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    Patrimnio industrial como tema de pesquisa

    Industrial heritage as a research subject

    Cristina MeneguelloUnicamp

    [email protected]

    Resumo: Reflexo sobre os diferentes campos de investigao que se abrem hoje aopesquisador brasileiro em patrimnio industrial, incluindo a questo dos processos coletivos eindividuais da memria associada ao trabalho (inclusive imaterial), os acervos e o estudo dos

    bens edificados associados indstria.Palavras-chave: patrimnio industrial; acervos; memria do trabalho

    Abstract: Analysis of the different research possibilities opened to the Brazilian researches on

    industrial heritage, including the collective and individual memory processes related to

    labour (also intangible heritage), the archives and edifications related to industry.

    Keywords: industrial heritage; collections; working memory

    O patrimnio industrial1est definitivamente inscrito como um campo de pesquisa e

    atuao que atinge, simultaneamente, a memria do trabalho, o estabelecimento e proteo de

    acervos e a presena das edificaes industriais na trama urbana. Ainda que no seja possvel

    esgotar todo o conhecimento adquirido sobre patrimnio industrial, tanto no exterior quanto

    no Brasil, possvel hoje entend-lo como um campo de investigao claro e especfico capaz

    de gerar para novas pesquisas dentro do tema.

    Em primeiro lugar, importante considerar a dimenso da preservao da memria do

    trabalho e dos trabalhadores, incluso o conhecimento de tcnicas e rotinas de produo, de

    organizao e de sociabilidade, dentro e fora do espao de produo. A indelvel associao

    entre os espaos de trabalho e as memrias dos trabalhadores incide tambm na dimenso

    imaterial da experincia industrial (os saberes, as rotinas de trabalho, as prticas cotidianas),

    tambm em veloz processo de desaparecimento. Essa dimenso do passado industrial, que

    inclui ex-trabalhadores, filhos ou netos de trabalhadores e a comunidade circundante, muitas

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    Este texto uma nova reflexo derivada de um trabalho atualmente no prelo junto Editora da UniversidadeEstadual de Londrina, intituladoPolifonias do Patrimnio.

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    vezes entra em cena e possibilita a atuao organizada de grupos pela proteo de algum bem

    em especfico trazendo, desse modo, o patrimnio industrial para a arena de debate poltico e

    civil.

    A segunda linha de argumento remete-se aos acervos ligados ao patrimnio industrial,

    sejam os documentais, sejam os que incluem maquinrio, ferramentas, peas de reposio,

    instrumentos de preciso, manuais e revistas tcnicas especializadas, estendendo-se at

    acervos artsticos que representam a atividade industrial a partir de fins do sculo XIX

    (quadros sobre a presena da indstria nos arrabaldes das cidades ou vitrais e painis

    presentes nos prprios edifcios fabris de administrao). Estes acervos so de difcil guarda e

    manuteno, ainda mais quando se referem a conjuntos que deram origem a outras atividades,

    fundiram-se ou, mais comumente, desapareceram. Ao mesmo tempo, estes acervos definidos

    pela cultura material constituem uma documentao pujante sobre a memria industrial.

    Ainda que alguns destes acervos encontrem-se hoje organizados, em arquivos pblicos ou em

    arquivos pertencentes s prprias empresas, uma grande parte descartada ou encontra-se em

    pssimo estado de conservao.

    Por fim, a terceira linha aqui sugerida remete-nos dimenso arquitetural, dos bens

    edificados como a prova mais evidente e sensria da importncia da indstria em dados

    perodos histricos. O desmantelamento de edifcios e galpes industriais, oficinas,

    matadouros, armazns, linhas frreas e estaes de trem, gasmetros, moinhos e fiaes, seja

    pela falta de critrios de valorizao por parte dos rgos oficiais de preservao - que ainda

    relutam em conceder valores indiscutveis a esse tipo de bem - seja pela fora da especulao

    imobiliria que centra sua ateno nas rentveis reas hoje centrais que esses bens ocupam,

    fazem do patrimnio industrial um problema urbano em larga escala. A dimenso dos bens ou

    conjuntos de bens industriais construdos, muitos mal conservados, outros em estado de runa,

    e outros tantos sofrendo discutveis intervenes, nos obrigam a pensar sobre como incluir aspreocupaes com o patrimnio industrial dentro de polticas de requalificao urbana. Estes

    bens relacionam-se entre si em complexas redes interligadas (como as ferrovias e todos os

    bens a elas associados) e sua salvaguarda isolada insuficiente para a compreenso da rede de

    recebimento de matria-prima, produo e escoamento que definem a atividade industrial.

    Pensar nos edifcios industriais, sobretudo, implica em pensar sobre como realizar as escolhas

    dos exemplares a serem protegidos antes que as reconverses ou, nos piores casos, as

    demolies, descaracterizem definitivamente sua contribuio para a memria e para a

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    cidade.2

    Quando em julho de 2003, na cidade de Nizhny Tagil, Rssia, foi firmada a Carta

    Patrimonial voltada exclusivamente para a preservao do patrimnio industrial, culminava-se

    um longo processo de percepo da necessidade de avaliar e proteger os vestgios da

    indstria, processo esse que contara, desde os meados do sculo XX, com a atuao

    apaixonada de profissionais e amadores, ligados arqueologia industrial, histria e

    arquitetura, engenharia e a planejamento urbano, dentre tantos outros. A Conferncia de

    2003 do TICCIH, (The International Committee for the Conservation of the Industrial

    Heritage, rgo fundado em 1978 e principal organismo internacional de preservao do

    patrimnio industrial) ao firmar a Carta, estabelecia a importncia fundamental de todos os

    edifcios e estruturas construdos para as atividades industriais, os processos e as ferramentas

    utilizados e a paisagem em que se inscrevem. A Carta defende que estas manifestaes,

    tangveis e intangveis, devem ser estudadas, sua histria ensinada e sua finalidade e

    significado conhecidos.3 Nos pases de industrializao longeva, como a Inglaterra, o incio

    deste longo processo que inclua a sensibilizao pblica e das autoridades para a importncia

    do patrimnio industrial coincidiu com os variados processos de desindustrializao e

    obsolncia das estruturas fabris. Em 1964, a Carta de Veneza incluiu o patrimnio industrial

    em suas consideraes, timidamente mencionando que as marcas dos ofcios comuns

    poderiam vir a ganhar significado ao longo do tempo. Em 1975 o European Council adotou a

    Recommendation relative larcheologie industrielle e, em 1978, uma mina de sal em

    Wieliczka, Polnia, foi considerada pela UNESCO o primeiro patrimnio industrial mundial

    mesmo ano em que, como mencionado, o International Committee for the Conservation of

    2 No utilizo aqui a expresso arqueologia industrial, mesmo reconhecendo a importncia dos estudos em

    arqueologia industrial que, em meados do sculo XX, inauguraram o campo do patrimnio industrial ao realizaros pioneiros levantamentos de estruturas, equipamentos e ofcios, encabeando os estudos e levantamentosrealizados em pases europeus. No raro os inventrios em patrimnio industrial originaram-se pela atuao dasassociaes dos arquelogos industriais ou de levantamentos feitos por historiadores amadores. Autores comoBeatriz Kuhl entendem a arqueologia industrial como ligada s mais diversas reas de especialidade resultandonum esforo multidisciplinar de realizao de inventrios, entrevistas, pesquisas histrico-documentais eiconogrficas, de anlise de artefatos, de edifcios e de conjuntos arquitetnicos (2008, p. 47 et seq.). Opto nessetexto pela utilizao da expresso patrimnio industrial, mais corrente no Brasil, em detrimento de arqueologiaindustrial. A segunda expresso prossegue tendo extrema aceitao no exterior, onde os inventrios dosarquelogos industriais culminam nos estabelecimentos de rotas de patrimnio industrial e de museus detcnica e tecnologia, como acontece por exemplo na Catalua (Espanha), Reino Unido, Pases Baixos e Itlia.3Carta de Nizhny Tagil, 17 de julho de 2003. Revista culum Ensaios, 2005, traduo de Cristina Meneguello.A traduo para o portugus preparada pelo arquelogo industrial Jos Manuel Lopes Cordeiro, da Universidade

    do Minho, Portugal, pode ser lida na pgina da Comit Brasileiro pela Preservao do Patrimnio Industrial, emwww.patrimonioindustrial.org.br

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    the Industrial Heritage (TICCIH) foi criado 4.

    A Gr-Bretanha foi assim o primeiro pas a encarar a necessidade de se proceder ao

    inventrio do patrimnio industrial, criando em 1962 o "Industrial Monuments Survey"

    dirigido, inicialmente, por Rex Wailes. As fichas de registro ento criadas e o enorme volume

    de informao resultante deste trabalho (cerca de 30.000 fichas obtidas num perodo de dois

    anos) levaram constituio, em 1963, do "National Record of Industrial Monuments

    (NRIM)". A partir de 1965 o trabalho de inventrio passou para a responsabilidade de R. A.

    Buchanan, no Centre for the Study of the History of Technology, sendo transferido em 1981

    para a Royal Commission on Historical Monuments of England, e a partir de ento integrado

    nas atividades desta instituio. Livros e revistas sobre o tema seguiram o processo, dentre os

    quais a grande referncia para o tema, o The Journal of Industrial Archaeology, iniciado em

    19645. Questes prticas e tericas presentes nesse processo estimularam a criao de

    4Segundo a anlise da Associao Portuguesa para o Patrimnio Industrial (APPI), dentre os bens listados pelaUnesco como patrimnio mundial (689 bens culturais, 176 bens naturais e 25 bens mistos), 44 podem serreconhecidos como patrimnio industrial. So eles, seguidos da data de listagem como patrimnio mundial: NaAlemanha: Minas de Rammelsberg e Cidade Histrica de Goslar (1992), Complexo Siderrgico de Vlklingen(1994), Bauhaus em Weimar e Dessau (1996) e Complexo Industrial da Mina de Carvo de Zollverein em Essen(2001); na ustria, Paisagem Cultural de Hallstatt-Dachstein, Salzkammergut (1997) e Linha do Caminho deFerro de Semmering (1998); na Blgica, Quatro Elevadores do Canal du Centre, La Louvire e Le Roeulx em

    Hainault (1998) e Complexo Museolgico, Oficinas e Casa de Plantin-Moretus (2005); na Eslovquia (1993), acidade histrica de Bansk tiavnica e os monumentos tcnicos de seu entorno; na Espanha, Las Medulas (umaantiga explorao romana de ouro a cu aberto, 1997), a ponte suspensa de Vizcaya (2006); na Finlndia, afbrica de madeira e de papelo de Verla (1996); na Frana, as Salinas Reais de Arc-et-Senans (1982), o Canaldo Midi (1996) e a cidade de Le Havre, reconstruda por Auguste Perret (2005); na Itlia, o complexo txtil eoperrio de Crespi d'Adda prximo a Bergamo (1995); nos Pases Baixos, a Rede de Moinhos de Kinderdijk-Elshout (1997) e a estao elevatria a vapor D.F. Woudagemall (1998); na Polnia, como mencionado, o

    primeiro bem tombado como industrial, as Minas de Sal de Wieliczka (1978) e tambm o Salo do Centenrioem Wroclaw (2006); em Portugal, o Centro Histrico do Porto (1996) e a Regio Vitivincola do Alto Douro(2001); no Reino Unido, Ironbridge (1986),o industrial landscape de Blaenavon (2000), as Fbricas Txteisdo Vale de Derwent (2001), as cidade operrias de New Lanark (2001) e Saltaire (tambm 2001), a cidade

    porturia de Liverpool (2004) e a paisagem mineira da Cornualha e de Devon; na Noruega, a cidade mineira deRros (1980); na Sucia, a Fbrica Metalrgica de Engelsberg (1993), a regio mineira da montanha de cobre de

    Falun (2001), a Estao de Rdio de Varberg (2004) e o arco geodsico de Struve (2005). A ndia tem umexemplar isolado, a ferrovia himalaia de Darjeeling (1999). Nas Amricas, a listagem dos bens industriaisincluiu o Mxico, com a Cidade Histrica de Guanajuato e suas minas adjacentes (1988), o Centro Histrico deZacatecas (1993), a paisagem de Agave e as instalaes industriais de Tequila (2006); na Bolvia, a cidademineira de Potosi (1987); no Brasil, a cidade histrica de Ouro Preto (1980) e o centro histrico da cidade deGois (2001), ambos reconhecidos pela atividade da minerao; no Chile, as fbricas de nitrato de Humberstonee Santa Laura (2005) e a cidade mineira de Sewell (2006); e em Cuba, a regio de Trinidad e o Vale dosEngenhos (1988). Cf. o site da APPI, http://www.museudaindustriatextil.org/appi/patrimonio-humanidade. Alistagem da UNESCO, referente exclusivamente ao patrimnio mundial, deve ser lida com critrio edesconfiana, pois em muitos dos pases mencionados h intensa preservao em nvel nacional (o caso da Gr-Bretanha, Frana, Espanha e os pases baixos e escandinavos). Do mesmo modo, os exemplares mundiais

    brasileiros encontram-se em sofrvel estado de conservao.5 Uma histria dos enfoques sobre o tema poderia ser contada a partir dos peridicos estrangeiros que

    sistematicamente publicaram sobre vestgios industriais. Dentre os peridicos internacionais, destaque-se aRevista Arqueologia Industrial (Portugal), fundada em 1987 e ligada Associao Portuguesa de Arqueologia

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    inventrios que ainda so referncia para outros pases6.

    Um ltimo aspecto a ser salientado de que, nos ltimos anos, diversos autores tm

    chamado a ateno para o fato de uma grande parte dos trabalhos realizados na Europa

    durante as dcadas de 1960 e 1970 privilegiaram aspectos descritivos em detrimento dos

    analticos, consistindo principalmente no inventrio de stios industriais, assim como na

    descrio dos diferentes aspectos do patrimnio industrial, sejam equipamentos, mquinas ou

    edifcios. fcil compreender que a nfase ento colocada nestes aspectos correspondeu a

    uma fase de estabelecimento da disciplina, no obstante j nessa poca alguns sublinharem a

    necessidade de que a arqueologia industrial no podia "coincidir com a histria das tcnicas,

    das tipologias arquitetnicas e das classificaes dos objetos, j que assim no faria outra

    coisa do que percorrer ocaminho obscuro do antiquariado e do colecionismo. O que se deve

    estudar no so as coisas, mas sim homens e relaes sociais, a partir dos seus meios

    materiais de subsistncia e produo" (CARADINI, 1979, p. 249).Nas palavras deMarilyn

    Palmer e Perter Neaverson, os elementos informativos que a investigao documental do

    patrimnio industrial podem proporcionar s podero contribuir para uma explicao vlida

    do processo de industrializao se simultaneamente existir uma problemtica de carter

    terico, "que inclua no apenas questes funcionais ou tecnolgicas mas tambm aquelas

    relacionadas, por exemplo, com as relaes sociais e o significado simblico das estruturas.

    Se a arqueologia industrial pretende vir a ser aceite como uma componente credvel da

    arqueologia, tem de adoptar uma postura mais terica e tornar-se- mais fecunda na

    actuao. Ser no apenas responsvel pelo registo das estruturas e artefactos do passado

    recente que vierem a ser encontradas, pela tentativa de as integrar num contexto econmico e

    tecnolgico, assim como por tentar explicar de que modo elas indicam a mudana ou a

    permanncia no comportamento humano. Nesta perspectiva, pode proporcionar um claro

    contributo para uma compreenso do desenvolvimento da sociedade humana"7

    Industrial; o peridico da Associao Italiana pelo Patrimnio Arqueolgico Industrial (Associazione Italiana peril Patrimonio Archeologico Industriale, fundada em 1997, ou a seu antecessor, o peridico da Associazione perlArcheologia Industriale que, fundada em 1977, publicou seu Bollettino entre 1981 e 1993 (disponvel onlineem http://www.patrimonioindustriale.it/strumenti/rivista.shtm). Atualmente, os artigos do Boletim do TICCIH,diligentemente elaborado por James Douet, indicam os progressos na temtica (http://www.mnactec.com).Abordagens tericas consistentes podem ser encontradas tambm nos vrios nmeros da Revista Monuments

    Historiques (Frana) ou nos vrios volumes da Industrial Archaeology Review (Reino Unido). A RevistaEletrnica do IPHAN dedicou seu nmero 4 ao tema do patrimnio industrial (Disponvel emhttp://www.iphan.gov.br).6Um bom exemplo da excelente qualidade do trabalho de inventrio do patrimnio industrial britnico pode

    apreciar-se no livro de Geoffrey D. Hay e Geoffrey P. Stell (1986).7Apud Cordeiro In: MENEGUELLO & RUBINO, (2004, p. 13).

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    Os pases latino-americanos comearam a encarar seriamente a necessidade de

    preservao de seu patrimnio industrial apenas durante as ltimas dcadas, em especial

    devido vasta destruio de fbricas, armazns e outros smbolos do perodo industrial, alm

    da dos smbolos dos sculos precedentes, como engenhos de acar e equipamentos

    relacionados atividade mineradora. Se concordamos que a arqueologia industrial objetiva

    produzir conhecimento histrico sobre perodos passados assim como inventariar objetos,

    imagens e processos (COVINO, 1980), devemos considerar que ela inclui o repertrio

    tecnolgico e as relaes entre os homens e seu ambiente, assim como o conhecimento

    compartilhado de processos industriais que se concretizam em relaes sociais (CERDA e

    BONAF, 1995). Como afirmou Jos Cordeiro, fbricas e minas no so apenas edifcios ou

    exemplos de ofcios e tcnicas, mas locais de trabalho nos quais se estabelecem relaes

    sociais de produo (CORDEIRO, 1987, p. 85-86).

    No Brasil, os estudos em arqueologia industrial foram tambm pioneiros nos

    levantamentos e reflexes sobre o tema. No mesmo ano em que comeava a ser veiculado o

    celebradoJournal of Industrial Archaeologyna Inglaterra, no Brasil o rgo de preservao

    federal promovia o tombamento da Real Fbrica de Ferro So Joo de Ipanema (Iper, So

    Paulo) e no livro de tombo, justificava: remanescente de arqueologia industrial do primeiro

    complexo funcionante para explorao e fabricao de ferro no Brasil. 8Haviam se passado

    quase trinta anos desde o primeiro tombamento de exemplar de produo industrial, a Fbrica

    de Ferro Patritica de So Julio, localizada nos arredores de Ouro Preto e fundada pelo baro

    de Eschwege em 1812, inscrita no livro do Tombo Histrico em 30 de junho de 1938, ou

    seja, ainda dentro do reconhecimento promovido pelos modernistas da imagem de patrimnio

    nacional associada s Minas Gerais e riqueza proporcionada pela explorao do ouro; e da

    srie de engenhos tombados na dcada de 1940, num momento de desagregao deste modo

    de explorao da cana-de-acar no nordeste brasileiro.O surgimento do IPHAN em 1936 trouxe, de um lado, a sedimentao de uma idia de

    nao e de passado nacional, pelo estabelecimento de um rgo federal centralizado no

    recm-criado Ministrio da Educao e Sade Pblica e que podia legislar sobre todo o

    patrimnio nacional, a partir de um grupo de intelectuais como Lcio Costa, Mrio de

    Andrade, Lus Saia, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Gilberto Freire, entre outros,

    aglutinados ao redor de Gustavo Capanema, que esposavam uma viso moderna de

    8Citado por Claudia dos Reis e Cunha em sua dissertao de mestrado (2005, p. 132).

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    patrimnio - histrico e artstico. Neste processo de centralizao dos smbolos nacionais aps

    1937, so diversos os fatores que podem explicar a eleio do passado histrico e artstico

    nacional como religioso, barroco, colonial, urbano e concentrado em Minas Gerais, Bahia,

    Rio de Janeiro e Pernambuco. Estes bens eram, nas palavras de Rodrigo Melo Franco de

    Andrade, documentos de identidade da nao.

    Nessa idia de patrimnio como expresso do carter nacional foram diversas as

    lacunas. No havia lugar para o ecletismo, visto como uma profuso de estilos estrangeiros e

    tambm como marco de modernizao da Primeira Repblica. O barroco colonial, ao

    contrrio, era aceito como a primeira manifestao cultural brasileira. Sem essa aura de

    origem muito foi apagado: no apenas o ecletismo como tudo o que se referia contribuio

    do imigrante, a experincia da urbanizao intensa e nascente indstria e suas marcas no

    tecido urbano. A primeira cidade tombada, Ouro Preto, tornou-se nesse sentido uma espcie

    de mito fundador da preservao no Brasil, um locuspara a construo do binmio colonial-

    modernista que caracterizou as prticas de patrimonializao pelo menos at o ps-guerra,

    como tambm uma prtica discursiva, uma narrativa que ilustra a existncia da nao

    (GONALVES, 1996, p. 33).

    Exemplares industriais tombados em nvel federal so ainda muito poucos e, tambm

    em nvel estadual ou municipal, as prticas dos Conselhos de Preservao do Patrimnio ou

    dos rgos de tombamento caminham lentamente no reconhecimento destes bens. Hoje, no

    pas, esto inscritos no livro do tombo os seguintes exemplares de patrimnio industrial

    (segundo o estado da federao e a data da inscrio no livro do Tombo): no Amazonas, o

    Reservatrio de Moc (1985), o Mercado Municipal (1987), o conjunto arquitetnico do

    Porto de Manaus (1987); na Bahia, o sobrado e a capela do Engenho Lagoa (1942), o sobrado

    e fbrica de acar do Engenho Matoim (1943), o sobrado do Engenho Embiara (1943),

    sobrado, capela e senzala do Engenho Vitria (1943), o sobrado, fbrica de acar e Capelade N.S.da Piedade do Engenho Freguesia (1944), casa e capela do Engenho So Miguel e

    Almas (tambm 1944); no Maranho, as runas do Stio do Fsico (1981), o prdio da Fbrica

    Santa Amlia (1987) e a casa do Engenho Central So Pedro (1998); em Minas Gerais, as j

    mencionadas runas da Fbrica de Ferro Patritica (1938), o complexo ferrovirio de So Joo

    del Rei (1989) e o conjunto histrico, arquitetnico e paisagstico de Cataguases (2003); no

    Par, o conjunto arquitetnico do mercado Ver-o-Peso (1977); na Paraba, a Fbrica de Vinho

    Tito Silva (1984); em Pernambuco, a casa grande e capela do Engenho Poo Comprido

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    (1962); no Paran, o Engenho do Mate (1985); no Rio Grande do Norte as runas da capela do

    Engenho do Cunhau (1964); em Rondnia, a recente inscrio do ptio ferrovirio da Estrada

    de Ferro Madeira Mamor (2008). As regies sul e sudeste acumulam um patrimnio

    industrial federal da industrializao mais recente. Santa Catarina tem tombada a ponte

    Herclio Luz em Florianpolis (1998) e o Rio Grande do Sul o Cais do Porto em Porto Alegre

    (1983). Rio de Janeiro tem inscritos no livro do tombo o Jardim Botnico (1938), o trecho

    ferrovirio Mau-Fragoso (1954), o Palcio de Cristal (1967), o conjunto de habitao

    coletiva da avenida Modelo (1985), o hangar de zepelins da Base Area de Santa Cruz (1998);

    a Estao Dom Pedro II (Central do Brasil, 2008); So Paulo, alm dos mencionados vestgios

    da Real Fbrica de Ferro So Joo do Ipanema em Iper (1964), tem tombadas as runas do

    Engenho dos Erasmos em Santos (1963), o Casaro do Ch em Mogi das Cruzes (1985), a

    Estao da Luz (1996), a Estao Ferroviria de Mayrink, projeto de Victor Dubugras (2004),

    o Conjunto de edificaes da Companhia Paulista de Estrada de Ferro (tambm 2004) e a Vila

    Ferroviria de Paranapiacaba, que recentemente concorreu inscrio como patrimnio

    mundial (2008).9 A lista mostra a atitude parcial e incompleta perante os bens industriais,

    animada por ondas inconstantes de interesse por bens em especfico (engenhos h algumas

    dcadas, por exemplo), e no sustentadas em parmetros claros.

    Em termos dos rgos de preservao estaduais ou mesmo municipais, a importncia

    dos espaos do trabalho e da produo redefine-se; muitas vezes associados a afetividades

    locais, ou definidores dos aspectos urbanos de bairros ou mesmo cidades, os espaos fabris ou

    ferrovirios so reconhecidos como partes da realidade urbana que no podem simplesmente

    ser obliterados.

    O caminho para a valorao do patrimnio industrial no pode residir exclusivamente

    na atuao dos rgos governamentais de preservao, mas na atuao da sociedade

    organizada. No mesmo ano em que foi firmada a Carta de Nizhny Tagil (alguns meses antes,no ms de maro), um grupo de interessados, acadmicos e no acadmicos, havia se reunido

    em So Paulo, em uma sala da Escola de Sociologia e Poltica, para subscrever uma Carta

    Manifesto que estabelecia um Comit Provisrio pela Preservao do Patrimnio Industrial

    no Brasil, iniciativa que desembocou na criao do Comit Brasileiro para a Preservao do

    9Informaes obtidas a partir do minucioso levantamento realizado por Eloisa Dezen-Kempter no arquivos doIPHAN, parte de sua pesquisa de doutorado, ainda indita. O Engenho dos Erasmos, em Santos, estado de SoPaulo, registrado em 1963, foi um dos nicos a ser restaurado e aberto a visitantes na dcada de 1960. Detalhes

    podem ser vistos em Andreatta (1999) assim como na dissertao de Fernanda Maria Felipe dos Anjos (2003).

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    Patrimnio Industrial, fundado no ano de 2004 durante um encontro na Universidade Estadual

    de Campinas.

    O esforo no era novo nem indito. Trabalhos como os de Ruy Gama sobre os

    engenhos, o artigo do historiador norte-americano Warren Dean ainda em 1976 sobre a

    fbrica So Luiz de Itu, o inventrio fotogrfico ainda indito preparado por Philip Gunn e

    Telma Correia, os estudos sobre o cotidiano fabril de Edgar De Decca e de Maria Auxiliadora

    de Decca, as reflexes de Ulpiano Bezerra de Meneses e estudos como os de Odilon Nogueira

    de Matos e Bandeira Jnior, entre outros, vinham embasando uma metodologia e uma

    reflexo sobre o tema no Brasil. Assim como ocorrera com a experincia inglesa, os primeiros

    a perceberem a importncia desse patrimnio foram aqueles envolvidos no estudo da histria

    da tecnologia e do maquinrio, ainda na dcada de 1960 10. Progressivamente, contaram com

    a companhia de historiadores e arquitetos interessados nas prticas do trabalho industrial e

    nos vestgios arquitetnicos.

    Em 1986, o primeiro encontro nacional no tema ocorreu organizado pela Companhia

    de Fora Eltrica de So Paulo (Departamento de Patrimnio Histrico da Eletropaulo).

    Deste 1 Seminrio Nacional de Histria e Energia participaram e palestraram conferencistas

    internacionais como Fabienne Cardot, Jos Manuel Lopes Cordeiro e Eddy Stols e Warren

    Dean, alm de Ulpiano Bezerra de Menezes, Ruy Gama, Paul Singer e Carlos Lemos. Uma

    dcada mais tarde, o papel do legado da industrializao foi recuperado nas reunies do

    Grupo de Estudos de Histria da Tcnica GEHT em Campinas (1997). Preocupados com a

    conservao dos bens culturais ligados aos ofcios, s profisses e s indstrias, este grupo

    lanou em janeiro de 1999 uma Declarao em defesa das construes e instalaes utilitrias,

    rapidamente batizada de Carta de Campinas 11. Este documento proferia uma crtica

    tristemente atual aos critrios estticos utilizados pelos Conselhos do rgos de Tombamento

    que levavam desapario sistemtica dos bens industriais. Acusava-se talvezinjustamente, ao no observar a fora devastadora dos imperativos econmicos os

    Conselhos de Tombamento como os grandes responsveis pelo sucateamento do patrimnio

    industrial. Os testemunhos materiais das atividades produtivas (mquinas, ferramentas,

    10Este grupo, em princpio, dedicou-se atividade de produo do perodo colonial. De acordo com AndreySchlee, os primeiros trabalhos produzidos na dcada de 1980 foram influenciados pelos princpios daarqueologia industrial assim como pelos estudos do belga Eddy Stols, que participou de diversos encontros noBrasil e apoiou a catalogao do patrimnio industrial do estado de Santa Catarina.11A Carta pode ser consultada, por exemplo, Declarao do GEHT em defesa das construes e instalaes

    utilitrias (Declarao de Campinas), em seu stio original datado de 1999(http://www.geocities.com/RainForest/9468/utilitar.htm ou em http://sos-monuments.upc.edu/brasil/carta.htm)

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    moldes, modelos e prottipos, instalaes agrcolas e industriais, oficinas e edificaes

    pertinentes) desaparecem por serem preteridos pelos Conselhos de Tombamento. As

    decises de tombamento estariam muito mais alimentadas por critrios estticos, que

    resultavam na conservao de edificaes oficiais e particulares determinadas pela riqueza

    de seus proprietrios negligenciando as construes utilitrias, por seu pequeno porte ou por

    aliarem simplicidade e a funcionalidade ao despojamento decorativo(cit.). A Carta de

    Campinas assim indicava que os testemunhos materiais das atividades produtivas (mquinas,

    ferramentas, instalaes agrcolas e industriais, edificaes, oficinas) e seus respectivos

    documentos deveriam obter dos Conselhos de Tombamento, arquivos, museus e bibliotecas

    ateno na mesma medida que bens culturais tais como, igrejas, solares ou fortalezas.

    A dimenso poltica e histrica da preservao do patrimnio industrial caminha lado

    a lado com a formao de grupos organizados capazes de atuar em diferentes frentes em prol

    da preservao de bens e acervos. As associaes so um aspecto da organizao civil que

    no pode ser minorado, pois indica os diversos esforos, ao longo dos ltimos anos, de

    organizao da sociedade pelos seus bens de patrimnio industrial.

    Para preservar (ou descartar) necessrio conhecer, o que s possvel pelo estudo

    sistemtico. A memria dos trabalhadores tem sido uma das searas mais percorridas pela

    histria social recente no Brasil. Os estudos sobre a organizao do operariado urbano (e

    tambm dos trabalhadores rurais), as pesquisas apoiadas na diligente anlise da documentao

    de tribunais, sindicatos, da imprensa operria e da prtica da histria oral originaram um

    nmero significativo e de grande qualidade de teses e dissertaes sobre o tema nas ltimas

    dcadas, e permitiu vislumbrar mundos do trabalho dos ofcios praticamente extintos como

    seleiros, ferreiros e mascates; conhecer as rotinas das primeiras fiaes, fbricas de porcelana,

    serralherias e azulejarias, portos, matadouros e curtumes, do mesmo modo que possibilitou os

    estudos sobre os modos de trabalho, moradia, lazer e organizao da indstria do ao,qumica, automobilstica, naval, txtil entre tantas outras. Estas pesquisas monogrficas

    possibilitaram conhecer a realidade da vida dos trabalhadores e de suas estratgias de

    organizao em empresas especficas 12. Como observou Leonardo Silva, um aspecto pouco

    12Para uma anlise deste tema sugiro conferir as anlises, com a diferena de pouco mais de uma dcada, deMichael M. Hall e Paulo Srgio Pinheiro. Alargando a histria da classe operria: organizao, lutas econtrole.Remate de Males[Libertrios & militantes. Arte, memria e cultura anarquista], nmero 5, 1985 e deCludio Henrique de Moraes Batalha. A historiografia da classe operria no Brasil: trajetria e tendncias. In:

    Historiografia Brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998. Para uma bibliografia concisa e slida,indico a apresentao do Projeto Temtico Fapesp (06/57297-1) desenvolvido pelos pesquisadores do

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    considerado do patrimnio industrial que ele um campo de investigao vivo, e no

    passadista ou morto. Isso porque no se limita apenas a um conjunto de bens arquitetnicos

    ou stios cheios de objetos e partes de objetos interessantes. (...). Nesse sentido, o patrimnio

    industrial permite a elucidao da transmisso de um saber tcnico. Ele permite estabelecer,

    hoje, um elo entre as formas de produzir - o que envolve homens/mulheres e mquinas - e a

    cultura. (Mello e Silva, 2006: 01).

    Podemos afirmar que estudar essa memria estudar uma dimenso constitutiva,

    ainda que muitas vezes no associada diretamente, do patrimnio industrial. A dimenso das

    tradies e identidades compartilhadas nos campos das reivindicaes, do lazer, da formao

    de grupos e associaes considerando que as relaes de trabalho extrapolam o campo do

    espao de trabalho em si. Inversamente, os edifcios fabris, sem a compreenso dos usos que

    tiveram e das atividades ali desenvolvidas, so apenas invlucros.

    O vastssimo patrimnio industrial brasileiro, com seus engenhos, minas, portos,

    ferrovias, moradias operrias, barragens e represas, complexos industriais do sculo XIX e

    tambm os mais recentes (o que inclui um vasto patrimnio arquitetnico moderno das

    dcadas de 1930, 1940 e 1950, hoje igualmente ameaado) ainda desconhecido, mal

    conhecido, ou desaparece a cada dia. O Brasil no possui um inventrio nacional de seu

    patrimnio industrial e mesmo a documentao relativa atividade da indstria encontra-se

    apenas parcialmente organizada. H dezenas de acervos desestruturados, em pssimo estado

    de conservao ou sendo descartados, tanto no que se refere memria ferroviria do pas,

    quanto no caso de documentao relativa a certas indstrias e moinhos demolidos, ou a

    campos de atuao especfica, como os monjolos no sul do pas, as fiaes txteis na regio

    sudeste e nordeste ou mesmo a indstria pesada mais recente. A documentao que se associa

    ao patrimnio industrial por vezes perde-se antes do desaparecimento dos vestgios fsicos do

    bem, e perde-se por diversas razes: por se encontrar separada fisicamente dos objetos a quefazem referncia. So documentos que foram encaminhados a diferentes acervos a parte de

    falncias, concordatas ou demolio de imveis; partes desmembradas e incorporadas em

    outros acervos; documentao pertencente a particulares ou cuja guarda foi estabelecida em

    cartrios. Torna-se fundamental fotografar, catalogar e avaliar esses remanescentes da

    atividade industrial, produzindo evidncias para a futura conservao de todos esses

    Cecult/IFCH/Unicamp denominado Trabalhadores no Brasil: identidades, direitos e poltica (sculos XVIII aXX), que pode ser acessado em http://www.unicamp.br/cecult/pdf/proj_trabalhadores_no_brasil.pdf.

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    equipamentos e locais, frutos da atuao e do trabalho humano.

    Ressalte-se que, ao mencionarmos os acervos, no caso do patrimnio industrial no

    estamos apenas lidando com documentao, papis, blueprints ou fotografias. Todos os

    artefatos, maquinrios, ferramentas, utenslios, peas de reposio que definem os usos da

    indstria padecem de duplo mal: de um lado, ao serem retirados dos locais de trabalho,

    tornam-se sucata uma sucata sem lugar, sem armazenamento e sem utilidade possvel num

    pas que no possui tradio, por exemplo, em museus de tcnica e tecnologia. De outro lado,

    privam os locais de trabalho de sentido e de lgica, deixando-os como imensos galpes

    vazios, prontos para serem ressignificados de forma geralmente apartada dos usos

    industriais.

    Os acervos, sejam papis, sejam ferramentas, tm importncia inseparvel dos objetos

    a que fazem referncia. So vestgios que permitem compreender tcnicas desaparecidas,

    processos de trabalho, usos e memrias associadas ao patrimnio industrial. So estes

    documentos e monumentos que do sentido e permitem compreender os remanescentes

    industriais porventura existentes, permitindo inclusive informar e balizar eventuais processos

    de listagem. Tombamento e restauro. urgente reconhecer a importncia em se considerar a

    preservao dos patrimnios associados cincia e a tecnologia, em suas diferentes

    manifestaes.

    Chegamos assim dimenso concreta do patrimnio industrial. A arquitetura

    industrial dotada de inteligncia e tcnica especficas, em busca da mxima eficincia da

    produo e dos fluxos internos, da menor perda de tempo nos deslocamentos dos produtos e

    dos operrios, e caracterizada pela estandartizao e velocidade de construo. Ao longo do

    sculo XIX, os edifcios industriais no Brasil seguiram os padres existentes na Inglaterra e

    na Blgica; estruturas inteiras so replicadas, quando no importadas de forma total, no por

    uma deficincia na imaginao arquitetnica nacional, mas pela prpria natureza dasconstrues industriais padronizadas. Plantas simplificadas de fbricas, publicadas em

    revistas ou panfletos, eram recriadas em territrio nacional dando origem a uma arquitetura

    annima, dos contramestres ou dos formados em liceus de artes e ofcios.

    Existe um vago consenso sobre a importncia das fbricas e vilas operrias do sculo

    XIX, mas, independente disso, estas continuam a ser descaracterizadas. Como observou

    Beatriz Kuhl (2009), os casos nacionais sofrem a falta de critrios tericos que embasem os

    restauros de arquitetura industrial. Persiste a dificuldade na preservao dos edifcios de

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    inspirao oitocentista, de ossatura metlica, sem pavimentos e envoltas por tijolos, que se

    tornam as grandes vtimas das reformas disfaradas sob o nome de restaurao. Tais edifcios

    industriais so transformados livremente, sua volumetria alterada, partes inteiras demolidas, o

    que s seria possvel no caso de edifcios sem quaisquer qualidades intrnsecas, ou por no se

    possuir clareza sobre os motivos pelos quais so preservados os bens culturais ou sobre os

    critrios de como faz-lo.

    Como se v, uma das disciplinas que mais tem feito avanar o debate a arquitetura,

    que depara efetivamente com estes bens em sua realidade de atuao sobre a realidade urbana.

    Multiplicam-se os feitos pioneiros materialmente observveis, desde o controverso e

    celebrado restauro da dcada de 1980 de Lina Bo Bardi para a fbrica de tambores Mauser &

    Cia (1938) transformando-a em SESC Pompia, So Paulo, passando por casos tambm

    paulistanos de resultados discutvel como a Estao da Luz e o Cotonifcio Crespi (hoje um

    supermercado) e culminando no recente singelo restauro de um moinho como Museu do Po

    (Ilpolis, RS, de M. Ferraz e F. Fanucchi)13.

    Esta dimenso fsica do patrimnio industrial, como j apontara Ulpiano Bezerra de

    Menezes, integra a cultura material socialmente apropriada pelo homem e d a ela forma,

    funo e sentido. Dentro da cultura material, os artefatos permitem perceber as relaes

    sociais e trazem embutidos em sua materialidade os atributos e propriedades decorrentes da

    forma como os homens se organizam em sociedade (MENEZES, 1988, p. 68). Por esta

    razo, os artefatos que constituem o patrimnio industrial englobam as edificaes, as

    estruturas e os bens mveis e os stios industriais de forma geral, sem os quais os

    conhecimentos e as tcnicas encontram-se privados de sentido. As unidades industriais muito

    raramente podem ser entendidas como edifcios isolados; a estrutura s tem sentido se

    compreendida como um todo interligado vrias outras estruturas e etapas da produo.

    Como observou Menezes, o espao resultante do fenmeno industrial [] socialmenteproduzido enquanto um conjunto de objetos solidariamente interrelacionados e

    espacialmente dependentes (idem:ibid.)

    A preservao ou a ausncia de preservao fazem parte de um mesmo processo

    seletivo; as escolhas justificadas de proteo de edifcios, com critrios informados, assim

    como o desinteresse ou a sobrevivncia aleatria dos bens incidem sobre as cidades e a

    13Como o foco deste captulo o estabelecimento do patrimnio industrial como campo de debates e pesquisa,

    evitarei apresentar em detalhe as restauraes recentes no Brasil de edifcios industriais. Para os interessados,recomendo os artigos e recente livro (2009) da pesquisadora Beatriz Kuhl.

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    preservao de sua memria. Inventrios sistemticos e alicerados na arquitetura, na

    histria, na arqueologia e tambm nos interesses afetivos e imateriais que circundam os

    edifcios podem efetivamente permitir avaliar o valor e o papel que estes bens tm para as

    comunidades e para alm das comunidades, e permitir ou no a sua permanncia.

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