O Açúcar NA MADEIRA. SÉCULOS XVII E XVIII

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O Açúcar NA MADEIRA. SÉCULOS XVII E XVIII ALBERTO VIEIRA 1996 FUNCHAL-MADEIRA EMAIL:[email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/ OS CANAVIAIS MADEIRENSES O REGIME FUNDIARIO ESCRAVOS COM OU SEM AÇÚCAR O ENGENHO OS OFïCIOS DO Açúcar ADMINISTRAÇÃO E DIREITOS O COMÉRCIO DE AÇÚCAR DIOGO FERNANDES BRANCO: UM CASO EXEMPLAR A tradição historiográfica tem defendido erradamente a ideia de que os canaviais sucumbiram, na primeira metade do século XVI, com a concorrência das produções de outras ilhas e, nomeadamente, do Brasil. O trabalho que agora se apresenta demonstra precisamente o contrario. O açúcar não desapareceu dos nossos poios e quotidiano. Ele casou com o madeirense e acompanhou- o na ilha e fora dela. A par disso há uma tradição da industria açucareira, assente na laboração do açúcar por meio das conservas ou casquinha, nas tecnologias, que persistiu, quase até à actualidade. E hoje de novo a cultura parece querer regressar aos nossos campos. No começo a cultura foi alvo de mil cuidados. Era a coqueluche das plantas que acompanharam os primeiros colonos na diáspora atlântica. Esta realidade está evidenciada na permanente intervenção da coroa, do senhorio e município nas fases de cultivo, transformação e comércio. Nunca uma cultura e produto final foram alvo de tão apertada regulamentação e vigilância. Esta luta materializa-se na defesa e manutenção da qualidade do produto colhido no solo insular, no que foi acompanhada pelos demais como o vinho e o pastel. A todos definiam-se, por regimentos específicos, as tarefas de cultivo, cuidado e laboração final do produto, de modo a que este se apresentasse nas condições e quantidades necessárias para a sua comercialização. Na Madeira e Canárias o açúcar foi alvo de constantes regulamentações e de um controlo assíduo dos alealdadores para o efeito eleitos em vereação. Nos séculos XVI e XVII a intervenção das autoridades resultava apenas da necessidade de garantir ao açúcar da ilha uma posição dominante no mercado interno e a situação concorrencial nos mercados nórdico e mediterrânico. A concorrência do açúcar brasileiro será, por algum tempo, o motivo de discórdia entre os vários interesses em jogo. A incidência destas medidas é pontual e

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O Açúcar NA MADEIRA. SÉCULOS XVII E XVIII

ALBERTO VIEIRA

1996

FUNCHAL-MADEIRAEMAIL:[email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/

OS CANAVIAIS MADEIRENSES

O REGIME FUNDIARIO

ESCRAVOS COM OU SEM AÇÚCAR

O ENGENHO

OS OFïCIOS DO Açúcar

ADMINISTRAÇÃO E DIREITOS

O COMÉRCIO DE AÇÚCAR

DIOGO FERNANDES BRANCO: UM CASO EXEMPLAR

A tradição historiográfica tem defendido erradamente a ideia de que os canaviais sucumbiram, na primeira metade do século XVI, com a concorrência das produções de outras ilhas e, nomeadamente, do Brasil. O trabalho que agora se apresenta demonstra precisamente o contrario. O açúcar não desapareceu dos nossos poios e quotidiano. Ele casou com o madeirense e acompanhou-o na ilha e fora dela. A par disso há uma tradição da industria açucareira, assente na laboração do açúcar por meio das conservas ou casquinha, nas tecnologias, que persistiu, quase até à actualidade. E hoje de novo a cultura parece querer regressar aos nossos campos.

No começo a cultura foi alvo de mil cuidados. Era a coqueluche das plantas que acompanharam os primeiros colonos na diáspora atlântica. Esta realidade está evidenciada na permanente intervenção da coroa, do senhorio e município nas fases de cultivo, transformação e comércio. Nunca uma cultura e produto final foram alvo de tão apertada regulamentação e vigilância. Esta luta materializa-se na defesa e manutenção da qualidade do produto colhido no solo insular, no que foi acompanhada pelos demais como o vinho e o pastel. A todos definiam-se, por regimentos específicos, as tarefas de cultivo, cuidado e laboração final do produto, de modo a que este se apresentasse nas condições e quantidades necessárias para a sua comercialização. Na Madeira e Canárias o açúcar foi alvo de constantes regulamentações e de um controlo assíduo dos alealdadores para o efeito eleitos em vereação.

Nos séculos XVI e XVII a intervenção das autoridades resultava apenas da necessidade de garantir ao açúcar da ilha uma posição dominante no mercado interno e a situação concorrencial nos mercados nórdico e mediterrânico. A concorrência do açúcar brasileiro será, por algum tempo, o motivo de discórdia entre os vários interesses em jogo. A incidência destas medidas é pontual e

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resulta do incentivo que a cultura mereceu em finais do século XVI. A conjuntura da década de quarenta da centúria seguinte foi demarcada por novo incremento da cultura, sem necessidade de recurso às medidas proteccionistas, uma vez que o mercado do Nordeste brasileiro se encontrava sob controlo holandês. Com isso fechou-se a rota do açúcar brasileiro: a correspondência de Diogo Fernandes Branco refere a ausência destes navios nos anos de 1649 a 1650. Neste último ano dizia-se que há dezoito anos que o pau-Brasil e o açúcar não vinham de Pernambuco. Aqui a intervenção vai no sentido de promover a cultura através de uma política de incentivos, materializada nos apoios à reconstrução dos engenhos. Este conjunto de medidas culmina em 1688 com a redução dos direitos que oneravam a produção, passando de um quinto para um oitavo.

OS CANAVIAIS MADEIRENSES

A cana, desde muito cedo, ganhou uma posição privilegiada no solo madeirense, conquistando as mais importantes arroteias da vertente meridional e o Nordeste. A capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores áreas para a cultura dos canaviais. Nos séculos XVII e XVIII os poucos canaviais que persistiram pertencem também à área desta capitania. Em Machico os poucos canaviais que persistiram, principalmente em Santa Cruz, haviam desaparecido por completo em 1674. Em auto lavrado em câmara refere-se que a lavoura cessara na vila de Machico, sendo as terras semeadas de trigo, cevada e vinhas. Os livros do oitavo disponíveis não é fácil definir as principais áreas de produção, uma vez que poucos são aqueles em que está identificada a localidade. Mesmo assim é possível definir-se algumas áreas produtoras de maior evidência, como sejam, Amara de Lobos, Calheta, Estreito da Calheta, Canhas.

A conjuntura do século dezassete foi favorável ao retorno da cultura. Algumas terras de vinha ou searas cederam lugar às socas de cana. Mas estas pouco ultrapassaram, num primeiro momento, a valoração da área agrícola circum-vizinha do Funchal. Assim o comprova o livro do quinto do ano de 1600, que nos 108 proprietários de canaviais apresenta um grupo maioritariamente desta área. Este livro é quase único quanto à produção de açúcar na ilha no século dezassete, pois só teremos novas informações a partir de 1689, com a arrecadação do oitavo. Neste ano de 1600 é bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. Aqui a média propriedade cede lugar à pequena e mesmo de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e 50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir as carências caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas.

Os anos seguintes foram de promoção da cultura o que propiciou um aumento da produção, mantendo-se a mesma incidência das áreas em questão, sendo de realçar a Ribeira dos Socorridos, onde no século dezoito se manteve em actividade um dos poucos engenhos de açúcar existentes na ilha. No período de 1689 a 1766 deparamo-nos com algumas quantidades de açúcar na Ribeira Brava, Funchal, Ponta do Sol, Santa Cruz e Calheta. Todavia a situação é totalmente distinta daquela que se viveu nos séculos XV e XVI. Na Calheta, por exemplo, iam longe os tempos áureos, agora a produção de açúcar era quase ridícula Assim entre 1689 e 1705 foram só 29 arrobas e 2 libras. Note-se aqui o recurso a medidas de capacidade de pequeno, que por certo adquiriam muita importância para a situação da época. Era uma agricultura de jardinagem. De acordo com Álvaro Rodrigues de Azevedo o ano de 1748 é o marco que assinala o fim da primeira época do açúcar na Madeira: "acabou, por então o assucar na ilha da Madeira. A cana doce, somente como mera curiosidade, continuou cultivada, fazendo-se della pouco mel, para consummo domestico..."

O REGIME FUNDIARIO

A presença da cultura no solo madeirense conduziu a uma reestruturação do regime fundiário de modo a adequá-lo às especificidades que a mesma gerava. Note-se que para a plena afirmação dos canaviais foi necessário criar algumas condições para além das oferecidas pelo solo: a água para o regadio e accionar os engenhos, a madeira e a lenha para os pôr em funcionamento, por um período

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prolongado de tempo.

Nos séculos XVII e XVIII a situação da estrutura fundiária é distinta. Assim dominam os pequenos proprietários de canaviais, o que demonstra ser esta uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das outras pela sua necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é testemunho dessa diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense de então.

ANO PROPRIETÁRIOS PRODUÇÃO

arrobas média

1600 109 3656 33,54

1689 1 172

1691 2 256

1692 1 352

1693 3 172

1694 2 120

1695 3 196

TOTAL 121 4924 40,69

1701 2 32

1702 1 152

1703 9 954 106

1704 28 902 32,21

1705 102 5168 50,66

1706 63 2408 38,22

1733 13 20,5 1,53

1734 27 109 4,03

1735 1 10 libras

1736 5 92 10,40

1739 28 90 3,21

1740 39 33,5 0,85

1741 56 32 0,57

1742 48 9,5 0,19

1743 23 3 0,14

1765 27 2 0,07

1766 69 100 libras(1)

TOTAL 541 10007 18,49

-----

1) Acrescem mais 106 onças de açúcar, 58 canadas, 125,5 quartos e 15,5 quartilhos de melado.

2)

Para o ano de 1766, e apenas para este, é possível conhecer uma das cambiantes típicas da estrutura fundiária madeirense: o contrato de colonia. O registo do oitavo deste ano refere trinta e quatro

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caseiros. Destes 7 estavam dependentes do senhor do engenho, aqui não identificado, 6 do Convento de Santa Clara e 3 do capitão João Betencourt.

ESCRAVOS COM OU SEM AÇÚCAR

Já o dissemos, mas nunca é por demais referi-lo, na Madeira a escravatura não é necessariamente sinónimo de cana-de-açúcar e vice versa Aqui, ao contrario do que sucede no Brasil, por exemplo, estamos perante dois fenómenos que, em poucos momentos se cruzam. Nos séculos XVII e XVIII é mais evidente esse distanciamento entre ambas as realidades.

A partir da listagem, que dispomos, dos proprietários de canaviais e escravos é possível traçar os possíveis laços de união das duas realidades. De acordo com o livro do quinto de 1600 constata-se que o número de proprietários de canaviais e escravos(39%) é superior à situação da primeira metade do século XVI, mas que o seu número não tem qualquer relação directa com os níveis de produçäo. Assim, por exemplo, Maria Gonçalves, viúva de António de Almeida, é quem surge com o maior número de escravos, sendo diminuta a sua produção de açúcar.

O ENGENHO

Na moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico, mas a disponibilidade de recursos hídricos conduziu a um maior aperfeiçoamento com a criação do primeiro engenho de água, na Madeira, patenteado em 1452 por Diogo de Teive. Este processo resultou apenas nas áreas onde era possível dispor da força motriz da água fez-se uso da força animal ou humana. Na Madeira as condições geo-hidrográficas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram exímios criadores. Aliás na Madeira estavam criadas as condições para a afirmação da cultura:a ilha desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para as fornalhas e madeira de pau branco para a construção dos eixos do engenho.

Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não significava que a existência de canaviais era sinónimo da presença próxima de um engenho. Aqui mais do que no Brasil foram inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços daqueles que os dispunham. E no período em análise,em que o açúcar perdeu a importância dos velhos tempos, maior é a dificuldade em associar aos canaviais um engenho.

No século dezassete o número de engenhos em laboração é cada vez mais reduzido pelo que a nova aposta na cultura torna necessário o estabelecimento de alguns incentivos à sua reparação, como sucedeu em 1649.Nesta década fala-se apenas de quatro engenhos, destes dois foram construídos em 1650. Daí derivavam, enormes dificuldades em conseguir moer a cana por falta de engenhos suficientes. No Funchal o de André de Betancor há três anos que não funcionava e seria difícil que o fizesse pelo estado em que se encontrava.

Ademais do abandono dos engenhos registava-se o das levadas como sucedia com a do Pico do Cardo e Castelejo em S. Martinho que há trinta anos não era tirada.

Para repor a cultura a coroa preparou um plano de recuperação dos engenhos, com empréstimos e a isenção do pagamento do quinto por cinco anos. Esta situação perdurou no século dezoito como se poderá verificar de idêntico privilégio, concedido em 17444 a João José de Vasconcellos Betencourt de Sá Machado. O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os proprietários. Em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais.

Nos séculos dezassete e dezoito o número de engenhos era reduzido. Para os inícios do século XVII, mais propriamente em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8 engenhos em

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laboração. Estes concentram-se no Funchal e Amara de Lobos, o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos lavradores das partes da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava. A documentação informa-nos sobre a existência de alguns desses engenhos:

DATA PROPRIETÁRIO LOCAL

1644 Gaspar Betencourt de Sá Rª Socorridos

1648 André Betencourt Funchal

1651 António Correia Funchal

1652 Capt. Diogo Guerreiro Caniço

1657 Pedro Betencourt Henriques C. Lobos

1661 Baltasar Varela de Lira Funchal

1665 Capt. Pinto da Silva Piornais

1705 Capt. Bartolomeu de F. Andrade Funchal

Manuel Abreu Funchal

Capt. António Abreu C. Lobos

1744-50 João J. Betencourt de S. Machado

1760 João J. Vasconcelos de Betencourt

1780 D. Madalena Guiomar de Sá Vilhena

Com o decorrer dos anos escasseiam os engenhos, mas também os canaviais. Assim em 1698 insiste-se na escassez de engenhos, em 1730 refere-se a existência de poucos, enquanto no período de 1750 a 1782 é referenciado apenas um engenho em laboração.

OS Ofícios DO Açúcar

Para assegurar esta actividade da cultura dos canaviais, laboração dos engenhos e transformação do produto final em açúcar, conservas ou casca,existia um grupo variado de oficiais mecânicos, trabalhadores e escravos. Não é possível reconstituir na totalidade o seu número, mas a partir dos dados avulsos encontrados nos registos paroquiais.

Oficio FREGUESIA DATA NOME

caixeiro R. Brava 1600 João Gonçalves

Sé 1601 Belchior Rodrigues

Manuel Gonçalves

1607 Manuel Rodrigues

1609 Vicente Ferreira

1610 Domingos Martins

1615 Baltasar Álvares

S. Pedro 1617 Pedro Fernandes

Sé 1618 Francisco Garcia

1620 Manuel Gomes

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S. Pedro 1620 Afonso Aires

1625 Francisco Riscado

Sé 1632 Miguel Fernandes

A. S. Jorge 1634 Domingos Fernandes

S. Vicente Pero Pestana

1639 Francisco Dias

Calheta 1644 Baltasar Fernandes

Sé 1679 Manuel Teixeira

1687 Miguel Fernandes

1698 José Vieira

caldeireiro Sé 1601 Cristóvão Dias

1622 Francisco Fernandes

S. Pedro 1623 António Fernandes

E. Calheta 1641 Manuel Gomes

canavieiro Sé 1603 Afonso Gonçalves

conserveiro 1607 João Dias

mestre açúcar 1600 Sebastião Sardinha

1601 Pero Martins

S. Pedro 1606 António Costa

P. Sol 1619 Domingos Gomes

S. Pedro 1620 Gonçalo Fernandes

P. Sol 1633 Manuel Pires

moedor Sé 1655 Diogo Fernandes

purgador 1600 Belchior Lopes

1601 João Fernandes

Calheta 1602 Gaspar Sardinha

Simão Fernandes

Sé 1603 António Gonçalves

S. Pedro 1606 Manuel Rodrigues

Sé 1607 Manuel Gonçalves

1608 Gonçalo Anes

A partir do número de mestres de açúcar e purgadores é possível estabelecer uma ideia sobre a situação da cultura da cana-de-açúcar na primeira metade do século XVII. Se a cada mestre corresponder um engenho, então teremos seis engenhos no Funchal e Ponta de Sol. Destes ofícios persiste por toda a centúria os caixeiros, que tinham por missão fazer as caixas para a exportação das conservas e casca.

PRODUÇÃO DE AÇUCAR

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Com a ocupação holandesa do nordeste brasileiro, a cultura foi reabilitada como forma de responder à sua solicitação na Europa e pela necessidade resultante das indústrias de conserva e casquinha. Até 1640 o movimento descendente havia-se agravado com a presença, cada vez mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o escoamento da produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açúcares. Mas a partir desta data com a ocupação holandesa das terras a cultura renasceu na ilha. Em 1643 o número de engenhos existentes era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais.

A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642, pretendia promover de novo o cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos engenhos. Estes, caso o fizessem podiam ser isentos do pagamento do quinto por cinco anos ou de metade dele por dez anos. Usufruíram deste apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, António Correa Betencourt e Pedro Betancor Henriques. Esta situação favoreceu a cultura, afirmando Diogo Fernandes Branco em 10 de Fevereiro de 1649 que as canas estavam "fermozas", prevendo-se uma grande colheita. Em Outubro goraram-se as suas expectativas, pois o açúcar lavrado era de má qualidade. Este progresso continuou no ano imediato, sendo testemunhado pelo mesmo com a construção de dois novos engenhos.

Esta foi no entanto uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do açúcar brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior situação. O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da concorrência do brasileiro. Ainda em 1658 procurou-se apoiar o seu cultivo ao reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável.

A estes incentivos acresce-se o facto de os direitos do quinto do açúcar entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados, pelo que neste último ano se recomendou maior atenção a este aspecto. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688, a coroa determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para 1/8 da colheita, sendo esta medida, mais uma vez definida como uma forma de promover a cultura.

Para o período de 1620 a 1670 dispomos de algumas cartas de quitação dos almoxarifes das alfândegas do Funchal e Machico que nos permite testemunhar os níveis de produção em algum dos anos.

LOCAL ANO PRODUÇÃO

Arrobas Arratéis

Funchal 1620-1624 2630 130

Madeira 1637-1644 26080

Santa Cruz 1645 2324 12

Funchal 1652-1654 18248 9

Funchal 1656-1658 11453

Santa Cruz 1659 2720 30

Madeira 1660-1662 3512 16

Madeira 1670-1672 6283 24

Madeira 1677-1679 1755

É de prever, contudo, que a produção de açúcar tenha sido alvo de novo incentivo neste final do século, pois em informação apresentada em 1698 ao novo governador D. António Jorge de Melo, refere-se a existência de 41 engenhos que rendiam à coroa 8.000 arrobas. Este testemunho é contrariado em finais da década anterior, por dois estrangeiros que passaram pela ilha. Em 1687

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Hans Sloane é peremptório na caracterização da conjuntura açucareira:" Esta ilha é muito fértil tendo antigamente produzido grandes quantidades de açúcar aqui cultivado e de excelente qualidade. O que agora possuem é bom, mas muito escasso, devido à existência de muitas plantações açucareiras nas Índias Ocidentais(...) Assim, embora consigam um produto de maior cotação, acham que lhes é muito proveitoso dedicarem-se aos vinhos, pelo que apenas produzem o açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil, às suas próprias plantações." Dois anos após é idêntico o testemunho de John Ovington: " o açúcar... raramente é exportado, devido à sua escassez, mal chegando para as necessidades da ilha".

No século dezoito esta cultura é conduzida para um plano secundário, deixando de ter a real importância que teve na economia madeirense. Para A. SILBERT o fim do "ciclo do açúcar" na Madeira tem lugar em meados do século XVIII. Esta opiniäo é aliás corroborada pelo cônsul francês na ilha, que em 1777 refere a cultura como abandonada. A mesma ideia poderá ser a razão da inexistência de livros do oitavo a partir de 1766.

ADMINISTRAÇÃO E DIREITOS

Para os séculos XVII e XVIII manteve-se a mesma estrutura de arrecadação dos direitos da coroa, mas aqui adaptada à dimensão da cultura. Assim para cada uma das áreas era provido um quintador, uma para cada uma das antigas comarcas, isto é, Funchal, Calheta, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Santa Cruz. Nas primeiras localidades ele era apoiado por um escrivão.

Por mandado de 20 de Dezembro de 1686 foi ordenada a extinção, a partir de 30 de Julho, dos quintadores do açúcar de Santa Cruz, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, argumentando-se para isso o facto de os mesmos não terem "exercício algum por se terem extinguido os engenhos, e se não fabricarem nessa ilha os tais asucares... ". Mas cedo se reconheceu o erro de tal medida, uma vez que o açúcar continuou a produzir-se, ainda que em pequenas quantidades. Deste modo a partir do ano imediato a sua arrecadação foi posta em arrematação. Para o ano de 1687 foi arrematado por Manuel Vieira Gago no valor de 285$000, e em 1688 por João Betencourt Vilela por 200$000. Note-se que a partir deste último ano os lavradores passaram a pagar apenas o oitavo da sua produção. Também para os anos de 1744 e 1748 encontrámos o provimento de um escrivão dos quintos para a vila da Calheta, de seu nome, António Dionísio de Oliveira.

As dificuldades porque passou a cultura reflectiram-se nesta estrutura administrativa. Assim em 1675 refere-se que há trinta anos que não se arrecadava os quintos, por isso ordena-se o confronto dos livros do donativo com os de saída para se confirmar as ausências ao pagamento.

O CONSUMO DO AÇUCAR

O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus, em substituição do oriental, cada vez mais de difícil acesso. Foi esta conjuntura que impôs a nova cultura no espaço atlântico e ditou as regras do seu mercado. Deste modo o consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do produto. Neste último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e casca. Parte significativa do açúcar produzido na ilha e, mais tarde, importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria.

O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia dele disponível para distribuir às conserveiras que fabricavam a casca e conserva. A partir daqui eram mais trinta dias de árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para a exportação. Da existência ou não de açúcar, da sua qualidade dependia a disponibilidade para o fabrico destes derivados, que activavam o comércio com as praças do Norte da Europa, donde nos províamos de cereais e manufacturas.

Esta era uma indústria muito instável, dependendo das possibilidades de oferta de açúcar brasileiro e da procura do produto acabado pelos mercadores europeus. A correspondência de Diogo

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Fernandes Branco e W. Bolton testemunham de forma evidente esta realidade. Diz o último em 7 de Agosto de 1697: "Pensou-se fazer uma grande quantidade de conserva de citrinos mas muitos fabricantes desistiram por não saberem se os barcos os viriam buscar".

São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol, Ribeira Brava, Machico e Amara de Lobos(Ribeira dos Socorridos).

Um dos principais factores de promoção da indústria das conservas, foi a importância assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de conservas de citrinos para a sua dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense foi, no início, a Casa Real portuguesa e, depois, as cidades do Norte da Europa.

Esta indústria manteve-se nos séculos XVII e XVIII, suportada com o pouco açúcar da produção local ou com as importações dele do Brasil. Neste último caso sabe-se que em 1680 foram importadas 2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma informação dada ao governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio muito grande porque há anno que se carregão com aquella terra mais de 20 embarcações de hu so doce para o qual he necesareo comprar assucar da terra ou mandalo vir do Brasil".

Parte significativa desse movimento comercial pode ser reconstituída através da correspondência comercial de dois mercadores: Diogo Fernandes Branco(1649-1652), William Bolton(1696-1715) e Duarte Sodré Pereira(1710-1712).

Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a correspondência é evidente a importância assumida pelo dito comércio. Assim em 1649, não obstante o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos navios do Brasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a encomenda. Esta conjuntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. Esta situação continuou de modo que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses. No ano imediato inverteu-se a situação: a casca abundou e em Outubro ainda tardavam em chegar os navios para a levar ao seu destino, o que era motivo para preocupação.

ANO DESTINO CONSERVA AÇÚCAR

1649/Mai/23 frol de laranja

limão 99,5 arrobas

6 arrobas

1649/Jul/2 S. Malo casca

Hamburgo casca

20a. casca

1649/Jul/14 Rochela 300 a. casca

1649/Out/18 Rochela 114 a. casca seca

Rochela casca seca

1649/Dez/17 Amesterdão 22 a. conserva

92 a. conserva

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1650/Jul/20 Rochela casca

1650/Nov./20 Holanda 34 a. casca

10 a. de limão

Rochela 37 a. casca

1651/Jul/3 Rochela 1 0 caixas casca

Bordeus Casca

1652/Set/8 Rochela casca 60 caixas

Flandres casca

Amesterdão casca

1652/Set/24 Rochela 5 0 caixões casca

A correspondência de William Bolton refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França.

DATA BARCO CARGA DESTINO

1697/Jul./1 francês açúcar Tenerife

1698/Set/2 galeota conserva de citrinos Holanda

1699/Ab./14 3 caixas de citrinos Inglaterra

1699/Jul/6 brigue francês conserva de citrinos França

1699/Nov./13 português conserva em calda e seca Roterdão

1700/Mai./1 galeota 7 caixas de conserva de citrinos Londres

1700/Set./4 1 caixa de conserva de citrinos Londres

1707/Maio/24 1 caixa de conserva

1709/Out./2 Mary açúcar e conservas Amesterdão

Duarte Sodré Pereira surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio deste produto. A sua actividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do açúcar do Brasil e à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão. A partir da sua correspondência comercial sabe-se que exportou a seguinte quantidade de casca:

DESTINO CAIXÕES CAIXOTES OUTROS

Amesterdão 435

Hamburgo 1

Lisboa 1205 2 1

Faial 3 1

Londres 1

No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do Convento de Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás em 1687 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisas tão

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boas".

Num breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação, Misericórdia do Funchal, e Recolhimento do Bom Jesus, constata-se as assíduas despesas com a compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada, consumia açúcar que comprava. Do primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais são conhecidas outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce. Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34 arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de 1694 a 1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas de mel.

Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação. Aí, de acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria. No caso deste convento destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Nesta última festividade distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso parte significativa do açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas.

O COMÉRCIO DE AÇÚCAR

Foi o açúcar a principal uma das principais causas desta rede de negócios, que perdurou por alguns séculos. A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, S. Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo as rotas divergiam para novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil: os canaviais foram abandonados na sua quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante industria de conservas e doces; o porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara noutras épocas.

A solução possível para debelar esta crise foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno ou como animador das relações com o mercado europeu. Por isso os contactos com os portos brasileiros adquiriram uma importância fundamental nas rotas comerciais madeirenses do Atlântico Sul. Tal como o refere José Gonçalves Salvador as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o "trampolim para o Brasil e Rio da Prata". É o mesmo quem esclarece que este relacionamento poderia ter lugar de modo directo, ou indirecto, sendo este último rumo através de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Costa da Guiné.

Aqui definia-se um circuito de triangulação, de que são exemplo as actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no período de 1649 a 1652. Note-se que desde finais do século dezasseis estava documentado o comércio do açúcar, servindo os portos do Funchal e Angra como entrepostos para a sua saída legal ou de contrabando para a Europa.

Este comercio do açúcar do Brasil, por imperativos da própria coroa ou por solicitação dos madeirenses, foi alvo de frequentes limitações. Assim em 1591 ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no porto do Funchal, medida que não produziu qualquer efeito, pois em vereação de 17 de Outubro de 1596 foi decidido reclamar junto da coroa a aplicação plena de tal proibição. Desde 1596 é evidente uma activa intervenção das autoridades locais na defesa do açúcar de produção local, prova evidente de que se promovia esta cultura. Em Janeiro deste ano os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. Passados três anos o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir o seu porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. Esta situação repete-se com outros navios nos anos subsequentes até 1611: Brás Fernandes Silveira em 1597, António Lopes, Pedro Fernandes o grande e Manuel Pires em 1603, Pero Fernandes e Manuel Fernandes em 1606 e Manuel Rodrigues em 1611.

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A constante pressão dos homens de negócio do Funchal envolvidos neste comercio veio a permitir uma solução de consenso para ambas as partes. Assim em 1612 ficou estabelecido um contrato entre os mercadores e o município em que os primeiros se comprometiam a vender 1/3 do açúcar de terra. Note-se que desde 1603 estava proibida a compra e venda deste açúcar, sendo os infractores punidos com a perda do produto e a coima de 200 cruzados. Mas a partir de Dezembro de 1611 ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o esgotamento do da terra. Deste modo os vereadores entregaram Domingos Dias nas mãos do alcaide, sob prisão, por ter vendido 50 caixas de açúcar brasileiro aos ingleses. Em 1620 a transacção do açúcar da terra e do Brasil era feita à razão de 1 por 2, sendo o embarque feito por licença assinada por dois vereadores e um juiz. Para assegurar este controlo, os escravos e barqueiros foram avisados que, sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem autorização da câmara. Em 1657 a proporção de cada açúcar era de metade.

Após a Restauração da independência de Portugal o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações Primeiro foi a criação do monopólio do comércio com o Brasil, através da Companhia para o efeito criada, depois o estabelecimento do sistema de comboios para maior segurança da navegação A esta situação, estabelecida em 1649, ressalva-se o caso particular da Madeira e Açores, que a partir de 1650 passaram a poder enviar, isoladamente dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, que seriam depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar

O movimento das duas embarcações da Madeira fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as licenças e a sua entrega deveria ser feita no sentido de favorecer todos os mercadores da ilha. Para estes navios havia uma escrituração à parte na alfândega. Mesmo assim nos dados compilados é bem visível a presença neste trafico de outras embarcações não autorizadas, como se pode verificar pelo movimento de entradas no porto do Funchal:

ANO NAVIOS LICENÇAS ANO NAVIOS LICENÇAS

1640 1 1670 1

1648 1 1671 5

1649 1 1672 1

1650 4 1674 2 1

1651 1 1675 2

1652 3 1676 1 3

1653 1 1677 3 1

1660 3 1678 3

1661 3 1679 1

1664 1 1681 6

1665 3 1682 1

1666 1 2 1688 2

1667 1 1991 5

1669 4

Alguns destes navios, fora do número estabelecido para a ilha, declaram sempre serem vitimas de um naufrágio ou de ameaças de corsários, o que não os impedem de descarregarem sempre algumas caixas de açúcar. Será esta uma forma de iludir as proibições estatuídas ? Todavia os infractores

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sujeitavam-se a prisão e a pesadas penas, como sucedeu em 1664 com Manuel Ferreira do Porto, em 1665 com Luís Ferreira o moço, e em 1669 com o Mestre Manuel Nogueira Botelho.

Para o século XVIII o movimento amplia-se, não obstante as insistentes recomendações para o respeito da norma estabelecida no século anterior. Nesta centúria conseguimos reunir 117 licenças para o período de 1736 a 1775.

ANO LICENÇAs SAÍDAS ENTRADAS TOTAL BAIA RIO PERNANBUCO 1727 1 5 1728 3 5 1729 4 6 1730 1 5 1731 3 9 1732 5 8 1733 2 9 1734 2 4 1735 3 8 1736 1 2 1 4 2 3 1737 2 3 6 2 1 1738 3 5 2 2 1739 3 3 1740 2 1741 1 3 1742 3 3 3 2 1743 1 2 1744 1 1 3 2 3 1745 1 3 1 1 1746 1 1 1 1747 2 2 1748 1 1 2 1749 2 3 1 6 8 1750 2 2 1 5 5 1751 1 1 1 3 2 5 1752 2 2 4 2 1753 1 1 1 1 1 1754 2 1 3 4 2 1755 2 2 1 5 3 3

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1756 2 2 4 5 3 1757 1 2 1 4 2 4 1758 1 1 1 3 4 1759 3 3 3 1760 1 1 2 2 1761 2 2 1 1762 2 1 3 1 1763 1 1 2 3 2 1764 2 1 3 3 2 1765 1 2 3 4 3 1766 4 3 7 6 3 1767 1 1 2 3 4 1768 2 3 5 1769 2 3 5 1770 1 2 3 1771 3 2 5 1 4 1772 2 3 5 6 5 1773 2 1 3 5 5 1774 1 1 1 3 1775 1 1 3 3 1776 5 3 1778 3 6 1779 2 2 1780 2 5 1781 2 1 1782 1 6 1784 1 2 1785 1 1 1786 1 1787 1 1 1788 1 1789 2 1 1790 2 2 1791 3 4 1792 2 2

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1793 1 3 1794 1 1795 11797 2 1 1798 2 11799 1

TOTAL 42 55 11 117 151 184

As autorizações eram concedidas pelo Governador, em exclusivo aos mercadores madeirenses. Destes merecem a nossa atenção Bento Ferreira, Francisco Luís Vasconcelos e Francisco Teodoro, pelo número de licenças conseguidas.

Por determinação de 1664 estes navios pagavam um donativo de 50.000 réis, existindo no Funchal um comissário dos comboios, que procedia à arrecadação dos referidos direitos: no ano de 1676 era Diogo Fernandes Branco quem os administrava. De acordo com as recomendações do Conselho da Fazenda a arrecadação dos direitos de entrada do açúcar do Brasil era lançada em livro próprio. Foi a partir de alguns destes e de dados soltos, reunidos na documentação, que procurámos avalizar a real importância das relações comerciais entre a Madeira e o Brasil, assentes, predominantemente, no açúcar. Para o período de 1650 a 1691 identificamos 39 navios provenientes da Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão, com mais de 10722 caixas de açúcar:

PROVENIÊNCIA AÇÚCAR NAVIOS

caixas caras sem indicar total carga Baía 2489 29 7 17 Rio de Janeiro 4218 13 6 12 Pernambuco 3343 71 9 18 Maranhão 57 31 - 1 Paraíba 615 - 2 5 Pará - - 1 1 TOTAL 10722 144 25 53

Afora isso surgem ainda registos com a indicação dos destinatários do açúcar:

ANO DESTINATÁRIOS NAVIOS CAIXAS ARROBAS

NÚMERO

1640 77(1) 12769 1671 64 6 33526 1676 1 305 55

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1677 1 861 1681 3 1257

1682 30 1 4632 1691 98 5 14536 1754-55 3 14273 1773 6 9297 1783 3 4589

---------------------

1) Em trinta e três destes não foi possível identificar o nº de arrobas de açúcar

Facto de particular interesse é participação das comunidades da companhia de Jesus da Baía, Rio de Janeiro e Maranhão, que usufruindo do privilégio de isenção dos direitos colocavam, também, o açúcar das suas fazendas no mercado madeirense. Eles conduziram à ilha 82 caixas de açúcar, sendo 7 do Maranhão, 65 da Baía e 10 do Rio de Janeiro.

O açúcar brasileiro foi assim, na segunda metade do século dezassete, um componente importante do comércio na ilha e uma destacada fonte de receitas para o erário régio. De acordo com

algumas informações avulsas é possível reconstituir este rendimento para alguns anos:

ANO DIREITOS Brasil quinto 1650-52 3561$464 847$820 1656-57 3585$542 1659 1416$554

O rendimento auferido pela alfandega com a entrada deste açúcar era elevado e o seu valor atesta também a evolução deste comércio.

ANO RENDIMENTO

1644 1801$685

1652-53 4451$830

1656-57 3585$542

1659 1416$554

1660-62 3469$799

1664 884$583

1664-66 5200$000

1667-69 5500$000

1705-1733 3889$900

Para os anos de 1771 e 1772 é possível comparar a importância deste produto no movimento geral da alfandega do Funchal:

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ENTRADAS SAÍDAS

Brasil Total 1771 3011$936 10250$825 51689$0761772 4775$702 14713$798 54103$475

Por aqui se conclui que o açúcar do Brasil teve um lugar importante na economia madeirense, não apenas por apoiar as industrias de conserva e casca, mas, fundamentalmente pelo activo movimento de reexportação. Todavia esta década marca o início da quebra desse comércio, que tem repercussões evidentes no negócio de casca e conservas. Assim em 1779 o governador João Gonçalves da Amara refere que o comércio da casca estava quase extinto.

DIOGO FERNANDES BRANCO: UM CASO EXEMPLAR

Neste circuito de escoamento e comércio do açúcar brasileiro é evidente a intervenção de madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar, tabaco e pau-Brasil Mas o trajecto destas rotas comerciais ampliava-se até ao trafico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso os madeirense criaram a sua própria rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e no Brasil.

Neste caso releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco. A sua actividade incidia, preferencialmente, na exportação de vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil por açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas sob o peso das caixas de açúcar ou rolos de tabaco. A partir daqui iniciava-se outro processo de transformação do produto em casca ou conservas. Esta era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o processo, de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto depois de laborado deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no norte da Europa: Londres, St Malo, Amburgo, Rochela, Bordéus.

Diogo Fernandes, surge-nos neste circuito como o interlocutor directo dos mercadores das praças de Lisboa (no caso Manuel Martins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus, satisfazendo a sua solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufacturas, uma vez que o dinheiro e as letras de cambio, raramente encontravam destinatário na ilha. A par disso manteve a sua rede de negócios, apoiado em alguns mercadores de Lisboa, e das principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na sua documentação epistolar. Á primeira vista parece-nos que o mesmo se especializou em duas actividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e derivados para adocicar os manjares dos repastos da mesa europeia.

Esta situação das actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não é de modo algum episódica, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezassete, pois ela comprova, como vimos, uma das dominantes deste processo: a ilha com intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes base deste puzzle é constituído pelo porto do Funchal e toda uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a oportunidade de singrar em tais negócios. Angola, Brasil são os outros dois vértices deste triângulo. Episodicamente surge-nos Barbados, que só singrará a partir deste momento com a afirmação hegemónica da burguesia comercial britânica no mundo atlântico.

O COMÉRCIO DE AÇUCAR COM A EUROPA

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Parte significativa do açúcar importado do Brasil era utilizado no fabrico de conserva e casca que depois se exportavam para as praças europeias, nomeadamente do Norte. São poucos e avulsos os dados que testemunham esta realidade. Para o ano de 1682 temos a saída de 15 embarcações com estes produtos, apresentando destinos diversos.

DESTINO CARGA

AÇÚCAR CASCA CONSERVA

Sesimbra 6 Canarias 410 170 S.Miguel 28 caixas Cádiz 7 caixas Bordéus 1 caixa 819 210 Rochela 6 caixas 2269 61 Runo 931 Londres 8 103 34 Amesterdão 953 292 Brandemont 108

TOTAL 418a./42 cxas 5353 603

O comércio do Funchal com a praça de Bordéus era significativo nesta década, tal como nos informa Didier Boisson. Mas a partir de 1710 ele entrou em crise

Esta situação repercute-se, de modo evidente, na produção e comércio de casca, que era um dos principais sustentáculos da produção local de açúcar e importação do Brasil. A isto associa-se a falta de citrinos, como nos refere em 1710 Duarte Sodré Pereira. A correspondência do cônsul francês no Funchal é, a este respeito, muito significativa: em 1717 ele referia que estavam a passar de moda, enquanto em em 1765 dava conta da sua reduzida exportação Duarte Sodré Pereira, que foi governador da Madeira no período de 1703 a 1711, desenvolveu uma importante actividade comercial em torno do açúcar do Brasil e da casca para os portos holandeses. Esta afirmação dos mercados franceses e holandeses ficou já demonstrado por Frédéric Mauro para os anos de 1620 e 1650.