Oswald de Andrade - Ponta de Lança

download Oswald de Andrade - Ponta de Lança

of 134

Transcript of Oswald de Andrade - Ponta de Lança

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    1/134

    OSWALDDE ANDRADE

    OBRAS COMPLETAS-5

    PONTA DE LANÇA

    Profissional da imprensa na juventude,depois fundador e diretor de periódicos,Oswald de Andrade mais tarde abandonou

    a rotina quotidiana das redações, mas nuncadeixou de colaborar nos maiores jornais deSão Paulo e do País, nêles esbanjando muitodo melhor do que pensou e tinha a dizer.Através de artigos vazados em estilo ner-voso, imprevisto e original, expôs idéiasestéticas e políticas, praticou a polêmicabem-humorada, debateu os grandes temas eproblemas literários, artísticos e ideológicosdo seu e nosso tempo. Foi também umconferencista brilhante, capaz de trazer

    o auditório em suspenso e interessado emsuas digressões provocantes e provocativas,plenas de talento e verve.

    Ponta de Lança  reúne trabalhos quedivulgou em 1943 através de  O  Estado   deSão  Paulo, Diário de  São Paulo   e Fôlha   da Manhã  e três conferências pronunciadasnesse e no ano seguinte.

    Essa seleção de trabalhos, feita porêle mesmo naquele período, constitui valiosa

    embora pequena amostra do seu ideárioestético e político, e documenta-lhe o estilocrispado, ágil e de inesperados efeitos. Aíestá um pouco do Oswald discutidor e pan-fletário, que restaura a agressividade polê-mica de Camilo através de uma escriturarenovada, irrigada de humor, graça e ironia,repleta de irreverências, risonhas blagues,trouvailles   sarcásticas e causticantes bouta-des.   Mas por êsses textos também perpas-sam a todo instante frêmitos de emoção e

    poesia, e, sempre, e antes de mais nada,exibe-se uma inteligência perturbadora, in-tranqüila, inconformada e rebelde. Umainteligência em ansiosa busca de fixar rumosmais fecundos para o desenvolvimento eprogresso da cultura brasileira, empenhadaem abrir horizontes para o descortino deuma civilização mais humana, fraterna c

     justa, aqui e lá fora.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    2/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    3/134

    Ponta de Lança

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    4/134

    Coleção

    VERA CRUZ

    {Literatura Brasileira)

    Volume  153

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    5/134

    OSWALD DE ANDRADEObras Completas

    v. Ponta de LançaPolêmica2? edição

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    6/134

    233 ̂Exemplar n?

    Desenho de capa:DOUNÊ

    Diagramação:LÉA CAULLIRAUX

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    7/134

    Obras Completas de Oswald de Andrade

    1. Os  CONDENADOS  {Alma/ A Estréia de Absinto/ A Es-cada)   — Romances.

    2 . MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR / SERAFIMPONTE GRANDE  — Romances.

    3.  MARCO  ZERO:  I —  A Revolução   Melancólica   — Ro-mance.

    4 . MARCO ZERO: I I —  Chão   — Romance.

    5 . PONTA DE LANÇA  — Polêmica.

    6 .  Do  PAU-BRASIL À ANTROPOFAGIA E ÀS UTOPIAS  ( Mani-

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    8/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    9/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    10/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    11/134

    Sumário

    Oswald, Democracia e Liberdade — Mário da Silva Brito  XIII

    Carta a Monteiro Lobato 3Correspondência 9

    Bilhete Aberto 13Carta a um Torcida 16Destino da Técnica 21Poesia e Artes de Guerra 25Fraternidade de Jorge Amado 30Sobre o Romance 33

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    12/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    13/134

    Oswald, Democracia e Liberdade

    MÁRIO DA SILVA BRITO

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    14/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    15/134

    D E S D E  cedo o jornalismo atraiu Oswald de Andrade:o jornal era, antes que surgissem o rádio e a TV, o grande veículo

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    16/134

    abordando assuntos de arte, literatura e política. Nesse sema-nário, aliás, estampou alguns capítulos das Memórias   Sentimen-tais de João  Miramar,   texto inteiramente diverso, no espíritoe na forma, do que anos depois apareceria em livro.

    Em  O Pirralho   Oswald de Andrade divulgou produções denomes já consagrados de nossas letras e os primeiros trabalhos,

    em prosa e verso, de jovens escritores, revelando ainda o carica-turista Voltolino e Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, o Juó Bananere  que escrevia em dialeto ítalo-paulista. Nessarevista publicou também crônicas de sua primeira viagem àEuropa, que versavam especialmente temas literários e artísticos.Politicamente combatia Pinheiro Machado, figurão prepotente

    e truculento da velha República, e defendia o civilismo de RuyBarbosa contra o militarismo de Hermes da Fonseca.  O Pirralho,hoje, é valioso documentário de uma época, inclusive da futili-dade paulista de então, cujas agitações mundanas registra.

    Encerradas as atividades de O Pirralho,  Oswald de Andraderetornou à banca de jornalista, agora na edição paulista do Jornal   do Comércio.   É na condição de repórter dêsse diário— onde também redigia a coluna de "Sociais" e percebia porseus serviços duzentos e cinqüenta mil-réis — que vai assistir auma cerimônia cívica no Conservatório Dramático e Musical,ocasião em que conhece Mário de Andrade: briga às taponascom um colega de outro jornal para ter o privilégio de publicar

    o discurso do futuro poeta de  Paulicéia Desvairada,   peça quelh d lh lid d lit á i N dê t

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    17/134

    suas risonhas blagues,  írouvailles   humorísticas e causticantesboutades.

    Nesse jornal sustentará, ao longo dos anos, inúmeras polê-micas, quer com os passadistas, quer com os grupos do moder-nismo, quando ocorre a divisão entre êles, zombando dos postu-

    lados dos movimentos  Verde  e Amarelo  e Anta,  ou dará notícia— estando ausente do Brasil — do que ocorre na Europa noplano estético e político.

    Em 1931 funda e dirige, com Patrícia Galvão e QueirozLima, O Homem do Povo, jornal ideológico de que editou apenasoito números: foi empastelado por estudantes de Direito que se

    agastaram com referências contidas em artigo de Oswald porêles julgadas ofensivas à Faculdade do Largo de São Francisco.Abandonando as lides quotidianas das redações, Oswald

    de Andrade, no entanto, não deixará de colaborar, ora comassiduidade, ora de forma intermitente, nos grandes jornais deSão Paulo e do País. Assim fêz até os últimos anos de vida,

    até às vésperas da morte. Nessa longa faina jornalística, atiladae vigilante, registrou e comentou, de modo crítico, pràticamentetodos os grandes e momentosos temas e problemas do seu e donosso tempo. Muitos dêsses artigos tornaram-se célebres, cor-rendo de bôca em bôca as suas afirmativas insólitas, suas dia-tribes abrasivas, seus ditos espirituosos, como ocorreu comboa parte da colaboração enviada para  A Manhã, Meio-Diae Correio   da  Manhã,   sendo que neste jornal manteve, por largo

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    18/134

    de ser atual e, em tantos casos, permanente, e ainda o poder detranscender o momento, o episódico e até de antever o futuro,a marcha dos acontecimentos e sua transformação. Nêles estãoos seus entusiasmos, idiossincrasias, erros, implicâncias e fra-quezas, o diagrama de suas vacilações e veemência, inquietudese inabaláveis convicções. Mais: a coragem de se desdizer, de

    retratar-se, de dialèticamente contradizer-se, de rever-se a si mes-mo, corrigindo enganos, equívocos e às vêzes irritada visão depessoas, fatos e circunstâncias. Um exemplo: se em  Ponta de

     Lança  ataca ferozmente Cassiano Ricardo, não hesitaria, maistarde, pela via de um Telefonema,  em exaltar os méritos do livrode poemas  Um  Dia Depois do   Outro, em que o poeta dava uma

    violenta guinada nos seus processos poéticos. A obra de arte,que tocara, sobrepôs-se aos ressentimentos que lhe ditaram oartigo virulento de outrora. Outro exemplo: se em  Ponta de

     Lança, sentindo-se incompreendido por Antônio Cândido, o tratacom jovial acrimônia, ao crítico paulista — que acabou seucompadre e amigo íntimo — dedicaria, em mais de uma oportu-

    nidade, elogiosas referências, desvanecedores juízos. Assim fêztambém com Monteiro Lobato e outras figuras.Ponta de Lança  reúne artigos e conferências de Oswald

    de Andrade escritos durante 1943 e 1944. Essa seleção detrabalhos, feita por êle mesmo naquele período, constitui valiosaembora pequena amostra do seu ideário estético e político, e

    documenta-lhe o estilo crispado, ágil, de inesperados efeitos.Aí está um pouco do Oswald discutidor e panfletário, que res-

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    19/134

    do patrimônio de espírito e de cultura então ameaçados pelonazismo e pelo Estado Nôvo policial e opressor, em artigos econferências escritos ou pronunciadas em plena vigência daDitadura Vargas, o que lhe valeu muitas vêzes severas adver-tências dos órgãos censórios, como ocorreu com o de títuloO Coisa,  sibilino e alusivo; discute as proposições da Tecnologia

    e as rotas que se anunciavam em plena guerra. Tudo isso decor-ria de um acendrado amor, de um candente desejo, de umaincontida aspiração de liberdade. Era em nome da liberdadeque falava. A liberdade de criação artística e de escolher osroteiros mais proveitosos para o progresso do homem brasileiroou universal.

    "Só seremos felizes sôbre a terra quando tôda a huma-nidade, num mundo redimido, comer à mesma mesa, com amesma fome justa satisfeita, sob o mesmo tendal de fraternidadee de democracia" — escreve Oswald, que também concita inte-lectuais e artistas, naquelas horas apreensivas e incertas, a man-terem a sua luta, "cujo máximo prêmio é a liberdade". É o

    Oswald que pede a todos que se mantenham "num estado devigilância a fim de que o inimigo que, com nossas idéias enossas armas derrotamos, não venha a renascer amanhã, revi-gorado pelos que sonham ainda com um mundo escravo e porêle trabalham."

     Ponta de Lança  é um livro corajoso, amplo e tantas vêzes

    profético. Ao lado do culto à liberdade e defesa dos ideaisdemocráticos sua tônica principal está iluminado também pela

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    20/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    21/134

    Ponta de Lança

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    22/134

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    23/134

    Carta a Monteiro Lobato

    M EU lh i Q bé i h

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    24/134

    de um largo sofá de palha, sem bordas, misto de diva e decama, rodavam umas provas. Na primeira página lia-se impressoo seu nome. E mal suspeitávamos — eu e você e os outrosfreqüentadores daquele refúgio da cidade, que nos aparecia vulcâ-nica nos tímpanos ainda recentes da Light and  Power,  que umaoposição começava entre o seu livro e o avião. Hoje, passados

    cinco lustros, é você quem reclama a sua parte gloriosa narecuperação da nacionalidade que alguns daqueles moços iamarduamente tentar nas lutas da literatura. E lendo a frase desua entrevista: "Os fatos provam que o verdadeiro Marco Zerode Oswald de Andrade é êsse livro", não venho retificar e simesclarecer. De fato   Urupês   é anterior ao  Pau-Brasil   e à obra

    de Gilberto Freyre.Mas você, Lobato, foi o culpado de não ter a sua mere-

    cida parte de leão nas transformações tumultuosas, mas defini-tivas, que vieram se desdobrando desde a Semana de  Arte de  22.Você foi o Gandhi do modernismo. Jejuou e produziu, quemsabe, nesse e noutros setores a mais eficaz resistência passiva

    de que se possa orgulhar uma vocação patriótica. No entanto,martirizaram você por ter falta de patriotismo!Essas cousas acontecem. Os vinte e cinco anos dos  Urupês

    são outro marco. Hoje, o tumulto parou diante de uma borbo-leta mecânica, onde se pede carta de identidade para o futuro.E você tem mais que isso, tem uma heráldica inteira, onde de

    um lado a saudade e de outro a faísca mordaz e sadia do risol b i d id C i id d

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    25/134

    O seu equívoco, Lobato, e o meu também, foi ter queridoganhar a vida como qualquer mascate. Você ingressava naslides da cidade, com aquela confiança otimista que os tempera-mentos milionários oferecem ao sádico frigorífico do capitalismo,principalmente quando êste é môço e age numa época sempolícia e numa terra sem escrita. Você oferecia um peito nu e

    atlético aos golpes mais profundos de que lançam mão a usurae o latrocínio. Viesse a força, o empalamento, a proscrição,você responderia sempre com aquêle riso inquietante, cheio deamanhãs, onde havia, sobretudo, uma honestidade integral, umahonestidade que não é dêste mundo. E o resultado foi mais quea força, o empalamento e a proscrição, foi a agrura de uma

    vida devalizada e incompreendida, ante a montagem dos grandescarnívoros que se alimentaram muitas vêzes das suas idéias, dassuas iniciativas e descobertas, como o abutre do Cáucaso antea entrega messiânica de Prometeu.

    De outro lado, eu partia acreditando também, mas semas amarras da Mantiqueira que você guardava nos olhos dainfância. Eu vinha dos açoites do mar, com quatro séculos deaventura transcontinental, onde minha gente travou conheci-mento, na África e na Amazônia, em Minas e no Ceará, comsêcas, jacarés, adamastores e meirinhos. Não me intimidavam,portanto, os chapéus melosos dos Graça Aranha, os sorrisospolíticos dos magnatas ou o convívio gelado e interrogativo doscristãos-novos das casas bancárias. Você não trazia essa cicloi-

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    26/134

    cérebro, a ação. Você carregava no seu destino o esquema dolivro e a profecia do petróleo. E aí começou a delapidaçãoheróica. Você, insulado pela honradez, indefeso pela próprianatureza do sonho que alimentava, entre os espias grosseiros dointerêsse, os adventícios do lucro, os exatores tenebrosos donegócio.

    Pergunto-me às vêzes por que você não realizou a obrarevelada na anunciação das manhãs orvalhadas dos  Urupês.   Erespondo com minha própria vida. Há dez anos que venhotrabalhando o ciclo de romances de Marco Zero  e somente agoraposso entregar ao editor o primeiro volume. Porque, Lobato,nós não temos os funâmbulos da pesquisa, os trapezistas do

    documento, não temos, enfim, as amestradas  equipes  com que,na sombra das lareiras e na glória dos escritórios, os homensde veludo se divertem compondo compêndios impressionantesde economia e de política, Temos a rua dura para trilhar, amesa sem dosséis para escrever e a missão dolorosa e sobran-ceira de dizer o que pensamos.

    Você sentiu-se cansado e refugiou-se numa calçada, rodeadode crianças. E começou a contar histórias. A princípio, acriançada achou divertidíssimo o que você falava. Era umroldão de informações, curiosidades e ensinos que vinham trans-figurados em personagens de um país de maravilhas. Pouco apouco a roda cresceu. Gente curiosa aproximava-se. Veio um

    senhor grave sentou outro uma senhora de chapéu E deum misto interessado de gente grande e de pirralhos se compôs

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    27/134

    Lobato, trava-se uma luta entre Tarzan e a Emília. Masisso há de ter fim. Já há exceções. Se, em outra ala, o garôtode Sérgio Milliet lê  Macunaíma,   conforme a informação doilustre Prof. Dreyfus, êle há de voltar à Emília. E até o cultoOcchialini, que desce a pé todas as semanas, das Agulhas Negras,

    para vir buscar o  Gibi,   há de trocar o Lil Abner pelo Rabicó.É  uma crise imensa essa que toma conta da vida no furacão daguerra ideológica. A aparição histórica de Hitler fêz todos ossucedâneos do homem primitivo saírem da caverna, tomaremcorpo blindado e lutarem. Os mitos do século XX, de Rosem-berg, foram postos nocaute pelo mocinho russo, pelo marinheiroPopeye e pelo justiçador dos sertões vaqueiros. E o super-homem de Nietzsche não pôde com o super-homem do  Gibi.Mas aí é que reside o perigo candente. Um combate maior seanuncia num campo mais vasto. À sombra dos seringais gene-rosos, na extensão solar das coxilhas, nas macegas, como nasruas comerciais, nos escritórios e nos lares do Brasil, queremliquidar com o Jeca Tatu!

    O Jeca, você sabe melhor do que ninguém, tem sôbre oseu Cáucaso oleoso, a pata gigantesca e astuta dos interêssesequívocos. Dão-lhe armas mas negam-lhe os mananciais dosangue que movimenta as máquinas, ergue os aviões e equipaas cavalarias mecanizadas. Êle bem que é ajudado por uma

    ala simpática da América do Norte à frente da qual está ocow-boy Roosevelt e o camarada Wallace Mas isso não basta

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    28/134

    fôr possível no aparelhamento de uma siderurgia imediata, refa-ça-se o milagre da resistência d 'Os Sertões   que Euclides apontoucomo penhor e flecha da independência viril do nosso povo.

    Esqueçamos a estética e a Semana de Arte  e estendamosa mão à sua oportuna e sagrada xenofobia. Hoje, as comu-nhões são necessárias.

    O Jeca vai para a guerra, vai dar o seu sangue pela redençãoda Europa. Ficará, depois, à mercê da tecnização amável que,por acaso, queira interessar-se pelas gulodices do mundò em paz?Seria preferível refluirmos então para o coração da mata norasto das bandeiras atuais. E lá resistir e de lá voltar para osGuararapes de amanhã. Já que é pela liberdade que se luta,

    que nossa independência se firme solar e decisiva, erguida sôbrea técnica e regada pelo sangue útil do petróleo que você anunciou.Sem o que, teremos que usar o chuço do Conselheiro, o

    cassetete dos Xavantes e o mosquetão que tenazmente derrotoutodas as Holandas da nossa história. E usaremos.

    Que em tôrno do Urupês de hoje, se restabeleça, pois,

    Lobato, a rocha viva  que Euclides sentiu na Stalingrado jagunçade Canudos.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    29/134

    Correspondência

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    30/134

    frutos da 'paisagem do café'...". Evidentemente a expressãoterra roxa  substitui a outra com vantagem, dando-lhe um colo-rido que valoriza a frase e vai bem ao assunto... Não é aprimeira vez que uso essa expressão falando de Portinari.Quando escrevi, dez anos atrás, o primeiro artigo entusiásticoque teve o pintor paulista, falava na "terra roxa de Brodowski",e êle que vinha de lá, estava a meu lado, era meu íntimo amigo,compreendeu. Pelo menos nada opôs. Aproveitou-se você, Léo,do lombo do missivista para insinuar que eu nunca pus os meus"mimosos pèzinhos" no sertão. Leia êste volume de Marco  Zeroe verá que andei alguns anos entre grileiros, derrubadores demata, xerifes, etc., e não foi por diletantismo e sim para ganhara minha vida. Isso, Léo, não é nenhuma glória. Apenas vocês

    que fazem uma guerra infernal à arte moderna   aproveitam-se detudo para se darem um grande ar de entendidos, jogando paracima de nós o estulto rótulo de improvisadores e palpiteiros.Vocês é que são uns imperdoáveis preguiçosos mentais, soli-dários com o ancilóstomo no retardo bucólico dêstes intelectuaisBrasis. Que culpa tenho eu, Léo, de um ou outro escriba se

    contentar com a rodinha de missivistas que provincianamente seregozijam ante uma anatolice blindada ou apaixonadamentedefendem a sociologia de catálogo e suas proezas? Extasiam-seenquanto o gênio esquecido se põe a fazer tais piadas que sãocomo bombas-relógios que funcionassem adiantadas. Pois antesdas mesmas se formularem, já a turma tôda se contorce, con-

    trafaz e ri gozando o nosso definitivo desastre A cada liqui-dação de nossos esforços feita pela igrejinha ressurgimos no

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    31/134

    público a que minha consciência de escritor obriga. Perco, éverdade, uma porção de admirações preciosas como a do Sr.Zampeta, mas prefiro continuar e continuarei.

    Não pense, no entanto, meu caro professor, que teimo emfazer hoje Semana de Arte Moderna.   Deixo isso a alguns com-

    panheiros ilustres de jornada (o Sr. Mário de Andrade, o Sr.Portinari).  Marco   Zero   é um livro que vai surpreender os queesperam os modismos e os cacoetes que tão gostosa e justamenteempregamos na fase polêmica da renovação literária. Nessetempo eu escrevia:

    "Losangos tênues de ouro bandeiranacionalizavam overde dos montes interiores. No outro lado azul da baíaa serra dos órgãos serrava". ( Memórias  Sentimentais   de

     João Miramar    — 1923).

    Hoje eu escrevo assim:

    "O céu por cima das árvores estava copado de estré-ias. Elas ligavam-se à alta folhagem dos jequitibás. Silhuê-tas de palmeiras suspendiam fachos tropicais na noite. Uma

    canjarana estorcegava-se para o alto Jango escutou ge-midos surdos um e outro grito teimoso e o assovio do

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    32/134

    Essa necessidade de modernizar é de todos os tempos.Distraia-se um pouco, meu bom Léo, das suas pescarias lendoGiorgio Vasari. Perderá você um ou dois mandis, mas ganharáem troca certas úteis informações. E verá, meu caro Jeremiasdos tempos revoltos de hoje, que Giorgio Vasari, o grande críticodo Renascimento, fala sempre e insistindo em exaltar, na ma-

    niera moderna  de Leonardo da Vinci e de Rafaelo Sanzio deUrbino, esses que são hoje os clarins supremos do classicismo.E o são justamente porque foram "modernistas". Se não ofossem, aguavam repetindo Giotto e Cimabué, em vez de pro-duzir a língua nova da Renascença.

    Em São Paulo, no meio dos esqueletos gigantescos dos

    arranha-céus, permanecem certas ilhas quietas onde ainda sepesca à linha. Ê nessa sombra vadia que se açoita o espíritodos que acham que a estética atual reside na cachumba de certostarados que o modernismo retrata e define. São os mesmos que,por exemplo, só vão enxergar escabrosidade no grande filmeque é  A  Mulher    do  Padeiro.   Foi a opinião até de certa crítica

    nossa, enquanto que um jornalista americano, citado oportuna-mente pelo Sr. Décio de Almeida Prado, vê os horizontes dessamonumental criação da França estenderem-se a Debussy e àmitologia helênica. Deve ser porque em New York não se pegamais traíra. Nem há mandis.

    É o que tinha a dizer seu ex-corde que paciente espera

    que você e seus aficionados encontrem vasto campo para cor-reções abelhudas e sábias no presente livro que lhe oferece

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    33/134

    Bilhete Aberto

    (De São Paulo)

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    34/134

    se queixe você depois da injustiça de lhe vestirem uma camisolacolorida, em você que sempre se disse um adepto emburradoda tanga, do cocar e do tacape.

    Nós sabemos, porém, que esses utensílios da ferocidadenativa fazem parte duma barraquinha de vaticínios amáveis quehá anos você carrega nas costas como o homem do periquito.E que as suas canções nativas são como êsses bonecos de cerâ-mica que representam Pai João e Peri, Anhangüera e D. PedroII, mas que vêm da Alemanha, fabricados em série. Porque asua literatura, rotulada de nativismo, não passa de macumbapara turistas. E uma vez desatada a fitinha verde-amarela que

    recobre o seu pacote de símbolos, só se encontram nêle o MartimCererê, o Caapora, o Saci e outros ratões que nunca penetraramna corrente folclórica da imagiária nacional. Se sua prosa lite-rária é melhor que a sua poesia, não sente ela nenhuma vocaçãopara os roteiros da liberdade e para os caminhos do futuro. Epor isso, dela restará apenas um estilo duro, robusto e pedre-

    goso a serviço dum oportunismo mole e adulão. Que adiantaisso, meu feliz e vitorioso c. R.?

    Sabendo disso, por que lhe escrevo? É que minha ingenui-dade é das mais tenazes do mundo. Quando você iniciava seu

     jornalismo no Rio, fêz para mim profissões quase que liberais.Se açodadamente convidou alguns fidelíssimos servidores donazismo para honrar o seu suplemento também nêle agüentou

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    35/134

    vir a convencer-se de que Júpiter ensandece mesmo os homensque deseja castigar. E castigo não pode haver maior do quea marca da traição ao espírito.

    Sou sempre o

    O. A

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    36/134

    Carta a um Torcida

    M EU velho José Lins do Rego

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    37/134

    se comprazem os sessenta de Picasso? Será preciso citar WinstonChurchill?Você sabe pois que a idade não é cronológica. De modo

    que, quando lhe devolvo o epíteto de velho, não é porque vocêesteja quase me alcançando na casa dos cinqüenta ou dos setenta,nem me lembro mais... É porque, desde que teve bigode,você foi o maior ancião de nossas letras e o cacête mais tene-broso do Nordeste de livraria. Você quando escreve artigos,vira até velha, tal a insuportabilidade dos seus cacoetes vulgares,dos seus domésticos pontos de vista e dos seus rancorosos einsolúveis transes de idade-crítica.

    Não li a grosseira diatribe que você publicou contra mim,mas não me faltaram as boas almas que trazem sempre nosabraços o pêso do coice que recebemos à distância.

    Foram lhe dizer, consta, que eu envenenara aqui a brilhan-te polêmica que você manteve com um cronista esportivo sobreum beque do Corintians. Eu teria dito que, no calor da contro-

    vérsia, você ofendera São Paulo, o que deixava de ser plausível,pois você possui uma tal finura que quando abraça produzequimoses e quando quer valorizar o nome arrevesado do seugrande amigo, aquêle que foi secretário do primeiro ditador daEuropa moderna, chama-o de Otto Rino Laringo Maria Car-peaux...

    Vou antes de mais nada lhe contar o que faz um homemd d d b d b l õ d

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    38/134

    Era naturalmente uma bomba! Vista e examinada a bes-teira que fôra pesada pelo seu justo valor, teria você recorridoao compatriota de Hitler que lhe serve de  tony,  o qual, depoisde esgares, gestos e estalidos, sugeriria aquela gozada interpre-tação: campos? Você falara dos campos de futebol e a brocanão era evidentemente a dos cafèzais!... A platéia paulista

    riria muito se não houvesse ficado por aqui um amargo gôstode pedrada na bôca. Voltou você, em seguida, a perguntar aoseu diligente lago de picadeiro, como diminuir os efeitos da de-sastrada aventura e êle, depois de dois meses de telemorse, ter-se-ia feito compreender:

    — O-O-O-O-O-O-x-wold! — E passaria eu salvadora-

    mente, a ser o objeto de suas cafajestadas e o bode expiatóriode suas ratas!Porque, primeiramente, tenho o natural descuido de um

    homem que trabalha, pelos seus arrazoados, mesmo quandoversem sobre o ilustre zagueiro Domingos da Guia. Portanto,não seria eu quem fôsse azedar a morna coca-cola que você

    oferece pelas colunas dos jornais. Que tempo tenho para cons-tatar que você, como excelente torcida uniformizada, pulou acêrca no jôgo de interesses Flamengo-Corintians? E que culpatenho de você fazer do futebol uma espécie de nu-artístico, porcujas poses e quadros-vivos se desfalece na idade que caracterizaos seus entusiasmos?

    Você faz do futebol uma cantárida emocional para essa

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    39/134

    E seria até muito salutar que você indicasse tão útil cami-nho de sublimações ao seu particular amigo Maria, cujo senti-mento de culpa deve ser maior e estar mais encurralado que oseu, pois, na história do fascismo, a figura sinistra do pseudo-mártir Dollfuss é muito mais importante que a do fracassadogalinha-verde a quem você dedicou os seus primeiros arroubos

    políticos. Assim, iriam ambos nas efemérides, dentro dum táxiespantoso, para o campo do Vasco — êle gago de emoção, vocêaos berros e aos pinchos, nesse dionisíaco delírio que, dentro domundo em fogo, ainda conseguem levantar para os eleitos, ospés de ferro de Domingos e o couro mágico de Leônidas.

    Apesar de indicar isso tudo que você cada vez mais se afas-

    ta da literatura e se atola no futebol, sei que não deixou de tersido motivo das suas malcriações o fato de, num recente  Tele- fonema   para o Rio, haver eu colocado diante de suas suadascondecorações de violeiro, a figura de mestre do romance quevai sendo José Geraldo Vieira. Para êle, a maturidade serena ea velhice só podem ampliar a posição de humanista e firmar o

    clímax da criação. Para você, para os seus sessenta anos, sobra-rão os abraços dos craques, a carona na chopada dos clubes, arouquidão e o espasmo dos estádios. Quem negará ao futebolêsse condão da catarse circense com que os velhos sabidos deRoma lambuzavam o pão triste das massas? Não podendo xingaro patrão que o rouba, o operário xinga os juizes da partida e pro-

    cura espancá los como se o bandeirinha mais próximo fosse od d ê i d bí i d i i d

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    40/134

    aposentados, pedincharem tostões, de muleta, no crepúsculo agi-tado dos redondéis?Não sei qual a solução social que se dá ao caso dos joga-

    dores inutilizados nos encontros e aos quais se nega qualquerrenovação de contrato ou qualquer garantia que os socorra eindenize. Sei apenas que êles penosamente se mexem comágua-no-joelho, canela furada, equimoses, tuberculoses e trau-mas, sem amparo e sem emprêgo, encostados muitas vêzes dra-maticamente à família pobre, donde os arrancaram. E você,com uma invejável alegria, é um dos mais alentados padrinhosdessa transferência nervosa que faz escoar para os gramados asenergias do povo, narcotizado nas parcas horas que lhe sobra-riam para assuntar. Eis a orgulhosa fé de ofício com que vocêse apresenta, olhando com desaforo os que, como eu, nuncaarranjaram assim, popularidade, êxito ou fixação nas prateleirashierárquicas dêste fim de mundo.

    Nas letras, também está você definitivamente colocado. Aposteridade já o julgou. Não há prefácio, concurso de MissLiteratura ou banquete que possa reacender o fogo-morto de

    sua obra de ficção. Você é o Coronel Lula do romance na-cional.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    41/134

    Destino da Técnica

    ê d i

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    42/134

    da técnica e portanto do intelectual de nossos dias... É a ci-ência que acaba derrubando a aventura. ..— Se você conduzir até o fim o seu pensamento, acabará

    reabilitando tudo que foi por muito tempo desprezado. Que-rerá você insinuar que vão vigorar as loucuras de Augusto Comtee sua previsão de um govêrno do mundo por uma ditadura de

    sábios?— De uma maneira inesperada e creio que transitória, éo que está acontecendo. Outro dia assisti Roger Caillois fazerdiante de Samuel Ribeiro, a apologia entusiástica de um pontode vista proposto por James Burnham. .. Você conhece o livrointitulado  A Revolução dos   Managers?

    — Não conheço, mas deve ser uma dessas construções fan-tasistas, ou se você quiser, dessas digressões originais e auda-ciosas pelo campo da erudição e da cultura, de que Sorokinparece ser o representante máximo nos Estados Unidos. Umaespécie de Wells mais sério e mais ao par...

    — Talvez. Traz, em todo caso, a marca da literatura de

    uma era ciclópica, onde tudo se anuncia em grandes linhas. Asociologia que hoje interessa é justamente essa, uma espécie desociologia de estádio, para ser vista na tela mais do que exami-nada no recolhimento de um gabinete de estudo. Justamentediante de Samuel Ribeiro que não escondia suas simpatias pelabota-de-sete-léguas de Sorokin e seus esquemas idealistas, o jo-

    vem cético francês opôs ao autor da Crise de Nossa Época aconstrução e a crítica do mundo moderno vistas por Burnhams

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    43/134

    — Bem, no que há êrro é no retilíneo... Se êle tivesseutilizado como Marx da arma hegeliana de dois gumes, acertavano seu prognóstico progressista.

    — Já vem você com a dialética!   Isso é uma consagraçãodo subterfúgio.. . É uma palavra que liquida qualquer discus-são . . . É como o outracoisismo que o Léo Vaz quer tirar de

    Cocteau! Olhe, em certo cenáculo intelectual de Paris, proibiu-seo uso da palavra  dialética.   Só assim...— De fato. Quando sôbre alguém converge uma ponta

    de lança do pensamento lógico e vai-se assistir a uma espetacularempalação, o adversário desaparece no mais inédito desvio decorpo e fica sôbre o vácuo desconcertante a ofensiva mais pro-

    missora. Mas você não pode negar que a reabilitação prováveldo pensamento de Spencer só pode ser feita dialèticamente. . .— Eu prefiro falar sôbre o precursor da sociologia de es-

    tádio que foi Augusto Comte. . .— Os modernos são mais interessantes. Fizeram-me há

    dias presente de um dos melhores livros de Edmund Wilson,

    intitulado  To the Finland Station.  Ê a sociologia de estádio comque a burguesia se despede nas mãos da técnica. Ou querendocontinuar, se desvia no labirinto suspeito de Max Eastman.. .

    — O trotskismo. ..— A ficção social contra a ciência. É o caráter que tomam

    essas bíblias da atualidade. Desde que os passos dos Césares

    foram anunciados pela sociologia ficcionista de Spengler essast õ féti it d i t t

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    44/134

    libertar da natureza pela técnica, a de se tornar o senhor e nãoo escravo da máquina. No entanto, que fizeram os pastorescegos do individualismo? Utilizaram a ciência e a técnica parablindar suas legiões antropofágicas... Para espezinhar o vizinhoe o antípoda em nome de princípios nascidos em outras con-dições econômicas e sociais.. .

    — E hoje superados...— Para desmentir portanto tôda a finalidade da ciênciae da técnica, que é a paz e a igualdade entre os homens.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    45/134

    Poesia e Artes de Guerra

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    46/134

    Tenho a ignorância dos cancioneiros e meus recursos não vãoalém do§ da Gaya §çiçnz,a, §pu um homem da aurora.

    ComprareiO pincel do Douanier

    Pra te pintarLevo pro nosso larO piano periquitoE o  Reaâefs DigestPra não tremerQuando morrerE te deixarEu quero nunca te deixarQuero ficarPrêso ao teu amanhecer.

    Percebi que o homem grave tinha uma vontade decidida

    de me espancar.— Escute mais:

    Te apresentareiTomás Moras

    Frederico Garcia LorcaA b d f d

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    47/134

    A môça enastraEnforca, empalaÀ espera eternaDo NatalPesventra p ventre donde nasceuA neutra equipe dos sem luar

    No fundo fundoPo fundo maj:

    Da podridãoAs sereias

    Anunciarão as searas.

    Outra noite, Abguar Bastos, o romancista de  Safra,   entre-vistando-me para a revista  Diretrizes,   me fêz dar um largo pas-seio pelo começo desta era que viu D'Annunzio e o embaixador

    Davies. O assunto era um velho assunto, Como é que começoua renovação literária do Brasil? Quem foi que inventou a Se-mana de Arte   Moderna?

    Em 22, nós, da  Semana,  agimos como semáforos. Anun-ciamos o que se cumpriu depois, o que está se cumprindo anossos olhos.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    48/134

    glêses. Mas quem começou? Quando começou? Por que co-meçou?Quando começou o pandemônio? Em 1917, com a entrada

    de Lênin na velha capital dos czares? Em 14, quando um estu-dante em Serajevo, alvejou o herdeiro do império austro-hun-garo? Ou antes, na batalha naval de Suiushima? Ou na guerra

    dos Boçrs, quç foi a primeira nota do séçulo anti-imperialista?

    Passe-se dêsse fremente quadro de acontecimentos para ocampo das letras e das artes e ver-se-á como também aqui sepronunciou o caos do mundo nôvo.

    Quando  CCÍUCÇOU?  Com o manifesto futurista de Marinetti,que afirmava ser a guerra a única higiene do mundo? (Êle talveztivesse acertado se dissesse "de um mundo", do seu mundo, istoé, do mundo de Mussolini). Teria começado com a geometri-zação dos primeiros cubistas, de Picasso e de Braque? Ou antes,no óvulo do impressionismo, quando Cèzanne fêz tremer a cer-

    teza das oleografias geniais de Dominique Ingres? Ou com ogesto ingênuo do povo que vinha nos cartões postais do doua-nier  Rousseau?

    No Brasil, sabe-se quando começou. Foi com a Semanade  Arte Moderna  de 22, que precedeu de alguns meses o levantedos Dezoito do Forte de Copacabana.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    49/134

    A música também. De Vila-Lôbos a Mignone. A música, láfora, já produziu em plena guerra a sinfonia da defesa de Le-ningrado. Shastakovich.

    Tudo isso me veio à cabeça quando deixei o homem ruivoe severo, profundamente chocado com os humildes versos quelhe disse.

    Poesia e artes de guerra não podem ser frutos das vinhasda paz.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    50/134

    Fraternidade de Jorge Amado

    D Á t d d Dá t d dÊ

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    51/134

    num dia só de débâcle   do café, em 29, perdi tudo — os que sesentavam à minha mesa, iniciaram uma tenaz campanha dedesmoralização contra meus dias. Fecharam então num cochi-cho beiçudo o diz-que-diz que havia de isolar minha perseguidapobreza nas prisões e nas fugas. Criou-se então a fábula deque eu só fazia piada e irreverência, e uma cortina de silêncio

    tentou encobrir a ação pioneira que dera o  Pau-Brasil,   dondeno depoimento atual de Vinícius de Moraes, saíram todos oselementos da moderna poesia brasileira. Foi propositadamenteesquecida a prosa renovada de 22, para a qual eu contribuí coma experiência das  Memórias Sentimentais de João Miramar.Tudo em tôrao de mim foi hostilidade calculada. Aquilo queminha boa-fé pudera esperar dos frios senhores do comércio,veio nos punhais de prata com que falavam os poetas, os crí-ticos e os artistas. Resignava-me ao clima absoluto da solidão,quando encontrei Jorge Amado. E dessa criança que tinha es-crito um livro — o  País   do  Carnaval   brotou uma tão tenaz eefusiva assistência a tudo que eu fazia, que agradeci ao destino(dirigido sobretudo pela economia) a ingratidão de seleta dosmeus antigos comensais. Ia reiniciar minha existência literáriaao lado de alguém que representava realmente uma geração. Eêsse alguém se chamava Jorge Amado. Prosseguiu a luta epermaneceu a pobreza. Quando eu ia ao Rio, não mais paraos estofos dos grandes hotéis, onde a imprensa me visitava, maspara um modesto quarto de 5$000, num hotelzinho da Lapa

    h á d R b li h P l J i

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    52/134

    público, que se alguma coisa pode constituir honra para mim,é essa de ter sido colocado por um júri capaz, ao lado de JorgeAmado e ver o primeiro volume de  Marco   Zero   ter sido indi-cado com  Terras   do Sem Fim   para representar o Brasil num

    certame literário estrangeiro.

    Nas regiões do mito a psicologia tem um papel simplesmentemotor. De modo que as figuras homéricas de Jorge Amadodispensam o aprofundamento interior. Elas são míticas, repre-sentativas e simples. Seu clima é a ação, sua persuasão é aaventura, sua finalidade é a sobrevivência, seu poder é a sim-

    patia.Está pois aí, fixado em coordenadas homéricas, o cicloinicial do cacau na Bahia.  Terras   do Sem Fim   transcende doromance, é obra de rapsodo e canto de bardo. E nada maisajustado à natureza poética de seu autor, que aquêle desfilarheróico de capangas e sicários, de advogados e coronéis, de se-nhoras românticas e mulheres de má vida, no drama da conquistada mata pelos primeiros latifundiários baianos.

    Não há figura que se destaque nesse livro admirável. Oback-ground   formiga de heróis vivos, de heroínas puras e sim-ples. As mulheres de Tabocas e Ferradas são de uma singeli-dade bíblica. Os negros matadores também. Tôda essa genterealiza, no Brasil do cacau, o primeiro avanço da civilização ed i E i hi tó i ô i d t

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    53/134

    Sôbre o Romance

    i f d li id

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    54/134

    À  Carta a um Jovem Poeta de Rilke fica de pé. Quando aemoção se torna gesto, palavra. . . Converse com qualquer ro-mancista de verdade e êle dirá a você que não tomou parteconsciente na elaboração de suas figuras. .. São uterinas. So-freram uma laboriosa maturação interior onde a censura nãointerveio. ..

    — Claro! Mas a cultura que não passa de censura é quedispõe da trama. Veja o debate do romance moderno comose tornou um debate cultural, um debate ideológico...

    — Quando começa o romance moderno? Eu creio quecomeça com as  Memórias   de Casanova. ..

    — Não diga isso. Então remontaríamos a Rabelais.. .

    Falemos do romance cronològicamente moderno. Deixemos atéFlaubert e o Casanova objetivo que foi Maupassant. . . Deixemosisso tudo.

    — Comecemos então com Apollinaire...— Não. Apollinaire foi uma proeza modernista. Mas eu

    quero o romance mesmo.

    — Então, quem é que começa o romance moderno?— Joyce. Guarde a data da publicação do  Ulisses.— E Thomas Mann e Proust?— Você citou bem. Mas ambos terminam e não começam.

    Terminam uma civilização. É preciso, no entanto, não confun-dir Mann e Proust, seria confundir a Alemanha com a França.N i á ti d d l Hitl Pét i i i M

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    55/134

    — Vamos parar! Você quer falar do romance ou não?Você nega que a França tenha dado os maiores romancistas doséculo passado? A Alemanha não cultiva êsse gênero.

    — A Alemanha deu só dois romancistas até hoje. Ambosdo século XIX. Goethe e Mann.

    — Mann está vivo nos Estados Unidos.

    — Eu sei. Mas você não entende que, melhor do queninguém, êle exprime o século passado? Mann é Goethe nosnossos dias, e não sai das fronteiras de Weimar. É incapaz decompreender o mundo atual. Estamos vendo isso na sua para-lisia ante os acontecimentos desta guerra. Talvez porque tivessefeito o levantamento de uma cultura, a cultura humanística bro-

    tada da Alfklarung. E ficasse marcado por êsse esforço. Háum romantismo que começa em Goethe e termina em Mann.É um ciclo. O romantismo que ficou clássico, porque justa-mente escapava ao que a burguesia tem de mais sincero e re-pugnante — a exaltação do lucro, frio. Ainda aí a Alemanhaé diferente. Ela continua na Floresta Negra, devido, com cer-

    teza à derrota dos camponeses rebeldes que a Reforma sa-grou ...— Você tem razão nesse ponto. Hitler quando conspi-

    rava contra o mundo e planejava os seus golpes espetacularesde Munique a Stalingrado, ia se inspirar, não nos mapas e grá-ficos dos seus estados maiores técnicos. Ia para a floresta...

    — Berchtesgaden. É Wagner. É Nietzsche, sua modestat di ã É B h f A t ib t i i d lh

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    56/134

    gen e, portanto, dos corredores fantasmais de outro enorme poeta— Rilke.. .

    — Mas o romance?

    — Há um só romance alemão que se distancia bem dastrompas de Lohengrin. Ê Werther tornado Hans Castorp quevê um século inteiro — o século que há entre ambos — passar

    numa ilha cultural para onde foram conduzidos alguns náufra-gos da tuberculose e do mundo burguês. . . Não há solução emMann...

    — Há! Não diga isso! Você não pode negar a importânciadaquele grito final d y A  Montanha  Mágica...

    — É o grito da cultura humanística contra a guerra.. .Mas o próprio Mann não soube achar o caminho para o diaseguinte da batalha do Marne. . . caminho que já fôra encon-trado a Leste. Meu caro, em matéria de romance nada há quemarque o comêço de nossa era como um romance russo daúltima década. É a  Energia  de Gladkov, o seu grande livro,

    é o livro da humanidade que hoje os acontecimentos descorti-nam. É o romance da construção socialista. Então, já comêste nôvo marco, você pode ver claro na matéria que deba-temos. Há um marco final que é dado pela  Montanha Mágica.Um marco inicial dado pela Energia,   de Gladkov. E um grandemarco antinormativo que é o  Ulisses   de Joyce. O resto é sub-

    lit t

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    57/134

    — E Lawrence, em função da decadência a que chegoua sua classe... Uma decadência que deu o clarão psicanalí-tico de Proust, as colegiadas de Gide e de Cocteau.

    — E a ala vanguardeira. . . Aragon e Malraux?

    — Uma espécie de comitê de libertação do mundo...com muita glória e poucas armas...

    — E a América? Você se esqueceu da América. ..— A América forneceu a mais bela ilustração para a

     Energia   de Gladkov, A cidade de amanhã tem ainda uma re-taguarda agrária. É o caminhão que percorre as  Vinhas da   Ira.

    — Ora! Você só fala piada...

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    58/134

    Qual o Mussolini que VamosEnforcar?

    fi i li

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    59/134

    Só a burrice pesada e a malandragem alígera não compre-endem que a estrutura íntima dos sistemas mais opostos foiposta à prova e que uma insanável desmoralização atinge osfalsos regimes construtores, os falsos patriotismos e os cruéisnacionalismos de fachada. Essa chantagem de aliviar o mundode dragões imaginários foi empregada até os últimos tempos pelabôca facinorosa da propaganda eixista. O fáscio, como o na-zismo, persistiam nos seus bons propósitos. Queriam salvar.Quando não para salvar o mundo ocidental do  caos asiáticoque Lênin deu à Rússia, era para salvar os cordeirinhosenfeitados da terra, das garras do imperialismo anglo-americano.Evidentemente foi pôsto à prova o  caos  russo como a ordemitaliana  e a decadência   da democracia. Bastou a bota invasorapisar a fronteira soviética e milhões de quislings pulularam. Nãohouve nem Moscou nem Stalingrado nem guerrilheiros ressus-citados dentre montões de cadáveres para estagnar a morte me-cânica dos  tanks.   E a Inglaterra continuou a brigar de guarda-chuva. Ao contrário, ante a invasão da Sicília, a camisa preta

    enfunou no peito atlético da Itália fascista. E da sacada dopalácio Chigi, em Roma, o  Duce  (que podia ter recebido, paratranqüilidade do seu povo, aquela bala profética do general Ca-pielo) pôde afirmar ao mundo que o salvara das garras dadesordem democrática e da incapacidade construtora do mar-xismo.

    V j Hi l M li i i d

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    60/134

    aquela pavorosa operação de Munique, sem anestesia, sob o guar-da-chuva cumplicial de Chamberlain. E o mundo viu o resto.

    Essa montanha de absurdos titânicos que as condições his-tóricas do progresso humano repeliam, tem agora, na bôca dos

    gatos-pingados do fascismo, uma justificativa — Mussolini foium grande homem porque ensinou a Itália a tomar banho. Dequê? De sangue! E pôs os trens nos horários? Para quê? Parachegar à hora certa nos encontros do Passo de Brener, ondeiria conspirar contra milhões de vidas humanas e decretar adestruição implacável da Europa inteira!

    É preciso abrir roda em tôrno das carpideiras açodadasque fazem o velório do fascismo. Quanto mais o chôro fôr degrande estilo, mais êle merecerá cuidado. Não quero acreditarde modo nenhum nas más intenções dos que têm a calva verdeà mostra. Há nos que ousam num momento dêstes arriscaruma lágrima política pela morte pouco espetacular do  Duce,

    um certo desprendimento que não existe nos que pretendem atodo custo consertar irremediáveis situações ideológicas. O queme preocupa, não é a traição barata, feita a prestações de sor-risos, penitências e conselho. É a grande traição à marcha hu-mana, tentada por certos solitários que o saudosismo de erasidas prestigia e convoca.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    61/134

    mer, enquanto os ricos podem continuar a tubaronar à vontade,porque Belzebu é dono de suas almas e de seus desprevenidosdestinos.

    De modo que em nada me espantou o gesto do autor doCuré de  Campagrte,   acendendo também sua vela fidalga ante oesquife político de Mussolini. O Sr. Bernanos conhece a eti-quêta. Para um intelectual que beija a mão de príncipes pa-lermas (não porque sejam palermas, o que constituiria umato de humildade cristã, mas porque são de sangue azul, (olá!),não seria de bom tom deixar de pingar cêra no cortejo final docondottiere.

    O Sr. Bernanos é contra a idolatria do dinheiro. Hitlertambém era. Mussolini também. O socialismo do pintor detabuletas e a  revolução   do inventor da Itália  proletária   derama guerra. O Sr. Bernanos conservou-se historicamente mais mo-desto e reservado. Não teve nem sacadas nem estádios. Feliz-mente. Engoliria o mundo, em vez de galvanizá-lo. Porque asua forma de anarquismo cristão mata à distância. Não é pes-simismo o que dêle emana, É tédio, o tédio dos avós que vivemdemais e querem a tôda ocasião contar seus namoros frustros,suas desventuras banais, suas desilusões e seus mêdos.

    Está provada a unidade do troglodita. Hitler-Mussolini, os

    d i d d i dú i b d di d h d i d C êl

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    62/134

    Antes do "Marco Zero"

    S EGUNDO

    S A ô i Câ did i i dl i é l d ! C ê?

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    63/134

    Tudo isso não passou de sarcarmo e pilhéria! Porque a vigilanteconstrução de minha crítica revisora nunca usou a maquilagemda sisudez nem o guarda-roupa da profundidade. O Sr. An-tônio Cândido e com êle muita gente simples confunde  sériocom  cacête. Basta propedêuticamente chatear, alinhar coisasque ninguém suporta, utilizar uma terminologia de  in-folio,   paranesta terra, onde o bacharel de Cananéia é um símbolo fecundo,abrir-se em tôrao do nôvo Sumé a bocarra primitiva do homemda caverna e o caminho florido das posições. O caso do Sr.Antônio Cândido é típico. Estão aí, da sua idade, com valortão ou mais autêntico do que o seu, o Sr. Luís Washington, oSr. Rui Coelho, o Sr. Mário Schemberg, o Sr. Edmundo Rossi,o Sr. Almiro Rolmes, o Sr. Carlos Kopke e outros, mas o "crí-tico" ficou sendo êle. Fala já por delegação da posteridade eem nome dela decide. Para isso, de dentro do capote da "se-riedade" tira economicamente três sorrisos: um sorriso fino, umsorriso cético e um sorriso mineiro, neste último entrando algumlatim e muita malandragem.

    Foi com o sorriso fino que o Sr. Antônio Cândido encerrouo seu artigo de domingo. "Mas não será isso uma questão degerações?"... Traduzindo, quer êle dizer que a geração de 22,que me deram de presente, "esquece freqüentemente no entu-

    i d f d i d i li

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    64/134

    tido (do sentimento amoroso brasileiro)  Os  Condenados   ocu-

    pariam no Brasil uma posição análoga à que ocupa na França Madame   Bovary. Ê o  fim de uma certa concepção do amor,é o ponto final de uma época que começou com Machado deAssis. Machado é a introdução do amor romântico no interiorda família burguesa; Oswald é a decomposição dêsse roman-tismo amoroso." O Sr. Antônio Cândido, multiplicando tôda

    a sua argúcia cultivada no convívio universitário, não viu nadadisso. A humanidade d'  Os  Condenados   já fôra, no entanto,percebida há vinte anos pelo Sr. Carlos Drummond de Andradeque dizia: "Êsse romancista sabe torturar e sabe emocionarcomo os russos." E até pelo Sr. Afrânio Peixoto que situavameu romance de estréia entre Charles Louis Phillippe e Dos-

    toiévski. Monteiro Lobato afirmava: "A vida de Luquinhas res-salta vivida, primorosamente cinematografada." E o Sr. Astro-gildo Pereira, cuja importância é indiscutível, disse:  Os Con-denados   são o livro de uma geração," Mas vamos defrontarainda. Afirma o Sr. Antônio Cândido: "São tentativas falhadasdo romance revelando aliás um Oswald de Andrade diferenteda lenda: profundamente sério, não raro comovido e roçandofreqüentemente, por inabilidade, pelo ridículo de um patéticofácil e gongórico". Esse patético, fácil e gongórico é vistoassim pelo Sr. Rober Bastide: "A arte do Sr. Oswald deAndrade não é uma arte de análise, mas de síntese, de cons-trução e de condensação poética". "Ritmo geral, do comêçoao fim do livro, de uma fatalidade não externa, mas interna,

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    65/134

    wald de Andrade, com o Pau-Brasil,  marcou definitivamente umaépoca na poesia nacional".Sou obrigado a desatar êsse maço de cartas de namorado

    para confirmar o que insinuei: que o Sr. Antônio Cândido éque é trêfego, leviano e mineiro (mineiro no caso significa alunodo Caraça e sovina). Pelo menos êle o foi nesse artigo açodado

    de paixão partidária, mais feito a pedido de diversas famílias,para atirar um salva-vidas ao naufrágio modesto do Sr. TitoBatini, do que para me situar. Disponho-me a fazer chegar àsmãos do jovem crítico as  Memórias Sentimentais   de  João   Mi-ramar.  E aviso-o de que se trata do primeiro cadinho da nossaprosa nova. Prosa de que inütilmente os modernistas tentaram

    fazer moeda, pois veio logo o grupo — grupo e não geração doSr. Antônio Cândido, voando pesado como Santa Rita Durão,normativo e gravibundo como se descendesse de Bulhão Pato.

    Eu costumo atirar a bola longe, não tenho culpa dela passarpor cima da cabeça do Sr. Antônio Cândido e ir atingir sensibi-lidades mais vivas, mais altas ou mais jovens. Êle não deu

    nenhuma atenção, no seu balanço, à minha obra poética nem àprofecia de meu  Teatro.   Outros darão. Para êle será falhoSerafim   Ponte Grande.   Mas outros possuem os códigos úteis àexegese dêsse  gran-finale   do mundo burguês entre nós. Tam-bém para mim vai ser, entre outras delícias, uma experiência,a prova dos nove que espero com a próxima publicação do

    M

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    66/134

    no Brasil. No que ficamos? Sou gongórico ou cinemático? Aelucidação culta do Prof. Roger Bastide decide, pondo em desta-que a fotomontagem d'  Os  Condenados.   "Não nego que oestilo seja o estilo poético, pela sua riqueza, pela côr de seuvocabulário, a música de suas frases. Mas a poesia está sobre-tudo nessa brusca irrupção no meio das imagens presentes, dasimagens passadas, imagens herdadas, sejam conquistadores portu-

    gueses ou negros portadores de bandeiras, 'pedaços anacrônicosde meia-idade', em plena São Paulo trepidante, febril, para aconquista do futuro. Não conheço nada mais belo no livro queesses momentos de super-impressão onde através dos arranha-céus que se elevam, os andaimes de construção, as usinas gigan-tescas e os homens ocupados na rua, bruscamente o Amazonas,

    o Amazonas da infância, da infância de Alma e de Jorge, desem-boca rompendo todas as frágeis barreiras da civilização e rolana sua onda formidável, seus troncos de árvores por entre osautomóveis, suas ilhas arrancadas da margem por entre oscordões do Carnaval e afoga sob as águas do fundo da memóriao  atelier  do escultor. .."

    Quanto ao Sr. Tito Batini, êle me apareceu com a maisalta das credenciais. Era um ferroviário que queria escrever.Se todos os ferroviários, que garantem com os seus braços omovimento e a vida do país, houvessem tido os estudos e as

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    67/134

    sua obra se ressentia do verdolengo e do tôsco. Era precisoesperar» amadurecer. Um romance não se faz sem um longorecolhimento ou sem uma vocação excepcional e irrevogável.Dêsse dia em diante perdi um admirador. E se fêz, fogueteiro,o lançamento do escriba. O seu volume foi apadrinhado peloguerrilheiro Rubem Braga, premiado por  Diretrizes,  traduzidopelo Sr, Putnan... Se houvesse prêmio Nobel, êle não escapava!Ao lado disso começou a brotar no editado uma importânciainsopitável. Ficou um pequeno-burguês triunfal! Ofereceram-lheum almôço. Deu filantròpicamente o almôço. Depois escreveuum artigo. Um artigo com prefácio. "Pequeno Romance deum Almôço." Começou assim: "Prefácio — O título veiodepois, quando bondosos amigos resolveram publicar essas síla-

    bas reunidas." Sílabas reunidas.. . Quem é que disse que oinconsciente também não faz piada? Essa não é minha, saibao Sr. Antônio Cândido. É do seu afilhado póstumo. Êstetrecho de seleta que aí vai também não tirei do diário de SerafimPonte Grande. Ê dêle: "Agora estou andando pelas ruas vendoo povo que vibra e me lembrando da homenagem. Vou escrever

    uma carta!"

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    68/134

    Aqui Foi o Sul que Venceu

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    69/134

    samente a de 30, em seguida a de 35, depois a de 36, a do 19

    semestre de 1937, a do 29, enfim, a dêle. E como eu lheperguntasse que tinham feito essas gerações, respondeu-me: —Estudado problemas.

    Na cabeça problemática dêsse rapaz o que havia era umadoença nova de que só a fotomontagem, no campo da ótica,pode dar um aproximado paralelo. Por fotomontagem, um

    bígamo casou três vêzes com a mesma mulher, só porque elatinha outra cara, e um business-man conseguiu descontar o mesmocheque em dois bancos. Por fotomontagem um sujeito morre econtinua vivo transferido no sucessor conjugai, o que provocapavorosas mágoas sentimentais no morto. Tudo se mistura, seinterpenetra, é metade de uma coisa, metade de outra, peixe e

    lanterna, prego, astral e telefone. E um rebanho disciplinado etemeroso luta pelas monstruosidades do fascismo pensando queluta pelo espaço vital de seu povo, indo acabar sem pão nemterra, com a singular agravante de ainda provocar a inesperadafome de outros sonhos de espaço que dormiam. Ladrão vestede polícia, guarda-noturno leva galinha e um padre, segundocontou o Prof. Berardinelli, apareceu com uma icterícia derecém-casado. Para essa barafunda espetacular, existe uma caixaonde débito e crédito são acarreados no fim da labuta trágicade cada dia mundial. Essa caixa se chama  Wall Street ,   e sôbreela se ergue sólido e intransigente o burguês americano. Se oburguês foi uma figura simpática, e até revolucionária na históriados direitos das cidades e objeto mesmo de uma obra-prima de

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    70/134

    campo de concentração de Harlem e inventa uma forma inéditade se exercerem os direitos do homem branco — a linchocracia.No desenvolvimento do atual conflito, o negro dificultosa-

    mente conseguiu formar batalhões para combater pela liberdadedos outros. Não me consta que tenha sido admitido nas elitesaliadas que encabeça a águia americana. Nesse assunto, uma

    grande lição tem pregado ao mundo a viva Inglaterra do commoti-wealth,  incorporando em seus exércitos vigorosos, tudo, até opróprio inglês. O inglês vindo de qualquer deserto, ilha ouiceberg  se bate, bate-se o americano e vai bater-se o brasileiro.Agora, que a cozinha da vitória funciona perfeitamente atirandoà mesma lata de resíduos o grande fundador do Impero  italiano,

    o  fuehrer    da raça imaculada e tôdas as galinhas verdes dacancerosa repercussão totalitária, cumpre dar uma espiada namanhã que vem surgindo. Para que foi tanto sangue gasto?Para que tantas mães choraram seus filhos desaparecidos nasterras de ninguém? Para que tantas viúvas moças se amorta-lharam e tantas crianças de tantos países vieram a conhecer odesespêro e a orfandade? Para, entre outras brincadeiras, conti-nuar intacto o mundo dos negros apartados como animais pelosólido burguês de  Wall Street?

    Perguntar-me-ão que tenho eu com isso, e eu respondereique neste Brasil luso-afro-europeu, nós representamos a vitóriada civilização do Sul, vencida lá em cima pelas indústrias do

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    71/134

    da independência. Percorram-se alguns livros indicativos danossa progressão civilizada e veja-se como Nabuco e EduardoPrado estão aí para acentuar a sólida repulsa que sempre nosocasionou o homem de negócios insensível e frio, com olhos dedólar e unhas de coveiro, falando um slang  de dar dor de ouvidose incapaz de entender o nosso "homem ctírdiaT que muito bem

    identificou S&gfcí Fuarque de Holanda em suas  Raízes do Brasil.No entanto, na própria América do Norte, temos uma

    faixa irmã — é a Luisiânia latina, católica e mestiça. Com essapodemos coincidir e nos entender. Não sem razão GilbertoFreyre volta para ela os seus amôres e preferências. Mas elarepresenta o Sul, vencido pelo industrialismo setentrional quedá o tom, o relógio e o câmbio ao mundo moderno. Se oBrasil é também o Sul, isto é, a mesma expressão de culturaagrária e sentimental, torrão de boa vontade e pátria do melting-

     pot,  aqui não sofremos ainda a interferência deformadora dosgrandes  parvenus da era da máquina. Ao contrário, entre nósalastrou-se e criou raízes em coordenadas de superior inteli-

    gência humana, a característica civilização luso-tropical que nosensinou a igualdade prática das raças e boa vontade como elodo trabalho, da cooperação e da vida. No continente americano,o Brasil é o Sul sensível e cordial que venceu.

    M Fl

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    72/134

    conquistas do  New Deal  e contrariar a orientação intervencio-nista e humanitária de Franklin Delano Roosevelt. E pior,querem fazer comparecer à mesa da paz, a fera insatisfeita dosseus apetites seculares. É a palavra autorizada do vice-presi-dente Wallace que adverte o mundo contra a ameaça dessa"nova tirania". Escutemo-la:

    "Há poderosos grupos que esperam tirar partido daconcentração de podêres no esfôrço de guerra para destruirtudo quanto Roosevelt tem feito nos últimos anos... Nãoera de desejar uma paz que nos livrasse do fascismo paracair sob o jugo dos governos de gangsters  manobrados por

    trás dos bastidores, pelos imperialistas enlouquecidos pelopoder do dinheiro".

    Toda vez que vejo um enviado cultural americano, lembro-me de um jurista que encontrei nas ruas escaldantes de Dacar,quando êste pôrto da África Ocidental Francesa não era aindao trampolim frustrado da aventura nazista.

    Eu ia só no difícil afã de identificar naquela África ásperae solar, alguma coisa de minha terra, a comida, os costumesimediatos, os pretos altos e hercúleos, quando vi o americanode cachimbo, chapéu tropical e bengala imperialista passeandotambém. Era tal a cara de nojo que destilavam os seus passos

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    73/134

    se orgulhar da mistura milionária que nos trouxe a África, comseus grandes nagôs, seus filões de cultura sudanesa e oriental eseus rijos e álacres trabalhadores do Benin e de Angola.

    Geralmente são êles os detratores da mestiçagem, os quecaluniam o Haiti de Toussant Louverture e aplaudem o "sanea-mento" aí feito pelos Estados Unidos. Se amanhã fôssemos

    "saneados" pelos tubarões de  Wall   Street,   com certeza nessesescribas é que se poderiam apoiar as metralhadoras imperialistase as razões de Estado da superioridade branca. E o pior é que,com máquinas, aparelhos e empreendimentos, viria também asociologia americana, que já tem aqui antenas e radio-escutas.

    A tese de Oliveira Viana de que soubemos manter, para

    felicidade nossa, uma muralha racista no caldeamento, só podeter uma lateral confirmação, suspeita e anacrônica, numa épocado planalto de Piratininga ou nos campos do Sul. Mas querepresenta por exemplo a característica zona germanizada deSanta Catarina, esta autenticamente ariana, em face do Brasiluno que nos deu a poesia de Gonçalves Dias, o romance de

    Machado de Assis e a sociologia de Euclides, altos rumos danacionalidade indicados pela mestiçagem? Será que a industria-lização de São Paulo seria fenômeno  branco? Até que ponto?Branco quando? Como? E por quê? Eis aí assuntos e pesquisasque, estou certo, já foram objeto dos carinhos de nossas escolasde sociologia.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    74/134

    da vida contemporânea. E nenhum outro, certo, no atual mo-mento histórico talvez gravíssimo, porque devem esperar-se tôdasas surpresas dêste renascer do Oriente. . . é mais apto a garantira marcha, o ritmo e a diretriz da própria civilização européia".

    Há uma maneira de beber de um trago que se chama à larusse.  Os russos souberam industrializar-se  à la russe.  Por que,num momento em que a fotomontagem triunfa, não poderemosnós realizar, também de um trago, nossa independência técnica,auxiliados pela boa ala americana? E beberemos então à la russe,à saúde de Franklin Delano Roosevelt.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    75/134

    Posição de Caillois

    Á

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    76/134

    Ubu-Roi  de Deus, inconformista e cego, amarrado às conclu-sões de um mundo desaparecido e querendo conservar dêle,nas suas roupagens mortas, a pureza aproveitável e a éticaconfusa. Não percebendo nunca que o mundo dos curas dealdeia foi o contraponto necessário do mundo capitalista deVautrin, e coube apenas a êle rezar as pobres ave-marias do

    tempo das cocotes e do Dejeuner sur   Vherbe.Bernanos se rói com o procedimento da França modernacomo um avô inválido não compreende os divórcios de sua neta.Cacête como todo avô que conta as histórias de seu tempo paramoralizar os meninos diabólicos.

    Enfim, outra gente não dominicana, mas capuchinha e amá-vel, aqui aportou como na França Antártica, falando uma lingua-gem útil. Temos ali, na nossa Faculdade da Praça da Repú-blica, entre plátanos também europeus, os dois Bastide, Maugué,Bonson... E agora, desce das nuvens do avião de BuenosAires, Roger Caillois.

    Há na experiência e no contato dêsses europeus com osdescendentes vestidos dos tupiniquins, os testamenteiros de JoãoRamalho e os paulistas de Luanda, uma ver*, ideira festa, comofoi a de Rouen, quando os nossos índios autenticaram as suasqualidades de homens naturais, fornecendo a Montaigne aquêlefamoso capítulo do canibalismo letrado. É verdade que muitasvêzes, o nosso nativo se espanta da antropofagia autêntica a

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    77/134

    No desenvolver de seu curioso caminho, Caillois imprimeao romance burguês um caráter definitivo que não tem. Justa-mente o  Ulisses  é um marco onde termina o romance da burgue-sia, pois aí, num dia coletivista e mural, seus heróis destroçadosnão são mais de modo algum "os mandatários da própria debi-lidade ao país da fôrça". Como não o são n' A  Montanha Mágica,onde o episódio pessoal desaparece sob o inventário culturalde todo um século. Êsses afrescos são suficientes para mostrarque o caminho do romance está mais que aberto na direção dofuturo e o romance retomando sua função pedagógica, está longede se estiolar e perecer. Roger Caillois termina o seu livro comoum solitário da Tebaida burguesa, diante do catedralismo denossa época. Esquecido de que na nova arquitetura existe onovelesco e o seu sentido. Longe de ser o privilégio do indivíduoque quer ver na imagem fraterna do herói algo de inconfessávele visceral, êle pode atingir a comunicação e a igreja.

    Talvez o caráter sarraceno da nossa velha cultura penin-sular, aqui agravado pelos haréns da migração e da conquista,

    nos faça melhor sentir que a missão do romance não está cum-prida. Abre-se para êle uma era de fecundo fanatismo social.Do próprio autor da  Sociologia   de la Novela   tiro estas linhas:

    "Toda questão reside hoje em escolher entre o entu-

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    78/134

    "Satisfeito pela realidade, que poderá o homem pedir aum mundo imaginário?" — pergunta Caillois. Não pedirá aomenos a solução insolúvel da sua condenação de gerar outrohomem? Sem os refúgios  inúteis do gonzaguismo ou do uranismo,o homem de amanhã não compreenderá que sua vida dialètica-mente se há de cumprir entre a mulher e a sociedade, entre acélula eterna e sua inevitável cidadania? Mas estamos ainda

    longe daí.Num grande romance atual, na  Energia  de Gladkov, se

    dispõem como fôrças antagônicas entre pais e filhos o saudo-sismo da isbá e a fé da cidade nova. Aos lamentos do kulakque procura a catarse e a metamorfose no herói individualista,substituem-se hoje os acentos religiosos de um mundo monu-

    mental, onde o romance tem o seu lugar assegurado.Todas essas considerações nos trouxe o avião de Caillois,

    célula dêsse amável imperialismo humanístico que representamos professores franceses na América. O sociólogo visitante asdespertou com as suas declarações sôbre o papel do intelectualno mundo que se anuncia. Disse êle muito bem que a solução

    para o homem de espírito é a monacal. Por que não? Nãose trata evidentemente de querer fazer o Sr. Gilberto Freyre ouo Sr. Carlos de Lacerda, e muito menos o poeta Vinícius deMoraes, entrarem para o convento de Monte Athos, onde nãopisam os barbeiros nem as manicures. Também não se tratado intelectual se deixar absorver pelo gigantismo social e nêle

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    79/134

    Sol da Meia-Noite

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    80/134

    azul e frio que não permitia réplicas ou explicações, aquêlemesmo professor da Alsácia ocupada, quando a escola era"risonha e franca", em 70 e tantos. Comigo ia se dar, emestilo humorístico, o episódio do aluno que não sabia bem ondeficava a França no mapa, mas a tinha dentro do coração. Umaluta desigual, onde um Davi de calças curtas que, num grito

    interior e orgânico de autodefesa, encontra uma inesperada saídapara estarrecer o didata monstruoso que o procura esmagar.Naturalmente o homem duro chamava-se Germano. Dr. CarlosAugusto Germano Knipeln. E era doutor.  Herr Doktorrl   Euhoje, há muito tempo, aliás, sou também doutor. Como todobrasileiro que se preza de pertencer a uma geração de bacharéis

    em Direito. Gilberto Freyre que está saindo do seu meticulosoestudo do patriarcado açucareiro, para dar um interêsse nôvo aonosso primeiro período republicano, deveria fazer a curva clínicada palavra  doutor   entre nós. Acredito que a disseminaçãodêsse qualificativo honorífico é filha de uma compensação urgidapelo nosso analfabetismo. Primeiro, só os médicos eram dou-tores, depois os bacharéis se apossaram do distintivo, com deses-pero dos que colavam grau em borla e capelo. Qualquer pân-dego espirrava da Academia com dez anos de "simplesmentegrau 1" e era doutor. Em seguida os farmacêuticos viraramdoutores,  os dentistas também, enfim os banqueiros, os ferragistas,os leiloeiros. E os médicos, para não se confundir, chamaram-se

     professores,   o que antes só indicava a modesta função de mestre-

    de açúcar-cande, a mesma luta que ontem me revolveu os bofes

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    81/134

    de açúcar cande, a mesma luta que ontem me revolveu os bofes

    diante da tela onde se desenrolava a noite da ocupação norue-guesa, visionada por Steinbeck. Revi naquelas caras despudo-radas de sargentões o longínquo doutor Carlos Augusto GermanoKnipeln, que Mefistófeles torre eternamente!

    Era o exame de Corografia do Brasil.  Uma besteira. Está-vamos então muito longe dos estudos regionais com que o Sr.

    Tavares de Almeida se impõe ao entusiasmo do Prof. Monbeig.O alemão exigia tudo decoradinho. Nunca recorrera ao mapapara ensinar. Saber era de cor ! Até hoje sei assim as cidadesdo Pará, por ordem alfabética: "Alenquer, Bragança, Breves,Cametá, Cintra, Gurupá". E caiu para mim ante a classe acor-rida pelo combate que se prenunciava, um ponto que eu sabia.

    "Portos de segunda ordem". Mas eu sabia de cor, como oprofessor da cadeira exigia, nunca numa disposição cartográficaracional.

    — Não quero de cor...— Mas.. . doutor! Eu aprendi assim... o senhor...— Cale-se! Quero que o senhor faça uma viagem, uma

    estranha viagem, num navio que não pode entrar em nenhumpôrto de primeira ordem. O senhor vai sair no seu navio doRio Grande do Sul e basta que me chegue a Pernambuco. Se,na viagem, entrar em qualquer pôrto de primeira ordem, seráautomàticamente reprovado.

    Comecei em Pôrto Alegre. Era pôrto. Tôrres. Daí pulei

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    82/134

    gesto incisivo. Daí a meia hora saía a minha aprovação obsti-nadamente exigida pelos dois outros componentes da banca.Senti-me levantado pelos colegas. Era a réplica da infância aoalemão.

    O nazismo deu forma à matéria do alemão. Nunca tevetão oportuna pesagem política o modêlo aristotélico. O alemão já executava o passo de ganso no fundo das páginas de Tácitoe, nessa marcha, veio trazendo os arreganhos homicidas da ca-verna até à civilização da técnica. Nela viu a couraça e ablindagem, o gás químico e o avião semeador da morte. E

    criou sua forma histórica: Adolfo Hitler. Perguntava-me arevista  Diretrizes,   ultimamente, em  enquête,  que se devia fazerda Alemanha depois da guerra? Esfolar inteira? Comunizar?Entregar todinha aos noruegueses, aos gregos e aos russos? Aosfilhos dos fuzilados, dos enforcados e dos bombardeados domundo inteiro? Dá-la aos judeus? — Não! Ê preciso alfabe-

    tizar êsse monstrengo. Há dentro dela um raio esquivo de luz.É o do seu Humanismo. É o que vem de Goethe e através deHeine produz Thomaz Mann. A Alemanha racista, purista erecordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês,pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africanodo Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre.

    mente a história rica dramática e colorida na América Latina

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    83/134

    mente a história rica, dramática e colorida na América Latina,

    está coriscada de gestos libertários. E por isso estamos perfei-tamente dispostos a morrer pela liberdade da Noruega, ou daChina, ou da Rússia. E por isso mesmo não nos devemos esque-cer que a essa luta pela liberdade que prende toda a terra numcompromisso de destruição das três faces malditas do fascismo,está prêso um outro programa —o de fazermos nós mesmos a

    nossa liberdade econômica, a fim de se produzir, definitiva esegura, a nossa independência política. Se, de um lado, temosa palavra pública de Roosevelt, de Wallace, de Willkie, a fé

     jurada de Churchill e a presença ideológica de Stalin para nosassegurar que o mundo de amanhã não será um mundo de opres-são e de terror, de outro lado, sabemos que nossos povos têm sido

    secularmente jungidos a  complots   imperialistas que retardam onosso progresso humano e entravam nossa marcha civilizada.Nós também temos nossa noite sem lua e dela precisamos sair.Nessa luta que terá que ser um complemento e o desfecho daoutra, ao intelectual latino-americano está reservado um papeldecisivo. Entre outras vantagens, a guerra nos trouxe esta —

    a de melhor nos conhecermos.Agora mesmo, acabo de levar à estação o casal argentinoOliverio Girondo. E nesse gaúcho perfeito, como em sua suavecompanheira Nora Lange, senti que os intelectuais conseguem nashoras de suspeição estender os braços por cima dos interêssesoportunistas. Outro seria o panorama americano, se conhecês-

    gamento de uma fiança torpe ligada à fome dos imperialismos.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    84/134

    g ç p g p

    Mas hoje já sabemos que a América nossa deu dois grandespoetas: o chileno Neruda e o cubano Guillen. A língua hispano-americana já pode apresentar quatro romances notáveis:  DonSegundo   Sombra, Dona Bárbara,  La  Voragine   e Los de Abajo.Um sem-número de moços trabalha a novela e o verso, o ensaioe a crítica na mesma labuta sincera e cultivada e na mesma desco-

    berta dos caminhos livres que o futuro indica. A presença deum escritor como o chileno Juan Uribe, que está entre nós,basta para nos dar uma idéia do que representa a cultura novada América Latina. Conheçamo-nos melhor! Homens da auto-ridade e da ilustração de Girondo na Argentina, de GilbertoFreyre e Sérgio Milliet aqui, de Neruda no Chile, podiam iniciar

    uma campanha de aproximação dos intelectuais americanos capa-zes de superar a da busca de mercados que a guerra indicou paraos produtos de nossas fazendas e de nossas fábricas. Se nomeio da noite colonizadora que persiste nos horizontes nacionaisde cada um de nossos povos, um sol se anuncia, é o que ainteligência autoriza. São os intelectuais que representam naAmérica ainda bárbara e inculta, o meio-dia possível de amanhã.Aí estão Maria Rosa Oliver, Jorge Amado, tantos outros.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    85/134

    Diante de Gil Vicente

    o s  chato-boys estão de parabéns. Êles acharam o seu

    de Giovanni Grasso e as experiências da Lugné-Poe Viu a

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    86/134

    de Giovanni Grasso e as experiências da Lugné Poe. Viu aDuse e viu Emma Grammatica. E chegou a levar nas mãos ocarro vitorioso da judia Sarah Bernhardt. Em matéria de teatronacional, não viu muito. Apenas as tentativas de Álvaro Moreyrae de Joraci Camargo inquietaram um pouco a nossa platéia.Mas caímos sempre na incapacidade de educar um certonúmero de espectadores para elevar o nível do nosso teatro às

    alturas que já alcançaram a poesia e o romance. Mesmo agora,no teatro universitário, o inexplicável de certas derrotas voltaa preocupar os que se interessam pela melhor das artes, o teatro.O nome de um estreante, o Sr. Mário Neme, ficou indefensável

     junto ao de Martins Pena, este justificado apenas pela tradição,com seu cheiro de barata e seu velho armário mágico.

    Perguntei a alguém por que tinha sido dada ao Sr. MárioNeme a incumbência de fornecer uma peça ao teatro universi-tário. Responderam-me: — porque é um bom rapaz, vindo dointerior e que escreve contos. As duas primeiras credenciaissão inatacáveis. O Sr. Mário Neme é de fato a simpatia empessoa e nosso dever é auxiliar todos os recém-chegados da lite-ratura que trazem a sua contribuição do interior. Mas, a terceirafaz-me lembrar aquêle presidente da República Velha que, eleitoe empossado, decidiu dar a um jornalista que pronunciara umbrilhante discurso sôbre o café em Ribeirão Prêto, a pasta daMarinha. É o caso do Sr. Neme. É um modesto conteur  e umpavoroso articulista que, pela amostra, nada tem de um homem

    gógico e persuasivo do teatro, quando o teatro é teatro, é criação

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    87/134

    gógico e persuasivo do teatro, quando o teatro é teatro, é criação

    e execução, é compostura e ação! Êstes meninos puseram-mediante dos olhos a presença silenciosa e mágica de Portugal.Que fartura de lições nos traz essa página clássica, onde não ésó a pátria lusa que se restaura no seu vigor oceânico, mas ondeo próprio cristianismo retoma a sua ética fundamental, dantescae terrível!

    Fumamos um cigarro distraído e meu amigo prosseguiu:— Veja você como a perda do sentido político de um

    povo pode reduzi-lo ante o prestígio das armas automáticas!Portugal é maior que toda a Europa ocidental! Portugal é povoe foi sempre povo. A sua monarquia hamlética, macbética,levada dos diabos, regicida e valorosa, inconformada e desco-bridora foi povo. Portugal viveu sempre na célula livre do seumunicipalismo. Foi isso que trouxe para o planalto paulista àsua inconformação conquistadora e o seu destino pioneiro.Somos portuguêses, graças a Deus! E portuguêses antigos, saídosdessa maravilhosa virilidade satírica e mística do Auto  da Barcal

    — E o mulatismo de Martins Pena?— Martins Pena, creio que nunca foi mulato e mulatofoi Machado de Assis.

    Na sua valorização de Portugal, do Portugal de Gil Vicente

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    88/134

    dando nas beiradas atlânticas do Tejo. O gótico que não ousoudescer a Itália mediterrânea, estacando em Milão, e viera trazidopelas mãos cancioneiras do medievo, lutar com o mosárabe evencê-lo no fim do continente.

    Tudo isso é a história do sentimento português, fixada naspedras do passado civil e religioso duma grande raça.

    E o povo? E a história contemporânea? Minhas recor-dações voltaram aos dias de ontem. Alves Redol, o autor dosGaibeus e das Marés,  levara-me a Vila Franca de Xira, para assis-tir à  espera anual dos touros da estação. E eu vi na  espera aressurreição do povo sem temor, que todos os anos afronta nasruas estreitas e apinhadas da pequena cidade de Estremadura,

    os touros ferozes, trazidos para as corridas. Touros soltos nasruas, com os quais brinca o povo intemerato de Portugal. Nodia seguinte foram as touradas. Desfilavam os capinhas e mata-dores, os cavaleiros e os moços de forcado, quando o povo queenchia o redondel percebeu que fôra iludido. O seu bandari-Iheiro favorito faltava. Carnicerito de México não estava na

    praça, à frente de seus companheiros. E assisti então a estacousa inédita — o povo inteiro saltou das arquibancadas e dasgerais e entupiu a arena, até aparecer carregado do hotel, ogrande farpeador.

    Imagens a transpor diante da virilidade do auto de GilVicente, diante da virilidade do povo de Vila Franca de Xira.

    barca da imortalidade, guardada por um anjo severo e incor-

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    89/134

    ruptível, Para os outros, para o juiz prevaricador e para cfrade, para o usurário e a grande dama, abre-se a caraveladanada de Caronte.

    Morrem hoje pela sociedade milhões de homens. Por trásdo seu sacrifício, a usura acumula os seus últimos montes dedólares, a injustiça movimenta seus laços, a corrupção impera.

    E de nôvo o  Auto da Barca  arma, numa realidade mais queteatral, sua presença punitiva e solene. O anjo impassível espera,para conduzi-los à imortalidade, os defensores de Stalingrado,os cavaleiros blindados do deserto de El-Alamein, os operáriose as operárias das retaguardas vigilantes, os que sabem dar vida,posição e futuro pela luta tutelar dos direitos do homem.

    Para os outros, para os últimos donos da acumulação, paraos aproveitadores cínicos da vida, está armada a prancha, aprancha das condenações sem apêlo e sem glória.

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    90/134

    O Coisa

    Você já viu e notou como verdadeiros acessos de necrofilia agi-

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    91/134

    Você já viu e notou como verdadeiros acessos de necrofilia agitam os homens de hoje? São capazes de tudo, de admitir o sacri-fício da família, da honra profissional, da dignidade e da éticapor uma clavícula do poder e às vêzes simplesmente pela pro-messa duma tíbia do cadáver duma situação! É uma fomerecalcada que não os deixa enxergar o dia seguinte. Os velhospolitiqueiros que outrora sonhavam com cabos eleitorais vestidosde anjo, trazendo-lhes o cartuxo de procissão dos cargos, todosêsses intrépidos funâmbulos das urnas cegas de outrora, derampara se inscrever no concurso do pega-no-rabo-do-foguete. Efazem discursos com a mesma gaguejante emoção duma senhorade sessenta anos que festejasse o primeiro furtivo encontro.

    — Que diabo, você é injusto! Quer tirar êsse derradeiroregalo da vida a velhas raposas maltratadas por um bárbaroostracismo?

    — Mas no mundo de hoje, êles não vão mandar nada.Quem manda no mundo de hoje?

    — O Coisa.

    — Ah! O Coisa manda. Ouça esta história que mecontaram outro dia. Foi preciso apagar um incêndio. Mas oincêndio era na casa do adversário do Coisa. Então, os bom-beiros hesitaram em sair. Um dêles telefonou. E o Coisa res-pondeu: — "Eu não posso decidir nada. Não é comigo! Precisoir consultar. Faça o fogo esperar!"

    de Stalingrado foi entregue pela Terra da liberdade ao defensor

  • 8/18/2019 Oswald de Andrade - Ponta de Lança

    92/134

    dos direitos intangíveis do homem em sua ascensão...— Mas enquanto êles fazem isso, nos países ocupados...— Enquanto os gatos prosseguem a grande caçada, os

    camundongos sinistros se divertem no escuro da copa. Masa ratazana está quase liquidada, a ratazana que virou o mundode cabeça para baixo. O fim do monstro está próximo, bem

    próximo!— Quererá você afirmar, por exemplo, que os encontrosdecisivos dos chefes de hoje têm também por finalidade ditarao mundo uma norma futura de bem viver... e resolver por-tanto que os camundongos divertidos de hoje serão por suavez tratados a tiro de festim?

    — Ninguém impedirá que o processo histórico condeneos que abusaram da escuridão para subverter todas as tradiçõesda ética e da razão. Quererá você supor que o dia seguinte daguerra continue o panorama de apodrecimento a que assistimos?Quem viver verá! Olhe, já há sintomas curiosos de desadesão,de desconversa. Só mesmo os incautos e os caducos satisfazem

    a sua sêde nos festins de Baltazar. Só êles não enxergam asletras de fogo do Mane  Tecei   Fores   que se inscreve nas farrasdo poder precário de hoje.

    — V