Literatura Africana - LETRAS

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 1

    CURSO: LICENCIATURA EM LETRAS HABILITAO EM LNGUAPORTUGUESA E SUAS LITERATURAS

    MDULO: VI

    DISCIPLINA: Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    PROFESSORA AUTORA: Dr. Helosa Helena Siqueira Correia

    PORTO VELHO RO

    FUNDAO UNIVERSIDADE FEDERAL DERONDNIA

    PR-REITORIA DE GRADUAO

    CENTRO DE EDUCAO A DISTNCIA E NOVAS

    TECNOLOGIASUNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL

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    2 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    GOVERNO FEDERAL

    Presidente da Repblica: Luiz Incio Lula da Silva

    Ministro da Educao: Fernando Haddad

    Secretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo Bielschowky

    Coordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDNIA

    Reitor: Jos Janurio de Oliveira Amaral

    Vice-reitora: Maria Ivonete Barbosa Tamboril

    Pr-reitora de Graduao: Nair Ferreira Gurgel do Amaral

    Pr-reitor de Cultura, Extenso e Assuntos Estudantis: Ricardo Gilson da Costa

    Silva.

    Pr-reitora de Ps-Graduao e Pesquisa: Maria das Graas Nascimento Silva

    Coordenao CEADT/ UNIR: Snia Ribeiro de Souza

    Coordenao UAB-UNIR: Crystiany Maria Guilherme

    Coordenador UAB-Adjunto: Francisco Paulo Duarte

    Coordenao do Curso de LetrasUABUNIR: Iracema Gabler

    Coordenao do Curso de PedagogiaUABUNIR: Carmem Tereza Velanga

    Assessoria Pedaggica: Giovani Mendona Lunardi

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 3SUMRIO

    Apresentao da Autora ..................................................................................... 4UNIDADE I .......................................................................................................... 9

    Apresentao .................................................................................................. 9Literaturas em frica ....................................................................................... 9UNIDADE I .................................................................................................... 10Subunidade I ................................................................................................. 10Literatura Colonial ........................................................................................ 10

    UNIDADE I .................................................................................................... 15Subunidade II ................................................................................................ 15Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa ................................................. 15UNIDADE I .................................................................................................... 23Subunidade III ............................................................................................... 23Brasil- frica: O Dilogo ................................................................................ 23

    UNIDADE II ....................................................................................................... 27Apresentao .................................................................................................... 27

    Narrativas Africanas de Expresso Portuguesa ............................................ 27UNIDADE II ................................................................................................... 28Subunidade I ................................................................................................. 28Apresentao de MAYOMBE ........................................................................ 28UNIDADE II ................................................................................................... 41Subunidade II ................................................................................................ 41Apresentao da Obra TERRA SONMBULA .............................................. 41

    UNIDADE III ...................................................................................................... 57Apresentao .................................................................................................... 57

    Poesia Africana de Expresso Portuguesa ................................................... 57UNIDADE III .................................................................................................. 58Subunidade I ................................................................................................. 58CABO VERDE ............................................................................................... 58

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    APRESENTAO DA AUTORA

    Caros alunos!

    um prazer encontr-los! Meu nome Helosa Helena Siqueira Correia,

    doutora em Teoria e Histria Literria pela Unicamp SP; leciono as disciplinas

    de Literatura Brasileira e Portuguesa no Curso de Letras da UNIR/Porto Velho.

    Mas antes de qualquer coisa, sou uma leitora. Leio textos poticos e literrios,

    textos filosficos, histricos e os textos da vida. Sou eu quem escrevo e

    apresento a vocs este material sobre Literatura Africana de Lngua

    Portuguesa. E, devo dizer, vou caminhar junto com vocs, pois meu momento

    de aprendizagem ainda agora.

    Helosa Helena

    Apresentao do Componente Curricular

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    6 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    O objetivo do curso de vocs form-los professores de lngua

    portuguesa e de literatura brasileira e portuguesa. Nosso componente

    curricular, Literatura Africana de Lngua Portuguesa, nos coloca em contato

    com uma literatura de outro continente, que, frequentemente, vem dialogando

    com a nossa literatura, o que, ao mesmo tempo, nos permite reconhecer

    elemento comum s duas literaturas: a africanidade. A EMENTA da disciplina

    a seguinte:

    A literatura africana de lngua portuguesa e a crtica colonizao. Literatura e

    engajamento: a luta anti-colonial. Temas da literatura engajada. A literatura

    africana de lngua portuguesa no perodo ps-colonial. Principais autores daliteratura de Angola, Moambique, Cabo Verde, So Tom e Prncipe.

    Peo que mantenham o esprito aberto a esse novo continente literrio,

    que, aos poucos, nos ser conhecido e familiar. A literatura africana de lngua

    portuguesa, que melhor chamar de literaturas africanas de lngua portuguesa,

    dado sua existncia plural, uma literatura com rosto de histria, luta e

    libertao. Ao longo do material, vocs percebero que indico vrias leituras,solicito que faam atividades e que se auto-avaliem. Lembrem-se que essa a

    contra-parte imprescindvel para a sua formao. Nosso tempo e espao

    estreito demais para dar conta de literaturas de tantos pases. Por isso,

    tambm, vocs percebero que fiz escolhas. Privilegio as literaturas de Angola

    e Moambique, bem como determinados textos.

    Nossa perspectiva histrica e intertextual. Partiremos do momento

    histrico da literatura colonial e em seguida trilharemos o surgimento dasliteraturas engajadas na luta pela libertao. Leremos juntos alguns romances

    e poemas refletindo, analisando e aprendendo com eles.

    A bibliografia complementar sobre o assunto, como tambm vrios stios

    que a rede oferece, aos poucos sero indicados, para que possamos pesquisar

    e conhecer mais. Segue abaixo a bibliografia bsica utilizada:

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 7

    ANDRADE, C. Literatura Angolana (Opinies).Lisboa: Edies 70, (s.d).

    CHABAL, P. Vozes Moambicanas. Lisboa: Vega, (s.d) (Col. PalavraAfricana).

    CHAVES, R. A formao do romance angolano.So Paulo: Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias HumanasUSP, 1999. (Col. Via Atlntica, n.1)

    COUTO, M. Terra Sonmbula.Rio de Janeiro/So Paulo: Editora Record,(s.d.). (Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa).

    ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).

    FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa. So Paulo:tica, 1987.

    _____. 50 Poetas Africanos. Lisboa: Pltano Editora, (s.d.).

    LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.

    MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas deLngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.

    MOLLAT, M. Los exploradores del siglo XIII al XVI:primeras miradas sobrenuevos mundos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1990.

    PEPETELA. Mayombe.3.ed. Cuba: Unio dos Escritores Angolanos, 1985.

    PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.

    SANTILLI, M. A. Paralelas e tangentes: entre literaturas de lngua portuguesa.So Paulo: Arte & Cincia, 2003.

    TENREIRO, F. J.; ANDRADE, M. P. de. Poesia Negra de ExpressoPortuguesa. Lisboa: ALAC, (s.d.).

    TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.

    _____. Ensaios de literatura comparada (Afro-Lusa Brasileira).Lisboa:Vega, 1981.

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    8 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    O material didtico est estruturado em trs unidades, e cada unidade

    subdividida em unidades menores, de acordo com a tabela abaixo:

    LITERATURA AFRICANA DE LINGUA PORTUGUESA

    UNIDADE ILiteraturas em frica

    UNIDADE II

    Narrativas africanasde expressoportuguesa

    UNIDADE IIIPoesia africana de expresso

    portuguesa

    Literatura

    colonial

    Literaturas

    africanas

    de lngua

    portuguesa

    frica

    eBrasil:

    o

    dilogo

    Pepetela Mia Couto

    Cabo

    Verde eSo

    Tom e

    Prncipe

    Angola,Moambique e

    Guin-Bissau

    As expectativas de aprendizado nas unidades acima so:

    1) Em Literaturas em frica, desenharemos o perfil da literatura que seproduzia em frica, sob os auspcios da razo do colonizador, e da literatura

    que rompe com o domnio cultural e os modelos estticos da metrpole.

    Tambm indicaremos possveis relaes entre literatura brasileira e literaturas

    africanas.

    2) Em Narrativa, faremos leitura de dois romances, de Pepetela e Mia Couto

    produzidos no momento posterior independncia de Angola e Moambique.

    Tais romances so representativos de um conjunto importante de elementos

    configuradores da literatura africana de lngua portuguesa.

    3) Em Poesia, o aprendizado se dar por meio da leitura de poemas

    engajados nas lutas pela libertao nacional e poemas produzidos aps a data

    de independncia dos pases africanos.

    Em cada unidade, o aluno leitor encontrar propostas de atividades,

    indicaes de leituras para pesquisa e textos disponibilizados no ambientevirtual.

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 9

    UNIDADE I

    Apresentao

    Literaturas em frica

    Pensar nas literaturas produzidas nos pases africanos de lngua

    portuguesa implica saber que devemos pensar, a principio, em duas grandes

    vertentes: literatura colonial e literaturas africanas de lngua portuguesa.

    Para nos aproximarmos do terreno das literaturas africanas de lngua

    portuguesa precisamos, primeiramente, passar pelo momento anterior, da

    denominada literatura colonial, situada no sculo XIX e encontrada ainda nas

    primeiras dcadas do sculo XX. Em seguida, sim, ser a vez de demarcar omomento histrico comumente aceito como incio da produo, propriamente

    dita, das literaturas africanas de lngua portuguesa. Trata-se da dcada de 40

    do sculo XX.

    Antes que a literatura em questo seja tratada em seus pormenores,

    cabe lembrar que as literaturas africanas de lngua portuguesa s podem ser

    abordadas em relao ao processo de colonizao, isto quer dizer que sua

    existncia torna-se possvel e necessria dado o fato da descoberta da frica

    pelos portugueses e o processo de dominao que, ento, se inicia.

    As subunidades I e II vo demonstrar as diferenas entre essas duas

    vertentes, e a subunidade III nos far lembrar que h uma importante troca de

    vozes entre frica e Brasil. Ao final da subunidade II e III, alunos, vocs

    encontraro a proposta de uma atividade.

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    10 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    UNIDADE I

    Subunidade I

    Literatura Colonial

    No perodo compreendido entre a segunda metade do sculo XIX e a

    dcada de 40 do sculo XX, ser possvel encontrar, j em terras africanas,

    determinado tipo de literatura, aquela que ficou conhecida como literatura

    colonial e que precede o nosso objeto de estudo. Refiro-me a certa literatura

    solidria ao colonialismo. Ela exalta a figura do branco europeu conquistador e

    sua cultura, tomada como algo superior. Para compreender isso basta ler os

    versos de Caetano Costa Alegre citados por Ferreira (1987, p.39):

    A minha cor negra,Indica luto e pena;s luz, que nos alegra, negra a minha raa,A tua raa branca, [..]

    Todo eu sou um defeito.

    Trata-se de uma produo que assume a condio inferior do colonizado

    e no se compromete com os anseios de libertao das colnias. Passa ao

    largo da questo social, econmica e cultural que assola os pases

    colonizados: a dependncia e subjugao impostas por Portugal. Sobre a

    figurao do branco na literatura colonial, vamos ler juntos a observao de

    Manuel Ferreira:

    O branco elevado categoria de heri mtico, de desbravadordas terras inspitas, o portador de uma cultura superior. Ele ,

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 11no texto literrio e no pensamento de quem o redige eorganiza, o habitante privilegiado e soberano, o prolongamentoda ptria e o mtico semeador de utopias. (FERREIRA, 1987, p.11).

    Podemos perceber que essa literatura aquela que se faz sob os

    auspcios da razo e dos valores do invasor, ou colonizador. Os nomes que se

    destacam: Henrique Galvo, Hiplito Raposo, Antnio Gonalves Videira, Joo

    Teixeira das Neves, Brito Camacho e Joo de Lemos, entre outros.

    Imediatamente anterior s dcadas de 40, 50 e 60, intensas no que diz respeito

    ao combate poltico-militar, pode-se encontrar tambm Daniel Filipe e Reinaldo

    Ferreira.

    A literatura colonial, ainda que apresente temticas africanas, est ligada

    ao modo de ser ocidental. Por vezes, consegue se afastar da literatura

    metropolitana, mas apenas de modo superficial; nesse sentido literatura

    africana porque produzida em frica, mas no revela africanidade. Revela

    antes imitao de modelos potico-literrios europeus, exotismo para

    exportao (cujo destino era os leitores metropolitanos), presena da cor local

    e africanidade estereotipada.

    Agora vamos tentar compreender o que j foi anunciado anteriormente,

    que a literatura africana de lngua portuguesa deve colonizao o seu

    surgimento. Voltemos no tempo, retornemos ao sculo XV.

    Nesse momento histrico a Europa ocidental estende seus domnios de

    modo extremamente significativo, estamos no sculo das grandes descobertas.

    Imbudos do eurocentrismo narcsico, pretensos herosmo e sentimento de

    conquista, os grandes viajantes, carregadores do poder das metrpoles,

    aportam em terras desconhecidas, povoadas por homens e culturas tambm

    desconhecidos. Assim, os portugueses colocaram os ps em terras africanas

    em meados do sculo XV e antes que o sculo findasse alcanaram o Cabo daBoa Esperana e a costa oriental do continente africano. O to sonhado

    Imprio Portugus estendia fronteiras e poder para alm dos mares. Desse

    modo, alunos, vamos, a partir desse instante, pensar o encontro entre

    portugueses e africanos, como o encontro entre o eu e o outro.

    O eu em questo o eu-portugus, cristo, mercantil, que se quer

    representante da civilizao, da evoluo moral, possuidor de conhecimentos

    tcnicos e subjugador dos mares, um eu-ocidental, equilibrado por umaconvivncia com elementos culturais e seres reconhecidos como semelhantes.

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    12 Literatura Africana de Lngua PortuguesaEu-europeu, eu-cartgrafo de um mapa, imediatamente anterior ao do sculo

    XV, que o colocava como centro do mundo criado por Deus.

    Quem no lhe semelhante, apenas pode ser antpoda. Quem no vive

    de modo similar tomado, por esse eu narcsico, como feio, inferior, brbaro e

    selvagem. O outro, para o eu ocidental, o que deve ser batizado, salvo,

    controlado e dominado fsica e culturalmente. O outro o diferente que deve

    ser mantido distncia, dado sua vida se desenvolver em um pressuposto

    padro inculto e atrasado.

    O navegante Zurara assim se referia aos africanos: Ainda que de pele

    negra, tm uma alma como a nossa (MOLLAT, 1990, p.186, traduo nossa).

    O que s faz transparecer que, de acordo com a mentalidade do navegante, se

    os negros tm alma, podem ser salvos, ainda que possuam pele negra. O

    enunciador da observao -o colonizador- parece supor a si mesmo algum

    superior e bondoso, com preocupaes crists, elevadas e justas. Da mesma

    bondade, no demais dizer, que impulsiona o saque cultural e econmico, o

    flagelo social e a morte das populaes nativas.

    Os portugueses descobridores de frica encontram Estados Africanos

    com monarquias constitudas por conselho popular que abarcava

    representantes de todas as camadas sociais; nesse sentido, pode-se dizer que

    a poltica era equivalente ordem social e moral das comunidades. Por outro

    lado, do ponto de vista tcnico os territrios africanos eram habitados por

    inmeras etnias, cuja vida se mantinha fundada na tradio oral e

    memorialstica, e possuam variadas lnguas, na maioria, sem sistemas de

    escrita.

    Aquele decisivo encontro entre o eu e o outro de que falvamos no

    exatamente um encontro. Antes, chama-se invaso, agresso, explorao,

    dominao e humilhao. A ocupao sistemtica da frica pelos povosocidentais, no sculo XIX, provoca a destruio das antigas instituies

    polticas dos povos africanos, bem como a do seu ser moral e intelectual dos

    africanos. Foram necessrios, praticamente, cinco sculos, desde o fato da

    conquista, para que a luta pela libertao e independncia atingisse xito. As

    Literaturas africanas, no coloniais, combativas no sentido de construo das

    nacionalidades, caminham lado a lado com a luta pela libertao.

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 13

    Atentemos para alguns dados histricos importantes:

    Angola

    Independncia: 11.11.1975Capital: LuandaLnguas: portugus (oficial) e banto.Populao: 10.366.031 (2004)Moeda: Kwanza

    Cabo Verde

    Independncia: 05.07.1975Capital: PraiaLnguas: portugus (oficial) e crioulos.Populao: 405.163 (2004)Moeda: Escudo cabo-verdiano

    Guin-Bissau

    Independncia: 24.11.1973 (declarada) e 10.09.1974 (reconhecida)Capital: BissauLnguas: Portugus (oficial), Crioulo, Fula e Mandinka.Populao: 1.315.822 (2004)Moeda: Franco CFA

    Moambique

    Independncia: 25.06.1975

    Capital: MaputoLnguas: portugus (oficial) e banto (maioria da populao).Populao: 19.576.783 (2004)Moeda: Metical

    So Tom e Prncipe

    Independncia: 12.06.1975Capital: So TomLnguas: portugus (oficial) e dialeto crioulo (maioria da populao).

    Populao: 165.034 (2004)Moeda: Dobra

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    14 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    Para vocs saberem mais, consultem:

    FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa.So Paulo:tica, 1987.

    LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca.Porto: Edies Afrontamento, 1985.

    MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas deLngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.

    MOLLAT, M. Los exploradores del siglo XIII al XVI:primeras miradas sobre

    nuevos mundos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1990.PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.

    TRIGO, S. Ensaios de literatura comparada (Afro-Lusa Brasileira). Lisboa:Vega, 1981.

    Site Memria de frica: http://memoria-africa.ua.pt/

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 15

    UNIDADE I

    Subunidade II

    Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa

    De incio, preciso que nos lembremos que frica uma unidade

    geogrfica e continental, no , de modo algum, uma unidade cultural, poltica

    e econmica. E que a literatura africana herdeira da literatura ocidental,

    portuguesa principalmente, e da literatura africana oral. Dessas afirmaes

    derivam certas implicaes: que coerente tratar a literatura africana na sua

    pluralidade: literaturas africanas; que elas so filhas do processo colonizador -

    demonstra-o o fato de serem escritas em lngua portuguesa, a lngua da

    metrpole - e so frteis na carga cultural e lingustica africana e portuguesa

    que suportam. Sua criao no prescinde da sabedoria da tradio oral e das

    lnguas africanas, e nem do conhecimento da lngua portuguesa e da grande

    cultura.

    E por que no perguntar novamente sobre a literatura colonial: qual a

    diferena entre as literaturas africanas de lngua portuguesa e a literatura

    colonial, tambm produzida em lngua portuguesa?Como foi tratado anteriormente, a literatura colonial imita padres

    esttico- literrios e lingusticos portugueses e seu vetor valorativo exalta a

    cultura do branco dominador e seus poderes civilizatrios. J as denominadas

    literaturas africanas de lngua portuguesa, reconhecveis de modo mais

    preciso a partir da dcada de 40 do sculo XX, incorporam a lngua do

    colonizador e da cultura dominadora, mas valorizam, em si mesmas, sua fora

    de transgresso dos modelos potico-literrios e lingusticos europeus, e seusentido combativo, de resistncia, luta e construo da liberdade, da justia e

    da independncia.

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    16 Literatura Africana de Lngua PortuguesaEssas literaturas, muitas vezes, mesclam lngua portuguesa e lnguas

    africanas, manifestando, com o bilinguismo, a cultura complexa e hbrida que

    fruto do contato de dois mundos e a inteno de dificultar a leitura pelos no-

    africanos. So literaturas portadoras de ideologia e manuseadoras dos poderes

    polticos que h nas lnguas. Pode-se afirmar que tais literaturas trabalham na

    contra- escrita. Os escritores no abrem mo da elaborao complexa, muitas

    vezes enigmtica, para quem no se aventura a conhecer as culturas africanas

    de bem perto.

    Atentemos, a seguir, seguinte observao da Laranjeira: Na riqueza

    elitista, que toma, por vezes, o carter de simbologia hermtica, a escrita no

    chega a descrever, a apontar, a profetizar, a contar, optando pela via da contra-

    escrita, do des-apontamento, do des-encont(r)o. (LARANJEIRA, 1985, p. 13).

    Dos leitores exigida uma leitura que percorra caminhos tecidos de modo

    cruzado, leitura de decifrao, e esprito inquieto o suficiente para aceitar o

    convite.

    A no facilitao do texto para leitores metropolitanos marca a atitude do

    outro no processo civilizatrio. As literaturas africanas vo, lentamente,

    construindo seu eu, ao mesmo passo que historicamente, organizam-se,

    intensificam-se e praticam-se as lutas pelas identidades nacionais e

    independncias polticas.

    O pargrafo acima pode dar a impresso de que a constituio das

    literaturas africanas e a constituio das naes independentes digam respeito

    a processos paralelos. Ressaltamos que no so apenas paralelos, mas

    convergentes e tangentes. As literaturas africanas e a luta pela emancipao

    identificam-se. H ainda mais: as literaturas africanas de lngua portuguesa

    encarnam a voz do outro no processo civilizatrio. As literaturas articulam as

    palavras dos colonizados, unidos na luta pela vida digna. Texto literrio, textosocial e texto poltico se harmonizam, e Laranjeira, a esse respeito, pode

    auxiliar nossa compreenso:

    A literatura africana de lngua portuguesa surge com anecessidade de cumprir dois desejos solidrios: a expresso ea liberdade, impraticveis no quadro do sistema colonial, queassenta na usurpao da terra e do poder, na proibio daexpresso e no corte das liberdades sociais e polticas. A

    administrao colonial penetra em profundidade na carne dasestruturas tribais e provoca a derrocada do processo social epoltico autctone, embora sem conseguir destruir a heranacultural, as lnguas locais e a capacidade de produo textual.

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 17Dos sectores alfabetizados da populao, em contatopermanente com a cultura e as idias da Europa e do resto domundo, que se iro destacar os escritores, por sua veztornados dirigente polticos, perante a coincidncia de seremsimultaneamente os mais ilustrados e com melhores hiptesesde praticarem um trabalho poltico. Essas as razes pelasquais a escrita africana de lngua portuguesa sempre

    atravessada no seu discurso pelo texto social e pelo textopoltico. O erotismo da escrita sempre marcado pelo conflitosocial, assim sempre sancionado pelo objetivo histrico.(LARANJEIRA, 1985, p.125)

    Percebemos, pela leitura da citao acima, que as literaturas africanas

    de lngua portuguesa so literaturas engajadas, ou ainda, so literaturas

    constitutivas da histria e da sociedade. Estamos frente a frente com um tipo

    de texto literrio que permite a abordagem interdisciplinar entre literatura,

    histria e cincias sociais. Estamos diante de um tipo de texto que revelamotivos, aspectos, e anseios histricos dos povos, que demonstra as sutilezas

    e as brutalidades que tramam as relaes sociais e que reinventa a literatura

    na medida em que transgride cnones europeus, modelos estticos e pactos

    de leitura baseados na ideologia do colonizador.

    A tarefa de escrever a si mesmo e ao futuro -poltica e culturalmente- a

    partir da experincia do passado, experincia devastadora de ter sido o outro

    no processo de colonizao, a partir da trgica situao de violncia,usurpao, dissoluo e morte de si mesmo, de sua identidade, ao mesmo

    tempo que possuidor de uma cultura nova, fruto da colonizao, , no caso

    africano, tarefa de guerreiros, de escritores, de poetas, de jornalistas e de

    intelectuais. As literaturas, nesse sentido, nunca so apenas literaturas, esto

    semeadas de anseios reais, histricos, sociais e polticos alimentados pelo

    sangue e pela revolta. Os atores desse cenrio conhecem bem o papel do

    outro, sabem-se portadores de uma cultura que j resultado do encontrocolonizador- colonizado e das habilidades de construo do eu.

    Tratam-se de atores que assumem a inscrio de sua produo literria

    no terreno da ptria e da nao, fortalecendo-o a onde esto suas razes- suas

    razes de ser. E fortalecida nas razes, a produo literria frtil em

    sementes de futuro. O estudioso TRIGO chamado a dialogar neste momento.

    Refletindo sobre a relao de alteridade presente nas literaturas africanas,

    Trigo retoma Derrida e em seguida explica:

    Em suma, toda a escrita literria implica o desaparecimento doeu para que o outro possa emergir. As literaturas africanas

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    18 Literatura Africana de Lngua Portuguesano fogem a esta regra desde que no se olvide que o eu quedesaparece o ocidentalizado, no pensamento e na ao, frutoduma aculturao colonial inevitvel e o outro que renasce, ,afinal, o africano espera do seu momento de acesso voz, palavra libertadora. (TRIGO, 1981, p.68).

    O poema abaixo, de Antonio Jacinto, demonstra que o poeta assume a

    presena da alteridade em seu prprio ser: branco e negro, ao mesmo tempo

    que portador da cultura do colonizador e da cultura do colonizado:

    Mas o meu poema no fatalista,o meu poema um poema que j quere j sabeo meu poema sou eu brancomontado em mimpreto

    a cavalgar pela vida

    Trata-se de um poema que j quer e j sabe. Conhece a alteridade

    que produz a escrita africana de lngua portuguesa. Dupla alteridade: EU-

    COLONIZADOR X OUTRO-COLONIZADO / EU-BRANCO X OUTRO-NEGRO.

    O prximo poema que transcrevemos, revela a conscincia do lugar do

    outro no processo de colonizao, e tambm a conscincia da prpria fora

    transformadora que subjaz nesse outro. O poema de Jos Craveirinha:

    Grito negro

    Eu sou carvo!E tu arrancas-me brutalmente do choE faz-me tua mina, patro.

    Eu sou carvo!E tu acendes-me, patro, para te servir eternamente comofora matriz

    Mas eternamente no, patro.

    Eu sou carvoTenho que arder na exploraoArder at as cinzas da maldioArder vivo como alcatro, meu irmo at no ser mais atua mina, patro

    Eu sou carvoTenho que arderQueimar tudo com o fogo da minha combustoSim!Eu serei o teu carvo, patro!

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 19Dificilmente nossa leitura no se sensibilizar como o eu lrico. O leitor

    extrai da metfora do carvo a mensagem poltica, o grito de liberdade, a

    certeza de vencer o poder colonizador.

    As literaturas africanas de lngua portuguesa, como dissemos, so porta-

    vozes da africanidade, fogem do exotismo e da cor local pintada para olhos

    estrangeiros. Inscrevem-se na nao, mas fazem com conscincia do que h

    para alm de suas fronteiras. Vamos ler o poema de Agostinho Neto, intitulado

    Voz do sangue:

    Palpitam-meOs sons do batuqueE os ritmos melanclicos do blue

    negro esfarrapado do Harlen danarino de Chicago negro servidor da South

    negro de frica

    Negros de todo o mundo

    Eu junto a vossa cantoa minha pobre vozos meus humildes ritmos.

    Eu vos acompanhoPelas emaranhadas fricasdo nosso Rumo

    Eu vos sintonegros de todo o mundoeu vivo a vossa Dormeus irmos

    A africanidade, nesse caso, revela-se transportada para outros

    continentes, o que s faz multiplicar a questo. Ser negro implica sofrimento

    em territrio africano e em territrios outros, que receberam africanos. A

    irmandade, aludida pelo poeta, apoia-se nas fricas do destino comum, e na

    identificao pela dor.

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    20 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    PROPOSTA DE ATIVIDADE

    Nesse instante, tocamos em um ponto que merece exerccio de

    questionamento. Trata-se de perguntar a respeito das possibilidades de relao

    entre literatura e realidade histrico-social. Releia o texto base da

    SUBUNIDADE I e da SUBUNIDADE II e reflita a respeito das seguintes

    questes:

    1- Ser que podemos afirmar, sem sombra de dvida, que a literatura

    retrata a sociedade e o tempo histrico de sua produo?

    2- Podemos defender seguramente a ideia de que o texto literrio revela

    mais profundamente a realidade que o texto histrico e social? No seria isso

    uma pretenso hierarquizante?

    3- Se o texto literrio testemunho dos fatos histricos, ele pode ser

    considerado texto histrico? Quais so as diferenas entre texto literrio e texto

    histrico?

    4- Uma literatura, seja ela qual for, adquire valor apenas na medida em

    que literatura engajada? Qual o valor das literaturas engajadas e no

    engajadas?

    No caso de obras das literaturas africanas de lngua portuguesa que

    especificamente tratam da capacidade de resistncia e luta dos colonizados, ao

    mesmo tempo em que trabalham com inovaes formais do ponto de vista da

    elaborao ou construo do literrio, no demais dizer que guardam afinada

    coerncia nas relaes que estabelecem entre esttica e tica.

    5- O que podemos pensar sobre literatura no que diz respeito s

    implicaes ticas que carrega em seu corpo textual?

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 216- superior a literatura que toma para si determinado objetivo tico, ou

    j estamos a falar de um extra-literrio que no possui papel ou valor literrio

    significativo?

    Discuta essas questes com seu tutor e colegas e em seguida produza

    um texto dissertativo discutindo os problemas tericos e ideolgicos presentes

    nelas.

    Envie seu texto para a biblioteca. Ele poder ser lido por

    todos!

    O texto: As Literaturas Africanas e o Jornalismo no Perodo

    Colonial de Jurema Jos de Oliveira merece ser lido, alunos. Ali encontramos

    datas e informaes a respeito das influncias determinantes da imprensa para

    o desenvolvimento e maturidade das literaturas africanas, processo que,

    timidamente inicia-se no sculo XIX. O texto est disponvel em:

    haptooo://www.omarrare.uerj.br/numero8/pdfs/jurema.pdf

    Voc tambm pode encontr-lo (Texto 1) nos arquivos disponveis noambiente virtual.

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    22 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    Para vocs saberem mais, consultem:

    CHABAL, P. Vozes Moambicanas. Lisboa: Vega, (s.d) (Col. PalavraAfricana).

    CHAVES, R. A formao do romance angolano. So Paulo: Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias HumanasUSP, 1999. (Col. Via Atlntica, n.1)

    COUTO, M. Terra Sonmbula. Rio de Janeiro/So Paulo: Editora Record,(s.d.). (Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa).

    ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).

    FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa.So Paulo:tica, 1987.

    _____. 50 Poetas Africanos. Lisboa: Pltano Editora, (s.d.).

    LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.

    MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas de

    Lngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.

    PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.

    TENREIRO, F. J.; ANDRADE, M. P. de. Poesia Negra de ExpressoPortuguesa. Lisboa: ALAC, (s.d.).

    TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.

    Stio da Unio dos escritores angolanos: http://www.ueangola.com/

    Stio Memria de frica: http://memoria-africa.ua.pt/

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 23

    UNIDADE I

    Subunidade III

    Brasil- frica: O Dilogo

    A identidade lingustica pode ser motivo suficiente para o estudo das

    possveis relaes entre literatura brasileira africana. Mas de modo algum o

    nico motivo. A comum condio de colnia, o sangue comum dos escravos

    africanos e brasileiros, e sua vontade de emancipao, somam outros motivos

    identidade lingustica.

    Ressalte-se que as relaes ente literatura brasileira e africana iniciam-se no sculo XIX. Segundo Trigo,

    [...] a migrao esttico-literria faz-se da Europa para o Brasile daqui para a frica.[...] salvo raras excepes, as influnciasesttico-literrias europias passavam pelo Brasil, onde, namaior parte dos casos, sofriam j a primeira tropicalizao,seguindo daqui para a frica com um sabor e com um ritmo jafricanizado que provocavam rpida adeso. (TRIGO, 1981,p.28-29).

    Nesse sentido, Gonalves Dias e seu poema Cano do Exlio ecoa

    entre os poetas africanos, tambm exilados, eles, em sua prpria terra. E no

    se pode perceber, ainda, rupturas significativas com relao ao cnone literrio

    europeu.

    Durante o sculo XIX encontraram repercusso, em frica, Gonalves

    Dias (como j mencionado) e Castro Alves. Mas no a poesia indianista do

    primeiro e nem a poesia condoreira do segundo que encontrar os leitores

    africanos. Gonalves Dias atraiu pela lrica sentimental e pela poesia amorosa,

    Castro Alves pela poesia sensual. Desse modo, percebe-se que os africanos

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    24 Literatura Africana de Lngua Portuguesacultos, leitores e escritores da poca, a gerao denominada de gerao dos

    filhos do pas no demonstrava conscincia, ainda, da dimenso poltica e

    social que a poesia e a literatura em geral possuem. Diferentemente acontecia

    no Brasil: o momento romntico fazia despertar a conscincia literria por parte

    dos escritores, preocupados com a constituio de uma nacionalidade em

    literatura. E, para isso, lanavam mo do primitivismo, do nacionalismo e da

    anlise social.

    Ser apenas na dcada de 40 do sculo XX, que Castro Alves ser

    valorizado, em frica, pela poesia social e combativa, defensora da causa dos

    negros, como se percebe na leitura de Viriato da Cruz. At ento, os filhos do

    pas ao mesmo tempo em que no se propunham a perturbar, pela via potica,

    a ordem social africana, baseada no poder dos colonizadores, demonstravam

    interesse pela literatura brasileira apenas no que toca ao exotismo lingustico e

    imagtico presente em determinados textos.

    A fora do modernismo brasileiro, de 22, no entanto, muda o cenrio das

    relaes e influncias. Seu esprito se far sentir em frica. A influncia das

    vanguardas, a ruptura com modelos estticos precedentes, anteriores dcada

    de 20, a ruptura com a ideologia da imitao da cultura do colonizador, a

    inaugurao do projeto antropofgico, a busca das razes brasileiras na cultura

    indgena e africana, e o fortalecimento de uma conscincia literria nacional

    provocaram leitores e escritores africanos nos incios dos anos 40, momento

    em que comeam sua luta para consolidar a africanidade na literatura. Nossa

    brasilidade, repleta de africanidade, no apenas relaciona-se, mas participa do

    dilogo necessrio entre os dois continentes.

    Os estudos em literatura comparada muito j avanaram, revelando o

    dilogo estreito de ambas as literaturas. Entre os inmeros possveis estudos

    de literatura comparada entre literaturas de lngua portuguesa, encontra-se,como bem demonstrou Santilli, o intertexto entre Guimares Rosa e Luandino

    Vieira. Ambos experimentadores e criadores de uma linguagem nova, ambos

    contistas, rapsodos que contam histrias por meio de rituais e prticas de

    oralidade.

    Tambm as relaes do indivduo com o poder permitem identificar a

    intertextualidade presente em Mayombe, de Pepetela, As novas cartas

    portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho daCosta, e Memrias do Crcere, de Graciliano Ramos. Ou ainda, pode-se

    relacionar Estria de galinha e do ovo, de Luandino Vieira, A hora e a vez de

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 25Augusto Matraga, de Guimares Rosa, e Eu conto (segundo captulo de

    Casa de Malta) de Fernando Namora, vislumbrando a interseco pela

    categoria da justia.

    Alerta Trigo que muito ainda h por fazer no campo dos estudos

    comparativistas. E sugere, desse modo, algumas hipteses de investigaes:

    [...] Gonalves Dias e os poetas angolanos da gerao de1880; Cruz e Souza e Caetano da Costa Alegre (santomense);Castro Alves e a gerao da mensagem angola,nomeadamente, Agostinho Neto e Antonio Jacinto; relaodeste tambm com a poesia moambicana de Nomia deSouza, Kalungano e Jos Craveirinho e com a poesiasantomense de Francisco Jos Terreiro; os poetas e escritoresdo modernismo brasileiro e seu impacto no nascimento daliteratura cabo verdiana e das literaturas angolana e

    moambicana modernas. Enfim o caso da relaoespecialssima de Joo Guimares Rosa com o angolano JosLuandino Vieira [...] (TRIGO, 1981, p. 30).

    Desde o momento de escritura do texto acima citado, os estudos em

    literatura comparada muito avanaram, revelando o estreitamento das relaes

    entre ambas as literaturas, mas ainda muito h por fazer. Portanto, caros

    alunos: -Mos obra!

    PROPOSTA DE ATIVIDADE

    Caros alunos, vamos ler dois dos contos acima citados: Estria de

    galinha e do ovo, de Luandino Vieira, e A hora e a vez de Augusto Matraga,

    de Guimares Rosa, a fim de rastrearmos a interseo pela categoria da

    justia, anunciada pela estudiosa Santilli. O conto Estria de galinha e do ovo

    (texto 2), de Luandino Vieira, est disponvel no ambiente virtual; o conto de

    Saramago vocs precisaro encontrar em uma biblioteca. Bom trabalho a

    todos!

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    26 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    Pesquise o que literatura comparada, como mtodo,

    campo de estudos e conceito. Desse modo ser possvel compreender

    realmente as amplas possibilidades de estudos comparativos entre as

    literaturas de lngua portuguesa.

    Para saber mais consulte e estude os textos abaixo:

    ANDRADE, C. Literatura Angolana (Opinies).Lisboa: Edies 70, (s.d).

    CHABAL, P. Vozes Moambicanas. Lisboa: Vega, (s.d) (Col. PalavraAfricana).

    ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).

    FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa. So Paulo:tica, 1987.

    _____. 50 Poetas Africanos. Lisboa: Pltano Editora, (s.d.).

    LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.

    MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas deLngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.

    MOLLAT, M. Los exploradores del siglo XIII al XVI:primeras miradas sobre

    PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.

    SANTILLI, M. A. Paralelas e tangentes: entre literaturas de lngua portuguesa.So Paulo: Arte & Cincia, 2003.

    TENREIRO, F. J.; ANDRADE, M. P. de. Poesia Negra de ExpressoPortuguesa. Lisboa: ALAC, (s.d.).

    TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.

    Stio da Unio dos escritores angolanos: http://www.ueangola.com/

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 27UNIDADE II

    APRESENTAO

    Narrativas Africanas de Expresso Portuguesa

    Vamos conhecer parte do universo das narrativas produzidas em frica,por meio da aproximao a duas obras escolhidas: Mayombe, de Pepetela,

    escritor angolano e Terra Sonmbula, de Mia Couto, escritor moambicano.

    Mayombe tematiza a luta pela libertao de Angola e Terra Sonmbula

    ambienta-se no momento posterior independncia de Moambique, mais

    precisamente no momento em que a guerra civil acontece no pas.

    Abaixo transcrevo uma passagem do estudo de Maria Nazareth Soares

    Fonseca e Terezinha Taborda Moreira, em que as estudiosas retomam aabordagem de Manuel Ferreira, expondo um modo possvel de compreenso

    das literaturas africanas de lngua portuguesa, a partir de quatro momentos

    dinmicos:

    Manuel Ferreira (1989b) discute a emergncia da literatura(sobretudo da poesia) nos espaos africanos colonizados pelosportugueses, propondo a observao de quatro momentos. No

    primeiro, destaca o terico que o escritor est em estado quaseabsoluto de alienao. Os seus textos poderiam ter sidoproduzidos em qualquer outra parte do mundo: o momentoda alienao cultural. Ao segundo momento corresponde afase em que o escritor manifesta a percepo da realidade. Oseu discurso revela influncia do meio, bem como os primeirossinais de sentimento nacional: a dor de ser negro, o negrismo eo indigenismo. O terceiro momento aquele em que o escritoradquire a conscincia de colonizado. A prtica literria enraza-se no meio sociocultural e geogrfico: o momento dadesalienao e do discurso da revolta. O quarto momentocorresponde fase histrica da independncia nacional,

    quando se d a reconstituio da individualidade plena doescritor africano: o momento da produo do texto emliberdade, da criatividade e do aparecimento de outros temas,

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    28 Literatura Africana de Lngua Portuguesacomo o do mestio, o da identificao com frica, o do orgulhoconquistado.Segundo Manuel Ferreira (1989b), o entendimento da literaturaafricana passa pela compreenso da perspectiva dinmica queorienta a produo literria, que faz com que esses momentosno sejam rgidos nem inflexveis e permite que um escritor,muitas vezes, atravesse dois ou trs deles: no espao

    ontolgico e de criatividade potica do escritor movem-sevalores do colonizador que so dados adquiridos, funcionamvalores culturais de origem e h sempre a conscincia devalores que se perderam e que necessrio ressuscitar.

    Voc pode aprender mais lendo o texto completo, de onde foi extrada a

    passagem acima. Intitula-se: Panorama das literaturas africanas de lngua

    portuguesa. Roce pode encontr-lo no ambiente virtual (Texto 3) ou no

    endereo: (haptoooo://www.ich.pucminas.br/posletras/Nazareth_panorama.pdf)

    UNIDADE II

    Subunidade I

    Apresentao de MAYOMBERomance do Escritor Angolano Pepetela

    Artur Carlos Maurcio Pestana dos Santos

    (Pepetela) nasceu em Benguela, Angola, em 29

    de outubro de 1941. Em 1958, mudou-se para

    Lisboa, ingressando no Instituto Superior

    Tcnico (Engenharia) que frequentou at 1960.

    Em 1961 transferiu seus estudos para o curso

    de Letras. No mesmo ano eclode, em Luanda,

    a revolta que d incio Guerra Colonial. Em

    1963, o escritor torna-se militante do MPLA -

    Movimento Popular para a Libertao de

    Angola. Entre os anos de 1960 e 1970, frequentador da Casa dos Estudantes

    do Imprio, em Lisboa, lugar de efervescncia dos ideais de independncia.

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 29Nesse perodo encontra-se Exilado na Frana e na Arglia, posteriormente

    forma-se em Sociologia. Em 1975, quando Angola se torna livre, assume a

    posio de Vice-Ministro da Educao no governo de Agostinho Neto. Ganha o

    Prmio Cames pelo conjunto da sua obra em 1997, e em 2002 recebe a

    Ordem do Rio Branco ttulo concedido pelo Brasil. Factualmente professor

    de Sociologia da Faculdade de Arquitetura de Luanda, cidade em que reside.

    Vamos, agora, adentrarmos juntos a atmosfera de

    Mayombe, romance do escritor angolano Pepetela. Mayombe o nome da

    floresta da regio de Cabinda, lugar privilegiado para a ao das personagens

    e que divide, com a cidade de Dolisie, o espao da narrativa. Mayombe um

    romance impressionante! Logo saberemos os motivos.

    A dedicatria assalta o leitor pelo carter sugestivo e pelo tom tico, e

    anuncia muito do que os leitores iro encontrar. Vejamos o que nos diz a

    dedicatria: Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses

    abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a histria de Ogun, o

    Prometeu africano (PEPETELA, 1985, p.8). O leitor encontrar sim,

    personagens guerreiros que desafiam os deuses a cada momento, a cada

    passo, na floresta do Mayombe, nos muitos caminhos e questes da vida e da

    meta poltica. So guerreiros orientados por Prometeu, a um s tempo tit e

    smbolo da inteligncia do ser humano. No caso de nossa histria, quem ser

    Prometeu e Ogun?

    Voltaremos a isso mais adiante. Falemos por agora do romance como

    um todo. Mayombe romance que tem por tema a luta pela libertao nacional

    de Angola, dramatizada por um grupo vinculado aos ideais e misso do MPLA:

    Movimento pela libertao de Angola. Trata-se de grupo de guerrilheiros que

    trava sua luta no interior da floresta, estando submetido direo localizada

    em Dolisie, de onde recebem notcias e mantimentos, e para onde guerrilheiros

    do comando se dirigem para levar companheiros a serem castigados.

    Estamos s voltas, eu e vocs, alunos, com um romance que nos revelaa histria de homens reais que viveram a luta pela liberdade de Angola de

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    30 Literatura Africana de Lngua Portuguesameados de 60 at a independncia nacional do pas, em 1974. Sua luta,

    portanto, contra os portugueses, no romance denominados tugas.

    Ns estamos, ento, no plano ficcional tecido pela inveno e pelas

    malhas da histria. No podemos concordar com a ideia de que se trataria de

    um romance apenas ideolgico ou panfletrio. Mayombe uma obra que

    encena o problema histrico ideolgico e tico, identificvel na dialtica

    formada pelo par colonizador-colonizado, dominador-dominado, senhor-

    escravo, cuja sntese: independncia e liberdade motivo de luta, de guerrilha

    e de amor por parte dos angolanos, oriundos e representantes de variadas

    tribos e regies.

    tambm uma obra que chama a ateno para a concretude dos

    indivduos, seus dramas existenciais, morais, tribais e polticos, ainda quando

    fazem parte de uma coletividade organizada e unanimemente eleita como mais

    legtima e que possui o estatuto de sua existncia, criado e mantido pelos

    mesmos indivduos. Da tambm o limite do individual: a meta comum, a futura

    Angola livre.

    Se observarmos sua estrutura narrativa, percebemos que est de acordo

    com essa valorizao do coletivo sem esquecimento dos valores e direitos

    individuais de cada membro, de cada guerrilheiro, de cada personagem.

    Podemos perceber a relao entre o individual e o coletivo na presena de

    narradores diversos, que se apresentam, cada um, em primeira pessoa, e de

    um narrador em terceira pessoa, que abre a narrativa e depois intercala-se com

    os outros narradores, sem oniscincia e com certo envolvimento nos episdios.

    O leitor pode perceber facilmente que o narrador em terceira pessoa no

    abandona a histria. Inclusive a referncia a Ogun, Prometeu Africano,

    encontrada na dedicatria, supostamente feita pelo narrador em terceira

    pessoa, reaparece no captulo 2 A base, em terceira pessoa novamente. Jno Eplogo, a referncia ser encontrada na voz do Comissrio Poltico,

    narrado em primeira pessoa.

    Vrias das personagens que desempenham papel significativo na

    histria, realizando aes, tomando decises e interagindo com outras

    personagens, so, tambm, um a um, narradores da histria que vivem. Por

    isso os captulos se iniciam de modo surpreendente, como: Eu, o narrador ,

    sou teoria, Eu, o narrador, sou milagre, Eu, o narrador, sou mundo novo,Eu, o narrador, sou Muantinvua, Eu, o narrador, sou Andr, Eu, o

    narrador, sou o chefe do depsito, Eu, o narrador, sou o chefe de operaes,

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 31Eu, o narrador, sou lutamos, O narrador sou eu, o comissrio poltico. Cada

    personagem narrador se apresenta ao leitor a seu modo. Seus nomes remetem

    sua personalidade, sua histria pessoal e sua histria de guerrilha.

    O comissrio do grupo simplesmente chamado Comissrio, seu nome

    prprio usado apenas por duas personagens: Ondina e Sem -Medo.

    Chamam-no de Joo quando esto a ss, em situaes de intimidade e

    confidncia. O personagem professor chama-se Teoria. Hbil na dimenso

    terica, possuidor de grande medo, o que inversamente o impele para a luta.

    Outras personagens da ao e da luta chamam-se Lutamos e Chefe de

    Operaes, o ltimo designado pelo cargo que ocupa. Em relao postura

    diante da revoluo, encontramos Mundo Novo, nome de personagem que

    apresenta perfil de intelectual marxista, o que, neste caso, tambm significa

    que pensa por categorias tericas leninistas. Milagre, por sua vez, recebe

    esse nome por ter sobrevivido, por milagre, ao massacre que matou seu pai.

    Muatinvua, por sua vez, leva nome de rei, corajoso e de carter firme, uma

    vez j foi ladro, marinheiro e contrabandista. H outras personagens que no

    se apresentam diretamente ao leitor como narradoras. o caso do

    comandante do grupo que se chama Sem- Medo; seu nome refere-se

    coragem demonstrada quando resistiu sozinho a um grupo de inimigos. o

    caso de Verdade, personagem dogmtica, que apresenta esprito

    revolucionrio e assume posies radicais. Ingratido do Tuga, que recebera

    esse nome negativo por seu carter duvidoso, e fora julgado e condenado

    como traidor. Ekuikui, cujo nome denominao de caador de elefantes,

    que se refere ocupao da personagem antes da guerrilha. Pangu-Akitina,

    que possui nome de curandeiro, equivalente s funes de enfermeiro que

    exerce em meio ao grupo. E Vew, jovem recm chegado ao grupo, leva em

    seu nome a marca ilria do despreparo. A palavra Vew remete ao carro daWolkswagem, que tambm conhecido na regio por cgado.

    H personagens mais significativas do ponto de vista de sua voz

    narrativa, enquanto outros so vistos pelo leitor atravs das lentes do narrador

    em terceira pessoa. Dos dois modos, ao leitor dado conhecer, das

    personagens, mais do que apenas seu papel enquanto integrantes do grupo. O

    leitor tem acesso personalidade individual das personagens, sua histria e

    seus anseios, sinal claro da conscincia dos narradores em relao necessidade de fazer perceber a existncia concreta de cada indivduo na sua

    condio de colonizado e para a configurao do corpo coletivo. Por isso o

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    32 Literatura Africana de Lngua Portuguesacoletivo, em Mayombe, no uma abstrao ou apenas uma categoria. Cada

    personagem possui motivos individuais para estar na luta pelo coletivo. Por

    isso, as personagens narradoras e o narrador em terceira pessoa

    reincidentemente demonstram que lhes tocam as questes sobre o humano,

    seus dilemas ticos, polticos e psicolgicos, como a questo da verdade, do

    poder e do amor.

    Vejamos como Teoria se apresenta ao mesmo tempo em que d inicio

    obra:

    Eu, o narrador, sou Teoria. Nasci na Gabela, na terra decaf. Da terra recebi a cor escura do caf, vinda da me,misturada ao branco defunto do meu pai, comercianteportugus. Trago em mim o inconcilivel e este o meu motor.

    Num Universo de sim ou no, branco ou negro, eu represento otalvez. Talvez no para quem quer ouvir sim e significa simpra quem espera ouvir no. A culpa ser minha se os homensexigem a pureza e recusam as combinaes? Sou eu que devotornar-me em sim ou eu no?Ou so os homens que devemaceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoasdividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueistas eos outros. bom esclarecer que raros so os outros, o mundo geralmente maniqueista.(PEPETELA, 1985, p.14)

    Teoria demonstra sua viso aguda sobre as mediaes existentes entre

    o sim e o no, entre o branco e o negro. Mais adiante, a personagem aindadir: (...) a minha vida o esforo de mostrar a uns e a outros que h sempre

    lugar para o talvez (PEPETELA, 1985, p.21). Vamos pensar, pelo menos, em

    duas possibilidades de compreenso da fala de Teoria.

    Em um primeiro sentido, podemos perceber que o talvez se refere ao

    mestio, filho de frica e Portugal e ento, aps o processo alongado de

    colonizao, realmente no ser possvel exigir pureza, pois o que h so

    encontros raciais e culturais, o que h so, doravante, sempre combinaes.

    Em um segundo sentido, podemos perceber crtica latente ao dogmatismo

    muitas vezes identificvel nos militantes da Revoluo. Nesse caso, estamos a

    pensar nos intelectuais e homens de ao que levam a ferro e fogo a dialtica

    marxista e o par tese-anttese, esquecendo-se que em histria h sempre

    mltiplas mediaes atuando. Isto , no interior da Tese (colonizao) e da

    Anttese (revoluo) no h homogeneidade de posies ou acontecimentos, e

    nem se pode isolar completamente um fato. Por isso, qualquer dogmatismo

    arriscado, seja no plano terico de defesa das ideias, seja no plano prtico da

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 33ao e, no caso dos militantes, s vezes no mbito da deciso de punio para

    os prprios companheiros.

    O maniquesmo aludido por Teoria nos remete, tambm, enquanto

    leitores, dicotomia formada pelo par Bem e Mal. Nesse sentido, Teoria

    denuncia a rigidez, o esquematismo e a simplificao imposta ao mundo pelos

    homens. Afinal: entre o que seria ideal e absolutamente Bom e ideal e

    absolutamente Mal, quantos meios tons? Quantas aes justificveis, possveis

    e de consequncias benficas, sem que sejam exatamente boas ou ms?

    Estamos, aos poucos, alunos, adentrando uma obra que tem como mote

    a ao de guerrilheiros em meio a floresta de Mayombe, sim, mas que um

    livro que trata das grandes questes que tocam a existncia humana, social e

    poltica. Uma das grandes qualidades da narrativa que, aos poucos, vai

    desenvolvendo uma crtica lcida aos meios utilizados na luta pela libertao.

    Os guerrilheiros engajados na luta pela independncia de seus pases,

    podem ter a tendncia, como vrias das personagens, em considerar que o

    que importa o fim almejado e no os meios de atingi-lo. Mayombe

    testemunha que no: os meios importam tanto quanto os fins, e os fins

    dependem dos meios. Tal coerncia se faz presente no episdio em que os

    guerrilheiros enfrentam o campo inimigo para devolver a ex-prisioneiros uma

    quantia em dinheiro que lhes fora roubada por um dos guerrilheiros. Tambm

    se encontra no reconhecimento da incoerncia do machismo entre homens que

    lutam pela liberdade e igualdade. E, ainda, mostra-se na crtica constante ao

    tribalismo como fora contraditria, que age contra a ideia e o valor da

    nacionalidade. A obra no deixa de, a todo momento, mostrar-se ao leitor como

    um texto questionador do Movimento pela Libertao de Angola e

    individualmente dos homens que o movem.

    So mais do que entusiasmantes as passagens em que Sem-Medocritica determinado uso panfletrio do marxismo, denunciando que a ideologia

    se torna rasa e se deforma quando aceita apenas, ao invs de ser vivida

    coerentemente, de modo a vincul-la s necessidades da ao no prprio

    instante da ao. E quando denuncia a ausncia de crtica em relao ao

    prprio marxismo como o caso da passagem abaixo.

    (...) demagogia dizer que o proletariado tomar o poder.Quem toma o poder um pequeno grupo de homens, namelhor das hipteses, representando o proletariado ouquerendo represent-lo. A mentira comea quando se diz que o

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    34 Literatura Africana de Lngua Portuguesaproletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipedirigente, preciso ter uma razovel formao poltica ecultural. O operrio que a isso acede passou muitos anos ou naorganizao ou estudando. Deixa de ser proletariado, umintelectual. Mas ns todos temos medo de chamar as coisaspelo seus nomes e ,sobretudo ,esse nome de intelectual. Tu,Comissrio, s um campons? Porque o teu pai foi campons,

    tu s campons? Estudante um pouco, ls-te muito, h anosque fazes um trabalho poltico, s um campons? No, s umintelectual. Neg-lo demagogia, populismo.(PEPETELA,1985, p.135-6)

    E as passagens em que Sem-Medo denuncia o carter religioso da

    poltica que muitos concretizam em seus atos e decises. A esse respeito,

    vamos ler juntos as seguintes passagens, pronunciadas por Sem-Medo.

    (...) Os quadros do Movimento esto impregnados dereligiosidade, seja catlica, seja protestante, e no so s osdo Movimento. Pega em qualquer Partido. H uns queprocuram aldrabar o padre e escondem os pecados: como osmilitantes que fogem crtica e nunca a aceitam. H os outros,os que inventam mesmo pensamentos impuros que afinal nemchegaram a ter, salvo no momento da confisso, para que sesintam mesquinhos em face do sofrimento do Cristo: so osmilitantes sempre dispostos a auto-criticar-se, a reconhecererros que no cometeram, apenas porque isso lhes d aimpresso de serem bons militantes. Um partido umacapela. (PEPETELA, 1985, p.131)

    Eu sou um hertico, eu sou contra a religiosidade dapoltica. Sou marxista? Penso que sim, conheosuficientemente o marxismo para ver que as minhasidias so conformes a ele. Mas no acredito numa sriede coisas que se dizem ou se impem, em nome domarxismo.(...) Uma coisa, por exemplo, que me pedoente a facilidade com que vocs aplicam um rtulo auma pessoa, s porque no tem exatamente a mesma

    opinio sobre um ou outro problema. (PEPETELA, 1985,p.132)

    O tema do tribalismo periodicamente pontuado pelos narradores do

    romance. Ao mesmo tempo em que h conscincia de que o tribalismo

    determinante para o jogo de foras e privilgios que se estabelecem entre os

    integrantes do Movimento, h momentos cruciais para a discusso do assunto,

    quando o tribalismo acusado de impedir o xito da luta, enfraquecer o

    nacionalismo e trabalhar contra a liberdade da coletividade. O ltimo captulodemonstra, em contrapartida, como os homens superam o tribalismo em nome

    da luta pela nao livre. A voz do Chefe de Operaes: -Lutamos, que era

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 35cabinda, morreu para salvar um Kimbundo. Sem-Medo, que era Kikongo,

    morreu para salvar um Kimbundo. uma grande lio para ns, camaradas.

    (PEPETELA, 1985, p.294).

    Outro tema que encontramos tratado de modo especial em Mayombe

    o tema do amor. Curiosamente tambm no amor est presente a dialtica :

    (...) o amor uma dialtica cerrada de aproximaorepdio, de ternura e

    imposio (PEPETELA, 1985, p.110). E a dialtica do senhor e do escravo:

    Todo o sentimento irracionaliza e, por isso, incapacita para a ao. Que todo

    dominador em parte dominado, essa a relao dialtica entre escravo e o

    senhor de escravos. Que as relaes humanas so sempre contraditrias e

    que as no h perfeitas (Pepetela, 1985,p.175-6). Percebe-se, ainda e

    inversamente, pela voz de Sem-Medo, que no possvel identificar leis nos

    acontecimentos do amor:

    (...) talvez seja isso o amor. O homem tem atrao pelo que lhefaz medo. O mar, o deserto, o abismo, a idia de Deus, amorte, o relmpago...Enfrentar pela primeira vez uma outrapessoa faz medo, por isso atrai os aventureiros. H, noentanto, casais que s encontram o verdadeiro prazer muitodepois do primeiro amor. No se podem estabelecer leisuniversais. (PEPETELA, 1985, p.238)

    Lembremos que nas entrelinhas da histria de guerra, o narrador havia

    anunciado que contaria a histria de Ogun, o Prometeu africano. Muito bem!,

    mas qual seria a personagem a encarnar os poderes titnicos? Quem foi

    Prometeu? O que o tit fez de acordo com a mitologia grega? E qual sua

    importncia?

    Prometeu o tit que, para auxiliar os seres humanos, desobedeceu a

    Zeus e por ele foi castigado. Prometeu deu aos homens a racionalidade e o

    fogo roubado aos deuses. Zeus lhe imputou um castigo eterno: o tit foi

    aprisionado a um penhasco e passou a ter seu fgado devorado por uma guia

    todos os dias, ao passo que, por ser imortal, seu rgo regenerava-se toda

    noite. O dia seguinte esperava-lhe sina igual, e assim infinitamente.

    Independente do castigo recebido, importa saber que ele ensinou aos homens

    como desafiar os deuses, como igual-los em inteligncia e poder. Com o fogo

    e os ensinamentos do tit, os homens passaram a praticar a agricultura e a

    guerra.Nossa personagem titnica Sem-Medo. ele quem ensina os

    recrutas e os guerreiros maduros a desafiarem os deuses, a desafiarem seu

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    36 Literatura Africana de Lngua Portuguesasuposto destino, determinado ora pelos portugueses, ora pela natureza

    impetuosa. Vamos ler juntos a passagem textual que faz referncia direta a

    Zeus e Prometeu, prestando ateno para o fato de que, mesmo a, o narrador

    introduz a dialtica. Afinal, Zeus agrilhoou Prometeu ao castig-lo, ou Prometeu

    que comprometeu Zeus para sempre? A partir do feito de Prometeu, Zeus

    ainda poder ignorar os homens? Prometeu o tit que, ao auxiliar os homens,

    aproxima-se da natureza humana:

    O Mayombe tinha criado o fruto, mas no se dignou mostr-loaos homens: encarregou os gorilas de o fazer, que deixaram oscaroos partidos perto da Base, misturados com as suaspegadas. E os guerrilheiros perceberam ento que o deus-Mayombe lhes indicava assim que ali estava o seu tributo coragem dos que o desafiavam: Zeus vergado a Prometeu,

    Zeus preocupado com a salvaguarda de Prometeu,arrependido de o ter agrilhoado, enviando agora a guia, nopara lhe furar o fgado, mas para o socorrer.(Ter sido Zeusque agrilhoou Prometeu, ou o contrrio?A mata criou cordas nos ps dos homens, criou cobras frentedos homens, a mata gerou montanhas intransponveis, feras,aguaceiros, rios caudalosos, lama, escurido, Medo. A mataabriu valas camufladas de folhas, sob os ps dos homens,barulhos imensos no silncio da noite, derrubou rvores sobreos homens. E os homens avanaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braos folhas brotaram, e flores, e amata curvou-se em abbada, e a mata estendeu-lhes a sombra

    protetora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. EPrometeu dava impunemente o fogo aos homens, e ainteligncia. E os homens compreendiam que Zeus, afinal, noera invencvel, que Zeus se vergava coragem, graas aPrometeu que lhes d a inteligncia e a fora de se afirmaremhomens em oposio aos deuses. Tal o atributo do heri, ode levar os homens a desafiarem os deuses. Assim Ogun, oPrometeu africano (PEPETELA,1985,p.82)

    No capitulo V e no Eplogo, finalmente o leitor compreende a afinidade

    entre Prometeu, Ogun e o comandante Sem-Medo. Prometeu ensinara aoshomens a desafiar os deuses e a evolurem em direo ao conhecimento.

    Ogun, orix do ferro e da guerra, smbolo da fora guerreira, protegia seus

    filhos. Assim se passa com Sem-Medo, ensina a todos: jovens recrutas,

    homens de ao madura e intelectuais, a desafiarem a colonizao e a

    natureza, e ao mesmo tempo os protege com a prpria vida.

    Ns, leitores, sabemos que Sem-Medo morreu salvando a vida de seu

    amigo, o Comissrio, sabemos tambm que j havia deixado seu legado: osensinamentos e o exemplo. O Comissrio, por sua vez, sabe que Sem -

    Medo especial. Nas palavras do Comissrio contidas no eplogo: Sem-Medo

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 37resolveu o seu problema fundamental: para se manter ele prprio, teria de ficar

    ali no Mayombe. Ter nascido demasiado cedo ou demasiado tarde? Em todo

    caso, fora de seu tempo, como qualquer heri de tragdia.

    (PEPETELA,1985,p.299)

    Constatamos que no somos apenas ns, os leitores, a tom-lo como

    heri, a admirar suas reflexes e aes durante toda a narrativa. Na sequncia,

    descobrimos, pelas palavras do Comissrio, que Sem-Medo ter sido um

    dos poucos homens a viver entre o sim e o no, a viver aquilo que Teoria uma

    vez denominara o talvez. Vamos ler as seguintes palavras do Comissrio, a

    respeito do Comandante:

    Penso, como ele, que a fronteira entre a verdade e a mentira

    um caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois ladosda fronteira. Quantos h que sabem onde se encontra essecaminho de areia no meio da areia? Existe, no entanto, e eusou um deles. Sem-Medo tambm o sabia. Mas insistia em queera um caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam queera um trilho cortando, ntido, o verde do Mayombe. Hoje seique no h trilhos amarelos no meio do verde. Tal o destino de Ogun, oPrometeu africano. (PEPETELA, 1985, p.300)

    Independente desta breve apresentao de Mayombe, imprescindvel, alunos, que vocs leiam a obra toda. Percebemos que uma

    obra sem igual e posso afirmar a vocs: a leitura desta narrativa, de modo

    integral, inquieta e provoca prazer!

    Outras obras de Pepetela:

    Muana Pu - Romance escrito em 1969 e publicado em 1978.

    Mayombe - Romance escrito entre 1970 e 1971 e publicado em 1980.

    As Aventuras de Ngunga - Romance escrito e publicado em 1973.

    A Corda - Pea teatral escrita em 1976.

    A Revolta da Casa dos dolos - Pea teatral escrita em 1978 e publicada em

    1979.O Co e os Calus - Romance escrito entre 1978 e 1982 e publicado em 1985.

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    38 Literatura Africana de Lngua PortuguesaYaka - Romance escrito em 1983 e publicado em 1984 no Brasil e em 1985 em

    Portugal e em Angola.

    Lueji, o Nascimento de um Imprio - Romance escrito entre 1985 e 1988 e

    publicado em 1989.

    Luandando - Crnicas sobre a cidade de Luanda escritas e publicadas em

    1990.

    A Gerao da Utopia - Romance que comeou a ser escrito em 1972 e

    publicado em 1994.

    A Gloriosa Famlia, o Tempo dos Flamingos - Romance publicado em 1997.

    O Desejo de Kianda - Romance escrito em 1994 e publicado em 1995.

    A Parbola do Cgado Velho - Romance. Comeou a ser escrito em 1990 e foi

    publicado em 1997.

    A Montanha da gua Lils, fbula para todas as idades - Romance publicado

    em 2000.

    Jaime Bunda, o agente secreto - Romance publicado em 2002.

    Sugiro a leitura do texto O romance como documento

    social: o caso de Mayombe, de Carlos SERRANO. Diria mesmo que

    imprescindvel essa leitura, alm de observaes sobre Mayombe, vocs

    encontraro, no texto, uma breve entrevista com Pepetela. A atividade proposta

    s poder ser realizada aps leitura do texto complementar. O texto est

    disponvel em arquivo, ou ento no seguinte endereo eletrnico:

    http://www.ueangola.com/index.php/criticas-e-ensaios/item/158-o-romance-como-documento-social-o-caso-de-mayombe.html

    Voc tambm pode encontr-lo em arquivo (Texto 4) disponvel no

    ambiente virtual.

    Para compreendermos de modo adequado as passagens

    do romance, comentadas no texto base, em que est presente a questo da

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 39dialtica, vocs devem pesquisar o conceito. Lembrem-se que dialtica envolve

    trs elementos: tese-anttese e sntese.

    PROPOSTA DE ATIVIDADE

    Como atividade, vocs devero relembrar com seus colegas, professor e

    tutor quais so os tipos de narradores e personagens que existem e so

    amplamente reconhecidos pela teoria literria. Em seguida, comparem tais

    narradores e personagens com a polifonia narrativa e a diversidade de

    personagens criada por Pepetela em Mayombe. Em seguida, retomem a

    discusso iniciada na UNIDADE I acerca das relaes entre literatura e histria,

    agora levando em considerao os pronunciamentos de Pepetela, sobre o

    imaginrio e a fico, ao ser entrevistado por Carlos Serrano.

    Como produto final da atividade, vocs devem aprofundar

    a primeira dissertao produzida, o que tambm quer dizer que podero

    melhor-la nessa segunda verso.

    Envie sua dissertao para a biblioteca.

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    40 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    Para vocs saberem mais sobre a literatura angolana,

    consultem o texto: Sobre a gnese da literatura angolana, escrito por Pepetela,

    disponvel no ambiente virtual (Texto 5) e disponvel no seguinte endereo:

    haptooo://www.ueangola.com/index.php/criticas-e-ensaios/item/57-sobre-a-

    g%C3%A9nese-da-literatura-angolana.html

    INDICAES:

    Unio dos escritores angolanos: http://www.ueangola.com/

    ANDRADE, C. Literatura Angolana (Opinies).Lisboa: Edies 70, (s.d).

    CHAVES, R. A formao do romance angolano.So Paulo: Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias HumanasUSP, 1999. (Col. Via Atlntica, n.1)

    ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).

    LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.

    PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.

    SANTILLI, M. A. Paralelas e tangentes: entre literaturas de lngua portuguesa.So Paulo: Arte & Cincia, 2003.

    TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 41

    UNIDADE II

    Subunidade II

    Apresentao da Obra TERRA SONMBULARomance do Escritor Moambicano Mia Couto

    Mia Couto nasceu na Cidade da Beira

    (Moambique) em 1955, filho de emigrantes

    portugueses. Aos 14 anos publicou seus

    primeiros poemas no "Notcias da Beira". Em

    1972, mudou-se para Loureno Marques para

    estudar Medicina. A partir de 1974, inicia-se no

    jornalismo, seguindo o exemplo de seu pai.

    Com a independncia de Moambique, passou

    a diretor da Agncia de Informao deMoambique (AIM). Dirigiu a Revista "Tempo"

    e o Jornal "Notcias de Maputo".

    Algumas obras de Mia Couto:

    Raiz de Orvalho , livro de poesia publicado em 1983.

    Vozes anoitecidas, livro de contos publicado em 1986.

    Cada Homem uma Raa, livro de contos publicado em 1990.

    Estrias Abensonhadas, coletnea de contos publicada em 1994.

    A Varanda do Frangipani, romance publicado em 1996.

    Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, romance de 2002.

    O Fio das Missangas, seu ltimo livro de contos de 2004.

    O ltimo voo do flamingo, romance de 2000.

    O Gato e o Escuro, romance de 2001.

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    42 Literatura Africana de Lngua Portuguesa

    Vamos agora, adentrar juntos ao ambiente onrico de Terra

    Sonmbula, primeiro romance do escritor moambicano Mia Couto. O que se

    segue, caro aluno, uma aproximao mencionada obra, o que, no entanto,

    no nos faz prescindir da leitura integral do texto de Mia Couto.

    Terra Sonmbula ambienta-se no Moambique ps-guerra anti-colonial,

    mais exatamente no momento da guerra civil, em que o pas disputado por

    duas frentes polticas; a FRELIMO (Frente de Libertao de Moambique), que

    passou a ocupar o poder, assim que o pas se tornara independente em 1975 e

    a RENAMO (Resistncia Nacional Moambicana), que fazia oposio ao poder

    institudo. Trata-se de um romance sobre a guerra, a guerra civil e sobre os

    efeitos devastadores da guerra na alma de cada habitante e de toda uma

    nao. Surpreendentemente, tambm um romance sobre sonhadores e o

    poder do sonho, e sobre como o passado essencialmente importante para a

    projeo da esperana no futuro.

    Terra Sonmbula apresenta ao leitor as paisagens mortas, j geladas,estreis, violentas e cruis da guerra que destri invariavelmente povos e

    regies, e ao mesmo tempo, mostra a sobrevivncia de sonhadores que

    resistem em sua tarefa custosa de sonhar, a despeito da fome, da sede, da

    pobreza, do expatriamento no interior da ptria, do exlio, do esfacelamento

    familiar e cultural, da impossibilidade de confiar, de descansar ou trabalhar.

    O poder dos sonhadores est em um lugar no demarcado no territrio

    marcado por campos de deslocados que se alternam com runas e extensesdesoladas. Seu poder est na dimenso dos sonhos, estes, sempre

    alimentados pelo passado, que guarda a riqueza cultural, a identidade, a

    sabedoria, a convivncia em meio aldeia, cidade, famlia. O que tambm,

    quer dizer que reside no passado a fora da esperana no futuro melhor e mais

    belo.

    Frequentemente, a fora do passado se faz presente na herana cultural

    que sobrevive pela oralidade incansvel dos contadores de histrias, os mais

    velhos, os sbios, os ascendentes, e que, no romance, reavivada pela cultura

    escrita. Terra Sonmbula , a esse respeito, especialmente delicado. Faz ver

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 43ao leitor que o passado de que trata um passado recente, em que a

    sabedoria oral dos moambicanos j se encontrava com a tcnica da escrita e

    da leitura dos colonizadores. O romance no nostlgico: no retorna a

    memria do momento anterior colonizao, mantem-se no momento hbrido

    em que a cultura branca ocidental j convive com a cultura oral, mtica e

    cosmognica, de razes africanas. Tudo o que at aqui foi dito, caros alunos,

    ser agora, explicado passo a passo. Iniciemos nossa caminhada.

    O leitor percebe logo nas primeiras pginas do romance que so quatro,

    a princpio, as personagens principais: Muidinga, Tuahir, Kindzu e Tamo.

    Vamos conhec-las.

    Muidinga e Tuahir caminham juntos. O primeiro um menino, o outro um

    senhor de mais idade, responsvel por salvar a vida de Muidinga e dele cuidar.

    Tuahir uma vez encontrara Muidinga em meio a cinco meninos, mortos;

    Muidinga tambm julgado morto, prestes a ser enterrado, descoberto ainda

    com vida por Tuahir. A partir desse momento Tuahir passa a cuidar do menino,

    que fora envenenado por ingerir mandioca que envenena. E torna-se ento, a

    nica famlia do pequeno, ele tambm carente de famlia e com saudades de

    ser pai.

    A solido acompanhada, vivida pelas duas personagens inseparveis

    flagrante em toda a narrativa. E os encontros, as interseces profundas

    dessas duas solides, so marcadamente enfocadas pelo narrador por

    momentos e profundamente sentidos pelo leitor, que pode chegar a sentir o

    que o encontro produz em termos de confiana e segurana para os que

    caminham ss sobre a terra.

    Talvez eu esteja pintando com cores muito fortes a histria das

    personagens de Terra Sonmbula, alunos, ou talvez eu apenas me aproxime

    da intensidade existencial criada pelo narrador... cabe a vocs, com certeza, atarefa de conferirem esse relato de leitura. Por certo, encontraro cores

    diversas, cortes outros, impresses menos ou mais tnues. Vamos prosseguir,

    contudo.

    Kindzu uma personagem conhecida pelo leitor por meio da voz de

    Muidinga. o menino quem l, a Tuahir, a histria de Kindzu contida em uns

    cadernos encontrados junto a um morto, com o qual Muidinga e Tuahir

    esbarraram na estrada. Durante toda a narrativa, tais cadernos so nomeadosCadernos de Kindzu. Por meio da leitura, levada a cabo por Muidinga, Tuahir e

    ns, leitores, passamos a conhecer a histria de Kindzu, sua famlia,

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    44 Literatura Africana de Lngua Portuguesaespecialmente seu pai, Tamo, seus sofrimentos, suas andanas, aventuras, os

    perigos pelos quais atravessa, seus amores e seu corao.

    Kindzu membro de famlia excntrica. Seu pai sonhador, recebe

    previses do futuro por meio dos sonhos que o agitam noturnamente, em uma

    espcie de sonambulismo (modo como nomeada a doena do pai). Kindzu

    tem um irmo Junhito, que recebera esse nome em homenagem ao vinte e

    cinco de Junho, dia da Independncia do pas, acontecimento profetizado pelo

    pai por meio de sonho. Esse irmo, alm do nome especial, portador de um

    destino trgico e incomum. Tambm por obra de uma profecia, dado ao pai

    conhecer o futuro do filho: a morte ainda na meninice, o que faz com que o

    progenitor tome providncias decisivas para salvar o filho. Tamo determinara

    que Junhito se mudasse para o galinheiro e se transformasse em galinha:

    nica maneira pela qual entendia que o filho estaria a salvo.

    No desalinho do destino de Junhito, o destino do pai se define: aps

    desaparecimento de Junhito, Tamo se ressente, enfraquece, adoece, at

    morrer. Entretanto, sua vida espiritual continua, especialmente no que diz

    respeito a seu relacionamento com Kindzu. Aps a morte do pai, Kindzu ganha

    o mundo, ora perseguido e amaldioado pelo esprito de seu pai, ora por ele

    auxiliado. Sua meta: transformar-se em naparama, guerreiro abenoado pelos

    feiticeiros e que luta contra os fazedores de guerra.

    Os elementos fantsticos presentes nas histrias de Junhito e Tamo

    no so propriedade exclusiva dessas personagens. H outras personagens,

    assim como h acontecimentos e sonhos igualmente fantsticos. Tal o caso

    de Farida, personagem com a qual Kindzu encontra j adulto, mulher que

    passa a amar.

    Farida divide, com Tamo, papel determinante na vida de Kindzu. Ela

    filha gmea e o simples fato do nascimento de gmeos traa seu destino e o desua me. A despeito dos rituais purificadores realizados pelo fato do

    nascimento, considerado portador de maldio, Farida e a me acabam tendo

    que viver uma espcie de vida paralela em sua aldeia de origem. A me fingira

    que matara uma das gmeas (a irm de Farida), uma vez que, segundo a

    tradio, gmeos s podem existir nos cus. O castigo, ento, adveio sobre a

    aldeia, e Farida acabara por fugir. Acolhida na casa de um casal de

    portugueses, Romo Pinto e Virgnia, Farida recebe proteo e cuidados dasenhora, mas ao crescer passa a sentir o desejo incontido do senhor.

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 45Aps estratgia mal sucedida de Virgnia, que tenta proteger Farida

    colocando-a em uma misso catlica, Farida encontra Romo, por ele

    atacada e gera um filho do portugus. Esse filho, Gaspar, separado da me,

    torna-se o motivo de sua vida e encontr-lo torna-se o outro objetivo de Kindzu,

    que quer fazer feliz a Farida, mulher que passara a amar. Porm, no tem xito

    na busca. Farida e Kindzu morrem antes que Gaspar pudesse ser encontrado.

    Ainda no que diz respeito ao fantstico, possvel afirmar que emerge

    no seio do cotidiano, ora trazido por sonhos, que recebem tratamento narrativo

    equivalente aos fatos que ocorrem na viglia, ora acompanham os rituais,

    cerimnias, crenas e mitos tradicionais da cultura de Moambique.

    O fantstico est presente nas duas narrativas que compem o

    romance: a do narrador em terceira pessoa que conta a histria de Muidinga e

    Tuahir e a do narrador personagem Kindzu, que conta a histria de sua prpria

    vida. Essa duplicidade narrativa, alunos, de extrema importncia no romance.

    Lembremos que Muidinga encontra os Cadernos de Kindzu e passa a l-los.

    Tal leitura intercala-se com a histria narrada em 3 pessoa a respeito de

    Muidinga e Tuahir.

    O que se pode perceber, entre outras coisas, que tal intercalao

    constitui a prpria estrutura do romance e que as duas narrativas dialogam, at

    o acontecimento da convergncia entre elas, quando, ao final do livro, Kindzu,

    narrador, reconhece em Muidinga, o filho de FaridaGaspar, carregando seus

    cadernos, os Cadernos de Kindzu, enquanto este ltimo est a morrer.

    Tambm possvel perceber que a leitura dos Cadernos redimensiona a

    vida do leitor Muidinga e de quem ouve a leitura da narrativa: Tuahir. Muidinga

    e Tuahir, ao entrarem em contato com os Cadernos, passam a ter suas

    esperanas renovadas, suas vidas passam a ser motivadas pela leitura, sua

    fora, aos poucos, recuperada na emergncia do passado, da tradio oral,da sabedoria tradicional, dos mitos, rituais e cerimnias que os Cadernos de

    Kindzu, alm de fazerem sobreviver, insuflam a ponto de Muidinga e Tuahir

    passarem a conviver, no mais apenas com a guerra, mas tambm com o que

    havia antes dela e com o que poder existir quando ela acabar.

    No so poucos os momentos narrativos envoltos no fantstico ou que

    por ele ganham vida. Lembremos o caso de Junhito; Tamo anuncia a morte

    prxima do filho e diante da reao da famlia afirma: Calem! No querochoraminhices. Este problema j todo eu pensei. Em diante Junhito, vai viver

    no galinheiro! (COUTO, s.d., p.21)

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    46 Literatura Africana de Lngua PortuguesaO narrador esclarece quais foram as ordens de Tamo:

    Fez seguir ordens de seu mandamento: o mido devia mudar,alma e corpo, na aparncia de galinha. Os bandos quandochegassem no lhe iriam levar. Galinha era bicho que nodespertava brutais crueldades (...) aquela era a nica maneirade salvar Vinte e Cinco de Junho. (COUTO, s.d., p.21)

    O acontecimento da morte de Tamo, transloucado, lastimoso e apenas

    se embebedando aps o desaparecimento de Junhito, tambm rodeado de

    fantasia. Tamo fora sepultado nas guas, em seguida, os fatos ocorridos,

    relatados por Kindzu, narrador, so incrveis:

    No dia seguinte, deu-se o que de imaginar nem ningumse atreve: o mar todo secou, a gua inteira desapareceu naporo de um instante. No lugar onde antes praiava o azul,ficou uma plancie coberta de palmeiras. Cada uma sebarrigava de frutos gordos, apetitosos, luzilhantes. Nem eram

    frutos, pareciam eram cabaas de ouro, cada uma pesando milriquezas. Os homens se lanaram nesse vale, correndo decatanas na mo, no antegozo daquela ddiva. Ento seescutou uma voz que se multiabriu em ecos, parecia que cadapalmeira se servia de infinitas bocas. Os homens aindapararam, por brevidades. Aquela voz seria em sonho quefigurava? Para mim no havia dvida: era a voz de meu pai.Ele pedia que os homens ponderassem: aqueles eram frutosmuito sagrados. Sua voz se ajoelhava clamando para que sepoupassem as rvores: o destino do nosso mundo sesustentava em delicados fios. Bastava que um desses fiosfosse cortado para que tudo entrasse em desordens edesgraas se sucedessem em desfile. O primeiro homem,ento, perguntou rvore: por que s to desumana? Srespondeu o silncio. Nem mais se escutou nenhuma voz. Denovo, a multido se derramou sobre as palmeiras. Mas quandoo primeiro fruto foi cortado, do golpe espirrou a imensa gua e,em cataratas, o mar se encheu de novo, afundando tudo etodos. (COUTO, s.d., p.23-24)

    E tal passagem apenas um pequeno exemplo da fora fantstica de

    Tamo, pai que falecera e permanece vivo ao longo das viagens de Kindzu.

    Outro momento fantstico em que vale a pena nos determos estpresente no Segundo Caderno de Kindzu. Uma cova no teto do mundo, em que

    Kindzu percebe que mal iniciara sua viagem e o esprito de seu pai j estava

    em seu encalo e que seus passos estavam deixando rastos no mar. A esse

    respeito, Kindzu toma providncia inesperada:

    Assim, eu desobedecia da jura de nunca deixar sinais deminha viagem. Lembrei o conselho do nganga e tirei a ave

    morta debaixo do meu assento. Estava preparado para essabatalha com as foras do aqum. Em cada pegada deitei umapena branca. No imediato, da pluma nascia uma gaivota que,ao levantar vo, fazia desaparecer o buraco. O vo das avesque eu semeava ia apagando meu rasto. Dessas artes, eu

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    Literatura Africana de Lngua Portuguesa 47vencia o primeiro encostar de ombros com os espritos.(COUTO, s.d., p. 49-50)

    Com aparecimento breve no romance, outra personagem rodeada pelo

    fantstico Nhamataca, antigo conhecido de Tuahir, com quem trabalhou nos

    tempos coloniais. Muidinga e Tuahir encontram Nhamataca trabalhando nafeitura de um rio. Nas palavras do narrador a respeito da ocupao de

    Nhamataca:

    Sim, por aquele leito fundo haveria de cursar um rio,fluviando at o infinito mar. As guas haveriam de nutrir asmuitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariamesperanas, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, dolugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas. (...)Nome que dera ao rio: Me-gua. Porque o rio tinha vocao

    para se tornar doce, arrastada criatura. Nunca subiria emfrias, nunca se deixaria apagar no cho. Suas guas serviriamde fronteira para a guerra. Homem ou barco carregando armairiam ao fundo, sem regresso. A morte ficaria confinada aooutro lado. O rio limparia a t