus membros para ser o mutirante-titular, a fim de cumprir suas horas detrabalho na obra, durante os finais de semana.
35
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
38/360
construtora local, frente ao fato de que sua organizao se reproduzia, em
menor escala, na ECP e de que essa ltima trazia tanto especificidades da
organizao do trabalho quanto novidades de interesse analtico. Continuei,
depois, com a pesquisa de campo nos canteiros do mutiro e da ECP durante
mais cinco meses, perfazendo um total de seis meses de acompanhamento,
durante o ano de 2008.
Durante essa fase da pesquisa, eu ainda tinha como questo a anlise da
organizao do trabalho no canteiro de obras em diferentes regimes de
construo, ou seja, utilizando mo-de-obra contratada ou mutirante. No
entanto, muitas das questes suscitadas no canteiro da ECP eram novas para
mim e escapavam da minha compreenso, naquele momento - isso no querdizer que o mutiro no tivesse um interesse analtico especfico.26
A primeira das questes estava relacionada regulamentao e forma de
contratao dos trabalhadores na ECP. No segundo ms de acompanhamento
do canteiro do Monte Alto, o contrato com a subempreiteira27, responsvel
pela alvenaria, no foi renovado e sua equipe, que aportava quase dois teros
dos trabalhadores presentes na obra, fora substituda por trabalhadores
contratados diretamente pela construtora. Daniel, engenheiro de obras, me
26 Pelo contrrio, esse mutiro ocorrido em So Carlos apresentava questes importantes deserem analisadas luz das experincias de autogesto que ocorreram durante as dcadas de1980 e 1990. No caso, os mutirantes eram organizados em grupos de trabalho, cada qual comseu lder, que, por sua vez, eram coordenados pela equipe tcnica do agente executor,formada por um engenheiro (ou arquiteto), um assistente social (ou socilogo) e estagirios.Para alguns servios ou para determinadas fases da obra, eram contratadas subempreiteiras,que trabalhavam durante a semana. Havia uma organizao do trabalho que misturava,portanto, mo-de-obra mutirante e contratada - em certas ocasies, trabalhavam juntas, emoutras, os prprios mutirantes eram contratados pelas subempreiteiras, tornando maiscomplexas as relaes ali estabelecidas. Nesse contexto, a precariedade e a morosidade para aexecuo do trabalho, bem como a recusa organizao coletiva por parte dos moradores e adificuldade de legitimao dos arquitetos e engenheiros, logo me espantaram. Eu tinha emmente outras experincias de mutiro, analisadas pelo debate acadmico, pautando-me em umcontedo normativo de como deveria ocorrer esse tipo de produo. Tambm precisavacompreender as relaes e os conflitos que permeavam o cotidiano de trabalho (uma vez,uma assistente social fora ameaada com uma arma por um mutirante) e por que no se tinhauma planilha real de custos realizados.27 Utilizo aqui a denominao encontrada no debate acadmico (cf. SERRA, 2001) quediferencia a empreiteira, que pode ser considerada a construtora principal e a subempreiteira,que a empresa subcontratada pela empreiteira. Portanto, as atividades subcontratadas pelaempreiteira podem ser denominadas como as subempreitadas. Interessante notar que o
vocabulrio nativo, adotado pelos engenheiros, mestres-de-obras e trabalhadores do canteiro,no utiliza o termo subempreiteira, apenas empreiteira, para qualquer empresasubcontratada.
36
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
39/360
dissera que essa estratgia fazia parte de uma nova tendncia na empresa de
contratao de equipe prpria de execuo da obra. Estranhei, a princpio,
essa estratgia, pois no correspondia tendncia de terceirizao e
subcontratao de servios no setor da construo civil. As explicaes dadas
pelo engenheiro a respeito dessa mudana no foram suficientes para mim.28
A segunda questo que me despertou interesse foi o fato da ECP ter vendido
suas aes na Bolsa de Valores e ter captado, segundo o depoimento de
Daniel, mais de um bilho de reais em apenas um dia. Tratava-se de uma
empresa, cujo nmero de funcionrios o engenheiro no sabia me dizer
precisamente (para ele, eram mais de cinco mil), que promovia
simultaneamente duzentas obras em diversas cidades, localizadas nas regiesSul, Sudeste e Nordeste. Intrigava-me conhecer a fundo como se estruturava
esse tipo de produo de habitao em escala e pulverizada geograficamente.
A terceira questo estava relacionada ao projeto arquitetnico do
empreendimento, que seguia as tipologias padronizadas pela ECP. Para o
engenheiro, elaborar o projeto era como montar um Lego, dispondo os
mdulos no terreno.29 Incomodou-me a comparao do trabalho do arquiteto
ao jogo de Lego. Perguntei se ele j havia falado pessoalmente com o arquitetoque havia projetado o empreendimento, e a resposta foi: olha, arquiteto...
Tanto que a gente no fala que eu no sei nem o nome da pessoa....30 O
projeto havia sido feito por um escritrio terceirizado pela ECP que se
localizava a aproximadamente oitocentos quilmetros de So Carlos e nenhum
de seus arquitetos havia visitado o terreno, tampouco a obra.
28 Como discutirei no Captulo 6, o engenheiro considerava queo fato do subempreiteiro noassumir integralmente as garantias trabalhistas aos seus trabalhadores acabava fomentando osprocessos jurdicos contra a prpria ECP. As vantagens da equipe prpria estavamcentradas, sobretudo, nas possibilidades de maior controle sobre os trabalhadores e dereduo de custos.29Se voc pegar tem um Monte Alto igualzinho l em Belo Horizonte ou l em Curitiba.Eles so meio padro. Eles s pegam o terreno e adaptam o prdio ao terreno. Eles falamassim: aqui d para a gente fazer um vagozo de dez apartamentos por laje, aqui d squatro, mais quatro de lado. [...] Hoje eles to fazendo um de seis. Um bloco com quatro eum bloco com seis, da eles articulam. [...] igual voc fazer o lego l, um mdulo que eles
vo mexendo com ele dentro do terreno.
(Depoimento do engenheiro de obras autora -fevereiro/2008).30 Depoimento do engenheiro de obras autora - fevereiro/2008.
37
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
40/360
As dinmicas da pesquisa
Essas trs questes iniciais que a pesquisa de campo me colocara extravasavam
a esfera do canteiro de obras da ECP. Eu precisava recorrer a outros
caminhos, inclusive, de carter metodolgico, para compreender essas
questes. Por isso, paralelamente ao acompanhamento do canteiro, procurei
dados sobre a empresa, disponibilizados em seu site e divulgados na mdia31, e
profissionais que se encontravam em posio acima daquela do engenheiro de
obras na hierarquia da ECP - precisava conversar, sobretudo, com algum
arquiteto. Na medida em que eu ampliava minhas fontes de informao e
diversificava minhas estratgias de pesquisa, estendia-se tambm a esfera de
anlise, como explicarei neste item.
A partir desse momento, a pesquisa ocorreu a partir de cinco dinmicas
diferentes e se desenrolou ao longo de dois anos, entre 2008 e 2010. A
primeira delas dava continuidade ao acompanhamento do canteiro de obras
do empreendimento Monte Alto, procurando ali responder s seguintes
questes gerais - que constavam no projeto de doutorado: como ocorre o
trabalho no canteiro de obras? Como ele se organiza? Quem so seustrabalhadores? Como se estabelecem as relaes entre eles? Como o arquiteto
se relaciona com esses trabalhadores? Como ocorre a relao entre a
organizao do canteiro e as outras esferas da ECP? Como so utilizados e
apropriados os projetos tcnicos (incluindo o arquitetnico)?
Para tanto, seguindo as estratgias da pesquisa de campo de carter
etnogrfico, durante as minhas caminhadas pelo canteiro de obras, eu
observava as dinmicas ali presentes e as atividades que os trabalhadoresrealizavam - e era, ao mesmo tempo, observada. O fato de ser mulher num
canteiro de obras, com capacete branco (que utilizado por tcnicos, mestre-
de-obras, estagirios e visitantes), que passou a frequentar e a se interessar por
aquelas atividades cotidianas, j era presena estranha num ambiente
preponderantemente masculino. Como no fui oficialmente apresentada a
31 Como, por exemplo, jornais de grande veiculao, revistas de publicao semanal, jornaislocais.
38
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
41/360
todos os trabalhadores, eram poucos, a princpio, que sabiam o motivo da
minha presena. Essa situao causava certo incmodo em mim: s vezes me
sentia atrapalhando o trabalho (e talvez de fato estivesse, no mnimo,
incomodando) e, por isso, evitava fazer perguntas durante a realizao de
alguma atividade. Mas, aos poucos, conforme ia conversando individualmente
com os trabalhadores, essa situao melhorou e a minha presena no era to
estranha como no incio. Sempre enfatizei que eu era uma pesquisadora da
Universidade.
Procurei tambm presenciar algumas atividades importantes no cronograma de
obras - como, por exemplo, a concretagem da laje - e procurei caminhar na
obra em diferentes situaes: sozinha ou acompanhada pelo mestre-de-obras,ou pelo engenheiro, ou pelo estagirio. Finalmente, realizei entrevistas em
profundidade, registradas em udio, com o engenheiro, mestre-de-obras e
almoxarife, armador e pedreiro de acabamento - com outros trabalhadores
(serventes e pedreiros, na maioria) fiz entrevistas mais curtas.32
A segunda dinmica se referiu pesquisa documental que realizei nos
relatrios trimestrais e anuais da ECP (contendo informaes sobre o seu
desempenho operacional e financeiro), disponibilizados na seoRelacionamento com investidores do site da empresa - que serve como uma
espcie de prestao de contas aos acionistas da empresa.33 Esse
procedimento de publicizao dos resultados financeiros e operacionais um
requisito exigido nas prticas de boa governana do Novo Mercado da
32 As duas primeiras entrevistas, dirigidas ao engenheiro de obras e ao mestre-de-obras foramsemiestruturadas. A partir delas, refinei as minhas perguntas e elaborei um roteiro-padro paraentrevistar os demais trabalhadores. Esse roteiro foi dividido em cinco partes, quais sejam: 1)perfil (famlia e trabalho); 2) condies de moradia; 3) insero da famlia em programaspblicos; 4) trajetria e formao profissional; 5) organizao do trabalho e remunerao.33 Desde 2006, os relatrios anuais apresentam o seguinte contedo: mensagem aos acionistas;anlise do setor imobilirio naquele ano; fatos novos (aquisies de outras empresas, parceriasetc.); dados sobre desempenho operacional (lanamentos, vendas contratadas, banco deterrenos); dados sobre o desempenho financeiro (receitas, dedues, custo dos imveis,impostos, despesas operacionais, lucro etc.); anlise do mercado de aes; alteraes na
estrutura societria; recursos humanos; parecer de auditores financeiros independentes (comoanexo). J os relatrios trimestrais apresentam os comentrios da administrao sobre operodo, a demonstrao financeira e operacional e projees futuras.
39
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
42/360
Bovespa, desde os anos 2000.34 A ECP iniciou essa divulgao quando abriu
seu capital, em 2007, e integrou o Novo Mercado. Tambm consultei os
artigos e as reportagens publicadas na mdia impressa e virtual sobre a ECP.
Esse material coletado me possibilitava a compreenso sobre a estrutura daempresa como um todo, tanto em termos de nmeros e caractersticas de sua
produo (unidades lanadas e vendidas; localizao e faixa de valor dos
empreendimentos lanados e vendidos etc.), como em relao gesto
(nmero de trabalhadores contratados; composio dos Conselhos e
Departamentos; etapas da produo em geral etc.). Alm disso, esses relatrios
apresentavam dados sobre o faturamento (receitas provenientes da
incorporao imobiliria), as despesas (administrativas e operacionais), oscustos dos imveis e os lucros.
Alm do acesso a esses documentos, presenciei as teleconferncias sobre os
resultados trimestrais, apresentadas pelo Vice-Presidente de Relacionamento
com Investidores e pelo Diretor-Presidente (fundador e acionista majoritrio
da ECP). Aps a apresentao, os investidores que estavam online realizavam
perguntas aos apresentadores, sendo um importante momento para se ouvir a
posio e a opinio do mais alto nvel hierrquico da empresa. Nessa esfera,frequentemente, o cenrio poltico e econmico brasileiro era analisado pelos
participantes, sobretudo, a relao da empresa com a poltica federal de crdito
habitacional e, obviamente, com o mercado financeiro - que se encontrava de
corpo presente.
Nessas ltimas fontes, no constavam informaes precisas sobre o processo
de elaborao do projeto arquitetnico e dos projetos tcnicos, tampouco
sobre os profissionais envolvidos nessa atividade. Dessa forma, recorri a uma
terceira dinmica de pesquisa a fim de perscrutar os caminhos do projeto de
arquitetura e da elaborao da padronizao do processo de produo que
ocorriam na empresa. Por isso, precisava ampliar a minha rede de informantes
34 De acordo com informaes do site da empresa, em 2000, a Bovespa introduziu o NovoMercado com o objetivo de criar um mercado secundrio para valores mobilirios emitidospor companhias abertas brasileiras que sigam melhores prticas de governana corporativa.
Dentro dessas prticas, so colocadas algumas regras, alm das obrigaes impostas pelalegislao brasileira em vigor, entre as quais uma poltica rgida de divulgao de negociaes ede resultados financeiros.
40
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
43/360
dentro da empresa, para alm do corpo tcnico e dos trabalhadores da obra.
Coincidentemente, um amigo meu morava na cidade-sede da ECP. Ele tinha
um primo que era engenheiro-supervisor da empresa, e um cunhado, que era
arquiteto e que havia sido terceirizado pela ECP, entre o final da dcada de
1990 e o incio dos anos 2000. Com esses contatos, pude realizar entrevistas,
em profundidade, com esse engenheiro-supervisor e com arquitetos
terceirizados.
Paralelamente, procurei outros arquitetos que trabalhavam como funcionrios
da ECP. Obtive o contato de uma arquiteta que trabalhava como
coordenadora de projetos de uma regional da ECP que, por sua vez, indicou-
me o processo-padro de atendimento s demandas externas: viaDepartamento de Marketing da empresa. No era exatamente esse caminho
que eu procurava, queria apenas conversar com a arquiteta a respeito de seu
trabalho na ECP.
Mesmo assim, entrei em contato com esse Departamento e enviei um roteiro
de perguntas e, aps trs meses, recebi a seguinte resposta: j haviam coletado
todas as informaes solicitadas, no entanto, um responsvel por uma das
respostas ficou em dvida se elas seriam de domnio pblico ou se poderiamrevelar a estratgia mercadolgica da ECP. Somente o vice-presidente da
empresa poderia autorizar a divulgao, e ele negou. No recebi as respostas,
tampouco esclarecimentos a respeito das razes que levaram negao. Eu
havia elaborado questes relacionadas ao organograma da empresa e
estrutura de elaborao e de gesto dos projetos de arquitetura e dos projetos
tcnicos.
Considero que, mesmo sem obter as respostas oficiais da ECP ao meu
questionrio, os dados disponibilizados na internet so aqueles que poderiam
ser acessados publicamente, de domnio pblico, contendo a opinio e a
imagem que a empresa quer divulgar e que legitimam a ideia da
transparncia das prticas de boa governana corporativa no Novo Mercado
da Bovespa. Por detrs, h os dados sigilosos ou as estratgias
mercadolgicas que no so divulgados - o que me levou a problematizar o
prprio contedo de tal transparncia. Por isso, foi necessrio cruzar os dados
41
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
44/360
coletados em seus relatrios com as anotaes de meu caderno de campo,
elaborado durante o acompanhamento do canteiro de obras, e com o
contedo das entrevistas realizadas com seus funcionrios ou ex-funcionrios ou,
ainda, com os trabalhadores subcontratados.
Concomitantemente ao acompanhamento da ECP, empreendi a quarta
dinmica de pesquisa, suscitada a partir da constatao do seu rpido
crescimento, de sua produo, bem como de seu lucro lquido - como
mostrarei em detalhes no Captulo 3. Senti a necessidade de saber se esse
mesmo processo estava ocorrendo em outras empresas construtoras e
incorporadoras de capital aberto, com atuao semelhante ECP. Iniciei outra
pesquisa documental, agora nos relatrios anuais e trimestrais de outrasconstrutoras e incorporadoras, que apresentavam um contedo bastante
semelhante ao da ECP - seguindo as recomendaes sobre a padronizao das
informaes e da divulgao pblica impostas pela Bolsa.
Encontrei dezesseis empresas (contendo aqui subsidirias de grandes
empresas) que destinavam a totalidade ou parte de sua produo ao segmento
econmico. Para analisar esses dados, a dificuldade metodolgica foi identificar
categorias comuns que os atravessassem. Explicando melhor, no mbito dosrelatrios das empresas, por mais que se pressuponha uma padronizao das
informaes como prerrogativa de transparncia empresarial, h diferenas
quanto classificao de faixas de preos das unidades produzidas, quanto
localizao dos empreendimentos, quanto fatia de lucro lquido
correspondente atuao no segmento econmico etc.
Apesar desses dados serem, preferencialmente, definidos e escolhidos pelas
empresas, os relatrios se apresentam como uma fonte preciosa de
informaes, na medida em que detalham o desempenho operacional e
financeiro, bem como transparecem o discurso que justifica as atuaes de
cada uma delas.
Mesmo assim, consegui extrair alguns dados que foram suficientes para indicar
que no era apenas a ECP que crescia vertiginosamente, outras empresas
seguiam o mesmo ritmo. O crescimento desse tipo de produo foi divulgado
na mdia, que o nomeava como um novo boom imobilirio. A partir da,
42
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
45/360
procurando saber a representatividade da produo dessas grandes empresas
construtoras e incorporadoras de capital aberto no conjunto do mercado
imobilirio e conhecer o impacto econmico da atuao do setor residencial da
construo civil, recorri a quinta, e ltima, dinmica da pesquisa, relacionada
leitura dos dados quantitativos fornecidos pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE) e pela Empresa Brasileira de Estudos do
Patrimnio (Embraesp).35
Em relao aos dados econmicos produzidos pelo IBGE, numa mesma
pesquisa setorial, a Pesquisa Anual da Indstria da Construo (PAIC)36, h
diferenas quanto ao universo da amostra estatstica - como, por exemplo,
quanto classificao do tamanho das empresas de acordo com pessoalocupado -, que impossibilitam uma anlise transversal ao longo dos anos. Ou
seja, assim como os relatrios das empresas, os dados quantitativos das
grandes pesquisas econmicas tambm so construdos por categorias que se
fecham, se abrem e se transmutam no tempo, apresentando-se como caixas-
pretas, utilizando-me de uma expresso de Rizek (2005).37
Apesar dessa dificuldade, foi possvel identificar a tendncia de crescimento e de
concentrao de capital nas grandes empresas do setor da construo civil e doaumento da produo privada de edificaes residenciais, no Brasil, na
passagem dos anos 1990 at meados dos anos 2000.
35 Segundo Marques (2005), a Embraesp uma empresa que atua desde 1977, fazendoacompanhamento regular da dinmica imobiliria, cadastrando informaes de todos osempreendimentos verticais e horizontais que tenham sido objeto de propaganda em jornais,revistas, panfletos, assim como os aprovados pela Secretaria de Habitao do municpio de SoPaulo (MARQUES, 2005, p. 218).36 A Pesquisa Anual da Indstria da Construo (PAIC) identifica as caractersticas estruturaisbsicas do segmento empresarial da atividade de construo no pas, atravs de levantamentosanuais, tendo como base uma amostra de empresas de construo. Iniciou-se em 1990, tendocomo cadastro inicial, os Censos Econmicos de 1985 (IBGE, 2006).37 RIZEK, Cibele Saliba. Os dados e seu sentido: algumas interrogaes metodolgicas emsociologia do trabalho. In: GITAHY, L.; LEITE, M. P. de. (orgs.). Novas tramas produtivas: umadiscusso terico-metodolgica. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2005.Rizek problematiza o confronto entre dados quantitativos e qualitativos referentes aosestudos da sociologia do trabalho: as grandes bases de dados quantitativos so construdas
por categorias que se apresentam comocaixas-pretas
, abertas pontualmente porinvestigaes qualitativas que acabam por esclarecer algumas das questes relativas
visibilidade e nomeao desses contingentes de trabalhadores (RIZEK, 2005, p. 61).
43
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
46/360
J os dados da Embraesp me possibilitaram analisar a atuao das empresas
construtoras e incorporadoras de capital aberto (no somente aquelas que
atuam no segmento econmico) no mercado imobilirio residencial da Regio
Metropolitana de So Paulo (RMSP). E, nesse caso, pude confirmar o aumento
considervel dessa atuao, nos ltimos cinco anos. Esses dados tambm
indicavam o destaque que o SFH ganhava entre os financiamentos
habitacionais concedidos na RMSP - em 2008, correspondia a
aproximadamente 70%.
Esse ltimo aspecto tambm podia ser observado nos relatrios das empresas,
medida que a grande maioria delas dependia dessa fonte de recursos para o
financiamento de seus clientes e, de certa forma, tambm de sua produo. Apartir da, foi se tornando mais claro o vnculo dessas empresas, incluindo a
ECP, com a poltica federal de crdito habitacional. Por isso, dando
continuidade pesquisa em dados estatsticos, recorri s fontes de informao
sobre a poltica habitacional como um todo, divulgadas pelo governo federal,
tais como os dados veiculados pelo Ministrio das Cidades e pela Caixa
Econmica Federal (CEF). Utilizei tambm uma fonte secundria, que
sistematiza os dados da CEF e do Banco Central, proveniente do Banco deDados da Cmara Brasileira da Indstria da Construo (CBIC). Da anlise
desses dados, pude montar o mapeamento dos programas habitacionais
recentes e do destino dos recursos do FGTS-SBPE para os financiamentos
habitacionais.
Essas cinco dinmicas descritas anteriormente compuseram a trajetria da
minha pesquisa, na qual a perspectiva analtica est intrinsecamente ligada
dimenso emprica, e vice-versa. Dessa forma, pude consolidar umaperspectiva de pesquisa que, para analisar a poltica e a produo de habitao,
conciliou a atuao de cada agente aqui envolvido (Estado, mercado
imobilirio e mercado financeiro, no caso do contexto contemporneo) com as
caractersticas da operacionalizao da prpria poltica e da produo em si das
unidades habitacionais (desde sua dimenso produtiva, projetual e tecnolgica).
Desse modo, houve uma reconfigurao das questes do meu projeto de
pesquisa ao longo dos quatro anos de desenvolvimento do doutorado.
44
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
47/360
Anteriormente, minha preocupao analtica estava centrada na organizao do
trabalho no canteiro de obras e suas relaes com as dimenses da arquitetura.
Como eu procurei mostrar at aqui, na medida em que eu me deparava com
meus achados de pesquisa, novas questes se somaram quelas perguntas
iniciais e, por vezes, alteraram-nas.
45
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
48/360
As dimenses da produo da habitao no Brasil contemporneo
A perspectiva de anlise que enfoca a estrutura de proviso de habitao a
partir das relaes entre os agentes que dela participam est presente no
trabalho de Michael Ball (1986 e 2006).38 Desde a dcada de 1980, Ball (1986)39
critica as tendncias de anlise que se voltam apenas dimenso do consumo
da habitao (consuptiom-orientated approach), ou seja, que enfatizam apenas o
desenho institucional da poltica pblica, a questo da propriedade da
habitao e dos custos. O autor refora as dimenses da proviso e da
produo da habitao.
importante estabelecer a distino entre essas dimenses. Proviso est
relacionada ao arcabouo institucional dos agentes que possibilitam a produo
da habitao. Nesta tese, apesar de analisar as relaes entre esses agentes,
sobretudo, mercado e Estado, eu enfatizo a dimenso da produo. Alm
disso, relaciono essas duas noes noo de poltica habitacional, como um
conjunto de mecanismos regulatrios e institucionais que viabilizam essa
proviso e favorecem a produo desses agentes. Em um texto recente, Ball
(2006)40 considera que necessrio conciliar mercado imobilirio e setor da
construo civil para analisar a cadeia de proviso e de transao de
edificaes construdas, a partir do estudo sobre as empresas e organizaes que
participam de ambos.41
Esse enfoque de Ball vai ao encontro com as questes suscitadas pela minha
pesquisa, realizada no contexto contemporneo da produo de habitao no
38 Dentro da rea da economia urbana, Michael Ball analisa a estrutura de proviso e deproduo privada da habitao do contexto europeu, sobretudo o ingls, e estabelece relaescom outros contextos como, por exemplo, o dos pases em desenvolvimento. Cf. BALL, 1986e 2006.39 BALL, Michael. Housing analysis: time for a theoretical refocus? Housing Studies, v. 1, n. 3,p. 147-165, 1986.40 BALL, Michael. Markets & Institutions in Real Estate & Construction. Oxford: BlackwellPublishing, 2006.
41 O autor utiliza o termo em ingls real estate, que no tem correlato em portugus. Nessemomento do texto, traduzi-o como mercado imobilirio, apesar de real estate extrapolar essanoo. Discutirei melhor essa questo no Captulo 2.
46
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
49/360
7/30/2019 Tese Habitacao Estado Mercado
50/360
as obras de infraestrutura, os investimentos em determinados bairros, at a
produo da habitao de interesse social.
Essa ltima modalidade poderia se enquadrar analiticamente na produo
pblica da habitao. Entretanto, empiricamente, pode estar to imbricadacom a dinmica privada que se torna difcil fazer a distino entre o que seria
essencialmente uma habitao de interesse social e uma habitao de
mercado. Por mais que se procure distinguir as formas de produo privada e
pblica e quais prticas so formais e quais so informais, essas modalidades de
produo se imiscuem e interagem no Brasil.45 H uma fronteira indistinta
entre as diferentes formas de produo da habitao no Brasil, que torna difcil a
sua tentativa de classificao e nomeao.Por um lado, dentro da produo privada de moradias, h um esforo de se
distinguir conceitualmente a vertente formal daquela considerada
informal, o que no se opera empiricamente de forma to clara. Por
exemplo, a construo da habitao pelo prprio morador46, apesar de ser
considerada como parte de um circuito informal de produo, ela pode
integrar o mercado capitalista, por mais contraditrio que possa parecer.
Inicialmente, na fase de ocupao do solo e de construo da edificao em si,ela pode se encontrar numa situao irregular de propriedade, vindo da a
classificao como informal, por vezes, irregular. No entanto, aps a
habitao ser edificada, ela pode integrar tanto um mercado informal de
45 Essa transitividade entre formal e informal no se restringe produo de habitao.Como, por exemplo, Vera da Silva Telles (2009) reflete sobre o modo como as dinmicasurbanas so redefinidas a partir das novas formas de produo e de circulao de riquezas,prprias da experincia contempornea.46 H diversos termos no debate acadmico que definem essa modalidade de produo, como,por exemplo, autoconstruo ou autopromoo. Por no se encaixar ao esquema