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Studium Theologicum de Curitiba STUDIUM REVISTA TEOLÓGICA

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Studium Theologicum de Curitiba

STUDIUMREVISTA TEOLÓGICA

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Studium: revista teológica/ Studium Theologicum de Curitiba - Ano 4 n. 7 e 8 - 2010.

Semestral

ISSN 1981-3155

1. Teologia – Periódicos. I. Studium Theologicum de Curitiba.

CDU: 2

SUMÁRIO

EDITORIALJESUS E ALGUMAS QUESTÕES CRISTOLÓGICAS................................................ 5

JESUS, O JUDEU DO SEU POVO.................................................................................. 9Antonio Carlos Coelho

JESUS: FORMANDO E FORMADOR........................................................................... 21Carlos Mesters

UMA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE.................................................................... 33Mateus Locatelli

ESPIRITUALIDADE CENTRADA EM JESUS............................................................... 51José Antonio Pagola

EU ACREDITO NO “JESUS HISTÓRICO”..................................................................... 69Roberto Pereyra

A CRISTOLOGIA HOJE A PARTIR DO VATICANO II: PREDICADOS EMERGENTES................................................................................................................................ 85Bruno Forte

UMA HISTORIA DA HISTORIA DE JESUS................................................................. 97Hélcion Ribeiro

ZAQUEU: O ‘VER’ QUE REORIENTA A VIDA: LC 19,1-10 .................................. 117Rivaldave Paz Torquato, O. Carm.

O Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de Bento XIII - que concedia ao Vigário Provincial Carmelita do Maranhão a faculdade de dar o título de doutor aos frades de sua Ordem .......................................................................... 135Frei Wilmar Santin, O.Carm

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JESUS E ALGUMAS QUESTÕES CRISTOLÓGICAS

Jesus exerce uma força fascinante e inesgotável. Quem o pode apreender?! Ninguém é “dono” dele. Esses tempos de mudanças epocais sinaliza-se também, apesar de tudo quanto já se disse da morte de Deus e do fim das religiões, uma busca inquieta de Jesus – aquele que se deixa encontrar e se esconde ao mesmo tempo. Encontrá-lo não significa ter posse definitiva dele, pois o encontro de hoje, exige a nova busca no e para o dia de amanhã. Mesmo o encontro pessoal no mais profundo do próprio ser não garante a posse do encontro; garante sim, o incentivo à fé e à continua procura. A fé, para os cristãos, torna-se um desafio para cada pessoa responder, de novo, à instigante provocativa pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mc. 7, 27)

Essa dimensão lúdica entre re-velação/velação impulsiona a espiritualidade de milhares de pessoas de fé e as explicações de centenas de intelectuais, especialmente cristãos de todos os grupos religiosos. As respostas, enquanto existenciais, são sempre novas e in-suficientes, porque sendo contextuais, são também temporais (provisórias) e situadas. Jesus, sempre presente e em todos os tempo, permanece inabarcável. E é isto que evidencia seu mistério: um-como-nós, um-conosco, um-para-nós; mas, ao mesmo tempo, é o Outro, que nos transcende, pois é Deus no mistério da Trindade. É o irmão e o amigo, porque se fez um-de-nós; mas, é Deus-para-nós porque pertence à vida de Deus, é Deus mesmo com o Pai e o Espírito Santo.

Como apreendê-lo? – Respostas a essa pergunta (“Quem sou?”) não têm mais a unidirecionalidade que lhe atribuía a dogmática forjada nos “séculos de ouro da cristologia” (do século II ao VIII). O resgate do Jesus bíblico aponta sempre a uma inesgotabilidade plural a partir da própria pluralidade dos evangelhos, a que se deve acrescentar as concepções cristológicas paulinas e outras neotestamentarias. Por outro lado, o fato de Jesus não ser um elemento de museu, mas antes uma realidade viva para o crente, ele está situado em todos os tempos e lugares em formas divino-existenciais, quer para a imitação e/ou adoração, quer para o seguimento.

São diversas as interpretações sobre ele, desde a dogmática – iniciada no Concílio de Nicéia, passando por diversas escolas que encontraram a chamada

EditorialSTUDIUM Revista Teológica

Ano 4 – 2010Nº 6 e 7

Revista semestral de Teologia do Studium Theologicum de CuritibaISNN 1981-3155

EDITor-ChEfEHélcion Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR.

ConSElho EDITorIalJaime Sanches Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, PR.Marcio Luiz Fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, PR.Tedoro Hanicz – Instituto S. Basílio Magno, Curitiba, PR.Valdinei de Jesus Ribeiro – StudiumTheologicum, Curitiba, PR. Vitor P. Calixto dos Santos – CEUCLAR, Batatais, SP.

ConSElho ConSUlTIvoAngelo Carlesso - Studium Theologicum – Curitiba, PR.Jose Carlos Fonsati – Cúria Geral dos Vicentinos - Paris, Fr.Sávio Scopinho – Faculdades Claretianas, Rio Claro, SP.Ricardo Hoepers - Studium Theologicum – Curitiba, PR.

abSTraCTElias Jr.

aDMInISTraÇÃo E rEDaÇÃoContato e assinatura

Studium Revista TeológicaAv. Getúlio Vargas, 119380.250-180 Curitiba, PR.Tel. (41)3224-5467 – Fax: (41) 3233-8979e-mail: [email protected]

Solicita-se permuta/ Exchange requested/Se pide cambio/ On prie l’échange

Nota: os autores das contribuições desta publicação assumem a responsabilidade das idéias e teses defendidas nos seus textos.

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“questão do Jesus histórico e o Cristo da fé”, até questões mais recentes. O próprio teólogo e papa Raztinger, percebendo a dificuldade produzida pela dispersão das compreensões, quis oferecer, com seus dois livros sobre Jesus (Jesus de Nazaré. Do batismo no Jordão até a transfiguração – já publicado- e Jesus de Nazaré. Da entrada em Jerusalém até a ressurreição – prometido para breve), uma contribuição tanto às discussões acadêmicas quanto às práticas da fé. (Sem dúvida, é emblemática sua proposta por concentrar em si os papéis de teólogo e de papa; mas, espera-se que resguarde e enfatize sua proposta como contribuição dialogante).

A singularidade do homem Jesus está em ele ser Deus. Isto é, Deus-entre-nós, os humanos, por-nós e para-nós. O Verbo se tornou humano no tempo e no espaço geográfico, assumindo a temporalidade e a ubicação – que nada tem de “gueto”, mas se propõe a uma abertura universalizante e acima de uma temporalidade situada. Ou seja, sua singularidade faz dele, enquanto Deus encarnado, alguém para todos os tempos e lugares, para todos os homens e mulheres.

Após o longo período de compreensão cristológica ontologizada da união hipostática e que, progressivamente – seja pela piedade popular seja pela contribuição dos intelectuais –, chegou-se a uma quase exclusividade do divino nele, busca-se agora um acento na sua dimensão humana.

Quer-se compreendê-lo, hoje, como o Deus que ele é, mas a partir do humano. Isto é também um caminho viável. Daí, passam a ter importância não mais a conceitualidade grega, mas a judeidade dele, seus comportamentos e atitudes, seus ensinamentos e “surpreendestes sinais de curas”, sua paixão, morte e ressurreição. Em síntese, a ênfase recai sobre o conjunto de sua vida terra, onde ele não é apenas Deus e tampouco apenas homens, mas Deus-e-homem ou homem-e-Deus unido indivisa, inconfusa, inseparável e imutavelmente - como afirma o Concílio de Calcedonia. Sua singularidade – inclusive salvífica - pertence ao todo de sua vida histórica.

O fascínio que Jesus exerce, entre crentes e não-crentes, está no ter sido todo-para-Deus- e todo-para-os-outros. Esvaziando-se a si, plenificou e continua plenificando a todos os que o procuram e o encontram.

A busca de Jesus e sua revelação/velação se tornam atitudes com sentido, à medida que do fascínio se chega ao seguimento.

O Studium Theologicum, junto com o Diretório Acadêmico promoveu sua Semana Teológica, deste 2010, com o tema da Cristologia. Algumas destas reflexões estão incluídas neste fascículo de nossa Revista de Teologia STUDIUM. Temos também a grata alegria de ver entre nossos articulistas a contribuição de alguns teólogos de portada internacional, que gentilmente cederam seus textos

para nosso publicação, a quem agradecemos, especialmente Antonio Pagola, Bruno Forte e Roberto Pereyra.

O professor Antonio Carlos Coelho, mantendo o tom coloquial de sua palestra Jesus, o judeu do seu povo, apresentada na Semana Teologia sobre Cristologia, deste ano, propõe-se contextualizar Jesus e sua atuação, desde uma perspectiva judaica ao invés da cristã. Ressalta a dificuldade dos judeus, sobretudo, em aceitar o significado dado a ele na história. Por outro lado reconhece nele uma aproximação ao pensamento de Hillel e o considera um darshan, interprete da Torá e um mestre.

O biblista Carlos Mesters, nos cedeu sua palestra Jesus, formando e formado, proferida na 3ª Semana Brasileira de Catequese. Nela, destaca dois aspectos poucas vezes ressaltados em Jesus: o processo de sua formação ao conviver e ouvir o povo, os discípulos e o próprio Deus e sua pedagogia formativa atenta às questões do seu povo e de Deus.

O espanhol José Antonio Pagola, em Espiritualidade centrada em Jesus ressalta, frente a uma mediocridade espiritual contemporânea, a necesidade de buscar a espiritualidade profética de Jesus, de modo criativo, libertador e gerador de esperança.

Na continuação do tema da espiritualidade jesuânica, Mateus Locatelli, em seu estudo a partir do evangelho de Lucas, constrói Uma espiritualidade cristã hoje para o seguimento de Jesus que seja capaz de uma mudança de vida e de encarnar-se na história, a exemplo do próprio Jesus.

O argentino Roberto Pereyra, utilizando inúmeras e recentes fontes bibliográficas, levanta algumas questões sobre Jesus e o lugar dos evangelhos na fé cristã, justificando, porque afinal “Eu acredito no ´Jesus histórico”

O texto A cristología hoje: o desenvolvimento a partir de Vaticano II e as características emergentes, do teólogo italiano Bruno Forte propõe-se a analisar o tema, enfocando não tanto o caminho teológico feito especialmente na Europa, mas sobretudo o do Magistério da Igreja. Sua reflexão chama a atenção para a produção cristológica do próprio Magistério, não apenas de sua ação como “guardião da fé”.

O autor de Uma historia da historia de Jesus, mais do que afirmações sobre Jesus dos evangelhos ou do dogma, tem em vista contar o processo destas afirmações. Hélcion Ribeiro enfatiza a necessidade de conhecer a história do processo de compreensão sobre Jesus. Importa também ir além dos discursos sobre ele, pois o encontrar outras vozes deste longo caminhar, pode gerar maior adesão, admiração e seguimento de Jesus.

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Rivaldave Paz Torquato contribui, neste número de nossa Revista STUDIUM com o interessante estudo exegético: Zaqueu: o ver que reorienta a vida. Destaca as diversas perspectiva do olhar, do ver, capazes de orientar o cristão a perceber com profundidade a própria situação humana para transformá-la, desde o olhar humano e divino.

Wilmar Santin recupera com suas pesquisas uma vasta documentação, no Arquivo Geral da Ordem Carmo em Roma, a respeito de Portugal e Brasil. Neste artigo comenta O Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de Bento XIII, que, em 1624, concede aoVigário provincial da Ordem dos Carmelitas do Maranhão, a faculdade de conceder o título de doutor em Sacra Theologia, aos carmelitas devidamente examinados e aprovados.

Desejamos aos nossos leitores um feliz encontro com Jesus e algumas questões cristológicas, a fim de aprofundar a fé, ter e aprofundar as próprias razões de nossa fé.

JESUS, O JUDEU DO SEU POVO

Antonio Carlos Coelho *

RESUMO: Constata-se na história a dificuldade em aceitar a condição judaica de Jesus, filho do povo de Israel e do próprio judaísmo. Com as descobertas arqueológicas do último século, obteve-se maior conhecimento sobre o modo de vida, costumes e leis dos tempos bíblicos. Tem-se, então, uma melhor compreensão de quem é Jesus. Propõe-se uma análise mais judaica do que cristã – assente sobre o título. Jesus é descrito como judeu e integrado em sua cultura. Destaca-se a prática da cura, tida como um atributo do homem que se relacionava diretamente com Deus. Também as pregações de Jesus seguiam o estilo farisaico, tanto em sua estrutura como na forma de ensinar. Não se pode afirmar categoricamente, pois, não há nenhuma referência histórica, que o mestre dos cristãos era um ‘prushim’, todavia podemos reconhecer a semelhança em sua prática e sua proximidade ao pensamento de Hillel. Fariseu ou não, Jesus era um ‘darsham’ – interprete da Torá – possuía discípulos e ensinava por onde passava.

PALAVRAS CHAVE: Jesus judeu; Jesus messias; Pregação farisaica; Cultura judaica.

ABSTRACT: We looked at the story difficult to accept the Jewishness of Jesus, son of Israel and of Judaism itself. With the archaeological discoveries of the last century, we got more knowledge about the way of life, customs and laws of biblical times. So we can have a better understanding of who Jesus is. We propose here further analysis Jewish than Christian - based on the title. Jesus is described as Jewish and integrated into their culture. Also we highlight the practice of healing, regarded as an attribute of man which related directly to God. Also the preaching of Jesus followed the Pharisaic style, both in its structure and in the way of teaching. We may not say categorically, because there is no historical reference that the master was a Christian ‘prushim’, but we can recognize the similarity in their practice and its proximity to the thought of Hillel. A Pharisee or not, Jesus was a ‘darshan’, an interpreter of the Torah, and he had disciples, and also taught wherever he went.

KEY WORDS: Jewish Jesus, Jesus Messiah; Preaching Pharisaic; Jewish Culture.

Artigos

* Especialista em arqueologia bíblica e tradição judaíca, em Israel; Professor de Ecumenismo e diálogo interreligioso, no Studium Theologicum, e Diretor do Instituto Ciência e Fé (Curitiba).

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INTRODUÇÃO

Antes de começar a falar sobre o tema desta manhã - “Jesus, o judeu” - recordo que estou assumindo um dos temas que tinham sidos reservados ao Doutor Pablo Berman1, primeiro convidado para tratar deste assunto nesta 32ª Semana Teologia. Sinto-me, portanto, no dever de cuidar para que minha apresentação observe a neutralidade que teria Dr. Berman ao tratar sobre Jesus. Enfatizarei aspectos que o caracterizam como um filho de Israel, sem a preocupação com questões do âmbito doutrinário e teológico.

Há alguns anos percebia que entre religiosos e leigos católicos era comum a dificuldade em aceitar a condição judaica de Jesus. Ora, como poderiam ter essa dificuldade se a Bíblia apresenta a genealogia de Jesus e o coloca como filho do povo de Israel? Na realidade nunca houve essa dúvida entre os cristãos, mas não podemos esquecer que por séculos o cristianismo.....

Foi só após a Segunda Guerra Mundial, com a tomada de consciência da Europa cristã sobre os horrores da Shoá perceberam o quanto a religião contribuiu ou falhou em seus princípios humanitários. Vinte anos após o término do conflito mundial o Concílio Vaticano II apelou para a necessidade urgente para uma mudança de postura diante do judaísmo. Promoveu, assim, a aproximação fraterna e o conhecimento da religião berço do cristianismo. Desta forma, a condição judaica de Jesus deixou de ser um tabu dentro do ambiente católico.

Apesar da nova e sincera postura da Igreja diante do judaísmo e das outras religiões não cristãs, os meios acadêmicos não se sentiram suficientemente motivados para pesquisar sobre a condição judaica de Jesus. De certa forma isso é compreensível, pois não existem informações sobre Jesus. Sabemos o que sabemos pelo Evangelho. Seus autores não tiveram a preocupação em retratar a vida de um pregador judeu, e sim, daquele que a comunidade cristã reconheceu como o filho de Deus e Messias anunciado pelos Profetas.

Embora se reconheça a importância do conhecimento do Jesus da História, muitos acadêmicos, fundamentalistas, insistem em afirmar que qualquer investigação sobre o Homem da Galiléia está fadada ao fracasso, desestimulando, assim, qualquer pesquisa histórica, restringindo o estudo sobre Jesus ao âmbito da teologia e do dogma.

Próximo aos fundamentalistas está o teólogo luterano Rudolf Bultman (1884-1976) que, apesar de desacreditar da possibilidade de se conhecer o homem Jesus, oferece uma possibilidade — em algum momento isso será possível: “Estou efetivamente convencido de que, no momento, não podemos

saber quase nada que se refira à vida e à personalidade de Jesus, visto que as fontes cristãs primitivas não revelam nenhum interesse por esses temas”. 2

Se considerarmos a impossibilidade de se saber da vida do homem Jesus por ausência de informações nos textos evangélicos, teríamos que descartar pelo mesmo motivo, a chance de se conhecer outros personagens bíblicos. Se sobre Jesus temos poucas informações, o que dizer, então, sobre os Patriarcas e Moisés? No entanto, não conheço nenhuma objeção sobre as “descrições históricas” de Abraão ou Moisés, embora, sobre eles, muito mais do que Jesus há ausência de fontes históricas. Não há dúvida que a paixão de alguns estudiosos desestimulou as pesquisas sobre Jesus. Paixão vencida pelo tempo.

É verdade que temos um alcance mínimo à biografia de personagens bíblicos. Todavia, as descoberta arqueológicas do último século, principalmente a partir dos estudos de Kathleen Kenyon3 e outros arqueólogos e historiadores, obtivemos maior conhecimento sobre o modo de vida, costumes, leis, dos tempos bíblicos. Isto possibilita situar os patriarcas e seus descendentes no cenário em que viveram e traçar um perfil aproximado das suas vidas, bem como superar os anacronismos do texto sagrado.

Com maior precisão podemos fazer o mesmo em relação a Jesus. As fontes históricas do primeiro século são mais abundantes e retratam mais precisamente o ambiente da época. Portanto, encontrar Jesus, o judeu da Galiléia não é impossível, afinal, ele não teve uma vida excêntrica a ponto de não se poder falar sobre o homem Jesus.

O Rabino Berman, em sua palestra na manhã de ontem, ao se referir à condição judaica de Jesus disse: “Ela (a condição) é um problema para os cristãos e para os judeus”. — E é exatamente sobre esse problema, ou problemas, que tratarei neste texto. Veremos o que dificultou, por muitos séculos, situar e aceitar a condição judaica daquele que é centro da fé cristã.

Dificuldades:

Para os judeus, a dificuldade em relação a Jesus não está na sua condição histórica, mas sim, no que ele representou ao longo da história. É o Jesus do cristianismo, o Jesus Messias e Filho de Deus que causa o afastamento e a perda de interesse por parte dos estudiosos judeus. Tanto que, são raros os autores judeus que situam Jesus na sua condição judaica.

Por muitos séculos as igrejas se apresentaram como uma fé superior e completa, colocando-se em condição oposta o judaísmo (projeto de salvação

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está completo – Cristo superou o judaísmo – e, o judeu perfeito é o cristão, como afirmam acintosamente alguns evangélicos excluindo da salvação todos aqueles que não são “verdadeiramente cristãos”).

Duas estátuas colocadas numa das portas da Catedral de Strasburg traduzem o sentimento vitorioso da Igreja sobre a Sinagoga. Tal soberba dos cristãos, manifestada por séculos de preconceitos e perseguições às comunidades judaicas da Europa, contribuiu para uma imagem negativa do cristianismo. Os que patrocinavam as perseguições eram os mesmos que, em suas igrejas, pregavam a Boa Nova de Jesus.

Também, devemos ter em conta, que foi o cristianismo que nasceu do judaísmo e, portanto, o interesse sobre sua gênese e contexto é cristão e não judaico. São os cristãos que, para conhecer suas origens e fundamentos da fé, interessam-se pela vida do homem de Nazaré.

Após o Concílio Vaticano II e a sincera aproximação dos Papas João XXIII e João Paulo II aos judeus, houve um maior interesse sobre a pessoa de Jesus e o seu significado. Isso contribui, em parte, para uma reabilitação da imagem de Jesus aos judeus, mostrando-o como homem religioso, fiel à tradição judaica, bem como para superar anos de conflitos entre Igreja Católica e Judaísmo.

O que sabemos de Yeshua Ben Iosef?

Os frutos das pesquisas modernas multiplicaram-se em publicações que, apesar de muitas não considerarem aspectos bíblicos, oferecem subsídios consistentes para o conhecimento do ambiente social e cultural do primeiro século da nossa era.

Tais pesquisas superam em muito a dificuldade de se encontrar o Galileu do século I. Pelo estudo comparado, como se faz com outros personagens bíblicos, é possível nos aproximarmos do homem Jesus. As pesquisas dos textos antigos referentes aos anos que envolvem a sua vida, as descobertas da Arqueologia, os pergaminhos do Mar Morto e outras fontes, nos permitem construir um cenário cultural do tempo em foco e situar Jesus em seu ambiente, saber como vivia e o que fazia.

Os evangelhos não são biográficos. As referências históricas sobre Jesus neles contidas são insuficientes para uma biografia, mesmo porque, não foi essa a intenção dos seus autores. O personagem principal dos retratado nos textos dos quatro evangelistas é o “ressuscitado”, o Jesus da experiência comunitária – o que está bem explicito nos textos cristãos. Mesmo assim, contamos com

algumas referências sobre a história e o cotidiano d e Jesus. Poucas, mas o suficiente para mostrá-lo como humano e a sua vida junto aos contemporâneos.

Os relatos inserem Jesus no berço da família de Davi descrevendo seu nascimento na vila de Belém4. Sua infância se passa na Galiléia, mais precisamente na cidade de Nazaré. Quando adulto, após iniciar sua vida pública, Jesus aparece como um pregador itinerante. Percorria as regiões próximas ao Mar da Galiléia – cidades como Tiberíades, Cafarnaum, Corazin... e algumas um pouco mais distante na Decápole, ao norte - Cesárea de Felipe, ou a oeste - Nazaré e Caná. Três vezes por ano5 (pelo menos) ia a Jerusalém, ocasiões em que passava por cidades do caminho, Siquém, Jericó, Betânia.

A Galiléia era uma província ao norte de Israel, governada por Herodes, o Grande, até o ano 4 a.C. Posteriormente foi governada por Herodes Antípater. Foi crucificado por ordem de Pôncio Pilatos, prefeito da Judéia, provavelmente nos primeiros anos da década de 30.

Durante os anos da vida pública de Jesus, Yosef Bar Kayafa (Caifás) exercia o sumo-sacerdócio, a presidência do Sanhedrim e a lideranças dos Saduceus. Tibério César, sucessor de Júlio César, era o imperador de Roma. Valério Graco e Pôncio Pilatos administravam a província romana da Síria e o território do atual Estado de Israel (Judéia, Samária, Galiléia) e a Peréia.

Os evangelhos dão destaques aos grupos político-religioso dos fariseus e dos saduceus e, outros grupos de menor importância nos textos como, os zelotas e os “Issi’im” essênios (curadores) e os herodianos.

A presença romana não era bem aceita em Israel, principalmente pelos grupos que herdaram, de certa forma, o espírito libertário dos Macabeus: os pacíficos fariseus, com forte caráter nacionalista e invejável aceitação popular, e os zelotas, grupo que fazia oposição direta aos romanos através de ataques às guarnições e autoridades romanas.

As relações entre Jerusalém e as regiões da Samária e Galiléia nunca foram as melhores. Os que vinham dessas duas regiões situadas ao norte de Jerusalém carregavam a fama de revoltosos e separatistas. Grupos de zelotas tinham origem nessas regiões e levava os romanos a desconfiar daqueles nortistas que falavam o aramaico. Acredita-se que entre os seguidores próximos a Jesus havia um zelota6.

Duas escolas rabínicas (farisaicas) dominavam as discussões entre fariseus e seus discípulos. Eram as escolas de Shammai, mais rigorosa na interpretação da Halachá e, a de Hillel, um pouco menos ortodoxas nas questões legais. Hillel,

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após sua morte no ano 10 d.C. foi sucedido por Gamliel, “o Velho”, mestre de Shaul (Paulo de Tarso).

Na infância e juventude:

Temos referências nos textos sobre eventos que confirmam que Jesus e seus pais guardavam os costumes e preceitos judaicos. Por exemplo:

• Noivado dos pais (Lc 1; 27).

• Foi circuncidado no oitavo dia. (Lc 2; 21)

• Passou pelo rito de Pidyon ha’ben – resgate dos primogênitos (Lc 2; 23).

• Fez o bar mitzvá – Jesus passou pela prova dos doutores – isto é – mostrou estar preparado para assumir a maioridade judaica.

• Jesus observava o mandamento das festas de peregrinação – shalosh regalim - indo em peregrinação ao Templo três vezes ao ano. (Mt 20;17 – Mc 10;32 – Lc 18;31– Jo 12;12)

• Maria – Mirian – “guardava todos esses acontecimentos em seu coração” – como uma mãe piedosa e responsável pela formação judaica de seu filho7.

• “Jesus progredia em sabedoria e em estatura, e em graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2;32). Este é um ideal judaico (entre os religiosos). Buscar a sabedoria através do estudo, da oração e da justiça é o que todo judeu deve fazer, segundo o ensinamento da Torá e dos mestres do Talmud. Um rabi só teria autoridade junto aos seus discípulos se esse entregasse sua vida à busca da sabedoria e da santidade. O evangelista apresenta Jesus, desde a sua infância, como um mestre que, à medida que ganhava porte físico, preparava a sua missão com uma vida dedicada às coisas de Deus.

Os evangelistas tiveram o cuidado de mencionar ritos próprios da vida de um garoto, filho de uma família religiosa. Tais menções confirmam o vínculo étnico religioso de Jesus ao povo judeu. Todavia, essas referências têm suas interpretações de cunho cristão, mas, não deixam de ser indicadoras de reais práticas e sentimentos próprios dos judeus religiosos.

As curas:

As curas milagrosas estão descritas na Bíblia. Não eram estranhas no meio judaico dos tempos antigos. Elas eram interpretadas como respostas divinas ao poder do mal, uma vez que, por falta de outro conhecimento, acreditavam que certos males eram frutos do pecado. Assim é o caso da cura de Naaman, o leproso (2Rs 5).

As curas eram realizadas por toques e palavras ou, às vezes, a distância, como é o caso da cura que Jesus promoveu à filha do soldado romano. Elas, também, estavam vinculadas à fé do que procurava a intercessão divina.

Os escritos judaicos também relatam curas. Por exemplo:

Aconteceu de, quando o filho de Rabi Gamliel adoeceu, este enviou dois dos seus discípulos a Rabi Hanina ben Dosa para que este rezasse. Quando os viu, Rabi Hanina dirigiu-se ao quarto superior da casa e rezou. Quando desceu, disse-lhes:

- Vão, pois a febre o deixou.

Eles, então, disseram:

- Tu és um profeta?

Ele respondeu:

- Não sou profeta nem filho de profeta, mas tenho a minha bênção: se a minha oração for fluente na minha boca, sei que o homem doente será favorecido; se não, sei que a doença é fatal.

Os discípulos anotaram a hora em que estiveram com Rabi Hanina. Quando voltaram Rabi Gamliel contaram sobre o encontro e em que hora se deu.

E Rabi Gamliel disse:

- Céus! Vocês nada tiraram nem acrescentaram, mas foi assim que aconteceu. Foi nessa hora que a febre o deixou e ele pediu água para beber. (B.Ber 34b)

Assim como eram aceitas as curas entre os judeus, aquelas promovidas pelo Judeu de Nazaré eram igualmente vistas como uma interferência divina sobre o mal.

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Aqui é importante destacar que, a prática da cura, tida como um atributo do homem que se relacionava diretamente com Deus – assim como eram os profetas. A Galiléia – só esta região - era berço de uma corrente carismática do judaísmo, e entre seus membros, havia os que eram capazes de realizar curas independentes de qualquer mediação institucional. Portanto, isto parece ser um fenômeno localizado, vinculado a corrente carismática dentro do judaísmo dos primeiros séculos, confirmada por Flávio Josefo em Antiguidades Judaicas XVIII. Josefo refere-se a Jesus como “realizador de obras maravilhosas”, semelhante o que está nos evangelhos de Mateus e Lucas (Mt11;2 – Lc 24; 19) 8

As repreensões feitas pelos judeus a Jesus pelo fato dele curar no Sábado estavam relacionadas com as diferentes correntes de interpretações sobre o que era permitido ou não fazer no Sábado. Uma das correntes, mais rigorosa, defendia que nada poderia ser realizado no dia de Sábado. Outra, mais flexível, ensinada pela Casa de Hillel, julgava um dever a realização de trabalhos em favor da vida, fosse ela humana ou animal9.

Rabi Meir, um dos sábios da Mishná, ensinava que o valor da vida é superior ao valor do Sábado. E, não foi só ele a ensinar. Muitos outros orientavam para que a observância do Sábado e das datas festivas não comprometessem o trato com a vida. Aliás, a mensagem bíblica e a legislação hebraica são muito claras ao defender o valor da vida, sobrepondo a toda Halachá(Lei).

Portanto, o que lemos nos evangelhos sobre Sábado e sua observância não destoa do judaísmo farisaico (ensinado por Hillel) e, muito menos, do judaísmo rabínico posterior à destruição do Templo.

A Pregação:

As pregações de Jesus seguiam o estilo farisaico, tanto em sua estrutura como na forma de ensinar. Havia o pregador/mestre itinerante e havia aqueles que ensinavam nas sinagogas e nas escolas criadas pelos fariseus cento e cinquenta anos antes da era cristã10. Esses mestres usavam métodos e construções diferenciadas para cada situação: o colar, a abertura, a parábola. Métodos todos usados por Jesus em suas pregações feitas em torno do Mar da Galiléia e Jerusalém e nas sinagogas em que frequentava costumeiramente.

Suas referências eram próprias dos rabinos do seu tempo: referências às Escrituras, situadas no cotidiano, nas coisas da natureza - água – vento, nos fatos da vida. Assim era transmitida a Lei Oral. Por esta forma de ensinar conquistou a

aceitação popular. Suas palavras estavam de acordo com a Tradição Oral aceita e difundida pelos fariseus aos seus discípulos.

Sua orientação assemelhava-se com a flexibilidade de Hillel – e, também, com a interpretação da Torá e da Halachá (Lei). O exemplo mais clássico está no texto sobre “o maior mandamento”. Já havia, desde os tempos dos profetas, o interesse por encontrar mandamentos que sintetizassem os 613 mandamentos da Torá. No tempo de Jesus era corrente a discussão sobre qual seria “o mandamento de ouro”, aquele suficiente para traduzir a essência das Escrituras. Uns afirmavam ser – “Lembra-te que foste criado a imagem e semelhança de Deus” e, outros defendiam – “Amarás o Senhor com todo seu coração, com toda a sua alma e com todo o seu poder; e ao próximo como a ti mesmo”. A adoção de um ou outro mandamento identificava a escola farisaica, a Casa de Shammai ou a Casa de Hillel.

Relação de Jesus com os fariseus:

Na conferência do Doutor Pablo ficou bastante claro a importância dos fariseus para o judaísmo do primeiro século e, também, para a continuidade da religião após a destruição do Templo. No entanto, foi com os fariseus – prushim – com quem, segundo os evangelhos, Jesus teve as discussões mais valorizadas.

Temos que considerar o papel e a aceitação dos fariseus no meio popular da época. Eles eram, antes e depois da destruição do Templo, os que mais exerciam influência no meio popular. Eram, também, aqueles que mais se aproximavam, tanto na prática como na doutrina, do modo dos primeiros pregadores cristão. Lembre-mos que Jesus se avizinhava do pensamento de Hillel, inclusive, nos evangelhos há interpretações iguais ao do mestre fariseu. Sem dúvida, os textos cristãos traduzem “uma competição” entre o grupo judaico e a primeira comunidade cristã, isto é, a suposta inimizade entre Jesus e os fariseus refletem a relação posterior à morte de Jesus – refletem os embates entre a primeira comunidade cristã e os fariseus ou os cristãos nascentes e os judeus durante o período da guerra com Roma.

Quanto ao judeu Jesus, é explicita a sua forma farisaica de ensinar. Não podemos afirmar categoricamente, pois, não há nenhuma referência histórica, que o mestre dos cristãos era um prushim, todavia podemos reconhecer a semelhança em sua prática e sua proximidade ao pensamento de Hillel. Fariseu ou não, Jesus era um darsham – interprete da Torá – possuía discípulos e ensinava por onde passava.

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Para que um mestre da Torá tivesse credibilidade era necessário que não vivesse do ensino, isto é, não cobrasse por seu trabalho de mestre, logo, era preciso que tivesse uma profissão. Hillel, por exemplo, era um vendedor de água. Buscava água na fonte e entregava nas casas. Disso tirava seu sustento. Os evangelhos não falam da atividade de Jesus. Talvez, ganhou a vida como carpinteiro, assim como fez seu pai. Todavia, na sua vida pública, os textos o situam próximo ao mar da Galiléia, junto aos pescadores. Embora nenhum escrito confirme que Jesus tirava seu sustento de alguma atividade, há escritos judaicos do período do I d.C. que alertam sobre a proibição de se cobrar pelo ensino da Torá.

Os fariseus implantaram escolas “públicas” em muitas cidades e vilas de Israel. Eram escolas para meninos. Ensinavam a ler e escrever – desde Ezra o ensino da Torá ganhou importância no ambiente judaico. Todo homem deveria saber ler para estudar a Torá, o que era uma forma de acolher a revelação divina. Conforme o Evangelho Jesus sabia ler – leu na sinagoga – sabia escrever – deve, portanto, ter freqüentado alguma escola “pública” na vila de Nazaré, onde aprendeu com mestres fariseus.

O que disse nesta manhã da Semana Teológica, não esgota o tema, mas já é uma boa dose. Espero ter, juntamente com Rabino Pablo Berman, oferecido subsídios para uma melhor da história, das instituições judaicas do período em que Jesus e os primeiros autores cristãos viveram. Espero, também, que a melhor compreensão do judaísmo, principalmente do judaísmo do primeiro século da nossa era, contribua para recuperar séculos de mal entendidos entre judeus e cristãos e, ainda, que católicos possam encontrar as suas raízes espirituais, pois, lembrando Paulo na carta aos romanos, nossas qualidades vem de uma boa origem - raiz – que é o judaísmo.

(Endnotes)

1 Dr. Pablo Berman é Rabino da Comunidade Israelita de Curitiba.

2 Vermes, Geza; Jesus e o mundo do judaísmo, p.12, Ed. Loyola, São Paulo, 1996.

3 Kathleen Mary Kenyon, arqueóloga inglesa (1906-1978) destacou-se por suas pesquisas na cultura do neolítico no Crescente Fértil e, também, por suas escavações em Jericó. Kathleen Kenyon deu à arquelogia bíblica o cunho e seriedade científica, afastando-se da ideologia religiosa que marcaram as pesquisas anteriores. A Arqueologia bíblica visava, antes de Kenyon comprovar que as histórias da Bíblica eram cientificamente comprováveis.

4 Não temos nada que garanta ser Belém o local do nascimento de Jesus. Não há registros históricos de um recenseamento exigido por ordem de Roma, nem mesmo uma lógica que explique o dominador promover o deslocamento de pessoas a troco de um censo.

5 Afirmamos três vezes baseados na obrigação judaica de peregrinar a Jerusalém nas festas de Pessach, Shavuot e Sukot.

6 O termo zelota ou zelote vem do hebraico kanai, que significa seguidor, zeloso – aquele que zela pelo nome de Deus. Portanto, não podemos afirmar com segurança se o qualificativo atribuído ao apóstolo Simão( Lc 6; 15 e At. 1; 13) referia-se a sua pertença ao grupo revoltoso (de zelo nacionalista) ou se era considerado alguém de zelo religioso.

7 É de responsabilidade da mãe judia transmitir aos filhos a educação, os valores da religião e da tradição aos filhos. Daí se reconhecer como judeu aquele que nasce de mãe judia. No livro do Êxodo encontra-se um fato que ilustra o cuidado com a educação da criança e o papel da mãe na transmissão da herança hebraica ao filho, uma herança que se transmite como alimento que dá a vida e crescimento aos pequenos: A irmã dele(Moisés) disse à filha do Faraó: “Queres que eu vá chamar uma ama de leite entre as mulheres dos hebreus? Ele poderia amamentar o menino para ti”. Ex 2; 7

8 Vermes, Geza: Jesus, o Judeu, p. 84, Ed. Loyola, São Paulo, 1990.

9 Ver referências sobre Hillel e Shammai em Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Hillel_and_Shammai; e na Jewish Encyclopedia: http://www.jewishencyclopedia.com/search?utf8=%E2%9C%93&keywords=Bet+Hillel+and+Bet+Shammai&commit=search

10 Já no tempo de Ezra existiam escolas para se ensinar a Torá. Mas foram os fariseus que se empenharam em espalhar tais escolas por todo o território de Israel.

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JESUS: FORMANDO E FORMADOR

Carlos Mesters *

RESUMO: Costumamos falar de Jesus como formador. Poucas vezes pensamos no processo de formação tanto em sua infância quanto em sua vida pública, tal qual ocorre com todos os seres humanos. Convivendo e formando os discípulos, Jesus também se forma ouvindo o povo, os discípulos, a si mesmo e a Deus. O caminho formativo de Jesus, válido para todos os tempos, tem três indicativos básicos: imitar o mestre, participar de seu destino e conservar sua vida dentro de si. O modo de ensinar de Jesus admite estar atento às questões do povo, partilhando os segredos de Deus, detectando e discernindo os sinais de mentalidade ‘antiDeus’ e adepta de Deus, mesmo que implique na sua Paixão.

PALAVRAS CHAVE: Jesus como formador; Jesus como formando; Discípulos; Processo de formação.

ABSTRACT: We usually speak of Jesus as a formator. We seldom think of the process of training him, both in his childhood and in his public life, as occurs with all human beings. Living and forming disciples, Jesus is also formed when heard the people, the disciples, himself and God. The formative journey of Jesus, valid for all times, has three basic indicative: imitate the teacher, attend your destination and keep his life within. The way of teaching of Jesus involves being aware of the issues of the people, sharing the secrets of God, detecting and discerning the signs of mentality ‘against-God’ and those favor of God, even if resulting in his passion.

KEYWORDS: Jesus as a formator; Jesus as forming; Disciples; Formation process.

Artigos

* Formado em Ciências Bíblicas, pelo Instituto Bíblico de Roma e pela École Biblique, de Jerusalém, assessor do CEBI e CRB, Doutor Honoris Causa , pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores, ITESPP.

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Geralmente, quando falamos de Jesus, não costumamos ver nele o formando, mas só o formador. Na realidade, Jesus, igual a nós em tudo, menos no pecado (Hb 4,15), viveu o mesmo processo de aprendizagem, próprio de todo ser humano. Como todo mundo, crescia em sabedoria, tamanho e graça, diante de Deus e dos homens (Lc 2,52). Naqueles trinta anos em Nazaré, Jesus “crescia e ficava forte, cheio de sabedoria, e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2,40). E mesmo depois, ao longo dos três anos da sua vida como formador dos discípulos e das discípulas, ele ia aprendendo no contato com o povo, com os discípulos e com os fatos duros da vida. “Mesmo sendo Filho de Deus, aprendeu a ser obediente através de seus sofrimentos” (Hb 5,8). Como todos nós, ele matriculou-se na escola da vida e tornou-se discípulo aplicado de Deus e do povo.

Falando de “Jesus formando e formador”, não se trata de dois períodos distintos, como se nos trinta anos em Nazaré Jesus fosse só formando, e nos outros três anos fosse só formador. Na realidade, o formando sempre é fator de formação para seu próprio formador. O formador se forma formando seus discípulos. Uma vez tendo formado o discípulo, o formador desaparece.

1. Seguir Jesus

2. O amigo que convive e forma para a vida

3. Jesus forma os discípulos envolvendo-os na missão

4. O método participativo das Parábolas

5. Atento ao processo de formação dos discípulos

6. Conteúdos e recursos didáticos

1. Seguir Jesus

Desde o começo, o objetivo do seguimento é duplo: estar com Jesus, formar comunidade com ele e ir em missão, ou seja, pregar, expulsar os demônios, ser pescador de gente (Mc 1,17; Lc 5,10; Mc 3,13-15). “Seguir Jesus” era o termo que fazia parte do sistema educativo da época. Indicava o relacionamento do discípulo com o mestre. O relacionamento mestre-discípulo é diferente do relacionamento professor-aluno. Os alunos assistem às aulas do professor sobre uma determinada matéria, mas não convivem com ele. Os discípulos “seguem” o mestre e se formam na convivência diária com ele, dentro do mesmo estilo de vida.

O seguimento de Jesus tinha três dimensões que perduram até hoje e que formam o eixo central do processo de formação dos discípulos:

• Imitar o exemplo do Mestre:

Jesus era o modelo a ser recriado na vida do discípulo ou da discípula (Jo 13,13-15). A convivência diária com o mestre permitia um confronto constante. Nesta “escola de Jesus” só se ensinava uma única matéria: o Reino! E este Reino se reconhecia na vida e na prática do Mestre. Isto exige de nós leitura e meditação constantes do Evangelho para olharmos no espelho da vida de Jesus.

• Participar do destino do Mestre.

A imitação do Mestre não era um aprendizado teórico. Quem seguia Jesus devia comprometer-se com ele e “estar com ele nas tentações” (Lc 22,28), inclusive na perseguição (Jo 15,20; Mt 10,24-25). Devia estar disposto a carregar a cruz e a morrer com ele (Mc 8,34-35; Jo 11,16). Isto exige de nós um compromisso concreto e diário de fidelidade com o mesmo ideal comunitário com que Jesus, fiel ao Pai, se comprometia.

• Ter a vida de Jesus dentro de si.

Depois da Páscoa, surge uma terceira dimensão, fruto da fé na ressurreição e da ação do Espírito na vida das pessoas. Trata-se da experiência pessoal da presença de Jesus ressuscitado, que levava os primeiros cristãos a dizer: “Vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Eles procuravam refazer em suas vidas a mesma caminhada de Jesus que tinha morrido em defesa da vida e foi ressuscitado pelo poder de Deus (Fl 3,10-11). Isto exige de nós uma espiritualidade de entrega contínua, alimentada na oração.

Tanto a convivência comunitária estável ao redor de Jesus e a missão itinerante através dos povoados da Galileia, as duas dimensões fazem parte do mesmo processo de formação. Uma não exclui a outra. Pelo contrário! Elas se completam mutuamente. Uma sem a outra, não se realiza, pois a missão consiste em reconstruir a vida em comunidade.

2, O amigo que convive e forma para a vida

Ao longo daqueles três anos, Jesus acompanhava os discípulos. Ele era o amigo (Jo 15,15) que convivia com eles, comia com eles, andava com eles, se alegrava com eles, sofria com eles.

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Era através desta convivência que eles se formavam. Muitos pequenos gestos refletem o testemunho de vida com que Jesus marcava presença na vida dos discípulos e das discípulas: o seu jeito de ser e de conviver, de relacionar-se com as pessoas e de acolher o povo que vinha falar com ele. Era a maneira de ele dar forma humana à sua experiência de Deus como Pai:

• Amigo, comparte tudo, até mesmo o segredo do Pai (Jn 15,15).

– Carinhoso, provoca respostas fortes de amor (Lc 7,37-38; 8,2-3; Jo 21,15-17; Mc 14,3-9; Jo 13,1).

– Atencioso, preocupa-se com a alimentação dos discípulos (Jo 21,9), cuida do descanso deles e procura estar a sós com eles para repousar (Mc 6,31).

– Pacífico, ele inspira paz e reconciliação: “A Paz esteja com vocês!” (Jn 20,19; Mt 10,26-33; Mt 18,22; Jn 20,23; Mt 16,19; Mt 18,18).

– Compreensivo, aceita os discípulos do jeito que são, até mesmo a fuga, a negação e a traição, sem romper com eles (Mc 14,27-28; Jn 6,67).

– Comprometido, defende os amigos quando são criticados pelos adversários (Mc 2,18-19; 7,5-13).

– Manso e humilde, convida os pobres e oprimidos: “Venham todos a mim” (Mt 11,28).

– Exigente, pede para deixar tudo por amor a ele (Mc 10,17-31).

– Sábio, conhece a fragilidade dos seus discípulos, sabe o que se passa no coração deles e, por isso, insiste na vigilância e ensina-os a rezar (Lc 11,1-13; Mt 6,5-15).

– Homem de oração, aparece rezando em todos os momentos importantes de sua vida e desperta nos discípulos a vontade de rezar: “Senhor, ensina-nos a rezar!” (Lc 11,1-4; Lc 4,1-13; 6,12-13; Jn 11,41-42; Mt 11,25; Jn 17,1-26; Lc 23,46; Mc 15,34)

– Humano, Jesus é humano, muito humano, “tão humano como só Deus pode ser humano” dizia o Papa Leão Magno (Séc. V). Ele veio nos mostra o caminho para quem quer ser divino: antes de tudo ser profundamente humano! (cf. Fl 2,6-11)

Deste modo, pelo seu jeito de ser e por este seu testemunho de vida, Jesus encarnava o amor de Deus e o revelava aos discípulos e discípulas (Mc 6,31; Mt 10,30; Lc 15,11-32). “Quem vê a mim, vê o Pai” (Jo 14,9). Tornava-se para eles uma pessoa significativa que os marcou pelo resto de sua vida como “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6).

3. Jesus forma os discípulos envolvendo-os na missão

Desde o primeiro momento do chamado, Jesus envolve os discípulos na missão que ele mesmo estava realizando em obediência ao Pai. A participação efetiva no anúncio do Reino faz parte do processo formador, pois a missão é a razão de ser da vida comunitária ao redor de Jesus. (Lc 9,1-2; 10,1). Eles devem ir, dois a dois, para anunciar a chegada do Reino (Mt 10,7; Lc 10,1.9), curar os doentes (Lc 9,2), expulsar os demônios (Mc 3,15), anunciar a paz (Lc 10,5; Mt 10,13) e rezar pela continuidade da missão (Lc 10,2). Eis alguns aspectos desta sua atitude formadora com relação à missão:

– Corrige-os quando erram e querem ser os primeiros (Mc 9,33-35; 10,14-15).

– Sabe aguardar o momento oportuno para corrigir (Lc 9,46-48; Mc 10,14-15).

– Ajuda-os a discernir (Mc 9,28-29).

– Interpela-os quando são lentos (Mc 4,13; 8,14-21).

– Prepara-os para o conflito e a perseguição (Jo 16,33; Mt 10,17-25).

– Manda observar a realidade (Mc 8,27-29; Jo 4,35; Mt 16,1-3).

– Reflete com eles as questões do momento (Lc 13,1-5).

– Confronta-os com as necessidades do povo (Jo 6,5).

– Ensina que as necessidades do povo estão acima das prescrições rituais (Mt 12,7.12).

– Esquece o próprio cansaço e acolhe o povo que o procura (Mt 9,36-38).

– Tem momentos a sós com eles para poder instruí-los (Mc 4,34; 7,17; 9,30-31; 10,10; 13,3).

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– Sabe escutar, mesmo quando o diálogo é difícil (Jo 4,7-30).

– Ajuda as pessoas a se aceitarem a si mesmas (Lc 22,32).

– É severo com a hipocrisia (Lc 11,37-53).

– Faz mais perguntas do que respostas (Mc 8,17-21).

– É firme e não se deixa desviar do caminho (Mc 8,33; Lc 9,54).

– Desperta liberdade e libertação: “O ser humano não foi feito para o sábado, mas o sábado para o ser humano!” (Mc 2,27; 2,18.23).

– Depois de tê-los enviado em missão, na volta faz revisão com eles (Lc 9,1-2;10,1; 10,17-20)

– Desperta a atenção dos discípulos para as coisas da vida através do ensino das Parábolas (Lc 8,4-8).

4. O método participativo das parábolas

Jesus tinha uma capacidade muito grande de inventar parábolas ou pequenas histórias para comparar as coisas de Deus, que não são tão evidentes, com as coisas da vida do povo que todos conheciam e experimentavam diariamente na sua luta pela sobrevivência. Isto supõe duas coisas: estar por dentro das coisas da vida do povo, e estar por dentro das coisas de Deus, do Reino de Deus.

A parábola é uma forma participativa de ensinar e de educar. Não dá tudo trocado em miúdo. Não faz saber, mas faz descobrir. Ela muda os olhos, faz a pessoa ser contemplativa, observadora da realidade. Leva a pessoa a refletir sobre a sua própria experiência de vida, e faz com que esta experiência a leve a descobrir que Deus está presente no cotidiano da vida de cada dia. Por exemplo, o agricultor que escuta a parábola da semente, diz: “Semente no terreno, eu sei o que é. Mas Jesus diz que isso tem a ver com o Reino de Deus. O que será que ele quis dizer com isto?” E aí você pode imaginar as longas conversas do povo e dos discípulos em torno das parábolas que Jesus contava.

A parábola provoca. Em algumas parábolas acontecem coisas que não costumam acontecer na vida normal. Por exemplo, onde se viu um pastor de cem ovelhas abandonar noventa e nove no deserto para encontrar aquela única ovelha que se perdeu? (Lc 15,4) Onde se viu um pai acolher com festa o filho devasso, sem dar nenhuma palavra de censura? (Lc 15,20-24). Onde se viu um samaritano ser melhor que o levita e o sacerdote? (Lc 10,29-37). A parábola traz um exagero

pedagógico. Ela provoca assim para levar o ouvinte a pensar. Ela leva a pessoa a se envolver na história a partir da sua própria experiência de vida.

Uma vez um bispo perguntou numa reunião da comunidade: “Jesus falou que devemos ser como sal. Para que serve o sal?” Discutiram e, no fim, partilhando entre si suas experiências com o sal, encontraram mais de dez finalidades para o sal. Aí eles foram aplicar tudo isto à sua própria vida e descobriram que ser sal é difícil e exigente! A parábola funcionou e ajudou-os a dar um passo. Iniciaram a travessia em direção ao Reino!

Certa vez, por ocasião da parábola da semente, os discípulos perguntaram a Jesus o que ele queria ensinar por meio daquela parábola. Jesus disse: “Para vocês, foi dado o mistério do Reino de Deus; para os que estão fora tudo acontece em parábolas, para que olhem, mas não vejam, escutem, mas não compreendam, para que não se convertam e não sejam perdoados.” (Mc 4,11-12).

Jesus distingue duas categorias de pessoas: “os de fora” e os “de dentro”. Aos de dentro, isto é, aos discípulos que convivem com Jesus e acreditam nele, é dado conhecer o mistério do Reino, pois o mistério do Reino era o próprio Jesus. Jesus é a semente do Reino. Aos de fora, isto é, aos que não faziam parte da “família de Jesus”, tudo é dito em parábolas, “para que vendo não vejam”. Estes, os de fora, sabem o que é semente, mas não sabem que o próprio Jesus é esta semente. Alguns deles, como por exemplo, aqueles fariseus e os herodianos que queriam matar Jesus (Mc 3,6), nunca aceitariam Jesus ser a semente do Reino. Por isso, mesmo vendo não enxergam e ouvindo não entendem. E por causa desta cegueira eles se excluem a si mesmos do Reino.

Só poucas vezes Jesus explica as parábolas. Geralmente, ele diz: «Quem tem ouvidos para ouvir ouça!» (Mt 13,9; 11,15; 13,43; Mc 7,16). Ou seja: «É isso! Vocês ouviram! Agora tratem de entender!» De vez em quando, em casa, ele dava explicação aos discípulos (Mc 4,34-34). Isto significa que o ensino em parábola era um voto de confiança de Jesus na capacidade do povo e dos discípulos de entenderem o seu ensinamento. É bom para o formando saber e experimentar que o formador acredita nele e na sua capacidade de assimilar e compreender as coisas.

5. Atento ao processo de formação dos discípulos

Não é pelo fato de uma pessoa andar com Jesus e de conviver com ele que ela já seja santa e renovada. O “fermento de Herodes e dos fariseus” (Mc 8,15), a ideologia dominante da época, tinha raízes profundas na vida daquele povo. A conversão que Jesus pedia e a formação que ele dava procuravam atingir e erradicar de dentro deles esse “fermento” da ideologia dominante.

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Também hoje, a ideologia do sistema neoliberal renasce sempre de novo na vida das comunidades e dos discípulos e discípulas. O “fermento do consumismo” tem raízes profundas na vida, tanto dos formandos como dos formadores, e exige uma vigilância constante. Jesus ajudava os discípulos a viverem num processo permanente de formação. Vamos ver alguns casos desta vigilância com que Jesus os acompanhava e os ajudava a tomarem consciência do “fermento de Herodes e dos fariseus”. É a ajuda fraterna com que ele, atento ao processo de formação dos discípulos, intervinha para ajudá-los a dar um passo e criar nova consciência:

1. Mentalidade de grupo fechado.

Certo dia, alguém que não era da comunidade, usava o nome de Jesus para expulsar os demônios. João viu e proibiu. Ele disse a Jesus: “Impedimos, porque ele não anda conosco” (Mc 9,38). 5 João pensava ter o monopólio de Jesus e queria proibir que outros usassem o nome dele para realizar o bem. Era a mentalidade antiga de “Povo eleito, Povo separado!”. Jesus responde: “Não impeçam! Quem não é contra é a favor!” (Lc 9,39-40). Para Jesus, o que importa não é se a pessoa faz ou não faz parte da comunidade, mas sim se ela faz ou não o bem que a comunidade anuncia a todos em nome de Deus.

2. Mentalidade do grupo que se considera superior aos outros.

Certa vez, os samaritanos não queriam dar hospedagem a Jesus. A reação de alguns discípulos foi violenta: “Que um fogo do céu acabe com esse povo!” (Lc 9,54). Queriam imitar o profeta Elias (cf. 2Rs 1,10-11). Achavam que, pelo fato de estarem com Jesus, todos deviam acolhê-los. Pensavam ter Deus do seu lado para defendê-los. Era a mentalidade antiga de “Povo eleito, Povo privilegiado!”. Jesus os repreende: “Vocês não sabem de que espírito estão sendo animados” (Lc 9,55).

3. Mentalidade de competição e de prestígio.

Os discípulos brigavam entre si pelo primeiro lugar (Mc 9,33-34). Era a mentalidade de classe e de competição, que caracterizava a sociedade do Império Romano. Ela já se infiltrava na pequena comunidade que estava apenas nascendo ao redor de Jesus. Jesus reage e manda ter a mentalidade contrária: “O primeiro seja o último” (Mc 9,35). É o ponto em que ele mais insistiu e em que mais deu o próprio testemunho: “Não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45; Mt 20,28; Jo 13,1-16).

4. Mentalidade de quem marginaliza o pequeno.

Mães com crianças querem chegar perto de Jesus. Os discípulos as afastam. Era a mentalidade da cultura da época na qual criança não contava e devia

ser disciplinada pelos adultos. Era ainda o medo de que as mães e as crianças, tocando em Jesus com mãos impuras, causassem alguma impureza em Jesus. Mas Jesus os repreende: “Deixem vir a mim as crianças!” (Mc 10,14). Ele os acolhe, abraça e abençoa. Coloca a criança como professora de adulto: “Quem não receber o Reino como uma criança, não pode entrar nele” (Lc 18,17). Transgride aquelas normas da pureza legal que impedem o acolhimento e a ternura.

5. Mentalidade de quem segue a opinião da ideologia dominante.

Certo dia, vendo um cego, os discípulos perguntaram a Jesus: “Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?” (Jo 9,2). Como hoje, o poder da opinião pública era muito forte. Fazia todo mundo pensar do mesmo jeito de acordo com a ideologia dominante. Enquanto se pensa assim não é possível perceber todo o alcance da Boa Nova do Reino. Jesus os ajuda a ter uma visão mais crítica: “Nem ele, nem os pais dele, mas para que nele se manifestem as obras de Deus” (cf Jo 9,3). A resposta de Jesus supõe uma consciência nova e uma leitura diferente da realidade. Estes e muitos outros episódios mostram como Jesus estava atento ao processo de conversão e de formação em que se encontravam seus discípulos. Isto revela duas características em Jesus: 1) Possuía uma visão crítica, tanto da sociedade em que ele vivia, como da ideologia ou “fermento” que os grandes comunicavam aos súditos. 2) Tinha uma percepção clara de como este “fermento”, disfarçadamente, se infiltrava na vida das pessoas. Pois de certo modo, eles pensavam agradar a Jesus quando proibiam as mães aproximar-se de Jesus ou quando pediam para Deus fazer baixar o fogo do céu.

6. Conteúdos e Recursos didáticos

O sistema educativo da época era bem diferente de hoje. Jesus era Mestre, Rabino. Não era professor. Seus formandos não eram alunos, mas sim discípulos e discípulas. Mesmo assim, apesar de ser diferente de hoje, vamos arriscar uma resposta para a seguinte pergunta: Quais eram os conteúdos e recursos didáticos em que Jesus mais insistia e a que dava mais atenção no processo de formação dos discípulos?

• O testemunho de vida.

O recurso básico que Jesus utiliza na formação dos discípulos é o testemunho de sua vida: “Segue-me” (Lc 5,27). “Venham e vejam” (Jo 1,39). “Eu sou

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o caminho, a verdade e a vida” (Jn 6 14,16). O discípulo tem na vida do Mestre uma norma (Mt 10,24-25). Neste seu testemunho de vida Jesus reflete para os discípulos os traços do rosto de Deus: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). A raiz da Boa Nova é Deus, o Pai. A raiz da transparência de Jesus é a sua fidelidade ao Pai e a sua coerência com a Boa Nova que anuncia e irradia.

• A Vida e a natureza.

Jesus descobre a vontade do Pai nos fenômenos mais comuns da natureza e a transmite aos discípulos e discípulas: na chuva que cai sobre bons e maus ele descobre a misericórdia do Pai que acolhe a todos (Mt 5,45); nos pássaros do céu e nos lírios do campo ele descobre os sinais da Divina Providência (Mt 6,26-30). A sua maneira de ensinar em parábolas provoca os discípulos a refletirem sobre as coisas mais comuns do dia a dia da sua vida (Mt 13,1-52; Mc 4,1-34). As parábolas de Jesus são um retrato da vida do povo e da realidade confusa e conflituosa da época.

• As grandes questões do momento e as perguntas do povo.

O crime de Pilatos contra alguns romeiros da Galileia, a queda da torre de Siloé em construção que matou 18 operários (Lc 13,1-4), a discussão dos discípulos em torno de quem deles era o maior (Mc 9,33-36), a fome do povo (Lc 9,13), o ensinamento dos escribas (Mc 12,35-37) e tantos outros problemas, fatos e perguntas do povo funcionavam como gancho para Jesus levar os discípulos a refletir, a cair em si e a descobrir algum ensinamento ou apelo de Deus.

• O jeito de ensinar em qualquer lugar.

Em qualquer lugar onde encontrava gente para escutá-lo, Jesus transmitia a Boa Nova de Deus: nas sinagogas durante a celebração da Palavra nos sábados (Mc 1, 21; 3,1; 6,2); em reuniões informais nas casas de amigos (Mc 2,1.15; 7,17; 9,28; 10,10); andando pelo caminho com os discípulos (Mc 2,23); ao longo do mar na praia, sentado num barco (Mc 4,1); no deserto para onde se refugiou e onde o povo o procurava (Mc 1,45; 6,32-34); na montanha, de onde proclamou as bem aventuranças (Mt 5,1); nas praças das aldeias e cidades, onde povo carregava seus doentes (Mc 6,55- 56); no Templo de Jerusalém, por ocasião das romarias, diariamente, sem medo (Mc 14,49).

• Memorização na base da repetição.

Não havia livros, nem manuais como hoje. O ensina era baseado na repetição do conteúdo a fim de favorecer a memorização. Isto ainda transparece em algumas partes dos discursos de Jesus, conservados nos evangelhos. O final do Sermão da Montanha, por exemplo, repete duas vezes, de maneira rítmica, com poucas diferenças, a mesma frase (Mt 7,24-25 e 26-27).

• Momentos a sós com os discípulos.

Várias vezes, Jesus convida os discípulos para ir com ele a um lugar distante, seja para instruir (Mc 4,34; 7,17; 9,30-31; 10,10; 13,3), seja para descansar (Mc 6,31). Ele chegou a fazer uma longa viagem ao exterior na terra de Tiro e Sidônia para poder estar a sós com eles e instruí-los a respeito da Cruz (Mc 8,22-10,52).

• A Bíblia e a história do povo.

Nem sempre é possível discernir se o uso que os evangelhos fazem do AT vem do próprio Jesus ou se é uma explicitação dos primeiros cristãos que, assim, expressavam o alcance da sua fé em Jesus. Seja como for, é inegável o uso constante e frequente que Jesus fazia da Bíblia. Ele conhecia a Bíblia de cor e salteado. Como ainda veremos, Jesus se orientava pela Sagrada Escritura para realizar sua missão e ele a usava para instruir os discípulos e o povo.

• A Cruz e o sofrimento.

Quando ficou claro para Jesus que as autoridades religiosas não iam aceitar a sua mensagem e que decidiram matá-lo, ele começou a falar da cruz que o esperava em Jerusalém (Lc 9,31). Isto provocou reações fortes nos discípulos (Mc 8,31-33), pois na lei estava escrito que um crucificado era um “maldito de Deus” (Dt 21,22-23). Como um maldito de Deus poderia ser o Messias? Por isso, a partir deste momento crítico, o eixo da formação que Jesus dava aos discípulos consistia em ajudá-los a superar o escândalo da Cruz (Mc 8,31-34; 9,31-32; 10,33-34). Estes são alguns dos recursos didáticos usados por Jesus na formação dos discípulos e discípulas. Alguns destes recursos eram diferentes de hoje, outros eram iguais.

* Biblista. Fundador o CEBI

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UMA ESPIRITUALIDADE

CRISTÃ HOJE

Mateus Locatelli *

RESUMO: O artigo busca investigar, partindo da cristologia de Lucas, um arquétipo de espiritualidade cristã. Para tal, tem como escopo apontar um caminho de espiritualidade, para os dias de hoje, pois seguir a Cristo implica uma mudança de vida e um comprometimento com o reino de Deus não somente em palavras, mas também em atos. Faz-se necessário um encontro pessoal com Jesus. Para isso, os cristãos de todos os tempos necessitam de uma espiritualidade encarnada na realidade e atenta aos sinais dos tempos. Também profundamente mística, a exemplo de Jesus. Portanto, uma verdadeira espiritualidade cristã, hoje, deve desafiar o ser humano a uma mudança de vida, que coloque em comunhão total – ‘ser um com Deus’, consigo mesmo, com o próximo e com o universo, para tornar-se radicalmente livre e em tudo fazer a vontade de Deus.

PALAVRAS CHAVE: Espiritualidade de caminho; Compaixão de Jesus; Comunhão Total; Metanóia-Mudança de Vida.

ABSTRACT: This paper investigates, from the Christology of Luke, an archetype of Christian spirituality. For this, is scoped pointing a path of spirituality to the present, because to follow Christ involves a lifestyle change and a commitment with the kingdom of God, not only in words but also in deeds. It is necessary a personal encounter with Jesus. For this reason, Christians of all times need a spirituality embodied in reality and attentive to the signs of the times. Also deeply mystical, like Jesus. Therefore, a true Christian spirituality today, must challenge the human being to a life change, which put into full communion - ‘to be one with God’, with himself, with others and with the universe, to become radically free and in all things be able to do God’s will.

KEY WORDS: Spirituality path; Compassion of Jesus; Total Communion; Metanoia-Change of the life.

Artigos

* Graduado em filosofia e teologia, especialista em bioética.

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1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, apresentar-se-á com base na cristologia de Lucas, pontos para uma espiritualidade cristológica nos dias atuais. O motivo de ter por base tal evangelista deve-se ao fato de retratar um Jesus profundamente humano, que acolhe a todos indistintamente, não importando a situação em que se encontravam. Relata também um Jesus orante e misericordioso. Orante, pois nos momentos marcantes de suas decisões e de sua vida terrena coloca-se em oração, misericordioso, pois ao perceber uma realidade de condenação, de injustiça e de morte, move-se de compaixão, vai ao encontro e restabelece a dignidade perdida pela doença ou condição social.

Nesse sentido, o objetivo é apontar um caminho de espiritualidade, para o hoje, a qual parte de um encontro pessoal com aquele “profeta de fogo” que percorreu a Galiléia, por volta do ano 30, e virou o mundo para o lado certo. Frente a isso se tentará responder à seguinte problemática: como seguir o modelo de misericórdia e compaixão para com o próximo, proposto por Cristo, na atualidade?

A partir desse questionamento, espera-se que o artigo alcance seu objetivo e seja uma resposta ao desafio que é a vivência da espiritualidade cristã em nossos dias. O estudo deste tema encontra sua justificação pelo fato de ser uma reflexão atual dentro da área da cristologia e da espiritualidade

2 UMA MUDANÇA NO HORIZONTE CONJUNTURAL

A base da espiritualidade cristã é Jesus Cristo, por isso, o ponto decisivo e mais urgente, de nosso tempo, é colocá-lo como o centro do cristianismo. Para tal, como escreve José Antonio Pagola1, a fé cristã não deve reduzir a pessoa de Jesus a uma “sublime abstração”, ou melhor, não é possível para o cristão, hoje, viver motivado apenas por verdades acerca de Cristo. É necessário um contato vivo, um encontro pessoal com aquele, tido como o Salvador e com suas atitudes de compaixão e de misericórdia, as quais viram o mundo para o lado certo2.

Vive-se um período de alteração no horizonte conjuntural, caracterizado como uma época de fundamental mudança espiritual e cultural, pois a forma

1 PAGOLA, J. A. Jesus aproximação histórica. Vozes: Petrópolis, 2010, p. 566. 2 NOLAN, A. Jesus hoje: uma espiritualidade de liberdade radical. São Paulo: Paulinas, 2008, p.

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de compreender o mundo é outra3. Esta mudança ocorre a partir do momento em que uma teoria não responde mais a determinados questionamentos, pois sobram dados e nasce uma crise (dúvida). Isso ocorre no campo da história, da cultura, da ciência e também da fé, quando se verifica a possibilidade de expressar a fé antiga de maneira nova, mas fiel. Havendo uma mudança no entendimento da realidade, a fé é igualmente repensada de outra maneira.

Entretanto para que o novo na fé seja dito, é necessário, primeiramente, um voltar a Jesus e a partir Dele revelar que o seu Deus é um Deus de todos os seres humanos. Como escreve Schillebeeckx4, “o cristianismo só continua vivo e verdadeiro se cada época, na base de sua relação com Jesus Cristo, se pronuncia novamente em favor de Jesus de Nazaré”.

Frente a este novo horizonte conjuntural, tido como pós-metafísico ou pós-cristianismo. É necessário um abandono do fundamentalismo para centrar-se numa espiritualidade que liberte o ser humano e o ajude a enfrentar os problemas atuais, através de um conhecimento vivo e concreto de Jesus de Nazaré, aquele homem que percorreu a Galiléia por volta do ano 30.

3 UMA ESPIRITUALIDADE QUE VIRE O MUNDO PARA O LADO CERTO

O evangelho de Lucas procura pintar um retrato de Jesus profundamente humano, misericordioso e orante. Tal ícone deve ser o modelo do cristão de todas as épocas para:

Introduzir no mundo a compaixão de Deus; levar a humanidade a olhar para os últimos; construir um mundo mais justo, começando pelos mais esquecidos; semear gestos de bondade para aliviar o sofrimento; ensinar e viver confiando em Deus Pai, que quer uma vida feliz para os seus filhos e filhas.5

Assim, a espiritualidade cristã, olhando os sinais dos nossos tempos, deve libertar o ser humano para enfrentar os problemas atuais e não incentivá-lo a viver uma fé baseada no dogma, no moralismo e no fundamentalismo. É somente

3 Alguns configuram esta mudança no horizonte conjuntural atual como: mudança de época, a qual muda os critérios de julgamento sobre o certo e o errado (Joel Portella), período de traves-sia marcado por construções e reconstruções (Frei Gilvander Moreira) ou como um período de pós-metafísica.

4 SCHILLEBEECKX, Jesus: a história de um vivente. São Paulo: Paulus. 2008, p. 579.5 PAGOLA, J. A. op cit,. 2010, p. 569.

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através do encontro pessoal com Jesus, que as pessoas são impulsionadas a uma mudança de vida (metanóia) e a assumir a mesma missão de Cristo.

Jesus, um judeu camponês, vive em um período influenciado pela globalização do Império Romano, onde os ricos e os poderosos para manterem uma vida de riquezas e de luxo exploram o povo com altas taxas e impostos, gerando pobreza, exclusão e sofrimento. Nesse contexto, dá-se a sua atuação e a sua revolução6, pois pega os valores da época e inverte a ordem.

Partindo da realidade e vendo a dignidade humana desrespeitada, move-se de compaixão e vai ao encontro dos perseguidos, marginalizados e doentes, revelando através do seu rosto o de Deus, a fim de anunciar um reino de justiça, misericórdia, igualdade e amor para todos. Um Reino de Deus que “não desceria do alto, mas subiria de baixo, do meio dos pobres, dos pequenos, dos marginais, dos perdidos, das aldeias da Galiléia”7. Para isso, relativizava a lei e o moralismo, pois o mais importante são as pessoas e as suas necessidades.

Percebe-se claramente que Jesus, por falar em nome de Deus, ver os sinais dos tempos e opor-se às idéias e às práticas exploratórias da instituição social e religiosa da época é um homem de ação. Contudo, o que está por trás de sua atividade e o sustenta é uma vida de profunda e constante intimidade com Deus, seu Abbá.

A partir da experiência com o Abbá, ponto de partida de sua espiritualidade, apresenta um Deus amoroso, que ama e perdoa todos os homens, mulheres e crianças de forma incondicional. Dotado de uma profunda sensibilidade, nunca julga, acusa ou condena, muito menos é visto fazendo discursos moralistas, imputando culpas ou rótulos às pessoas. Rejeita toda e qualquer religião baseada no legalismo e no moralismo. Sua atitude é de acolhida (cf. Lc 15,11-32) e de respeito à dignidade do ser humano, ao considerar cada individuo como um ser único e digno de ser amado, não importando quem fosse, pois, para Jesus, toda pessoa é única e importante. Por isso perdoa incondicionalmente – “os teus pecados estão perdoados” (Lc 7,48) – não somente em palavras, mas na forma de tratar, na atenção prestada, na alegria de sentar-se à mesa com pecadores e prostitutas.

As curas, que realiza, visam o bem da pessoa no seu todo e somente ocorrem porque ama e se identifica com todos e com cada um. Por isso, os

6 A revolução realizada por Jesus não é política e sim social, pois visa virar “de pernas para o ar as relações sociais existentes entre as pessoas de determinada sociedade” (NOLAN, A. op cit,. 2008, p. 86.)

7 NOLAN, A. op cit,. 2008, p. 95

relatos de milagres não podem ser visto apenas a partir do resultado (cura), mas dentro de um contexto maior de acolhida, misericórdia e compaixão, onde, primeiramente, a pessoa humana em sua condição é valorizada. Ou melhor, como escreve Pagola8:

Jesus reconstrói o enfermo a partir de sua raiz: suscita sua confiança em Deus, arranca-o do isolamento e do desespero, liberta-o do pecado, devolve-o ao seio do povo de Deus e abre-lhe um futuro de vida mais digno e saudável.

Vale ressaltar que, para Jesus, as curas, são resultado da fé – “A tua fé te salvou” (Lc 17,19) – a qual inclui a confiança em Deus.

Portanto uma espiritualidade cristã, hoje, precisa espelhar-se nas atitudes de Jesus, em viver como ele viveu, para não estar fadada ao desaparecimento. O anúncio do querigma passa por viver a espiritualidade de Jesus fundada na opção pelos pobres e na opção por Deus, cujo rosto de Pai misericordioso e acolhedor é revelado pelo próprio Filho. O cristão, espelhado em Jesus, deve introduzir no mundo a misericórdia, a qual, para Ele, é caracterizada como uma “existência para os outros”. Por isso, opta por uma misericórdia sem limites, que é mostrada em sua relação com os doentes, pobres, pecadores, mulheres e crianças.

Todos são chamados a viver uma espiritualidade de opção pelos pobres e por Deus, porém cada um faz isso ao seu modo e dentro de suas condições, por meio de uma vida de despojamento e de liberdade diante da riqueza, dos bens, da intelectualidade ou do status. O sentido da vida não está nisso, mas em seguir a Cristo de forma radical e, como Ele, fazer em tudo a vontade de Deus.

4 INTRODUZIR NO MUNDO A COMPAIXÃO DE JESUS

O cristão é chamado a dar continuidade à missão de Jesus e, como Ele, introduzir no mundo a compaixão que está fundada no Pai de Jesus e no outro, como próximo. Para tanto é necessário uma espiritualidade que leve o ser humano a um comprometimento com o Reino, mesmo diante do martírio.

Com isso, é possível compreender o termo, a pró-existência, cunhado por Heinz Schümann (1913-1999) e bem delineado por Kessler9:

8 PAGOLA, J. A. op cit,. 2010, p. 204.9 KESSLER, Cristologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de dogmática Vol. I. Petrópolis: Vozes, 2000, p.

363.

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A pró-existência de Jesus baseia-se em sua relação com Deus: sua vida para outros flui de sua vida com Deus. Repleto do Espírito de Deus, Jesus vive inteiramente a partir de Deus, portanto, dá espaço a Deus em si e em toda a sua vida, por isso deixa acontecer e realiza o amor de Deus que jamais se esgota, sendo assim ser humano de modo diferente: profundamente comovido e simpático à dor das outras pessoas, sofrendo ativamente junto com elas (...) e engajando-se infatigavelmente por elas.

O anúncio de Cristo, a acolhida e a compaixão devem ser comunicados indistintamente, pois todos são chamados à salvação e a uma vida em Deus. Todavia como o próprio Jesus consumou a redenção na pobreza e na perseguição. A Igreja e os cristãos, em todos os tempos, são chamados a seguir o mesmo caminho, reconhecendo em todos os angustiados, pelo sofrimento humano, a imagem do Cristo e servindo neles (pobres e doentes) a pessoa do seu Senhor.10

4.1 Com os doentes

Na época de Jesus as enfermidades são as próprias de países pobres e subdesenvolvidos: cegueira, paralisias, surdez, mudez, doenças cutâneas, transtornos.

Dentre os “castigados” estão os leprosos, que pela enfermidade são impuros e, por isso, isolados da comunidade para não contaminarem os pertencentes ao povo santo de Deus. Numa cultura onde o indivíduo vive inserido em sua família e aldeia, tal exclusão é uma tragédia, “abandonados por Deus e pelos homens, estigmatizados por seus vizinhos, excluídos em boa parte da convivência, estes enfermos constituem, provavelmente o setor mais marginalizado da sociedade”.11

Jesus percebe tal realidade, move-se de compaixão, vai ao encontro e aproxima-se deles; toca-os e desperta a confiança. Faz isso sem desejo de retribuição, dinheiro ou reputação. Apenas por amor, algo que lhe brota das entranhas e que o leva a eles, a fim de lhes devolver o desejo pela vida, reavivar a fé e os reconciliar com a sociedade. Estes são sinais de um mundo novo onde o Reino de Deus está presente.

Em nossos tempos quem são os doentes? Os excluídos? Os abandonados? Os caídos? A narrativa do bom samaritano fundamenta uma espiritualidade, para nossos dias, centrada na atitude Jesus Cristo.

10 VATICANO II (1962-1965). Documentos do Concílio ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 361-362, n. 8/3.

11 PAGOLA, J. A. op cit,. 2010, p. 195.

Uma parábola que narra o cotidiano da vida sem apontar para um mundo ideal. Apresenta uma realidade e uma possibilidade de ver e de agir no mundo de maneira diferente. Schillebeeckx12 escreve, “o bom samaritano não apenas ajuda; ele faz coisas extravagantes: vai a pé, o homem ferido vai ao lombo do jumento; leva-o a um albergue, volta no dia seguinte, paga as despesas da hospedagem e assume qualquer outro gasto adicional”. Ele é capaz de transformar uma realidade de dor e sofrimento em vida, unicamente, porque se move de compaixão, enquanto os dois – sacerdote e levita – presos à lei passam adiante por medo da impureza. Realizando, com isso, a verdadeira liturgia.

Uma espiritualidade, hoje, para com os enfermos e excluídos não passa apenas pela preocupação de saber quem é o próximo, mas por um mover-se de compaixão e por um ser próximo para àqueles que necessitam. Implica um ver, um compadecer, mas acima de tudo um agir sem esperar nada em troca; gratuitamente, por amor. Essa é a essência da vivência cristã, um amor ágape, que vire o mundo para outro caminho, o da misericórdia.

Deste modo, se o reinado de Deus é a dedicação universal da misericórdia divina ao ser humano, então a metanóia exigida por ele é concretizada na dedicação ao próximo:13 “sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).

4.2 Com os pobres

Os pobres fazem parte do setor social mais oprimido. A população da Galiléia, na sua grande maioria, é formada por eles, que sem condições de reivindicar os próprios direitos e de conseguir o alimento diário precisam lutar e trabalhar. Em meio a esta realidade somente podem confiar no direito divino.

José Antonio Pagola14 escreve que: os pobres não são anônimos, são pessoas cujo rosto é sujo e definhado pela miséria. Entre os homens, encontram-se os mendigos que caminham de povoado em povoado pedindo esmolas, escravos fugidos dos patrões e camponeses de seus credores. Entre as mulheres estão às viúvas, as estéreis repudiadas pelos seus maridos e obrigadas a entregarem-se à prostituição.

Jesus, ao anunciar um reino de justiça e misericórdia, não pode esquecer-se dessas pessoas. Quando defende, acolhe e, a eles, dá lugar, provoca uma inversão total, pois os primeiros tornam-se últimos e os últimos primeiros.

12 SCHILLEBEECKX, op cit,. 2008, p. 151.13 SCHILLEBEECKX, op cit,. 2008, p. 159.14 PAGOLA, J. A. op cit,. 2010, p. 222.

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Pergunta-se pelos pobres de hoje. Como são tratados? Onde estão? A narrativa do homem rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31) pinta uma situação de época que reflete na atualidade. A parábola contada por Jesus, às pessoas humildes, retrata a vida de um homem rico em uma vida de ostentação e de luxo, com a qual os ouvintes nem sequer sonham. Perto do rico há um pobre, Lázaro, que não tem nada a não ser o nome, cujo significado é “aquele a quem Deus ajuda”. Encontra-se coberto de feridas, não conhece banquetes e festas, apenas deseja saciar-se com os restos que caiam da mesa do opulento. É repugnante, impuro, degradado e sem forças mesmo para pedir ajuda.

A atitude de Jesus inverte totalmente os conceitos, os valores e desmascara tamanha injustiça, “os ricos estão dentro de seus palácios celebrando esplêndidas festas; os pobres estão fora morrendo de fome”. Tudo muda. Lázaro, tido como condenado por Deus, em sua morte vai para seio de Abraão, o rico, considerado como agraciado, vai para o Sheol (Lc 16,22). Com esta parábola, Jesus denúncia a injustiça, na Galiléia, e a riqueza que cresce através da opressão dos fracos, a qual não é sinal de bênção, mas é iniquidade, e com ela Deus não se compraz. Por isso a fará desaparecer, pois o Reino é incompatível com esta realidade.

Uma opção pelo reino, em todos os tempos, obrigatoriamente implica num levantar a voz contra toda e qualquer injustiça e opressão aos menos favorecidos. Uma espiritualidade cristológica passa por uma opção preferencial pelos pobres e menos favorecidos, a qual nasce de nossa fé em Jesus, Deus feito homem e nosso irmão e nos convida a contemplar, no rosto dos sofredores, o rosto de Cristo e a eles servir.15

Somente é possível construir uma vida tal como Deus quer, libertando homens e mulheres da fome, da miséria e da humilhação. A suprema caridade é a justiça e só se pode acolher a Deus e a revelação de seu Filho, construindo um mundo que tenha como meta primeira a dignidade dos últimos.

4.3 Com as mulheres

A mulher em uma sociedade patriarcal está destinada a viver na inferioridade e submissão aos homens. O controle sobre elas, na cultura semita, deve-se, principalmente, às regras de pureza sexual (cf. Lv 15,19-30), pois em decorrência da menstruação e do parto tudo o que tocam torna-se impuro.

15 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Apare-cida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulinas; Paulus; Brasília: edições CNBB, nº. 392-393.

Ao tratar da vida das mulheres, Pagola16 afirma: “as mulheres judias, sem verdadeira autonomia, servas do próprio esposo, reclusas no interior da casa, suspeitas de impureza ritual, discriminadas religiosa e juridicamente, constituíam um setor profundamente marginalizado da sociedade judaica.” Diante de tamanha discriminação a atitude de Jesus, novamente, é de acolhida, amor e misericórdia. Aproxima-se delas, abertamente, sem receio e sem deixar-se condicionar por nenhuma forma de preconceito. Elas, diante de tal abertura, aproximam-se e seguem-no.

Hoje, a dignidade da mulher é respeitada? Elas têm espaço na sociedade? Na política? Na economia? Na academia? Na religião? Nos meios de comunicação? Como são valorizadas? Percebe-se que muitos passos foram dados, mas muito ainda precisa ser feito para que haja igual dignidade entre homens e mulheres, tanto no campo social como no religioso.

As mulheres tiveram um papel significativo na missão de Jesus. Seguiram-no como discípulas e permaneceram com Ele na dor, no sofrimento e na morte. Em todos os tempos, são chamadas a testemunhar a fé no Cristo vivo e ressuscitado. Se no passado, por questões históricas e culturais permaneciam silenciosas no cuidado do cônjuge e dos filhos, hoje são chamadas a uma participação ativa no discipulado e na missão, testemunhando a fé, por meio de uma espiritualidade místico-profética.

4.4 Com as crianças

A criança, na cultura e na sociedade judaica do primeiro milênio, não tem um lugar social. É desprezada, ignorada e considerada como ninguém. Por isso, quando Jesus coloca um pequenino como modelo a ser imitado, todos ficam surpresos (cf. Lc 9,46-48). Para Ele, a verdadeira transformação acontecerá quando as pessoas tornarem-se humildes como as crianças.

Com tal atitude, Jesus revela que o Reino de Deus é incompatível com a soberba e a hipocrisia. Para tanto, pede que as pessoas imitem o exemplo das criancinhas e sejam capazes de confiar em Deus, como um pequenino confia em seus pais; de sentir assombro com as pequenas coisas da vida; de ter a capacidade de rir e de brincar. Devido à tamanha simplicidade delas, Jesus as trata com dignidade e respeito, colocando-as como modelo para quem deseja herdar o Reino dos céus.

16 PAGOLA J. A. op cit,. 2010, p. 259.

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Pergunta-se hoje pelas nossas crianças. São respeitadas? Tratadas com dignidade? Pelos pais? Pelo governo? Pela Igreja? Mais uma vez as pessoas são chamadas a voltar seu olhar para Jesus, a fim de espelharem-se nas suas atitudes de amor e de inclusão, a fim de virar o mundo para o lado certo.

É inadmissível o grande número de crianças abandonadas nas ruas como pedintes, exploradas sexualmente, obrigadas a trabalhos forçados, esfomeadas ou desnutridas pela falta de alimentos, afastadas da escola e morrendo por não serem atendidas em suas enfermidades. Frente a tal panorama, verifica-se que muito ainda é necessário caminhar, para que as crianças sejam respeitadas em sua dignidade de filhos de Deus.

As crianças têm um papel significativo na sociedade de hoje, pois serão adultos e os idosos do amanhã. Por isso, é imprescindível investimentos para uma educação de qualidade e condições de vida que supram suas necessidades básicas de saúde, alimentação, moradia, higiene e segurança, bem como de afeto e carinho. O governo, a família, a Igreja e a sociedade devem levantar a voz em prol destes indefesos que necessitam de proteção contra qualquer tipo de ameaça.

Aqui, encontram eco as palavras de Jesus: “Aquele que receber uma criança como esta por causa do meu nome, recebe a mim, e aquele que me receber recebe aquele que me enviou; com efeito, aquele que no vosso meio for o menor, esse será grande” (Lc 9,48). As quais nos fazem repensar o modo de ver e de tratar os pequeninos, os prediletos de Deus.

A espiritualidade do seguimento de Jesus, em relação à criança, implica, pois em: tornar-se simples como elas e simultaneamente considerá-las como Jesus as considerava em sua dignidade, isto é, como filhas de Deus, feitas à sua imagem.

4.5 Com os pecadores

Jesus é hostilizado, ainda e de forma principal, pela sua aproximação e amizade com os pecadores, pois o pecado, no mundo semita, é tido como a maior desgraça e o maior mal, pelo fato de desagradar a Deus e desencadear a sua “ira”. Na Galiléia do primeiro século, são chamados de pecadores um grupo especial bem reconhecível de pessoas com determinados traços sociológicos. São aqueles que:

Rejeitam a Aliança com Deus, desobedecendo radicalmente à lei: os que profanam o culto, os que desprezam o grande dia da Expiação, os deliquentes, os que colaboravam com Roma na opressão do povo judeu, os usuários e trapaceiros e as prostitutas17.

17 PAGOLA J. A. op cit,. 2010, p. 242.

O que mais escandaliza o povo não é só o fato de Jesus andar em companhia de pecadores, mas, sobretudo, de sentar-se à mesa com eles. Este é um dos atos mais surpreendentes e originais do Senhor no intuito de apresentar um reino que converta o mundo para o lado certo.

A atitude de não excluir ninguém surpreende a todos. Com isso, apresenta que no Reino de Deus tudo será diferente, uma mesa aberta onde, indistintamente, todos podem aproximar-se e banquetear, pois a misericórdia supera a santidade. Comendo e bebendo, com Jesus, experimentam Deus entrando em suas vidas não com grandes sinais, mas como uma força compassiva que os cura e transforma. Oferece o perdão sem antes exigir uma conversão, ou melhor, sem submetê-los a ritos penitencias. Não coloca os pecadores diante da Lei, mas da ternura de Deus.18

Em nossos dias, quem são os pecadores? Como são tratados? Como vivem? Onde estão? E qual é a atitude de homens e mulheres para com eles? É de acolhida? De perdão? De sentar-se à mesa?

A parábola do pai compassivo espelha as atitudes misericordiosas de Jesus e ajuda a compreender a realidade de um Deus movido pela compaixão, que acolhe a todos, em qualquer época e condição, não importando a situação de pecado em que se encontram. O filho, ao pedir a herança e partir para um país distante, está dando o pai por morto, rompendo a solidariedade da família e jogando por terra sua honra. Em pouco tempo se arruína e estando sem recursos, sem família, sem proteção termina como escravo de um pagão e cuidando de porcos. Ao ver-se em uma vida de total impureza e de desespero, pois até a comida dos animais lhe é negada, reage e se reconhece pecador e vai ao encontro do pai.

Este aguarda ansiosamente à volta e o arrependimento do filho. Ao vê-lo maltrapilho, vai ao seu encontro, movido de compaixão “abraça-o com ternura sem deixar que ele se lance aos seus pés e o beija efusivamente sem temer seu estado de impureza”19; não permite a confissão de seu pecado, simplesmente apressa-se em restabelecer a dignidade perdida: “ide de presa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel nos dedos e sandália nos pés” (Lc 15,22) e manda preparar a festa, pois o filho estava morto e tornou a viver perdido e foi encontrado.

O mesmo carinho e dedicação o pai tem com o filho mais velho, que por não entender tamanha alegria, em receber um miserável que desperdiçou todos os bens, manifesta todo seu rancor. O pai apenas o escuta sem recriminá-lo, pois seu único desejo é ver seus filhos, novamente, sentados à mesma mesa.

18 PAGOLA J. A. op cit,. 2010, p. 251.19 PAGOLA J. A. op cit,. 2010, p. 162.

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Jesus apresenta na atitude do pai misericordioso a de Deus, pois como ele, Deus não guarda para si seus bens, respeita o comportamento dos filhos, não é obcecado por moralidades e rompe as regras do certo e do errado. Seguindo tal exemplo, Jesus aproxima-se e acolhe a todos, especialmente, os pecadores, devolvendo-lhes a dignidade perdida e dando-lhes um sinal de esperança.

O cristão é chamado a introduzir no mundo a compaixão de Deus, a qual é revelada nas atitudes de Jesus. Aproximando-se dos que se encontram à margem e movido de misericórdia, apresentar o rosto de um Deus que se alegra, festeja o arrependimento e o retorno à casa de seus filhos, pois seu desejo é ver todos sentados numa mesma mesa.

Virar o mundo de pernas para o ar ou para o lado certo é simplesmente amar, indistintamente, como Jesus.

5 UMA ESPIRITUALIDADE DE CAMINHO

Um encontro com Jesus que leve a uma conversão, muitas vezes, ocorre subitamente e até de forma sensacional, porém a transformação total da vida pessoal, bem como de uma sociedade, leva uma vida. Há uma caminhada a ser percorrida, a qual não tem etapas determinadas. É um “caminho sem percurso”, como escreve Mestre Eckhart. Portanto o indivíduo, a partir do encontro pessoal com Jesus, passará por um longo trabalho interno de transformação pessoal, a fim de conformar sua vida à de Cristo.

Esse longo caminho para uma espiritualidade de liberdade radical, necessariamente, deve começar pela própria pessoa, através do silêncio e da solidão, de um conhecimento de si, dum coração agradecido, da humildade e do desprendimento.

Vive-se num mundo onde as pessoas se encontram superocupadas em busca de dinheiro, de vida melhor, de emprego, de segurança e, com isso, ficam perdidas em mundo de pernas para o ar. Para seguir a Jesus Cristo e entrar em seu caminho é necessário, além de seguir seu modelo de misericórdia, acompanhá-lo pelo deserto, através da oração, da meditação silenciosa e da contemplação. Sem estes momentos de intimidade e de encontro com Deus e consigo próprio, os seres humanos continuarão perdidos.

Portanto, o conhecimento do Deus revelado por Cristo passa pelo conhecimento de si próprio,20 em que se faz necessário um olhar para dentro de si, para sua vida, para seus erros e limitações e não os do próximo. Escreve o evangelista: “por que olhas o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu?” (Lc 6, 41). É somente no silêncio, na solidão, que o indivíduo descobrirá a trave em seu olho e sem sentimento de culpa buscará respostas e soluções para suas dificuldades, também, descobrirá a necessidade da compaixão e da solidariedade para consigo e para com o próximo.

Nesse caminho para uma espiritualidade viva e que ajude a virar o mundo para o caminho certo se faz necessário, também, um espírito de gratidão. O episódio narrado por Lucas (Lc 7,36-50) da mulher pecadora que lava os pés de Jesus com as próprias lágrimas, seca-os com seus cabelos e unge-os com perfume demonstra sua profunda gratidão pelo perdão recebido; “a mulher chorava de forma irreprimível porque estava cheia de alegre gratidão pelo perdão imenso que recebera.”21 Portanto em um mundo cercado pelo mal, pelo erro e pela condenação, a gratidão pelo bem recebido levará a pessoa a também mover-se de compaixão e ir ao encontro daquele que padece.

As pessoas, no itinerário de transformação pessoal após o encontro, precisam cultivar a confiança total e plena em Jesus. Precisam permitir, em suas vidas, a invasão do assombro como experiência profunda pelo mistério da existência, pelos lírios do campo, pelo nascer do sol e também pela tecnologia que melhora as condições de estar no mundo. E precisam consentir que o riso, a brincadeira e a alegria façam parte da nossa história, mesmo marcada por dor, angústia e sofrimento. Assim se descobrirá que é possível voltar a rir e a viver como crianças.

Por fim, a pessoa é chamada ao desprendimento, à liberdade de tudo o que aprisiona e impede de viver como Jesus viveu. O que não significa estar no abandono e na miséria, mas fazer destas coisas (dinheiro, profissão, idéia, comodidade, reputação, pessoas, ministério) o centro do viver. Quando o ser humano é capaz de transcender a esta realidade, centrada unicamente no eu, conquista sua liberdade interior, podendo deixar tudo. Até a própria vida. Para tal, a exemplo de Jesus, deve optar por Deus e sem medo saltar em seus braços de pai, onde é segurado e protegido.

Esse caminho para se ter uma liberdade radical, a fim de em tudo fazer a vontade de Deus, ocorre dentro de um processo de vida, marcado de altos e baixos e que tem por base uma experiência de comunhão e de seguimento a Cristo.

20 Mestre Eckhart21 NOLAN, A. op cit,. 2008, p. 164.

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Em suma, tal transformação dá-se dentro de um longo caminho, o qual passa pela oração, pelo conhecimento pessoal de si, pela humildade e pelo desprendimento. Para sim conformar a sua vida à de Cristo, vivendo, como Ele, o amor e a compaixão para com todos.

6 UMA ESPIRITUALIDADE DE COMUNHÃO TOTAL

Albert Nolan, na quarta parte de sua obra Jesus hoje: uma espiritualidade de liberdade radical, apresenta um modelo de espiritualidade de comunhão total – de ser um – com Deus, conosco, com próximo e com o universo22. Faz isso, partindo da experiência de Jesus e é a partir dessa vivência que as pessoas são chamadas a viver uma espiritualidade de comunhão.

Homens e mulheres, em nosso tempo, estão longe de uma compreensão de um Deus íntimo e próximo, de tratá-lo com reverência, respeito e de tomá-lo a sério, como Jesus. Em nome de Deus, das imagens e dos conceitos que se faz Dele, muita injustiça foi e é cometida. Diante disso, é errônea a idéia de um Deus distante e inatingível, uma vez que o Mistério é revelado em nosso meio, à medida que se adere à compaixão de Jesus e esta é introduzida no mundo. O desafio é olhar para Ele e tomar consciência da sua presença e proximidade em nós e em nossa volta. A comunhão total com o Pai, centro de qualquer experiência mística passa sempre por uma comunhão total com o Filho. E a comunhão total com o “irmão” (próximo, outro, pobre, etc.) passa pelo modelo de compaixão de Jesus.

A espiritualidade, com base no seguimento de Jesus, só se torna verdadeira quando a compaixão se estende a todos, transformando-se, com isso, em comunhão global. Esta é uma necessidade intrínseca, porque só assim se torna sinal vivo do reino já antecipado, o qual é uma realidade para todos. A comunhão global é cheia de compaixão por todos os filhos e filhas de Deus, quer sejam pequenos ou adultos, homens ou mulheres, justos ou pecadores. Exatamente porque não se discrimina ninguém, esta espiritualidade cristocêntrica pode tornar-se comunhão total. Comunhão tal que não pode ignorar, inclusive, a natureza.

Jesus amava a si próprio como era e da forma que era. A sua experiência de ser amado pelo Pai, fazia-o sentir-se digno desse amor. O ser humano como também é amado de forma incondicional por Deus é, igualmente, merecedor desse amor. Todo indivíduo, para viver em paz, é desafiado a amar a si próprio, a

22 NOLAN, A. op cit,. 2008, p. 199-252.

começar pelo próprio corpo, pois este não é causa de pecado, mas por meio do Espírito morada e habitação de Deus. Aceitando-se como é e da forma que é.

O fundamento para uma espiritualidade de comunhão com o próximo encontra-se nas palavras: ama teu próximo como a ti mesmo (Cf. Lc 10,27). Jesus, segundo Nolan23, trata os seres humanos como amigos (já não chamo de servos, mas de amigos cf. Jo 15,15) e como indivíduos únicos, imagem e filhos de Deus. Faz isso porque vê a pessoa como sujeito e não como objeto e porque se identifica com o sofrimento, com a morte e com a indignidade. Isso o torna profundamente empático.

Assim, uma espiritualidade de comunhão com o próximo, hoje, implica em uma identificação real com as pessoas, isso porque, como Deus é um com os seres humanos, nós também somos uns com os outros. Desta forma o ser humano é chamado a ser, a exemplo de Cristo, empático e, visando um bem comum, sair de uma realidade de puro individualismo e de cobiça para um partilhar com os que nada têm24. Entretanto partilhar é muito mais do que dar aos pobres aquilo que sobra. Uma espiritualidade de comunhão total é um identificar-se mútuo, pois todos nós precisamos uns dos outros.

Deve-se notar que a comunhão global envolve não apenas a relação inter e intra humanos, mas implica nos tempos atuais, sobretudo, na comunhão com o cosmo/natureza, que ainda geme e chora (cf. Rm 8,18-20).

Uma pessoa não pode descobrir seu verdadeiro eu sem entrar em contato com a natureza de uma forma ou de outra. Jesus experimentou todo o universo, incluindo a natureza, como criação de Deus. Nesse sentido os seres humanos não são vistos como dominadores, mas parte integrante da criação. Tal pensamento deve continuar, hoje, diante do novo paradigma que compreende um universo em evolução contínua.

Com essa nova compreensão, uma espiritualidade de comunhão deve levar a “um todo sem emendas”. Por isso, qualquer tentativa de união com apenas uma das realidades (Deus, ser humano ou natureza), estando em descomunhão com as demais, é ilusão e fantasia, pelo fato de não levar à unidade o ser humano e, para o cristão, à comunhão plena com a vida de Cristo.

23 NOLAN, A. op cit,. 2008, p. 225-226.24 Aqui encontram eco os documentos e as encíclicas sociais da Igreja e dos papas, especialmente,

a de Bento XVI Caritas in Veritate a qual lança um apelo para que a dignidade da pessoa e a justiça sejam respeitadas, sobretudo, nas opções econômicas, para que não façam aumentar a miséria, a fome, a mortalidade infantil e o desemprego. (BENTO XVI. Caritas in veritate. Paulinas: São Paulo, 2009, p. 52-55).

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7 CONCLUSÃO

Ao final deste artigo, verifica-se que a problemática suscitada no início está longe de ser respondida. Isso pelas grandes mudanças no horizonte conjuntural, as quais mudam os critérios de julgamento sobre o certo e o errado.

A vida de Jesus foi permeada pelo anúncio do Reino de Deus, por uma profunda intimidade com o Abbá e por uma espiritualidade completamente contextual. Fazendo-o ler os sinais dos tempos a fim de perceber a realidade de exclusão, miséria, sofrimento e discriminação como algo incompatível com o sonho de Deus, a felicidade para todos. Por isso, provoca uma verdadeira mudança, a qual inverte a ordem das coisas, ou melhor, suas atitudes e seu mover-se de compaixão pelos excluídos, marginalizados, pecadores, doentes, mulheres, crianças vira o mundo judeu, do século I, de pernas para o ar. Seguindo esse caminho de espiritualidade, vivido por Cristo, os cristãos de todos os tempos são chamados, a exemplo Dele, introduzir e viver no mundo a compaixão de Deus.

É impossível confessar Jesus como Salvador, e segui-lo sem uma mudança de vida (metanóia). Uma espiritualidade cristológica, hoje, necessariamente deve espelhar-se naquele “Profeta de fogo” que percorreu a Galiléia por volta do ano 30 e como Ele, trabalhar a fim de virar o mundo para o lado certo. Isso sem deixar para segundo plano a oração e a contemplação, pois como bem afirmava o grande teólogo do século XX, Karl Rahner, “o cristão do futuro ou será místico, ou deixará de existir”.

Uma espiritualidade de comunhão e de liberdade radical passa por um tomar a sério a pessoa de Jesus e por uma profunda intimidade com Deus. Sem um encontro pessoal com Cristo é impossível assumir a sua missão de compaixão para com os pobres, doentes, marginalizados, pecadores. Fazer a opção por Jesus Cristo é fazer a opção pela sua vida e por viver como ele viveu, mesmo diante do sofrimento e do martírio.

Portanto uma espiritualidade cristã hoje implica a vivência de uma comunhão total e de uma liberdade radical, a qual tem por base a confiança e a compaixão. O ser humano encontrará, cada vez mais, sua liberdade à medida que se aproxima de Deus, pois Ele é a verdadeira liberdade. Seremos totalmente livres quando em tudo fizermos a vontade de Deus (cf. Lc 10,21; 22,42), a qual pode ser traduzida como bem comum. Em suma, a liberdade radical é trabalhar de forma participativa e voluntária na obra de Deus, pois todos são co-responsáveis e continuadores da criação divina em vista da salvação definitiva.

REFERÊNCIAS

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja. In: CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965). Documentos do Concílio ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 101-197.

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulinas; Paulus; Brasília: edições CNBB, 2007, 296p.

______. Papa (2005 : Bento XVI). Carta Encíclica Caritas in Veritate: sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. São Paulo: Paulinas, 2009, 142p.

KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de dogmática Vol. I. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 219-400.

NOLAN, A. Jesus hoje: uma espiritualidade de liberdade radical. São Paulo: Paulinas, 2008, 290p.

PAGOLA, J. A. Jesus aproximação histórica. Vozes: Petrópolis, 2010, 651p.

SCHILLEBEECKX, E. Jesus: a história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008, 743p.

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ESPIRITUALIDADE CENTRADA

EM JESUS

José Antonio Pagola *

RESUMO: Buscar uma nova espiritualidade é algo que se impõe aos cristãos dos tempos atuais - tempos de luz e de sombra. Ante a mediocridade espiritual, impõe-se a necessidade de um novo vigor espiritual, que exige uma conversão sem precedentes. Então, é preciso, buscar a espiritualidade profética de Jesus, centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana. O exemplo da espiritualidade de Jesus nestes momentos de sombra, poderá levar o ser humano a uma espiritualidade saudável, criativa, libertadora e geradora de esperança. Marcada pelo Espírito de Jesus, ela será uma presença alternativa, portadora da indignação profética de Jesus. Transforma-se em imaginação e fôlego para pensar no futuro a partir da liberdade de Deus, amigo da vida. Aberta à esperança e incentivada pela compaixão, ela há de aprender a olhar o rosto dos outros, sobretudo das vítimas.

PALAVRAS CHAVE: Espiritualidade e compaixão; Indignação profética; Esperança, Reino de Deus e a Justiça.

ABSTRACT: Get a new spirituality is something that is imposed on Christians of modern times - times of light and shadow. Before the spiritual mediocrity, it imposes the need for a new spiritual force, which requires a conversion unprecedented. So, we must seek the prophetic spirituality of Jesus, focusing on the Kingdom and the service of a more humane life. The example of the spirituality of Jesus in these moments of shadow, could lead the human being to a healthy spirituality, creative, liberating and generating hope. Marked by the Spirit of Jesus, it is a presence alternative bearer of prophetic indignation of Jesus. Becomes in imagination and stamina to think about the future, the starting point of God’s freedom, friend of life. Opened the hope and encouraged by compassion, she will learn to look at the faces of others, especially the victims.

KEY WORDS: Spirituality and compassion; Indignation prophetic; Hope; Kingdom of God and Justice.

Artigos

* Mestre em Teologia, pela Pontificia Universidade Gregoriana, Roma, diplomado em Ciências Bíblicas, pelo Instituto Bíblico de Roma e pela École Biblíque, de Jerusalém, autor de mais de 20 livros, sendo o mais importante: Jesus, uma aproximação histórico. Petrópolis: Vozes, 2010.

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Torna-se urgente buscar, com humildade, novos caminhos de espiritualidade. Neste tempo de mudança epocal, a Igreja precisa de uma conversão centrada na espiritualidade do Espírito, uma conversão para o Espírito que animou a vida inteira de Jesus. I. é, um estilo particular de vida que se alimenta do seu Espírito, é reconhecido por suas escolhas e sua prática, e a conduza viver a serviço de uma vida mais digna e mais aberta à esperança no Mistério bom de Deus. Três aspectos caracterizam a espiritualidade profética de Jesus, que está centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana: a presença alternativa, a indignação profética e a abertura à esperança. Incentivada pela compaixão, buscando curar sempre, tendo paixão pelo reino de Deus, como Jesus, e a sua compaixão por todas as vítimas

Buscar novos caminhos para uma nova espiritualidade, hoje se torna uma tarefa importante. E o faço a partir da convicção de que nada é mais urgente na Igreja de hoje do que voltar a Jesus para focar com mais verdade e mais fidelidade a nossa espiritualidade em sua pessoa e em seu projeto do Reino de Deus. Faço-o também a partir da consciência de que não é possível hoje fazer uma oferta de caminhos novos de espiritualidade, mas a partir de uma atitude de “humildade, nudez e amor”1.

No livro de Isaías diz-se que no exílio, os israelitas, vivendo em um povo estranho, longe da sua terra, perguntam ao profeta: “Sentinela, que vês na noite?”. E ele replica de forma enigmática: “Chegou a madrugada e também a noite. Se você quiser perguntar, pergunta ...”2.

O que podemos perguntar neste tempo de luz e sombra? Para que noite se encaminha o niilismo moderno, esquecido da interioridade e sem um horizonte capaz de orientar e estimular a existência? Começa a clarear alguma luz desde essa constelação de espiritualidades que nasce, cresce e se cruza dentro desse fenômeno complexo da “Nova Era” (New Age)3? É possível vislumbrar um amanhecer nessa noite fechada de uma humanidade desumana que se afunda na fome e na miséria milhões de homens e mulheres, enquanto continua a destruir de forma incontrolável a casa de todos, e colocando em risco a trama mesma da vida? Estará renascendo realmente um novo dia com o nascimento dessa espiritualidade laica disposta a substituir em um futuro não muito distante as religiões e crenças do passado?

Enquanto isso, na opinião de não poucos observadores e pastoralistas, é cada vez mais patente na Igreja Católica a «mediocridade espiritual» que

1 Marià Corbí, Hacia una espiritualidad laica. Sin creencias, sin religiones, sin dioses. Herder, Bar-celona, 2007, p.191-294

2 Isaías 21, 12.3 Jean Vernette, Jésus dans a Nouvelle Religiosité, Desclée, 1987.

denunciava há anos Karl Rahner com tanta lucidez. Nossa Igreja não possui hoje o vigor espiritual que precisa para enfrentar os desafios do momento atual. Depois de vinte séculos de cristianismo, o coração da Igreja precisa de conversão e purificação. Nestes tempos em que se está acontecendo uma mudança sócio-cultural sem precedentes, a Igreja precisa de uma conversão sem precedentes. Não estou pensando num «aggiornamento», sempre necessário, nem também algumas reformas religiosas; mas em uma conversão para o Espírito que animou a vida inteira de Jesus. Se nas próximas décadas não se produzir um clima novo de conversão humilde, gozoso, radical ao Espírito de Jesus, o cristianismo entre nós corre o risco de diluír-se em formas religiosas cada vez mais decadentes e sectárias, e cada vez mais distantes do que foi movimento inspirado e querido por Jesus.

Estou convencido de que Jesus pode ser, nestes momentos difíceis, mas apaixonantes, fonte e caminho humilde de uma espiritualidade saudável, criativa, libertadora e geradora de esperança. Entendo por «espiritualidade de Jesus» um estilo particular de vida que se alimenta do seu Espírito, é reconhecido por suas escolhas, e sua prática conduz aos que continuam a viver a serviço de uma vida mais digna e mais aberta à esperança no Mistério do bondoso Deus4. Não pretendo elaborar uma exposição sistemática. Quero plantar neste texto a inquietude por Jesus para despertar as nossas consciências e para começar a acreditar que Jesus pode hoje acender entre nós esse fogo que veio atear no mundo.5

1. Espiritualidade enraizada na paixão profética.

A primeira coisa que temos de captar bem é que a espiritualidade de Jesus se enraíza na experiência bem conhecida dos profetas de Israel. Jesus não é um sacerdote do templo ocupado no serviço religioso. Ninguém o confunde também com um mestre da lei dedicada a defender a ordem social legal. Os camponeses da Galiléia vêem em seus gestos e palavras a atuação de um homem impulsionado pelo espírito profético: “Um grande profeta surgiu entre nós”6. Jesus, como os profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem religiosa. Não é nomeado por nenhuma autoridade, não é ordenado nem ungido

4 Não vou falar da mística cristiá que tem as suas raízes na cristologia jovanea; tão pouco da “cristologia interior” que é possivel desenvolver desde a experiencia paulina de “viver em Cristo”, nem dos diversos caminhos que se ensaiam hoje para acessar à espiritualidade oriental dedde a pedsoa de Jesus. Pode-se ler XAVIER MELLONI. El Cristo interior. Herder, Barcelona, 2010.

5 “Luz eu vim trazer à terra: e o que mais queria eu que ele já estivesse ardendo!” (Lucas 12, 49); “O que está perto de mim, está perto da luz. O que está longe de mim, está longe do reino” (Evangelho apócrifo de Tomás)

6 Lucas 7, 16; ver Marcos 6, 15; 8, 27-28.

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por ninguém. Sua vida é marcada pelo Espírito de Deus empenhado em conduzir o povo pelos caminhos da justiça7. Três aspectos caracterizam a espiritualidade profética: presença alternativa, indignação profética, a abertura à esperança.

1.1.Presença alternativa

Em meio a uma sociedade injusta que os poderosos não têm consciência de estar arrebatando o pão dos pobres, onde os privilegiados buscam seu próprio bem-estar silenciando o sofrimento dos que choram, o profeta apresenta uma forma alternativa de compreender e de viver a realidade à luz da compaixão de Deus e seus desejos de justiça. Por outro lado, quando a religião se acomoda a um estado de coisas injusto, quando os interesses religiosos não são iguais porque os interesses da justiça de Deus, quando a crítica não pode ser praticada a partir do templo, porque desapareceu a paixão pelo Deus dos pobres, substituído pelo Deus da ordem e do culto ,..., faz-se presente o profeta com o seu jeito de ler e de viver a realidade a partir da verdade de Deus.

Assim temos que captar a presença profética de Jesus no meio da cultura dominante de indiferença na sociedade judaica dos anos trinta. A vida inteira deste homem que percorre as aldeias da Galileia impulsionado pelo Espírito de Deus é um grito: as coisas não são como o Pai as quer. Na Galiléia não reina a justiça. Faz tempo que a política de Roma e de seus vassalos herodianos vem oprimindo os mais fracos, enquanto os líderes religiosos do templo se fazem de desentendidos diante de seu sofrimento.

1.2. Indignação profética

A indignação é a primeira reação de quem vive desde o Espírito de Deus, diante dos abusos e injustiças que afligem os inocentes. Esta indignação expressa a raiva e a impotência das vítimas, traz à luz as causas que se ocultam sob tanto sofrimento, sacode a indiferença, o conformismo e o autoengano generalizado. Esta indignação é necessária para que não se apague a confiança na vida, nem a esperança em Deus. Abra as feridas da sociedade, não para destruir os culpados, mas para iniciar a cura. Quando outros ficam calados por inconsciência, cegueira ou covardia, Jesus grita a sua indignação: o sofrimento dos inocentes deve ser tomado a sério, não pode ser aceito como algo normal, pois é inaceitável perante Deus. 7 O profeta é “nabi”, quer dizer alguem que foi chamado por Deus para escutar uma mensagem

que deverá comunicar no seu nome. Chama-se também “ro’eh” e “hozeh”, quer dizer, um vidente que, desde Deus, ve o que outros não vem.

Movido por seu espírito profético, Jesus levanta a sua voz: “Os chefes dos povos os tiranizan, e os poderosos os exploram. Mas entre vocês não pode ser assim” (Mt 20, 25-26a). Deus é contra o poder opressor. Grita também: “Na cadeira de Moisés sentaram os escribas e os fariseus ... atam fardos pesados e os colocam nas costas dos outros, mas eles não põem um dedo para carregá-los” (Mt 23, 2-4). Não deve ser assim. Deus é contra a religião opressora. A indignação de Jesus é a sua reação profética diante de uma sociedade não suficientemente indignada.

1.3. Abertura à esperança

Quando a sociedade não permite apenas expectativas de mudança para os pobres, quando a religião fecha a passagem a toda novidade considerando como uma ameaça ao estabelecido, quando ninguém sabe como e onde poderia germinar uma esperança nova para os últimos e essa sociedade cínica e indiferente que lhes dá as costas ,..., aparece o profeta lutando contra o ceticismo, criticando a ilusão de eternidade e absoluto que paralisa a religião, e lembrando a todos que só Deus é dono do futuro. Então, a indignação profética torna-se imaginação e fôlego para pensar o futuro a partir da liberdade de Deus, amigo da vida.

Assim temos que ler a história profética de Jesus. O império romano pretende que a pax romana é a paz plena e definitiva, a religião do templo defende que a Torá de Moisés é imutável e eterna. Enquanto isso, os excluídos do império e os esquecidos pela religião, estão condenados a viver sem esperança. Pode haver alguma melhora na pax romana, pode cumprir de maneira mais escrupuloso a Torá de Moisés, mas nada decisivo muda para os pobres: o mundo não se torna mais humano. Não é possível imaginar um novo começo.

Jesus rompeu esse mundo fechado anunciando a chegada do reino de Deus. Essa situação sem alternativa ou esperança é falsa. Essa política que não permite uma crítica de fundo, essa religião segura de si que nem sequer suspeita a interpretação de Deus a partir dos pobres, não respondem à verdade do Pai. É possível lutar pelo reino de Deus e a sua justiça. O mundo amado pelo Pai vai além dos direitos do César e para além do estabelecido pela lei. Impulsionado por esse espírito, Jesus contagia a sua esperança com os seus gritos subversivos: “os últimos serão os primeiros e os primeiros últimos”8, “os que se exaltam serão humilhados e os que se humilham serão exaltados”9. Os publicanos e as prostitutas entram no reino de Deus antes de os dirigentes religiosos (Mt 21,31). É grande quem se põe a servir aos últimos (Mc 10, 43-44).

8 Este dito aparece com pequenas modificações em Marcos 10,31; Mateus 19,30; 20,16; Lucas 13,30.

9 Lucas 14, 11; 18,14; Mateus 23,12

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Esta espiritualidade profética, marcada pela presença de alternativa, pela indignação e abertura à esperança, é o âmbito da espiritualidade de Jesus e de todo aquele que segue inspirado pelo seu espírito.

2. Espiritualidade centrada no reino de Deus

Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreende a todos dizendo algo que nenhum profeta de Israel se atrevera a declarar: Deus já está aqui, com sua força criadora de justiça, tentando reinar entre nós. Marcos resume bem a mensagem: «O tempo está cumprido e vem o reino de Deus, ele está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova» (Mc 1, 15). Começa um tempo novo. Deus não nos quer deixar sozinho diante de nossos problemas, desafios e sofrimentos. Gostaria de construir, junto a nós, uma vida mais humana. Temos aprendido a viver esta boa notícia. Neste grande símbolo do reino de Deus, Jesus recolhe as aspirações e expectativas mais profundas de Israel: o anseio que encontrou no coração de seu povo, que está vivo em todos os povos, e que Jesus soube recriar a partir da sua própria experiência de Deus, dando-lhe um horizonte novo e surpreendente. Este projeto do Reino de Deus constitui o princípio estruturante da sua espiritualidade.

2.1. Buscar o reino de Deus e sua justiça

O centro da experiência mística de Jesus e da sua atividade profética não ocupa propriamente Deus, senão o reino de Deus, pois Jesus não separa nunca Deus de seu projeto de transformar o mundo. Não o contempla encerrado em seu mistério insondável, alheio ao sofrimento humano. Experimenta, como a presença bondosa de um pai que procura abrir caminho no mundo para humanizar a vida. Este é o horizonte da espiritualidade de Jesus. Por isso, não convida seus seguidores a buscar a Deus por caminhos de perfeição e santidade, mas a «procurar o reino de Deus e a sua justiça» (Mt 6, 33). Não chama à conversão a Deus, voltando à observância da Lei, mas que convida a entrar no reino de Deus10.

2.2. Os caminhos do reino de Deus

O reino de Deus não é uma religião. É muito mais. Acolher o reino de Deus vai além da aceitação das crenças, preceitos e ritos de uma religião. É uma

10 Os profetas de Israel chamam à conversâo (teshubá), que consiste em abandonar os caminhos desviados para voltar (shub) ao Deus da Aliança. Jesus chama para entrar no reino de Deus saindo de outros reinados (Dinheiro, César,...).

experiência nova de Deus que o ressitua tudo de modo novo. Temos que aprender a captar e buscar a presença humanizadora de Deus no âmbito da religião, mas na experiência de uma vida cada vez mais saudável, mais justa, mais liberta, de acordo com o que quer o Pai para seus filhos e suas filhas. Costumam-se citar as palavras de Jesus que podem distorcer gravemente o seu pensamento11 pois a expressão original de Lucas “entos hymin” admite duas leituras possíveis. Seguindo uma primeira possibilidade, traduziu-se tradicionalmente assim: “O reino de Deus está dentro de vós” com o risco de reduzir o reino de Deus a uma realidade íntima e espiritual, que ocorre no interior da pessoa quando se abre à ação de Deus. Hoje, no entanto, de acordo com outra possibilidade mais provável, tende a traduzir: “O reino de Deus está entre vós” com o risco de fazer do reino de Deus um projeto ideológico ou político, alheio à transformação das ciências. Na verdade, Jesus está pensando numa transformação que abrange a totalidade da vida e humanizar todas as dimensões do ser humano. De ordinário, o acolhimento do reino começa dentro da pessoa que se torna o Deus revelado em Jesus, e vai-se tornando realidade social onde a vida se vai tornando mais humana12.

2.3. A oração do buscador do reino de Deus

Jesus deixou em herança a seus seguidores uma oração, a única que lhes ensinou para alimentar a sua atitude espiritual. Esta frase constitui o núcleo da sua identidade, de homens e mulheres empenhados na tarefa do reino. É uma oração confiante ao Pai de todos, que nos enraíza na fraternidade universal reunindo três grandes anseios centrados no reino de Deus e três gritos saídos desde as necessidades mais básicas do ser humano13.

“Santificado seja o Vosso Nome” do Padre. Que ninguém o despreze violando a dignidade de seus filhos e de tuas filhas. Que sejam desterrados os nomes dos ídolos que matam os seus pobres. Que todos bendigam o seu nome de Pai bondoso. “Que venha o teu reino”. Que abramos caminhos para a sua justiça, à verdade e à sua paz. O que não reinem os ricos sobre os pobres, que os poderosos não abusem dos fracos, que os homens não dominem as mulheres. “Faça-se a tua vontade na terra como no céu”. Que não encontre tanta resistência em nós. Que na criação inteira se faça o que o Pai quer, e não o que procuram os poderosos da Terra. Que se vá tornando realidade entre nós o que Deus quer em seu coração de Pai.

11 Lucas 17, 2112 O evangelho apócrifo de Tomás atribui precisamente a Jesus estas palavras: “O reino de Deus

está dentro e fora de vós” (3).13 Lucas 11, 2-4 // Mateus 6, 9-13. Provavelmente Jesus a entendia como uma oração para ser

rezada cada día.

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“Dá-nos o pão de cada dia”. Que a ninguém falte pão. Não que peçamos bem estar bem abundante só para nós, mas pão para todos. Que os famintos da Terra possam comer, que os seus pobres deixem de chorar e começar a rir, que possamos ver a viver com dignidade. “Perdoa-nos as nossas dívidas”. Precisamos do seu perdão e sua misericórdia. Estamos em dívida com Deus pelo nosso vazio imenso de resposta ao seu amor libertador. Que o teu perdão transforme o nosso coração e nos faça viver perdoando-nos uns aos outros. “Não nos deixes cair em tentação” de afastar-nos definitivamente do seu reino. Somos fracos e estamos expostos a riscos e crises que podem arruinar a vida humana. Não nos deixeis cair derrotados. “Livra do mal”. Arranca-nos da frustração.

Esta frase repetida diariamente, a sós e em comunidade, fortalece o nosso espírito, configura-nos como seguidores de Jesus e compromete-nos na busca do reino de Deus e a sua justiça. Recuperar a espiritualidade de Jesus é focar a religião cristã na busca do reino de Deus, colocar a Igreja ao serviço de um mundo mais justo, mais digno e mais feliz para todos, começando pelos últimos, entender e viver o seguimento de Jesus colaborando com todos os homens e mulheres que caminham e trabalham nessa direção.

3. Espiritualidade a serviço de uma vida mais humana

Para entender e viver esta espiritualidade do reino de Deus, devemos captar bem a intenção de fundo do projeto de Deus, que não é outra senão tornar a vida mais humana, digna e ditosa. Isso é o decisivo.

3.1. A paixão por Deus, amigo da vida.

Jesus não discute sobre Deus com nenhum grupo judeu: todos acreditam no mesmo Deus, o Criador dos céus e da terra, o Libertador de seu povo querido. A diferença é que, enquanto os advogados e os dirigentes do templo associam a Deus com o seu sistema religioso, Jesus vincula-o com a vida14. Os setores mais religiosos de Israel se sentem chamados por Deus a assegurar os sacrifícios rituais, o cumprimento da lei e o cumprimento do sábado. Jesus, pelo contrário, sente-se impulsionado por Deus a promover a vida: “Eu vim para que tenham vida e para que tenham abundantemente”15. Para Jesus, o primeiro é a vida das pessoas, não o culto; a cura dos doentes, não no sábado; a reconciliação social, não as oferendas que leva cada um para o altar; o acolhimento amigável para o pecado e o perdão sanador, não os rituais de expiação.

14 Christian Duquoc, Dios es diferente. Sígueme, Salamanca, 1978, 39-55.15 João 10,10. O quarto evangelista resume bem ou recordou aquilo que ficou de Jesus.

Ao que parece, Jesus tinha o hábito de despedir os doentes curados e os pecadores perdoados com o cumprimento: “Va em paz”16 e desfrute da vida. Jesus deseja-lhes o melhor: saúde integral, bem-estar completo, uma convivência ditosa em casa e na aldeia, cheia de bênçãos de Deus. O termo hebraico Shalom indica o mais oposto a uma vida indigna, infeliz, maltratada pelas desgraças ou a pobreza. O Deus de Jesus é amigo da vida17.

3.2. Em direção aos pobres

O espírito de Deus empurra Jesus para os últimos. Os primeiros a experimentar essa vida mais digna e liberada devem ser aqueles para quem a vida não é vida. Nessa direção vive-se a espiritualidade de Jesus. Lucas captou isso muito bem quando o apresenta na sinagoga de Nazaré aplicando-se a si mesmo as palavras de Isaías 62, 1-2: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele foi quem me ungiu para proclamar a Boa Nova aos pobres. mandou-me para lhes anunciar a liberação para os aprisinados e a vista aos cegos, para dar liberdade aos oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor “18.

Fala-se aqui de quatro grupos de pessoas: os pobres, os presos, os cegos e os oprimidos. Eles simbolizam e resumem-se a primeira preocupação espiritual de Jesus: o que leva mais dentro do seu coração profético. Nós falamos de democracia, direitos humanos, progresso, bem estar, ... Aqui sugere-se uma vida nova e liberta que pode emergir precisamente entre os últimos. Onde se cultiva uma espiritualidade marcada por Jesus, cedo ou tarde, de um modo ou de outro, o Espírito se comunica e difunde como Boa Nova para os pobres, como libertação para os que vivem cativos de tantas escravidão, como luz para os que caminham às cegas e em trevas, como liberdade para os oprimidos e graça para os desgraçados. Embora o eliminemos praticamente de nossa consciência cristã, conhece-se o homem ou a mulher espiritual pela sua proximidade aos pobres, pela defesa dos últimos e por sua prática libertadora.

3.3. Lutando contra os ídolos que produzem a morte

O Deus de Jesus, Amigo da vida, está sempre junto a seus filhos e suas filhas, contra o mal, o sofrimento e a morte. Para Jesus, vive-se Deus como uma força contra o mal, uma Presença bondosa que abençoa a vida e atrai todos

16 Marcos 5, 34; Lucas 7, 50; 8, 4817 Sabedoría 11, 26.18 Lucas 4, 16-22. A cena é provavelmente uma composição do evangelista, porém recolhe bem a

experiencia profética de Jesus e o seu programa de impulsar o reino de Deus entre os últimos.

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a lutar contra o quem faz mal ao ser humano e ao mundo inteiro: o «antimal» na expressão feliz de E. Schillebeeckx19. Assim o experimenta Jesus e assim o comunica através de toda a sua vida. Por isso, luta contra ídolos como o poder e o dinheiro, que desumanizam aos que lhes rendem culto e exigem sempre mais vítimas para subsistir. “Devolver a César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus”20. Se você quiser dar culto a Tibério, retirado já na ilha de Capri, devolve-lhe seu dinheiro injusto, que é o seu único bem, mas não dê a nenhum César o que só pertence a Deus, os pobres, os excluídos da cidadania romana, os esquecidos por todos. «Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro»21. Não é possível viver acumulando dinheiro e bem-estar, e estar ao mesmo tempo a serviço do Deus da vida que não pode reinar no mundo senão fazendo justiça a quem ninguém faz. Quem vive do Espírito de Jesus luta contra ídolos, poderes, sistemas, hábitos ou movimentos que fazem mal ao ser humano, desumanizam o mundo e introduzem morte.

Recuperar a espiritualidade de Jesus é entender e viver a sua Igreja como um espaço a partir do qual se defende e difunde vida, de onde se luta para torná-la melhor. Ao fazer das comunidades cristãs um lugar dos seguidores de Jesus, aprendemos a viver de modo mais humano e humanizador. Nem a prática religiosa nem os códigos morais nos farão esquecer que seguir a Jesus é viver tornando a vida mais humana. Poucas tarefas podem ser mais apaixonantes.

4. Espiritualidade incentivada pela compaixão

Esta espiritualidade a serviço de uma vida mais humana é incentivada por uma compaixão ativa e solidária. Não devemos esquecer. Na trajetória das atividades de Jesus a serviço do reino de Deus, como princípio dinamizador, encontramos a compaixão pelas vítimas.

4.1. A compaixão como princípio de atuação

Jesus capta e vive a realidade insondável de Deus como bondade e compaixão. O que define a Deus não é o poder nem a sabedoria, mas as suas entranhas maternais de Pai. A compaixão é o modo de ser de Deus, o seu jeito de olhar o mundo e de reagir perante as suas criaturas. O Pai vive principalmente a

19 “Jesus, fenomeno pessoal inédito em Israel, experimenta a Deus como uma potencia que abre futuro, que é contraria ao mal, que só quer o bem, que se opõe a tudo o que é mal e doloroso para o homem... e, portanto, quer redimir a historia da dor humana” (Jesús, la historia de un viviente, Cristiandade, Madrid, 1981, 209-232).

20 Lucas 16,13 // Mateus 6,2421 Lucas 20,25 // Mateus 22,21

partir da compaixão. Esta é a experiência de Deus que Jesus comunica em suas parábolas mais emocionantes22. Movido por esta experiência, ele proclama um novo princípio de atuação. A espiritualidade mais estimada na sociedade judaica, contemporânea de Jesus, arrancava uma exigência básica, aceita por todos os setores e formulada assim no Levítico: “Sede santos, porque santo sou eu, o Senhor, vosso Deus” (Lv 19, 2). O povo de Deus vai imitar a santidade de Deus do templo: um Deus que escolhe o seu povo e recusa os pagãos, abençoa os justos e recusa os pecadores, acolhe os puros e rejeita os impuros. A santidade é a qualidade essencial de Deus. O ideal é ser santos como Deus é santo.

Paradoxalmente, esta imitação da santidade de Deus, entendida como separação do não-santo, do impuro, do contaminante, foi criando de fato uma sociedade discriminadora e excludente. O povo judeu procura a sua própria identidade santa e pura excluindo as nações pagãs e impuras. Mas, além disso, dentro do povo escolhido, os sacerdotes desfrutam de um intervalo de pureza superior ao resto do povo pois estão a serviço do templo onde habita o Santo de Israel. Os homens pertencem a um nível mais alto de pureza que as mulheres - sempre suspeitas de impureza por sua menstruação e pelos partos. Os que gozam de saúde estão mais perto de Deus do que os leprosos, cegos, aleijados e excluídos do acesso ao templo. Esta busca de santidade gerava barreiras e discriminações; não promovia a mútua acolhida, a fraternidade e a comunhão.

Depressa Jesus percebeu isso. Esta visão religiosa não corresponde à sua experiência de um Deus misericordioso e acolhedor. Então, com uma audácia e lucidez surpreendentes introduz um novo princípio que transforma em tudo: «Sede compassivos como o vosso Pai é cpmpassivo»23. É a compaixão e não a santidade o princípio que irá inspirar a conduta dos filhos e das filhas de Deus. Jesus não nega a santidade de Deus, mas o que qualifica essa santidade não é a separação do impuro ou a rejeição do santo. Deus é grande e santo, não porque rejeita e exclui pagãos, pecadores e impuros, mas porque ama a todos sem excluir ninguém da sua compaixão. Esta compaixão ativa não é uma virtude a mais; mas a única maneira de olhar a vida, de sentir as pessoas e de reagir perante o seu sofrimento, que nos aproxima do Pai das Misericórdias.

Nesta compaixão podemos distinguir três elementos. Em um primeiro momento, por assim dizer, Jesus interioriza o sofrimento alheio, deixa que

22 Parábola do pai bondoso (Lc 15, 11-32); parábola do dono boa da vinha (Mt 20, 1-15); parábola do fariseu e o cobrador de impostos que subirão ao templo a orar (Lc 18, 9-14).

23 Lucas 6, 36. Na versão paralela de Mateus 5, 48 traduziu-se tradicionalmente assim: “Sede perfetos (teleioi) como o vosso Pai do céu é perfeto” justificando e promovendo uma espiritualidade de aperfecionamento progressivo em santidade. É melhor traduzir: “Sede bons de todo como é bom de todo o vosso Pai do céu” ou “Não ponhais limites à vossa bondade como tampouco põe límites a sua bondade o Pai do céu” (David Flusser)

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penetre em suas entranhas, em seu coração, em seu ser: fá-lo seu, dói nele. Em um segundo momento, esse sofrimento interiorizado, provoca nele uma reação, torna-se ponto de partida de um comportamento ativo e comprometido; vem a ser um princípio de ação, um estilo de vida. Por último, o princípio de ação vai se concretizando em ações e compromissos, destinados a erradicar o sofrimento ou, pelo menos, alivá-lo.

4.2. O olhar compassivo

As tradições sobre Jesus conservaram a lembrança do seu olhar compassiva para com os doentes, leprosos e marginalizados e, sobretudo, o seu olhar comovido pelas gentes. «Assim, quando desembarcaram, encontrou uma grande multidão. Ele, comovido, curou a todos os doentes» (Mt 14, 14), «Mas, vendo a multidão, sentiu uma profunda compaixão por ela, porque estavam todos desanimados e esmorecidos como ovelhas sem pastor «(Mt 9, 36). Ao entrar em Nain, encontrou os que iam enterrar o filho único de uma viúva: «Ao ver o Senhor compadeceu-se e disse-lhe: Não chores»24.

Johan Baptist Metz lembrou que, frente a “mística de olhos fechados” mais própria da espiritualidade do Oriente, voltada sobretudo para o interior, quem se inspira em Jesus é chamado a criar uma «mística de olhos abertos» e uma espiritualidade de responsabilidade absoluta para os que sofrem.

A espiritualidade de Jesus leva os seus seguidores a viver atentos ao sofrimento das pessoas, ou como diria o filósofo francês Emmanuel Levinás, atentos ao aparecimento do rosto do outro, que expressa, mesmo sem palavras, o caráter vulnerável e frágil do ser humano. A compaixão não afasta da atenção à lei e do respeito aos direitos humanos; mas cria, a partir do olhar atento, o compromisso com o que sofre. Olhar para o rosto do que sofre liberta-nos de ideologias que bloqueiam a nossa compaixão ou de marcos normativos que nos fazem viver com a consciência tranquila. Esse olhar arranca-nos da indiferença, nos recorda a nossa própria condição vulnerável, desperta em nós a solidariedade fraterna25.

Em quase todos os caminhos espirituais privilegia-se a importância da consciência, a atenção para o aqui e o agora, a experiência de unidade, o silêncio

24 Lucas 7, 13. Os evangelistas empregam o termo “splanchnizomai” que expressa uma reação visceral, uma comoção nas entranhas.

25 Joan-Carles Mélich Ética de la compasión, Herder, Barcelona, 2010; Xosé María Castillo, La sensibilidad de Jesús, em VVAA, El grito de los excluidos. Seguimiento de Jesús y teología, Estella, Verbo Divino, 2006, 153-172.

interior ... e com razão26. Entretanto, me atrevería dizer que o caminho mais eficaz para sintonizar com a espiritualidade de Jesus é aprender a olhar com atenção o rosto do outro com compaixão.

4.3. Gestos de bondade

O bom samaritano da parábola é, para Jesus, o modelo de homem compassivo que vive imitando a compaixão do Pai do céu, vê o ferido da estrada, sente compaixão e aproxima-se dele: vendo as suas feridas, joga nelas azeite e vinho, fá-lo montar em sobre a sua própria cavalgadura, leva–o à pousada, cuida dele, se compromete a pagar as despesas ...27 Este homem não se sente obrigado a cumprir um determinado código moral; responde ao sofrimento do ferido inventando todo o tipo de gestos destinados a aliviar o sofrimento e recuperar a vida do ferido. A resposta aos que sofrem é sempre insuficiente, inadequada e imperfeita; mas o decisivo é viver semeando gestos de bondade e inventando respostas ao sofrimento.

Assim é Jesus que, “ungido por Deus com o Espírito Santo, passou a vida fazendo o bem” (Feito 10, 38). Ele não tem poder político, não tem nenhuma potestade religiosa, não pode resolver as imensas injustiças que se cometem naquele canto do império; mas caminha pela Galileia e Judeia, movido pelo Espírito de Deus semeando gestos de bondade28. Abraça as crianças e as meninas da rua porque não quer que os seres mais frágeis daquela sociedade vivam como órfãos, abençoa os doentes e as doentes para que não se sintam malditos de Deus por não poderem receber a bênção do templo; toca nos leprosos e acaricia a sua pele para que ninguém os exclua da convivência; cura mesmo no dia de sábado para que todos saibam que nem a lei mais sagrada está acima do atendimento aos que sofrem. Acolhe os indesejáveis e come com pecadores desprezados por todos, porque, na hora de praticar a compaixão, o mau e o indigno têm tanto direito para serem acolhidos com bondade, como o bom e piedoso.

Estes gestos não são convencionais. Nascem em Jesus de sua vontade de fazer um mundo mais amável e solidário, em que as pessoas se ajudam e se cuidam mutuamente. Não importa que, com freqüência, sejam gestos pequenos. Deus tem em mente o «copo de água» que damos a quem tem sede. São gestos

26 Ver a formosa síntese de Willigis Jäger, Sabiduría eterna. El misterio que se esconde detrás de todos los caminos espirituales, Verbo Divino, Estella, 2010.

27 Lucas 10, 30-37. Surpreende o carater detallado e minucioso com que Lucas descreve a reação «maternal» do samaritano.

28 Marcos 2, 27. Deus criou o sábado por amor ao ser humano e não ao ser humano por amor ao sábado.

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destinados a afirmar a vida e a dignidade dos seres humanos. Lembram-se que sempre é possível intervir para tirar bem do mal que existe no mundo. São gestos que vão além da resposta técnica e administrativa dos problemas. Acompanham a indignação profética abrindo caminhos diretos e imediatos frente à passividade e à indiferença social, para não deixar abandonado em sua desgraça a nenhum doente.

5. Espiritualidade curadora

A espiritualidade de Jesus, alentada pela compaixão ativa, tem uma dimensão claramente terapêutica, orientada para curar a vida tanto a nível individual como social. Os evangelhos sublinham que Jesus é um profeta curador: «Como Deus ungiu com o Espírito Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando a todos os que eram oprimidos pelo Demónio, porque Deus estava com ele» (Feito 10, 38).

5.1 Curar a vida

A chave mais importante a partir da qual Jesus vive para Deus e trabalha para abrir caminhos do seu reino de paz e de justiça, não é o pecado, a moral ou o culto, mas o sofrimento, a doença, a deterioração da vida, as condições insanas da sociedade, a falta de justiça e compaixão solidária. A gente teve que captar o contraste enorme que havia entre o Batista e Jesus. A trajetória profética do Batista é inspirada e orientada pela luta contra o pecado. É a sua preocupação suprema: denunciar os pecados do povo, chamar à conversão e purificar pelo rito do batismo aos que vão ao Jordão. O Batista não cura a nenhum paciente, não toca os leprosos, não libera os possuídos por espíritos malignos, não alivia o sofrimento. Não faz gestos de bondade. Não cura a vida.

Os evangelhos, ao contrário, apresentam a Jesus caminhando pela Galiléia, e não em busca de pecadores para convertê-los de seus pecados, mas aproximando-se dos enfermos dos caminhos e das aldeias para curá-los de seus sofrimentos. Sua trajetória profética é destinada primordialmente a aliviar os que vivem sufocados pelo mal e excluídos de uma vida saudável. Quando os enviados do Batista lhe perguntam se está agindo em nome de Deus, Jesus responde com a sua atuação curativa: «Os cegos vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres está sendo anunciada a Boa Nova. E feliz quem não se escandaliza de mim29.

29 Mateus 11, 4-6. Não nos escandaliza pois que para Jesus o pecado que oferece maior resistencia ao reino de Deus é precisamente causar injustamente sofrimento ou tolerá-lo com indiferença fazendo-nos desentendidos dele.

“Jesus proclama a proximidade do reino de Deus curando, anunciamdo a salvação de Deus”, introduzindo saúde no mundo. Este é o novo. E é necessário recordá-lo porque, com frequência, a teologia cristã acentuou até o extremo a sua atenção ao pecado atenuando a tragédia do sofrimento. JB Metz denunciou repetidamente o grave deslocamento: “A doutrina cristã da salvação dramatizou muito o problema do pecado enquanto relativizou o problema do sofrimento”30.

5.2. Oferta de saúde integral

Os doentes que Jesus encontra em seu caminho são, sem dúvida, o setor mais desvalido e marginalizado daquela sociedade. Muitos deles são incuráveis. Abandonados à sua sorte, incapacitados para ganharem o seu sustento, muitas vivem arrastando uma vida de mendicância que roça à miséria e à fome. Não experimentam a sua desgraça como um problema médico, mas como exclusão injusta da vida: não podem viver como os outros. São cegos que não conseguem captar a vida de seu domínio, surdos e mudos que não podem se comunicar, nem cantar nem bendizer a Deus, paralíticos que não podem se movimentar, trabalhar ou peregrinar a Jerusalém, doentes de pele repugnante que são afastados do lar e da aldeia, desprezados que perderam o domínio de suas vidas. A maior tragédia destes doentes é sentirem-se esquecidos por Deus: parece que o Espírito criador de vida os abandonou provavelmente por causa de algum pecado grave. Por isso, precisamente, são marginalizados e excluídos, em maior ou menor grau de convivência social e religiosa. A exclusão do templo é a confírmação de que vivem no fundo da sua doença: Deus não os quer, não podem confiar nele.

Para entender em toda a sua profundidade a atuação curadora de Jesus, devemos notar que ele se aproxima de idosos e doentes esforçando-se por saná-los desde as suas raízes. Não procura apenas resolver um problema orgânico de caráter físico ou psíquico, mas sim reconstruir a sua vida inteira. A saúde física ou psíquica vai incluída dentro de uma ação sanadora mais integral. Os diferentes relatos sugerem com diversos aspectos que o processo de curas realizadas por Jesus é uma experiência de recuperação da vida, afirmação da própria dignidade, crescimento de liberdade, de reconciliação com Deus, a integração no convívio social.

Jesus coloca o doente em contato com essa parte do seu ser que está ainda saudável para suscitar o desejo de vida que se esconde em todo ser humano: «Você, você quer ser saudável?» (Jo 5, 6). Desperta em seu interior a confiança

30 Ver a obra de Johann Baptist Metz Memoria passionis. Una evocación provocadora en una sociedad pluralista, Sal Terrae, Santander, 2007, 160-183

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em Deus como uma força curadora: «Levanta e vá-. Salvou-te a tua fé» (Lc 17, 19). Liberta da culpa e do medo de Deus, oferecendo a sua paz e o seu perdão Reconciliador: «Meu filho: estão perdoados os teus pecados» (Mc 2, 5). Desata as amarras e escravidão para viver em liberdade: «Mulher, estás livre de tua doença» (Lc 13, 12). Faz retornar novamente a convivência: «Pega a tua maca e volta para a tua casa» (Mc 2, 11). Orienta-os para uma existência nova vivida desde o louvor e agradecimento a Deus: «Vai para a sua casa, volta para os seus, e conta-lhes tudo o que o Senhor, compadecido, fez com você»31.

5.3. Promover um processo de cura social

Jesus nunca pensou em suas curas como uma forma fácil de eliminar o sofrimento no mundo, mas apenas como um sinal para indicar a direção em que devemos trabalhar para acolher e introduzir entre nós o reino de Deus. Por isso Ele põe em marcha um processo de cura tanto individual como socialmente, com o intuito de fundo: curar a vida doente. Toda a sua atuação é feita no sentido de encaminhar a sociedade para uma vida mais saudável.

Pensemos em sua preocupação de curar a religião rebelando-se contra tantos comportamentos patológicos de raiz religiosa (legalismo, hipocrisia, rigorismo, culto vazio de justiça e amor)32. Jesus é um grande curador da religião: liberta de medos de religião, não os alimenta; faz crescer a liberdade não as servidões; atrai para o amor de Deus, não para a lei; desperta a compaixão, não o ressentimento.

Pensemos em seus esforços para conseguir uma convivência mais saudável, criando relações mais humanas entre pessoas para que se respeitem mais, que se compreendam melhor, e que se perdoem sem condições33, defendendo a mulher do domínio possesivo do homem34, convidando a uma vida liberta da escravidão do dinheiro e da obsessão pelas coisas35, oferecendo o perdão a pessoas afundadas no fracasso moral e na ruptura interior36.

É significativo, que ao confiar a missão a seus discípulos, Jesus fala invariavelmente de uma dupla tarefa: “Ide e anunciai o reino de Deus”, “Ide e

31 Marcos 5, 19; Lucas 13, 13; 17, 15; 18, 4332 Lucas 40-42; Mateus 23, 23-24.33 Mateus 5, 21-26; 7,15; 18, 21-22.34 Marcos 10, 1-9; João 8, 1-11.35 Mateus 6, 21; 6, 24.36 Marcos 2, 1-12; Lucas 7, 36-50; João 8, 1-11

curai”37. O anúncio missionário e a tarefa sanadora são parte da mesma dinâmica que irá abrir caminho para o reino de Deus. Jesus convida a promover a cura como horizonte, canal e conteúdo da ação evangelizadora38.

6. A modo de conclusão

A existência profética de Jesus atinge sua culminação ao ser crucificado nos arredores da cidade santa de Jerusalém. Na cruz revela-se de maneira definitiva a sua paixão pelo reino de Deus e a sua compaixão por todas as vítimas, assumindo a sua aflição até o fim.

O seu pedido de perdão ao Pai para os algozes que o crucificam é, ao mesmo tempo, um gesto sublime de compaixão e uma crítica suprema à insensatez do poder político e religioso que crucificam os inocentes: “Pai, perdoa; eles não sabem o que fazem “(Lc 23, 34). Por outro lado, o seu grito a Deus, identificado com todas as vítimas, pedindo alguma explicação para tanta injustiça e abandono, e sua entrega confiante ao Pai ficam nos lábios do Crucificado reclamando uma resposta de Deus para além da morte: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste? “. Por que nos abandonaste? “Pai, às tuas mãos encomenda o meu espírito», Pai, em tuas mãos estão as nossas vidas39.

A ressurreição do Crucificado, desautorizando o representante do império romano e as autoridades do templo, é a intervenção definitiva de Deus, que abre um futuro novo para a história humana. Só é possível acolher e proclamar a esperança nova que apresenta Jesus para e no mundo a partir da fé em um Deus que não abandona as vítimas. Pois, ele é um Deus livre e libertador; é o amor salvador do qual não temos que acomodar as pretensões dos poderosos, nem seguir os caminhos que marcam os donos do mundo.

A atuação curadora de Jesus fornecendo saúde nos doentes da Galiléia já está anunciando a salvação eterna que nós oferecemos Deus. A acolhida aos que vivem excluídos já é promessa de armazenamento definitivo e do perdão reconciliador de Deus. Suas refeições com pecadores, prostitutas e indesejáveis antecipam já o banquete do reino em torno do Pai. Deus tem a última palavra sobre a história humana. Quando o projeto do reino é impedido pelo mal, fracassa pelo nosso pecado, ou fica a meio do caminho interrompido pela morte; mas, Deus o leva a sua plenitude, para além da morte. Um dia as

37 Lucas 9, 2; 10, 8-9; Mateus10, 7-8.38 Sobre a atuação sanadora de Jesus permito-me citar o meu estudo: Id y curad. Evangelizar el

mundo de la salud y la enfermedad, PPC, Madrid 2004, sobretudo 9-50.39 Marcos 15, 34; Lucas 23, 46.

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aventuranças de Jesus serão cumpridas. Deus será tudo em todos. Ele “enxugar todas as lágrimas dos nossos olhos, e a morte já não existirá mais. Não haverá mais luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram” (Ap 21, 4). Então ouvirá do Ressuscitado as palavras mais consoladora que podemos ler nas Escrituras cristãs: “A quem tem sede, eu darei de beber gratuitamente água das fontes da vida” (Ap 21, 6).

EU ACREDITO NO

“JESUS HISTÓRICO”

Roberto Pereyra *

RESUMO: A questão que domina os estudos do NT nas últimas décadas se relaciona com o problema do “Jesus histórico”, expressão que se refere à vida de Yesua de Nazaré desde seu nascimento em Belém até sua execução em Jerusalém. Desde o século XVIII, alguns teólogos, fundados em pressuposições metodológicas naturalistas, promovem a investigação do Jesus histórico a partir da análise historicista. Concluem que os evangelhos não constituem uma fonte histórica objetiva e confiável para conhecer o verdadeiro Jesus da história. Argumentam que estes apresentam material fictício, mítico, teológico, com o propósito de promover a fé cristã, o que resulta um claro problema para a veracidade histórica dos mesmos. Apresenta-se uma síntese desta busca pelo Jesus histórico e provê razões para acreditar no “Jesus histórico”; o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, o Jesus que realmente existiu na história.

PALAVRAS CHAVE: “Jesus histórico”, Yeshua, fé, evangelhos.

ABSTRACT: The question that dominates the study of the NT in recent decades is related to the problem of “Historical Jesus”, a term that refers to the life Yesua of Nazareth, from his birth in Bethlehem until his execution in Jerusalem. Since the eighteenth century. some theologians, based on naturalistic methodoIogical presuppositions, promote research of the Historical Jesus from the perspective of the historical analysis. They conclude that the Gospels are not historically a reliable source to know the true Jesus of History. They argue that the Gospels present fictitious, mythical and theological material, to promote the Christian faith, which is a clear challenge to the historical veracity of them. The author presents a summary of this quest for the historical Jesus and provides reasons to be1ieve in the “historical Jesus”, the Christ of Faith, the Jesus of the Gospels, the Jesus who actually existed in History.

KEY WORDS: “Historical Jesus”, Yeshua, faith, Gospels.

Artigos

* Engenheiro, Ph.D. em Teologia, pela Andrews University, Michigan (EUA), professor e diretor da pós-graduação de Teologia Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho, SP.

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INTRODUÇÃO

O tema que tem ocupado os estudiosos do Novo Testamento nas últimas décadas está relacionado com a questão do “Jesus histórico”, expressão que se refere à vida de Yeshua de Nazaré desde seu nascimento em Belém até sua execução em Jerusalém.1 A partir do século 18, certos teólogos e eruditos interpretaram a Escritura como documento histórico e não como realmente é, a Palavra de Deus. Consequentemente, concluíram que os evangelhos não constituem uma fonte histórica objetiva, segura e confiável para se conhecer ao verdadeiro Jesus da história, o que realmente existiu. Argumentaram que os evangelhos apresentam material fictício, mítico, teológico, com o propósito de promover a fé cristã.

Inicia-se então, a busca para descobrir o real e verdadeiro Jesus, o histórico, o oculto nos evangelhos. 2 Dessa forma, o problema do Jesus histórico chegou a ser um dos mais importantes e significativos temas em estudo do Novo Testamento. Sem pretender ser exaustivo, o propósito deste estudo é apresentar uma breve síntese relativa à busca empreendida pelo Jesus histórico e sugerir razões para se crer no “Jesus histórico”; o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, o Jesus bíblico, o Jesus que realmente existiu na história. A investigação do “Jesus histórico”

A investigação, ou “quest”, do “Jesus histórico” tem três períodos bem definidos de exploração: o “primeiro quest”, do começo do século 18 até 1906; o “segundo quest”, de 1953 a 1980; e o “terceiro quest”, de 1980 até os dias de hoje.3

O primeiro quest (século 18 a 1906) O primeiro “quest” foi originado e desenvolvido por teólogos alemães e franceses, os quais negaram a inspiração da Escritura e a consideraram um documento histórico. Por isso, promoveram a investigação da mesma e do Jesus histórico a partir de análises históricas.

Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), professor de hebraico e idiomas orientais na Alemanha, iniciou a primeira tentativa para encontrar o Jesus histórico

1 O nome “Yeshua” se refere a uma pessoa que existiu na história. As questões mais importantes sobre este “Jesus histórico” se relacionam com o que se pode conhecer desse “Jesus”, o homem.

2 O Jesus “histórico” é reconstruído usando pressupostos metodológicos do método histórico--crítico para construir sua biografia e seu tempo. Estas pressuposições, reitoras no método, não incluem axiomas teológicos ou religiosos. Os historicistas, geralmente, concordam que Jesus foi um mestre judeu que influenciou um grupo pequeno de seguidores galileus. Depois de um tempo, foi crucificado pelos romanos na Palestina, sob o governo de Pôncio Pilatos, prefeito da província da Judéia entre os anos 26 a 36 d.C.

3 M. R. McAteer & M.G. Steinhauser, The Man in the Scarlet Robe: Two Thousand Years of Searching for Jesus (United Church Publishing House, 1996), 79.

com sua obra Wolfenbttler Fragmente eines Ungenannten (1774) que decidiu não publicar. 4

Tendo abandonado o cristianismo, e sendo fortemente influenciado por idéias deístas5 e racionalistas da época,6 supôs que houve uma diferença radical entre a figura histórica de Jesus e a interpretação da igreja cristã, pressuposto básico na busca posterior do Jesus histórico.

O Jesus real não foi essa pessoa a respeito de quem os Evangelhos informam, já que estes não apresentam história, mas sim exposições teológicas de seus autores. O Jesus histórico “foi um revolucionário judeu que falhou ao tentar estabelecer um reino messiânico terreno”. Em contraste, o Cristo dos evangelhos “foi um engano criado pelos discípulos que roubaram o corpo de Jesus na tumba e inventaram as doutrinas da ressurreição e da segunda vinda”.7 Para Reimarus, então, o cristianismo havia dado uma ênfase equivocada e incorreta sobre a pessoa de Jesus. Ele foi um simples mestre religioso, não a figura divina dos ensinamentos tradicionais da Igreja.

David Fredich Strauss (1808-1874) rejeitou a divindade de Cristo. Defendeu a idéia de que seria impossível escrever uma biografia de Jesus pela razão de que os evangelhos só têm fragmentos desarticulados de sua vida.8

Ernest Renan (1823-1892), professor de francês, depois de completar algumas escavações arqueológicas no Líbano, iniciou uma série de livros em 1863 intitulados L’histoire des origines du Christianisme, onde “desnudou o cristianismo de suas roupas sobrenaturais e apresentou a Jesus como homem, não obstante, um homem incomparável”.9

4 Reimarus não publicou seus escritos em vida. Gotthold Lessing (1729-1781), bibliotecário, comprou seus manuscritos depois de sua morte e publicou anonimamente parte destes com o título Fragments of na Unknown Writer. Posteriormente, publicou sua obra Von dem Zeweck Jesu und seiner Jünger, traduzida para o inglês por George W. Buchanan, The Goal of Jesus and Disciples (Leiden: E. J. Brill, 1970). Ver também H.S. Reimarus, Reimarus, Fragments (Chico, CA: Scholars Press, 1985, c1970).

5 Os deístas rejeitam os eventos sobrenaturais, os milagres, as profecias e tendem a declarar que Deus não intervém na vida humana e nas leis do universo. Interpretam a realidade diante de uma perspectiva naturalista. Consideram que os livros sagrados religiosos não são produtos da revelação e inspiração divina senão de obra humana. Portanto, o deísmo rejeita toda a religião baseada em livros que considera ter a palavra revelada de Deus.

6 Tomou as idéias do filósofo Christian Wolff (1679-1754), um racionalista alemão. Em seus estu-dos da Escrituras, encontrou discrepâncias entre e dentro do Antigo e Novo Testamento. Rejei-tou aceitar a Bíblia como palavra revelada e inspirada por Deus.

7 J. S. Kselman, “Modern New Testament Criticism”, in The Jesus Jerome Bible Commentary (London, 1968), 11: 8. Ver Albert Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus (New York: Macmillan, 1968), 13-26; McAteer & Steinhauser, 86.

8 David Fredrich Strauss, The Life of Christ Criticaly Examined (London: Chapman Brothers, 1846). 9 McAteer & Steinhauser, 88.

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Willian Wrede (1859-1906) argumentou que o evangelho de Marcos não era uma fonte de informação confiável sobre Jesus. Concluiu que a comunidade cristã criou o conceito de Jesus como Messias depois de sua execução, e que Marcos simplesmente informou tal crença. 10

Alfred Loisy (1857-1940) sustentou que a igreja cristã não foi realmente fundada por Jesus na forma que mais tarde se entendeu. Loisy “desvinculou o Jesus histórico, inconsciente de sua divindade, do Cristo da fé, e viu a comunidade cristã como uma tela entre o crente e o evento”.11

Albert Schweitzer (1875-1965) escreveu Le secret historique de Ia vie de Jésus 12 e Von Reimarus zu Wrede, Eine Geschichte der Leben-Jesu-Forschung 13 onde susteve a idéia de que o tema central do ministério de Jesus foi o iminente fim do mundo e o estabelecimento do Reino de Deus. Afirmou que os teólogos anteriores, envolvidos na busca do Jesus histórico, foram como os que olhavam fixamente em um poço bem profundo e viam seu próprio reflexo; seu Jesus era quase uma cópia de si mesmos. Concluiu que Jesus estava equivocado com respeito ao futuro e que sempre será um mistério e um estranho para a humanidade. Por quase cinco décadas, os teólogos seguiram as conclusões de Schweitzer de que os evangelhos são documentos teológicos e não históricos. Portanto, não contêm informações confiáveis acerca das crenças, ditos, atos e filosofia de Jesus.

Rudolf Bultmann (1884-1976), provavelmente o teólogo neotestamentário de maior influência até o presente, afirmava que a igreja primitiva não estava interessada em uma biografia de Jesus. Declarou que “não podemos agora saber quase nada referente à vida e a personalidade de Jesus, levando em consideração que as fontes cristãs primitivas não demonstram nenhum interesse; além do mais, são grandemente fragmentadas e freqüentemente bem conhecidas”. 14 Concluiu que o “Cristo que é apresentado não é o Jesus histórico, mas sim o Cristo da fé”.15

De acordo com Bultmann, tendo como base certas considerações críticas das tradições palestinas, a única coisa que se poderia descobrir são os rudimentos da essência da mensagem de Jesus, sua “palavra”. Essa “palavra” está ligada à vinda do reino de Deus, “um evento escatológico milagroso” que deve ser interpretado existencialmente. Em outras palavras, “o reino de Deus é um poder totalmente futuro que determina o presente [ ... ] porque induz o ser humano a uma decisão”.16 Dessa forma, para alguns intelectuais da época, o quest pelo Jesus histórico

10 William Wrede, The Messianic Secret (Cambridge: J. Clarke, 1971). 11 Alfred Loisy, The Gospel and the Church (London: Isbister, 1903). 12 Albert Schweitzer, Le secret historique de Ia vie de Jésus (Paris: Albin Michel, 196713 Schweitzer, Von Reimarus zu Wrede, Eine Geschichte der Leben-Jesu-Forschung (Tübingen: Mohr,

1906). 14 R. Bultmann, Jesus and the Word (London: Scribner, 1958),8. 15 R. Bultmann, The History of the Synoptic Tradition (Oxford: Blackwell, 1963),370. 16 Bultmann, Jesus and the Word, 45, 51.

resultava ineficaz e impossível por carecer de evidências históricas suficientes e confiáveis nos evangelhos.

O segundo quest (1953 a 1980) Uma significativa mudança estava gerando o começo da segunda metade do século 20. As primeiras manifestações desta mudança começaram em 1953. Ernst Kasemann, discípulo de Bultmann, em um colóquio na Universidade de Marburg, argumentou que o ceticismo histórico de Bultmann relacionado a Jesus era injustificável e ineficaz e sugeriu reabrir a questão sobre o Jesus histórico. Mantinha a idéia que algum interesse no Jesus histórico era teologicamente válido já que o Senhor da Igreja não podia ser interpretado completamente como um ser mitológico, desconectado de sua existência histórica. Afirmou que nunca será possível escrever uma biografia de estilo moderno da vida de Jesus. Contudo, indicava que há “continuidade” entre o Jesus da história e o Cristo da fé que poderia ser válida para se ter uma idéia do Jesus histórico.

Assim, Kasemann inicia uma nova etapa conhecida como “a nova busca do Jesus histórico”17. É “nova” porque o interesse no Jesus histórico se conecta com os ensinamentos escatológicos de Jesus e a proclamação cristológica da igreja.18 Entretanto, para encontrar os ensinos de Jesus nos evangelhos se requer o uso da Crítica das Formas e outras ferramentas críticas. 19

Günthur Bornkamm interpreta as narrações20 de milagres nos evangelhos como invenções da igreja primitiva, sem fundamento histórico. Afirmava que nem Jesus ou seus discípulos o consideravam como o Messias, conceito originado pela igreja cristã primitiva.21

A produção de Bornkamm inspirou outras publicações22 das quais emergiram diversas imagens sobre Jesus. Foi visto como o primeiro profeta do

17 Ver James M. Robinson, A New Quest of the Historical Jesus. Studies in Biblical Theology 25. (London: SCM, 1959).

18 Ibid., 122-12319 Com certeza, sobre a crítica das formas nos evangelhos tem sldo de fundamental influência a

obra de Rudolf Bultmann (Geschichte der Synoptischen Tradltlon [(Goettingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1958, publicada por primeira vez em 1921 e traduzida por John Marsh, Hlstory of the Synoptic Tradition (Oxford: Blackwell/New York: Harper & Row, 2a ed. 1968)].

20 O vocábulo usado no texto de Bornkamm é “story”, o qual, a diferença de “history”, analisa o texto narrativo sincronicamente sem importar se tem relevância na diacronia, ou seja, na realidade.

21 Günthur Bornkamm, Jesus of Nazareth (New York: Harper, 1960).22 Como exemplo, ver Robinson; H. Zahrnt, The Historical Jesus (New York: Harper & Row, 1963);

J. Peter, Finding the Historical Jesus (New York: Harper & Row, 1966); C. F. H. Henry, ed., Jesus of Nazareth: Savior and Lord (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1966); F. G. Downing, The Church and Jesus (Naperville, IL: A. R. Allenson, 1968); F. Hahn, W. Lohff y G. Bornkamnn, What Can We Know about Jesus? (Philadelphia, PA: Fortress, 1969); W. G. Kummel, “Jesus-Forschung seit 1950”, Theologische Rundschau, 31 (1965-66): 15-46,289-315; idem. “Ein Jahrzehnt Jesusforschung (1965-1975)”, Theologische Rundschu, 40 (1975): 289-336.

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judaísmo, fariseu, rabi, zelote, essênio, etc. Ficou comum e repetitivo, em muitas destas obras, encontrarem referência aos evangelhos neotestamentários como “interpretações literárias tardias do ministério de Jesus”; sugestões para “explorar as divergências entre o que o Novo Testamento apresenta e o que é historicamente provável”, ou simplesmente, propostas de que “Jesus jamais existiu”.

Assim se chega à última etapa do processo de busca e descoberta do Jesus histórico, ao terceiro quest, começando na década de 80 até os dias atuais; décadas de relevante esforço e de significativos estudos interdisciplinares, teológicos, históricos, arqueológicos, sociológicos, antropológicos e de outras ciências auxiliares na tentativa de encontrar o Jesus que realmente existiu na história.23

23 É impossível listar todas as fontes sobre o estado atual da questão. Contudo, ver as seguintes: Gerd Theissen, The Shadow of the Galilean: The Quest of the Historical Jesus in Narrative Form (Philadelphia, PA: Fortress Press, 1987); E. P. Sanders, The Historical Figure of Jesus (London: Penguin, 1993); Bruce Chilton and Craig Evans (eds.), Studying the Historical Jesus: Evaluations ofthe State of Current Research (New Testament Tools and Studies 19; Leiden: E.J. Brill, 1994); Marcus J. Borg, Meeting Jesus Again for the First Time: the Historical Jesus and the Heart of Contemporary Faith, (San Francisco, CA: HarperCollins, 1994); Luke Timothy Johnson, The Real Jesus: the Misguided Quest for the Historical Jesus and the Truth of the Traditional Gospels (San Francisco, CA: HarperCollins, 1995); lan Wilson, Jesus: The Evidence. The Latest Research and Discoveries ([San Francisco]: Harper San Francisco, c.1996); C. Stephen Evans, The Historical Christ and the Jesus of Faith: the Incamational Narrative as History (New York: Oxford University Press, 1996); Gary R. Habermas, The Historical Jesus: Ancient Evidence for the life of Christ (Joplin, MO: College Press, 1997); Stephen J. Patterson, The God of Jesus: The Historical Jesus and the Search for Meaning (Harrisburg, PA: Trinity Press International, 1998); Gerd Theissen and Annette Merz, The Historical Jesus: A Comprehensive Guide (Minneapolis: Fortress Press, 1998); W. Barnes Tatum, In quest of Jesus (Nashville, TN: Abingdon Press, 1999); J. R. Porter, Jesus Christ: The Jesus of History, the Christ of Faith (New York: Oxford University Press, 1999); Charles W. Hedrick, When History and Faith Collide: Studying Jesus (Peabody, MA: Hendrickson, 1999); N. T. Wright, The Challenge of Jesus: Rediscovering Who Jesus Was and Is (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1999); Stanley E. Porter, The Criteria for Authenticity in Historical-Jesus Research: Previous Discussion and New Proposals (Sheffield, England: Sheffield Academic Press, c. 2000); Robert M. Price, Deconstructing Jesus (Amherst, NY: Prometheus Books, 2000); Gregory W. Dawes, ed., The Historical Jesus Quest: Landmarks in the Search for the Jesus af History (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2000); Jonathan L. Reed, Archaeolagy and the Galilean Jesus: A Re-examinatian of the Evidence (Harrisburg, PA: Trinity Press International, c2000); William R. Herzog, Prophet and Teacher: An Introduction to the Historical Jesus (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, c2005); N. T. Wright, The Contemporary Quest for Jesus (Minneapolis, MN: Fortress Press, 2002); Gerd Theissen, Jesus AIs Historische Gestalt: Beitrage Zur Jesusforschung: Zum 60. Geburtstag Von Gerd Theissen (Goettingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2003); Peter Walker L., Jesus and his World (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, c. 2003); Craig A. Evans, ed., The Historical Jesus (London; New York: Routledge, 2004), idem., Fabricating Jesus: How Modem Scholars Distort the Gospels (Downers Grove, IL: IVP Books, c. 2006 ); James D. G. Dunn and Scot McKnight, eds., The Historical Jesus in Recent Research (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2005 ); Lee Strobel, The Case for the Real Jesus: A Joumalist Investigates Current Attacks on the Identity of Christ (Grand Rapids, MI: Zondervan, c. 2007); Robert J. Miller, ed., The Future of the Christian Tradition (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2007); Bernard Brandon Scott, ed., Jesus Reconsidered (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2007).

O terceiro quest (1980 aos dias de hoje)

A figura central neste período é o Instituto Wester 24, sob a direção de um proeminente e conhecido teólogo neotestamentário, Robert W. Funk 25, que junto com John Dominic Crossan26 fundou o primeiro e mais conhecido projeto do InstItuto Wester, o Jesus Seminar,27 cujos membros se dedicam ao estudo do Novo Testamento. O seminário foi organizado em 198528 com o propósito de descobrir a autenticidade histórica dos discursos e realizações atribuídos a Jesus. Na visão

24 Instituição educativa, em Santa Rosa, Califórnia, sem fins lucrativos, cuja missão é colaborar na expansão de temas religiosos e comunicar os resultados dos mesmos a todo público. Sua página oficial na web é http://westarinstitute.org.

25 Robert W.Funk.falecidoem2005.foi professor, escritor, tradutor e publicou textos religiosos. Serviu como Annual Professor of the American School of Oriental Research em Jerusalem, como Diretor do departamento de religião na Graduate Department of Religion na Vanderbilt University e como Diretor da Westar Institute. Entre seus muitos escritos se destacam os seguintes livros: Robert W. Funk, , Roy W. Hoover and the Jesus Seminar, The Five Gospels: The Search for the Authentic Wards of Jesus (New York: Macmillan; Toronto: Maxwell Macmillan Canada; New York: Maxwell Macmillan International, c. 1993); Robert W. Funk, Honest to Jesus: Jesus for a New Millennium (San Francisco, CA: Harper, c. 1996); Robert W. Funk and the Jesus Seminar, The Acts of Jesus: The Search for the Authentic Deeds (San Francisco, CA: Harper, 1998); Robert W. Funk and the Jesus Seminar, The Parables Of Jesus: Red Letter Edition: A Report of The Jesus Seminar (Sonoma, CA: Polebridge Press, c. 1988); Robert W. Funk and the Jesus Seminar, The Gospel af Jesus: According to the Jesus Seminar(Santa Rosa, CA.: Polebridge Press, 1999); Robert W. Funk and the Jesus Seminar, The Once and Future Jesus (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2000); The Once and Future Faith (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2001); Robert W. Funk, A Credible Jesus Fragments of a Vision (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2002).

26 Ademais, presidiu a seção do Jesus histórico da Sociedade Biblica de Literatura. Escreveu 20 livros sobre o Jesus histórico, dos quais os mais significativos são: John Dominic Crossan, The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant (San Francisco, CA: Harper San Francisco, 1991); idem, Jesus: A Revolutionary Biography ([San Francisco, CAl: Harper San Francisco, 1994), idem., Who Killed Jesus: Exposing The Roots af Anti-Semitism in The Gospel Story af The Death of Jesus ([San Francisco, CAl: Harper San Francisco, 1996); idem., The Birth of Christianity: Discovering What Happened in the Years Immediately after the Execution of Jesus ([San Francisco, CAl: Harper San Francisco, 1998); idem., The Jesus Controversy: Perspectives in Conflict (Harrisburg, PA: Trinity Press International, 1999); idem., Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind the Texts ([San Francisco, CAl Harper San Francisco, 2001); idem., The Resurrection of Jesus: John Dominic Crossan and N. T. Wright in Dialogue (Minneapolis, MN: Fortress Press, 2006).

27 Em seu meio destaca-se a influencia de expertos da língua inglesa e um papel mais comprometido dos representantes da Igreja Católica. Por exemplo John P. Meier, A Marginal Jew Rethinking the Historical Jesus. (New York, Doubleday, 1991).

28 O discurso de abertura do seminário por Robert W. Funk, apresentado na primeira reunião de 21-24 de março de 1985 em Berkeley, Califómia, se encontra em Forun 1,1 (1985), ou htip:/Jwww.westarinstitute.org/Jesus_Seminar/Remarks/remarks.html. Funk começou dizendo: “We are about to embark on a momentous enterprise. We are going to inquire simply, rigorously after the voice of Jesus, after what he really said. “In this process we will be asking a question that borders the sacred, that even abuts blasphemy, for many in our society. As a consequence, the course we shall follow may prove hazardous. We may well provoke hostility. But we will set out, in spite of the dangers, because we are professionals and because the issue of Jesus is there to be faced, much as Mt. Everest confronts the team of climbers.” Forum, o jornal acadêmico do Instituto Westar, publica o conhecimento originado pelas investigações realizadas, incluindo The Jesus Seminar. Publica monografias que informam os debates gerados e os resultados alcançados.

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de Funk, o Jesus histórico permanece oculto sob mitos e lendas cristãs. Portanto, dificilmente pode ser personificado pela figura de Cristo que apresentam os evangelhos e que adoram os cristãos.

O Jesus Seminar tem como meta remover esses mitos e lendas para recuperar a figura do Jesus autêntico, o que realmente existiu na história. Nesta tentativa, Funk se propôs a iniciar uma época revolucionária que terminasse com o que considerava um tempo de ignorância. Criticou e atacou as organizações religiosas e seus líderes, por “não permitir que o conhecimento gerado pela mais alta e notável erudição passe através dos pastores e sacerdotes aos leigos famintos”.29 Considera que o Jesus Seminar é um meio para convencer aos crentes da figura mitológica de Jesus de modo que sejam ensinados a adorar ao verdadeiro e real Jesus da história.30

Como pareceria evidente, então, o Jesus Seminar continua sob tradição e influência filosófica e metodológica do primeiro e segundo quest. Contudo, o mais significativo de suas tentativas é que tem estendido ao público em geral problemas e propostas de solução que, principalmente, estavam reservados a discussões acadêmicas entre eruditos neotestamentários.

Com o propósito de descobrir a autenticidade histórica dos ditos e feitos de Jesus o Seminário decidiu que “os limites canônicos são irrelevantes na avaliação crítica das diversas fontes de informação sobre Jesus”,31 o que implicou em rejeitar os evangelhos neotestamentários como fontes únicas e confiáveis para descobrir o Jesus histórico.

Resolveu-se então utilizar 1.500 versões de palavras atribuídas a Jesus em documentos dos primeiros três séculos da era cristã, sejam estes materiais canônicos e não canônicos.32 O Seminário estabeleceu o objetivo de avaliar cada uma das 1.500 fontes para determinar o que foi dito e feito por Jesus com o propósito de encontrar o personagem histórico que se explora. Depois de um grande debate, tiveram a ideia de fazer duas coisas. 33

Primeiro, adotar o voto dos membros do seminário como o caminho mais eficiente para determinar o consenso erudito sobre os ditos e realizações autênticas

29 Robert Funk, “The Issue of Jesus,” Forum 1 (1985): 8. 30 Para ter uma visão do que The Jesus Seminar propõe e o que significa o novo entendimento de Jesus

para a Igreja. a fé e o mundo do amanhã, veja Robert W. Funk, ed., The Once & Future Jesus (Santa Rosa. CA: Polebridge Press. 2000).

31 Funk, The Five Gospels, 35.32 Assim, o evangelho (gnóstico, não canônico) de Tomás, o que se considera uma coleção de ditos

de Jesus, se inclui como o quinto evangelho em The Five Gospels. Ver http://www.westarinstitute.org/PolebridgelTitle/5Gospels/lntr05G/intro5g.html.

33 Ibid., 35-37.

de Jesus. Para os discursos, se determinaria o grau diferente de valorização, juízo e consenso com um de quatro cores no processo de votação: vermelho, rosa, cinza e preto, significando cada cor um grau diferente de avaliação. O vermelho significava: “sem dúvida alguma, Jesus disse isto, ou alguma coisa parecida com isto”; o rosa: “provavelmente Jesus disse algo similar”; o cinza: “Jesus não disse isso, porém as ideias contidas na frase estão próximas à suas”; e o preto: “Jesus não disse isso; representa a perspectiva ou o conteúdo de uma tradição tardia ou diferente”.

Para definir os feitos históricos de Jesus, o vermelho significaria: “a confiabilidade histórica desta informação está virtualmente assegurada. Se apóia em evidência persuasiva”; o rosa: “provavelmente, esta informação é confiável. Corresponde bem com outra evidência verificável”; o cinza: “esta informação é possível, porém não digna de crédito. Carece de evidências”; e o preto: “esta informação é improvável. Não corresponde com evidência verificável. É em grande parte, ou inteiramente, fictícia”.34

A segunda coisa que o Seminário decidiu foi criar uma versão crítica dos evangelhos para informar ao público em geral os resultados finais alcançados.35 Quais foram as conclusões principais, ou resultados, levantados pelo Seminário sobre os ditos e feitos autênticos de Jesus?

Em 1993, o Seminário publicou os resultados das deliberações sobre os ditos autênticos de Jesus na obra The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of Jesus. Em termos gerais, os resultados do trabalho do Seminário não mostram unanimidade. Muitos ditos equivalentes receberam votos vermelhos de alguns e pretos de outros. Entretanto, o Seminário concluiu que das diversas declarações atribuídas a Jesus nos “cinco evangelhos”, apenas 18% foram consideradas prováveis ditos de Jesus; 82% das expressões restantes representam a perspectiva ou o conteúdo de uma tradução tardia ou diferente e, portanto, não são consideradas palavras de Jesus.

Em 1998 foram publicados os resultados das deliberações sobre os feitos autênticos de Jesus na obra The Acts of Jesus: The Search for the Authentic Deeds of Jesus. Durante a segunda fase do seminário, de 1991 a 1996, foram examinados 387 informações de 176 acontecimentos em que Jesus foi o ator principal. Dos 176 eventos analisados, somente dez foram considerados como informação histórica virtualmente assegurada (vermelho), tendo como base as evidências concretas e

34 http://www.westarinstitute.org/Polebridge/Excerpts/votingacts.html.35 Conhece-se esta versão crítica como “the Scholars Version” (SV). De acordo com o prefácio da

obra The Five Gospels, o propósito desta versão é que os textos dos evangelhos “percam o caráter sagrado” e se faça uma tradução “confiável como uma peça da literatura contemporânea” (xvi) pelo uso “da linguagem original, familiar da rua” (xiv).

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persuasivas. Adicionalmente, 19 foram estimadas como provavelmente confiáveis (rosa), o que soma um total de 29 eventos dos 176 (16% do total).

De acordo com uma síntese do informe,36 se afirma que “por mais de dez anos, o Seminário sobre Jesus investigou e debateu a vida e a morte do Jesus histórico. Têm concluído que o Jesus da história é muito diferente ao da imagem proveniente do cristianismo tradicional”.37 Segundo algumas conclusões do Seminário,

1. Jesus de Nazaré nasceu durante o reinado de Herodes, o Grande.

2. O nome de sua mãe foi Maria, e teve um pai humano cujo nome não pode ter sido José.

3. Nasceu em Nazaré, não em Belém.

4. Jesus foi um sábio que assistiu à mesa dos párias da sociedade de seu tempo.

5. Praticou a cura sem o uso de magia e medicina desusadas, reduzindo aflições que agora se consideram psicossomáticas.

6. Não caminhou sobre as águas, não alimentou a multidão com pães nem com peixes, não transformou a água em vinho nem ressuscitou a Lázaro da tumba.

8. Foi executado como rebelde social e não por ser o Filho de Deus.

9. A tumba vazia é uma ficção - Jesus não ressuscitou corporalmente dos mortos.

10. A ideia da ressurreição se origina nas experiências alucinantes de Paulo, Pedro e Maria

11. Jesus não pretendia ser o Messias, não aspirou ser Deus, não acreditou que sua execução fosse necessária para que os que cressem nele como Senhor e Salvador fossem salvos da condenação eterna.

Logicamente, estas conclusões, somadas a 18% de exatidão histórica para os ditos e a 16% para os feitos de Jesus, parecem impróprias e infundadas para os que creem e aceitam a Bíblia como Palavra de Deus. Porque o Seminário terminou com tantos votos cinza e pretos em relação aos ditos e feitos atribuídos a Jesus? A razão, para que o Seminário colorisse 82% dos ditos e 84% dos feitos com cinza e preto, deve-se, segundo os avaliadores críticos, à própria natureza dos evangelhos. 36 http://www.westarinstitute.org/Seminars/acts_seminar.html. 37 http://www.westarinstitute.org//Polebridge/acts.html.

Eles teorizam que os evangelhos foram escritos por autores de uma terceira geração tendo como base as memórias populares preservadas nas histórias que haviam circulado de boca em boca por décadas, formuladas, reformuladas, aumentadas e editadas muitas vezes e de diversas maneiras, antes de encontrar seu formato escrito final.

Pelo visto até aqui, os estudiosos interessados no Jesus histórico, argumentando os interesses não históricos dos escritores evangélicos e a distância em tempo, linguagem e perspectiva entre eles e Jesus, abraçaram um total ceticismo. Confiados na rigorosidade de suas próprias pressuposições e critérios metodológicos, abandonaram toda esperança de encontrar ao Jesus da história. Concluíram que a partir das descrições evangélicas não é possível reconstruir “o que realmente aconteceu” durante o ministério de Jesus.38

Não é meu propósito fazer uma análise crítica das pressuposições, metodologia e resultados alcançados nesta busca pelo Jesus da história, o que já foi realizado eficientemente por outros.39 Mas desejaria sugerir minhas razões para crer no “Jesus histórico”, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, o Jesus bíblico, o Jesus que realmente existiu na história.

38 Há os que, contudo, do contexto histórico de Jesus em paralelo com as descrições evangélicas, parecem estabelecer com razoável segurança o que possivelmente sucedeu, o que provavelmente sucedeu e o que possivelmente não pode ter sucedido no ministério de Jesus. Ver Paula Fredriksen, From Jesus to Christ. The Origins of the New Testament Images of Jesus (New Haven and London: Yale University Press, 1988).

39 Como exemplo, ver as seguintes respostas ao the Jesus Seminar: William Lane Craig, “The Historicity of the Empty Tomb of Jesus”, NTS 31 (1985): 39-67; idem., “Contemporary Scholarship and the Historical Evidence for the Resurrection of Jesus Christ,” Truth 1 (1985): 89-95; idem., “The Problem of Miracles: A Historical and Philosophical Perspective”, en Gospel Perspectives VI, 9-40 (ed. David Wenham e Craig Blomberg; Sheffield, England: JSOT Press, 1986); idem., “Rediscovering the Historical Jesus: The Presuppositions and Presumptions of the Jesus Seminar”, Faith and Mission 15 (1998): 3-15; idem., “Rediscovering the Historical Jesus: The Evidence for Jesus”, Faith and Mission 15 (1998): 16-26; James D. G. Dunn, The Evidence for Jesus (Phíladelphia, PA: Westminster, 1985); R. T. France, ed., The Evidence for Jesus (Downer Grove, IL: InterVarsity, 1986); N. T. Wright, Who Was Jesus? (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1993); idem., The Contemporary Quest for Jesus; idem., The Challenge of Jesus; D. A. Carson, “Five Gospels, No Christ,” Christianity Today 38 (1994): 30-33; Gregory A. Boyd, Cynic, Sage ar Son of God? Recovering the Real Jesus in an Age of Revisionist Replies (Wheaton, IL: Victor Books, 1995); William F. Buckley, Jr., e1, aI., Will the Real Jesus Please Stand Up! The Jesus Seminar’s Dr. John Dominic Crossan vS.Dr. William Lane Craig (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1998); Michael J. Wilkins, J. P. Moreland, eds., Jesus Under Fire (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1995); Gregory A. Boyd, Cynic Sage ar Son of God? (Wheaton: Victor, 1995); Douglas Groothuis, Searching for the Real Jesus in an Age of Controversy (Eugene, OR: Harvest House, 1996); Michael J. Wilkins, James P. Moreland, editors, Jesus UnderFire: Modem Scho/arship Reinvents the Historical Jesus (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1996); Paul Barnett, The Truth About Jesus (Sydney South, Australia: Aquila, 1994); Ben Witherington 111, The Jesus Quest: The Third Search for the Jew of Nazareth (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1995),42-43; James R. Edwards,”Who Do Scholars Say That I Am?” Christianity Today 40.3 (1996): 14-20; Porter, The Criteria for Authenticity in Historical-Jesus Research; Price, Deconstructing Jesus; Evans, The Historical Jesus; idem., Fabricating Jesus; Dunn e McKnight, The Historical Jesus; Strobel, The Case for the Real Jesus; http://virtualreligion.net/forum/reaction.html.

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Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos

1. Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos porque a veracidade histórica dos registros evangélicos não tem sido debatida ao longo dos séculos de interpretação. Foi a partir do século 17, com o filósofo judeu Baruch Spinoza (1633-1677), que começou o ataque contra a veracidade histórica dos autores evangélicos. No século 18 se fez mais violento com Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784) e especialmente Reimarus, com sua teoria infundada de fraude. O quest pelo Jesus histórico - desde Reimarus até o Jesus Seminar, no presente - está fundado em pressuposições filosóficas deístas, naturalistas, céticas, cujas premissas são improváveis e seus procedimentos metodológicos questionáveis e alienados da real evidência histórica. Tudo resulta em um Jesus muito diferente do que realmente existiu. O quest não pode fundamentar a suposta separação entre o Jesus histórico e o Cristo da fé nem consegue provar o hipotético caráter não histórico dos evangelhos. Não conta mais que com o consenso de uns poucos envolvidos no quest que traz em questão a mesma autenticidade e validade dos evangelhos, o que impacta, obviamente, no objeto essencial da credibilidade e proclamação cristã.

2. Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos porque existem fontes extrabíblicas, não cristãs, que apresentam evidências adicionais de sua existência real e histórica, confirmando a veracidade e a credibilidade do relato dos evangelhos. 40

3. Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, porque estes possuem valor histórico. Pertencem ao gênero histórico. Seus registros, mesmo não sendo “textos modernos” de história, certamente, apresentam o Jesus real, a figura histórica que o NT diz que existiu. Entre as diversas formas literárias que caracterizam os evangelhos, algumas não são históricas em si mesmas, como as parábolas 41 de estilo metafórico e ilustrativo

40 Ver os estudos de F. F. Bruce, Jesus & Christian Origins Outside the New Testament (Gran Rapids, MI: Eerdmans, 1974); Scot McKnight, A New Vision for Israel: The Teaching of Jesus in National Context (Grand Rapids, MI: Eerdmans, c. 1999); Robert E. Van Voorst, Jesus Outside The New Testament: An Introduction to the Ancient Evidence (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2000).

41 Nos evangelhos as parábolas constituem uma evidência significativa dos ditos e ensinos de Jesus. EM geral os eruditos os consideram entre as alocuções que poderiam ser declarações atribuídas ao Jesus histórico.

por analogia, mas hinos, sermões, etc. Outras formas, ao contrário, e sobretudo o conjunto, usam estilo de redação descritiva com sentido histórico intencional, usual: Jesus foi,fez, disse, saiu, entrou, orou, comeu, proporcionando-se informações topográficas e cronológicas que concordam com dados históricos topográficos e cronológicos que harmonizam com dados históricos e arqueológicos de outras fontes. A sobriedade, simplicidade, objetividade, franqueza e espontaneidade que resultam tanto ao descobrir feitos sublimes como fraquezas, reforçam o argumento.

Se os comparássemos com os apócrifos cheios de relatos fantásticos, o fato distingue-se rapidamente. Com efeito, não existe nos quatro evangelhos canônicos nada de invenções ridículas e fantásticas. Porém, se bem que o relato responde ao gênero histórico, não poderia ser ficção, mito ou lenda histórica? É necessário destacar que nenhuma parte dos evangelhos deixa entender que sua narração seja fictícia. Lucas, por exemplo, faz referência a fatos que realmente aconteceram, nas palavras a Teófilo: Lc 1:1-4 - “Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada de fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, gualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído”. É necessário recordar que os evangelhos canônicos não registram exatamente as mesmas palavras e os mesmos feitos originais de Jesus nos próprios contextos históricos em que estes se originaram, nem sequer registram a forma na qual estas palavras e estes feitos foram transmitidos. A forma escrita dos ditos e dos feitos de Jesus que dão os evangelhos hoje é a forma que o Espírito Santo inspirou. Tal fenômeno é o que garante a exatidão histórica dos fatos registrados. Portanto, o conteúdo da inspiração que se tem registrado em forma escrita mantém concordância com as palavras e os feitos de Jesus.

Por exemplo, atente para as seguintes palavras-ações de Jesus registradas no evangelho: Mt 16:13-16 “E, chegando Jesus às partes de Cesárea de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem? E eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou um dos profetas. Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou? E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Segundo este relato, os discípulos conheciam a um Jesus real, histórico, como os homens de seu tempo, os quais o relacionaram com indivíduos reais como João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas. Os 12 aceitaram seu convite para o ministério. Foram instruídos por ele. Viajaram e trabalharam com Ele; conheceram ao Jesus histórico, o Cristo da fé. Este Cristo, da confissão de Pedra, é o Jesus histórico dos

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evangelhos, o “Emanuel” da escritura profética (Is 7: 14) antecipado a José (Mt 1 :23); o “Jesus” anunciado pelo anjo Gabriel à bem-aventurada virgem Maria em Nazaré (Lc 1 :26-37); “Cristo, o Senhor” informado pelos anjos aos pastores que velavam e guardavam seus rebanhos sobre as colinas de Belém (Lc 2:8-11); de que Paulo ouviu e escreveu, dizendo: “São israelitas ... deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo segundo a carne” (Rm 9:4-5); “da linhagem de Davi” (Rm 1 :3; 2Tm 2:8); “nascido de mulher, nascido sob a lei”(Gl 4:4); na “figura humana” (F12:7); “em semelhança de carne pecaminosa” (Rm 8:3); “Cristo Jesus, o homem” (Rm 5:15; 1Tm 2:5); o qual “a si mesmo se humilhou”(F12:8); se “fez pobre” (2Co 8:9); “mansidão e benignidade de Cristo” (2Co 10: 1); “foi constituído ministro da circuncisão, em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais” (Rm 15:8); “foi crucificado em fraqueza” (2Co 13:4); “foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia” (1Co 15:4); porque “Deus ( ... ) ressuscitou Cristo” (1 Co 15: 15; Gl 1: 1; Ef 1: 17-20), “fazendo-o sentar-se à sua direita nos lugares celestiais”(Ef 1 :20).

Este Jesus histórico é o “Cristo” que “morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras” (1 Co 15:3). O fato de que Jesus morreu é um acontecimento que deve ser verificado por investigação histórica. Porém, a informação que sua morte foi “pelos nossos pecados segundo as Escrituras” é uma interpretação inspirada que deve ser entendida pela fé, tendo o molde da Escritura como Palavra de Deus, o que é próprio das pressuposições bíblicas. Portanto, muitos dos eventos históricos revelados nos evangelhos chegam a ser recursos literários para ensinar verdades teológicas profundas.

Assim, a história de Jesus, suas palavras e atos, se convertem em teologia. Os evangelhos foram escritos para serem lidos como teologia tanto como história. O evento “Cristo” é uma revelação do Espírito, é teologia; e é história, uma realidade histórica.

4. Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos porque é uma realidade revelada e histórica e quanto mais o estudamos em seu contexto histórico, literário e teológico, mais encontramos motivação teológica e credibilidade histórica.

CONCLUSÃO

Desde o início do século XVIII os estudiosos do Jesus histórico têm questionado a veracidade do relato evangélico, seus milagres, suas profecias

e o extraordinário papel e função de Cristo nos Evangelhos. Iniciou-se uma diferenciação e separação radical, mesmo que supostamente, entre o “Jesus da história” e o “Cristo da fé”. Aceitou-se que um homem chamado Jesus realmente existiu. Contudo, inventaram-se mitos e tradições fantásticas sobre sua pessoa, chegando a ser para muitos, o “Cristo da fé” em fábulas, símbolos e adoração. O resultado, finalmente, levou estes poucos que sustentavam esta posição a um total ceticismo. Confiados em suas pressuposições e métodos, abandonaram todo intento e toda esperança de encontrar ao Jesus da história. São mais, hoje, os que expõem as mesmas perguntas: como conhecer ao Jesus que realmente existiu? É possível conhecer ao Jesus da história? Quais são as fontes para conhecer o Jesus histórico? Os evangelhos são historicamente confiáveis?

É possível conhecer ao Jesus da história para os que abandonam toda filosofia e pressuposição cética. Pode-se encontrar ao Jesus histórico a partir do Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, da revelação bíblica. Não é possível conhecer ao Jesus da história independentemente do Cristo da fé.

Teologia e história se combinam, a revelação e o evento histórico se completam no processo de conhecer ao Jesus histórico. Por isso, afirmo acreditar naquele que foi real, que existiu; pois Ele é o Cristo da fé, é o Jesus dos evangelhos.

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A CRISTOLOGIA HOJE A PARTIR DO VATICANO II:

PREDICADOS EMERGENTES

Bruno Forte *

RESUMO: A partir de uma visada histórica focada no magistério da Igreja e na teologia européia, delineiam-se três linhas nas quais se pode resumir as características do desenvolvimento da cristologia nas últimas décadas: i) mais trinitária, pois marca a revelação de Deus em Jesus; ii) mais histórica, porque abrolhou, estabelecido pelo Concílio, uma renovada atenção de volta às origens e à história concreta do Nazareno narrados pelos Evangelhos; iii) mais pascal, projetada para confessar a singularidade do Crucificado-Ressuscitado, porque chama a testemunhá-lo por de todos os caminhos possíveis ante o mistério da divindade e da salvação eterna dos homens.

PALAVRAS CHAVE: Cristologia trinitária; Cristologia histórica, Cristologia Pascal; Revelatio Dei.

ABSTRACT: From a historical sight focused on the Church’s magisterium and theology in Europe, are outlined in the three lines which can summarize the characteristics of the development of Christology in recent decades: i) more Trinitarian, it marks the revelation of God in Jesus, ii) more historic because originated, established by the council, a renewed attention back to the origins and the concrete history of the Nazarene narrated by the Gospels, iii) more paschal, designed to admit the uniqueness of the Crucified and Risen One, because it draws to bear witness to it by all possible paths before the mystery of godliness and eternal salvation of men.

KEY WORDS: Trinitarian Christology; Historical Christology, Christology of the Passion; Revelatio Dei.

Artigos

* Teólogo conhecido internacionalmente, doutor em Teologia e Filosofia, pós-doutor em Teologia, em Paris(França) e em Tübingen (Alemanha), autor de mais de uma dezena de livros),dos quais se destaca: Jesus de Nazaré: a história de Deus,Deus da história (S. Paulo: Paulinas, 1984). È professor de teologia dogmática na Faculdade Teológica da Itália Meredional.

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Já se passaram mais de trinta anos desde quando em 1981, foi publicado o meu livro sobre Jesus de Nazaré, História de Deus, o Deus da história. Ensaio de uma cristologia como história, reeditado várias vezes e traduzido para várias línguas. Este volume ficou no topo de uma década muito frutífera para a reflexão católica cristológica e viu-se o surgimento de obras fundamentais como a do atual cardeal Walter Kasper, Jesus, o Cristo (publicado em alemão em 1974 e, posteriormente, em vários idiomas e edições) ou da larga produção do jesuita Jean Galot, professor na Universidade Gregoriana.

Os anos oitenta conheceram, de maneira semelhante, uma rica reflexão sobre Cristo, caracterizada especialmente pelo aprofundamento trinitário da cristologia, dos quais são testemunho o volume da próprio Kaspers O Deus de Jesus Cristo (1982), a relevante síntese de Marcelo Bordoni, Jesus de Nazaré. Presença, memória, espera, publicada em 1988 ( da qual é continuação ideal o ensaio A cristologia no horizonte do Espírito, publicado 1995), como também o meu livro Trindade como história. Ensaio sobre o Deus cristão (1985).

Nesse mesmo período, estão localizadas várias intervenções feitas pela Comissão Teológica Internacional sobre o assunto: se o documento intitulado Algumas questões sobre a cristologia (1979) conclui a “década cristológica” da teologia católica pós-conciliar, outros textos vieram à luz nos anos oitenta, como a da Teologia, cristologia, antropologia (1981) ou o outro sobre A consciência que Jesus tinha de si mesmo e sua missão (1986), enquanto na década de noventa que foram divulgados dois documentos significativos sobre a relação entre cristologia e destino universal da salvação; o primeiro dedicado a Algumas perguntas sobre a teologia da Redenção (1995), o segundo sobre O cristianismo e as religiões (1996), que visando clarificar a questão da singularidade de Jesus Cristo, decisiva para o desenvolvimento adequado do diálogo com outras religiões.

Neste sentido, inclui-se também a Declaração Dominus Jesus, a Congregação para a Doutrina da Fé, publicado no ano jubilar com a finalidade de propor uma solene profissão de fé naquele que é a própria a verdade que liberta e salva: Jesus, o Cristo.

O próprio magistério de João Paulo II apresentou desde o início uma caracterização cristológico-trinitária forte: a linha mestra é representado por três encíclicas Redemptor Hominis (1979), dedicado ao Filho, Dives in Misericordia (1980), dedicado a Deus Pai e Dominum et vivificantem (1986), sobre a pessoa e a obra do Espírito Santo.

A estrutura cristológico-trinitária voltou a ser significativa no percurso proposto para a preparação do Grande Jubileu do Ano 2000 na Tertio Millennio

Adveniente (1994). Sobre esta nota teológica de fundo pode se dizer que se harmonizam todos os ensinamentos deste pontificado: desde a reflexão sobre antropologia, apresentada nas Encíclicas mencionadas, além da Laborem Exercens de 1981, sobre a dignidade do trabalho humano, e na Carta Apostólica sobre a mulher Mulieris Dignitatem, de 1988; passando a reflexão através da moral, proposta na Veritatis Splendor, de 1993, Evangelium Vitae, de 1995, e nas encíclicas sobre questões sociais, Sollicitudo rei socialis, de 1988 e Centesimus annus de 1991, até a reflexão feita sobre a eclesiologia, delineada à luz da singularidade do Redentor e da comunhão trinitária na Redemptoris Missio, 1991, Slavorum Apostoli em 1985, sobre o Oriente cristão, e na Ut unum sint, 1995, sobre o ecumenismo.

Um papel de deestaque teve a reflexão a Mãe de Deus, oferecido no Redemptoris Mater, de 1987, onde os diversos aspectos do mistério são captados no denso ícone d’Aquela em que tudo retoma a obra do Deus trinitário e sua glória, a serviço da missão do Filho eterno, feito carne no seu ventre virginal.

Nessa grande contribuição para a cristologia oferecido pela teologia e pelo magistério da Igreja desde o Concílio Vaticano II até hoje, é possível vislumbrar algumas linhas mestras que mostram como se superou plenamente o manual escolástico préconciliar “De Verbo Incarnato” para a recuperação do fundamento bíblico da compreensão da fé, da relevância soteriológica da mensagem de Cristo e sua centralidade para a exata compreensão de todos os outros aspectos da teologia e da prática cristãs.

Três são as linhas em que se poderia resumir as características do desenvolvimento da cristologia nas últimas décadas: trata-se de uma cristologia a) mais propriamente trinitária, b) mais marcadamente histórica e c) decididamente pascal, projetada para confessar a singularidade do Crucificado-Ressuscitado para a salvação do mundo.

a) Uma cristologia trinitária: a revelação de Deus em Cristo Na vida terrena de Jesus de Nazaré é que se pode reconhecer a revelação da história de Deus conosco, enquanto a sua ressurreição nos manifesta como o Deus da história, Redentor de todos os homens em cada homem. Cada ato de sua existência terrena, enquanto história do Filho, que ergueu sua tenda no meio de nós, implica toda a vida da Trindade, isto é, diz respeito à relação com o Pai no Espírito Santo.

A ressurreição demostra que os dois sujeitos de “história” divina que não se encarnaram, o Pai e o Paráclito, não permaneceram como espectadores alheios às obras e aos dias do Verbo na carne: eles oviver com Ele, cada um. de acordo

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com sua relação específica, que a caracteriza como essa pessoa e não outra. Portanto, desde a Páscoa até dizer que toda a história de Jesus é revelação da história trinitária de Deus, transparência no mundo da dedicação e da autodoação dos Tres nas várias relações que os unem e que teem com o mundo. Em Jesus se revela contemporaneamente o rosto trinitnário de Deus e a relação do mundo com o Pai, enquanto se manifesta e doa o Espírito de comunhão trinitária e de reconciliação entre Deus e os homens.

Compreende-se, então, como uma teologia que ignore o vínculo permanente de toda afirmação cristológica ao mistério da Trindade, segundo um divórcio de horizonte, desafortunadamente frequente nos manuais préconciliares, dê conta por um lado de uma cristologia abstrata, árida e conceitual e de outro, de uma doutrina trinitária especulativa, com pouca adesão ao concreto revelar-se do Deus trino na economia da salvação.

Recuperar a dimensão trinitária da história de Jesus é o caminho oferecido ao conhecimento da fé para abrir-se à profundidade de Deus e fazer-se dEle uma idéia autenticamente cristã e não intelectualista, alheio ao confronto com o escândalo da cruz e à luz da Páscoa.

O aprofundamente trinitário da encarnação do Verbo mostra como a Palavra encarnada retorna ao Silencio de origem, à profundidade da qual eternamente provem e junto à qual está eternamente: o Deus que se fez visível ao Deus invisível, o Filho ao Pai. Como diz Inácio de Antioquia, o Pai “revelou através de Seu Filho Jesus Cristo, que é a seu Verbo procedente do Silêncio” (Ad Magn. 8,2).

A palavra de revelação, que é Cristo, requer então, a ser “transcendida”, não no sentido de que pode ser eliminada ou posta entre parentese, pois isso obstacularizaria todos os acessos às profundezas do divino, mas no sentido de que é verdade e assim como a vida é o caminho (cf. Jo 14,6), o umbral que se abre diante do Mistério, a porta pela qual se deve passar para entrar no aprisco das ovelhas (cf. Jo 10,7), a luz vinda das trevas para a luz, na qual veremos a luz (cf. Jo 1,9 e Sl 36,10).

Graças à dialética trinitária da Palavra e Silêncio, de abertura, e ocultação, no evento da revelação a transcendência divina não é entregue à imanência do mundo, e a forma histórica da autocomunicação divina se remete à inesgotável excedencia do mistério sagrado.

“Re-velar” quer dizer, portanto, o ato de passagem desde o velado até o descoberto, a revelação do precedentemente escondido, porém nunca exclui de todo a permanência de um véu; é mais que isto: um adensar-se.

Esse jogo dialético se perde no alemão “Offenbarung, offenbaren”, onde o que vem à mente é apenas o ato de abrir-se e, portanto, a condição do aberto e do manifesto; nesse sentido, a interpretação hegeliana da revelação como totalmente expressiva e constitutiva de Deus que se manifesta torna-se coerente com a etimologia da palavra alemã..

Esta estrutura dialética da revelação é encontrada na mesma palavra latina “revelatio” considerada em seu sentido etimológico (tal como se poderia dizer, da palavra grega “apokalupsis”): o prefixo “re-” tem tanto o sentido repetição do idêntico (como em “re-sumo”), como a passagem para a condição oposta (como em “re-provado”). “Re-velar, portanto, que indicar a aprovação da lei do oculto para a nudez, a revelação da anteriormente escondida, porém nunca exclue completamente uma estadia do véu, ou melhor, mesmo adensarse um.

Apenas uma cristologia construída sobre o “re-velatio Dei” - entendida dialeticamente -, respeita o caráter trinitário da revelação original: é necessário, então, voltar-se decididamente para uma cristologia cada vez mais “teológica” e, portanto, cada vez mais mais “trinitária”, tanto para educar e ouvir na Palavra o silêncio do qual provem e ao qual se abre e, por conseguinte, no Verbo encarnado a relevação do Pai e do Espírito Santo.

São João da Cruz afirma: “O Pai pronunciou uma palavra, que foi seu Filho e a repete sempre num eterno silencio; depois, em silencio ela deve ser escutada na ama” (Sentenze. Spunti d’amore. [Sentencias.

Acolher a Palavra escutando nela o silencio divino é permanecer no santuário da adoração, deixando-se amar pelo Deus silencioso e atrair para ele, através da insubstituível e necessária mediação do Verbo: “Ninguém vai ao Pai senão por mim” ( Jo 14,6)

Aquí se compreende como uma cristología no horizonte da fé está profundamente enraizada na experiência crente do Deus vivente da revelação bíblica e, portanto, na espiritualidade da escuta, alimentada pela oração. Por isto, separar cristología e espiritualidade quer dizer: privar-se do horizonte necessário para obedecer verdadeiramente à palavra revelada, escutando nela o Silencio fontal, do qual ela provem e ao qual ela se abre.

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Reencontrar a unidade cristológica do pensamento e da experiência cristã, mais além das dificuldades introduzidas também na teologia pelo racionalismo da modernidade, significa voltar à condição hermeneutica originária e constitutiva do pensamento da fé ao estado original e hermenêutica constitutivos do pensamento fé.

Da mesma forma, a urgência é capturada aqui para reflexão cristológica se situe no interior da transmissão eclesial vivente da Palavra, que de testemunho em testemunho e de obediência em obediência faça chegar até nós a água da vida.

A cristologia separada da tradição viva da fé da Igreja - especialmente daquela que é guaadada dentro do “limite/umbral” que é a definição dogmática - levaria a aventuras impróprias, inseguras e inconsistente.

Isto não tem nada a ver com uma teologia bloqueada pela definição dogmática (a “Denzinger-Theologie”, como se diria!). É, isto sim, uma condição de vitalidade do pensamento cristão, chamado a razão da esperança fundada sobre a verdade da fé: longe de ser ima repetição mecânica do que está morto, a tradição é vida que transmitem vida

Uma cristologia no horizonte da fé é, portanto, não só biblicamente fundada e alimentada pela experiência espiritual, mas também é eclesialmente responsável e deve estar atenta para superar as aventuras de subjetividade na objetividade da “fides Ecclesiae”, recebida e transmitida.

A revelação de Deus em Cristo inspira o povo de peregrinos da fé, chamado a transmitir a todas as gerações a memória do Eterni, vinculada ao texto das Escrituras inspiradas, mas também o contexto do anúncio e da práxis cristã, nos que o Espírito trabalha para levar a Igreja à plenitude da verdade divina.

b) A cristologia histórica: a circularidade entre o Jesus da história e o Cristo da fé

A segunda característica que apresenta o desenvolvimento da reflexão cristológica desde o Vaticano II é ser uma cristologia histórica: a volta às origens estabalecida pelo Concílio trouxe para a reflexão sobre Cristo uma renovada atenção para a história concreta do Nazareno narrados pelos Evangelhos e, portanto, aos chamados “mistérios” de sua vida, junto a um sólido método histórico-crítico.

Na sua verdadeira e completa humanidade, Jesus Cristo é a revelação de Deus: aqui se fundamenta a exigencia de alcançar, através dos traços do Jesus histórico, a profundidade do mistério que eles oferecem. Não se trata de contar uma centésima história de Jesus em que se projeta, mais ou menos amplamente, as interrogações e questões da sensibilidade do presente nem, muito menos intentar uma análise psicológica da personalidade do Nazareno, que seria totalmente arbitrária, dados os elementos à nossa disposição.

Trata-se de investigar nos “mysteria vitae Jesu” das dimensões do humano que se manifestam neles ,e através dos quais, passa a revelação do Deus vivente lendo na história o “querigma” e no “querigma “ a história e capturando, na plenitude, a fecunda circularidade atestada no Novo Testamento entre o Jesus histórico e o Cristo pascal.

Trata-se de reconstruir a história da consciência e da liberdade do homem Jesus, bem como a experiência de sua finitude, experimentada conhecendo pessoalmente a dor e a morte, na convicção fundada na luz da Páscoa que tudo o que vem à verdadeira e plena humanidade do Salvador, está baseado na revelação de sua divindade.

Em Jesus de Nazaré foi-nos oferecido o rosto humano de Deus: cada gesto seu, cada aspecto de sua condição humana, cada momento de sua vida terrena, é a aparição (manifestação) de Deus entre os homens e deve ser, portanto, valorizado pela fé e reflexão cristã. O terno amor de muitos santos à humanidade do Salvador, a atenção para “Dominus humanissimus”, que tem sido muitas vezes estranhos à teologia dos últimos séculos (desde Suarez em diante se abandonou a exposição dos “mysteria vitae Jesu” na articulação de “De Verbo Incarnato”) e familiar só à piedade cristã, capta um aspecto profundo do paradoxo cristão. Deus não faz concorrência ao homem em Jesus de Nazaré; ao contrário, o ser humano é assumido plenamente e é valorizado na história do Filho do homem, como um veículo eficaz, “sacramento” do Filho eterno entrado neste mundo.

Compreende-se, portanto, quão pouco cristãos são essa teologia e essa piedade que se esquecem da vida concreta e histórica do Salvador, com todo o seu realismo e até mesmo o escândalo que a caracteriza. Neste sentido, é preciosa a doutrina tradicional da causalidade instrumental da humanidade de Cristo, pelo qual Sto. Thomas dedicou-se à vida concreta do Nazareno, conferiu-lhe uma atenção teológica de singular riqueza: “Todas as coisas que foram cumpridas na carne de Cristo eram salvíficas para nós em virtude da divindade ligada a ela “(Compendium Theologiae 239). A atuação de Jesus é como uma parábola viva da ação de Deus!

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Maior atenção para a humanidade do Redentor também comporta uma renovada sensibilidade da teologia aos requisitos da seguimento: narrar criticamente a vida do Jesus histórico significa deixar-se comprometer na “imitação” dele, de sua opção fundamental pelo Reino de Deus, de suas escolhas de liberdade em favor destes últimos, de seu amor pelo Pai até esquecer de si mesmo. O seguimento não é apenas a reprodução de um modelo: se assim fosse, seria inacessível às nossas forças. Ele pode ser respeitado e cumprido apenas no Espírito Santo: o Espírito é, em relação à Palavra, como o silêncio da hospitalidade atualizadora, da qual muitas vezes emana a eloqüência silenciosa do testemunho (cf. Jo 15,26 s): “ Quem realmente possui a palavra de Jesus – como dizia Santo Inácio de Antioquia - também pode perceber o seu silêncio, a fim de ser perfeito, afim de que aja, através das coisas que ele fala, e através das quais ele cala para ser reconhecido “(Ad Ef. 15,1-2).

A ação do Espírito na história, reconhecida e recebida nediante o discernimento da fé, se expressa principalmente na caridade, nessa força do amor que vem de Deus e pela qual a comunidade cristã, que aceita os desafio dos sinais do tempo , se torna solidária com o próximo concreto e o serve na causa de sua promoção mais completa e, portanto, na libertação de tudo o que ofende a dignidade dos filhos de Deus. Nesta estrada abre aos olhos da fé a presença misteriosa de Deus no maior variedade de situações humanas: Cristo se esconde nos pobres, nos famintos, nos sedentos, nos marginalizados e que sofriem, na crianças exploradas, as mulheres pisoteadas, nos últimos (cf. Mt 25:31 ss). Quem responde aos que têm fome e sede de tuto isso com o amor livre e gratuito, torna-se um Evangelho vivo, uma Palavra escrita, já não mais em tábuas de pedra, mas sobre a carne de nossos corações (cf. 2 Cor 3,3) .

A presença de Cristo no cotidiano da dor e das lágrimas são reconhecidos, bem como, em quem ama em seu nome: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo, 13, 35) . No amor ao próximo é revelado o amor de Deus: “Quem não ama seu irmão a quem vê, não pode amar a Deus a quem não vê» (1 Jo 4, 20). Neste amor, Cristo se faz presente em seu Espírito e diz palavras de vida eterna. O outro é, no Espírito, um sacramento do encontro com o Senhor Jesus, um lugar de advento, o tempo da salvação (cf. Mt 25, 31ss).

Uma cristologia que não é medida pelas urgências de caridade e justiça, e não dá razões para viver o êxodo de si mesmo no seguimento do Filho na carne, se desnaturaliza no exercício da razão, aberto a todos possíveis riscos de desvios ideológicos. As “cristologias da práxis” (cristologias de cristologias da libertação, cristologias políticas, cristologias da esperança e do “eschaton”) mostram

aqui tanto osseus riscos quanto seu potencial positivo,tanto mais acolhido e desenvolvido quanto mais interpretado e vivido à luz d a ação do Espírito na comunhão da Igreja. A cristologia mais “militante” - especialmente em termos de amor e compromisso com a justiça para todos, e em relação a criação desejada por Deus –parece, pois. ser solicitada pelo mesmo esforço em colocar corretamente a reflexão sobre seguimento do Nazareno dentro da missão do Espírito.

c) Uma cristologia pascal: a singularidade de Jesus Cristo e da salvação do mundo

A terceira característica que emerge a partir do desenvolvimento da cristologia no pós Concílio está vinculada ao diálogo e confronto com outras religiões: trata-se de uma cristologia pascal, chamada a testemunhar a singularidade de Jesus Cristo diante de todos os caminhos possíveis para o mistério da divindade e da salvação eterna dos homens. A fé do Novo Testamento não hesita em indicar no campo “evento Cristo” o lugar onde é possível encontrar-se,em plenitude, autocomunicação divina: Jesus não fala somente com as palavras de Deus, mas é a Palavra de Deus, o Verbo eterno feito carne , que se comunica a si mesmo e dá acesso à experiência vivificante das profundezas divinas no dom do Espírito.

Sobre esta convicção baseia-se a consciência do cristianismo de ser o portador de uma mensagem universal, dirigida a todos os homens em cada homem. E é em virtude dela que para os discípulos de Cristo são estabelecidas as condições necessárias de possibilidade e os critérios de discernimento da eventual presença da auto-comunicação divina nas outras religiões e no diálogo com elas.

A Encíclica Redemptoris Missio (1990) afirma: “Deus chama a si todos os povos em Cristo, desejando-lhescomunicar-lhes a plenitude da sua revelação e amor, e continua a fazer-se presente de muitos modos, não só aos indivíduos, mas também para populações inteiras através das suas riquezas espirituais, cuja expressão princial e essencial são as religiões, ainda que elas contenham “lacunas, insuficiências e erros” (55).

As religiões oferecem, então, não apenas como expressões de auto-transcendência do homem frente ao mistério sagrado, senão também como possíveis lugares da autocomunicação do ser divino: novamente a encíclica diz que para aqueles que “não têm a oportunidade de conhecer ou aceitar a revelação

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do Evangelho e de entrar na Igreja “, porque” vivem condições sócio-culturais que não permitem isso e, em muitos casos tenham sido educados em outras tradições religiosas, “a salvação de Cristo” é acessível, em virtude da graça que, mesmo ao ter uma relação misteriosa com a Igreja, não lhes introduz formalmente da mesma, mas ilumina-los adequadamente em sua situação espiritual e material . Esta graça provém de Cristo; é fruto do seu sacrifício e é comunicada pelo Espírito Santo: ela permite a cada pessoa alcançar a salvação através de sua livre colaboração “(10). A encíclica precisa que “a presença e a atividade do Espírito não afetam somente os indivíduos, mas também a sociedade, história, povos, culturas e religiões ... É também o Espírito que espalha “as sementes do Verbo “presentes em vários ritos e culturas, preparando-os para a plena maturidade em Cristo” (28).

À luz disso, é legítimo considerar que as religiões não cristãs contêm elementos autênticos da autocomunicação divina, cujo discernimento é possível para os discípulos de Cristo, em virtude do critério que é a revelação cumprida Nele: entende-se, portanto, não pode ser aceita uma avaliação puramente negativa dos mundos não-cristãos e de textos sagrados, ligadas a um suposto “exclusivismo” fundado sobre a identificação absoluta entre a Igreja e o Reino (como, por exemplo, a posição de Karl Barth) . Não se pode - na direção oposta - a aceitar o pluralismo indiscriminado de algumas teologias das religiões que fazem com que seja vã a absoluticidade do cristianismo e ignorar as lacunas e resistencias das outras experiências religiosas, com a intenção de tomar distância da insistência sobre a superioridade e definitividade de Cristo para se mover em direção ao reconhecimento da independente validade de outros caminhos (como o encontrado na concepção de teólogos como John Hick e Paul Knitter F.).

Entre essas orientações contrapostas faz falta perseguir o discernimento que - sem renunciar a proclamação da graça e do escândalo singulares da boa notícia - reconheça a ação do Espírito orientada para a luz do Verbo onde quer que ela se realize. “Tudo o que o Espírito faz nos homens e na história dos povos, assim como nas culturas e religiões,tem um papel de preparação para o Evangelho, e não pode menos que referir-se a Cristo, o Verbo Encarnado pelo Espírito “(Redemptoris Missio, 29).

Um reconhecimento somolar não frustra, de modo algum,o dever missionário do discípulo de Cristo, pelo contrário, motiva mais e mais, porque sem o critério constituído pela singularidade do Senhor Jesus e do seu Evangelho não seria nem sequer possível para os cristãos discernir e apreciar os valores contidos em outras religiões e os seus livros sagrados, tão pouco o valor da experiência religiosa que estes oferecem. “Embora a Igreja reconhece de bom grado tudo o que é verdadeiro e santo nas tradições religiosas do budismo, hinduísmo

e islamismo - reflexos de que a verdade que ilumina todos os homens – drgue valendo seu dever e determinação de proclamar sem hesitação Jesus Cristo, que é “o Caminho, a Verdade ea Vida” “(Redemptoris Missio, 55).

Assim, o diálogo com outras religiões “deve ser realizado e levado a termo com a convicção de que a Igreja é o meio ordinário de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios da salvação” (ibid.). Nem este diálogo – enquanto unido ao dever de proclamar a verdade do evangelho - deve ser considerada instrumental, pois conjuga a fidelidade irrenunciável com a identidade do discípulo de Cristo com o reconhecimento das “semina Verbi” onde quer que estejam presentes, e que justamente por esta fidelidade é possível.

***

A cristologia mais teológica, uma cristologia histórica, cristologia mais capaz de combinar essas duas dimensões na confissão da unicidade de Jesus Cristo, que, una ao mesmo tempo a urgência de proclamar a boa notícia necessidade de diálogo com o outro , quem quer que seja e de que parte venhar. É esta triplice instancia que parece emergird os desenvolvimentos da reflexão pós-conciliar cristológico: uma instância que faça eco à demanda constante de fé em Cristo, para confessar nEle a união do humano e do divino, sem confusão ou mistura, sem divisão ou separação (cf. Concílio de Calcedônia, em 451).

Trata-se de desenvolver uma reflexão de fé que una fidelidade ao mundo presente e fidelidade ao céu, fidelidade a este mundo e fidelidade ao mundo que deve vir, como já aconteceu uma vez por todas naquele que é a Aliança em pessoa . A Ele se dirige, pois a invocação do divino - uniao a de toda a Igreja - para o “logos” da fé pensativo adera ao “hymnos” da fé adorante, que escuta, celebra, proclama e vive o mistério revelado Nele, o Verbo vindo entre nós, em cuja seguimento apostamos toda a nossa vida.

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UMA HISTORIA DA HISTORIA

DE JESUS

Hélcion Ribeiro *

RESUMO: O artigo se propõe a delinear como foi sendo construída a história da compreensão de Jesus. Sua origem, narrada nos evangelhos, e a racionalidade dos discursos - notadamente os helênicos - levaram à composição dos dogmas ou, ainda, as devoções. Os dogmas e as devoções são as duas grandes realidades que permeiam a história humana na relação com Jesus Cristo. Privilegiou-se, na Igreja, a memória do discurso racional sobre Jesus. A memória devocional é mais volátil e contém menos documentação. Os textos escritos por intelectuais são mais duradouros; a memória popular perde-se mais rapidamente por causa de suas mudanças. Os chamados “concílios de ouro da cristologia” marcaram o primeiro milênio. Nos tempos seguintes, não havendo grandes inovações teológicas, surgiram diversificadas devoções, especialmente “as doloristas” e as eucarísticas. Estes dois modelos marcam o lugar de Jesus na história da fé.

PALAVRAS CHAVE: Compreensão sobre Jesus; Racionalidade dos discursos; Dogmas; Devoção.

ABSTRACT: This article aims to outline how the story was constructed understanding of Jesus. The origen of Jesus, narred in the Gospels and the racionality of the speches - especially the Helens - led to the composition of dogmas or even the devotions. The dogmas and devotions are the two great realities that has permeated the human history in relationship with Jesus Christ. We privilege in the Church, the memory of rational discourse about Jesus. The memory devotional is more volatile and contains less documentation. The texts written by scholars are more durable. The popular memory is lost faster because of the constant changes. The so-called “golden councils of Christology” marks the first millennium. Afterward, as there was no great theological innovations emerged diversified devotions, especially those “of the Passion” and the Eucharist. These two models mark the place of Jesus in the history of faith.

KEY WORDS: Understanding about Jesus; Rationality speeches; Dogmas; Devotions “of the Passion” and Eucharistic.

Artigos

* Mestre e doutor em Missiologia, pós doutor em Antropologia Teológica, pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e professor do Studium .

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Algumas observações iniciais

Este é um artigo de síntese. Síntese sempre indica uma (nova) posição (tese) sujeita à críticas (antíteses). Então, uma síntese é sempre algo dinâmico e provisório, mas não diz tudo. Não é um resumo. Um resumo está baseado em algo pronto e dele não se sai. A síntese se abre para dizer novas coisas- que se tornarão velhas um dia.

Escrever sobre a história do que disseram de Jesus é um processo arriscado. Para uns, faltará isto ou aquilo. Outros poderão dizer que não é bem assim. Então o artigo, que é provisório, torna-se também provocador. E disto o autor está consciente e, de modo algum, pretende ser dogmático ou definitivo.

O artigo não tem como objetivo primeiro escrever sobre Jesus. Não é uma “jesuologia”. Mas, também e muito menos é uma “cristologia”. É tão somente uma (tentativa de) caracterização de como interpretaram Jesus na história. O peso, pois, está na história, não dele, mas do que fizeram dele, de como o conceberam – o que, inclusive, serviu para assim justificar atitudes de poder, piedade, exclusão/inclusão, pecado/graça etc.

“Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai...” (Mt. 11,27). Esta afirmação joanina já é suficiente para indicar a provisoriedade de todo conhecimento sobre Jesus; mas, ao mesmo tempo, é a possibilidade real e histórica de conhecer Jesus, o que revela o Pai. Conhecer Jesus é um ato de fé. Porém nem tudo que se conhece de Jesus é uma questão de fé. 1

Jesus nas várias explicações do Novo Testamento e dos primeiros Santos Padres

A fonte normativa primária para saber como se conhece Jesus é a Bíblia Sagrada, prioritariamente o Novo Testamento. Mas, ninguém pode conhecê-lo sem o suporte revelatório do Antigo Testamento. Convém dizer, logo no início, que para a compreensão eclesial de Jesus, a dogmática cristológica é integrativa da fé professada – mesmo que o dogma, no caso, decorra da explicitação do que se encontra na Bíblia.

1 Veja-se, por exemplo, toda a discussão sobre Jesus histórico, promovida pelo Jesus Seminar.

Foi S. Paulo quem por primeiro escreveu sobre Jesus. Toda tradição bíblica que possuímos confirma isto. Só depois vieram os evangelhos. Primeiros os evangelhos sinóticos, depois o de João. Os apócrifos – que também têm algum valor, mesmo que não canônico – vieram bem mais tarde. Eles têm sido valorizados em muitos ambientes religiosos e teológicos atuais

São Paulo interessou-se pelo Cristo crucificado. Mas, o crucificado é o ressuscitado (1Cor 2,2) . Dele que vem a fé. S. Paulo, porém, – que de modo algum se detém sobre a história de Jesus – procura, antes e, sobretudo, entender o significado de Jesus como Cristo de Deus. É claro, além do fato histórico da morte, Paulo também afirma ser Ele nascido de mulher (Gal 4,4)2. Certamente as interpretações paulinas são fundamentais para compreender Jesus como o Filho Unigênito, o Primogênito de toda criatura, o Filho de Deus nascido segunda a carne da estirpe de Davi e constituído em virtude como Filho de Deus, segundo o espírito de santidade (Rom.1,3ss). É ele o Filho de Deus, enviado a nós para que, por sua morte, nós fossemos salvos, i. é: todos os homens fossem salvos não importando se judeus ou pagãos (Rom 3,24; 6,22; 1Tim 2,6 etc.). É aquele que se humilhou em sua divindade para fazer-se um homem e ainda mais, em sua humilhação, fez um escravo que foi crucificado (cf. Fil 2, 6-11).

De modo mais ordenado, pode-se dizer que Paulo, na fase inicial, vê Jesus, através de sua ressurreição, como o futuro salvador escatológico (1-2Ts; 1Cor 15). Depois, enfatizando o Crucificado-Ressuscitado, o encontra como aquele que opera, desde já, a salvação (cf 1-2 Cor, Gl, Rm). Por fim, para Paulo, Jesus ocupa todo o centro do plano de Deus, desde o início da criação até sua consumação. É o Cristo cósmico.3

A reflexão paulina considera Jesus em seu mistério a partir de Deus e a partir de sua missão escatológica. O apóstolo certamente não ignora a vida de Jesus vivida na carne, mas ele amplia o significado histórico, embasado no Primeiro Testamento e nas suas visões pessoais de Jesus (cf. caps. 9, 22 e 26), para os significados cósmico e escatológico. É a partir daí que ele compreende quem foi Jesus.

Os evangelhos sinóticos surgiram para assentar a revelação de Deus sobre Jesus e foram escritos à luz da ressurreição. Consequentemente nem pretendem ser uma biografia de Jesus tal qual nós entendemos hoje. Aliás, tampouco foram escritos para ser um relato fiel e imediato da vida e obras de Jesus. Antes, foram escritos em função das necessidades da fé das comunidades primitivas que já não

2 - Paulo não diz que ele nasceu de Maria. Convém lembrar aqui que Paulo foi fervoroso judeu e mesmo tendo dito que depois de Cristo não há mais judeu ou grego prosélito ou pagão

3 Jesus é Deus, para S. Paulo? – Bem, esta é outra discussão de cuja oportunidade não se ocupa este texto.

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mais conheciam pessoalmente Jesus. Mesmo assim, é o que de mais próximo e autoritativo que se tem da vida dele. As poucas referências da literatura judaica4 e romana são ainda muito mais insuficientes, tanto por serem poucas quanto por serem quase sempre uma referência indireta ou complementar.

Foi assim que Marcos5 escreveu para mostrar, sempre à luz da ressurreição, que Jesus era verdadeiramente o Filho de Deus6. O texto foi escrito depois dos anos 40 e antes da destruição de Jerusalém, em função da catequese das comunidades gentio-cristãs; i. é : de cristãos “convertidos do paganismo” que formaram comunidades estabelecidas e que não conheciam suficientemente os costumes judeus.

Marcos descreve as atividades de Jesus antes de sua ressurreição – que é o mesmo pregado como ressuscitado e o juiz do mundo, o Filho de Deus. Constrói um Jesus com a misteriosidade de messias: o Filho de Deus. Titulo, aliás, evitado por Jesus, que inclusive proíbe a divulgação de seus feitos messiânicos (os chamados “os segredos messiânicos”). Mas, o título se torna conveniente aos “ouvintes descrentes” – e a todos os pósteros – tanto por causa do fim trágico de Jesus quanto da revelação de sua messianidade. O evangelista, em seu esquemático texto, apresenta Jesus não como um “homem divino”, um super homem, ou um semideus glorioso e triunfante, realizador de fatos e causas extraordinários. Antes, a filialidade e a messianidade de Jesus são mostradas pelo sofrimento e morte na cruz: ele deu a vida pela nossa salvação e nele se cumpriram as promessas messiânicas de Deus, já feitas no AT.

O Jesus de Mc é aquele que está no meio do povo. É o que prega, cura enfermos, expulsa demônios, faz refeições com os pecadores (i.é: os excluídos), instrui seus discípulos e o povo em geral. Ele discute as tradições judaicas e se vê acuado pelos fariseus, por Herodes e outras autoridades judaicas. Por fim, ele vê sua própria morte aproximar-se de modo violento. Mesmo assim, não deixa de ser crítico da sociedade estabelecida, agindo sobretudo como um messias de Deus. Aprisionado, julgado e condenado, morre na cruz para ser ressuscitado depois do sábado da Preparação.

Mateus – cujo escrito foi o segundo a ser produzido, apesar de o texto oficial da Bíblia vir como primeiro – foi escrito por volta do ano 85, para as comunidades judaica-cristãs que, não só se distanciaram das sinagogas, mas também viverem em tensão com os judeus – agora considerados como um povo que abandonou Deus. O Jesus mateano é o novo Moisés, o libertador e nele se

4 Aqui se incluem também as de Flávio Josefo, sempre mais tidas como glosa de cristãos no texto do historiador)

5 O texto de Marcos é mais antigo que possuímos, mesmo que se fale de algum texto mais primitivo, não conhecido hoje

6 Cf. no início: 1, 1; no meio: 9,29 e, no final,:15,39.

realizam as inúmeras profecias veterotestamentárias sobre o messias prometido7. Ele é o filho de Davi, verdadeiro filho de Abraão. É quem escolhe doze apóstolos que simbolizam as novas doze tribos de Israel. Os apóstolos encabeçarão o novo Israel que haverá de escutar os novos ensinamentos do “reino dos céus” (cf. Mt. 4, 23; 24,14) e aceitará a nova Lei de Jesus, que já o velho Israel rejeitará mais e mais tais ensinamentos e tal Lei.

Mateus escreve ao novo e verdadeiro Israel, a Igreja, e evidencia Jesus como “Filho de Deus”, em quem se cumprem e se projetam as realidades da imprevisível e insuperável vinda de Deus. Assim Jesus é, definitivamente, o Cristo, o Emanuel (1, 22), o que estará sempre conosco (29,18-20) e a quem será dado todo poder no céu e na terra (26, 54-56). Todavia sua vida está constantemente ameaçada no antigo Israel. São constantes as intrigas e ciladas até ser rejeitado e levado à morte, pelas forças históricas – que na verdade são as forças do mal recusando a Deus. Mas, o sangue da nova aliança, derramado por muitos para a remissão dos pecados (26,28), será ocasião expiatória que levará à exaltação do Filho de Deus, por quem vem chegando o Reino dos Céus.

O terceiro evangelista escreve, pelos anos 80, para os cristãos vindos do helenismo. O evangelista evidencia a misericórdia de seu Mestre para com os pecadores. Insiste na ternura de Jesus para com os humildes, marginalizados e excluídos, com as crianças e mulheres, com doentes e pobres, sem perder a justa condenação aos soberbos de corações, aos folgazões da vida – apesar de que no fundo Jesus é o que até espera a conversão deles à causa do reino. Em seu primeiro livro, Lucas relata com delicadeza e sensibilidade os acontecimentos com Jesus, dentro dos mistérios do Deus amoroso, sob a ação do Espírito. Jesus, o que vence o tentador (4,1-11) é o portador da luz e da salvação, inclusive para os pagãos (2, 32.30), mesmo se rejeitado pelos seus (2,34). Ele ensina a seus discípulos conhecê-lo mais profundamente, em meio a contradições e situações pequenas. Ao mesmo tempo, ensina o povo, a quem é dado conhecer os mistérios de Deus (8,10). Devotado aos seus, ao povo e a Deus, demonstra o Reino como serviço de Deus, do qual é ele o primeiro servidor, até mesmo no martírio exemplar. Ele, na verdade lucana, é de fato o Filho de Deus como salvador de todos, especialmente dos pequenos, dos pecadores e dos pagãos. É ele o mestre de vida, tanto no acolhimento quanto na dor.

No mais teológico dos quatro evangelhos, Jesus vem apresentado no embate entre Deus e o mundo, cuja aparente vitória do mundo é na verdade o gesto de amor maior daquele que dá a vida pelos seus. O Filho encarnado, pré-existente a tudo quanto existe, veio morar entre os seus. Ele é o revelador do Pai e da vida eterna que passa pela sua cruz, pela sua glorificação. Os fatos

7 Diz-se que ao todo há 118 profecias a respeito de Jesus, no AT..

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e as palavras de Jesus são sempre sinais maiores que compõem uma “história qualitativa” só possível a quem nascer de novo. É o Espírito que faz perceber isto. Entrar para seu círculo é entrar em comunhão com seu Pai, que faz brilhar a glória do Filho na paixão e ressurreição, conhecido na fé e no dom do Espírito. Esse Jesus, relativamente misterioso, é capaz de soerguer o mundo, afastando o mal ao chegar a sua hora, pois é ele quem revela e comunica a salvação como enviado do Pai – com quem mantém um relacionamento singular, a ponto de poder dizer: “eu e o Pai somos um”, “faço as obras que vejo meu Pai fazer”. Esse Jesus joanino – que avoca o testemunho do Pai sobre si – é capaz também de dizer: “eu sou” o pão da vida, o bom pastor, a porta das ovelhas, a água da vida, a ressurreição etc. Todas essas realidades indicam as necessidades profundas da alma humana, e ele pode, por isso mesmo, dizer que é “o caminho, a verdade e a vida” (14,16; cf. 11,25)

Quanto mais tempo passava, mais a lembrança viva de Jesus se perdia; não só iam morrendo os que conviveram com ele, mas também as gerações que se sucediam iam esquecendo os fatos narrados, em geral, oralmente. Por outro lado, os “seguidores do Caminho” – que começaram a ser chamados de cristãos, pela primeira vez na Antioquia, pelo ano 43, passaram a criar novas comunidades e levando a mensagem e o jeito de ser cristão para outras culturas.

Além dos discípulos de Jesus, os judeus que se foram convertendo, constituíam comunidades de vida, perseverando na oração, na fração do pão, na leitura e memória da Palavra de Deus. Adotavam modos de vida comunitários. Uns ajudavam os outros, a ponto de venderem os bens e pôr o resultado da venda em caixa comum. Tais judeus convertido, junto com os apóstolos, eram um só coração e chamavam a atenção pelo modo de viver. “Vede como se amam”, diziam os outros. 8

Esses primeiros adeptos de Jesus, após a ressurreição seguiam seus ensinamentos, procurando pô-los na vida diária, e, em meio aos adeptos do judaísmo, tinham seu modo próprio de vida. Também tiveram um modo bem plural de compreender Jesus, a quem seguiam. A pluralidade de interpretar Jesus e os modos de seguí-lo se deve às diversas possibilidades contextuais de interpretá-lo e compreendê-lo. Nenhuma por si só era oniabrangente, mesmo com o referencial comum, pois não era nem o modo de seguí-lo nem o modo de interpretá-lo que o criaram: antes, “aquele que passara pelo mundo fazendo o bem” (At. 10, 38), que morto fora ressuscitado pelo Pai, era tão plural que nenhum grupo poderia apreender toda sua “plenitude” (cf. Ef. 4,13).

8 É encantadora a descrição de um texto antigo: alias o mais antigo que descreve a vida dos primeiros cristãos depois das anotações de Paulo, Lucas e outros textos neotestamentarios: DIDAQUÈ.

Todavia, “a estrutura básica comum consiste na indissolúvel vinculação da revelação de Deus à pessoa e obra de Jesus de Nazaré: por meio dele, Deus e sua salvação tornam-se insuplantavelmente válidos (escatológicos) e são comunicados de maneira universal”.9 Esse Jesus foi “aprovado por Deus diante de vós, com milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele entre vós... que vós o matastes e Deus o ressuscitou (...) e o constituiu Senhor e Cristo” (At. 2, 22.32.36). Esse Jesus não provinha “de nenhum grupo ou tendência determinada do judaísmo. Ele as conhece, envolve-se com seus questionamentos, mas não se deixa dominar por nenhuma delas. Ele não é um homem da ordem, nem um revolucionário político; com grande liberdade passa por cima dos esquemas. Os dois únicos particularismos que ele pratica de modo muito engajado são: considerar Deus como seu Pai e agir em defesa das pessoas desprezadas, débeis, sem oportunidade e pecadores: de resto, ele se dirige ao povo todo e o chama à conversão (também os piedosos)” 10. Ele se ateve a Deus como centro de sua vida e ao projeto do Reino de Deus, a ponto de dar sua vida.

Assim, os primeiros crentes – ainda dentro do judaísmo – foram percebendo o papel histórico-salvífico de Jesus, enfatizando o homem concreto, mas escolhido de Deus (“Deus o exaltou”). À medida que – quer por pressões internas do judaísmo, quer por questões da dominação romana que pressionava com exílio e/ou “correntes migratórias” – os seguidores de Jesus foram entrando em contato especialmente com novas cultura, se viram obrigados a explicar quem eram e a quem seguiam com elementos alheios a sua origem. Se a pureza originária ia sendo perdida na inculturação, abriam-se também perspectivas novas.

Já desde o início, após a morte e a ressurreição de Jesus, sua riqueza multifacética, que era de boa conivência, também gerou tensões. À medida do distanciamento dos fatos iniciais, os diversos grupos passavam a criar suas interpretações e modos de vida, os quais nem sempre eram os mais concordes com os ensinamentos e a vida de Jesus. A Didaqué e os textos joaninos indicam tensões bem evidentes. Aí estão presentes gnósticos, ebionitas, monarquianos, docetas etc. As discussões vão se centrar ora na redução ou contestação da divindade de Jesus, ora na redução ou contestação de sua humanidade.

Todavia, houve grupos não especulativos que mantiveram um equilíbrio simétrico entre a divindade e a humanidade, como por exemplo os Padres pós-apostólicos e antignósticos. Sto. Inácio de Antioquia (+ 117) exemplifica bem este comportamento ao escrever suas diversas cartas aos magnésios, aos efésios, aos

9 KESSLER, Hans. Cristologia in SHNEIDER, Th. (org.) Manual de dogmática, Vol. I. Petrópolis: Vozes², pg.291

10 Idem, pg. 240

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romanos etc. “Deus é um”, afirma Inácio, mas vai acrescentando, de modo muito natural que o Cristo é o “nosso”, o “seu” Deus”, ou ainda ”Deus no ser humano” , a verdadeira “gnose de Deus” (Aos Efésios 7.2; 17,2). Mais tarde, Sto. Irineu (+205) enfatizará o significado salvifico de Jesus Cristo, Deus e ser humano, um e o mesmo (Adv. Haer.III 16, 2.8; I. 9,2), segundo sua substancia, capaz de mediar e reunir, de aproximar os homens de Deus (III, 18,7). Ainda Irineu vai explicar a larga que em Jesus, Deus se fez homem para que os homens se tornasse divinos.

Idéia esta enfatizada em Tertuliano (+ após 220), com modificações evidentes: Jesus, homem e Deus, com duas naturezas que se unem, mas não se confundem. Isto só se torna possível à medida, como faz Irineu, que se identifica o Deus criador como o Deus redentor e vice versa. Para Tertuliano –e daí em diante isto se vai fixando, até caracterizar toda a sotereologia do segundo milênio – Deus se fez homem, em Jesus, para restabelecer, por meio de sua morte redentora, a ordem perturbada pelo pecado. A morte é a verdadeira finalidade da encarnação, “verdadeiro fundamento do Evangelho e da nossa salvação” (Adv. Marc. III, 8,5).

A discussões dos intelectuais, bispos e teológos

A passagem para a cultura helênica, sobretudo sob a ótica do platonismo médio, vai exigir dos intelectuais cristãos desde II e III séculos, uma diferenciação metafísica entre a divindade invisível e a força de sua presença visível no cosmo. Na realidade surge a questão: como o Deus uno e transcendente poderia manifestar-se (multiplicar-se) em Jesus? A tensão entre o Uno e o Múltiplo passa a ser contemplada nos escritos dos apologistas cristãos do século II – Justino (+ 165) é um dos mais importantes - para resolver a questão da preexistência do Cristo gerado pelo Pai, antes de todas as criaturas.

Na verdade, a entrada no mundo intelectual helênico levou os cristãos a abandonarem a concretude da linguagem semita e a buscar conceitos filosóficos exatos e definidos, que levaram à grande construção da dogmática cristã, sobretudo entre os séculos IV e VIII de nossa era. Há alguns marcos que não se pode omitir, pois eles fazem parte integrante da fé, ao lado da normatividade constituída pelas escrituras sagradas do A. e do N. Testamentos.

Questões como o relacionamento do Logos-Filho com Deus-Pai levaram os bispos, pressionados pelo imperador Constantino ( 274-337) que visava à unidade do império, a declarar a divindade do Pai e a do Filho, sepultando teorias tipo: subordinacionismo, modalismo, adocianismo etc. Surge do Concilio de Nicéia (325) um credo que enfatiza mais a essência da realidade intradivina, calcada em princípios mais metafísicos que na realidade histórico-salvífica. Então a Igreja

passou a entender e crer ”num só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus (preexistente e eterno), gerado/nascido do Pai como unigênito, isto é, da substancia (ousia) do Pai (...), Deus verdadeiro do Deus verdadeiro (...) gerado/nascido, não feito, de uma só substancia como o Pai (homousios) pelo qual foram feitas todas as coisas (...); o qual, por nós homens e para a nossa salvação, desceu do céu e se encarnou, se fez homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro dia”. (DZ 125/155).

Sem ter como outro objetivo que esclarecer a fé em Jesus, os bispos e teólogos conciliares introduziram uma nova linguagem (a helênica), embora pretendendo manter a realidade redentora de Jesus – doravante enriquecida para além dos textos imediatos dos evangelhos que narravam a história singular do homem Jesus: ele é salvador porque é Deus com o Pai e como o Pai.

Estava claro, sem mais discussões: Jesus é verdadeiramente Deus como o é o Pai. Um concílio, o de Constantinopla (381) complementou a discussão de Niceia declarando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são verdadeiramente um único e não três deuses, apesar de suas diferenças: uma é a substância de Deus, mas três são suas realizações ou expressões (como Pai, como Filho e como Espírito divino). E ainda mais: Jesus é verdadeiro homem. Só assim seria o nosso salvador.

As discussões dos grandes não pararam aí. Surgiam novas dúvidas, em meio a interesses e esforços de mediação, que encontraram respostas no Concílio de Éfeso (431): Jesus, Deus verdadeiro e homem verdadeiro (integral, completo) é uma só pessoa. Tudo o que se diz do homem Jesus se deve dizer do Verbo Divino, porque ele é um só. O homem e Deus não estão unidos nele como algo misturado, mas ele é um só e o mesmo, com dimensões humanas e divinas; por isso Maria também é a mãe do Deus, o que se encarnou, viveu, sofreu e morreu por nós e para a nossa salvação e, por fim, ressuscitou e foi constituído Senhor e Cristo.

A dogmatização proposta pela Igreja praticamente se afirmou no Concilio de Calcedônia (451), quando se chegou a um consenso em que se compôs uma fórmula doutrinária capaz de unir as afirmações dos concílios anteriores com a expressão: “um e o mesmo”. Assim tudo o que se diz de Deus em Jesus se afirma ao mesmo tempo do homem Jesus: o mesmo verdadeiro Deus e homem, o mesmo consubstancial a Deus e à humanidade, o mesmo nascido (gerado) por Deus antes dos séculos e de Maria, conhecido em duas naturezas que não se confundem e nem se mudam, mas também não se dividem e nem se separam. Tudo isso veio a ser conhecido como a “união hipostática”.11

Terminadas as grandes discussões cristológicas, a Igreja se volta para outras questões que, neste artigo, não nos são importantes. Todavia, no início

11 Depois deste concilio, surgiram ainda algumas outras questões como quantas vontades Jesus teria? O que na verdade o movia? Qual a mais importante? etc.

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do século XII, surge o texto de um grande bispo teólogo, que vai estabelecer bases para um novo modo de compreender quem era de Jesus, ou melhor, qual o seu papel. Anselmo de Cantuária (de Aosta, para outros), conhecido também como Sto. Anselmo (+1109) escreveu um livrinho para dialogar com judeus e muçulmanos, sobre o porquê Deus se encarnou (Cur Deus homo?12). O livrinho teve uma influência muito grande em todo o cristianismo, sobretudo durante todo o segundo milênio. As idéias aí expressas praticamente se tornaram “a” resposta cristã: Deus se fez homem porque só alguém proveniente de Deus mesmo, por causa de sua dignidade, pudesse sacrificar sua vida, em nosso lugar, morrendo na cruz; só assim se conseguiria de obter o perdão de Deus sobre nossos pecados. Deste modo, a encarnação de Jesus estava voltada para a morte redentora.

O livro de Sto. Anselmo está datado num tempo de senhores feudais e absolutistas que tinham domínio pleno sobre a vida e a morte de seus servos. E mesmo que esta teologia tenha se tornado hegemônica, convém recordar que a Igreja não dogmatizou uma sotereologia e nem mesmo a desenvolveu muito se comparado com a cristologia. A posição anselmiana foi muito estudado por grandes teólogos; mas, nem todos lhe dão razão total. Sto. Tomás(+1274) , por exemplo, assinala a morte de Jesus como uma expressão absoluta de seu amor por nós e por Deus, mais que uma necessidade de perdão por nossos pecados.

Por causa das teorias de Freud (sadismo, masoquismo, complexos etc.), muitos teólogos de hoje discordam da posição de Anselmo por fazer de Deus alguém vingativo, justiceiro e sem amor, enquadrado nos critérios e limites das questiúnculas humanas desatento ao que é divino.

Místicos, adoradores e penitentes

As posições teológicas acima são as dos cristãos intelectuais (bispos e teólogos). E não deixa de ser a grande tradição da Igreja. Mas, terá sido assim e, sempre assim, a postura dos cristãos leigos e, porque não, até de clérigos?

– A adesão cotidiana dos fiéis cristãos (católicos) a Jesus passa por outros canais. Por vezes até bem distantes da ortodoxia doutrinária, sem ser necessariamente contra ela.

Acima fizemos a referencia a dois textos (Atos dos Apóstolos e Didaqué) sobre a vida dos primeiros cristãos, de como eles se posicionavam enquanto crentes fiéis e como viviam o que criam.

12 ANSELMO, Sto. Porque Deus se fez homem? São Paulo: Editora Cristã Novo Século 2003.

Ser cristão para eles, bem como para os de todos os tempos, é um estilo de vida. Ser cristão não comporta fragmentar a vida pessoal. O estilo de vida é global, holístico. É a partir deste “ser cristão” que se vai pensar a economia, a política, o casamento, a paternidade ou a filialidade, o estudo, enfim a vida e a morte. É óbvio que em todas estas realidades – entremisturadas de graça e pecado – há uma gradualidade. Assim, não é por ser bem intelectualizado nas “coisas da fé” que um será mais cristão que outro, que aderirá mais a Jesus que outro, que viverá uma práxis mais intensa que um outro. Também é importante perceber que a vivencia religiosa está constantemente condicionada à educação recebida. Alguém que foi instruído a viver a fé pela fidelidade aos sacramentos, sem a preocupação com o seguimento de Jesus, é quase óbvio que não se preocupará (muito) com a justiça social. Um que é introduzido na fé pela ênfase na adoração eucarística, dificilmente entenderá a necessidade de um real seguimento de Cristo. Ou aquele que recebe só a introdução à vida sacramental, certamente não chegará à maturidade da fé. Nisso, transparece a importância (educadora) da comunidade de fé.

Na história da evangelização, porém, há – por muitos motivos – comunidades inteiras que não conseguiram ou não conseguem viver a integralidade da fé por não ter quem as ensine (cf Rom 10,14) e nem lhes confira o Espírito Santo.

A memória história sobre a relação de Jesus e seus fiéis não se limita às questões teóricas da teologia. Ela também passa por outras possibilidades, sempre cercadas de várias nuances.

Assim, é válido perguntar como as primeiras comunidades cristãs, a partir da expansão missionária, seja entre os judeus seja entre os “pagãos”, entendiam quem é Jesus? Reuniam-se eles para prestar culto a ele, adorando-o? Ou para se auto-esclarecerem sobre quem era Jesus? Ou ainda, buscarem razões a fim de imitá-lo? Ou se reuniam para, fortificando-se entre si, tornarem-se suas testemunhas? Ou enfim, tudo isto junto?

Os relatos são muitos e bem variados. Atualmente, na Inglaterra, discute-se sobre se os primeiros cristãos prestavam culto a Jesus, o Cristo, enquanto Deus. Duas linhas se sobrepõem. Uma capitaneada por Larry W. Hurtado.13 A outra é liderada por J. G. D. Dunn14

13 Cf. HURTADO, Larry, W. Lord Jesus Christ. Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Michigan Wn B. Eedmans, 2003. Também em espanhol: Señor JesuCristo. La devoción a Jesús en el cristianismo primitive. Salamanca: Sigueme, 2008

14 DUNN, J.G. D. Did the Firsdt Christians Worship Jesus? The New Testament. London: SPCK, 20119. Também em espanhol: Dieron culto a Jesus los primeros cristianos. Estella (Navarra): Ed. Verbo Divino, 2011.

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Para Hurtado, o culto a Jesus tem início em algo como uma explosão simultânea em várias comunidades primitivas, logo após a morte e ressurreição de Jesus, que incluía os próprios apóstolos e discípulos. Esses cristãos proclamavam e adoram Jesus como Deus, vivendo e morrendo por ele, bem antes do desenvolvimento dos credos e das doutrinas, do início de século II. Foi a devoção a Jesus como Senhor à direita de Deus (Pai) a fonte propulsora do culto binário a Deus – que incluía Jesus. Os problemas desta assertiva não estavam na divindade de Jesus, mas no compreender, em sua devoção, a verdadeira dimensão humana e o significado de Deus. Dado o pressuposto da divindade, decorriam os cultos, os ritos e as devoções que alimentavam a certeza tão rapidamente difundida: ele era Deus, como o Pai e, por isso, se lhe prestava culto. A devoção a Jesus e o reconhecimento de sua divindade não é, para Hurtado, o resultado de uma processo, mesmo que rápido, mas a explosão de sentimentos religiosos desde sua ressurreição.

Dunn defende a idéia de que os primeiros cristãos estavam convencidos de que em Jesus se havia aberto uma porta nova e definitiva na relação recíproca entre Deus e os seres humanos. Os títulos divinos atribuídos a ele tinham uma função paradoxal: ao mesmo tempo revelavam sua identidade, mas impediam os cristãos de porem, a seu capricho, o mistério insondável e abissal de Deus nele revelado. Jesus não abre totalmente o mistério, tampouco o fecha; antes, o entre-abre. Ele é o sentinela do ser de Deus e do ser do homem. O Deus único(o Pai), e só Ele, recebe a adoração – mesmo que seja por meio de Jesus na força do Espírito.

Dunn historia o significado evolutivo do fato Jesus, afirmando que no cristianismo primitivo foram sendo assentadas todas as variáveis para confirmar a devoção a Jesus. De modo óbvio, tal devoção não tem os parâmetros e a sofisticação atuais. Mas, lá estão configuradas as crenças, as convicções fundamentais, as possibilidades do desenvolvimento doutrinal (e dogmático) e a prática devocional, que levarão a entendê-lo mais tarde como Deus mesmo. Apesar de que alguns tenham afirmado que a devoção surgiu para contrapor a outras divindades epocais, é fato que a proto-ortodoxia foi estabelecendo bases teóricas para uma nova compreensão do significado de Deus a fim de melhor entender Jesus. Tal processo foi um crescendo nos círculos judeucristãos, inclusive da diáspora, gentios e helenistas em geral. Isto daria fundamento ao sentido de Jesus como salvador e Deus mesmo.

Esse história da origem da compreensão de Jesus como Deus desde os primeiros dias após sua morte ou a partir do período da dogmatização, é em boa parte é desconhecida da maioria dos cristãos hodiernos que o professam, em geral, como Deus desde a anunciação (Maria sabia que seu filho era Deus) sobretudo na celebração do natal: nasceu o menino-Deus...

Bem outra é a história da história de Jesus no inicio da implantação do cristianismo na capital do imperio. .Os primeiros cristãos em Roma foram progressivamente penetrando, o tecido social da cidade, a partir dos pobres, como eles, e dos judeus. Para chegar a isto, convém não esquecer as querelas iniciais entre cristãos e judeus migrantes na capital imperial, as perseguições especialmente de Nero, a culpabilização dos cristãos pelo incêndio de Roma, os martírios constantes. Como ser seguidor de Jesus neste contesto? E como compreendê-lo? Como foi a compreensão dessa história?

A vida de fé foi vivida, durante muitas décadas nas casas e nos cemitérios/catacumbas. Alguns cristãos também se manifestavam de modo mais público, mesmo sob as constantes ameaças. Roma viveu, no inicio do cristianismo, uma “psicose” de martírio e de perseguição Os martírios, que passaram a ser freqüentes, tornavam-se fonte de encorajamento e testemunho para viver o seguimento de Jesus. É provável que os cristãos fossem notados por seus comportamentos públicos e pessoais cheios de ética, que fossem exemplares na vida familiar e social, que se distinguissem pela ação caritativa entre os pobres: mas por serem considerados ateus - não prestavam culto ao imperado - tinham uma “religião ilícita”, dizia-se. Em certa ocasião (ano 111) o próconsul de Bitínia, Plínio, o Jovem (62-113), consultou o imperador Trajano sobre o que fazer com os cristãos – que eram homens bons, apesar de serem supersticiosos e entoarem hinos a um certo Cristo como a um deus.

Têm-se poucos documentos deste período para compreender como eles apresentavam Jesus, a quem seguiam pelo modo de viver no cotidiano, nos cultos e nas artes. Aliás, as raras pinturas e imagens de Jesus encontradas, até hoje, nas catacumbas, mostram Jesus como o Bom Pastor, como um peixe ou pescador ou como homem orante.

Uns três séculos após a ressurreição de Jesus, os cristãos tinham se tornado dezenas de milhares na capital, a ponto de o imperador Constantino fazer do cristianismo a religião oficial, certo de que – até independentemente de seu significado religioso intrínseco – dava o melhor passo para a união e manutenção do império.

Após a legalização do culto e a oficialização da religião, sem dúvida, a grande maioria dos cristãos continuou firme em sua fidelidade a Jesus. E a ele tributavam o sentido de suas ações, de suas vidas. Mas, o cristianismo, agora transformado em religião do império, deu as bases cristãs ao Estado, que progressivamente transformou-se no “Imperium Christianorum”, primeiro como Império Bizantino, depois Carolíngio e, por fim, Sacro Império Romano. Neste processo, muitos cristãos, “sepultados na vida como velhos homens, e renascidos como homens

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novos pelo batismo” (cf. Rom, 64) se afastavam dos hábitos e estruturas do “velho” mundo, deixando comércio, açougues, teatros, arte e literatura pagãs, serviço militar, certos esportes, cultos e banhos públicos. À medida que aumentava a estabilidade cristã do império, a progressiva conversão dos povos românicos, celtas, germânicos e eslavos, passaram a surgir mosteiros que iriam orientá-los, dando-lhes conhecimentos e indicações da prática cristã.

É de se supor que se a religião do rei, do príncipe, era a religião do povo, então à medida que os governantes adotavam o cristianismo iam se entremisturando também a fé culta e pura com as superstições pagãs, gerando sincretismo cristão entre todos os povos. Por outro lado, a escassez de missionários e de mosteiros, não apenas deixava o povo abandonado, mas também pouco instruído. A Igreja, já antes do início do segundo milênio, tinha se tornado uma força político-religiosa estendida por todo o ocidente. Assumiu e transformou circunstancias histórico-sociais e religiosas das culturas, sobretudo, romana e anglo-germânica, para criar uma cultura de cristandade.

Como se compreendia, então, quem era Jesus Cristo, em tempos que eram raríssimos os letrados e um grande número de monges e padres era composto de analfabeto, inclusive muitos mal sabendo latim – consequentemente quem conheceria a Bíblia? Tudo era ou por ouvir dizer ou pela visualização nas “chamadas bíblias dos pobres” (os vitrais das igrejas).

Pode-se dizer que no segundo milênio, especialmente no medievo, se encontrariam, facilmente, quatro grandes grupos de cristãos que se tornaram significativos para a compreensão de Jesus neste período: os místicos, os adoradores, os penitentes e os artistas, entre esses os poetas e dramaturgos também.

Como acreditar que a grande conquista intelectual dos séculos de ouro da cristologia (a dogmática) pudesse fazer parte da compreensão e vivencia dos subordinados aos senhores feudais, dos camponeses e das mulheres (mães, principalmente), se até mesmo nos mosteiros e conventos havia tanta ignorância? Que cristologia haveria de passar por estes tempos? – Como estas perguntas não podem ser diferentes para outros tempos, anteriores e posteriores, convém situar a vida cristã na história, outra vez.

Enquanto a herança e o desenvolvimento das culturas predominantes, greco-romana e anglossaxônica, ocorriam nos grandes centros urbanos, e aí, nos círculos dos nobres, intelectuais e ricos; sobravam as “migalhas” do cristianismo para o povo (a plebe). E quem era Jesus para eles? Lembremos: por causas dos medos dos inimigos, dos invasores, dos animais ferozes, das doenças e pestes, no tempo do feudalismo se vivia apinhado nos morros ao redor dos castelos, subservindo ao monarca – que era o patrocinador, inclusive da religião. Aos

medos dos feudais eram acrescentados – desde os tempos fortes dos monges de Cluny, motivadores das confissões auriculares - os medos do pecado, por causa do inferno. Daí em diante, passou-se a desenvolver uma cultura cristã em torno do Crucificado e de um dolorismo cheio de Vias Sacras, Mater Dolorosa, almas do purgatório, autos da paixão, culpabilizações da morte do Senhor pelos pecados da humanidade, de jejum, penitência, auto-flagelação etc., ao lado das situações, cheias de ternura, do Menino Jesus do presépio.

Para “fugir do mundo”, muitos homens se recolheram aos mosteiros, como o de S. Bento de Núrsia (480-547) – recriando os antigos monaquismos do romano Pacômio (292-346) na oriental Tebas (Egito), de Atanásio no ocidente (durante seu exílio em Tréveris (340-346), de Basílio Magno (330- 379) na Igreja Bizantina. Ao redor destes mosteiros europeus desenvolveu-se uma vida de penitência e sacrifico em meio à doenças e pestes, fomes e vida pesada. Ganhava espaço uma piedade centrada na paixão e morte do Senhor: algo para ser contemplado, amado e chorado. A devoção a tudo que girava em torno da cruz de Jesus e de suas dores se complementava com a vida crucificado dos povos e pessoas que se identificavam com Ele.

Multiplicadas as “devoções doloristas” centradas na paixão e morte do Senhor, tornava-se fácil o surgimento de penitentes tanto individuais quanto em grupos, tendo à frente, místicos e santos (de profunda espiritualidade), que geravam seguidores nos mais diversos graus de “santidade e loucura”. Esses penitentes se prolongam ainda hoje naqueles que se auto-flagelam nas sextas-feiras santas, com em Manila, na Espanha e América espanhola, além de outros lugares.

O segundo milênio construiu-se entre a cruz e o desprendimento, entre a autoflagelação e os misticismos, entre o desprezo ao mundo e a santidade interior, ora num processo devocional intenso ora na contemplação em meio à “noite escura”.

Mas, nem tudo esteve ligado apenas ao Cristo sofredor. Neste tempo, foram desenvolvidas muitas devoções centradas em outras dimensões de Jesus. Adoradores e adoradoras do Santíssimo Sacramento apareceram por toda a Europa. Místicos e beatos, com suas visões, criavam o gosto pela adoração e devoção à Sagrada Eucaristia (Como não lembrar a festa do Corpus Chisti?). Na França, Alemanha, Espanha, Países Baixos, Itália etc., foram fundadas centenas de ordens e congregações – masculinas e femininas - dedicadas ao Sagrado Coração de Jesus. Apareceram inúmeros livros de piedade que incentivam uma comunhão mística com o Senhor, dos quais o mais famoso é a “Imitação de Cristo”.15

15 Atribui-se a Thomas de Kempis a autoria de “Imitação de Cristo, que em português é feita nova edição todos os anos pela Vozes, de Petrópolis. Sabe-se que este livrinho estava na cabeceira do papa João João Paulo I, por ocasião de sua morte, em 1978

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Artistas plásticos produziram expressivas imagens para sustentar esta piedade, incluindo uma expressividade tal que raiava a uma projeção de imagens que pareciam falar, gemer e chorar. Algumas pinturas do rosto de Jesus se tornaram célebres; mas, não se pode esquecer a face dele nos populares “santos sudários”, dos quais o mais famoso é o de Turin, e o do Véu de Verônica. A eles devem ser somados os poetas e dramaturgos, com seus autos, que expressam em seus textos esta mesma espiritualidade dolorista e/ou de uma mística tão elevada a ponto de quase materializar o mistério.

Quem foi então Jesus no segundo milênio senão aquele que devia ser adorado, amado, chorado e imitado? Quem foi Jesus no segundo milênio senão que aquele que era conhecido e “divulgado” pelo clero e autoridades eclesiásticas – os únicos que tinham acesso ao Evangelho, mas eram extremamente versados na dogmática – e, sobretudo, pelos pais/mães e pregadores ambulantes?

O Brasil e a América Latina,durante cinco séculos, foram evangelizados à sombra do Crucificado (veja-se o valor da Sexta-feira Santa, dos crucifixos, das Via-sacras e correlatos), da devoção ao Santíssimo Sacramento e do Sagrado Coração de Jesus (veja-se a devoção das primeiras Sextas-Feiras do mês, da força do Apostolado da Oração, do número de igrejas dedicados ao Coração Santo reparador dos pecados humanos.). De modo muito intenso, no crucificado se via o Deus crucificado por nós; nas devoções à eucaristia, o Deus presente na hóstia consagrada e no culto ao Sagrado Coração, o divino que em chamas de amor age por nós e por quem se deve reparar os pecados no mundo. No fundo para valorizar Deus, se desvalorizava, na prática, o homem Jesus. A piedade popular pode facilmente incorrer num docetismo camuflado.

Daí decorrem a força e a fraqueza da fé entre nós, na compreensão de quem é Jesus. Por um lado, imagens do Cristo Redentor (do Corcovado no Rio de Janeiro e inúmeros outros lugares, é a expressão simbólica de um Cristo docético... distante... que diz quase nada, pois se tornou menos ainda que uma fonte de adoração e de imitação. Por outro lado, há uns “Jesus” da coluna, do bairro ou do lugar tal, ao lado de outras devoções tão enfraquecidas ou despersonalizadas como algumas que se percebe já a primeira vista ser apenas “o espírito mais aperfeiçoado dentre todos os homens” (que nem precisa ser Deus e muito menos libertador/salvador). Em algumas ocasiões paralitúrgicas, Jesus “no ostensório que passeia no meio do povo” serve para abençoar todos os objetos tocados por ele (como mais um objeto de devoção)16. As comoventes encenações na paixão, cada vez mais popularizadas, originalmente eram ocasiões paroquiais para despertar a fé e a piedade; todavia desde que passaram a ser espetáculos públicas e midiáticos – e desligados de um processo evangelizador – se tornam apenas um

16 Não quero afirmar que todos os cultos e bênçãos eucarísticos sejam isto ou só isto.

elemento cultural que fomenta religiosidades descomprometidas com a verdade de Jesus e o anúncio de seu Reino.

Alguém já chamou a atenção que no Brasil, popularmente, chegou-se a algumas posturas que podem assim ser sintetizadas: o Cristo morto, o Cristo distante, o sem poder, o que não inspira respeito e/ou o desencarnado.17 A esta lista, pode-se falar do Cristo milagroso, de Jesus santo entre outros santos, do Jesus sofredor ou da Paixão. Imagens do “doce e amado” Jesus, “meigo redentor”, “grande amado”, “bom amigo” indicam dimensões muito subjetivas, que tendem ao individualismo (católico e protestante), capazes de construir um Jesus intimista, “meu salvador e redentor”, num clima de familismo.

No entanto, convém chamar a atenção que na história da história de Jesus entre nós, no Brasil e na América Latina, nas últimas cinco décadas tem houve um grande incremento na práxis e na teorização sobre Jesus libertador. Milhares de comunidades e grupos, com centenas de assessores, discutiram e rezaram, aprofundaram a vivência espiritual e encaminharam seus projetos e trabalhos pastorais à luz da cristologia libertadora. Nunca se vira isto antes nesta América meredional e que, no entanto, agora vai dando lugar no presente à devoção e adoração eucarísticas.

A história da história de Jesus é um processo bimilenar que pervade toda a cultura do ocidente, desde os antigos povos europeus, tão cheios de outros deuses ricos de tradições, mitos e magias, até os povos novos – como os da América Latina – também cheios de sincretismo, a ponto de envolver espiritualidades afro, espíritas, indígenas com folclores e lendas. Nem sempre os cristãos têm conseguido o equilíbrio melhor entre a devoção, a adoração e a penitência, com o compromisso, o testemunho e o seguimento.

Nas apresentações de Jesus na história devem ser recordadas também as dimensões da “burguesia moderna” provenientes da Europa ocidental, mesmo com certos pressupostos filosóficos, como os de Lessing (+1781), Kant +1804), Marx ( +1883), que propuseram Jesus como “o pedagogo”, “o mestre”, “o filantropo”, “o libertador político”, em síntese “o melhor e o mais perfeito dos homens”. Tais imagens geraram, no meio do povo, concepções que levaram ao encontro do “menino Jesus com cabelos loiros e olhos azuis”. Ou ainda, seja no âmbito católico ou protestante, construíram-se imagens subjetivas do “meu Jesus”, o que perdoa meus pecados, pois por mim morreu na cruz.

Nestes tempos, percebe-se um novo movimento na vida eclesial católica. Muitos dizem ser ele de um retorno. Parece que das concretudes e proposta de

17 Cf. ARAUJO, João Dias. Imagens de Jesus Cristo na cultura do povo brasileiro, in BOFF, L et alii. Quem é Jesus no Brasil? São Paulo: ASTE, 1974, os 39 ss.

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Jesus sobre o Reino que já está próximo (cf. Mc. 1,15), quer-se reencontrar (quase de modo agressivo) Jesus na Eucaristia, para ser amado e adorado. Entretanto, alguns conseguem lembrar que ele deve ser imitado. Enquanto outros o lembram como libertador que deve ser testemunhado como o que veio revelar quem é Deus e implantar seu Reino de Justiça e de verdade. Quem ousasse perguntar quem é Jesus entre nós poderia criar um certo embaraço para a resposta, pois Jesus não tem uma dimensão só. Ele é bem mais rico que o dogma do clero, que as narrativas dos simples, que a devoção (por vezes, devocionismo) de grupos. Suas múltiplas faces estão interligadas e devem interagir na vivência da fé. Ele deve ser amado, adorado, imitado, tanto quanto testemunhado e seguido. Ele é e continua sendo sempre o caminho para Deus e para o irmão. Nós o conhecemos, primordialmente, pelos evangelhos no contexto bíblico; depois, pela ampliação intelectualizante dos grandes Concílios cristológicos, pela compreensão contextualizada da fé, pontualizado pelo magistério e pelo “sensum fidelium”. Jesus, em quem cremos e queremos seguir e testemunhar, é alguém do nosso mundo e do mundo de Deus, sempre maior que nós.

Jesus é plural

É interessante observar até mesmo a cristologia do papa Bento XVI, insatisfeito com as idéias desenvolvidas sobre o Jesus histórico. O teólogo papa propôs-se à tarefa de retraçar uma figura contemporânea de “Jesus de Nazaré” desde o inicio de sua vida pública18 até (alguns esboços sobre a) ressurreição19, prometendo um terceiro volume sobre a infância de Jesus. A preocupação do papa teólogo não foi a tradicional reafirmação do dogma, certamente por estar convencido que muitos já não entendem esta linguagem e outros não se importariam com ela. Ratzinger buscou, desde os evangelhos em primeiro lugar, apresentar convincentemente (o seu) Jesus para o homem de hoje (sobretudo europeu culto e de primeiro mundo, mesmo com a pretensão de universalização). É certo que o papa Ratzinger escreveu seu “Jesus de Nazaré” não pelo simples prazer de teologizar sobre o tema; mas para pontualizar a nova questão cristológica (Jesus histórico) evidenciando, em meio a um crescente “analfabetismo religioso”, a necessidade de apresentar outra vez Jesus, porém tendo como ponto de partida a revelação bíblica.

Recuperar o Jesus “bíblico”, no contexto do séculoXXI, sem perder as grandes intuições do passado, é uma tarefa a que muitos vem se propondo.

18 Ratzinger, J./ Bento XVI. Jesus de Nazaré. Do batismo no Jordão até a transfiguração. S. Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2007

19 RATZINGER, J/ Bento XVI. Jesus de Nazaré. Da entrada em Jerusalém até a ressurreição. S. Paulo: Ed. Planeta, 2011 (no prelo) .

Muitos na América Latina, ao invéz de partir de um Jesus ontologizado, têm preferido fazer uma cristologia descendente ou seja: do Verbo que se fez carne e habitou entre nós: ele é Jesus o Cristo. Outros tem buscado uma cristologia ascendente, procurando descobrir Deus no homem de Nazaré, pois tão humano assim só poderia ser Deus entre nós.

Se na história de Jesus, durante muitos séculos, o seu nome e a sua pessoa, foram suficientes, parece que hoje torna-se igualmente importante a consciência de seu papel salvífico. Ao lado de uma cristologia, rica e milenar, faz-se necessária uma abertura para superação da sotereologia tão “precária” destes dois milênios de história.

É importante lembrar ainda que também a sotereologia é plural desde o NT. Ela, a partir de Tertuliano foi se fixando na necessidade de restabelecer a ordem perturbada pelo pecado, portanto de voltar às origens antes do pecado. A morte de Jesus seria a finalidade de sua vinda ao mundo. Posição esta bem diferente da de Sto. Irineu que encontrava o significado sotereológico na elevação e consumação da humanidade, e a morte de Jesus como um momento de sua trajetória no grande processo da realização do plano salvador de Deus20.

Ninguém e nenhum grupo algum pode dizer: “sou dono dele ou de sua história”. Ao contrario, Ele é o Senhor nosso e só Ele é o Senhor de todos. Assim, a histórica plurissemia, tanto intelectual quanto popular-devocional, não esgotam a história da história de Jesus e nem mesmo o seu significa. O que vale, é ele mesmo Deus entre nós, como um Deus que nos ensina a caminhar seu Caminho de Verdade e Vida e nos conduz à plenificação junto do Pai.

20 KESSLER, Hans. Op.cit. pg.302

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ZAQUEU: O ‘VER’ QUE REORIENTA A VIDA: LC 19,1-10

Rivaldave Paz Torquato, O. Carm. *

RESUMO: O artigo é uma abordagem do episódio de Zaqueu na perspectiva da reciprocidade do olhar e suas implicações. Querendo ver Jesus, Zaqueu é visto por ele. O ver como experiência de um encontro com Jesus que muda a vida, que permite ao excluído redimensionar a própria existência e sentir-se impelido a ver também o outro. A experiência que tranforma religião em ética. Para tanto, são apresentados alguns exemplos no AT mostrando que o ver de Deus, antes de ser uma expressão de controle moralizante e punitivo, exprime sua providência que abre sempre uma nova possibilidade ao ser humano na sua miséria. Enquanto espera-se que o que é visto, também veja. Este duplo ver (divino e humano) no AT juntamente com uma breve contextualização literário-teológica do próprio Evangelho servem de base para a abordagem do texto lucano. Ao mesmo tempo o episódio de Zaqueu deixa transparecer claramente a crítica de Jesus contra uma ideologia de exclusão disfarçada em nome da fé.

PALAVRAS CHAVES: Zaqueu; O ver de Deus; Reciprocidade humana do olhar; Evangelho de Lucas.

ABSTRACT: The article is an approach of the Zacchaeus episode from the perspective of the respective reciprocity of the gaze and its implications. Wanting to see Jesus, Zacchaeus is seen by him. The act of seeing, as experience of an encounter with Jesus that that changes lives, allows for someone excluded from, that he resize the own existence and feel compelled to also see the other. The experience what transforms religion into ethics. For this, we present some examples in the Old Testament showing that the act of seeing God, before there was such an expression of control moralizing and punitive, expresses his providence which always opens a new possibility to the human being in his misery.While it is expected that which is seen also see. This dual view (divine and human) in the Old Testament with a brief literary-theological contextualization of the proper Gospel, serves of basis for the approach of Lucan text. At the same time the episode of Zacchaeus reveals clearly critical of Jesus against an ideology of exclusion disguised in the name of the faith.

KEY WORDS: Zacchaeus; The seeing God; Human response to the gaze of God; Gospel of Luke.

Artigos

* Mestre em Ciênciass Bíblicas, pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e doutor em Sagrada Escritura pela Westfälische Wilhelms-Universität de Münster – Alemanha (WWU), professor do Studium Theologicum de Curitiba.

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1 – Introdução

“Foi preciso, contudo, ele morrer: via com olhos que tudo viam; via as profundidades e os abismos do homem, toda sua oculta ignomínia e fealdade. [...] Foi mister morrer o mais curioso, o mais importuno, o mais compassivo. Sempre me via; quis vingar-me de tal testemunha ou deixar de viver. O Deus que via tudo, até o homem: esse Deus devia morrer! O homem não suporta a vida de semelhante testemunha” (Zaratustra IV: O Homem mais feio).1

Neste texto, o filósofo fala do Deus “espião” cujo olhar penetrante tudo controla e não deixa escapar nada que fira os parâmetros da moral, deixando o homem sem a menor chance de resistir. Esta visão corresponde à mentalidade de muita gente. Não são poucos os que concebem Deus como aquele que tem nas mãos uma caderneta e anda por aí tomando nota de tudo o que o ser humano faz de errado para depois puni-lo devidamente. Ele, com seu olhar onipotente e onipresente, tem sob controle todos os movimentos e pensamentos do indivíduo. O ver de Deus é moralizante, aguça o escrúpulo e o pavor. Que superego! Mas o ver de Deus é isto? Vamos ao texto bíblico, talvez haja outra perspectiva. Apresentar-se-á alguns casos no Primeiro Testamento onde aparece o ver divino e humano. Formar-se-á assim um pano de fundo que poderá ajudar a entender, no Segundo Testamento, o caso específico de Zaqueu.

2 – O ver (divino e humano) no Primeiro Testamento

Este tema é muito abrangente e exprime-se de vários modos e com diferentes verbos.2 Não tem-se aqui a ilusão de fazer uma abordagem completa, mas tomar-se-á alguns exemplos que sejam iluminadores para o propósito imediato e limitar-se-á ao verbo ver da raiz har / o`ra,w.

Na impossibilidade de Sara gerar o filho da promessa (Gn 16), Abraão toma a serva Agar, que uma vez grávida passa a desprezar Sara (v. 4). Como reação, Sara a maltrata a tal ponto que ela deve fugir (v. 6b.8b). O anjo do Senhor aparece a Agar, fala da gravidez e manda que ela dê o nome do filho de Ismael e justifica: “pois o Senhor ouviu tua aflição” (v. 11). E Agar em resposta dá a Deus um nome: “tu és El-Roi” (yairÕ lae hT;a¾ / su. o` qeo.j o` evpidw,n me), isto é, “aquele que (me) vê” (yairo v. 13). Agar também vê: vi aquele que me vê (yairo yrej}a¾ ytiyair: / ei=don ovfqe,nta moi). A relação é pessoal como indica o pronome de 2ª pessoa tu e a própria reciprocidade do ver.

1 F. NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2002, p. 202, cursivo nosso. 2 Para alguns exemplos de verbos do campo semântico da visão com algumas citações: hzj (Is

26,11; 48,6; Jó 19,26); fbn (Is 5,30); Åwx (cf. Åyxime ptc. - Ct 2,9); jgv (Is 14,16; Sl 33,14); rwv (Os 13,7; 14,9; Jó 35,5); ¹zv (Jó 20,9; Ct 1,6); h[v (com a prep. B] por ou ÷mi de) (Sl 39,14; Gn 4,4); ¹qv (+ ÷mi, la, / l[¾, d[¾B]) (Gn 18,16; 19,28; Ex 14,24); har.

Ambos se vêem. Deus recebe o título de “aquele que vê” porque ouviu a aflição de uma maltratada e errante pelo deserto e a assiste (vv. 6b-12).

Levando o filho, sua única esperança, para sacrificá-lo (Gn 22), Abraão ouve a cruel pergunta de Isaac: “Meu pai ... eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” (v. 7). Abraão responde: “É Deus quem verá (/LAha,rÒyI / o;yetai e`autw/|) o cordeiro para o holocausto, meu filho” (v. 8). E ambos caminham juntos para um beco aparentemente sem saída. No momento de sacrificar a esperança, o anjo do Senhor aparece (vv. 11-12) e Abraão levanta os olhos (avnable,yaj ... toi/j ovfqalmoi/j) e viu (arÒY®w® / ei=den) um cordeiro (v. 13). Abraão dá o nome do monte de: “o Senhor verá/viu (ha,rÒyI / ei=den)” (v. 14a). A experiência de Abraão torna-se uma confissão de fé: “Daí se diz até o dia de hoje: no monte do Senhor se verá (ha,r:yE / w;fqh)” (v. 14b). O ver de Deus é uma expressão da providência que não elimina, mas assegura a esperança. Enquanto o ver do homem exprime a experiência da providência divina que abre saída no beco.

Jacó tinha duas mulheres, Lia e Raquel (Gn 29). O “Senhor viu (arÒY®w® / ivdw.n) que Lia era odiada (ha;Wnc]) e abriu-lhe o ventre...” (v. 31), isto é, tornou-a fecunda. Lia concebeu e deu à luz a um filho, que chamou Rúben (v. 32a) e justifica: “porque (yKi) o Senhor viu (ha;r: / ei=de,n) a minha aflição. Agora meu marido me amará” (v. 32b).3 Outra vez o ver de Deus vai ao encontro da miséria de Lia, abre-lhe uma oportunidade nova com a perspectiva de que o ódio seja revertido em amor.

No Egito, “os israelitas estavam gemendo sob o peso da servidão e clamaram do fundo da servidão...” (Ex 2,23). E “Deus viu (arÒY®w®) os israelitas...” (v. 25) e em seguida declara enfaticamente: “eu vi, eu vi (ytiyair: haor: /ivdw.n ei=don) a aflição do meu povo... ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores” (3,7). E toma partido: “desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios ... para uma terra que mana leite e mel” (v. 8). O ver de Deus é um rompimento com a indiferença, assumindo a causa do fraco dando-lhe uma perspectiva completamente nova. Este ver quebra a neutralidade.

Elcana possuía duas mulheres, Ana e Fenena (I Sm 1,2). Ana era estéril e Fenena a humilhava (v. 6). O sofrimento era, portanto, duplo. Ana, na sua amargura, apresenta-se diante do Senhor no santuário e ora chorando (v. 10): “Senhor dos exércitos, se vês, verás (ha,rÒti haor:Aµai / eva.n evpible,pwn evpible,yh|j) a aflição de tua serva ... e lhe deres um filho...” (v. 11). O Senhor se lembrou dela e ela concebeu e deu à luz Samuel (vv. 19-20). Ana promete levá-lo ao templo “para ser visto (ha,rÒniwÒ / ovfqh,setai) perante a face do Senhor” (v. 22). O ver divino erradica a esterilidade enquanto torna a pessoa fecunda e a inclui.

3 O Deus que vê a aflição é uma constante no Primeiro Testamento. Veja por exemplo: Gn 31,42b; Ex 3,16-17; Dt 26,6-9; I Sm 9,16; II Rs 13,4; 14,26-27; 20,5; Ne 9,9; Sl 31,7; 106,44; 119,153.

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Os exemplos poderiam se multiplicar, mas estes servem como paradigma para mostrar que o ver de Deus abre sempre ao ser humano uma possibilidade nova onde a realidade da vida lhe fechou as portas. Quando Deus vê a pessoa na sua miséria, ele a assiste com sua providência, manifesta a sua salvação. Não é um ver virtual, mas ultrapassa as aparências. O ver divino, para além de qualquer expressão moralista, desencadeia uma atuação salvífica que regenera a pessoa na sua impotência, fraqueza e desespero. Todavia, este ver é recíproco. Espera-se uma reciprocidade de olhar. Se o ver de Deus faz tudo isso, o ser humano, por sua vez, vê tudo isso, ou seja, faz a experiência de tudo isso.4 Ele é agraciado com esta atuação salvífica. Aqui os olhares divino e humano se encontram. Por isso encontraremos com abundância, sobretudo, no saltério o vínculo: ver (a face de Deus) – salvação.5 No Sl 80, por exemplo, o salmista reza: “Ó Deus... faze tua face brilhar e seremos salvos!” (v. 4.8.20). O ver divino liberta, salva, é assistência providente (Sl 33,18). Por isso ver Deus é o núcleo da sede do ser humano (Sl 42,3). O ver a face de Deus – sobretudo nos salmos – conota, portanto, a intimidade da presença divina, uma proximidade, uma reciprocidade.6 Voltemos ao Gênesis!

Observando a figura de Jacó, ele rouba duplamente Esaú, seu irmão. E o irmão lesado afirma: “Com razão se chama Jacó: é a segunda vez que me enganou. Ele tomou meu direito de primogenitura e eis que agora tomou minha bênção (ytik;rÒBi jq¾l;)!” (Gn 27,36). Mais tarde, na sua experiência mística, Jacó combate com Deus e dá o nome do lugar de Fanuel e justifica: “porque eu vi (ytiyair: / ei=don) a Deus face-a-face e a minha vida foi salva” (Gn 32,31). Jacó faz a experiência de Deus, tem um encontro face-a-face com ele, experiencia a salvação. Na sequência (literária), Jacó volta a encontrar seu irmão Esaú e diz: “eu te peço... toma (T;j]q¾l;) a oferenda de minhas mãos. Pois vi (ytiyair: / ei=don) a tua face como se vê (taorÒKi / i;doi) a face de Deus7 e tu me recebeste bem. Peço-te pois, toma (an:Ajq¾) a minha benção (ytik;rÒBi / euvlogi,aj) que te trouxe porque Deus foi misericordioso comigo... e Esaú aceitou” (Gn 33,10-11). A trama e a terminologia permitem concluir que a experiência de Deus devolve um novo olhar a Jacó.8 O

4 O ver Deus por parte do homem, na verdade, não significa que Ele se torna objeto do olhar humano. Ver Deus significa ser acolhido ou admitido na sua presença. Ver Deus é, na realidade, ser visto por ele, experienciar a sua manifestação salvífica. O ver do homem é efeito, o de Deus é causa. Ele nos precede.

5 Cf. Sl 31,17; 44,4; 67,2-3.6 Cf. Jó 13,3; Sl 17,15; 24,6; 27,8; 105,4; Is 38,11.7 Esta expressão “face de Deus” evoca justamente a experiência mística de Gn 32,31 e que deu o

nome do lugar Fanuel = face de Deus. Toda a cena do encontro com Deus está inserida dentro da preparação do encontro entre os dois irmãos iniciado em 32,3ss.

8 É forte e sugestiva a equiparação no v. 10: “vi tua face como ver a face de Deus”. Ver o Outro no outro evoca Mt 25,37-39.44: “Senhor, quando foi que te vimos (o`ra,w) com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso...?”

encontro, o ver Deus face-a-face o faz redescobrir o outro face-a-face e restituir o que tinha roubado.9 Restaura-se as relações.

O homem visto e agraciado por Deus é chamado a ver e agraciar seu semelhante erradicando aquilo que o diminui e desumaniza. Aquele a quem Deus vê, é chamado a ver o outro também e abrir-lhe uma possibilidade nova (imitatio Dei). Emerge daquele que é visto uma dimensão ética. O ver implica deslocar-se na direção do outro na sua indigência e penúria.

No passo seguinte ver-se-á como tudo isto encontra eco na encontro de Zaqueu com Jesus. Zaqueu querendo ver, é visto por Jesus. E visto vê.

3 – O ver no Segundo Testamento: o caso de Zaqueu

3.1 - O contexto literário-teológico

Jesus apresenta na sinagoga de sua cidade o seu programa de ação (Lc 4,18-19) e a seguir começa a executá-lo (4,14-9,50) não só pela palavra,10 mas também pela ação, isto é, fazendo inúmeras curas11 e chamando ao seguimento.12 Ele não só proclama que os quebrados da vida são felizes (6,20-23), mas realiza tal felicidade erradicando suas desgraças pelas curas e pelo perdão. Tarefa que ele partilha com os chamados. Tudo culmina no duplo anúncio da paixão (9,22.43b-45) e nas condições do seguimento (9,23-26.46-48). Em seguida começa sua viagem de subida para Jerusalém (9,51). A parte seguinte do Evangelho (9,51-19,27) é a – que podemos chamar – seção do caminho como indica os vários indícios.13 Em 9,28-29 Jesus se encontra já às portas de Jerusalém para dar ali continuidade ao seu ministério até a morte.

Ao longo deste caminho Lucas procura responder à pergunta “quem entrará no Reino e como?” Mostra que também os social e teologicamente banidos ou perdidos terão seu lugar no Reino. Isto é mais acentuado na parte conhecida

9 A atitude de Jacó para com o irmão lesado é precedida de dois outros gestos: prostra-se sete vezes antes de abordar Esaú (33,3) e apresenta-se a Esaú como seu “servo” (33,5). Entre estes dois gestos “Esaú, correndo ao seu encontro, tomou-o em seus braços arrojou-se-lhe ao pescoço e, chorando, o beijou” (33,4). É o lesado, a vítima, perdoando o enganador. É a atitude que reencontraremos em Lc 15,20 no pai que acolhe o filho pródigo, episódio que antecede e, de certa forma, prepara aquele de Zaqueu.

10 Ensinando (4,31; 5,1.3.17; 6,20ss; 8,4-21) e anunciando (4,43-44; 8.1).11 Cf. 4,33-41; 5,12-26; 6,6-11; 7,1-17.21-22; 8,26-56; 9,37-43; perdoa 7,36-50; acalma a tempestade

8,22-25.12 Cf. 5,1-11.27-28; 6,12-16; 9,1-6 e eles seguem-no 8,1-3; a multidão também o segue 6,17-19.13 Cf. 9,51.57; 10,38; 13,22; 14,25; 17,11; 18,31.35; 19,1.28.

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como o evangelho dos proscritos ou marginalizados (15,1-19,27).14 O texto 18,35-19,27 faz a síntese retomando os pensamentos mais importantes, cujo ápice está em 19,10 ilustrado a seguir com a parábola das minas. Esta síntese conclusiva quer certamente orientar a ótica do leitor para o conjunto do Evangelho. A problemática de Zaqueu na verdade é introduzida já em 5,27-32 e aprofundada no cap. 15. Em Zaqueu culmina, portanto, a lista dos perdidos que Jesus veio salvar: pecadores, cobradores de impostos, pobres, enfermos, famintos, cegos e subjugados pelos demônios.15

No contexto mais amplo (da Escritura), dois paralelos merecem nota.16 O primeiro é Gn 19. Em Sodoma, Ló está sentado à porta da cidade quando chegam dois Anjos. Logo que os viu, Ló se levantou e foi ao seu encontro (v. 1) e convida-os com insistência para hospedar-se (katalu,w, cf. Lc 19,7b) em sua casa (vv. 2-3). Em seguida os habitantes do lugar cercam a casa de Ló dispostos à violência para com os hóspedes e se trata de todo o povo sem exceção (vv. 4-5). Ló tenta em vão dissuadir aqueles violentos (vv. 6-8). Eles partem contra Ló e sua casa (v. 9). Os Anjos intervém em defesa de Ló ferindo os habitantes de cegueira (v. 11; cf. Lc 18,35-43). A seguir ordenam que Ló salve-se (v. 17) com sua família (vv. 15-16) e Ló manifesta seu reconhecimento: “mostraste uma grande misericórdia a meu respeito, salvando-me a vida...” (v. 19). Ló é um proscrito (v. 9a) que acolhe (Deus) em sua casa e é salvo (por Ele). O acento recai sobre os mensageiros divinos que reduzem a nada os oponentes enquanto salva aquele que os acolhe.

O segundo paralelo está em Js 2 e 6. O evento ocorre em Jericó, na porta de entrada e no momento da entrada na terra prometida, passo decisivo na concretização de um projeto novo de vida.17 Josué (em grego Jesus, cf. LXX) envia espiões à cidade que se hospedam (katalu,w) na casa da prostituta Raab (Js 2,1). O rei de Jericó manda buscar os espiões, mas Raab os esconde (2,3-7). A seguir ela diz aos espiões: “jurai-me pelo Senhor que, assim como eu tive misericórdia de vós, de igual modo tratareis com misericórdia a casa de meu pai...” (2,12). Na conquista da cidade, Josué poupa a mulher e os seus (6,17.22-25): “Mas, Raab, a prostitua, bem como a casa de seu pai e todos os que lhe pertenciam, Josué os salvou com vida. E ela habitou no meio de Israel até hoje, porque escondera os mensageiros que Josué enviara...” (6,25). O acento recai sobre a prostituta que, por temor a Deus (cf.

14 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio según Lucas IV, p. 53. Este evangelho dos proscritos teria como objetivo mostrar a vizinhança e a misericórdia de Deus para com aqueles que, dentro do povo, suportam geralmente o desprezo e inclusive a condenação por parte dos seus semelhantes (cf. Ibid, vol. III, pp. 648-649).

15 Cf. 4,18-19; 6,20-22; 14,13.21.16 Aparecerá em cursivo os elementos mais relevantes entre os paralelos (Gn 19; Js 2; 6) e o episódio

de Zaqueu.17 Segundo este mesmo relato de Js 6, Jericó é a primeira cidade conquistada por Israel por ocasião

da posse da terra prometida.

Js 2,11; Hb 11,31), contribui com o novo projeto acolhendo os estranhos em sua casa. Ela e Zaqueu são proscritos, figuras da pessoa marginalizada, traidores de suas respectivas sociedades. É possível que Lucas tenha em mente este evento na conclusão da seção do caminho (9,51-19,27) evocando a caminhada do Êxodo, isto é, apontando para um projeto novo a ser ratificado na páscoa em Jerusalém. Aí estaria a ótica a ser lido nossa narrativa. Para Lucas o caminho é tão importante que assim chamará a Igreja (At 9,2; 18,25; 24,22) indicando algo histórico concreto e dinâmico. Os dois paralelos (Gn 19; Js 2; 6) certamente formam o pano de fundo da narrativa de Zaqueu.

3.2 - O texto (Lc 19,1-10)

“E, tendo entrado em Jericó, ele atravessava a cidade” (v. 1).

A ocasião: no caminho de Jerusalém (v. 1). O v. 1 informa que Jesus está atravessando Jericó em seu caminho rumo a Jerusalém (cf. 9,51 e 19,28). Jericó era um centro importante de mercadores e de cobrança de impostos.18 Todavia, mais que uma referência econômica-geográfica, é uma referência teológica. Além da perspectiva do Êxodo (vista acima), de forma análoga à Samaria (9,51-55; cf. 10,25-37), Jericó seria um lugar onde um judeu observante e sensato certamente não se deteria – dada a movimentação de estrangeiros (e) impuros.

“Havia lá um homem chamado Zaqueu, que era rico e chefe dos publicanos.

Ele procurava ver quem era Jesus, mas não o conseguia

por causa da multidão, pois era de baixa estatura. Correu então à frente e

subiu num sicômoro para ver Jesus que iria passar por ali” (vv. 2-4).

18 Dada sua estratégica posição foi ali construída a fortaleza Doc (cf. I Mac 9,50; 16,11.14-15) entre 160-134 a.C. O clima propício levou à construção de Aquedutos e sistema de irrigação dando impulso econômico à cidade. Herodes, o grande, também edificou ali muitas coisas fazendo de Jericó sua capital de inverno. Segundo E. LOHSE, o proconsul da província romana de Síria, Gabíneo, em 57 a.C. subdividiu a Palestina em cinco distritos administrativos, dependentes diretamente dele: Jerusalém, Gazara e Jericó para a Judéia, Sefóris para a Galiléia e Amantus para a Peréia (cf. L’ambiente del Nuovo Testamento, pp. 27-28).

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Apresentação do personagem Zaqueu e sua busca (vv. 2-4). O v. 2 começa a apresentar um homem chamado Zaqueu, chefe da coletoria.19 Não se trata de um mero cobrador de impostos, mas o chefe e rico. A cobrança de impostos era uma humilhação para o povo e aquele que fazia este serviço era considerado mercenário a serviço da dominação romana e era tido por impuro. O próprio Lucas os une aos pecadores (cf. 15,1). Paradoxalmente o nome hebraico Zakkai significa “limpo”, “puro”, “inocente” e às vezes aparece em paralelo a “justo” (tsadiq). A riqueza de um coletor era geralmente às custas da miséria do povo.20

Os anseios deste homem aparece no v. 3: “buscava (zhte,w) ver quem era Jesus”. O interesse volta-se para a identidade de Jesus. Certamente outro era o interesse de Herodes que buscava vê-lo (9,9) apenas para satisfazer uma curiosidade e esperava que Jesus fosse levado a ele (23,8). O próprio Jesus havia dito: “buscai (zhte,w) e encontrareis, pois o que busca (zhte,w), encontra” (11,9-10) e indicado o objeto: “buscai antes o Reino” (12,31). O v. 4 continua descrevendo a busca de Zaqueu. A insistência nos seus esforços revela a intensidade de sua busca. Mas agora ela é expressa numa finalidade clara: “para ver Jesus que iria passar”. Aí está a meta a ser alcançada.21 Ora, ver era o desejo do cego no texto precedente (18,41).

“Quando Jesus chegou ao lugar, levantou os olhos e disse-lhe:

‘Zaqueu, desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa’” (v. 5).

Jesus o precede e chama (v. 5). No v. 5 uma agradável surpresa: Zaqueu quer ver Jesus (v. 3.4), mas é Jesus quem o vê primeiro, o chama pelo nome22 exprimindo um encontro pessoal e se auto-convida. Jesus o precede. Zaqueu consegue bem mais que o esperado uma vez que o ver se reverte num permanecer (me,nw) por parte de Jesus. Permanecer é bem mais que uma mera visita, antes

19 O nome Zaqueu aparece em Esd 2,9; Ne 7,14 e II Mac 10,19, desconhecido, porém, no Segundo Testamento. Há quem sugere ver neste nome a forma abreviada do nome Zacarias: o Senhor se lembrou (cf. 1,54.72; etc.).

20 O termo rico ocorre várias vezes em Lucas (cf. 6,24; 12,16; 14,12; 16,1.19.21.22; 18,23.25; 21,1), a maioria apresenta uma forte conotação negativa.

21 Como já visto acima, ver a face de Deus está estreitamente vinculado à salvação: “faze resplandecer o teu rosto e seremos salvos” (Sl 80,4.8.20; cf. ainda 31,17; 44,4; 67,2-3). Isto é claro no encontro de Simeão com Jesus-menino. A ele fora revelado pelo Espírito que não veria a morte antes de ver o Cristo (Lc 2,26) e ao tomar o menino nos braços bendisse a Deus dizendo: “meus olhos viram tua salvação” (Lc 2,28.30).

22 O nome para um semita toca o mais profundo do ser.

caracteriza a comunhão de Deus com este pecador.23 Mais ainda, Jesus diz que isso é necessário (dei/), isto é, permanecer na casa de Zaqueu é uma necessidade (v. 5b). Faz parte da vontade salvífica de Deus. Este é o argumento usado por Jesus para justificar o chamado. É grande o interesse de Jesus mostrado para com este proscrito. O advérbio hoje (retomado no v. 9) tem uma conotação especial desde a perspectiva da história da salvação na obra lucana, isto é, exprime a atualidade histórica do acontecimento salvífico em Jesus e por ele (cf. 4,21). Isto significa que para Lucas a estada de Jesus junto ao coletor é um evento histórico-salvífico. Isto será confirmado nos vv. 9-10. Um hoje que marca um recomeço que não olha a profissão nem o passado. Aqui aparece o primeiro passo do discipulado, ou seja, uma busca sincera que culmina numa experiência24 pessoal, num chamado e numa convivência.

Até aqui o caminho para Jerusalém não apresentava nomes próprios. Agora o evangelista oferece o nome da cidade (v. 1) e uma ficha completa do coletor: nome, profissão, situação econômica (v. 2), suas intenções (vv. 3a.4), sua estatura (v. 3b) e até sua estirpe (v. 9b). Mais ainda, Jesus o conhece pelo nome (v. 5). Isto confere realismo ao caminho e à esta cena. Trata-se de algo concreto e histórico. Ao mesmo tempo é acentuado pelo hoje.

“Ele desceu imediatamente e recebeu-o com alegria.

À vista do acontecido, todos murmuravam, dizendo:

‘Foi hospedar-se na casa de um pecador’”! (vv. 6-7).

Reações à opção de Jesus (vv. 6-7). Mas a decisão de Jesus, sua opção por este banido despertará duas reações antagônicas. Uma será aquela imediata de Zaqueu revelando o acolhimento positivo do chamado de Jesus – recebe-o com alegria (v. 6). Aqui está um segundo passo do discipulado: receber o Mestre com alegria.25 Bem outra, porém, é a reação dos que assistem este encontro Jesus-Zaqueu (v. 7). O evangelista fala de “todos”. Este todos, ainda que se trate da típica hipérbole de Lucas, inclui também os discípulos de Jesus na categoria dos murmuradores. Jesus havia acabado de alertar para o perigo da riqueza,

23 Cf. P.-G. MÜLLER. Lukas-Evangelium, p. 147.24 Este é o sentido do ver (cf. Jó 42,5; Jo 1,39[+ me,nw].46; 4,29).25 Zaqueu participa assim da alegria (cai,rw) que Jesus veio trazer (1,14.28; 6,23; 10,20.20; 13,17;

19,37) – até mesmo aos adversários (22,5; 23,8) – e se enquadra na série dos encontrados que geram alegria (15,5.32). Na forma de substantivo (cara,) o tema da alegria aparece ainda em 1,14; 2,10; 8,13; 10,17; 15,7.10; 24,41.52.

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cujo mau uso obstaculiza o alcance do tesouro celeste (18,22-25) e por isso é difícil um rico entrar no reino (18,24). Havia falado também da renúncia aos bens como condição para o discipulado (14,33) pois ninguém pode servir a dois senhores (16,13). Não parece ser esta, porém, a causa da murmuração, isto é, não se murmura pelo fato de Jesus visitar alguém que não respeita o princípio da renúncia dos bens. Antes, murmura-se contra um comportamento ilícito de Jesus se relacionando com pecadores, murmura-se contra sua opção. Na verdade aqui culmina a escalação gradativa de uma crítica iniciada em 5,29-30. Ali os fariseus e escribas criticam os discípulos de Jesus por comerem e beberem com publicanos e pecadores. Jesus replica em 7,34. Em 15,1-2 os fariseus e escribas criticam indiretamente a Jesus. Agora são todos que murmuram contra o fato de Jesus hospedar-se26 com um pecador (v. 7).27 Reproduzem – de certa forma – o comportamento do irmão mais velho da parábola (15,25-30). São os “bons” que se escandalizam (cf. 7,23). Por um lado, o proscrito já está estigmatizado como personificação do mal e negado a ele qualquer possibilidade de mudança, enquanto se subestima a força da graça, da misericórdia. Por outro, a censura é típica daqueles que procuram domesticar a Boa-Nova de Jesus segundo sua ideologia cega. Neste nível cabe uma dupla pergunta: a mensagem da salvação pode quebrar esta dupla muralha hoje na pessoa de fé? Como? O conjunto desta perícope é certamente uma luz.

“Zaqueu, de pé, disse ao Senhor:

‘Senhor, eis que eu dou a metade de meus bens aos pobres,

e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo’” (v. 8).

O encontro que muda a vida de Zaqueu (v. 8). Enquanto os murmuradores se corroem, o encontro Jesus-Zaqueu se realiza. Zaqueu, que superara as dificuldades pessoais para ver Jesus (vv. 3-4), supera aquelas sociais (v. 7). Lucas não oferece informações sobre este encontro, limita-se a mostrar as consequências. Pela atitude inequívoca de Zaqueu podemos imaginar a intensidade deste encontro que permite este proscrito reorientar a vida: “Senhor, eis que estou determinado a dar a metade de meus bens aos pobres, e se defraudei a

26 O verbo katalu,w significa literalmente desatar, deixar solto um animal de carga e daí se deduz o sentido de hospedar-se para pernoitar, encontrar alojamento, ser hóspede (de alguém). O substantivo aparece em 2,7; 22,11 e refere-se ao lugar onde se repousa.

27 Em 15,2 e 19,7 estão as duas únicas ocorrências do verbo diagoggu,zw = murmurar no NT.

alguém, estou decidido a restituir-lhe o quádruplo”.28 A reação dele não se explica pela Lei, mas pelo encontro com Jesus. A Lei não exigia tudo o que ele se propõe.29 Mas a presença gratuita e aceita de Jesus, a experiência pessoal de sua misericórdia (cf. 6,36) gera nele frutos de conversão (3,8.12). O encontro autêntico com Jesus torna-o livre também em relação aos bens e abre-o para o outro e o outro pobre e defraudado. Ele entendeu e acolheu a condição do reino como partilha e justiça que faz ser discípulo e devolve a alegria. Zaqueu é o anti-tipo do homem de posição do texto precedente (18,18-23). Eles estão unidos pelo adjetivo rico (18,23; 19,2). Aquele, porém, sem nome, chamado a desfazer-se do que tem em benefício dos pobres (em visto de um tesouro celeste), se mostra incapaz de tal decisão e se entristece. Zaqueu, por sua vez, se alegra (v. 6) e impõe a si mesmo a condição da partilha. Ele queria ver Jesus e tem aqui sua cegueira curada. Já pode ver o outro (pobre e defraudado) que antes não podia ver. Renunciar as seguranças (bens) em favor dos desvalidos como gesto de desprendimento solidário motivado por um encontro com Jesus é passo decisivo para gerar a koinonia (cf. At 4,32). Só a Lei não basta, pressupõe-se um encontro sincero com o Senhor. Este é capaz de mudar a orientação da vida. Nisto está o terceiro passo do discipulado: ter uma opção clara pela fraternidade a partir dos proscritos – como transbordamento do encontro-convívio com Jesus. A reciprocidade do olhar corrige a miopia e permite ao visto ver. A visível adequação nova na relação com os bens e com a justiça é sinal da salvação aceitada. Este claro intuito de mudança de vida leva Jesus ao anúncio da salvação (v. 9).

“Jesus lhe disse: ‘Hoje a salvação entrou nesta casa,

porque ele também é um filho de Abraão” (v. 9).

28 Os verbos di,dwmi = dar e avpodi,dwmi = restituir ao modo indicativo podem ser traduzidos como presente iterativo, isto é, indicando uma enérgica declaração de honestidade de quem habitualmente se comporta assim. Portanto, tratar-se-ia de uma ação habitual de Zaqueu. É seu costume agir assim. A favor disto estaria seu próprio nome que significa “limpo”, “inocente”. Além disso, Zaqueu não implora misericórdia a Jesus (cf. 17,13; 18,38) nem manifesta arrependimento (cf. 15,21; 18,13). Jesus, por sua vez, não faz referência à fé dele (cf. 7,50; 8,48), nem a seu arrependimento ou conversão (cf. 15,7.10) ou sua condição de discípulo. Enfim, não encontramos aí os elementos que se espera de uma cena de salvação. Jesus não pronuncia uma palavra de perdão. Nesta perspectiva as palavras de Jesus no v. 9 soariam como proclamação da inocência de Zaqueu, Jesus proclama a justificação dele, apesar de seu ofício que tende a estigmatizá-lo. Todavia, é de se perguntar se Zaqueu na sua posição estaria interessado ou precisaria de uma (auto-)justificação? Estaria aí o interesse de Lucas? A perícope é paradigmática e tem função de síntese que precede a entrada em Jerusalém e o evangelista aponta para algo mais profundo, isto é, há outra possibilidade de ver estes verbos como sinal de arrependimento que se cristaliza num propósito (cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio según Lucas IV, pp. 56-57).

29 Restituir o animal roubado: 4x (Ex 21,37; cf. II Sm 12,6), 2x (Ex 22,3). Por redução de direitos sagrados ou juramento falso: o valor + um quinto (Lv 5,16.24; Nm 5,7). Não se fala em divisão da metade dos bens. Segundo R. DILLMANN – C. MORA PAZ, a disposição em restituir quatro vezes corresponde às exigências do direito romano (cf. Das Lukas-Evangelium, p. 326).

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Jesus proclama a salvação (v. 9). Zaqueu é o homem alcançado e recuperado pela misericórdia. Sua atitude de abertura encontra correspondência na iniciativa salvífica de Jesus. O advérbio hoje – em posição inicial enfática – mostra que a salvação já é uma realidade em andamento na vida deste homem e de sua família.30 Um excluído pela teologia oficial é agora incluído por Jesus (cf. Js 6,25). No anúncio feito a Zaqueu está a resposta aos murmuradores (v. 7). Em 9b Jesus dá a primeira razão para justificar seu ingresso na casa do proscrito: ele é filho de Abraão. A salvação vem em parte mediante o povo de Israel portador das promessas feitas a Abraão e agora realizadas por Jesus (cf. 2,11). É a salvação (swthri,a) profetizada por Zacarias (1,69.71.77) que está se realizando aqui.31 O v. 9 é na verdade o ápice. Tudo culmina no silêncio de todas as partes. A narrativa pode muito bem terminar aqui.

“Com efeito, o Filho do Homem

veio procurar e salvar o que estava perdido” (v. 10).

Síntese da missão salvífica de Jesus (v. 10).32 Jesus oferece agora a segunda razão que justifica sua entrada na casa do banido: buscar (zhth/sai) salvar o que estava perdido (to. avpolwlo,j). A salvação é obra de Jesus que convida as pessoas à conversão. Nele realiza-se a palavra de Deus a Ezequiel: “A [ovelha]33 perdida buscarei (to. avpolwlo.j zhth,sw), reconduzirei a que estiver desgarrada...” (Ez 34,16; cf. 34,4.12). Se no v. 7 culminava uma escalação gradativa da crítica dos escribas e fariseus a Jesus que se relaciona com publicanos e pecadores, neste verso (v. 10) culmina também a reação de Jesus. Em 5,31-32 Jesus afirma que os sãos não necessitam de médico e ele veio chamar os pecadores ao arrependimento. Nas parábolas do cap. 15 ensina a buscar o que está perdido (vv. 4.8.24.32) e fala da alegria do encontro (vv. 5-7.9-10.20-24). Este foi o programa (cf. 4,18) que ele realizou e com o qual se identifica (7,22) e proclama feliz quem não

30 O termo casa significa também família (cf. At 10,2; 11,14; 16,15.31; 18,8 e o episódio de Ló em Gn 19).

31 Trata-se das 4 ocorrências do termo swthri,a neste Evangelho. 32 O v. 10 está vinculado ao que precede pelo termo salvar (v. 9) e buscar (v. 3). Isto é,

Jesus parte deste episódio concreto para fazer uma afirmação genérica sobre sua tarefa como um todo.

33 Do contexto do capítulo 34, a palavra óbvia aqui é ovelha como aparece em algumas traduções como é o caso da Bíblia Ave Maria e da Bíblia da CNBB que visam certamente ajudar o leitor. Todavia, é um fato que o termo ovelha não aparece no texto hebraico (TM) nem na versão grega (LXX). É uma elipse. Isto o aproxima ainda mais do texto de Lc usando a mesma formulação: to. avpolwlo.j (isto é, artigo neutro singular to. + perfeito particípio ativo, acusativo, neutro singular) + verbo zhte,w. Esta relação Ezequiel-Lucas é corroborada pelo fato que o termo “perdido” (avpolwlo.j) é o mesmo usado por Lucas – entre outros – na parábola da ovelha perdida (15,4.4.6) e do pai misericordioso (15,24.32).

se escandaliza com isto (7,23). Portanto, aquela busca (zhte,w) inicial de Zaqueu (v. 3) se insere numa busca (zhte,w) maior do próprio Deus (v. 10), ou melhor, a busca divina precede aquela humana e vem ao seu encontro.

Lucas insiste na salvação (da casa) daquele que acolhe (vv. 9-10) e a passagem evoca – entre outras – Gn 19 onde Ló acolhe e é salvo (Gn 19,17.19) com sua família (Gn 19,15-16) como expressão de misericórdia (Gn 19,19). Estaria o evangelista sugerindo aos “bons” a mesma sorte reservada ao habitantes de Sodoma, cidade que habitava Ló (Gn 19,24-25)? Curiosamente Lucas, por um lado, se refere explicitamente a este episódio de Sodoma (Lc 17,28-29.32; cf. 10,12). Por outro, usa, pra falar da sorte de seus habitantes, o mesmo verbo que aparece aqui na passagem de Zaqueu: “... mas no dia em que Ló saiu de Sodoma, caiu do céu fogo e enxofre, perdendo (avpw,lesen) a todos” (Lc 17,29). Neste caso em sentido inverso: no episódio de Zaqueu, a perdida é salva.

De que forma Zaqueu levará a cabo seu propósito não preocupa Lucas. O acento recai nas palavras de Jesus que explicita o seu caminho já quase às portas de Jerusalém. É preciso tornar tudo mais claro a cada passo. Ecoando Js 2 e 6, o evangelista mostra em que consiste o projeto novo de Jesus. Nesta síntese paradigmática (19,1-10) ele sugere aos “bons” ou “sãos” (v. 7) que a “justiça” deles não os impeça de reconhecer a eficácia da graça, o alcance da misericórdia que abraça e regenera os quebrados da vida que se abrem ao recomeço.

4 - O paralelo lucano: 18,35-43 // 19,1-10

O evangelista Lucas não esconde sua predileção por narrativas pares.34 Isto sugere ver nas duas histórias de Jericó (18,35-43; 19,1-10) um paralelo de “curas” com função resumitiva neste grande relato de viagem. O Jesus, Senhor e filho de Davi (18,35-43) é aquele que veio salvar o estava perdido (19,1-10). Enquanto falam da salvação (18,42b; 19,9-10) oferecida a proscritos, estes relatos preparam a eminente entrada de Jesus em Jerusalém como salvador (23,35-39; cf. 2,11). Uma série de elementos comuns confirmam o paralelo.35 O desejo do cego que leva-o a implorar ao Filho de Davi que tenha compaixão dele para voltar a ver (18,41) é continuado em Zaqueu que tudo faz para ver (19,3-4). Os relatos partem da cegueira física para chegar naquela mais séria e profunda, a cegueira espiritual,

34 Cf. duplo anúncio de nascimento (1,5-25.26-38); duplo nascimento (1,57-66; 2,1-7); dupla manifestação do menino-Jesus (2,28-32.34-40); duplo canto (1,46-55.67-79); dupla cura (4,31-37.38-39).

35 Por exemplo: a) eles procuram chamar a atenção para serem vistos (18,38.39b; 19,4); b) ambos têm o mesmo desejo: querem ver (18,41; 19,3.4); c) ambos os eventos encontram censura do público (18,39; 19,7); d) Jesus chama a ambos (18,40; 19,5); e) eles reagem com alegria (18,43a; 19,6); f ) os dois relatos culminam no anúncio da salvação por Jesus (18,42; 19,9a); g) ambos confessam Jesus como Senhor (18,41b; 19,8) e dão passos de um discípulo (18,43; 19,8).

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isto é, aquela que distancia o homem de Deus e do outro defraudado, do caminho de salvação. Em ambos ocorre uma mudança de mentalidade que resulta numa reorientação da vida a partir da experiência feita (ver) no encontro com o Senhor. Libertam-se daquilo que escravizava. O cego de Jericó (18,35) é, na verdade, uma figura dos discípulos cegos. Eles estão no caminho rumo a Jerusalém com Jesus, todavia, ainda não o entendem nem conseguiram fazer a mesma opção e por isso se escandalizam com as atitudes de Jesus (19,7; cf. 7,23). Zaqueu é o paradigma daquele que dá um passo e tem sua “cegueira” curada e agora pode ver o outro e o outro proscrito (cf. 19,8) que antes era incapaz de ver. Querendo ver Jesus, abre-se para ele uma possibilidade nova, que por sua vez, gera possibilidades novas aos demais (v. 8). Este é o ver que reorienta a vida.

5 – Conclusão

Finalizando cabe perguntar: o que nos impede de vê-lo hoje? É possível que esta cegueira se dê conosco que caminhamos com ele sem, todavia, ter a mesma opção? Quer-se ter visões e ser visto, mas não se quer ver o semelhante na sua miséria. É sugestiva a atitude de súplica do cego do caminho de Jericó: “que eu possa ver novamente” (18,41). É sugestiva a coragem de Zaqueu que tudo faz para vê-lo (vv. 3-4). É motivador aceitar o (auto-)convite de Jesus de ir à nossa casa para o encontro pessoal e sincero com ele (v. 5) com semelhante alegria (v. 6) e tomar decisões claras que se revertam em sinais visíveis da conversão e da salvação aceita (v. 8). Qual não será a surpresa, experienciar no coração a mesma frase de Jesus: “hoje a salvação entrou em tua casa” (v. 9).

6 - Bibliografia

BUSSE, U. et al. Jesus zwischen arm und reich. Lukas-Evangelium (BP 18). KBW, Stuttgart, 1980, pp. 133-134.

DILLMANN, R. – MORA PAZ, C. Das Lukas-Evangelium. Ein Kommentar für die Praxis. KBW, Stuttgart, 2000, pp. 324-327.

FITZMYER, J. A. El Evangelio según Lucas IV. Cristiandad, Madrid, 2006, pp. 53-67.

KREMER, J. Lukasevangelium (NEB 3). Echter, Würzburg, 1988, pp. 182-183.

LOHSE, E. L’ambiente del Nuovo Testamento (NTS 1). Paideia, Brescia, 21993, pp. 27-28.

MÜLLER, P.-G. Lukas-Evangelium (SKK NT 3). KBW, Stuttgart, 41990, p. 147.

OLMOS, C. L. Zaqueo: La curiosidad de un cobrador de impuestos. Lc 19,1-10 (Cuadernos 2). Instituto de Teología para Laicos, Colima, México, 1999.

O Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de Bento XIII - que concedia ao Vigário Provincial Carmelita do Maranhão a faculdade de dar o título de doutor

aos frades de sua Ordem

Frei Wilmar Santin, O.Carm *

Introdução e contextualização

Os carmelitas surgiram no Monte Carmelo no final do século XII, após a III Cruzada. A sua Regra foi escrita por Santo Alberto Avogrado, Patriarca de Jerusalém, entre 1206 e 1214. Foi aprovada inicialmente pelo Papa Honório IV em 1226, mas sua aprovação definitiva, como Regra, foi dada pelo Papa Inocêncio IV em 1247.

Alguns autores, no passado, afirmavam que o ingresso dos carmelitas nas Universidades aconteceu no final do século XIII. Porém, a bula Devotionis augmentum de Inocêncio IV demonstra claramente que frades da Ordem do Carmo já estavam presentes nas Universidades antes de 26 de agosto de1253,

Artigos

* Mestre e doutor em História da Igreja, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e Professor no Instituto Pastoral e Ensino Superior da Amazônia, em Manaus.

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data da bula1. A bula indica também que o motivo dos estudos universitários era capacitar os frades para o púlpito e o confessionário. No entanto, foi só a partir de 1270 que os carmelitas entraram de forma ampla e sistemática no mundo universitário. Em geral se dedicaram mais ao estudo da Bíblia do que da Filosofia. O primeiro carmelita a doutorar-se em Paris foi Gerardo de Bologna em 1295. Depois surgiram vários doutores e mestres, como John Baconthorp – comentador de Averróis, Guido Terrena – o primeiro a falar sobre a infabilidade do Papa, Siberto de Beka – grande liturgista, Miguel Aiguani ... Apesar de estarem presentes nas grandes Universidades, como Paris, Oxford, Bolonha, Salamanca, Pádua, não chegaram a formar uma própria escola filosófica-teológica, como os franciscanos e dominicanos. Porém, no século XV iniciou-se na Ordem o movimento de considerar como melhor a obra doutrinal desenvolvida por alguns dos autores da mesma Ordem. Com isto pretendia-se sustentar uma linha doutrinal carmelitana. Foram contempladas no século XVI, de forma oficial, as obras dos dois autores Carmelitas Miguel Aiguani e João Baconthorp2. Por isso no “Studium Generale” da Traspontina em Roma os estudantes carmelitas se proclamavam da Escola de Baconthorp. Em geral seguiram o aristotelismo e depois o tomismo.

Os decretos do Concílio de Trento provocaram uma reorganização dos estudos de preparação ao sacerdócio. A Ordem do Carmo teve também que se adaptar às decisões tridentinas. Apesar das Constituições estabelecerem normas, não aconteceu uma uniformidade dentro da Ordem. Em 1692 o Prior Geral João Feyxoo de Villalobos tentou impor o sistema espanhol, mas causou uma grande confusão, principalmente na Itália. O Capítulo Geral de 1704 tratou o assunto dos estudos e determinou medidas precisas. Estas decisões capitulares, confirmadas pelo Papa Clemente XI em 10 de novembro de 17113, permaneceram válidas até a metade do século XIX.

Os estudantes carmelitas deviam estudar 3 anos Filosofia e 4 de Teologia. Para os graus acadêmicos de bacharelado e magistério seguia-se o que era previsto nas faculdades de Teologia onde se estudava, mas com complementação em casa. Os leitores deviam prestar conta diariamente sobre os estudos e uma vez por mês se fazia uma disputa entre eles. De acordo com os resultados obtidos nas disputas, o capítulo provincial podia aprovar um pedido a ser apresentado ao Prior Geral para uma promoção.

I lettori dovevano impegnarsi nell’insegnamento e nelle dispute con serietà e sopratutto con chiarezza, e si dovevano basare su riflessioni solide, più che sull’argomento di autorità. In particolare in teologia si suggeriva di seguire S. Tommaso, interpretato dagli autori carmelitani. In filosofia si doveva seguire Aristotele in tutto ciò che era compatibile col cristianesimo.

1 Bullarium Carmelitanum, I, Ed. Eliseo Monsignani, Roma 1715, 13.2 BOAGA Emanuele. Como pedras vivas, Roma 1989, 47.3 Bullarium Carmelitanum, II, Ed. Eliseo Monsignani, Roma 1727, 650-653.

Nel corso dei secoli XVIII e XIX l’avversione alla scolastica si ripercosse senza dubbio anche nell’Ordine. In questo contesto emerge la proposta per un nuovo metodo teologico fatta dal carmelitano Agostino Molin (+ 1840). Egli raccomandava un positivo avvicinamento della Sacra Scrittura e della Tradizione con utilizzo dei metodi delle scienze profane quali la storia, le lingue, la letteratura. La metafisica doveva essere usata il meno possibile nella spiegazione delle verità della fede. Questa teoria, espressa in forma di dialogo, fu attribuita ad un altro carmelitano: Filiberto Perricone (+ 1797), per molti anni professore di teologia a Padova. Sembra anche che questi abbia introdotto la filosofia di Cartesio negli studia di Sicilia e di Roma4.

O caminho acadêmico passava pelas fases de cursor, leitor (lectoratus), bacharelado (baccalaureatum), presentado (præsentatus) e mestre (magister).

No início o estudante, destinado ao ensino, era chamado de cursor, porque devia estudar e ler a “cursoria” das Sentenças de Pedro Lombardo. O cursorado ainda não é um grau acadêmico.

Quando o estudante era promovido a ensinar as Sentenças, passa a ser chamado Leitor (lector), que ao longo dos séculos XVII-XVIII era considerado um grau acadêmico. Tornava-se bacharel quem era promovido após ter feito 3 anos de leitorado ou ensino. Fazia-se a diferença entre: bacharel “biblicus” (que ensinava Bíblia), “sententiarius” (que ensinava as Sentenças) e “formatus” (que participava ativamente nas disputas).

Presentado era o bacharel candidato ao magistério, mas que tinha já 4 anos de ensinamento, empenho nas disputas e ter pregado pelo menos um sermão da Quaresma ou pregado na presença dos nobres5. Devia ter pelo menos 32 anos de idade.

4 Os leitores deviam empenhar-se no ensino e nas disputas com seriedade e sobretudo com clareza, e deviam se basear mais sobre reflexões sólidas que sobre o argumento de autoridade. Em particular na Teologia se sugeria seguir Santo Tomás de Aquino, interpretado por autores carmelitas. Na Filosofia se devia seguir Aristóteles em tudo aquilo que era compatível com o cristianismo. No curso dos séculos XVIII e XIX a aversão à escolástica percorreu sem dúvidas também a Ordem do Carmo. Neste contexto apareceu a proposta feita pelo carmelita Agostinho Molin (+1840). Ele recomendava uma positiva aproximação à Sagrada Escritura e à Tradição utilizando os métodos das ciências profanas, como a História, línguas e a literatura. A Metafísica devia ser usada o menos possível na explicação das verdades da fé. Esta teoria expressa em forma de diálogo foi atribuída a um outro carmelita: Filiberto Perricone (+ 1797), que por muitos anos foi professor de Teologia em Pádua. Parece também que ele introduziu a Filosofia de Descartes nos “studia” carmelitas da Sicília e de Roma (BOAGA, Emanuele e ALBAN, Kevin. Studio e Studia nell’Ordine dei Carmelitani, em Dizionario Carmelitano, Città Nuova, Roma 2008, 877.)

5 Mas houve tempo em que a exigência era de 7 anos. O capítulo provincial de Portugal, celebrado em 30 de abril de 1651, determinava que se naõ postulem ao Padre Reverendissimo para o gráo de Presentado, senaõ os Religiosos, q tiverem sete annos de leytura de Artes, ou Theologia (SÁ, Fr. Manoel de. Memorias Historicas dos Illustrissimos Arcebispos, Bispos, e Escritores Portuguezes da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, reduzidas a Catalogo Alfabetico, Lisboa Occidental: Off. Ferreyriana, Lisboa 1724, p. 462).

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Por fim chegava-se a ser mestre (magister), ou seja, devia sustentar uma disputa final diante do colégio de docentes, após concluir todas as etapas e exigências6. Mas devia também ser nomeado pelo Prior Geral. Por longo tempo havia um numero limitado por província ou país. Havia também diferenças entre os “magistri”: “regens” (que desenvolvia atividade acadêmica), “vacans” (que não desempenhava atividade acadêmica), “regens studii” (que além da atividade acadêmica dirigia o estudo local ou geral), “bullatus” (que obteve o grau de mestre com dispensa, privilégios ou com cursos apressados) e “de gratia” (que obtinha o título sem concluir o currículo dos estudos). Além destes aparece nos documentos: “magistri de justitia”, “magistri de pulpito”7 (de retórica) e “magistri de cursu”.

O convento carmelita Santo André de Salamanca foi fundado em 1480, mas antes alguns carmelitas haviam estudado na famosa universidade salmanticense. A fundação deste convento tinha o escopo de ser também uma casa de estudos. No início do século XVI era um colégio interprovincial para os estudantes das províncias espanholas. Em 1548 o convento foi declarado como colégio de todas as Províncias Carmelitas da Espanha. Ali morou e estudou o grande místico carmelita São João da Cruz, entre 1564 e 1568. O Capítulo Geral de 1564 determinou que o colégio se abrisse para outras províncias. Por isso também alguns alunos carmelitas de Portugal foram para Salamanca. Portanto este colégio também teve alguma influência no Carmelo brasileiro.

Em 1537 o rei Dom João III transferiu a universidade de Lisboa para Coimbra. Logo em seguida o provincial carmelita Frei Baltasar Limpo fundou o Colégio do Carmo de Coimbra. A nova fundação deveria abrigar estudantes carmelitas que iriam freqüentar a universidade. O próprio Baltasar Limpo, já na condição de bispo do Porto, foi encarregado de redigir os primeiros estatutos do colégio. Terminados em 18 de Setembro de 1555, os estatutos contêm, além de um preâmbulo, que expõe em poucas palavras a origem da fundação e as condições que esta impõe, dezoito capítulos, regulando a vida comum do colégio, e uma observação final, incutindo a sua fiel observância8. Em 1723 o Papa Inocêncio XIII autorizou o Colégio Carmelita

6 O capítulo provincial de Portugal de 1651 estabeleceu que para serem postulados para o gráo de Mestre, haõ de ter doze annos completos de leytura (SÁ, Fr. Manoel de. Memorias Historicas dos Illustrissimos Arcebispos, Bispos, e Escritores Portuguezes da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, reduzidas a Catalogo Alfabetico, Lisboa Occidental: Off. Ferreyriana, Lisboa 1724, p. 462).

7 Die 29. [Februarius 1734] Institutus fuit Magister de Pulpito, et Justitia de numero cum voce, et loco in capitulis Provincialibus R. P. Præsentatus Philippus de Mello Provinciæ Lusitaniæ in loco vacuo, per mortem R. P. Magistri Joannis de Sousa (AGOC II C.O. 1 (54), p. 141) – No dia 29 de fevereiro de 1734 foi instituído Mestre de Púlpito e de Justiça de número com voz e lugar nos capítulos provinciais o Rev. Pe. Presentado Felipe de Melo da Província Lusitana no lugar vago por morte do Rev. Pe. Mestre João de Souza.

8 WERMERS Manuel Maria. Os Primeiros Estatutos do Colégio Universitário Carmelita de Coimbra, em Carmelus, 9, Institutum Carmelitanum, Roma 1962, 96-159. On line: < http://br.geocities.com/wilmarsantin/EstCoim.html >

de Coimbra a conceder o título de doutor9. Ali foi formada a maioria dos intelectuais carmelitas portugueses e brasileiros nos séculos XVI-XVIII.

Os carmelitas chegaram no Brasil em 1580 e se instalaram em Olinda. Em 1586 fizeram uma nova fundação em Salvador. Seguiram-se as fundações de Santos (1589), Rio de Janeiro (1590), Angra dos Reis (1593), São Paulo (1594), São Cristóvão (1600), Paraíba (1608), São Luís (1616), Belém (1626) e Mogi das Cruzes (1629). Em 1595 o Carmelo Brasileiro foi elevado à condição de vigararia. Em 1640 foram criadas duas vigararias: a do Estado do Maranhão e a do Estado do Brasil. Da vigararia do Estado do Brasil surgiram as Províncias do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco. No entanto, a Vigararia do Maranhão nunca se tornou província independente de Portugal. Terminou com a morte do último carmelita Frei Caetano de Santa Rita Serejo em 8 de maio de 1891.

Os carmelitas nunca foram numerosos no Maranhão e Grão-Pará. Concentraram suas atividades sobretudo nas cidades onde tinham conventos (São Luís, Belém, Alcântara) ou hospícios (Vigia, Bonfim, Bom Jardim). O trabalho missionário com os índios só começou em 1695. Missionaram principalmente nos rios Negro e Solimões. Muitas aldeias das missões carmelitas tornaram-se cidades. As maiores marcas da presença carmelitana na Amazônia são as devoções a Nossa Senhora do Carmo em Parintins, a Santo Alberto de Trapani em Carvoeiro (e rio Negro) e a Santa Teresa de Ávila em Tefé.

As principais casas de estudos dos carmelitas do Brasil colonial foram as da Bahia, Rio de Janeiro, São Luís, posteriormente transferida para Belém, e Recife. As Províncias do Rio de Janeiro e da Bahia receberam do Papa Inocêncio XIII a faculdade de concederem o título de doutor aos seus membros em 23 de dezembro de 172310.

No Maranhão os carmelitas abriram, no pequeno convento [de São Luís], aulas de filosofia e teologia e solfa, além de ativo exercício em torno à moralização dos costumes dos colonos11. Para se verificar o nível dos estudos de Filosofia e Teologia dos carmelitas na capital do Maranhão, basta ler as informações de Felipe Condurú Pacheco a esse respeito: Os carmelitas, com seus estudos filosóficos e teológicos, em que doutouravam, produziram alguns religiosos de valor intelectual e facultaram dependências do seu convento para ‘Biblioteca’, ‘Lyceo’ e ‘Escola Normal’ da Província12. Em 1698 foi transferido de São Luís para Belém o Colégio de Filosofia e Teologia. O Breve Exponi nobis nuper de Bento XIII será em função dos estudos realizados em Belém.

9 Bullarium Carmelitanum, II, Ed. Eliseo Monsignani, Roma 1727, 551-552 e 591-592.10 Bullarium Carmelitanum, IV, Ed. Josepho Alberto Ximenez, Roma 1768, 83-85.11 REIS Arthur Cézar Ferreira. A conquista espiritual da Amazônia, Governo do Estado do Amazonas

e Universidade do Amazonas, 2ª edição revista, Manaus 1997, 26.12 PACHECO, Felipe Condurú. História Eclesiástica Do Maranhão, S.E.N.E.C., Departamento de

Cultura, Maranhão, 1969, 98.

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Não encontramos uma lista dos que conseguiram o doutorado na Vigararia Carmelita do Maranhão, mas sim os nomes dos que foram instituídos magister, que supunha o doutorado13. Os registros da Ordem do Carmo, conservados no Arquivo Geral da Ordem do Carmo (AGOC), atestam que, da Vigararia do Maranhão, conseguiram o título de Magister in Sacra Theologia: Frei Ângelo do Monte Carmelo (24 de janeiro de 1739), Frei Pedro de Santo Eliseu (28 de julho de 1748), Frei Antonio de Faria (12 de julho de 1751), Frei João da Silveira (27 de setembro de 1752), Frei Francisco Xavier da Silva (13 de julho de 1755)14 e Frei Francisco José dos Reis (10 de junho de 1758)15.

Após 1760 não há mais quase documentação a respeito de Portugal e Brasil no Arquivo Geral da Ordem Carmo em Roma, devido ao rompimento das relações entre Portugal e a Santa Sé.

Bibliografia

BOAGA Emanuele. Como pedras vivas, Roma 1989.

Dizionario Carmelitano, Città Nuova, Roma 2008.

SMET Joachim. The Carmelites, 5 vol., Carmelite Spiritual Center, Darien 1985-88.

WERMERS Manuel Maria. Os Primeiros Estatutos do Colégio Universitário Carmelita de Coimbra, em Carmelus n. 9, Institutum Carmelitanum, Roma 1962, pp. 96-159.

13 Cum Expostulasione Provinciæ Lusitaniæ institutus fuit Magistros in Sacra Theologia de Justitia R. P. Præsentatus Angelus a Monte Carmelo Vicariæ Maragnonensis Alumnus cum omnibus gratiis, privilegiis excepta voce in Capitolo Provinciali; et quod infra annum accipiat Lauream Doctoralem (Regestum pro provinciis Lusitaniae et Brasiliae tempore generalium Ludovici Benzoni, Nicolai Richiutti, Aloysii Laghi (et in supplemento) Antonii Feydeau, 1728-1755. - AGOC II C.O. 1 (54), 142).

14 Cf Regestum pro provinciis Lusitaniae et Brasiliae tempore generalium Ludovici Benzoni, Nicolai Richiutti, Aloysii Laghi (et in supplemento) Antonii Feydeau, 1728-1755. - AGOC II C.O. 1 (54)

15 Regestum pro litteris ministerii magistri socii et secretarii generalis Lusitaniae, 1744. Regestum magistri Joachim Pontalti generalis, 1756-1760 - AGOC II C.O. 1 (57).

O texto do Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de Bento XIII

XXIX.

Exscripta a Bull. Rom. Tom. XII.

pag. 232.

SUMMARIUM 16

Conceditur nostris Carmelitis Vicariæ Maranionis in Brasilia a Generali Ordinis ad magisterium in Sacra Theologia promotis, ut Lauream Doctoratus a Vicario Provinciali suscipere possint.

BENEDICTUS PAPA XIII.

Ad futuram rei memoriam

1. Exponi Nobis nuper fecerunt dilecti filii Vicarius Provincialis, aliique Fratres Vicariæ Maranionis in Brasilia Ordinis B. M. de Monte Carmelo, quod alias postquam fel. rec. Urbanus PP. VIII. prædecessor noster per quasdam suas in simili forma Brevis die 27. Augusti 1624. expeditas literas concesserat quondam Theodoro Statio tunc tempore Priori Generali, ac professoribus Provinciarum Hispaniæ, & Lusitaniæ ejusdem Ordinis, ut ii, qui absolutis lecturis, & exercitationibus literariis per regularia Ordinis hujusmodi Instituta requisitis, ac servatis alias servandis per eumdem Priorem Generalem in Sacra Theologia Magistri juxta juxta ejus facultates instituti, & creati fuissent Lauream Doctoratus in Collegio Sanctæ Theresiæ Salmaticen. memorati Ordinis ad formam in præfatis literis præscriptam suscipere possent, nec pro ea suscipienda aliquam approbatam studii Generalis Universitatem adire tenerentur: rec. mem. Innocentius Papa VIII. etiam prædecessor noster indulsit, quod omnes, & singuli dictæ Provinciæ Lusitaniæ Professores, quos pro tempore existens Prior Generalis Ordinis hujusmodi in eadem Sacra Theologia Magistros instituisset, & creasset, præfatam Lauream Doctoratus, prævio rigoroso examine coram Priore Generali dictæ Provinciæ Lusitaniæ, & quatuor in ipsa Sacra

16 Bullarium Carmelitanum – Pars IV. Ed. Josepho Alberto Ximenez, Roma 1768, 162-164.

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Theologia Magistris, sive coram Rectore Collegii Colimbrien. Ordinis prædicti, ac illius Regentibus, & Magistris sumere valerent, ac subinde simile quoque Indultum Fratribus Provinciarum Bahien. & fluminis Januarii itidem in Brasilia dicti Ordinis concessit, & alias prout in binis ipsius Innocentii desuper in pari, etiam forma Brevis editis, ac supradictis Urbani prædecessorum literis, quarum tenores præsentibus pro plene, & sufficienter expressis haberi volumus uberius continetur.

2. Cum autem sicut eadem expositio subjungebat, primum ex memoratis Indultis favore Professorum Provinciæ Lusitaniæ emanaverit, eo, quod enarrata concessio a memorato Urbano VIII. prædecessore eis facta fuisset tempore, quo Rex Hispaniarum etiam Lusitaniam possidebat, sicque Religiosis tum Hispanis, tum Lusitanis præfatum Collegium Salmaticen. pro assequenda Laurea Doctorali præfata facile adire licebat. At separatis postmodum Dominiis, idem Indultum sine ullo effectu, ac utilitate remanserat respectu Lusitanorum, quibus propter immutatum rerum statum non amplius ad dictum Collegium libere accedere permissum fuit: & alterum Indultum hujusmodi Professoribus prædictarum Provinciarum Bahien., & Fluminis Januarii propter nimiam earum ab Europa distantiam concessum fuerit; dicta vero Vicaria Maranionis, utpote in remotissima parte vastæ Regionis ipsius Brasiliæ sita, longius, quam prædictæ Provinciæ Bahien., & Fluminis Januarii ab eadem Europa distet, nec Regiæ Naves, quibus ejusdem Vicariæ Religiosi in Lusitaniam transfretare valeat, eo unquam appellant: Nobis propterea dicti Exponentes humiliter supplicari fecerunt, ut sibi in præmissis opportune providere de benignitate Apostolica dignaremur.

3. Nos igitur ipsos Exponentes specialibus favoribus, & gratiis prosequi volentes, & eorum singulares a quibusvis excommunicationis, suspensionis, & interdicti, aliisque Ecclesiasticis sententiis, censuris, & pœnis a jure, vel ab homine quavis occasione, vel causa latis, si quibus quomodolibet innodatæ existunt, ad effectum præsentium dumtaxat consequendum harum serie absolventes, & absolutas fore censentes, hujusmodi supplicationibus inclinati, quod omnes, & singuli Fratres expresse professi dictæ Vicariæ Maranionis, quos dilectus filius Modernus, seu pro tempore existens Prior Generalis Ordinis prædicti in eadem Sacra Theologia Magistros, servatis pariter servandis, instituerit, & creaverit, Lauream Doctoratus, præviis rigoroso examine coram Vicario Provinciali dictæ Vicariæ, & quatuor in Sacra Theologia Magistris, sive Reggentibus, ac illorum approbatione, servatis cæteroquin conditionibus per Constitutiones Ordinis prædicti præscriptis ab ipsomet Vicario Provinciali suscipere libere, & licite possint, & valeant, auctoritate Apostolica tenore præsentium concedimus similiter, & indulgemus.

4. Decernentes ipsas præsentes literas semper firmas, validas, & efficaces existere, & fore, suosque plenarios, & integros effectus fortiri, & obtinere, ac illis, ad

quos spectat, & pro tempore spectabit, plenissime suffragari, & ab eis respective inviolabiliter observari; sicque in præmissis per quoscumque Judices Ordinarios, & Delegatos, etiam Causarum Palatii Apostolici Auditores judicari, & definiri debere: ac irritum, & inane, si secus super his a quoquam quavis auctoritate scienter, vel ignoranter contigerit attentari.

5. Non obstantibus Constitutionibus, & Ordinationibus Apostolicis, necnon quatenus opus sit Vicariæ, & Ordinis præfatorum etiam juramento, confirmatione Apostolica, aut quavis firmitate alia roboratis statutis, & consuetudinibus, privilegiis quoque, indultis, & literis Apostolicis in contrarium præmissorum quomodolibet concessis, confirmatis, & innovatis. Quibus omnibus, & singulis, illorum tenores præsentibus pro plene, & sufficienter expressis, ac de verbo ad verbum insertis habentes, illis alias in suo robore permansuris, ad præmissorum effectum hac vice dumtaxat specialiter, & expresse derogamus, cæterisque contrariis quibuscumque.

Datum Romæ apud S. Petrum sub Annulo Piscatoris die 25. Junii 1727. Pontificatus Nostri Anno IV.

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TRADUÇÃO PORTUGUESA feita por Frei Pedro Caxito, O. Carm.

Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de Bento XIII

XXIX

Extraído do Bulário Romano – Tomo XII

p. 232

SUMÁRIO

É concedido aos nossos Carmelitas da Vigararia do Maranhão, no Brasil, que os que forem promovidos pelo Geral da Ordem ao Magistério na Sagrada Teologia possam receber do Vigário Provincial a Láurea do Doutorado.

O PAPA BENTO XIII

Para futura memória

1 - Os nossos diletos filhos, o Vigário Provincial com os outros Frades da Vigararia do Maranhão no Brasil, membros da Ordem da B.V. Maria do Monte Carmelo, fizeram com que recentemente nos fosse exposto que noutros tempos, depois que outrora o Papa Urbano VIII, nosso predecessor, por meio de certas cartas em forma de Breve, concedera no dia 27 de agosto de 1624, ao Pe.Teodoro Strácio, então Prior Geral, como também aos irmãos professos das Províncias da Espanha e de Portugal pertencentes à mesma Ordem, que todos os que terminaram as classes de leitura e outros exames literários exigidos pelos estatutos regulares da Ordem e que, “servatis servandis”, foram também estabelecidos e enriquecidos pelo citado Prior Geral como Mestres na Sagrada Teologia de acordo com as suas faculdades, isto é, concedera que poderiam receber a Láurea do Doutorado no Colégio de Santa Teresa de Salamanca da mesma Ordem, conforme o prescrito

nas cartas supracitadas, sem que para recebê-la fossem obrigados a freqüentar alguma Universidade de Estudos Gerais aprovada; o nosso predecessor de recente memória, o papa Inocêncio VIII, concedeu também que todos e cada um dos professos da citada Província de Portugal, que pelo Prior Geral da Ordem em exercício na época fossem estabelecidos e criados Mestres na mesma Sagrada Teologia poderiam receber tal Láurea de Doutorado após um prévio exame rigoroso perante o Prior Geral da mesma Província de Portugal e quatro Mestres da mesma Sagrada Teologia ou então perante o Reitor do Colégio de Coimbra pertencente à Ordem assim como diante dos seus Reitores e Mestres17; além disto concedeu também semelhante indulto aos frades das Províncias da Ordem na Bahia e no Rio de Janeiro18, ambas no Brasil. Quanto ao mais, queremos, por estas Cartas, que sejam tidas como plena e suficientemente claras as duas cartas de Inocêncio editadas acima em igual forma de Breve e as cartas de Urbano, um e outro predecessores nossos: o seu teor vem acima expresso.

2 - Como, porém - segundo ajuntava a mesma exposição - o primeiro dos indultos relembrados fora emanado em favor dos Irmãos Professos da Província de Portugal, visto que a tal concessão lhes fora feita pelo citado Urbano VIII, nosso predecessor, no tempo quando o Rei das Espanhas era também Rei de Portugal e visto que assim era possível aos religiosos, tanto Espanhóis como Portugueses, freqüentar com facilidade o Colégio de Salamanca para conquistarem a Láurea Doutoral, sobre a qual estamos falando. Contudo, tendo sido depois separados os dois Domínios, já o indulto ficou sem efeito e utilidade para os Portugueses, aos quais, devido à mudança da situação, não foi mais permitido o livre acesso ao dito Colégio, e assim outro indulto semelhante foi concedido aos Professos das Províncias da Bahia e do Rio de Janeiro por causa da sua demasiada distância da Europa; a Vigararia do Maranhão, porém, uma vez que, situada na remotíssima parte da vasta Região do Brasil, está ainda mais longe da Europa do que as Províncias da Bahia e do Rio de Janeiro e lá não aportam nunca os Navios Reais, nos quais os Religiosos da Vigararia poderiam viajar para Portugal. Por isso, os citados Expositores fizeram-nos humildes súplicas para que nos dignemos, segundo a nossa benignidade Apostólica, dar providências oportunas em seu favor, quanto ao caso presente.

3 – Nós, portanto, desejando ir de encontro aos mesmos Expositores com favores e graças especiais e a cada um deles absolvendo de quaisquer sentenças Eclesiásticas, censuras e penas “a jure” ou “ab homine”, se existem algumas em qualquer ocasião ou por qualquer motivo ou de qualquer modo cominadas, e assim, absolvendo-os seriamente destas censuras e discernindo que estarão

17 Em 14 de julho de 1723 (Bullarium Carmelitanum – Pars IV. Ed. José Alberto Ximenez, Roma 1768, p. 81-82).

18 Em 22 de dezembro de 1723 (Bullarium Carmelitanum – Pars IV. Ed. José Alberto Ximenez, Roma 1768, p. 83-85)

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absolvidas, nós nos inclinamos em favor de tais súplicas e, pela nossa autoridade Apostólica, segundo o teor das presentes Letras, concedemos igualmente e aprovamos indulgentemente que todos e cada um dos Frades da citada Vigararia, que expressamente fizeram profissão e a quem o dileto filho Moderno ou outro que na época seja o Prior Geral da Ordem, igualmente “servatis servandis”, tiver instituído e criado Mestres na mesma Sagrada Teologia, possam válida, livre e licitamente receber do próprio Vigário Provincial a Láurea de Doutorado, desde que tenham antecedido um rigoroso exame perante o Vigário Provincial da predita Vigararia e perante quatro Mestres na Sagrada Teologia ou Reitores e a aprovação por parte deles, observadas, além do mais, as condições prescritas pelas Constituições da mesma Ordem.

4 – Decretando que estas Presentes Letras sejam e serão sempre firmes, válidas e eficazes e que prevalecerão e obterão os seus efeitos plenários e íntegros com a força de Lei, e que serão plenissimamente em sufrágio daqueles, a quem dizem respeito e dirão no futuro e que respectivamente deverão ser inviolavelmente observadas; e quanto às determinações predispostas, deverão ser assim julgadas e definidas por quaisquer Juízes Ordinários e Delegados, até mesmo pelos Ouvidores do Palácio Apostólico: também deverá ser julgado ato írrito e sem valor, se acontecer atentar-se conscientemente ou por ignorância contra estas determinações por parte de qualquer um, por mais que seja dotado de qualquer autoridade.

5 – Não obstantes Constituições e Ordenações Apostólicas, como também, na medida de sua necessidade, algum juramento de atos da Vigararia ou da Ordem, ou estatutos fortalecidos por confirmação Apostólica ou qualquer outra confirmação e não obstantes costumes, privilégios também, indultos e Cartas Apostólicas de qualquer maneira que seja concedidas em contrário destas normas anteriores, mesmo confirmadas e renovadas. Quanto a todas estas determinações e a cada uma mantemos o seu teor pelas presentes cartas plena, clara e suficientemente expressas e inseridas, palavra por palavra; embora devessem noutra época prevalecer, desta vez, porém, para que as normas anteriores tenham o seu efeito, derrogamos a elas de maneira especial e expressamente, assim como a quaisquer outras determinações em contrário.

Dado em Roma, junto à Basílica de São Pedro, sob o Anel do Pescador, no dia 25 de Junho de 1727. Ano IVº do Nosso Pontificado.