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    UUUUUm teatro ps-moderno de resistncia: i nis aqui traveiz de Porto Alegre

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    UUUUU m t e a t rm t e a t rm t e a t rm t e a t rm tea t ro ps -mode ro ps -mode ro ps -mode ro ps -mode ro p s - m o d e rno de rn o d e rno de rn o d e rn o d e re s i s t nc i a :e s i s t nc i a :e s i s t nc i a :e s i s t nc i a :e s i s t nc i a :i n i s aqu i t r a ve i z i n i s aqu i t r a ve i z i n i s aqu i t r a ve i z i n i s aqu i t r a ve i z i n i s aqu i t r a ve i z de Po r to A l eg rde Po r to A l eg rde Po r to A l eg rde Po r to A l eg rde Po r to A l eg reeeee

    IIIII ngrid Koudela

    Ingrid Koudela professora do Departamento de Artes Cnicas e do Programa de Ps-Graduao emArtes Cncias da ECA-USP.

    Envie-me um escriba ou, melhor ainda, umajovem escrava com memria afiada e voz pos-sante. Disponha que ela, o que ouvir de mim,possa dizer sua filha. Esta por sua vez suafilha, e assim por diante. De forma que, ao ladoda torrente de cantos a heris, este minsculoarroio, penoso, tambm possa alcanar aquelaspessoas distantes, talvez mais felizes, que um diaho de viver (Christa Wolf).

    ma educao poltica que pratique a edu-cao esttica e uma educao esttica queleve a srio a formao poltica tero deesforar-se para alcanar uma conscinciacapaz de superar a diferena entre a esfera

    do esttico e a do poltico no seu conceito decultura. Ou seja: ambas as esferas no podemser submetidas a um denominador comum,pois tal reduo significaria o fim da arte. Poroutro lado, no h como separar tais domnios

    um do outro, posto que se inter-relacionamcontinuamente, atravs de um processo de os-cilaes. O poltico deve ser constantementeresguardado de modo a no se tornar unidimen-sional e cabe-lhe trazer ao esttico a conscinciade que ele se acha sob o signo do como se.

    A superao do vcuo hoje tantas vezesexistente entre cultura e poltica ultrapassada

    pelo grupo i Nis Aqui Traveizatravs da es-tratgia de resistncia. A desestabilizao dasestruturas de poder se realiza atravs da prticalibertria da criao coletiva praticada pelosatuadores da paixo e de uma necessidade detransformao do prprio teatro praticado naTerreira da Tribo, nome dado ao espao do gran-de galpo no bairro dos Navegantes, sede dogrupo em Porto Alegre.

    Em uma sociedade na qual o prprio tea-

    tro se tornou uma indstria e a literatura, suamatria-prima, permanece a proposta brechtia-na de um modelo de educao poltico-estticoe experimentao teatral que procura gerarnovos meios de produo. Para transformar asociedade por meio do teatro, indispensvelmodificar as estruturas do teatro, que so umreflexo das estruturas da sociedade. Assim comoanuncia Brecht, a apropriao dos meios deproduo artsticos necessria e importante

    para o processo de emancipao do teatro edo pblico.

    A saga de CanudosA saga de CanudosA saga de CanudosA saga de CanudosA saga de Canudos

    Tive a oportunidade de ver o espetculo de ruaA Saga de Canudose o que mais me impressio-

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    nou naquela apresentao realizada em praapblica, no centro de Porto Alegre, foi o pri-mor na representao dos personagens e cenaspopulares. Formas de manifestao altamentesofisticadas, que incorporam a msica e a dan-a, vemos tantas vezes a autentica cultura brasi-leira ser vilipendiada por um sucateamento dopopular, atravs de processos de banalizao.

    O cenrio da praa pblica exige um ges-to ampliado, capaz de prender a ateno de ci-dados que acorrem casualmente, formando aroda da brincadeira teatral. Atravs de grandesbonecos, figurinos coloridos, tambores e da re-presentao e do canto coral, o grupo i Nis

    Aqui Traveiz realiza um ato artstico da maiorgrandeza, do qual participa uma platia forma-da por meninos de rua, passantes, donas de casa,comerciantes, turistas.

    A qualidade esttica desse teatro de ruano degrada o seu cunho poltico atravs da afir-mao do j existente. Recuperando a qualidadeemancipatria e alternativa da arte, o espetcu-loA Saga de Canudospermite ao espectador pro-ceder a uma atitude crtica frente sua histria.

    Ao desenvolver universos de oposio, dialticainerente adaptao realizada do texto de CsarVieira que foi tomado como base para a criaocoletiva, o grupo de atuadores radicaliza o con-ceito de criao coletiva, assumindo o atorcomo criador intrprete e a encenao como atopraticado atravs da relao democrtica.

    A histria deste teatro de grupo vem doteatro de rua, da escola da representao popu-lar. Seu discurso poltico est em processo, tal

    qual o tempo de transformao da histria, di-ferente neste incio de sculo XXI do primeiromomento, em pleno regime militar (1964-1985). O que permanece presente a dennciana celebrao do ato, do teatro de todos os tem-pos, que no comporta um mundo de vence-dores e vencidos porque todos derrotados.

    * * *

    KassandraKassandraKassandraKassandraKassandra in prin prin prin prin processocessocessocessocess

    Confrontando-se com o grande objetivo de pro-curar na histria do Ocidente aqueles fragmen-tos ainda aptos a manter vivo o contraditrioprocesso de oscilaes entre o esttico e o pol-tico, os atuadores celebram Kassandra in Process,com estria na Terreira da Triboem 2002.

    Christa Wolf publica a narrativa Cassan-dra(Wolf, 1983) focalizando o mito da profe-tiza filha do rei Priamo e irm de Paris, o cau-sador da guerra de Tria por ter seqestradoHelena, esposa do rei grego Menelau. Cassandravaticina a tomada de Tria, mas no ouvida

    pelos seus. Entregue a Agammnon como presade guerra, tambm prev a morte de ambos amando de Clitemnestra, esposa daquele.

    Herdeira de Brecht, Christa Wolf intro-duz o leitor tanto na ao como no processo donarrar, incentivando-o co-produo do senti-do do texto. A potica de Cassandra atesta vriospr-textos, sendo os principais a Iladae a Odis-sia, de Homero, a tragdia Agammnon, desquilo, a Mitologia Grega, de Robert Ranke-

    Graves, e o volume Pressupostos de uma Narra-tiva-Cassandra (Wolf, 1982), resultado de qua-tro prelees que proferiu na Universidade deFrankfurt e publicou junto com a narrativa.Esses ensaios testemunham o processo criadorda autora, seu dilogo com a antiguidade clssi-ca e com a escrita feminina. Wolf cita Virgina

    Woolf e Hlne Cixous.O personagem principal da narrativa,

    Cassandra, pronuncia um monlogo na primei-

    ra pessoa em que expe a sua trajetria comofilha de rei e sacerdotisa, os anos de cerco e atomada de Tria, recordando sua caminhadainterior neste percurso. medida que a figurade Cassandra situada historicamente desven-da-se a submisso da mulher na sociedade pa-triarcal. A narrativa situa-se na passagem domatriarcado para o patriarcado. Como se tratade uma poca de transio, ambos os sistemasconvivem, podendo ser encontrados vestgios dasociedade matriarcal na comunidade que fica noMonte Ida, onde a violncia no tem lugar e as

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    relaes humanas se baseiam em solidariedadee amizade. Vive-se a ainda em comunho como sensvel e a natureza.

    A Cassandra de Christa Wolf tambmno recebe do deus Apolo o dom da viso. Elamesma conquista essa capacidade, no exercciode seus sentidos e de sua inteligncia. Ela con-verte seu destino em sujeito da histria. O cur-to espao de tempo na tragdia de squilo rompido em Cassandrapelo tempo narrado sub-

    jetivamente dilatado. O procedimento intertex-tual da narrativa produz o ecoar de vrias vozes.Christa Wolf defende a multiplicidade dereferencias. Permanecem assim trechos em aber-

    to na narrativa que apelam para a construode sentido do leitor.

    Kassandra in Process, Aos que viro depoisde Nsafirma um teatro que antes de tudo ri-tual e mgico, ligado a foras cuja eficcia se tra-duz em gestos e est ligado diretamente aos ritosque so o prprio exerccio e a expresso de umanecessidade espiritual, de acordo com Artaud.

    O espetculo trabalha com o mistrio daevocao de um tempo remoto, to reverenciado

    pelo teatro. A evocao da mitologia grega, trans-formada em ritual artaudiano, torna presente noaqui/agora da ao cnica o poder autodestruti-vo da humanidade, atravs da guerra de Tria,paradigmtica do imaginrio das guerras noOcidente, escancarando a atualidade do tema.

    A novela de Christa Wolf foi recortada ecomprimida, reinstalando o processo criativo deChrista Wolf que convida o leitor a participarcomo co-produtor de sentidos na leitura de

    sua narrativa. O exerccio da intertextualidade continuado e expandido atravs de autorescomo Albert Camus, George Orwell, Beckett,Heiner Muller, Peter Handke, Arthur Rimbaude Pablo Neruda. O processo de criao coletivoaponta para uma prtica esttica na qual o re-ceptor/leitor/atuador passa a ser ator criador/autor do texto espetacular.

    Esse dilogo na forma de fragmentos ir-rompe o fio do tempo e rasga o vu da contem-poraneidade. Nas palavras de Kassandra: (...)ento, eu me detenho na palavra e, mais ainda

    do que na palavra, na sua figura, na sua linda ima-gem. Sempre me afeioei mais imagem do ques palavras. E tudo acabarcom uma imagem, nocom uma palavra (...) (Santos, 2004, p. 51).

    O espetculo conquista a ruptura atravsda linguagem do espao e do corpo ritualizadosno qual os atuadores so intrpretes que se re-duzem sua menor grandeza,na expresso cu-nhada por Brecht. O corpo franzino de TniaFarias que lidera o elenco, torna Kassandra umagigante em cena. Em outros momentos sua do-ura aponta para o que pequeno e frgil e ain-da, em outros faz, o espectador rir... talvez de siprprio ou da crueldade do que lhe apresen-

    tada. O rigor, a radicalidade do grupo dos atua-dores comove pela generosidade de sua entregatotal arte teatral.

    Kassandra uma voz vencida e assassina-da, reescrevendo a sua histria que a hist-ria da mulher tentando assegurar a sua trans-misso a geraes futuras. A forma do teatroprocessional faz com que o espectador se vejaora na prpria arena dos fatos, ora os veja doalto, com distanciamento. A platia tocada

    pela proximidade fsica do atuador, envolvidoem oferendas, banquetes, combates, despedidas,assassinatos, jogos de seduo e poder. Na se-qncia de um genocdio, h homenzinhos dotamanho da palma da mo, trapinhos de panoazul espalhados pelo cho. A platia se tornacmplice da contagem dos mortos, andandocom cuidado redobrado para no esmag-los.

    Um silncio perturbador invade os espec-tadores ao trmino da apresentao. No h

    aplausos. Ouve-se apenas o caminhar das pes-soas saindo da Terreira da Tribo. No SESCPompia, ao final do espetculo, em So Paulo,o fotgrafo puxou palmas e a platia at obede-ceu, acompanhando. Mas elas cessaram rapida-mente e, na sada, o mesmo desassossego, olhosbuscando a noite e a sensao do vento no ros-to. Kassandra in Process, trs horas memorveisde teatro depois das quais o espectador j no mais o mesmo... algo dentro dele faz com que oflego se altere...o aplauso j no mais se ins-taura na sua forma convencional.

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    A misso de Heiner MllerA misso de Heiner MllerA misso de Heiner MllerA misso de Heiner MllerA misso de Heiner Mller

    No cruzamento de tantos carinhos e tantos ou-tros caminhos speros trago a trajetria da atrizMarta Haas que faz o personagem de Primeiro

    AmoremA Misso(Mller, 1979) na encenaode i Nis Aqui Traveiz.

    noite, aos finais de semana, Marta Haasse apresenta na Terreira da Tribo, fazendo (...)aquilo que fazem as crianas com as bonecas.De vez em quando a criana quer saber o queh dentro da boneca. Para isso, necessrio que-br-la, seno no saber jamais o que h no inte-rior (Mller, 1986, p. 125).

    A menina de longos cabelos loiros, do in-terior do Estado do Rio Grande do Sul est inse-rida em um processo de pesquisa mllerianocuja moral uma pulso antropolgica que-rer saber oque h dentro da boneca.

    De dia, durante a semana, a atriz MartaHaas ministra oficinas para iniciantes em bair-ros perifricos de Porto Alegre. A Escola de Tea-tro Popularda Terreira daTribo fomenta a pes-quisa de processos atorais e oferece oficinas

    abertas comunidade em geral propondo umaabordagem que privilegia a idia de um teatropoltico. Pedra angular do projeto pedaggicodo Centro de Experimentao e Pesquisa Cnicaa prtica artstica como elemento transformador.

    O grande abismo que havia entre a altaliteratura e a proposta pedaggica superado sujeito e objeto tornam-se finalmente idnticos(...) trata-se aqui da realidade humana e node uma natureza independente de sua conscin-

    cia, ela deve ser transformada (Muller, 1986,p. 66). O teatro de Heiner Mller insiste na suaqualidade de traduo para outra unidade detempo e espao.

    Da mesma forma como a atriz MartaHaas, gente de teatro por todo o Brasil enfrentao confronto com o branco no olho da Histria.Nesse peito a peito com a realidade social, seuteatro renasce muitas vezes aps passar por umprocesso de transmutao.

    A Missoinsere-se na produo literria eteatral contempornea como documento de um

    tempo em crise, em que tudo espera por hist-ria. nesse contexto de um estado em suspensoque Muller situa o Terceiro Mundocom todosos problemas de fome esuperpopulao. De umlado, objeto de colonizao, explorao e refu-go, de outro, lugar de caos e desordem, o Ter-ceiro Mundo visto por ele como fermento donovo: (...)ilhas de desordem, espcie de tumo-res benignos na medida em que, forando oconvvio com camadas diversificadas de hist-ria e cultura, preparam o solo para a mudana(Mller, 1986, p. 87).

    Ministrante da disciplina Teoria e Prticada Pea Didtica de Bertolt Brecht no Curso de

    Ps-Graduao da ECA-USP, sou necessaria-mente confrontada com esta ps-modernidadede resistncia.

    Em 2005 encenamos com os alunos docurso de ps-graduao Sangue na SapatilhadeHeiner Mller (Mller apud Koudela, 2003,p. 59), escrito em homenagem a Pina Bausch,como

    performance, apresentada no Pao dasArtes da USP e no Teatro Laboratrio da ECA.

    A experincia de trabalhar com um tex-

    to de Mller transforma no apenas o conceitode teatro como gera uma profunda agitao etransformao da prtica teatral. A minha maisviva sensao foi aquela descrita pelo autorquando cita o Fragmento Fatzer de Brecht, comoum processo de autoconhecimento. Na versode Mller intitulada Declnio do EgostaJohannFatzer, escreve na introduo:

    No primeiro caderno dos Versuche h um

    texto do Fragmento Fatzer. Li esse texto nosanos cinqenta e desde ento o Fatzer paramim um objeto de inveja. Trata-se de um tex-to secular, pela qualidade literria e pelacondensao. Seu tema tem a ver com as gran-des cidades (...) h por volta de quatrocentaspginas no Arquivo Bertolt Brecht, materialdifuso, s vezes h uma linha em uma pgi-na, s vezes uma pgina inteira, esboos dediferentes verses.

    No quarto em que estava trabalhan-do, esparramei as quatrocentas pginas e

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    andava em meio a elas, procurando o quecombinava.

    Tambm estabeleci relaes nas quaisBrecht no poderia ter pensado, um quebra-

    cabeas(Brecht/Mller, 2002, p. 11).

    Para Mller, no texto do Fatzer, a lnguaescande o processo dopensamento cuja atitude aquela do pesquisador cientfico. Brecht faz ocomentrio do fragmento (...) como antiga-mente fantasmas vinham do passado, assimtambm agora (vm) do futuro. E Mller de-clara: (...)os fantasmas no ameaam apenassurgir do passado, mas como motoristas loucos

    na via expressa do futuro (Mller, 1986, p. 55).Ao chegar em casa depois das aulas, meus

    papis estavam como que em revolta, resisten-tes a uma organizao linear. Textos de Caeta-no Veloso, ritmos indgenas e imagens dos es-petculos de Pina Bausch compunham o nossotexto espetacular informado pelo exerccio in-tertextual. A revolta dos papis tambm umarevoluo nos conceitos acadmicos tradicionaiscontra os quais este teatro da ps-modernidade

    se rebela... nascendo a partir da vrias questes.O texto mlleriano, no qual intertextualidade edesconstruo constituem-se como mtodo depesquisa permitia ao de alunos e professoraencenadora uma grande liberdade, abrindo ca-minho para a antropofagia, conforme conceituaRuth Rhl, com grande propriedade em suapesquisa sobre a literatura na Repblica Demo-crtica Alem (Rhl, 2006).

    O dilogo publicado com o ttulo OEs-

    panto como primeira apario do novo (Mllerapud Koudela, 2003) coloca um princpio est-tico que permite o paralelo com a antropofagia a transformao permanente do tabu emtotem. A idia de Oswald de Andrade, de que otabu deve ser transformado em totem, subvertepor completo a reflexo de Freud, por colocar

    justamente o proibido, o indesejvel como algodigno do desejo. Transformando o oposto nor-ma em objeto de busca, Andrade instaura a rup-tura como procedimento ideal, procedimentoesse que subjaz s palavras de Mller quando

    afirma que o novo geralmente um fator deperturbao da ordem. Apesar das diferenasentre os dois dramaturgos, procedimentos co-muns como deglutio intelectual, a represen-tao parodia, a irreverncia e a provocao so

    justificveis pela tradio no caso de Andradea Semana de Arte Moderna, no de Muller o co-nhecimento e incorporao das vanguardas eu-ropias (Maiakovski, Duchamp, Kafka etc.).

    J encontramos em Hegel que a forma um reservatrio de contedo e as formas antigasdeixam transpirar as velhas ideologias. Na dic-o de Brecht, contedos novos em panelasvelhas, ou seja, em teatro no basta dizer coi-

    sas novas. preciso, tambm diz-las de outrasformas. Para Brecht ser contemporneo na es-crita e na encenao no contentar-se em re-gistrar as mudanas na sociedade, tambm in-tervir na converso das formas. A Brecht nointeressa uma determinada forma de encenar,mas a configurao de um leque de opes, isto, a apropriao critica, por parte do grupo, domaior nmero possvel de ferramentas de cria-o e leitura.

    Na contemporaneidade, o espectador jno se contenta em reconhecer um estilo e re-ter uma histria. Ele participa tambm da mon-tagem. O modelo de encenao ps-modernose caracteriza por uma escritura narrativa queno mais se apia no contar ou apresentar umaestria para o pblico, mas sim conexes emrede de fabulao nas qual o fragmento, a cola-gem, a simultaneidade se constituem como ins-trumento de exposio cnico.

    Esta forma de encenao sugerida atra-vs de modelos artsticos como Wilson, Kantor,Bausch, Thomas, Lepage, Fria del Bas. Deacordo com Muller, (...) o teatro de Robert

    Wilson, to ingnuo como elitizado, dana mor-daz infantil e brincadeira de criana matemtica,no faz diferena entre leigos e atores. Perspec-tiva de um teatro pico, como Brecht o conce-beu e no realizou, com um mnimo de esforodramatrgico e alm da perversidade de trans-formar um luxo em profisso. Os quadros de pa-rede das minorias e a arte proletria do subway,

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    annima e feita com tinta roubada, ocupam umcampo para alm do mercado. Antecipao damisria dos subprivilegiados o Reino da Liber-dade, que fica alm dos privilegiados. Pardiada projeo de Marx da superao da arte numasociedade cujos participantes so tambm artis-tas (Mller, apudKoudela, 2003, p. 47).

    Mller produziu o quarto ato da pea TheCIVIL Warsde Robert Wilson (1984), mostran-do-se entusiasmado com o que chama deTheater als Prozess(teatro como processo), noqual a tenso dramtica criada entre palco e pla-tia explicitada, em oposio ao que chamaTheater als Zustand(teatro de situao), aquele

    que conserva uma estrutura historicamente ana-crnica e mantm a dicotomia entre palco e pla-tia, sendo que os espectadores assumem umapostura meramente contemplativa.

    O que entusiasmou Mller em RobertWilson foi a liberdade entre os elementos quecompem a cena, no interpretando, como di-retor, nem permitindo que os atores o faam.

    A interpretao, na opinio de Muller, tarefanica e exclusiva do pblico-receptor. Ela no

    deve ter lugar no palco.Descrio de Imagem(Mller, 1984), porexemplo, oferece extrema resistncia ao sentidodevido inflao do material. Antes que umaimagem se complete j surge a seguinte e assimpor diante, de forma que o espectador fica semo arremate, sem a moldura que poderia facilitarsua leitura. essa maior dificuldade que vai li-berar a sua fantasia. Descrio deImagem umareflexo sobre o theatron, o espao do pblico

    receptor, ao p da letra espao de contemplao:o texto no apresenta dilogo nem ao, masum encontro dramtico entre olhar e imagem.

    O espao do corpo no teatro testemu-nhado por Muller atravs de sua reverencia a

    Artaud: (...) srio o caso de Artaud. Ele desa-propriou a literatura da polcia, o teatro da me-dicina. Sob o sol da tortura, que ilumina simul-taneamente todos os continentes deste planeta,seus textos florescem. Lidos a partir das runasda Europa, sero clssicos (Mller apud Kou-dela, 2003, p. 57).

    A reduo do dilogo dramtico em fa-vor do jogo de fragmentos, pela montagem detempos, gneros, nveis estilsticos e formas derepresentao heterognea, fornece a uma peacomoA Missoa feio de uma constelao ps-moderna. De acordo com Rhl: a base da repre-sentao ps-moderna o modelo bakhtinianodo dialgico, no dialtica resolvida. Respeitan-te ao pblico-receptor, a polissemia tambmuma motivao ao prazer, fruio da represen-tao artstica, que nunca ocorre numa recep-o puramente passiva, mas quando depara comsignos opacos, resistentes ao sentido (Rhl,1997, p. 168).

    Na Terreira da Tribo as imagens surrea-listas, aparentemente caticas da escritura deMller, compostas por passagens clownescas,citaes, teatro de marionetes, fantasmagorias,teatro ritual artaudiano geram uma invaso dequadros e metforas que desafiam a energia eleva ao extremo as possibilidades de recepoda platia, composta de no mximo vinte e cin-co espectadores.

    Os atuadores produzem um espetculo

    no qual o fragmento sinttico montado comoum quebra-cabea espacial atravs do qualsomos conduzidos por uma sucesso de instala-es (composies de cenrios e figurinos). Nes-se procedimento processional da montagem, oespectador conduzido atravs de diferentesambientes que provocam experincias sensori-ais atravs de temperaturas, cheiros, espaos pe-quenos e confinados e cu aberto, grandes sa-las, diferentes planos como alto e baixo, texturas

    como areia e gua, luzes de velas, escurides,sons de tambores musica clssica e ritual vodu.Tambm o figurino se aproxima desse

    carter de instalao atravs de dimenses gi-gantescas das roupas na caracterizao de Pri-meiro Amor, em que ouvimos o texto: isto o homem: seu primeiro lar sua me, umapriso. Aqui est aberta a ptria, aqui boceja oseio da famlia. Diga uma nica palavra, se vocquer voltar e ela te enfia para dentro, a idiota, ame eterna. Debuisson literalmente entra paraa barriga de Primeiro Amor, a instalao (figu-

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    rino/cenrio) da imensa saia tem a forma deuma alcova, na metfora da supresso da liber-dade ligada ao nascimento com a analogia en-tre me e ptria e a solido do dissidente polti-co Debuisson.

    Nas encenaes no espao da Terreira daTribo o espao teatral modificado por com-pleto, de modo que a disposio da platia sed em funo da criao de cada cena. A pala-vra potica de Muller articulada na montagemcom a poesia do espao transfigurando a quali-dade da palavra como presena fsica, corporifi-cada atravs da instalao.

    Os atuadores Paulo Flores, Sandro Mar-

    ques, Tnia Farias, Clelio Cardoso, Marta Haas,

    Renan Leandro, Pedro Kinast de Camillis, CarlaMoura, Luana Fernandes so atores pesquisado-res que participam do processo de construoda forma esttica assumindo o princpio da cria-o coletiva, do teatro que nasce do ator dentrode um processo de criao radicalmente demo-crtico, no qual a funo do diretor/encenador abolida. A interpretao deste grupo se carac-teriza por uma atuao em estado alterado, umrelativo abandono em funo do carter ritua-lstico artaudiano de seu teatro. O transborda-mento da ao em direo platia faz nasce-rem signos que precipitam sonhos/pesadelos,cuja qualidade esttica arrebata o espectador e

    provoca o desassossego.

    Referncias bibl iogrficasReferncias bibl iogrficasReferncias bibl iogrficasReferncias bibl iogrficasReferncias bibl iogrficas

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