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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    ECONOMIA SOLIDRIA E POLTICAS PBLICAS:

    reflexes a partir do caso do programa Incubadora deCooperativas, da Prefeitura Municipal de Santo Andr, SP

    Dissertao para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica

    Gabriela Cavalcanti Cunha

    Orientador: Prof. Dr. Cludio Jos Torres Vouga

    So Paulo

    2002

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    AGRADECIMENTOS

    A redao de uma dissertao tida como tarefa profundamente solitria, mas o

    conhecimento que possibilita a redao adquirido de forma fundamentalmente coletiva. No meu

    caso, essa dissertao jamais seria realizada sem reflexes em grupo, trocas de idias eexperincias, e a solidariedade, colaborao e apoio de muitas pessoas.

    Comeo agradecendo ao meu orientador Cludio Vouga, que acompanhou meus passos de

    perto com ateno, seriedade e rigor cientfico e me ajudou em minhas escolhas, ao mesmo

    tempo em que me garantiu liberdade intelectual e me estimulou a seguir os caminhos que escolhi.

    Mais do que orientador, o professor Vouga foi um verdadeiro mestre e me deu todo o apoio

    possvel, inclusive nos momentos pessoais mais difceis.

    Paul Singer foi como meu outro orientador. Foi no grupo de estudos organizado por ele para

    discutir a experincia de Mondragn que tive meu contato inicial com a economia solidria. A

    partir da, participei de seus cursos de ps-graduao na FEA, e, em setembro de 1999, me

    integrei ao projeto de extenso universitria do qual ele coordenador acadmico, a Incubadora

    Tecnolgica de Cooperativas Populares (ITCP-USP). Nestes espaos e em muitos outros, o

    professor Singer sempre compartilhou conosco seu grande conhecimento com o entusiasmo, a

    simplicidade e o profundo humanismo que fazem dele um grande mestre para todos ns.

    Outros mestres tambm contriburam para reflexes presentes nessa dissertao a partir de

    seus cursos de ps-graduao, principalmente Lcio Kowarick (a quem tambm agradeo a

    participao em minha defesa), Fernando Haddad, Maria Clia Paoli e o querido Gabriel Cohn (a

    quem agradeo nossas conversas sempre estimulantes). Uma meno especial deve ser feita a

    Rgis de Castro Andrade, que, nos seminrios de projetos que coordenava e mais tarde em

    minha banca de qualificao, se mostrou entusiasmado com a economia solidria e me fez

    preciosas crticas e sugestes. Ele tambm era um grande mestre, e lamento que no tenha

    chegado a conhecer a verso definitiva do texto.

    A ITCP-USP foi um espao de rico aprendizado, junto aos companheiros de vrias reas que

    me ajudaram a refletir sobre nossas prticas e suas contradies, e junto aos grupos e

    cooperativas que tive oportunidade de conhecer ao longo de mais de dois anos de atividades,

    formando e sendo formada. Registro a importncia dos professores Paulo Salles, Snia Kruppa e

    Sylvia Leser em minhas escolhas, e a colaborao e apoio de Mnica Rique, Henrique Parra eprincipalmente de Andr Ricardo, Silvana Campos e Joo Paulo Lima, que se tornaram grandes

    amigos. Agradeo ainda ao carinho da funcionria da ITCP e tambm grande amiga Ins Siqueira.

    Em Santo Andr, agradeo aos tcnicos do Departamento de Gerao de Trabalho e Renda,

    da Secretaria de Desenvolvimento Econmico e Trabalho em especial No Cazetta, que foi

    sempre atencioso e generoso comigo , diretoria da Unisol Cooperativas, e aos membros e ex-

    membros da equipe da Incubadora de Cooperativas, junto qual atuei na sistematizao das

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    atividades do programa, o que me permitiu acompanhar de perto os trabalhos da equipe.

    Agradeo principalmente Quenes Gonzaga, que me convidou para realizar a sistematizao na

    poca em que era gerente do programa, e hoje, colega de ps na USP, se tornou grande amiga,

    tendo generosamente dividido comigo experincias e reflexes.

    Agradeo ainda o apoio dos funcionrios da Secretaria de Cincia Poltica e aos muitos

    colegas, amigos e parentes que torceram por mim e me estimularam, dentro e fora de So Paulo:

    seria impossvel mencionar a todos. Um agradecimento carinhoso vai para meus pais, Luiz

    Cludio e Janda, que me proporcionaram sempre ambiente e oportunidades para minha

    formao, meu irmo Diego, que me apresentou a permacultura (mudana de valores para mim

    to importante quanto o cooperativismo), e tambm meus queridos Leandro, Lgia e Pablo. E no

    possvel agradecer em palavras as trs pessoas que foram fundamentais ao longo de todo o

    perodo do mestrado: minha me, que foi me, professora e amiga; Tati, colega de profisso e

    irm de corao; e Angel, que soube a hora certa do colo acolhedor e do empurro vigoroso, e

    cujo amor paciente e incondicional me ajudou a seguir sempre em frente.Por fim, agradeo ao CNPq, que me concedeu bolsa de estudos que possibilitou a realizao

    dessa dissertao de mestrado.

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    SUMRIO

    RESUMO/ABSTRACT....................................................................................................................................... i

    ABREVIATURAS............................................................................................................................................. iii

    CAPTULO 1 Introduo: ao governamental para a organizao social............................................. 1

    1.1. Os novos movimentos sociais e a autonomia perante o Estado................................................................3

    1.2. Formas alternativas de desenvolvimento contra a excluso econmica e poltica.................................... 8

    1.3. O Estado como promotor da organizao social para o desenvolvimento...............................................16

    CAPTULO 2 Ao governamental, organizao social e desenvolvimento......................................... 19

    2.1. A construo de capital social e da sinergia Estado-sociedade...............................................................19

    2.2. Funcionrios dedicados, cidados engajados, governos eficientes.........................................................22

    2.3. Empoderamento das comunidades e o Estado como agente externo.....................................................25

    2.4. Limites e possibilidades da ao governamental para organizao social no Brasil............................... 28

    2.5. Limites e possibilidades de polticas pblicas de desenvolvimento local no Brasil..................................38

    CAPTULO 3 Economia Solidria: idias, experincias, e a relao com o Estado.............................44

    3.1. Cooperativas e outras formas econmicas solidrias..............................................................................45

    3.2. Idias por trs das prticas de economia solidria...................................................................................56

    3.3. Economia solidria no Brasil.....................................................................................................................69

    3.4. Economia solidria e o Estado.................................................................................................................81

    CAPTULO 4 As gestes do Partido dos Trabalhadores na Prefeitura Municipal de Santo Andr ....914.1. Santo Andr e o ABC: economia, poltica e sociedade............................................................................91

    4.2. O modo petista de governar em Santo Andr........................................................................................95

    CAPTULO 5 O programa Incubadora de Cooperativas ........................................................................ 116

    5.1. Histrico e caracterizao.......................................................................................................................116

    5.2. Pontos para reflexo sobre uma poltica pblica de fomento economia solidria............................... 135

    5.3. Consideraes finais...............................................................................................................................151

    BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................................. 154

    PGINAS DA INTERNET............................................................................................................................. 163

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    RESUMO

    A idia de que a formao de laos de cooperao e a organizao em associaes podem

    contribuir para a melhoria da qualidade de vida de populaes pobres tem adquirido fora entre

    tericos e atores polticos. Parte deles argumenta que o Estado tem historicamente agido contra a

    possibilidade de organizaes autnomas emergirem em comunidades de baixa renda, masexemplos recentes mostram que atores estatais tambm podem incentivar e apoiar estas

    comunidades para que se auto-organizem, o que pode ser decisivo para que elas se desenvolvam

    em termos sociais e econmicos. A presente dissertao pretende estabelecer o quadro terico e

    histrico no qual se insere um exemplo significativo de como o Estado pode, em parceria com

    setores organizados da sociedade civil, estimular a organizao coletiva das parcelas mais pobres

    e menos organizadas da populao, a fim de promover seu desenvolvimento. Este exemplo vem

    do programa Incubadora de Cooperativas, da Prefeitura Municipal de Santo Andr, municpio da

    regio do Grande ABC, So Paulo.

    Os limites e possibilidades de uma poltica pblica de fomento ao cooperativismo como

    estratgia de desenvolvimento so considerados com base em duas abordagens principais: de um

    lado, os debates sobre o papel de governos para o estmulo participao dos cidados e sua

    organizao em associaes dentro de um quadro de redefinio das relaes Estado-sociedade

    civil; de outro lado, o contexto de construo do que vem sendo chamado economia solidria, que

    aqui caracterizamos como uma diversidade de experincias coletivas de organizao econmica,

    onde as pessoas se associam para produzir e reproduzir meios de vida segundo relaes de

    reciprocidade, igualdade e democracia. Com base nos avanos, dificuldades e desafios do caso

    da Incubadora de Cooperativas de Santo Andr, procuramos refletir sobre o potencial apoio do

    Estado em relao s formas de economia solidria.

    ABSTRACT

    The idea that building cooperation ties and organising in associations may contribute to

    improve the quality of life of the poor has been growing among social scientists and political

    agents. Part of them argue that the state has historically worked against the possibility of

    autonomous organisation rise among poor communities, but recent cases have proved that state

    actors may also work in ways of fostering and helping organisation in these communities, what

    may be decisive to their development both in social and economic terms. This dissertation

    attempts to build the theoretical and historical frame for an interesting example of how state, along

    with organised groups of civil society, can foster collective organisation of poor and non-organised

    people in order to promote development: the Cooperatives Incubator, of the Municipality of Santo

    Andr, So Paulo, Brasil.

    Limits and possibilities of such a public policy as development strategy are considered

    according to two main approaches: the debates on the role of governments to promote civic

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    participation and organisation, what is related to the redefinition of state-society relations; and, on

    the other hand, the building of what has been called solidarity economics, featured as a diversity of

    collective experiences of economic organisation, where people get together to produce and

    reproduce means of life according to reciprocity, equality and democracy. Based on the progress,

    difficulties and challenges of the Cooperatives Incubator of Santo Andr, we try to point out

    reflections on the potential role of the state to support forms of solidarity economics.

    Palavras-chave:cooperativismo (, politicas pblicas de fomento ao) economia solidria

    polticas de desenvolvimento relaes Estado/sociedade civil excluso/cidadania

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    ABREVIATURAS

    Economia solidria (organizaes econmicas solidrias,

    entidades de apoio e fomento e instituies afins):

    ACI Aliana Cooperativa Internacional

    ADS/CUT Agncia de Desenvolvimento Solidrio, da Central nica dos Trabalhadores

    ANTEAG Associao Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogesto e Participao Acionria

    CIPRES Centro para Investigao, Promoo e Desenvolvimento Rural e Social (Nicargua)

    COEP Comit de Entidades no Combate Fome e Pela Vida (Ao da Cidadania)

    CONCRAB/MST Confederao Nacional das Cooperativas de Reforma Agrria no Brasil, do Movimento

    dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    COPPE/UFRJ Coordenao dos Programas de Ps-Graduao em Engenharia, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro

    CNM Confederao Nacional dos Metalrgicos

    CRESOL Sistema de Cooperativas de Crdito com Interao Solidria

    CRIDA - Centro de Pesquisa e Informao sobre a Democracia e a Autonomia (Frana)

    CRUB Conselho de Reitores das Universidades Pblicas Brasileiras

    CUAVES Comunidade Urbana Autogestionria de Villa El Salvador

    DIEESE Departamento Intersindical de Estudos Socioeconmicos

    FASE Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional

    IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas

    ITCP Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares

    LETS Local Employment and Trading System (Sistema Local de Emprego e Comrcio)

    MAUSS Movimento Anti-Utilitarista nas Cincias SociaisNAPES Ncleo de Apoio e Pesquisa em Economia Solidria

    OCB Organizao Cooperativa Brasileira

    OCESP Organizao Cooperativa do Estado de So Paulo

    OEP Organizao Econmica Popular

    PAC Projeto Alternativo Comunitrio (Critas)

    PACS Instituto de Polticas Alternativas para o Cone Sul

    SEL - Systme de Echange Local (Sistema Local de Troca)

    SESCOOP Servio Nacional de Aprendizagem em Cooperativismo (OCB)

    UNISOL Cooperativas Unio e Solidariedade das Cooperativas do Estado de So Paulo

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    Municpio de Santo Andr (rgos e programas governamentais

    e organizaes da sociedade civil):

    ACISA Associao Comercial e Industrial de Santo Andr

    APD Programa de Apoio s Populaes Desfavorecidas, da Unio Europia

    CMO Conselho Municipal de Oramento

    CRAISA Companhia de Reabastecimento de Santo Andr

    CTR Programa Central de Trabalho e Renda

    DEGER Departamento de Gerao de Emprego e Renda (atual DGTR)

    DGTR Departamento de Gerao de Trabalho e Renda (antigo DEGER)

    DPAV Departamento de Parques e reas Verdes

    EP Programa Empreendedor Popular

    FSA Fundao Santo Andr

    GEPAM Programa de Gerenciamento Participativo das reas de Mananciais

    GTIS Programa Gerao de Trabalho de Interesse Social

    IC Programa Incubadora de CooperativasMDDF Movimento em Defesa dos Direitos dos Favelados

    MOVA Movimento de Alfabetizao de Jovens e Adultos

    NIPP Ncleo de Inovao em Polticas Pblicas

    NPP Ncleo de Participao Popular (atual SPC)

    OP Programa Oramento Participativo

    PGU/ONU Programa de Gesto Urbana, da Organizao das Naes Unidas

    PIIS Programa Integrado de Incluso Social (atual Mais Igual)

    PMSA Prefeitura Municipal de Santo Andr

    SDEE Secretaria de Desenvolvimento Econmico e Emprego (atual SDET)

    SDET Secretaria de Desenvolvimento Econmico e Trabalho (antiga SDEE)

    SDU Secretaria de Desenvolvimento Urbano (antiga SDUH)

    SDUH Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitao (atual SDU)

    SEFP Secretaria de Educao e Formao Profissional

    SEMASA Servio Municipal de Saneamento Ambiental de Santo Andr

    SETRANS Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de Santo Andr

    SHIS Secretaria de Habitao e Incluso Social

    SCAS Secretaria de Cidadania e Ao Social (extinta)

    SEJA Programa de Suplncia de Ensino para Jovens e Adultos

    SPC Secretaria de Participao e Cidadania (antigo NPP)SRICR Secretaria de Relaes Internacionais e Captao de Recursos

    SS Secretaria de Sade

    SSM Secretaria de Servios Municipais

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    CAPTULO 1

    Introduo: ao governamental para a organizao social

    A idia de que a formao de laos de cooperao e a organizao em associaes podem

    contribuir para a melhoria da qualidade de vida de populaes pobres tem adquirido fora entre

    tericos e atores polticos. Parte deles argumenta que o Estado tem historicamente agido contra a

    possibilidade de organizaes autnomas emergirem em comunidades de baixa renda, mas

    exemplos recentes mostram que atores estatais tambm podem incentivar e apoiar estas

    comunidades para que se auto-organizem, o que pode ser decisivo para que elas se

    desenvolvam em termos sociais e econmicos. A presente dissertao pretende estabelecer o

    quadro terico e histrico no qual se insere um exemplo significativo de como o Estado pode, em

    parceria com setores organizados da sociedade civil, estimular a organizao coletiva das

    parcelas mais pobres e menos organizadas da populao, a fim de promover seudesenvolvimento. Este exemplo vem do programa Incubadora de Cooperativas, da Prefeitura

    Municipal de Santo Andr, municpio da regio do Grande ABC, So Paulo.

    A idia de uma incubadora de cooperativas remete s incubadoras de empresa, que h muito

    existem em universidades e centros de pesquisa, nas quais pequenos e mdios empreendedores

    recebem apoio e capacitao em aspectos tecnolgicos, jurdicos, contbeis, administrativos e

    produtivos para desenvolverem seus prprios negcios. De forma anloga, uma incubadora de

    cooperativas visa oferecer assessoria tcnica nestes aspectos a grupos de pessoas que desejam

    formar uma sociedade cooperativa, mas o acompanhamento tambm recai sobre os aspectos

    organizativos e educativos da autogesto coletiva e igualitria. Uma vez que em uma cooperativa

    no h diviso de classes e os prprios trabalhadores so os donos do empreendimento, a

    formao para a organizao coletiva torna-se fundamental em uma incubadora de cooperativas.

    Se de um lado o objetivo ajudar grupos a constituir e administrar sozinhos seus prprios

    empreendimentos econmicos, de outro trata-se de organiz-los para a prtica democrtica: a

    tomada coletiva de decises em assemblias, a prestao regular das contas da cooperativa, a

    transparncia das informaes relativas cooperativa, a garantia da igualdade dos direitos de voz

    e voto a todos os cooperados.

    Existem outras incubadoras de cooperativas de proposta semelhante espalhadas por todo opas, todas ligadas a universidades. Mas o que diferencia a Incubadora de Cooperativas de Santo

    Andr o fato de se tratar de uma iniciativa da Prefeitura Municipal, concebida como parte de

    uma poltica pblica de gerao de trabalho e renda. O programa foi criado para atender

    principalmente aos moradores do municpio que se encontram margem do mercado de trabalho

    formal ou em risco de sair dele (trabalhadores desempregados h muito tempo ou que jamais

    estiveram empregados formalmente, ex-trabalhadores de fbricas beira da falncia que

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    assumem coletivamente o controle da empresa em troca de dvidas trabalhistas, donas de casa

    que precisam gerar renda para ajudar na economia domstica etc.).

    O programa foi implantado na segunda gesto (1996-2000) de Celso Daniel, do Partido dos

    Trabalhadores (PT), partido com fortes vnculos com os movimentos sociais organizados locais,

    pois nasceu das lutas sindicais no ABC no fim da dcada de 19701. O projeto inicial foi elaboradopor tcnicos do Departamento de Gerao de Trabalho e Renda, da Secretaria de

    Desenvolvimento Econmico e Trabalho, mas no est diretamente inserido na estrutura da

    prefeitura: sua implementao tambm envolve atores da sociedade civil. A Incubadora de

    Cooperativas foi fruto de uma parceria entre a Prefeitura de Santo Andr, a Fundao Santo

    Andr (instituio de nvel superior parcialmente mantida pela prefeitura) e a Fundao

    Unitrabalho (rede inter-universitria para estudos sobre o trabalho). A partir de julho de 2000, com

    a sada da Unitrabalho como entidade contratada para execuo do Programa, o convnio com a

    prefeitura foi assumido pela Unisol Cooperativas, associao de cooperativas industriais criada

    com o apoio do Sindicato dos Metalrgicos do ABC, do Sindicato do Qumicos do ABC e outros

    sindicatos com fora poltica na regio, para representar jurdica e politicamente as cooperativas

    de produo nascidas de empresas industriais assumidas por trabalhadores.

    Nosso principal objetivo analisar as condies nas quais se torna possvel a construo de

    uma poltica pblica que adota o cooperativismo como alternativa de gerao de trabalho e renda.

    Trata-se de entender o caso do programa Incubadora de Cooperativas de Santo Andr no de

    modo isolado, mas a partir do debate sobre idias que vm sendo desenvolvidas na teoria social e

    na prtica poltica e do que este caso significa luz das experincias histricas e da atual

    conjuntura poltico-econmica. Para isto, a dissertao concentra-se na discusso terica eprtica sobre formas de incluso promovidas enquanto polticas pblicas de desenvolvimento

    local, com base em experincias de organizao da sociedade civil.

    Este captulo introdutrio parte do dilogo com duas abordagens distintas. De um lado,

    revisamos os estudos sobre a ascenso da sociedade civil organizada, que inicialmente

    enfatizaram a espontaneidade dos movimentos populares e sua autonomia diante do Estado, mas

    que mais recentemente passam a discutir o papel dos agentes externos, o Estado entre eles, na

    organizao destes movimentos e a articulao com o poder pblico para alcanar seus objetivos.

    De outro, examinamos brevemente o debate sobre projetos alternativos de desenvolvimento com

    base em experincias de organizao das comunidades locais, o que vem ganhando espao a

    partir da constatao do aumento da pobreza e da excluso (conceito tambm discutido adiante).

    A partir desta reflexo inicial sobre as duas temticas e seus pontos de convergncia, abordamos

    o papel do poder pblico enquanto promotor da incluso econmica e poltica, atravs do estmulo

    organizao e formao dos cidados.

    1Celso Daniel foi prefeito de Santo Andr pela primeira vez entre 1988-1992 e encontrava-se em sua terceira gesto(2001-2004), quando foi brutalmente assassinado em 20 de janeiro de 2002, em circunstncias ainda no esclarecidas.O governo foi assumido pelo vice-prefeito, Joo Avamileno, tambm do PT.

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    1.1. Os novos movimentos sociais e a autonomia perante o Estado

    O programa Incubadora de Cooperativas da Prefeitura de Santo Andr deve ser entendido

    como um caso onde o Estado procura capacitar grupos da sociedade civil para a gesto coletiva,

    participativa e autnoma de seus empreendimentos econmicos, isto , trata-se do Estado

    ajudando cidados a se organizar para adquirir autonomia.A literatura clssica sobre os novos movimentos sociais enfatiza a autonomia da sociedade

    civil em relao ao Estado. Desde o fim dos anos 1970, a crtica ao estatismo tem predominado

    entre tericos e ativistas progressistas, que passaram a enxergar na sociedade civil um locus

    potencialmente emancipatrio. As experincias do socialismo real mostraram que o Estado

    redistributivo tendia a ser tecnocrtico ou mesmo autoritrio, caindo ora na violncia, no caso do

    regime stalinista, ora numa espcie de assistencialismo que impediu que a transformao social

    fosse alm de certo ponto, no caso dos regimes social-democratas. Por isto, uma literatura cada

    vez maior passou a enfatizar a sociedade civil, ao invs do Estado, como a esfera de onde

    poderia emergir uma democracia radical, com caractersticas inclusivas, igualitrias e

    participativas2.

    Os movimentos sociais que emergem a partir do final dos anos 1960 foram chamados novos

    em contraste com os atores sociais tidos como tradicionais, isto , os movimentos proletrio e

    campons. Em primeiro lugar, porque levantaram novas demandas no necessariamente

    materiais (ou seja, questes de identidade, que se deslocaram das questes antes centrais do

    trabalho e da terra em direo a temas como ambientalismo e defesa dos direitos humanos e das

    minorias). Em segundo, porque estabeleceram formas diferenciadas de ao, com nfase no

    discurso e na poltica de direitos, assim como novos padres de comportamento que pareciam ircontra a lgica da ao coletiva descrita por Mancur Olson3. E, por fim, porque tambm

    pareciam rejeitar a negociao convencional com o Estado e a intermediao atravs de partidos

    e sindicatos, enfatizando a prpria autonomia diante das instituies polticas4.

    2Entre os pensadores clssicos, Alexis de Tocqueville foi um dos primeiros a enfatizar a importncia das associaescivis para o desenvolvimento de uma sociedade democrtica, em A Democracia na Amrica(Belo Horizonte, Itatiaia,1962). J a noo contempornea de sociedade civil estabelece uma contraposio em relao no s ao Estado, mastambm ao mercado. Ao contrrio do Estado, guiado pela lgica do poder atravs da violncia institucionalizada, e domercado, movido pela lgica da competio para a acumulao de capital, a sociedade civil vislumbra a possibilidadeda construo de uma racionalidade tica, comunicativa, voltada para a justia social - noo que deve muito s

    formulaes tericas de J. Habermas em Mudana estrutural da esfera pblica(Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984)e The theory of communicative action(Boston, Beacon, 1987). Para um comentrio sobre a evoluo do conceito desociedade civil, ver L. Avritzer, Alm da dicotomia estado/mercado, Novos Estudos CEBRAP, n 36, 1993, pp. 213-222; e A. Arato & J. Cohen, Sociedade civil e teoria social, in: L. Avritzer, Sociedade civil e democratizao, BeloHorizonte, Del Rey, 1992, pp. 147-82. C. Mouffe et al. (Dimensions of radical democracy, Londres, Verso, 1992; TheReturn of the Political, Londres, Verso, 1993) tambm apostam na organizao da sociedade civil em associaes comocaminho para levar adiante o que chamam de radicalizao da democracia, enquanto P. Hirst ( A democraciarepresentativa e seus limites, Rio de Janeiro, Zahar, 1993;Associative democracy: new forms of economic and socialgovernance,University of Massachussets Press, 1994) v o associativismo e o cooperativismo como formas de conciliaros princpios socialistas de redistribuio econmica com o pluralismo e o liberalismo das sociedades democrticascontemporneas.3M. Olson, The logic of collective action, Cambridge, Harvard University Press, 1965.4Em um dos primeiros artigos sobre os NMS europeus publicados no Brasil, significativamente intitulado De costaspara o Estado, Tilman Evers ressalta a natureza anti-estatal que entende ser um trao homogneo entre as formas

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    Na Amrica Latina, a exploso dos movimentos sociais a partir do fim dos anos 1970 ocorreu

    sob condies histricas bem particulares, o que fez com que fosse percebida a princpio como

    resultante em parte da supresso dos partidos de esquerda e dos sindicatos dentro de regimes

    autoritrios5. O uso de canais alternativos para a negociao poltica ou antes, a ausncia de

    quaisquer canais foi interpretada como nfase na autonomia e a alegada espontaneidade e ocarter antiorganizacional foram entendidos como desejveis, em oposio ao risco da lei de

    ferro da oligarquia que regeria todas as organizaes6. Anlises importantes sobre essa primeira

    onda de movimentos sociais so as de Alain Touraine, Alberto Mellucci e Ernesto Laclau7.

    A teoria dos novos movimentos sociais (NMS) foi desenvolvida parcialmente para responder

    anlise de classe, da sua nfase na identidade social e na formao da identidade razes para

    o novo atribudo a estes movimentos. Como lembra Joe Foweraker professor de Governo da

    Universidade de Essex que escreveu amplamente sobre movimentos sociais , para o marxismo a

    identidade no uma questo, uma vez que as classes continuam a existir independente de

    conhecimento social8. A teoria dos NMS, ao invs, foi chamada ps-marxista e at ps-moderna,

    ao mostrar o reducionismo das abordagens marxista e funcionalista que prevaleceram at os anos

    1960 e 70.

    Neste sentido, seminal a obra de Ernesto Laclau & Chantal Mouffe, Hegemonia e Estratgia

    Socialista9. Se Touraine v um declnio significativo da classe enquanto identidade primria nas

    sociedades ps-industriais mas no rejeita por completo a idia de classe, a rejeio de Laclau &

    Mouffe ao marxismo muito mais bvia. Para eles, as identidades de classe so discursos

    construdos, como qualquer outra identidade, e as demandas dos NMS seriam muito mais radicais

    e universais, porque no mais vinculadas aos interesses de classe. Os crticos dizem que Laclau& Mouffe confundem a existncia objetiva de classes definidas por relaes sociais de produo e

    consumo (classe em si) com a conscincia da identidade dessa classe (classe para si), e no

    porque os indivduos no possuem conscincia de classe que se pode concluir da que tambm

    no pertencem a uma classe10.

    incipientes de mobilizao: os novos movimentos sociais compartilham a mesma desconfiana para com o Estado (in:Novos Estudos CEBRAP, n 1, pp. 25-39, 1983, p. 27).5 Ao analisar os movimentos populares da Grande So Paulo na dcada de 1970, Vincius Brant conclui que aconquista da liberdade de manifestao pblica resultou em grande medida da deciso de desobedincia s proibies,

    legais ou extra-legais mas em todo caso ilegtimas, por parte de movimentos e instituies que expressavam aautonomia da sociedade diante do Estado, mas ressalva que, paradoxalmente essa autonomia construiu-seforosamente a partir do fechamento dos canais institucionais de expresso oposicionista (in: V. Brant & P. Singer, SoPaulo: o povo em movimento, Petrpolis, Vozes, 1980, p. 24).6 A expresso de Robert Michels, em sua clebre anlise de 1914 sobre o Partido Social-Democrata alemo(Sociologia dos Partidos Polticos, Braslia, EdUnB, 1982).7Ver A. Touraine, An Introduction to the Study of Social Movements, in: Social Research, vol. 52, n 4, 1985, e Thereturn of the actor: social theory in post-industrial society, University of Minneapolis Press, 1988; A. Mellucci, TheSymbolic Challenge of Contemporary Movements, in: Social Research, vol. 52, n 4, 1985; e E. Laclau, Os NovosMovimentos Sociais e a Pluralidade do Social, in: Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 1, n 2, pp. 41-47, 1986.8J. Foweraker, Theorizing social movements, Londres, Pluto, 1992.9E. Laclau & C. Mouffe, Hegemona y estrategia socialista: hacia una radicalizacin de la democracia, Madri, Siglo XXI,1985.10Ver Foweraker, op. cit.

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    Hoje muitos autores defendem que a anlise de classe no deveria ter sido abandonada por

    completo, argumentando que, mesmo que falem em identidades culturais e autonomia poltica,

    estes novos movimentos sociais ainda esto preocupados com questes materiais e ainda esto

    envolvidos com agncias estatais. Isto particularmente verdadeiro no caso da Amrica Latina,

    onde a continuidade entre velhos e novos movimentos no pode ser negada11.Aqui, torna-se crucial o debate em torno da alegada autonomia em relao ao Estado. O

    argumento comum entre os tericos dos NMS o de que, por defenderem prticas autnomas,

    estes movimentos no estariam interagindo de uma forma poltica. Crticas mais recentes, porm,

    acusam os tericos dos NMS de confinar os movimentos sociais esfera da sociedade civil e,

    mais do que isso, de coloc-los em oposio ao Estado12. certo que isto poderia ser uma

    tentativa de proteger sua autonomia, especialmente num contexto histrico como o da Amrica

    Latina, onde a presena do Estado tem sido to esmagadora. Neste caso, os movimentos sociais

    estariam buscando se distanciar da manipulao poltica tpica das formas clientelistas e

    paternalistas de relaes polticas que existem ainda hoje.

    Foweraker entende tal preocupao, mas no aceita que a ao social possa ser considerada

    no-estratgica, o que colocaria em questo todo o seu potencial transformador: preciso que os

    movimentos sociais desenvolvam um projeto poltico se querem obter xito em seus objetivos13.

    De forma anloga, a cientista poltica Judith Hellman aponta o risco de se considerar os novos

    movimentos sociais como apolticos e desvinculados da conscincia de classe ou do conflito de

    classe. Para ela, tal caracterizao um reflexo do etnocentrismo dos tericos: como a maioria

    dos tericos permanecem observadores ao invs de participantes, Hellman afirma que esta

    externalidade diante da luta real pode contribuir para o que chama de atitude extremamenteprotetora em relao aos movimentos. Ela tambm acusa os tericos de interpretar erroneamente

    o sucesso de alguns movimentos, por enxergarem os resultados possveis exclusivamente como

    fracassos onde quer que haja alguma interao poltica com o Estado ou com partidos polticos,

    porque isso representaria uma espcie de cooptao14.

    11Sobre os movimentos sociais latino-americanos h uma vasta literatura. No Brasil, ver principalmente J. . Moiss(Contradies urbanas e movimentos sociais, de 1977, e Cidade, Povo e Poder, de 1982, ambos publicados no Rio deJaneiro por Paz e Terra/CEDEC), Brant & Singer (op. cit.), E. Durham (Movimentos sociais e a construo dacidadania, in: Novos Estudos CEBRAP, n 10, pp. 24-30, 1984), I. Sherer-Warren & P. Krische ( Uma Revoluo no

    Cotidiano? Os novos movimentos sociais na Amrica Latina, So Paulo, Braziliense, 1987) e L. Kowarick (As lutassociais e a cidade: So Paulo, passado e presente, So Paulo, Paz e Terra, 1988). Para uma reviso, ver R. Cardoso(Movimentos sociais urbanos: balano crtico, in: B. Sorj & M. H. Almeida, Sociedade e poltica no Brasil ps-64, SoPaulo: Brasiliense, pp. 215-239, 1983) e A. M. Doimo (A vez e a voz do popular: movimento social e participao polticano Brasil ps-70, Rio de Janeiro, Relume-Dumar/ANPOCS, 1995).12De fato, para Touraine, os movimentos sociais so defensores da sociedade civil contra um Estado tecnocrtico ecentralizador; para Melucci, eles esto envolvidos em lutas simblicas onde os resultados so crescentemente soma-zero; e para Laclau & Mouffe, em sua crtica ao marxismo, eles so uma resposta ausncia de apelo da representaopoltica da esquerda tradicional atravs de partidos de massa. Para uma crtica, ver A. Escobar & S. Alvarez (orgs.), Themaking of social movements in Latin America: identity, strategy and democracy, Boulder, Westview, 1992; e Foweraker,op. cit.13Foweraker, idem.14 Para Hellman, trs tipos de resultado da interao com o Estado tm sido interpretados, sem distino, comofracassos: 1) a incorporao de um movimento ao personalismo, seguindo uma figura populista (por exemplo, Jnio

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    No Brasil, a antroploga Ruth Cardoso foi uma das primeiras a revisar criticamente o

    entusiasmo inicial com a espontaneidade e a autonomia dos novos movimentos sociais15. Mais

    recentemente, j tratando do contexto de redemocratizao, ela identifica, ao nvel local, uma rede

    de relaes polticas entre agncias estatais e associaes comunitrias, o que leva estas a agir

    pragmaticamente e utilizar contatos dentro do poder pblico motivadas por demandas concretas,mas adotando, por outro lado, uma posio ideolgica que constantemente reafirma a autonomia

    dos setores populares em relao tanto aos partidos polticos quanto ao Estado.

    As estratgias de ao dos movimentos so definidas em meio ao contexto de tenso criado por estas

    duas diretrizes opostas e provm de sua avaliao sobre os recursos disponveis em uma dada

    circunstncia. Alm disso, suas tticas so constantemente redefinidas num esforo para equilibrar suas

    conquistas prticas com seu quadro de autonomia. 16

    Segundo Cardoso, para examinar o potencial de expanso da independncia relativa dos

    grupos populares, preciso voltar a estudar tambm as aes dos partidos polticos e do Estado.

    O foco nos movimentos populares mostrou que sua dinmica depende desta interao e que, quando seabre espao para sua participao, ocorrem mudanas no equilbrio das foras no poder, permitindo maior

    autonomia popular, embora de forma ainda restrita. Entretanto, sem mudanas institucionais, este processo

    continuar a ser catico e reversvel. 17

    Ao mesmo tempo, estudos tm mostrado que as camadas mais pobres freqentemente s se

    mobilizam com a ajuda direta de agentes externos, que os ajudam a adquirir recursos financeiros

    e tcnicas polticas. John Friedmann professor de Planejamento Urbano da UCLA (Universidade

    da Califrnia) e autor de vasta obra sobre projetos de desenvolvimento urbano e regional, com

    nfase na organizao da sociedade civil , argumenta que a possibilidade de uma organizao

    comunitria autntica emergir espontaneamente muito pequena: pessoas pobres precisamminimizar os riscos e no tm recursos nem tempo para se organizar, por isto a ao comunitria

    espontnea costuma ter alcance limitado e raramente inovadora18. Para que a prtica seja

    inovadora, a retrica de espontaneidade precisa ser abandonada e atores externos so

    necessrios como catalizadores de mudanas, porque podem canalizar idias e recursos

    comunidade e servir como intermedirios ao mundo externo. Porm, como enfatiza Friedmann,

    importante garantir que estes agentes externos apenas estimulemuma resposta organizada dos

    grupos comunitrios a novos desafios, mas nunca comandemo programa de mudanas este

    deve emergir de dentro e sob a responsabilidade da prpria comunidade.

    Quadros ou Leonel Brizola), ou 2) a incorporao de um movimento especfico a um tipo mais amplo de poltica lideradapor um partido (por exemplo, o Partido dos Trabalhadores PT no Brasil ou o Partido Socialista Unificado PSUM noMxico), ou 3) o atendimento parcial ou total das demandas do movimento. Todos tm sido consideradosdesmobilizao atravs da cooptao, o que ela critica como interpretao negativa demais. (The study of New SocialMovements in Latin America and the Question of Autonomy", in: Escobar & Alvarez, op. cit., pp. 52-61.)15R. Cardoso, op. cit.16R. Cardoso, Popular movements in the context of the consolidation of democracy in Brazil, p. 298 (in: Escobar &Alvarez, op. cit., pp. 251-302).17Ibidem, p. 301 (grifo nosso).18J. Friedmann, Empowerment: the politics of alternative development, Boston, Blackwell, 1992.

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    Na Amrica Latina, so principalmente grupos religiosos, militantes de esquerda, profissionais

    liberais, sindicatos, estudantes, ONGs (organizaes no-governamentais) locais e estrangeiras e

    instituies internacionais de apoio e financiamento (como as da ONU, a Organizao das Naes

    Unidas) que tm desempenhado um papel crucial de ajuda a grupos populares. Entretanto, no

    caso do Estado, o impacto sobre a organizao da sociedade civil ainda caracterizado pelaliteratura sobre movimentos sociais como indireto. Apesar de estudos mais recentes admitirem

    padres de negociao com o poder pblico como estratgia legtima dos grupos populares,

    costuma-se observar com desconfiana a idia de que governos podem de fato encorajar grupos

    da sociedade a agir de forma coletiva e autnoma, e qualquer tentativa de atuar como agente

    externo, intervindo diretamente em comunidades locais para ajudar suas associaes a adquirir

    capacidade organizativa, comumente encarada como mera tentativa de coopt-las.

    Para entender como governos e outros agentes externos podem promover o associativismo,

    preciso analisar como a literatura sobre movimentos sociais tm explorado as causas pelas quais

    as pessoas se mobilizam, enfrentando o dilema do free rider(carona) exposto por Olson em sua

    anlise sobre a ao coletiva19. O carona aquele que se beneficia do bem coletivo sem

    assumir os custos de contribuir para alcan-lo porque, como todo indivduo na concepo de

    Olson, racional e egosta, portanto busca maximizar seus lucros e minimizar seus custos. Isto s

    possvel porque o bem coletivo atinge a todos, por definio. Por exemplo, em um bairro, se o

    governo implementa obras de infra-estruturas por conta das presses da comunidade local, estas

    obras beneficiaro todos os moradores mesmo aqueles que no se mobilizaram para pressionar

    por polticas pblicas. Ou, no exemplo clssico da greve, se as reivindicaes dos grevistas por

    maiores remuneraes ou melhores condies de trabalho so atendidas, elas beneficiaro aoconjunto dos empregados mesmo aqueles que furaram o movimento.

    Vrios autores tm mostrado que a explicao de Olson para os limites da ao coletiva no

    d conta de todas as formas polticas de comportamento humano porque parte unicamente do

    pressuposto do indivduo racional-maximizador. O indiano Amartya Sen, Prmio Nobel de

    Economia, critica fortemente o pressuposto de indivduo racional-maximizador que fundamenta a

    economia contempornea20. Isto no significa que as pessoas no ajam em interesse prprio, mas

    sim que h uma pluralidade de outras razes para o comportamento humano como a tica, a

    simpatia pelos outros ou o comprometimento com alguma causa. Para Sen, a tica elemento

    historicamente constitutivo das relaes sociais e em sua origem estava ligada economia. Por

    isso, ele rejeita uma dicotomia simplista entre egosmo e utilitarismo, admitindo uma srie de

    comportamentos intermedirios.

    Outros autores tambm levantam elementos do comportamento em coletividade que as

    premissas de Olson no explicam. A cientista poltica Elinor Ostrom admite dois outros tipos de

    19M. Olson, op. cit.20Ver A. Sen, On ethics and economics, Oxford, Blackwell, 1987.

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    comportamento em situaes coletivas, alm dos egostas racionais: os cooperadores

    condicionais, que cooperam se acham que os demais tambm cooperaro, e os punidores

    voluntrios, que se propem a punir quem no coopera, inclusive com sacrifcio prprio21.

    Segundo ela, desdobramentos recentes da teoria evolucionista explicam a emergncia e

    sobrevivncia destes tipos em um mundo de egostas racionais, a partir de evidncias quecomprovam a propenso gentica e cultural da mente humana para aprender normas sociais e

    cooperar de acordo com estas normas, o que levaria grande parte do comportamento humano a

    depender da construo de regras coletivas. No que se refere ao desenvolvimento de polticas

    pblicas de incentivo a comportamentos cooperativos, Ostrom nota que, ao invs de estabelecer

    incentivos ou punies para garantir o envolvimento de egostas racionais na ao coletiva, uma

    possibilidade aumentar a autonomia dos indivduos para desenharem suas prprias regras,

    favorecendo a emergncia de normas sociais e assim solucionando muitos dos problemas da

    ao coletiva.

    Sidney Tarrow, professor de Governo na Universidade de Cornell e autor de importante obra

    sobre movimentos sociais, entende que, mais do que fatores puramente econmicos relativos aos

    nveis de pobreza, so fatores polticos que explicam por que a ao coletiva emerge em alguns

    lugares e pocas e no em outros. Para ele, mudanas gerais nas condies polticas possibilitam

    ambientes favorveis onde pessoas tendem a acreditar que a ao coletiva pode ser bem

    sucedida22.

    Estes argumentos que se contrapem premissa do indivduo racional-maximizador so

    importantes para as anlises sobre a motivao da ao coletiva, mas tambm para as crticas ao

    modelo hegemnico de desenvolvimento econmico, que so objeto da prxima seo.

    1.2. Formas alternativas de desenvolvimento contra a excluso econmica e poltica

    No fim da dcada de 1960, paralelamente ao deslocamento do foco analtico para a

    sociedade civil e ao estabelecimento de agendas polticas com base nos novos movimentos

    sociais e fora do modelo tradicional de poltica partidria, tambm surgia um movimento intelectual

    limitado a alguns tericos e agentes de desenvolvimento, que procuravam estabelecer uma

    abordagem alternativa para o desenvolvimento dos pases pobres, diante da constatao de que,

    apesar da revoluo tecnolgica e do crescimento econmico, uma parcela grande da populao

    mundial ainda no alcanara melhores condies de vida.

    21E. Ostrom, Collective action and the evolution of social norms, in: The Journal of Economic Perspectives, vol. 14, n3, 2000, pp. 137-158. Ver tambm, no mesmo nmero da revista, o artigo de E. Fehr & S. Gchter, Fairness andRetaliation: the Economics of Reciprocity (pp. 159-181).22Movimentos sociais se formam quando cidados comuns, s vezes encorajados por lderes, reagem a mudanas nasoportunidades, que reduzem os custos da ao coletiva, revelam aliados potenciais e mostram onde as elites eautoridades so vulnerveis (S. Tarrow, Power in movement: social movements, collective action and politics,Cambridge University Press, 1994, p. 18). Ver tambm C. Tilly, From mobilization to revolution, Reading, Addison-Wesley, 1978.

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    Friedmann considera um dos marcos o Seminrio de Coyococ, Mxico, Padres de Uso de

    Recursos, Meio-Ambiente e Estratgias de Desenvolvimento, em 1974, que foi apoiado por

    programas da ONU para o meio ambiente e o desenvolvimento, e reunia duas correntes principais

    deste movimento alternativo: os que defendiam como prioridade as necessidades bsicas de

    comida, gua e abrigo, ao invs de crescimento como simples maximizao do lucro; e os que sepreocupavam com os limites dos recursos do planeta para sustentar tal crescimento23.

    Seminrios posteriores tambm questionavam os modelos dominantes de desenvolvimento e

    polticas derivadas deles, por fracassarem em responder aos problemas de pobreza em massa e

    sustentabilidade. Outro marco foi o informe de 1975 What Now? Another Development, da

    fundao sueca Dag Hammarskjld. Preparado para o stimo perodo de sesses extraordinrias

    da Assemblia Geral da ONU e publicado num nmero especial da revista Development Dialogue,

    o informe defendia uma outra concepo de desenvolvimento, de carter humanista, endgeno e

    auto-sustentado, orientado para a satisfao das necessidades e eliminao da misria,

    implementado em harmonia com o meio ambiente e apoiado em transformaes estruturais e nas

    foras prprias de cada sociedade. Em 1976, foi fundada a IFDA (Fundao Internacional para

    Alternativas de Desenvolvimento), que props o Projeto Terceiro Sistema, em analogia tanto com

    o chamado terceiro mundo quanto com o terceiro setor. Em meados da dcada de 80, o tema

    voltou tona, com enfoque no desenvolvimento sustentvel, a partir do fortalecimento das

    questes ambientais, e as propostas multiplicaram-se tambm fora das instituies de

    desenvolvimento existentes (em ONGs, por exemplo). Em 1990, o Banco Mundial havia trazido de

    volta para a agenda de desenvolvimento o tema da pobreza, mas nesta poca polticas

    econmicas contrrias ao Estado redistributivo j estavam em ascenso24

    .No fim da dcada de 1990, tem havido uma renovao do interesse pelo tema do

    desenvolvimento alternativo, como atestam exemplos muito recentes de mobilizaes contrrias a

    encontros econmicos em vrias cidades do mundo25, ou a realizao do Frum Social Mundial,

    em Porto Alegre, em 2001 e 2002, em contraposio ao Frum Econmico Mundial que ocorre em

    Davos h trs dcadas (transferido para Nova Iorque em 2002). Embora no se possa falar em

    um movimento organizado j que os grupos envolvidos nestas manifestaes so notadamente

    desarticulados e possuem natureza, estratgias e objetivos muito diversos e por vezes

    contrapostos possvel ao menos identificar uma insatisfao comum com o modelo econmico

    23Friedmann, op. cit, p. 2.24Ibidem, p. 6.25Em Seattle (dezembro de 1999), cerca de 50 mil manifestantes protestaram contra a Conferncia Ministerial da OMC.Em Washington (abril de 2000), mais de 15 mil protestaram durante encontro do FMI. Em Praga (setembro de 2000),cerca de 15 mil reuniram-se contra encontro do FMI e do Banco Mundial, que foi antecipado devido aos protestos. EmGnova (julho de 2001), um manifestante foi morto durante mobilizao que reuniu 150 mil contra reunio do G-8 (ogrupo dos sete pases mais ricos, mais a Rssia). Protestos semelhantes, todos marcados por confrontos com arepresso policial e alcanando crescente repercusso na opinio pblica, ocorreram em Genebra (maio de 1998),Colnia (junho de 1999), Londres (maio de 2000), Davos (janeiro de 2000 e 2001) e Quebec (abril de 2001).

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    vigente, que exige modelos alternativos de desenvolvimento, ainda que no exista clareza nem

    unidade sobre estes.

    A discusso sobre modelos alternativos de desenvolvimento surge no rastro dos debates

    sobre a excluso, tema que se tornou praticamente obrigatrio para as cincias sociais, diante das

    recentes mudanas na organizao do capitalismo que resultaram, no mundo inteiro, namarginalizao de um nmero muito grande de pobres em termos de participao poltica e

    econmica. Para Friedmann, mais do que desprovida de meios materiais, esta massa passou a

    ser considerada redundante para a acumulao global de capital, sob o argumento de que o

    capitalismo moderno pode, em grande parte, sobreviver sem os camponeses que praticam

    agricultura de subsistncia, os trabalhadores rurais sem-terra ou os setores populares que

    crescem rapidamente nas favelas dos grandes centros urbanos, margem da economia formal.

    Para alguns, estes grupos teriam inclusive efeitos negativos sobre a acumulao de capital, na

    medida em que camponeses de subsistncia atrasam a modernizao necessria da agricultura,

    ou que os pobres urbanos significam muitos gastos em servios pblicos sem apresentarem

    produtividade em troca26.

    Historicamente, esta redundncia massiva remonta ao quadro de recesso econmica que

    comea na dcada de 1970 e se agrava na dcada seguinte, gerando aumento do desemprego e

    perda de direitos sociais alcanados nas dcadas anteriores. Aps o fim da II Guerra Mundial, os

    pases capitalistas centrais haviam conhecido um perodo de prosperidade e pleno emprego por

    aproximadamente trinta anos, nos quais foi possvel desenvolver a estrutura do Estado de Bem-

    Estar Social (welfare state), queprocurava compensar a tendncia capitalista concentrao de

    recursos com a introduo de um sistema de protees e direitos que garantisse a redistribuioeconmica na sociedade27. Mas, a partir do incio dos anos 1970, observa-se um acentuado

    declnio econmico do capitalismo e um questionamento crescente s polticas de influncia

    keynesiana tpicas da social-democracia nestes pases. As polticas econmicas voltam a ser

    influenciadas pelo liberalismo econmico, com nfase na no-interveno do Estado sobre a

    economia e a sociedade.

    A partir da dcada de 1980, tanto o intenso processo de globalizao que teve incio com a

    abertura das fronteiras econmicas quanto as mudanas tecnolgicas suscitadas pelo que se

    convencionou chamar de terceira revoluo industrial (isto , o advento da informtica e da

    robtica) passaram a trazer profundos impactos para o mundo do trabalho28. Tais impactos podem

    26Friedmann, op. cit., p. 14.27Sobre origens e constituio do welfare state, ver F. de Oliveira (Os direitos do antivalor: a economia poltica dahegemonia imperfeita, So Paulo, Vozes, 1997; e Polticas do antivalor e outras polticas, in F. Haddad,Desorganizando o consenso, Petrpolis, Vozes, 1998, pp. 87-100).28Entre os autores que vm se debruando sobre as mudanas na economia global e seus efeitos sobre o mundo dotrabalho destacam-se C. Offe (Capitalismo desorganizado, So Paulo, Braziliense, 1989), F. Chesnais (Mundializaodo capital, So Paulo, Xam, 1996), R. Kurz (O colapso da modernizao, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996), e noBrasil, P. Singer (Globalizao e desemprego: diagnstico e alternativas, So Paulo, Contexto, 1999); G. Arbix(organizador, junto com M. Zilbovicius e R. Abramovay, do I Seminrio Internacional Novos Paradigmas de

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    ser traduzidos em termos de desemprego mas, talvez mais significativamente, de crescente

    precarizao ou seja, cada vez mais o trabalho assume formas ilegais, temporrias, sem

    registro, caracterizando situaes de subemprego que em geral nem so levadas em conta pelas

    estatsticas de desemprego. Alm disso, aumenta a crise da estrutura fiscal que mantm as

    polticas do welfare state, acirrando as crticas ideologia que o sustenta. Por outro lado, o mundodo trabalho tambm enfrenta o enfraquecimento de vrios de seus instrumentos de luta,

    notadamente os sindicatos e partidos polticos de orientao trabalhista.

    Nos pases capitalistas avanados, este quadro configura no apenas uma crise econmica,

    mas o desmonte de todo um tipo de sociedade que vigorava at ento, que o socilogo francs

    Robert Castel define como sociedade salarial no s porque nela os trabalhadores vendem sua

    fora de trabalho por salrios, mas porque o Estado garante proteo aos direitos de trabalho e de

    salrio29.

    Mas, enquanto nesses pases a responsabilidade do Estado ainda considerada central, nos

    pases pobres ou em desenvolvimento a discusso tem natureza completamente distinta, pois a

    sociedade salarial sequer chegou a existir para todos. E, na ausncia de um sistema eficiente de

    direitos e protees, as tendncias de desassalariamento e desindustrializao enfrentadas pelo

    mercado de trabalho formal tornam-se ainda mais graves, pois aumenta o nmero de

    trabalhadores que saem da condio estvel de assalariados para a condio vulnervel de

    trabalhadores precarizados ou informais. A precarizao significa a reduo na renda e nos

    direitos e estimulada sobretudo pela crescente terceirizao ou seja, as empresas passam a

    subcontratar outras para prestao de servios como limpeza ou manuteno de maquinaria. J a

    informalidade significa a ausncia total de direitos, embora o trabalho no-regulamentado sejaassalariamento sem carteira, seja trabalho autnomo j represente parte significativa do

    mercado.

    O fenmeno de uma nova pobreza excluda em termos econmicos e polticos vem sendo

    interpretado como resultado da crise nas sociedades salariais e quase salariais. Este fenmeno

    tem sido definido atravs de diferentes conceitos, que procuram dar conta da condio de

    marginalidade ou excluso concebendo-a alm de termos puramente econmicos. A noo de

    excluso, que adquiriu bastante xito na Frana, no uniforme e abrange diversos significados30.

    Nos EUA, o termo underclass mais comum. Na Amrica Latina, o debate sobre a excluso

    Desenvolvimento, na FEA/USP, em junho 2000, que deu origem ao livro Razes e fices do desenvolvimento, SoPaulo, EdUSP, 2001), O. Ianni, L. Dowbor et al.(Desafios da globalizao, Petrpolis, Vozes, 1998), M. C. Tavares & J.L. Fiori (Poder e dinheiro: uma economia poltica da globalizao, Petrpolis, Vozes, 1998), entre outros.29R. Castel, As metamorfoses da questo social: uma crnica do salrio, Petrpolis, Vozes, 1998.30Historicamente, os indivduos ou grupos considerados rejeitados pelos crculos de convvio social tm sido indigentes,invlidos, crianas abandonadas, idosos desamparados, estrangeiros, imigrantes, doentes mentais, delinqentes etoxicmanos. Hoje em dia, tende-se a considerar tambm desempregados de longa durao, camponeses sem-terra,jovens dessocializados, famlias monoparentais, e mais uma infinidade de situaes definidas como excluso.Englob-las em uma mesma definio terica sem estipular sob quais critrios traz o risco da impreciso e dabanalizao do conceito. Para uma crtica ao uso generalizado do conceito muito rgido e esttico de excluso, verCastel, As armadilhas da excluso, in: Desigualdade e a questo social, So Paulo, EDUC, 1997, pp. 15-48.

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    remete s teorias da marginalidade, que se tornaram muito influentes durante os anos 1960, a

    partir de autores como Jos Nun e Anbal Quijano31. Pode-se argumentar que, se a marginalidade

    era associada ao modelo de desenvolvimento dependente e perifrico da Amrica Latina, a

    excluso concebida como fenmeno mundial. De modo geral, porm, estas diferentes

    categorias procuram dar conta de um fenmeno mais ou menos semelhante32.Dentro da tradio durkheimiana da escola francesa de sociologia poltica, a excluso vista

    como quebra da sociabilidade. Para Castel, a crise da sociedade salarial significa muito mais que

    o aumento da pobreza e do desemprego: trata-se, nos termos de Durkheim, de profunda anomia

    social, isto , da perda de vnculos bsicos, mesmo nas esferas da famlia ou da vizinhana. As

    metamorfoses que a questo social atravessa devem-se ao fato de que, cada vez mais, o trabalho

    perde a centralidade do debate pois, diante da constatao de que a sociedade salarial est

    deixando de incluir trabalhadores, a questo passa a girar em torno da vulnerabilidade resultante

    dessa excluso o que, mais do que marginalidade econmica, implica desenraizamento social.

    O trabalho vai alm do emprego: ele traz em si as condies de sociabilidade, o sentido de

    pertencimento e a existncia de projetos de vida. O no-trabalho tambm vai alm do

    desemprego, porque representa a perda de vnculos sociais e de auto-estima pessoal. por isto

    que Castel no fala propriamente em excluso, mas em desfiliao, para ressaltar que, ao excluir

    cada vez mais pessoas da relao assalariada, o capitalismo promove a perda de formas de

    sociabilidade. A desfiliao pode ser definida como um duplo processo de desligamento, em

    termos de trabalho e em termos de insero relacional33.

    No Brasil, embora amplamente difundida, a noo de excluso muito recente: a maior parte

    da literatura concentrou-se no estudo da pobreza. O economista e poltico Cristvam Buarque foium dos primeiros a se dedicar ao estudo do fenmeno que vai alm da pobreza e chegou a

    conceber o conceito de apartaopara definir o tipo de excluso no pas (numa aluso ao sistema

    31Nun desenvolveu o conceito de marginalidade a partir dos conceitos de Marx de superpopulao relativa e exrcitoindustrial de reserva (La marginalidad en Amrica Latina, in: Revista Latinoamericana de Sociologia, nmero especial,1969; e Superpoblacin relativa, ejrcito industrial de reserva y masa marginal, in: Revista Latinoamericana deSociologia,vol. 5, n 2, 1969, pp. 178-236) e, em artigo recente, reafirma a atualidade destas idias e da tese da massamarginal (El futuro del empleo y la tesis de la masa marginal, in: Desarrollo Econmico, vol. 38, n 152, 1999, pp. 985-1004). Quijano, que trabalhou vrios anos da Diviso de Assuntos Sociais da CEPAL, analisou a marginalidade dentroda tradio terica latino-americana do dependentismo (Imperialismo y marginalidad en Amrica Latina, Lima, MoscaAzul, 1969) e, recentemente, tambm avalia a atualidade de algumas das formulaes sobre o plo marginal daeconomia, diante de formas alternativas de economia popular que encontram-se fora da definio inicial (La economiapopular y sus caminos em Amrica Latina, Lima, Mosca Azul, 1998).32 Para uma discusso sobre divergncias e semelhanas entre os conceitos que predominam em cada regio(exclusion na Frana, underclassnos EUA e marginalidadna Amrica Latina), ver D. Fassin, Exclusion, Underclass,Marginalidad, in: Revue Franaise de Sociologie, n 37, 1996, pp. 37-75. Ver tambm H. Silver, Exclusion social ysolidaridad social: tres paradigmas, in: Revista Internacional del Trabajo, vol. 113, n 5-6, 1994, pp. 607-622, para umareviso de trs paradigmas toricos distintos sobre a excluso.33Castel estabelece uma classificao de zonas gradativas de integrao dos indivduos em relao a esses dois eixos,rejeitando o carter exclusivamente econmico da excluso e concebendo diferentes tipos de pobreza (por exemplo, apobreza integrada, que trabalha, a indigncia integrada, que no pode trabalhar, depende de ajuda, mas ainda se inserena comunidade, e a indigncia desfiliada, que est excluda no s da ordem do trabalho mas da ordem comunitria).Ao lado de uma marginalidade propriamente dita, desprovida de qualquer estatuto legal ou social, h outra, assistida, eainda uma confinada a espaos separados do resto da sociedade, para sempre condenados excluso porquerotulados portadores de deficincias especficas, como idosos ou deficientes fsicos e mentais (A dinmica dosprocessos de marginalizao: da vulnerabilidade excluso, in: Cadernos CRH, n26/27, 1997, pp. 19-40).

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    de apartheidque vigorou por dcadas na frica do Sul): a segregao no Brasil se daria no por

    razes raciais mas econmicas34. J o socilogo Elimar Nascimento, amplamente influenciado

    pelas formulaes de Castel, fala em excludos desnecessrios e vai alm dos conceitos de

    Marx para dar conta de trabalhadores que no so necessrios nem como exrcito industrial de

    reserva35.Ao tema da excluso vem somar-se a constatao de crescente desarticulao das parcelas

    da populao tidas como excludas. Isso se manifesta seja na apatia e desinteresse pelas

    questes pblicas, seja na exploso da violncia sem sentido social, seja na reduo ou extino

    dos espaos polticos, o que tem levado alguns autores a identificar uma relao entre a

    desigualdade socioeconmica e a ausncia de participao poltica36. A constatao de que a

    garantia de igualdade poltica no impediu um quadro de crescente desigualdade socioeconmica

    sugere que a democracia existente, ao contrrio do que supe a perspectiva de Norberto

    Bobbio37, no passa de mero procedimento formal. Isto especialmente verdadeiro no caso dos

    contextos socioeconmicos do terceiro mundo, e remete ao questionamento de Tocqueville

    sobre o sentido de modelos de democracia diante das realidades histrico-geogrficas de cada

    nao.

    neste contexto que volta a adquirir fora a idia de que, em contraposio concepo de

    democracia formal, preciso adotar uma concepo de democracia social, capaz de ampliar a

    proteo aos direitos sociais como aqueles estabelecidos pelo welfare state e garantir a

    participao ativa nas decises tomadas dentro do Estado e das empresas38.

    A noo de democracia com a qual se pretende lidar aqui deve muito s chamadas correntes

    participacionistas da teoria democrtica, nascidas em contraposio s correntes concorrenciaisque se tornaram hegemnicas na teoria poltica contempornea39. Os modelos concorrenciais

    34Ver C. Buarque, O que apartao, So Paulo, Braziliense, 1993. Buarque no se limita a constatar a excluso,tambm vem procurando sistematizar propostas para solucion-la muitas delas aplicadas na prtica durante suagesto no Governo do Distrito Federal (1995-1998), pelo PT, e todas baseadas no que ele chama de modernidadetica, isto , levando em conta no s prioridades econmicas, mas sobretudo sociais (O colapso da modernidadebrasileira e uma proposta alternativa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991; e A revoluo nas prioridades: damodernizao tcnica modernizao tica, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994).35 Ver E. Nascimento, Hipteses sobre a Nova Excluso Social: dos excludos necessrios aos excludosdesnecessrios, in: Caderno CRH, n 21, 1994, pp. 27-47; e A excluso social na Frana e no Brasil: situaes(aparentemente) invertidas, resultados (quase) similares?, in: Diniz, E. et al., O Brasil no rastro da crise,So Paulo,ANPOCS/IPEA-Hucitec, 1994. Outros autores que abordam a questo da excluso no Brasil so T. Caldeira (Enclaves

    fortificados: a nova segregao urbana, in: Novos Estudos CEBRAP, n 47, 1997, pp. 155-78), L. Oliveira (Notas sobrea elaborao de um novo conceito, in: Revista Brasileira de Cincias Sociais, n 33, 1997, pp. 49-61) e V. Telles (Aquesto social: afinal, do que se trata?, in: So Paulo em Perspectiva, vol. 10, n 4, 1996, pp. 85-95).36 Ver por exemplo F. Oliveira, Privatizao do pblico, destituio da fala e anulao da poltica: o totalitarismoneoliberal, in: F. Oliveira & M. C. Paoli, Os sentidos da democracia: poltica do dissenso e hegemonia global, Petrpolis,Vozes, 1999, pp. 55-81.37Bobbio, O futuro da democracia. So Paulo: Paz e Terra, 1986.38Chantal Mouffe et al. falam em democracia associativa, mesmo termo usado por Paul Hirst para resgatar doutrinassocialistas associativas, historicamente marginalizadas, mas capazes de se conciliar com as teoria pluralistas doEstado. Alm de Associative democracy(op. cit.)ver o livro editado por Hirst com textos de G. D. H. Cole, J. N. Figgis, eH, Laski, The pluralist theory of the state, Londres, Routledge, 1993. Ver ainda Boaventura de Souza Santos, Reinventara democracia, Lisboa, Gradiva, 1998.39 A classificao das correntes da teoria democrtica em concorrenciais, participacionistas e deliberativas foiinicialmente proposta pelo socilogo Jon Elster no artigo The Market and the Forum: three varieties of political theory"

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    descrevem a democracia enquanto competio e limitam-se aos aspectos procedimentais que

    garantem a concorrncia eleitoral, enquanto os modelos participacionistas concebem a

    democracia alm da existncia de mecanismos formais e apostam na criao de uma cultura

    poltica de participao na esfera pblica.

    Os modelos da teoria democrtica participacionista so muito criticados por seu carter emgeral utpico. Autores como C. B. Macpherson, Carole Pateman e Benjamin Barber enfatizam a

    necessidade de se alcanar a cidadania ativa, mas ressaltam que isto s ser possvel se a

    desigualdade social e a alienao poltica forem eliminadas, o que na prtica significa uma srie

    de limitaes na hora de propor como alcanar estes fins40. Mesmo assim, experincias de

    mecanismos participativos e descentralizao de decises tm se multiplicado, no s em locais

    de trabalho e nos mais variados tipos de organizao de grupos da sociedade civil, como tambm

    na administrao pblica.

    preciso explicitar que no se trata de rejeitar a estrutura democrtica mnima que j existe,

    mas sim de reconhecer que ela ainda no d conta do quadro de desigualdade social. Implantar a

    democracia participativa no significa substituir a democracia representativa formal, mas sim

    complement-la, ultrapassando a mera diviso de funes entre governo e sociedade que limita a

    participao desta na gesto dos assuntos pblicos escolha dos representantes na poca das

    eleies. O economista Paul Singer critica esta diviso de funes e argumenta que mecanismos

    participativos podem de fato fortalecer a democracia formal:

    Governar significa, em essncia, tomar decises, geralmente base de informaes muito incompletas

    sobre as conseqncias das medidas contempladas. (...) A democracia participativa oferece foros em que

    tais decises podem ser discutidas por todos os interessados, o que amplia consideravelmente a informao

    de que o governante necessita para poder decidir com conhecimento de causa adequado. 41

    Dentro de toda a discusso sobre excluso/incluso econmica e poltica que surgem

    debates sobre modelos de desenvolvimento alternativo, capazes de garantir uma democracia

    inclusiva e participativa e um crescimento econmico justo e apropriado, tanto em termos sociais

    quanto ambientais42.

    (In: J. Elster & A. Hylland,Foundations of Social Choice Theory: studies in rationality and social change, New York,Cambridge University Press, 1986, pp. 103-132). Os principais representantes da corrente concorrencial da teoriademocrtica alguns dos quais se reclamam herdeiros de Joseph Schumpeter e de sua clebre obra Capitalismo,socialismo e democracia(So Paulo, Zahar, 1984) so A. Downs (An economic theory of democracy, Nova Iorque,

    Harper & Row, 1957), R. Dahl em seus primeiros escritos (Um prefcio teoria democrtica, Rio de Janeiro, Zahar,1989), e mais recentemente G. Sartori (A teoria da democracia revisitada, So Paulo, tica, 1994).40 Ver C. B. Macpherson, A democracia liberal: origens e evoluo, Rio de Janeiro, Zahar, 1978; C. Pateman,Participao e teoria democrtica, So Paulo, Paz e Terra, 1992; e B. Barber, Strong democracy: participatory politicsfor a new age, Berkeley, University of California, 1984.41Singer, Desafios com que se defrontam as grandes cidades brasileiras, in: J. A. Soares & S. C. Bava, Os desafiosda gesto municipal democrtica, So Paulo, Cortez, 1998, pp. 97-142.42Para Friedmann, o desenvolvimento alternativo objetiva a reintegrao dos pobres invisveis enquanto cidados dacomunidade mais ampla, o que significa transformar os sistemas dominantes autoritarismo, capitalismo perifrico,patriarcalismo com base em quatro orientaes normativas: 1) democracia inclusiva (integrao poltica), 2)crescimento econmico apropriado (integrao econmica), 3) igualdade de gnero (integrao social) e 4) eqidadeinter-geraes (integrao com geraes futuras, relativa s demandas para que estas herdem o meio ambiente emcondies to boas ou melhores do que aquelas em que seus pais ou avs as receberam) (op. cit., pp. 72-73). JTarcsio Arajo et al. retomam a necessria diferenciao entre crescimento econmicoe desenvolvimento econmico:

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    Muitos desafios colocam-se s formas de desenvolvimento alternativo. Friedmann lembra

    alguns deles, como: o risco de que projetos de desenvolvimento alternativo tornem-se mero

    paliativo, na medida em que prevaleam polticas hegemnicas visando maximizao do

    crescimento econmico dentro de diviso internacional do trabalho, que continuam a gerar

    pobreza massiva; os limites de prticas que envolvem aes primariamente ao nvel local oumesmo regional, para que sejam capazes de somar para um desenvolvimento nacional

    satisfatrio; e as relaes das abordagens de desenvolvimento alternativo com a doutrina

    hegemnica. Para ele, se um desenvolvimento alternativo pretende mais que aes emergenciais,

    estas questes devem ser seriamente consideradas43.

    neste contexto de discusso sobre possibilidades e limites de um desenvolvimento

    alternativo que vm se multiplicando experincias, geralmente locais e pequenas e quase sempre

    com o apoio de agentes externos, mas onde so principalmente os chamados excludos que

    assumem papel ativo na reconstruo do espao pblico, a fim de pressionar por polticas que

    sustentem um desenvolvimento alternativo44.

    As formas de resistncia pobreza e excluso acontecem em lutas cotidianas por

    sobrevivncia, como observa o antroplogo James Scott45. Estas formas podem ser diversas, mas

    interessam aqui aquelas que enfatizam relaes de reciprocidade e cooperao, assumindo um

    carter notadamente coletivo, como as cozinhas comunitrias ou os restaurantes populares, onde

    as mulheres de um bairro se renem para preparar coletivamente alimentos doados ou

    comprados tambm de forma coletiva e vender as refeies a preo de custo, ou o conhecido

    exemplo de Villa El Salvador, assentamento na periferia de Lima onde a organizao da

    populao para reivindicar melhores condies de vida deu incio a uma experincia bem-sucedida de gesto comunitria participativa.

    Muitas vezes estas formas deorganizao vo alm da reivindicao de direitos bsicos ou

    soluo de demandas imediatas, e do origem a empreendimentos econmicos coletivos e

    autogestionrios, baseados em relaes de trabalho associativas ou cooperativistas. Na Amrica

    Latina que rene caractersticas singulares para que estas lutas por um otro desarrollo

    aconteam , vrios autores examinam formas alternativas de gerao de trabalho e renda que se

    multiplicam margem do mercado de trabalho formal, constituindo o que chamam de economia

    popular ou economia do trabalho, e, dentro desta economia dos setores populares, observam

    enquanto aquele limita-se ao aumento dos indicadores econmicos, este, mais desejvel, incorpora a dimenso deeqidade social, traduzindo-se pela melhoria dos indicadores sociais e distributivos e contribuies mais recentesacrescentam as dimenses poltica e ambiental em direo a uma concepo de desenvolvimento sustentvel((Desenvolvimento local sustentvel e gerao de renda, in: S. Bava, Desenvolvimento local, So Paulo, Plis, 1996,pp. 103-127).43Friedmann, idem, pp. 163-4.44 Numerosos estudos descrevem microprojetos de desenvolvimento alternativo, sobretudo na sia, na frica e naAmrica Latina. Ver, por exemplo, os casos reunidos por A. Hirschman (O progresso em coletividade: experincias debase na Amrica Latina, Rosslyn, Fundao Interamericana, 1987), ou por S. Annis & P. Hakim (Direct to the poor:grassroots development in Latin America, Boulder, Lynne Rienner, 1988).45J. Scott, Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistance, New Haven, Yale University Press, 1985

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    exemplos do que vem sendo definido como economia solidria ou popular solidria, economia

    social,scioeconomia solidria, economia socialista, economia de reciprocidade conceitos ainda

    em construo, mas que procuram dar conta de um nmero crescente de formas coletivas e

    autogestionrias de organizao para a produo, a distribuio e o consumo de bens e servios.

    Estes exemplos vo desde empreendimentos muito simples e em geral economicamenteinviveis, como mulheres de uma mesma comunidade que se unem para realizar servios de

    costura ou artesanato em conjunto, at fbricas que passam a ser geridas pelos prprios

    trabalhadores, passando tambm por cooperativas agrcolas formadas por trabalhadores sem-

    terra assentados e por cooperativas populares urbanas formadas por trabalhadores

    desempregados que se inserem em setores de prestao de servios, entre outras formas

    possveis. As experincias concretas assim como os conceitos deste esboo de novo quadro

    terico so discutidos mais aprofundadamente no captulo 3.

    Mas qual (ou deve ser) o papel do Estado no apoio organizao destas comunidades para

    o desenvolvimento e a incluso, sobretudo no caso dos grupos menos organizados?

    1.3. O Estado como promotor da organizao social para o desenvolvimento

    Nas sees anteriores, mostramos que uma literatura crescente considerar a organizao da

    sociedade civil como requisito para a democratizao e o desenvolvimento. Entre os estudos

    recentes neste sentido, um dos autores mais influentes Robert Putnam professor de Governo

    e diretor do Centro de Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard , que por mais de

    vinte anos estudou as diferenas histrico-culturais entre as regies Norte e Sul da Itlia para

    explicar a diferena de desenvolvimento econmico entre elas. Os resultados da pesquisa forampublicados em 1993, no livro Making democracy work: civic traditions in Modern Italy, onde

    Putnam introduz o conceito de capital social para descrever padres de participao cvica e

    solidariedade social46. O conceito que, alis, no exatamente novo: Tocqueville j chamava a

    ateno para o ativismo comunitrio e o associativismo refere-se aos laos primrios informais

    entre as pessoas e s redes de relaes de confiana e cooperao que derivam destes laos, e

    que podem contribuir para que as pessoas se beneficiem mutuamente.

    Putnam chegou concluso que o Norte da Itlia, mais desenvolvido, apresenta alto grau de

    cultura associativa e padres cooperativos de relaes sociais, o que aumenta o grau de

    confiana nas instituies polticas, ao passo que no Sul, mais atrasado, persistem relaes

    sociais clientelistas e o grau de associativismo baixo. Mas h crticas sua viso determinista

    sobre as causas da democratizao e do desenvolvimento, j que ele no deixa espao para a

    possibilidade de transformao poltica via reforma institucional, ao argumentar que apenas as

    46O livro foi traduzido no Brasil como Comunidade e democracia: a experincia da Itlia Moderna (Rio de Janeiro,Fundao Getlio Vargas, 1996).

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    regies com tradio em cultura associativa estariam aptas a desenvolver um Estado participativo,

    capaz de responder s demandas da populao e de prestar contas de suas aes.

    Contrariando os argumentos de Putnam, alguns autores tm argumentado que o ativismo

    comunitrio pode ser criado em lugares onde ele no existe enquanto tradio histrica, e que

    certos tipos de ao de governos reformistas podem ser fundamentais para a construo de laosassociativos em grupos com pouca ou nenhuma experincia prvia de organizao coletiva,

    contribuindo para seus projetos de desenvolvimento. Na linha de idias e estudos de caso

    importantes nesse sentido apresentados no captulo 2 , aqui se pretende argumentar que a

    interveno do Estado pode ser desejvel para fomentar o desenvolvimento construdo sobre a

    organizao comunitria autnoma. Mas para isso necessrio precisar de que Estado estamos

    tratando. Estas questes so relacionadas porque a interveno estatal s se justifica sob

    determinadas condies polticas, isto , no caso a preservao da democracia participativa, com

    a garantia da informao e do acesso da sociedade civil aos processos decisrios da gesto

    pblica. No se trata de qualquer Estado mas de governos com estas caractersticas, e preciso

    levar em conta a redefinio dos padres de relao Estado-sociedade, onde governos no

    podem mais ser tido como sujeitos parte, mas ao invs, em permanente interao com agentes

    no-governamentais.

    Uma possvel justificativa para a atuao do Estado como promotor da organizao social

    visando a melhoria da qualidade de vida vem da prpria observao emprica sobre experincias

    histricas. Os casos enumerados ao longo da dissertao apresentam exemplos de governos que

    procuram intervir para fomentar laos de cooperao e favorecer o desenvolvimento, e permitem

    considerar que essa interveno pode ser positiva e vivel.Outra justificativa refere-se incerteza do jogo poltico, to grande que pode colocar em risco

    todos os jogadores. Em outras palavras, o custo da excluso afeta at os includos. Nesse

    caso, o Estado pode ser requisitado para transformar o jogo competitivo em cooperativo e inibir a

    atuao de caronas atravs de incentivos ou punies. Friedmann nota que o desenvolvimento

    alternativo no pode ser considerado um tipo de jogo soma-zero, e neste sentido preciso

    questionar a idia de que as elites polticas dominantes no consentiriam voluntariamente em

    mudanas estruturais que s beneficiariam os excludos s custas delas prprias47.

    Uma terceira possibilidade refere-se ao fato de que o Estado dispe de recursos que os

    movimentos sociais no tm, por isto a presso dos movimentos para que o Estado intervenha.

    Afinal, embora apresentem resultados imediatos que apontam para caminhos inovadores, as

    iniciativas comunitrias locais contribuem pouco para o desenvolvimento econmico global,

    principalmente se permanecem isoladas. neste sentido que tericos e agentes do

    desenvolvimento alternativo vm questionando a idia de que o pequeno bonito (small is

    beautiful), muito corrente entre as experincias que surgem nos anos 1960 e 70. Segundo

    47Friedmann, op. cit., 1992, pp. 164-5.

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    Friedmann, cada vez mais se entende que, embora o pequeno e local seja importante, nunca

    pode ser suficiente, e projetos de desenvolvimento local de base comunitria precisam ser

    apoiados, complementados e articulados por ao apropriada ao nvel nacional uma vez que as

    abordagens diferenciadas de desenvolvimento buscam mudanas estruturais globais tanto quanto

    aes meliorativas locais48.A quarta possibilidade considerar, tal como Amartya Sen, que a tica elemento histrico-

    cultural das interaes sociais, e que inclusive orientaria aes governamentais. Mais razovel,

    porm, supor que todas as alternativas se complementam, e, uma vez que governos possuam

    determinadas caractersticas democrticas, essas diferentes justificativas combinam-se para criar

    condies favorveis a aes governamentais que visam fomentar o associativismo para o

    desenvolvimento.

    ***

    partindo das reflexes sobre teoria e prtica feitas neste captulo e nos captulos 2 e 3 que

    pretendemos examinar, nos captulos 4 e 5, o caso do programa Incubadora de Cooperativas de

    Santo Andr, da Prefeitura Municipal de Santo Andr. No se trata, porm, de estabelecer

    indicadores nem avaliar se houve xito ou no, mas de problematizar questes a partir de outros

    casos e levantar as idias em debate. Portanto, ainda que os resultados concretos do programa

    sejam citados, eles no so o tema principal da dissertao. Trata-se antes de discutir as

    possibilidades e limitaes da proposta de uma incubadora de cooperativas criada pelo poder

    pblico, a fim de explorar como, sob determinadas circunstncias, o Estado se prope a ser o

    agente transformador que ajuda a promover o crescimento do associativismo e, nesse sentido, o

    foco de anlise ser o prprio programa do governo de Santo Andr, e no os grupos ecooperativas sob incubao. Vale ressaltar que se trata necessariamente de um recorte histrico,

    dentro do que percebemos como processos novos e ainda em construo, tanto no que se refere

    s iniciativas governamentais de apoio organizao social quanto no que se refere aos debates

    sobre cooperativismo, autogesto e economia solidria.

    48Ibidem, pp. 158-9.

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    CAPTULO 2

    Ao governamental, organizao social e desenvolvimento

    O captulo 1 abordou de forma introdutria debates recentes sobre as relaes entre ao

    governamental, organizao da sociedade civil e desenvolvimento. O presente captulo pretende

    aprofundar esta discusso, apresentando conceitos que emergem destes debates e

    estabelecendo um panorama das experincias mais inovadoras no que se refere a um modelo

    diferenciado de relao entre poder pblico e sociedade, onde governos (principalmente locais,

    mas no s) procuram implementar projetos de desenvolvimento com base no estmulo e apoio

    organizao comunitria entre os prprios cidados. Embora estas experincias ainda sejam

    muito incipientes e, como se ver, enfrentem muitos limites, j h resultados que indicam avanos

    significativos no sentido de estender o desenvolvimento e ampliar a cidadania para aspopulaes

    mais pobres e menos organizadas.

    2.1. A construo de capital social e da sinergia Estado-sociedade

    Na introduo, antecipamos alguns esforos tericos para estabelecer modelos alternativos

    de desenvolvimento em contraposio ao atual modelo, que enfatiza resultados macroeconmicos

    sem levar em conta as bases microinstitucionais das quais o mercado tambm depende. Peter

    Evans, professor de Sociologia da Universidade de Berkeley e um dos autores que mais tm se

    destacado na literatura recente sobre desenvolvimento, identifica duas correntes tericas distintas

    que tm contribudo para ampliar a compreenso destas bases institucionais dentro dasabordagens sobre desenvolvimento: de um lado, os chamados tericos do capital social

    chamaram a ateno para em que medida normas informais de confiana e reciprocidade e redes

    interpessoais baseadas nestas normas podem constituir vantagens econmicas; de outro, os

    revisionistas do milagre do Leste Asitico desafiaram as teorias econmicas predominantes ao

    demonstrarem o papel central das instituies pblicas no desenvolvimento capitalista de pases

    como Japo, Coria e Taiwan1.

    1Evans, Introduction: development strategies across the public-private divide, in: Evans (ed.), State-Society Synergy:Government and Social Capital in Development, Berkeley, University of California, 1997, pp. 1-10. O principal terico docapital social Robert Putnam, como vimos no captulo 1. Quanto aos estudos sobre a interveno do Estado nospases asiticos, Evans cita principalmente C. Johnson (MITI and the Japanese miracle: the growth of industrial policy,1925-1975, Stanford University Press, 1982), A. Amsden (Asias next giant: South Korea and late industrialization, NewYork, Oxford University Press, 1989) e R. Wade (Governing the market: economic theory and the role of government inTaiwans industrialization, Princeton University Press, 1990), alm de relatrio de 1993 do Banco Mundial ( apudEvans,op. cit., p. 186). O prprio Evans um dos autores que tm revisado o papel do Estado, enfatizando sua autonomia emrelao sociedade e ao mercado, em livros seminais como Bringing the state back in(Cambridge University Press,1985 organizado em parceria com T. Sckopol e D. Ruschemeyer) e Embedded autonomy: states and industrialtransformation (Princeton University Press, 1995), onde elabora o conceito de autonomia inserida do Estado paradiscutir comparativamente a importncia da interveno estatal no desenvolvimento industrial de seis pases: Zaire,Japo, Coria, Taiwan, Brasil e ndia.

  • 7/24/2019 GabrielaCavalcantiCunha EconomiaSolidariaPoliticasPublicas USP 2002

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    Evans argumenta que, embora ambas tenham obrigado a uma redefinio do quadro

    desenvolvimentista, em geral as duas correntes no se integraram: tericos do Estado como

    indutor do desenvolvimento tinham pouco a dizer sobre capital social, enquanto tericos do capital

    social freqentemente descreviam o Estado como um dos culpados pelo declnio da comunidade.

    Mas os artigos reunidos no volume de 1997 organizado por Evans, State-society synergy:government and social capital on development (Sinergia Estado-sociedade: governo e capital

    social no desenvolvimento)2, procuram examinar conjuntamente estas duas tradies distintas,

    examinando o papel potencialmente positivo de relaes que unem Estad