Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media http://slidepdf.com/reader/full/os-fundamentos-da-ciencia-moderna-na-idade-media 1/31 Colecção História e Filosofia d Ciência Os Fundamentos da iência Moderna na Idade Média oordenação da olecção e Revisão ientífica na Simões e Henrique Leitão

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Colecção História e Filosofia

d

Ciência

Os

Fundamentos

da iência

Moderna

na

Idade

Média

oordenação da olecção e

Revisão

ientífica

na Simões e Henrique Leitão

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321

os

FUNDAMENTOS

DA

C I ~ C I MODERNA

NA IDADE MÉDIA

Difusão e assimilação da filosofia natural de Aristóteles

A introdução das obras de Aristóteles

na

língua latina e a sua difusão e assi

milação subsequente transformaram a vida intelectual da Europa Ocidental.

Mas a influência de Aristóteles não dependeu unicamente das suas próprias

obras. Para calcularmos o enorme impacto de Aristóteles, teremos de conside

rar os comentários às suas obras que foram elaborados por gregos na Baixa

Antiguidade e por árabes durante os séculos IX a XlI. Embora as obras genuínas

de Aristóteles moldassem a percepção medieval do mundo muitas obras que

lhe eram erradamente atribuidas também moldaram a forma como

na

Idade

Média eram avaliadas as suas ideias. A estas temos ainda de acrescentar tradu-

ções latinas do árabe de tratados não aristotélicos contendo ideias derivadas da

filosofia natural de Aristóteles, particularm ente em medicina e astrologia. Este

complexo

conjunto

de ideias e interpretações aristotélicas foi

herdado

pelos

filósofos naturais da Idade Média Latina. Baseando-se nestas fontes, os estudi o

sos medievais dedicaram-se a acrescentar

os

seus próprios comentários às obras

de Aristóteles, bem como a compor tratados especializados em

que

as ideias de

Aristóteles detinha m lugar proeminente. A totalidade deste

corpus

literário - a

herança e as adições a esta - é aquilo a que hoje chamamos Aristotelismo .

Este termo, que nunca foi utilizado na Idade Média, caracterizade forma adrni

rável o mais importante componente da vida intelectual do período que com-

preende os séculos XlI e

XV

(a Idade Média propriamente dita) e mesmo para

além deste, até ao fim

do

século XVII.

Contribuições dos comentadores gregos

Através de

comentários

aos trabalhos

de

Aristóteles, o

mundo

grego

da

Baixa Antiguidade contribuiu significativamente para a filosofia natural. Traba-

lhando entre os anos 200 e 600 d. c. os comentadores gregos deixaram nume-

rosos tratados que totalizam

aproximadamente

quinze

mil

páginas de texto

grego, na edição

conhecida por

Comentários a Aristóteles em

Grego

Antigo

Commentaria

in

Aristotelem Graeca). Dos autores que comentaram Aristóteles,

uns

eram

aristotélicos e outros neoplatónicos, sendo estes últimos

muito

críti

cos

em

relação à obra de Aristóteles. Deste grupo, aqueles que maior influência

tiveram sobre a ciência e a filosofia islâmicas e latinas foram Alexandre de

Afrodisias (fl. 198-209), Temistio (fl. finais

da

década

40 do

ano 300-384/385),

Simpl1cio (ca. 5OO-f. 533) e João Filopão (ca. 490-década de 70 do século VI),

~ . . . . . . . . ~ . ~

' t ; . ,

NOVO rNICIO AERA DA TRADUÇÃO

NOS S ~ U L O S

XII EXIII 133

um neoplatónico que era também cristão. A influência exercida por Alexan

dre e Temístio sobre a filosofia natural na Idade Média Latina veio em grande

parte através dos comentários aristotélicos de Averróis, o famoso comentador

muçulmano que citava frequente mente passagens das suas obras. O comen-

tário

de

Simplício a

Sobre

os

Céus De caelo),

que

Guilherme

de

Moerbeke tra

duziu para latim no século XlII, transmitiu importantes ideias sobre cosmo

logia e física.

Embora

a

maior

parte das obras de João Filopão permanecesse

desconhecida

no

Ocidente Latino até ao século XVI, algumas das suas ideias

eram conhecidas através

da

tradução parcial

de

Guilherme de Moerbeke

do

seu comentário a Sobre a Alma, através dos ataques

que

Simplício lhe dirigiu

no

seu comentário a

Sobre os Céus de

Aristóteles e ainda através de citações

ocasionais das suas ideias

nos

comentários aristotélicos

de

Avercóis. Filopão é

importante na história

da

ciência

na

medida em que criticou as ideias de Aris

tóteles sobre fisica e cosmologia. A teoria do impetus,

ou

a

doutrina da

força

impressa. que

desempenhou

um

importante

papel na fisica árabe e

na

física

medieval latina,

derivou

a em

última

análise do

comentário

de Filopão à

Física de

Aristóteles. Filopão insistiu

também contra

Aristóteles,

em

que o

movimento finito era possível no vácuo e

que

dois pesos desiguais, deixados

cair

de

uma dada altura, embateriam

no

solo quase ao mesmo tempo. No seu

comentário ao Génesis De

opificio

mundi), rebateu o conceito da eternidade

do

mundo

de

Aristóteles e insistiu também em que as matérias celeste e

terrestre são idênticas,

ao

invés de radicalmente diferentes, como afirmara

Aristóteles. Nos últimos anos, o trabalho

dos

comentadores gregos tem vindo

a ser muito mais apreciado e, em última análise, as suas contribuições para a

história da ciência medieval e

da

ciência

moderna podem

revelar-se mais

importantes do que

em

tempos se julgou.

Contribuiçõesdos comentadores islâmicos

Quando as obras

de

Aristóteles foram traduzidas do grego (ou mesmo do

siríaco) para o árabe durante os séculos IX e X pouco demorou para que os

eruditos islâmicos estudassem essas obras e escrevessem comentários sobre

elas. Os

comentários

e discussões islâmicos sobre as ideias e as obras

que

influenciaram o

Ocidente

foram escritos antes de 1200.

Dado que

vários

comentários

gregos

sobre Aristóteles inspirados no neoplatonismo

tinham

sido traduzidos

para

o árabe, muitas vezes eram introduzidas ideias

neoplatónicas nos comentários

islâmicos a Aristóteles.

Entre os eruditos

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34 os

FUNDAMENTOS

DA CI1':NCIA

MODERNA

NA

IDADE MEDIA

muçulmanos que escreviam sobre Aristóteles em árabe e que tinham obras tra

duzidas para latim,

os

mais importantes foram al-Kindi

(ca.

801-ca. 866),

al-

-Farabi (ca. 870-950), Avicena (lbn Sina) (980-1037), al-Ghazali (1058-1111) e

Averróis lbn Rushd) (1126-1198). Deste grupo, Avicena, al-Ghazali e

Averróis foram os que tiveram o maior impacto sobre a ftlosofia natural

aristotélica no Ocidente. O erudito hebraico mais influente no Islão e que

contribuiu pa ra o saber europeu foi Moisés Maimónides (1135-1204), que

escreveu em árabe.

Na sua obra Kitab

al

Shifa (O Livro da Cura

[da

Ignorância]),

uma

enci-

clopédia ftlosófica traduzida no século XII por Domingo Gundisalvo e

Avendaut (Abraham ibn Daud), Avicena comentou muitos aspectos da filo

sofia natural de Aristóteles. A segunda parte dessa obra era dedicada à física

que, na tradução latina incompleta do século XlI, foi chamada Sufficientia e

era constituída por oito partes. Nas secções de que os filósofos naturais

medievais dispunham, Avicena expunha as suas ideias sobre os céus, a gera

ção e a corrupção, os elementos, os meteoros, os animais, os minerais e a

alma. A sua grande obra de medicina, Cânone de Medicina, terá sido talvez

mais importante nas escolas médicas das universidades medievais do que

foram as obras de Galeno.

Embora al-Ghazali tivesse um impacto significativo no Ocidente, isso não

se deveu às suas próprias opiniões e interpretações. Al-Ghazali escrevera uma

súnlula das opiniões filosóficas de al-Farabi e de Avicena seguida

por uma

cri

tica severa

às

opiniões de ambos. Mas

a primeira foi traduzida para

latim

Deste modo, as opiniões de al-Farabi e de Avicena foram atribuídas a al-Ghazali.

A sua crítica filosófica não traduzida,

A

Incoerência dos Filósofos, tornou-se

conhecida no Ocidente através da crítica que lhe

fez

Averróis em A

Incoerên-

cia

da

Incoerência, que foi traduzida para latim.

Entre todos

os

autores islâmicos, Averróis

foi

aquele que mais influenciou

o panorama aristotélico no Ocidente Latino.

Um

eminente erudito observou

que

Se

existe

um

processo de naturalização em literatura correspondente ao

da cidadania, os escritos de Averróis pertenciam tanto à língua em que foram

escritos, como à língua em que foram traduzidos e através da qual exerceram

a sua influência sobre o curso da filosofia mundial .5

É

uma das grandes iro

nias da história que as obras escritas em árabe de Averróis fossem pratica

mente ignoradas pelo mundo de expressão árabe nos paises islâmicos, ao

passo que muitas dessas mesmas obras viriam a exercer uma grande influên

cia na Cristandade através das traduções latinas.

O

NOVO

INICIO: AERA DA

TRADUÇÃO

NOS

slicuws

Xli E Xlll 35

Até ao momento, foram identificados trinta e oito comentários de Aver

róis, em árabe, sobr e obras de Aristóteles. Este número extraordinário resulta

do facto de Averróis ter escrito pelo menos dois, e frequentes vezes três, dife

rentes tipos de comentários sobre qualquer tratado de Aristóteles. A propó

sito da

Física,

por

exemplo, escreveu um epítome,

ou

breve súmula;

um

comentário médio,

ou

paráfrase do texto; e um comentário longo, que era a

discussão pormenorizada, sequencial, das sucessivas secções de todo o texto.

Aplicou este mesmo tratamento tripartido a Sobre os Céus e à Metafísica.

Noutros casos, por exemplo, Sobre a Geração e a Corrupção e Meteorologia,

escreveu só comentários médios e longos. Dos trinta e oito comentários em

árabe, quinze foram traduzidos para latim durante a primeira parte do

século XIII (por Miguel Escoto e outros) e dezanove foram ainda traduzidos

do hebraico para latim durante o século

XVI

(os comentários de Averróis

foram

ainda

mais influentes na tradição aristotélica hebraica do que

na

latina). Nos seus comentáríos, Averróis procurou purgar o pensamento aris

totélico das interpretações neoplatónicas que, no seu entender, tinham distor

cido o verdadeiro significado de Aristóteles. Estava convencido de que Aristó

teles conseguira compreender tanta verdade acerca do mundo quanto era

possível a um ser huma no fazê-lo, utilizando a prova demonstrativa.

Obras pseudo-aristotélicas

Iniciando-se cerca de duas gerações após a morte de Aristóteles, a atribui

ção ao filósofo de obras apócrifas começou com dois títulos gregos: Sobre

as

Cores

De coloribus) e

Medtnica

Mechanica). Com o passar do tempo, surgi

ram outros apócrifos em grego. Porém, isto foi apenas o começo. O processo

de

falsas

atribuições

foi

repetido em todas

as

línguas para as quais as obras de

Aristóteles eram traduzidas, o que incluía siríaco, árabe, latim, hebraico,

arménio e algumas línguas vernáculas europeias. Muitas das obras apócrifas

debruçavam-se sobre pseudociência, principalmente alquimia, astrologia,

quiromancia e fisionomia. A astronomia estava também representada. Muitas

destas obras apócrifas foram traduzidas do árabe para o latim. No mundo

latino, a maioria circulava independentemente das obras genuínas de Aristó

teles. Parecem ter atraído um grupo social diferente do das universidades,

onde, com poucas excepções, tinham pouco impacto e eram raramente cita

das em obras sobre filosofia natural. Entre as excepções contam-se: Livro

das

Causas

Liber de

causis,

traduzido por Gerardo de Cremona), que se

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36

os FUNDAMENTOS

DA cIllNClA

MODERNA

NA IDADE MllDIA

baseava nos

Elementos

de

Teologia

de ProcIo e teve particular influência entre

teólogos, dando origem a comentários de Alberto Magno e São Tomás de

Aquino;

Das

causas das Propriedades

dos

Elementos

De

causis proprietatibus ele-

mentorum) que surge em numerosos códices dos livros de filosofia natural de

Aristóteles e exerceu maior influência nos séculos XIII e

XIV;

e finalmente,

embora menos importante para a filosofia natural do que os dois primeiros tra

tados, o

Segredo dos

Segredos

Secretum

secretorum), o qual apresenta muitas

máximas que encerram ostensivamente a sabedoria que se dizia ter sido trans

mitida por Aristóteles aos antigos governantes. De todos os apócrifos atribu ídos

a Aristóteles, o

Segredo dos

Segredos foi o mais popular, como o comprovam

pelo menos seiscentos manuscritos existentes, dos quais cerca de vinte terão

circulado com uma

ou mais das obras genuinas de Aristóteles.

Recepção das tradu ções

Os textos de Aristóteles eram difíceis e as traduções

nem

sempre claras,

dando ocasionalmente azo a acusações de obscuridade. Assim, os comentários

de Avicena e Averróis foram entusiasticamente acolhidos como guias para a

interpretação dos exigentes textos de Aristóteles.

A influência de Aristóteles no

pensamento

ocidental

começou

muito

antes das traduções

em

larga escala,

em

grande parte devido a duas

tradu-

ções em latim do tratado em árabe sobre astrologia de Abu Ma xar, uma

datada de 33 e a outra de 1140. A Introdução à Astronomia de Abu Ma xar

era um trabalho astrológico que incluía numerosas ideias e conceitos dos

livros sobre filosofia natural de Aristóteles. Foram muitos os estudiosos

do

século XII que tiveram o seu primeiro contacto com as doutrinas de Aristóte

les através do tratado de Abu Ma xar. Mas este gotejar de ideias aristotélicas

isoladas foi rapidamente submergido pelas traduções das suas obras. Apesar

das novas traduções d s obras de Aristóteles do século XII, poucos m anuscri

tos desse período sobreviveram, o que indica que os tratados de Aristóteles

tiveram pouca influência directa nesse século. Contud o, a situação alterou-se

de modo

dramático em meados

do

século XIII, altura

em

que surgiram

em

grande

número manuscritos das

obras

de Aristóteles. Nessa altura

a

influência deste se tornara significativa e viria ainda a aumentar com o passar

do tempo. Uma indicação importante do seu impacto reside na produção

de comentários latinos aos seus trabalhos, assunto que será tratado num

capítulo posterior.

I

I

f

O NOVO INICIO: AERA DA TRADUÇÃO NOS

sllCULOS

lOl E lOll 137

Quase todos os antigos tratados gregos, traduzidos do grego

ou

do árabe,

ou de ambas

as

línguas, para o latim eram anteriormente desconhecidos da

Europa Ocidental Cristã. Como foi recebido este vasto corpus de ciência pagã

e de filosofia natural? Como reagiram os Cristãos a um corpus literário a que

eram totalmente alheios e que apresentava potenciais problemas para a

fé?

Embora esses tratados fossem novos para a Europa Ocidental, a experiência

da literatura pagã não o era. Os Cristãos

já há

muito se tinham adaptado a ela.

Tinham sido expostos ao pensamento pagão quase a partir

do

momento em

que a religião cristã fora difundida para além da Terra Santa. O pensamento

pagão era familiar não só para a parte oriental do Império Romano, de

expressão grega, como também para os autores latinos

no

Ocidente, tais

como Santo Agostinho, Santo Ambrósio e os encicIopedistas. Graças à expe

riência prévia do Cristianismo face à literatura pagã, as traduções latinas

da

ciência greco-árabe dos séculos XII e XIII podem ser encaradas como um

segundo, e muito mais extenso, fluxo de pensamento pagão para os cristãos

da

Europa OcidentaL

Se bem

que a ciência e a filosofia natural da segunda

vaga

do

pensamento pagão tenha provocado

algum

atrito entre

e razão, os

filósofos naturais cristãos, muitos dos quais teólogos, ficaram encantados

por

acolhê-la. Com a lógica e a filosofia natural de Aristóteles como seu núcleo, o

novo conheci mento veio prover às necessidades do currículo das universida

des então emergentes, que formaram um dos mais duradouros legados insti

tucionais da Idade Média e que devo agora descrever.

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A UNIVERSIDADE MEDIEVAL

39

3 A universidade medieval

Uma descrição da estrutura e do funcionamento das universidades medie

vais é essencial tendo em con ta a importância dessas instituições no desen

volvimento da ciência ocidental.

As

universidades emergiram em resultado da

transformação da sociedade e da vida intelectual que ocorrera na Europa Oci

dental por altura do século XII.

A uropa feudal dos séculos VII e VIII sofreu drásticas alterações no

século

XI.

Durante o final do século

XI

e no decurso de todo o século XII

as

condições politicas melhorar am substancialmente devido em larga medida

aos senhores feudais de expressão francesa que trouxeram governos mais ou

menos estáveis

à

Normandia

à

Inglaterra

à

Itália

à

Sicília

à

Espanha e a Por

tugal. O vigor de uma Europa revitalizada era também evidenciado pela recon

quista da Península Ibérica que estava em pleno curso nos finais do século

XI.

Assim que se garantia

uma

segurança cada vez maior a economia da

Europa renasceu e o nível de vida subia para todos os segmentos da socie

dade. Este novo estado de coisas

foi

proporcionado por melhorias significati

vas na agricultura muito part icularmente pelo advento do arado pesado a

que

se

atrelava agora o cavalo em vez do boi. Esta substituição tomo u-se pos

sível graças

à

introdução da ferradura com cravos e do arreio de coalheira

que juntos fizeram do cavalo um auxiliar muito mais eficaz para a agricul

tura do que o boi. Não menos significativa foi a substituição do sistema de

rotação das culturas de dois campos para o de três o que permitiu també m

um grande incremento na produção de alimentos. A abundância de alimentos

contribuiu para originar um aumento populacional considerável que por seu

turno possibilitou a expansão de vilas e cidades. Na realidade o crescimento

demográfico obrigou

à

construção de centenas de novas vilas. Os Europeus

começaram a colonizar terras anteriormente despovoadas ou subpovoadas

ou a expandir-se para leste contra os

Eslavos

como o fizeram os Germanos

no seu movimento para lá do rio Elba.

Nos

Países Baixos o povo começou

inclusive a conquistar terreno ao mar. Os Europeus estavam em movimento e

protagoniza ram migrações significativas. Muitas das novas vilas foram povoa

das por homens livres muitos deles antigos servos que tinham fugido para as

vilas em busca de melhores condições de vida.

Nos finais do século XII o nível de comércio e de manufactura na Europa

era provavelmente maior do que no auge do Império Romano. Entre os sécu

los IX

e XIII a Europa transformou-se. Passou a existir uma economia monetária.

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4 os FUNDAMENTOS

DA

CIENCIA MODERNA NA IDADE MI DIA

Modificações na governação estavam também a ser levadas a cabo. A luta

entre vilas e cidades, po r um lado, e os governantes seculares e edesiásticos, por

outro, estava em curso.

s

populações urbanas procuravam tanto qu anto possí

vel governar-se autonomamente e esforçavam-se por se libertarem das contri

buições impostas pelos herdeiros nobres. Desenvolveu-se o conceito de

uma

comuna com direitos concomitantes de cidadania. De forma oportunista, as

cidades europeias fizeram causa comum com papas, reis, imperadores

ou

prínci

pes

independentes, para aumentar em o seu pode r e protegerem os seus direitos.

Assim, as cidades tornaram-se uma força poderosa na vida económica,

politica, religiosa e cultural do continente europeu. Dado que as universida

des europeias eram criações urbanas, poder-se-ia inferir

que

seriam

de

algum

modo o produto das forças descritas, mas isso seria incorrecto. As cidades

eram apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para o emergir de

universidades. A urbanizaç ão pode ter oferecido uma matriz essencial para o

início e o florescimento das universidades, mas dificilmente se consideraria

uma garantia para o processo ocorrer de facto. Desde as sociedades primitivas

do Antigo Egipto e

da

Mesopotâmia que diversas civilizações urbanas surgi

ram e desapareceram, mas

nenhuma

produzira algo

de

comparável às univer

sidades da Europa. Na verdade,

as

universidades dificilmente se podem consi

derar essenciais para que uma civilização atinja

um

elevado grau

de

realização

cultural. Para manter registos, preservar tradições literárias e aumentar o

conhecimento e a sabedoria acumulados, uma civilização precisa apenas de

assegurar que alguns

dos

seus membros saibam ler e escrever, que um

número suficiente se ocupe das tarefas requeridas e que o registo escrito seja

preservado e transmitido de geração em geração. s sociedades que satisfize

ram estes requisitos atingiram grande craveira intelectual, como o demons

tram bem as civilizações medievais do Islão e da China.

Embora o Ocidente Latino herdasse a sua ciência e filosofia natural dos

Gregos e dos Árabes, a universidade foi

uma

invenção que se gerou em condi

ções peculiares ao Ocidente no século XII. A vida comercial florescente nos

centros urbanos tomara aconselhável, até mesmo necessário,

que

aqueles que

praticavam o mesmo negócio ou mister

se

organizassem em guildas ou cor

porações. Os advogados medievais designavam frequenteme nte a essas orga

nizações por

universitas

isto é totalidade ou todo , pretendend o assim sig

nificar que a guilda em que stão representava todos os praticantes legais desse

negócio ou mister.

Os mestres e os estudantes constituíam uma parte vital

da

sociedade do

século XII. Estabeleceram escolas importante s em várias catedrais da Europa

A

UNIVERSIDADE

MEDll VAL 4

Ocidental, especialmente em Paris, Chartres e Orleães. Estudantes e mestres

deslocavam-se habitualmente de uma escola para outra, os estudantes em

busca do mestre certo, os mestres procurando atrair um número suficiente de

estudantes que lhes proporcionassem uma remuneração apropriada. Os mes

tres e os estudantes eram, na su a maioria, estrangeiros nas cidades

onde

ensi

navam e estudavam e, consequentemente, não tinham direitos nem privilé

gios. Agindo individualmente,

de

pouca importância

se

revestiam perante as

autoridades municipais, estatais e eclesiásticas com as quais tinham de nego

ciar as condições de ensino.

Em Paris e nout ros locais, mestres e estudantes viram as vantagens de uma

associação e usar am a

universitas

de um negócio ou mister como modelo para

a sua própria organização. o final do século XII, havia já organizações

de facto de mestres, estudantes,

ou

mistas, conhecidas por 'universidades

(por exemplo:

universitas magistrorum

ou universidade de mestres ;

universitas

scholarium ou

'universidade de estudantes ; e

universitas magistrorum et

scholarium

ou

universidade de mestres e estudantes ). Consequentemente, o

termo

uníversitas

veio,

por

si só, a ser suficiente para identificar

uma

institui

ção educacional. Embora muitas guildas e corporações tivessem utilizado o

tenno universitas antes das instituições educacionais de ensino superior, estas

últimas acabaram

por

o reter permanentemente, talvez

por terem durado

mais do que as outras.

Tendo

em conta o seu significado subsequente, o

termo

universidade

universitas) requer uma nova explicaçãO. De inicio o termo aplicava-se a um

único grupo que constituía

uma

associação autónoma legalmente reconhe

cida. Assim, uma faculdade de artes era uma universidade , tal como o era

uma

faculdade de medicina

ou

uma faculdade de teologia. Os mestres e os

estudantes da faculdade de artes fonnav am a sua p rópria corporaçã o legal, ou

universidade, tal como o faziam os mestres e os estudantes d faculdade de

medicina, e assim por diante. Muitas associações de estudantes eram também

reconhecidas como universidades, particularme nte na Itália.

O tenno inicialmente utilizado, e que era de uso corrente em meados do

século XIII, para abranger todas estas universidades individuais diferentes, ou

associações

de

universidades, era

studium generale

(Estudos Gerais). Cada

mestre ou estudante era membro da sua universidade ou corporação indivi

dual, mas

também

era membro do

studium generale.

Nos casos em que

uma

única faculdade ou corporação, ou mesmo duas, mantinha uma escola, a

designação

studium generale

não lhe era normalmente conferida. O termo

atribuía-se em geral a escolas que tinham prestígio suficiente, tais como as uni

versidades de Paris, Oxford e Bolonha, ou eram suficientemente grandes para

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42 os FUNDAMENTOS DA CItNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA

incluírem pelo menos três das quatro faculdades tradicionais (artes, teologia,

direito e medicina), ou ambas

as

coisas. Uma das principais vantagens de uma

escola designada como

studi um generale

residia

num

importante direito auto

maticamente conferido aos que nela se graduavam: a licença (ou direito) de

ensinar em qualquer parte , conhecido em latim por

ius ubique docendi.

Na

prática, contudo, era mais o prestígio de

um studium

que validava o direito de

os

graduados ensinarem em qualquer parte.

É

óbvio que o termo

studium generale

é o equivalente

do

nossO actual

termo universidade . É possível que no final da Idade Média, universidade

tenha substituído a designação

studium generale

tornando-se o termo que

hoje conhecemos e que usaremos daqui em diante.

Como entidades corporativas,

as

várias guildas medievais eram associa

ções que detinham o monopólio de certos privilégios.

As

universidades não

constituíram excepção e recebiam um tratamento especial por parte das auto

ridades eclesiásticas e seculares,

as

quais pretendiam encorajar o seu desenvol

vimento. A cada faculdade era concedida a jurisdição sobre os seus próprios

assuntos internos e,

por

conseguinte, o direito de ajuizar merecimento de

mestres e estudantes que nela entrassem como membros da corporação. A

universidade, formada pelas suas faculdades e estudantes, tinha o direito legal

de negociar, relativamente a uma vasta gama de problemas, com as autorida

des externas que controlavam

as

várias jurisdições governamentais e religiosas

em que se encontrava localizada. Havia igualmente privilégios relevantes a

nível pessoaL

Aos

membros das

universitas

eram concedidos certos direitos

cruciais, sendo o mais importante o de estatuto clerical. Embora a maioria de

mestres e estudantes não fosse ordenada nem tivesse intenções de o ser, o

estatuto clerical atribuia-Ihes

os

direitos do clero. Assaltar um estudante ou

um mestre que

fosse em

viagem equivalia a assaltar

um

padre e era um acto

sujeito a penas severas. O estatuto clerical permitia também aos estudantes

que fossem presos por autoridades civis exigir julgamento nos tribunais ecle

siásticos, regra geral mais clementes

do

que os civis. Permitia igualmente que

estudantes e mestres recebessem benefícios edesiásticos e aproveitassem

os

frutos desses benefícios enquanto prosseguissem nas suas actividades univer

sitárias regulares. Para além destes privilégios individuais, um importante

direito associativo permitia que

as

universidades suspendessem as lições e

abandonassem inclusive

as

respectivas cidades se sentissem que os seus direi

tos tinham sido violados. Isto constituía uma arma económica significativa

contra

as

cidades onde as universidades se localizavam. Tais privilégios faziam

da universidade uma instituição poderosa e permitiam-lhe exercer considerá

vel

influência na sociedade medievaL

A

UNIVERSIDADE MEDIEVAL 43

Por

volta de

1200,

as universidades floresciam

em

Bolonha, Paris e

Oxford, tendo provavelmente surgido nesta ordem. Embora sejam escassos os

documentos susceptíveis de lançar luz sobre as suas origens e desenvolvi

mento inicial até ao século XIII, altura em que se encontrav am já bem estabe

lecidas, o dealbar das universidades estava intimamente associado ao novo

conhecimento que fora traduzido para latim

no

decurso do século

XII

Na

verdade, a universidade

foi

o meio institucional através do qual a Europa Oci

dental organizou, absorveu e expandiu o grande volume de conhecimento

novo, o instrumento através do qual moldou e disseminou uma herança inte

lectual comum que

se

perpet uou pelas gerações seguintes. As primeiras uni

versidades internacionais na sua esfera de acção - Paris, Oxford e Bolonha

-

foram de longe

as

mais famosas da Idade Média. (Paris e Oxford ficaram

céle-

bres como centros

de

filosofia e ciência; Bolonha era igualmente notável pelas

suas escolas de direito e medicina.) Por volta de

1500,

tinham sido criadas

aproximadamente mais setenta universidades.

As

da Europa Setentrional

guiavam-se pelo padrão da de Paris, ao passo que

as

do Sul escolheram

Bolo-

nha como modelo.

De

1200

a

1500,

três séculos de história cultural e intelec

tual moldaram a universidade, dando-lhe uma forma que persistiu até aos

dias de hoje.

Embora

não caiba aqui apresentar uma descrição pormenorizada da

estrutura e do funcionamento da universidade medieval, algumas indicações

sobre a sua organização poderão revelar-se úteis. A universidade medieval era

acima de tudo uma associação de mestres e estudantes dividida no máximo

em quatro faculdades (essencialmente, artes, direito, medic ina e teologia) em

cada uma das quais se matriculavam estudantes com a intenção de atingirem

o bacharelato

ou

o grau de mestre. O grau de mestre em artes era geralmente

um

requisito prévio para o acesso

às

faculdades superiores de direito, medi

cina e teologia. Assim sendo, um mestre da faculdade de artes podia ser tam

bém

um

estudante matriculado para obter o grau de bacharel ou de mestre

em teologia, medicina ou direito.

As

universidades de Paris e de Bolonha ofe

receram dois modelos díspares para a organização das universidades fundadas

durante a Idade Média. Dos dois modelos, só o da Universidade de Paris será

aqui discutido (apesar da sua importância, a Universidade de Bolonha é

muito menos relevante no que

se

refere à fdos06a natural).

A Universidade de Paris era uma universidade de mestres , assim consi

derada porque

os

mestres em artes agiam como corpo governativo de toda a

universidade. Os mestres em artes de Paris controlavam o currículo,

os exa-

mes, a admissão de novos mestres e a atribuição do bacharelato ou do grau de

Page 8: Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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441 os

FUNDAMENTOS

DA CIWCIAMODERNA

NA

IDADE MllDIA

mestre em artes. Os estudantes e os mestres das faculdades de artes - e só das

faculdades de artes - estavam organizados

em

quatro nações baseadas

na

geografia e designadas

como

Francesa, Picarda,

Normanda

e Inglesa (ou

Anglo-Germânica, que incluía estudantes

da

Europa Central e Setentrional).

Os mestres

em

artes

que subsequentemente vinham

a

ser

professores nas

faculdades superiores de medicina, direito e teologia mantinham a qualidade

de memb ros das respectivas nações.

As

nações, cada uma das quais chefiada

por um proctor, dirigiam na realidade as universidades, já que elegiam o seu

principal funcionário, o reitor.

Pelos padrões modernos, as inscrições nas universidades medievais

eram

poucas. O número de estudantes em grandes instituições como Paris, Oxford,

Bolonha e Toulouse rondaria provavelmente os mil,

mil

e quinhentos. Entra

vaIll cerca de quinhentos estudantes anualmente na Universidade de Paris.

Como o p e r i o ~ médio de estudo por aluno era de cerca de dois anos,o

número total de estudantes a aprenderem em Paris em qualquer

momento

era superior a mil, talvez perto de mil e duzentos. Ao longo do decorrer da

Idade Média, contudo, o número de estudantes a matricular-se parece ter

aumentado. A longo prazo, os números são impressionantes. Em relação ao

resto da Europa, os estudiosos calculam

que

aproximadamente setecentos e

cinquenta mil estudantes se

tenham

matriculado nas universidades entre 1350

e 1500. O

número sempre

crescente de estudantes indica

também

que o

número

de universidades

aumentou no mesmo período, durante

o

qual

foram fundadas mais de quarenta. Nos finais da Idade Média, existia aproxi

madamente

uma

universidade

em

cada estado da Europa, quer fundada por

um papa quer

por um

governante secular. Em retrospectiva, é óbvio que

nenhuma instituição surgida na Europa durante a Idade Média demonstrou

ser mais permanente

do

que a universidade.

Estudantes e mestres

A maioria dos estudantes das universidades medievais partia após dois anos

ou menos, sem adquirir o grau de bacharel. A percentagem de estudantes a

quem era atribuído esse grau era, pois, relativamente baixa. Quan to

mais

longo

fosse o tempo necessário para se completar

com

êxito

um

grau, tanto

menor

seria a percentagem dos estudantes que o recebiam. Enquanto o grau

de

bacha

rel requeria

três

ou

quatro anos, o grau de mestre

em

artes exigia mais um ou

dois anos, num total de cinco ou seis anos de escolaridade. Ocasionalmente,

A UNIVERSIDADE

MEDlEV i 45

esse

tempo

podia alongar-se para além disso, até sete ou mesmo oito anos. O

grau de mestre em artes era um requisito prévio para entrar em qualquer das

faculdades superiores de direito, medi cina e teologia, cada uma das quais exi

gia um número adicional de anos de estudo. Assim, o número de estudantes

que

completava com êxito graus nas faculdades superiores representava

uma

pequena percentagem da comunidade estudantil total, talvez menor do que a

daqueles que alcançam doutoramentos nas modernas universidades. A fre

quência universitária de um estudante, ainda que

por um

curto período de

tempo e mesmo sem a aquisição

de

qualquer grau, era favoravelmente enca

rada pela sociedade e considerada útil para a carreira do estudante.

Durante a Idade Média, não existia

uma

hierarquia de instituições educa

cionais comparável às divisões nítidas entre as actuais escolas primári as, liceus e

universidades. Por conseguinte, não era necessária, para admissão, frequência

de uma escola de nível inferior . Na realidade, nem a capacidade de ler e escre

ver latim seria

um

requisito essencial. Dada a quase inexistência de condições

ou

requisitos prévios, a entrad a

numa

universidade medieval era relativamente

simples. Existiam, no entanto, duas exigências indispensáveis para a admissão.

A primeira era a matrícula oficial que era responsabilidade do reitor da

universidade. Para conseguir a matricula, o estudante que pretendia entrar, e

tinha geralmente catorze ou quinze anos de idade, devia pagar uma propina e

prestar um juramento. Esse juramento variava de universidade para universi

dade mas implicava geralmente,

por

parte

do

estudante, um compromisso de

lealdade para

com

o reitor e a promessa de promover o bem-estar e a integri

dade da universidade. O estudante jurava também que se não vingaria de

quaisquer injustiças que lhe pudessem ser feitas.

m

troca, o reitor admitia o

estudante na comunidade universitária e, daí em diante, esperava-se que o

protegesse sempre que necessário. Apesar

do

seu significado,

a

cerimónia de

prestação do juramento era sobretudo

um

exercicio formal.

Porém, o mesmo já não sucedia

em

relação à segunda exigência, a qual

obrigava que cada aluno se associasse a um mestre. Os estudant es associados

ao mesmo mestre formavam

um

grupo natural. Os seus destinos académicos

estavam sujeitos jurisdição do mestre e deste se esperava, consequente

mente,

que

introduzisse o estudante na comunidade e

na

vida universitárias.

O mestre deveria preparar os seus estudantes para exames, certificando-se de

que estes estavam à altura das várias exigências que lhes eram postas nas dife

rentes provas. Cabia também ao mestre elaborar um plano de estudos para os

seus alunos, de acordo

com

o qual frequentariam às suas lições por um periodo

de três ou quatro anos ou assistiriam a aulas sugeridas pelo mestre e leccionadas

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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  6\ os

FUNDAMENTOS

DA

CIENC1A MODERNA

NA

IDADE MEDIA

por outros. A escolha de um mestre por parte de um aluno seria provavel

mente feita com base em crité rios pessoais, os quais poderi am implicar consi

derações corno geografia, ligações familiares e amizades. provável que o

agrupamento mestre-estudantes permitisse relacionamentos mais personali

zados dentro da estrutura institucional, mais formal e até mesmo proibitiva,

da universidade no seu conjunto.

Ensino na faculdade de artes

o ensino era a actividade mais importan te nas universidades medievais,

mas os próprios professores - os mestres - não eram muito considerados.

Embora existissem mestres famosos, a sua fama raramente dependia do seu

modo de ensinar. Os professores eram encarados corno pouco mais do que

peças substituíveis. Pelo menos dois factores estiveram na base deste estado de

coisas. O curriculo nas diferentes universidades medievais era muito seme

lhante e, na maioria dos casos, repetia-se anualmente. Dado que não existiam

especialistas em ternas nem áreas nas faculdades de artes das universidades

medievais, não havia cursos opcionais a fazer parte do curriculo. Todos os

mestres em artes eram considerados capazes de ensinar qualquer dos cursos

regulares em filosofia natural (talvez também cursos nos ternas do quadrívio).

Assim neste sentido, os mestres eram substituíveis.

O segundo factor, que vem reforçar o primeiro, dizia respeito aos méto

dos e às técnicas de ensino. A instrução na universidade centrava-se

n

lição

lectio) e no debate

disputatio).

As lições eram de dois típos básicos, ordiná

rias e extraordinárias. As lições ordinárias formavam a base do programa de

ensino e eram sempre dadas de manhã por mestres regentes designados, isto

é

mestres no ensino activo. Corno prova da sua importância, nenhuma outra

lição ou actividade era permitida durante as lições ordinárias. Pelo contrário,

as lições extraordinárias tinham geralmente lugar à tarde ou em algum dia em

que não estivesse marcada qualquer lição ordinária. lições extraordinárias

eram mais flexiveis e informais e podiam ser ministradas tanto por estudantes

corno por mestres.

Um terceiro tipo de

liçãO

menos importante, também leccionado à tarde,

era geralmente dedicado a um sumário ou a urna revisão de problemas resul

tantes de u m texto clássico.

A intenção das lições ordinárias consistia n apresentação dos textos

requeridos para a constituiçãO do curriculo oficial. Os estudiosos que se

A

UNIVERSIDADE MEDIEVAL

47

debruçam sobre o assunto pouco têm dito acerca do que realmente sucedia

numa sala de aula universitária típica da Idade Média, provavehnente porque

professores e estudantes deixaram poucas descrições das suas experiências.

Contudo, é provável que

as

lições nas

salas

de aula fossem urna experiência

passiva para os estudantes, que se lim itariam a ouvir e talvez a tornar algumas

notas. Os estudantes que possuíam cópias do texto em discussão - e poucos

as tinham - podiam acompanhar a lição com a leitura.

As

lições eram, sobretudo, o domínio dos mestres que tinham urna liber

dade considerável para introduzir as suas próprias opiniões. Em lições que

durariam pelo menos urna hora e chegariam talvez a ter duas, um mestre em

artes podia dedicar grande parte do tempo ao estudo de um texto obrigatório,

digamos a Física ou Sobre os Céus de Aristóteles. Durante o século XIII, desen

volveram-se algumas técnicas para apresentação de textos. Inicialmente, o

mestre lia o texto oficial e comentava termos e expressões que requeressem

explicação. Pouco depois, contudo, os mestres começaram a resumir o texto e

também a acrescentar opiniões esclarecedoras e comentários críticos.

As

tra

duções de Avicena podem ter servido de modelo para esta abordagem. Os

comentários aristotélicos de Alberto Magno constituem um notável exemplo

da técnica de Avicena.

Outro método para a apresentação de urna lição ordinária consistia em

separar o texto e o comentário. Nesta abordagem, o professor, ou comenta

dor, não se limitava meramente a explicar cada secção do texto, podendo

também incluir

as

opiniões de outros comentadores e autores, bem corno

as

suas. Os numerosos comentários de Averróis às obras de Aristóteles eram

deste tipo e poderão ter servido de modelo

aos

comentários escolásticos do

século XIII. São Tomás de Aquino, Walter Burley e Nicole Oresme foram

apenas alguns dos escolásticos que seguiram o método de Averróis.

Nos finais do século XIII, emergiu um novo método de análise textual que

estava destinado a suplantar todos os outros. Na medida em que os mestres

medievais tinham um elevado grau de liberdade quanto ao tratamento dos

textos obrigatórios, alguns deles começaram a dar especial atenção a ternas e a

problemas especiais inerentes ao texto, regra geral considerando-os perto do

fim da lição. Porém, gradualmente, os mestres reduziram o tempo dedicado

ao comentário sequencial directo substituindo-o pela discussão de problemas

especiais. A seu tempo, a consideração

desses

problemas especiais, ou ques

tões questiones), veio a substituir totalmente o comentário. Entretanto, o sig-

nificado das questiones transcendeu a sala de aula, porque as lições de muitos

professores eram registadas por escrito e publicadas . Devemos enten der

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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48 os FUNDAMENTOS DA CI1 NClA

MODERNA

NA

IDADE

M1 D1A

publicaçãO como um processo segundo o qual os escribas da livraria da uni

versidade faziam cópias-padrão das lições dos mestres. Dessas cópias, outras

cópias se podiam fuzer depois para serem alugadas

ou

vendidas a estudantes e

a professores. Deste modo se disseminavam os exemplares de

uma

obra.

Daqui emergiu a mais importante das categorias de literatura escolástica,

as

questiones. Este género tornou-se quase sinónimo de método escolástico,

dado que, como veremos, utilizou a forma básica de um debate escolástico.

Os debates escolásticos, em que os estudantes eram participantes activos,

constituíam um aspecto vital da educação universitária. Enq uanto nas salas de

aula medievais os estudantes eram provavelmente ouvintes passivos, nos

debates tinham oportunidade de aplicar os conhecimentos aprendidos

A

emelhança das lições, os debates dividiam-se em ordinários e extraordiná

rios. O debate ordinário disputario ordinaria) tinha o mesmo estatuto que a

lição ordinária. Os mestres conduziam estes debates numa base regular,

geralmente uma vez por semana, e exigiam que os estudantes assistissem. Os

outros mestres também podiam assistir; todavia, cabia ao mestre que presidia

colocar uma questão, normalmente sobre

um

assunto que pretendia exami

nar mais cuidadosamente e para o qual não teria tido tempo nas lições ordi

nárias. Os outros mestres e estudantes participavam, uns defendendo, outros

contestando a questão levantada. Era,

no

entanto, o mestre presidente quem

resolvia a questão, isto é, quem sintetizava os vários argumentos numa res

posta definitiva ao problema posto.

Neste exercicio, os estudantes aprendiam a debater questões contenciosas,

alcançando assim uma experiência valiosa para a sua preparação como mestres.

Durante os primeiros dois anos, os estudantes eram, habitualmente, observado

res silenciosos. Contudo, nos terceiro e quarto anos, esperava-se que eles res

pondessem a perguntas e propusessem respostas. Com base nesta experiência, e

desde que cumprissem todos os requisitos prévios necessários, aos estudantes

que respondiam satisfutoriamente era dada permissão para resolver um debate,

ou seja, os estudantes podiam dar a resposta final a uma questão, baseando-se

em todos os argumentos prévios, a favor ou contra. Completada com êxito a

resolução

determinario),

o estudante passava a bacharel em artes.

Os bacharéis em artes que continuavam os estudos para obterem o grau

de mestre em artes, tinham de passar pelo menos

por

mais dois anos de

estudo. Além de assistirem a lições de filosofia natural, passavam geralmente

algum tempo dando aulas

à

tarde sobre textos que lhes eram atribuídos pelos

seus respectivos mestres, quer textos sobre lógica, quer, o que era mais

comum, sobre os livros de filosofia na tural de Aristóteles. Também fazia parte

AUNiVERSIDADE MEDlEV

AL 49

dos deveres do bacharel assistir a debates conduzidos tanto por mestres como

por estudantes. Quando esta parte do currículo de

um

estudante

se

comple

tava a contento do mestre, este recomendava que fosse permitido ao seu estu

dante iniciar-se , isto

é,

que lhe fosse permitido encetar

um

processo em

duas fases que terminava com a atribuição do grau de mestre em artes. Na

primeira

fase,

o bacharel participava

num

debate em que, pela última vez, res

pondia ao seu mestre. Durante a segunda, o bacharel recebia a insígnia do

mestrado e proferia uma breve lição inaugural, e depois presidia ao debate de

duas questões, resolvendo ambas.

Como parte dos requisitos para o direito

à

iniciação, o futuro mestre tinha

de jurar que ensinaria na faculdade de artes durante pelo menos dois anos,

dando lições ordinárias e presidindo a debates semanais. Para além dos

'debates ordinários , um mestre podia, de tempos a tempos, tomar a seu

cargo um debate quodlibetário

disputatio de quodlibet).

Com início na

faculdade de teologia no século XIII e estendendo-se à faculdade de artes no

século XIV, os mestres realizavam debates públicos uma ou duas vezes por

ano, geralmente

por

altura do Advento e da Quaresma. Sendo debates públi

cos, qualquer um podia assistir: estudantes, mestres e aqueles que não tinham

qualquer ligação à universidade mas desejavam observar um espectáculo fora

do comum, intelectual e gratuito,

ou

ainda que, não importa por que razão,

preferiam estar dentro de portas durante o tempo do debate.

Num debate quodlibetário, um mestre presidia. O debate decorria geral

mente em dois dias.

As

questões - e haveria muitas eram propostas por

membros da assistência. Qualquer questão era permitida, por mais contro

versa que fosse. Algumas dessas questões eram teológica e politicamente

explosivas, colocadas na esperança de conseguirem embaraçar o mestre que

presidia. Mas muitas questões -

se

não a maioria - eram s o r ~ problemas de

filosofia natural. Durante o primeiro dia do debate, podiam ser propostas até

trinta ou quarenta questões diferentes. Membros da assistência podiam ser

escolhidos para participar. Podiam colocar questões ou responder-lhes. Eram

propostas soluções hipotéticas a muitas questões. Na medida em que as ques

tões eram numerosas, abrangendo uma grande variedade de assuntos e fre

quentemente sem relação entre si, o mestre não era obrigado a considerá-las

na ordem em que tinham sido propostas. Pelo contrário, esperava-se que ele

as organizasse numa ordem exequível antes de, no dia seguinte, entr ar na

arena pública, altura em que demonstraria o seu virtuosismo ao resolver defi

nitivamente cada questão

pela

ordem pela qual

as

organizara. O debate quodli

betário proporcionava uma fuga emocional à comunidade universitária, urna

libertação momen tânea do rígido formato dos debates e das lições ordinários.

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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5 os

FUNDAMENTOS

DA C I ~ C A MODERNA

NA

IDADE

MÉDIA

Currículo da Faculdade de Artes

Até aqui, vimos como os estudantes obtinham os seus graus nas universi

dades medievais e os métodos de ensino desenvolvidos pelos mestres.

É

agora

altura de descrever o que os mestres ensinavam e o que se esperava que os

estudantes aprendessem.

Antes da introdução da ciência greco-árabe e da filosofia natural, a educa

ção das artes medieval baseava-se, como vimos no primeiro capítulo, nas

sete artes liberais. Com a introdução das

obras

de Aristóteles e da ciência

greco-árabe

no

final do século XII e

no

século XIII, cessou o primado das tra

dicionais sete artes e estas tornaram- se veículos de acesso ou auxiliares da filo

sofia ou, mais precisamente,

da

filosofia naturaL O novo conhecimento trans

formou as artes liberais. Três dos quatro temas do antigo quadrívio - aritmé

tica, geometria e astronomia - viram-se francamente enriquecidos pela ciên

cia greco-árabe. O trÍvio das sete artes liberais também se expandiu em parti

cular na área da lógica,

ou

dialéctica. A lógica foi a primeira das sete artes

liberais a ser bastante afectada pelo novo conhecimento, particularmente pela

nova lógica de Aristóteles que consistia

em

tratados de Aristóteles desco

nhecidos

no

Ocidente antes do século XII

Analíticos

Anteriores e

Analíticos

Posteriores

Tópicos

e

Refutações

Sofisticas).

Das sete artes liberais, a lógica

desempenhava o papel mais significativo

no

novo currículo, em grande parte

porque era entendida como um instrumento de análise aplicável a todos os

campos, papel que o próprio Aristóteles lhe atribuíra, ao chamar às suas obras

sobre lógica

Organon

ou instrumento. Contudo para além

da

lógica, que

fazia

parte do

trívio

tradicional

os

temas

do

quadrívio passaram para

segundo plano, sendo substituídos

no

proscénio pela filosofia de Aristóteles, a

qual veio a ser subdividida em três partes conhecidas colectivamente

por

as

três filosofias : natural, moral e metafísica. O currículo das universidades

medievais era essencialmente constituído pela lógica, os temas do quadrívio e

as três fIlosofias, das quais a filosofia natural era sem sombra de dúvida a mais

importante.

Lógica

A lógica era uma disciplina técnica que desenvolveu uma terminologia

própria destinada a enfrentar inúmeros problemas de linguagem e inferência.

Ocupava-se das propriedades dos termos e de como o contexto em que

um

AUNIVERSIDADEMEDJEVAL

151

termo surgia e afectava o seu significado, bem como das relações entre pro

posições. Ao longo da história medieval da lógica, foi abordado um grande

número de problemas que exigiram a criação

de

novos termos e novas técni

cas. Os próprios termos que vieram a ficar associados a essa história são teste

munho da

riqueza da lógica medieval e dos numerosos conceítos e técnicas

criados pelos seus praticantes. Contudo, por volta do século XVI o conheci

mento da lógica medieval, com a sua complicada terminologia, quase desapa

recera.

À

medida que o humanismo se tomou mais significativo no século XV

e

especialmente, no século XVI,

os

autores humanistas atacaram o que consi

deravam ser a esterilidade e barbárie

da

lógica medieval. Termos e expressões

tradicionais, muitos deles baseados nos

Tópicos

de Aristóteles, eram presa fácil

para as suas criticas mordazes. Tornou-se dificil defender uma disciplina com

uma

panóplia

de

termos

como

suposição , significação , univocação ,

equivocação , copulação , apelação , restrição , categorema , sincate

gorema , consequência , obrigação , exponibilia , sofismat a e insolu

bília .

No

século XVI a educação humanista dava ênfase ao estilo e ao con

teúdo

da

linguagem, por oposição aos seus aspectos formais. Além disso, a

lógica medieval parece ter estado ligada, tanto quanto possível, a

uma

forma

de expressão puramen te verbal. Era-lhe necessário desenvolver

um

método

de representação das várias relações lógicas possíveis de forma análoga ao

desenvolvimento

da

álgebra simbólica, que

tinha

vindo a progredi r desde o

século

XV.

Embora a lógica medieval fosse geralmente usada em exercícios e prob le

mas hipotéticos,

os

autores escolásticos aplicavam por vezes o seu conheci

mento de lógica formal a problemas de filosofia natural, presumindo que os

leitores entenderiam o seu papel na discussão.

Quadrívio

O quadrívio funcionava como fonte de ciência teórica e exacta para os

estudantes universitários medievais. Con tudo, diferia radicalmente do qua

drívio nos currículos das escolas monásticas e das catedrais

da

Alta Idade

Média. A ênfase posta nas ciências exactas nas universidades da Baixa Idade

Média não tinha igual amplitude nem alcance. Em Oxford,

as

ciências exactas

tornaram-se parte integrante do currículo a partir do século XIII, mas foi-lhes

conferida

muito

menos

importância

em Paris e

noutros

locais. Em Paris,

a

matemática

e as

outras

ciências do quadrívio raramente faziam parte

do que era proposto no curso regular. A matemática, por exemplo, não era

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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s2 OS FUNDAMENTOS DA C I ~ N C I MODERNA NA IDADE MÉDIA

habitualmente ensinada em Paris no século XIII e só o foi embora de forma

esporádica no século XIV. Os mestres interessados nas ciências exactas

podiam dar cursos privados a alunos que mostrassem interesse em tal.

Embora existissem na Idade Média numerosas obras de aritmética, geo

metria, astronomia e música, muitas traduzidas do árabe

ou

do grego, só

um

número limitado fazia parte dos textos obrigatórios nos cursos universitários.

No entanto, a maioria dos tratados sobre ciências exactas estava disponível.

Na verdade, muitos tinham sido escritos na Idade Média por eruditos com

educação universitária, durante a qual pela primeira

vez se

tinham familiari

zado com as ciências. Das quatro ciências do quadrívio, a aritmética e a

música eram as que mais se assemelhavam às suas correspondentes da Alta

Idade Média, ao passo que a geometria e a astronomia eram praticamente

novas ciências. Boécio, um autor da Alta Idade Média, favoreceu os tratados

fundamentais de aritmética e música, nomeadamente os seus

Arithmetica

e

Musica. Mas em ambos os casos, os tratados escritos no século XIII e

no século XIV foram muito além de Boécio. Embora a

Musica

de Boécio, jun

tamente com o tratado de Santo Agostinho, Sobre

a Música

De

musica),

fos

sem

os

textos-padrão para o ensino da música nos cursos de artes, novos e

importantes tratados foram escritos no século XIV por Johannes de Muris,

Philippe de Vitry e Guillaume de Machaut. Estes e outros autores desempe

nharam

um

papel importante ao criarem uma notação musical. Em aritmé

tica, o tratado teórico de Boécio foi suplantado pelos Livros VII a IX dos

Elementos de Euclides, que versavam sobre a teoria dos números, e pela

Arithmetica

de Jordano de Nemore fi.

ca.

1220), em dez livros, que incluía

mais de quatrocentas proposições e se tornou a fonte-padrão da aritmética

teórica na Idade Média.

A geometria era a base do currículo nas ciências exactas e os Elementos de

Euclides, obra quase desconhecida durante a Alta Idade Média, o seu texto

fundamental. Dos treze livros genuínos e dois apócrifos da versão medieval

latina dos Elementos, só os primeiros

seis

livros eram geralmente exigidos. Tal

como a aritmética, a geometria tinha

um

aspecto prático,

ou

aplicado. Na

Idade Média, a sua aplicação mais importante era na astronomia. Entre as

obras de astronomia, a mais conhecida e de maior relevo era o Almagesto de

Ptolomeu, que proporcionava as bases para o conhecimento técnico do tema.

Embora surgisse nas listas curriculares, o

Almagesto

era demasiado téc

nico para ser usado como texto. Eram necessários tratados muito mais sim

ples. Duas obras do século XIII tentaram suprir essa necessidade. A mais

famosa e popular foi o

Tratado da Esfera Tractatus de

sphaera) de João de

A

UNIVERSIDADE MEDlEV AL IS

Sacrobosco John

of

Holywood), cujos quatro capítulos ofereciam um breve

estudo das diferentes partes d o universo esférico finito. Embor a o quarto livro

fosse supostamente dedicado ao movimento planetário, o tratamento do tema

era tão sumário que um professor desconhecido de astronomia compôs uma

obra para remediar essa deficiência. A Teórica

dos Planetas

Theorica planeta-

rum familiarizou gerações de estudantes com

as

definições e os elementos

básicos da astronomia planetária e proporcionou-lhes

um

sistema estrutural

do cosmo. Num nível mais prático, os estudantes também aprendiam algo

acerca do cálculo dos vários dias festivos no calendário eclesiástico. Com este

fim, utilizavam-se tratados computacionais que eram usados sob o título

genérico de computus, os mais populares dos quais foram provavelmente os

de João de Sacrobosco e Robert Grosseteste. A geometria desempenhava tam

bém um papel no uso de um instrumento astronóntico chamado quadrante

por exemplo, o Tratado sobre o Quadrante de Roberto Anglico) e encontrou

igualmente aplicação em tratados sobre pesos ou na ciência da estática,

associados ao nome de Jordano de Nemore, e em tratados sobre perspectiva,

ou

óptica,

em obras

associadas aos

nomes

de

Ptolomeu,

Alhazen

lbn

al-Haytham), John Pecham e outros.

O significado dado

às

ciências exactas no currículo universitário não é

evi-

dente nas listas curriculares, a maior par te das quais não sobreviveu, e que, de

qualquer modo, eram pouco pormenorizadas. Podemos avaliar melhor a sua

importância a partir da atitude dos eruditos que eram igualmente professores

universitários. A geometria

não era avaliada apenas pelo seu uso prático em

medições, ou mesmo como um auxiliar vital para a compreensão filosófica.

Roger Bacon e Alexandre de Hales enalt eceram as suas virtudes como instru

mento para a compreensão da verdade teológica. Encararam a geometria

como essencial para um correcto entendimento do sentido literal de numero

sas

passagens das Escrituras como, por exemplo,

as

que respeitam

à

Arca de

Noé e ao Templo de Salomão.

interpretando o sentido literal com o auxílio

da geometria

se

podia atingir o sentido espiritual mais elevado. A geometria

era ainda considerada obrigatória para uma compreensão adequada da filoso

fia

natural, como Robert Grosseteste defendeu no seu tratado

Sobre

Linhas,

Angulos

e

Figuras.

Um universo que era co nstituído por linhas, ângulos e figu

ras não podia ser devidamente interpretado sem a geometria. Nem, aliás, o

comportamento da luz que, tal como a maioria dos efeitos fisicos, se multipli

cava e disseminava geometricamente na natureza.

Também à aritmética era atribuído grande valor. Aliás, era muitas vezes

considerada a mais importante entre

as

ciências matemáticas. No seu tratado

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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I

54\

os FUNDAMENTOS DA

CII lNCIA

MODERNA NA

IDADE

MIDIA

do século XN Comensurabilidade ou Incomensurabilidade

dos

Movimentos

Celestes,

Nicole Oresme dá a conhecer o modo como a aritmética era enca

rada e como

se

devia entender a sua relação com a geometria. No quadro de

um debate imaginário entre geometria e aritmética, a Aritmética apresenta-se

como a primogénita de todas as ciências matemáticas e a fonte de todas as

razões racionais, por conseguinte fonte igualmente da comensurabilidade dos

movimentos celestes e da harmonia das esferas. A previsãO do futuro assenta

também em tabelas astronómicas exactas, cuja precisão depende dos números

da Aritmética. Ao contra-argumentar, a Geometria reivindica maior domínio

do que o da Aritmética, na medida em que abrange razões não

racionais

como irracionais. Quanto à bela harmoni a alegadamente trazida ao

mundo

pela racionalidade da Aritmética, a Geometria contra-ataca ao fazer notar que

a rica diversidade do

mundo

apenas poderia gerar-se através de u ma combi

nação de razões racionais e irracionais, que só ela origina.

Tanto a geometria como a aritmética detinham um grande valor por serem

essenciais

à

compreensão dos modos de funcionar da natureza e

à

descrição da

variedade de movimentos e acções verificada no mundo . A ênfase dada, na Idade

Média, à geometria e à aritmética devia fazer hesitar aqueles que têm defendido

que os filósofos naturais e os teólogos medievais eram hostis

à

matemática.

A ciência da astronomia, que incluía a astrologia, era igualmente louvada

com regularidade como instrumento essencial para compreender o universo. A

astronomia podia prever, mas não determinar, acontecimentos futuros. Roger

Bacon considerava-a essencial

à

Igreja e

ao

Estado, bem como aos lavradores,

alquimistas e médicos. Robert Grosseteste encarava-a como inestimável para

muitas outras ciências, incluindo a alquimia e a botânica. música era igual

mente concedido

um

estatuto elevado. Era considerada útil na medicina porque

os médicos podiam empregá-la como parte de

um

regime geral de saúde. Bacon

considerava também a música importante para estimular as paixões na guerra e

acalmá-las na paz. Dado que

as

expressões e os instrumentos musicais eram fre-

quentemen te mencionados nas Escrituras, pensava-se que o teólogo sensato faría

bem em aprender tudo o que pudesse sobre música.

Três filosofias

Embora as sete artes liberais tivessem sido ampliadas e, inclusive, tran s

formadas na Baixa Idade Média, nem

por

isso deixaram de representar a

configuração tradicional

da

educação. O conhecimento realmente novo nas

A UNIVERSIDADE

MEDIEVAL

I

universidades do século XIII surgiu com a introdução das obras filosóficas de

Aristóteles, que viriam a constituir a principal exigência para o grau de mestre

em artes. Com base nas obras de Aristóteles, distinguiam-se três domínios

filosóficos principais: filosofia moral ou ética), metafísica e filosofia natural.

O texto mais relevante para a primeira destas áreas temáticas era a

Etíca

a

Nicómaco enquanto a

Metafisica

era o texto mais importante para a segunda.

Das três filosofias, a filosofia natural de Aristóteles era a mais importante e

constituía o cerne de

uma

educação universitária. Os livros naturais

libri

naturales) de Aristóteles eram utilizados como textos para o estudo da filoso

fia

natural, incluindo

Física

Physica) e

Sobre a Alma

De

anima),

provavel

mente os dois livros mais importantes d a filosofia natural, juntamente com

Sobre os Céus

De

caelo), Sobre a Geração e aCorrupção

De generatione

et cor-

ruptione), Meteorologia Meteora)

e

Pequenas Obras

sobre

Coisas Naturais

Parva

naturalia).

Embora não sendo geralmente tema de lições e só raras

vezes, se porventura alguma, textos obrigatórios, as obras biológicas de Aris

tóteles pertencem também à literatura da filosofia natural medieval. Na Idade

Média, a filosofia

natural

era utilizada como alicerce da filosofia moral e

estava quase sempre interligada

à

metafísica. Até mesmo a teologia recorria

profusamente a ela, o mesmo sucedendo com a medicina e, em determinadas

ocasiões, a música. Em função da sua importância vital, este livro centrar-se-á

na filosofia natural e em mostrar como os problemas que tratava e os méto

dos usados para os resolver se viriam a revelar inestimáveis para o desenvolvi

mento dos prím órdios da ciência moderna.

Faculdades superiores de teologia e de medicina

As faculdades superiores de teologia e de medicina serviam-se extensiva

mente da filosofia natural;

por

isso, parece-me oportuno fornecer alguma

informação acerca destas faculdades. Embora as escolas de teologia não exi

gissem, regra geral, o grau de mestre em artes para admissão aos seus progra

mas, a maioria dos que a eles acediam possuíam-no ou tinham uma educação

substancial em artes, particularmente lógica e filosofia natural. Como vere

mos

no

Capítulo 5, muitos teólogos encaravam a lógica e a filosofia natural

como ferramentas essenciais à elucidação dos problemas teológicos, muito

embora

as

autoridades eclesiásticas se queixassem frequentemente - até ao

século XVI - de que os teólogos estavam, tanto para seu bem como para o da

própria teologia, demasiado interessados nestes temas seculares.

,.-

 

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56 os FUNDAMENTOS DA CIllNCIA MODERNA NA IDADE Ml DlA

Tendo

bases

sólidas

em

filosofia natural, os estudantes estavam prontos a

iniciar o longo trajecto que os conduziria a um mestrado (ou doutoramento)

em teologia, percurso que, e m diferentes períodos, se estendeu po r dez a dezas

seis anos. Aqueles que alcançavam o grau em questão rondavam muitas vezes

os trinta e cinco anos, uma idade bast ante avançada numa época em que a espe

rança média de vida não seria superior a cinquenta anos. Os estudantes de teo

logia estudavam intensamente dois textos: a Bíblia e

as

Sentenças de Pedro

Lombarda. Neste curso prolongado, cada estudante assistia a lições sobre os

dois textos básicos durante os primeiros cinco a sete anos, findos os quais

ascendia a "bacharel bíblico" baccalarius biblicus) e passava a dar lições sobre

certos livros da Bíblia durante dois anos. Os que ultrapassavam esta fase esta

vam aptos a leccionar durante aproximadamente dois anos sobre as Sentenças,

passando a ser conhecidos por "bacharéis sentenciais" baccalarii

Sententiarií).

Ao

concluir este ciclo de lições, o candidato chegava a "bacharel formado"

baccalarius formatus) ao fim de mais quatro anos, ao longo dos quais se dedi

cava a muitas das actividades dos mestres em teologia. como, por exemplo, pro

ferir sermões e dirigir debates quodlibetários.

Após

todos estes anos de estudo e

treino, o bacharel completava finalmente tudo o que lhe era exigido para obter

a licença para ensinar e receber o grau de mestre em teologia.

Entre as disciplinas universitárias, a medicina estava mais intimamente

ligada às artes do que à teologia. Na preparação para o estudo e a prática da

medicina, a astrologia e a filosofia natural desempenhavam papéis significati

vos. A maioria dos estudantes que frequentava escolas médicas tinha o grau

de mestre em artes ou uma formação razoável em artes. Era uma prática bas

tante comum reduzir a extensão do estudo àqueles que eram considerados

proficientes nas artes. O tempo de estudo para o grau médico variava entre

seis e oito anos. Tal como nas outras faculdades, os estudantes obtinham os

seus graus em medicina assistindo a lições obrigatórias sobre textos determi

nados, tomando parte

em

debates e submetendo-se a exames orais.

Dado que a quase totalidade dos que obtin ham o grau em medicina se dedi

cavam à prática privada, o currículo médico era orientado para a prática,

embora os textos fossem bastante teóricos. Os estudantes adquiriram experiên

cia prática durante o Verão, dando assistência a médicos, quer na universidade

quer na prática privada. A partir do século XN também se esperava que assis

tissem a dissecações que, em principio, seriam realizadas regularmente.

Havia uma grande quantidade de literatura médica

na

Idade Média e,

como base das lições, só podiam utilizar-se textos seleccionados. As obras

traduzidas do árabe desempenhavam um papel fundamental e incluíam

t

AUNIVERSIDADE

MEDIEVAL 57

numeroso s tratados de Galeno (ca. 129-ca. 200), o grande médico grego, bem

como de certos médicos muçulmanos, muito particularmente de Avicena

(Ibn Sina) Cdnone

de

Medicina), de Rhazes (al-Razi,

f.

925) Liber continens)

e de Averróis Obn Rushd)

Colliget).

Papel social e intelectual da universidade

A finalidade das faculdades de teologia, medicina e direito é bastante evi-

dente. Tratavam-se de escolas profissionais. O propósito de uma faculdade de

teologia era formar teólogos; o de uma faculdade de medicina, formar médicos;

e o de um a faculdade de direito, formar advogados.

Os

textos que se estudavam

em cada uma dessas faculdades destinavam-se a

esses fins.

Mas qual era o objec

tivo da faculdade de artes? Que pretendiam os bacharéis e os mestres alcançar

com o currículo que acabei de descrever? Que valor poderia ter uma educação

baseada na lógica, numas poucas ciências exactas e na filosofia natural?

A finalidade mais evidente do currículo de artes era formar novos mestres

que fossem ensinar nas faculdades de artes da Europa. E evidentemente,

alguns, se não muitos, mestres em artes ganhavam a vida como professores.

Aliás os novos mestres eram obrigados a ensinar durante pelo menos dois

anos após a obtenção

do

grau.

Mas

que dizer dos mestres que não escolhiam

fazer carreira no ensino? Que perspectivas se abriam àqueles estudantes que

tinham apenas um bacharelato

em

artes ou apenas um ano ou dois de forma

ção em artes? Haveria oportunidades de emprego para indivíduos que tinham

poucos anos de educação em artes e estavam familiarizados com a lógica, o

quadrívio e as três filosofias? Para esses indivíduos, as melhores oportunida

des de emprego estariam provavelmente numa corte real

0lJ

ducal, ou na

Igreja,

ou

talvez mesmo

num

governo comunal ou municipaL Mesmo uma

breve frequência numa universidade implicava a capacidade de escrever latim

e pelo menos um conhecimento rudimentar de cálculos aritméticos, o que

eram talentos úteis para potenciais burocratas.

Mas,

em muitos casos, os anti

gos

estudantes devem ter sido capazes de fazer uso da sua educação para ofe

recerem aos seus empregadores muito mais do que o mínimo que lhes era

exigido. Ao fim e ao cabo, tinham sido expostos a múltiplas ideias sobre a

vida e o mundo físico que eram consideradas importantes na sua época.

E no entanto, o currículo de artes que descrevi parece, à primeira vista,

remoto e irrelevante para o funcionamento da sociedade medieval. Porque

seria esse currículo tão teórico e desprovido de cursos práticos que pudessem

revestir-se de maior utilidade para as necessidades da sociedade? Por que motivo

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58

os

FUNDAMENTOS DA CI NCIA MODERNA NA

IDADE MIIDIA

não incluíam as universidades medievais nos seus currículos temas práticos

importantes das artes mecânicas artes mechanicae), como arquitectura, ciência

militar, metalurgia e agricultura? Embora a comunidade universitária reconhe

cesse o valor intrínseco

do

currículo de artes e o seu valor

como

curso preliminar

de acesso

às

faculdades su periores

de

medicina, teologia e direito, torna-se mais

dificil determin ar

como

encarava a sociedade,

no

seu todo, um currículo de artes

baseado

na

lógica,

em

pedaços

de um punhado

de ciências exactas e numa dose

extrema de filosofia e filosofia natural aristotélicas.

Na realidade, o currículo de artes

na

universidade medieval não fora desen

volvido para responder

às

necessidades práticas

da

sociedade. Evoluiu

do

legado

intelectual greco-árabe que chegara através das traduções dos séculos XII e XIII.

Esse legado consistia num corpo de obras teóricas que deveriam ser estudadas

seu valor intrínseco e

não por

razões práticas ou monetárias. A antiga tradi

ção, exemplificada por Aristóteles e reforçada po r Boécio e outros, punha grande

ênfase

no amor

ao conhecimento pelo conhecimento. Desdenhava daqueles que

aprendiam para ganh ar a vida ou para fazer coisas de

ordem

prática. Professores

e estudantes da sociedade medieval concordavam plenamente com este pon to de

vista e

foi

de acordo com ele que moldaram a universidade medieval.

Mas determinar

se uma

coisa é prática ou

não

depende de

quem

a avalia.

O tipo de ensino teórico realçado na Antiguidade e

na

Idade Média (ver Capí

tulo 7) pode ter sido

encarado

como

eminentemente

pragmático e judicioso.

Era possível deduzir dele

conhecimento

acerca

do

modo

como

o

mundo -

cionava e adquirir assim

uma

consciência profunda das causas e dos efeitos

perpétuos que davam forma à existência

humana.

Muitos teriam julgado esse

conhecimento

mais valioso

do

que

qualquer outro

e,

portanto, eminente

mente prático. Apesar da sua ati tude fundamental, os erudit os medievais con

sideravam importante conhecer a estrutura e o funcionamento do Universo,

pois era o principal objectivo

de

uma educação

em

artes.

Com a aceitação das universidades pela Igreja e pelo Estado, a sociedade

no

seu

todo

acabou por aceitar o ideal de conhecimento de artes da universi

dade,

um

ideal que

era

considerado de grande valor pessoal

para

cada indiví

duo, mas de pouco valor directo para as actividades seculares da sociedade.

Este estado

de

coisas manteve-se durante séculos. Não houve qualquer expan

são significativa

do currículo de artes durante

a

Idade

Média.

com o

Renascimento vieram a dar-se modificações e, mesmo então, a expansão

inclinou-se

para

a inclusão

de

temas humanistas, como a história e a poesia,

que estiveram ausentes

durante

a Idade Média,

em

vez

de

o fazer

na

direcção

dos temas práticos. Na realidade, o ideal de conhecimento antigo e medieval

adquirir saber pelo saber -

permaneceu

quase intacto.

A UNIVERSIDADE MEDIEVAL

59

Se o programa de artes nas universidades medievais não ofereceu benefí

cios práticos à sociedade, nem

por

isso deixou de lançar as bases

do

desenvol

vimento da ciência e

do

espírito científico. Isto ficou a dever-se

à

estrutura e

às

tradiçóes peculiares

da

universidade, certamente

um

legado incomparável

da

Idade Média

para

a civilização ocidental. As suas extraordinárias realiza

ções chegaram inclusivamente a infiltrar-se no

mundo

árabe. Ibn Khaldun

0332-1406 , um grande hist oriador islâmico, declarou:

Chega-nos igualmente a notícia

de

que as ciências filosóficas são gran

demente cultivadas

na

terra de Roma e ao longo da costa adjacente

setentrional

ao

país dos Cristãos Europeus. Diz-se que são ali de novo

estudadas e ensinadas

em numerosas

aulas.

As

suas exposições siste

máticas são globais, as pessoas que as conhecem numerosas e os que as

estudam muitíssimos.

1

Embora

a universidade medieval fosse radicalmente diferente de qualquer

instituição conhecida dos Antigos Gregos, Romanos e Arabes, é bem familiar

para os estudantes e os professores de qualquer universidade modema que

é

afinal, a

sua

descendente directa.

Cultura manuscrita

da

Idade Média

Antes do advento da imprensa em meados do século

XV

a existência dos

tratados de ciência e filosofia

natural

medievais dependia de cópias

manus

critas. Consequentemente, os tratados estavam sujeitos a todas

as

fantasias e

incertezas de qualquer sistema que tenha de confiar num escriba ou num

copista para produzir uma ou mais cópias de um exemplar, ou para escrever

uma

lição

enquanto

era proferida.

Os

textos latinos medievais estavam ainda

sujeitos a

outras

vicissitudes

próprias

desse sistema os erros por comlssao

ou omissão porque os copistas medievais

tinham

desenvolvido um elabo

rado

sistema de abreviaturas destinadas a acelerar o processo de copiar e

tam

bém

a

poupar

papel. Essas abreviaturas conferiam frequentemente mais

um

elemento de incerteza à interpretação de um texto, tanto para alguém que

pretendia lê-lo,

como

para alguém

que

desejava copiá-lo .

As

dificuldades

na

decifração dos manuscritos medievais afectaram a

moderna

compreensão

da

ciência medieval sobretudo

de duas

maneiras.

A

primeira

diz respeito à

integridade

da

obra de um autor enquanto

ia

sendo copiada, recopiada e lida

por

estudantes e eruditos

ao longo

dos

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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6 os FUNDAMENTOS

DA CleNClA

MODERNA NA

IDADE MllDlA

séculos. Dado que

as

cópias podiam variar drasticamente em resultado de erros

dos copistas introduzidos em qualquer altura

do

processo de disseminação a

compreensão dos objectivos de um autor em algumas ou talvez em muitas

passagens era quase inevitavelmente distorcida. O facto de só se dispor de

obras escritas e copiadas

à

mão significava que versões

do

mesmo tratado em

Paris Oxford e Viena podiam divergir substancialmente. Nos textos astronó

micos e matemáticos por exemplo diagramas e figuras essenciais podem ter

sido incluídos em algumas versões mas omitidos ou

parcialmente repro

duzidos noutras. Mesmo qu ndo um diagrama era incluído os erros do

copista podiam reduzir ou

destruir a sua utilidade. Em textos puramente ver

bais podiam ser omitidas ou acrescentadas palavras pelo copista. Muitas das

cópias de obras medievais que sobreviveram até hoje não eram feitas por

copistas profissionais mas por estudantes que tinha m copiado os textos para

seu uso pessoal.

Essas

cópias eram frequentemente passadas a outros estudan

tes que introduziam mais erros e alterações. A estes problemas acrescentava

-se

ainda o d a legibilidade. A caligrafia dos copistas era muitas vezes dificil de

decifrar e em muitos casos simplesmente ininteligível.

Os livreiros da universidade t inham como responsabilidade a produçãO de

textos de confiança para o pessoal universitário. Sucedia muitas

vezes

recebe

rem directamente do aut or a versão original de

um

tratado. Desse original

faziam uma ou mais cópias. Os livreiros estavam autorizados a emprestar os

textos no todo

ou

em parte a estudantes que por uma taxa

os

podiam copiar

p r

uso próprio. Como é óbvio

as

cópias dos estudantes variavam em quali

dade. Muitas eram subsequentemente passadas a outros estudantes que p or sua

vez as

copiavam. Eram introduzidos erros em praticamente todas

as fases

do

processo de multiplicação e disseminação dos textos. Talvez a única excepção

esteja nas cópias da Bíblia que eram cuidadosamente inspeccionadas.

A segunda maneira pela qual a interpretação dos manuscritos medievais

pode afectar a nossa compreensão

d

ciência medieval tem a ver co m os

m -

tes impostos aos modernos estudiosos que lêem ou preparam para publicação

tratados escritos na Idade Média. A maioria começaria provavelmente com

uma lista dos manuscritos existentes do tratado em questão. A qualidade des

tes manuscrito s que sobreviveram aos estragos do tempo deter mina o seu

nível de inteligibilidade. Em muitos casos hiatos significativos na compreen

são desse tratado permenecerão provavelmente mesmo depois de

os

estudio

sos modernos terem completado o seu trabalho editorial.

evidente que

as

diferenças entre a versão original de um tratado medie

val e todas as suas cópias posteriores eram n melho r hipótese consideráveis

e na pior imensas. Do nosso pont o de vista é fácil perceber como foi dificil a

A

UNIVERSIDADE MEDIEVAL

161

prática da ciência na Idade Média. A preservação de versões razoavelmente

fiéis dos textos básicos greco-árabes que tinham sido traduzidos para latim

era em si mesma uma tarefa enorme. A isso temos de acrescentar a panóplia

de textos científicos comentários e questões medievais que foram copiados e

recopiados. E infelizmente nem to dos os textos foram copiados e recopiados.

Houve muitos tratados que simplesmente desapareceram. Durante a Idade

Média o conhecimento tinha tantas possibilidades de desaparecer como de

ser preservado. Devia ser requerido um esforço enorme só para manter o t -

tu

quo ou para reconstituir um texto que fora corrompido. Embora não nos

seja possível avaliar

os

efeitos negativos para a ciência e para a filosofia natura l

medievais devidos à sua dependência de textos escritos à mão po demos con

jecturar que terão sido enormes.

A introdução da imprensa em meados do século

XV

alterou significativa

mente este quadro. Com o advento dos livros impressos o conhecimento em

geral e a informação técnica em particular puderam ser disseminados com

uma rapidez e uma exactidão dificilmente imagináveis no tempo dos manus

critos. A ciência foi particularmente beneficiada pela imprensa. Cópias idênti

cas de uma obra científica podiam ser espalhadas pela Europa num tempo

relativamente breve. E no entanto discute-se ainda qual terá sido precisa

mente o papel da imprensa na geração d Revolução Científica. Somos força

dos a perguntar se n ausência d imprensa o velho sistema de copistas

poderia ter sido melhorado a ponto de multiplicar as cópias dos tratados

científicos e dar assim resposta

às

necessidades intelectuais da Europa. E

as

bibliotecas reais ducais municipais e universitárias em constante expansão

teriam proporcionado aos estudiosos europeus um acesso suficiente para per

miti r a expansão contínua da ciência e da instrução? Felizmente não nos cabe

responder a essas perguntas neste estudo. As contribuições fundamentais para

o dealbar da ciência modema sobre que nos debruçamos aqui já tinham ocor

rido muito antes de a imprensa de Gutenberg ter transformado a cultura

manuscrita da Europa num cultura impressa.

Embora a reprodução e a disseminação de manuscritos levantasse sérios

problemas n Idade Média não devemos conclui r que fossem insuperáveis.

Apesar dos obstáculos a qualidade dos textos escritos à mão sobre ciência e

filosofia natural

à

disposição dos estudiosos medievais era frequentemente

mais do que adequada para a sua compreensão e para a introdução de contri

buições significativas. O legado que chegou até nós pode ser compreendido e

muitas vezes admirado. No cerne desse legado estava a filosofia natural de

Aristóteles profundamen te enraizada n universidade medieval e que irei

agora descrever de forma sucinta.

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o

LEGAI;JO DE ARISTÓTELES PARA

A

DADE MEDIA 63

4

O legado de Aristóteles para a Idade Média

Os livros naturais de Aristóteles constit uíam a base da filosofia natural nas

universidades e

é

neles que devemos procurar como é que os estudiosos

medievais compreendiam a estrutura e o funcionamento do Universo. Recor

rendo a hipóteses, principios demonstrados e princípios evidentes em si mes

mos, Aristóteles impôs um sentido sólido de ordem e coerência a um mundo

até

considerado desco ncertante. Os discípulos medievais de Aristóteles, que

constituíram a classe dos filósofos naturais na Baixa Idade Média, iriam even

tualmente alargar os principios de Aristóteles a actividades e problemas para

além do que o pró prio filósofo considerara.

Aristóteles estava convencido de que o mundo que procurava compreen

der era eterno, sem principio

nem

fim. Encarava a eternidade do

mundo

como algo bem menos problemático do que qualquer assunção de um início

cósmico que implicaria igualmente

um

futuro fim para o mundo. Era melhor

postular a eternidade do que ser forçado a entrar numa explicação que iria

requerer uma infinita regressão de principios causais. A ideia de que a matéria

pudesse ter um início parecia impossível aos Antigos Gregos porque, se che

gássemos a uma alegada matéria primitiva, isso conduziria inevitavelmente

à

questão de saber o que a teria causado, e assim por diante. Entretanto, sem um

início, o mundo não podia ter sido criado, pelo que

as

ideias de Aristóteles

sobre a eternidade do mu ndo o colocavam em oposição aos teólogos das gran

des religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. De todas

as

questões sobre as quais a filosofia natu ral e a teologia se debruçaram durante o

século XIII

n

Europa Ocidental, os teólogos encararam a eternidade do

mundo como a mais difícil e a mais ameaçadora para a

(ver capítulo

Por out ro lado,

se

o

mundo

de Aristóteles era eterno e po rtanto suspeito,

a insistência na sua unicidade colocavam-no em plena concordância com

as

escrituras sagradas das três grandes religiões. Encarava o mun do em que

vive-

mos como único, uma grande esfera finita, para além da qual nada podia

existir. Toda a matéria existente estava contida neste mundo, e nada ficava

de

fora. Sem corpo, não podiam existir fora do mundo nem lugar, nem vazio,

nem tempo porque

as

definições de lugar , vazio e tempo dependiam

da existência de corpo. Para Aristóteles, o lugar próprio de um corpo era sem

pre a superfície interna de um outro corpo que o rodeava imediatamente e

estava em contacto directo com ele Assim, um lugar é definido como algo em

que um corpo deve estar presente. Sem a existência de um corpo para lá do

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64 os

FUNDAMENTOS

DA

CIl'.NCIA MODERNA

NA IDADE MÉDIA

mundo em que vivemos, nenhum lugar pode existir (para mais infomlaçóes

sobre a noção de lugar, ver mais adiante neste capítulo). De modo seme

lhante, um vazio é algo em que a existência de um corpo é possível, embora

de forma não actuaL Por conseguinte, se nenhum corpo pode existir, nenhum

vácuo é igualmente possíveL Por

fim,

o tempo é a medida do movimento.

Sem corpo não é possível movimento nem, por conseguinte, tempo. Aristóte

les

concluiu que toda a existência se situa no interior do nosso cosmo, e nada

no seu exterior. O nada nesta acepção não deve ser concebido como um

vácuo, sendo mais bem caracterizado como a total ausência de

ser.

A decisão mais importante que Aristóteles tomou acerca do mundo físico

eterno foi talvez a de o dividir em duas partes radicalmente diferentes, a ter

restre, que se estendia desde o centro da Terra até à esfera lunar, e a celeste,

que abarcava tudo desde a Lua até às estrelas fixas. Na região terrestre, a

observação e a experiência tornavam evidente que a mudança era incessante,

ao

passo que na região celeste a mudança era quase inexistente. As observa

ções astronómicas herdadas do passado convenceram Aristóteles de que

nunca tinham sido detectadas quaisquer mudanças nos céus Sobre os Céus

1.3.270b.13-17), pelo que inferiu que as mudanças não ocorriam - nem

podiam ocorrer nele. Para compreender melhor o mundo de Aristóteles,

será vantajoso descrever primeiro a região terrestre da mudança, o que, por

sua vez, tornará mais compreensíveis

as

propriedades e os atributos imutáveis

da região celeste.

Região terrestre: domínio de incessante mudança

Grande par te da filosofia natural de Aristóteles consiste num tentativa

de identificar e explicar os princípios da mudança n região terrestre, prin

cípios que moldaram as interpretações medievais dos processos que fazem

do mundo o que

ele

é.

Embora vivamos num mundo que não teve começo,

mesmo assim Aristóteles explica como devemos imaginar o desenvolvi

mento da matéria e como ela se diferencia nos quatro elementos básicos

- terra, água, r e fogo - que formam

as

partes constituintes de todos

os

corpos materiais da região terrestre. A base subjacente a todos os corpos

materiais

é

a matéria-prima que, embora real, não tem existência indepen

dente. Aristóteles deduz simplesmente a sua realidade porque era essencial

pressupor a existência de algum tipo de substrato em que qualidades e for

mas podiam tornar-lhe-se inerentes e produzir matéria sensível. A matéria

-prima não t em propriedades próprias, estando sempre associada a qualida

des que se lhe tornam inerentes e a definem.

o

LEGADO

DE

ARlSTÓTELES

PARA

A

IDADE Ml .DIA

65

Que propriedades ou qualidades ergueriam a matéria-prima a um nível

mais elevado de existência, digamos ao nível de um elemento? Depois de elimi

nar uma série de possibilidades, Aristóteles argumenta que dois pares de quali

dades contrárias, ou opostas, podiam atingir esse efeito: quente e frio, seco e

húmido. Dado que nada poderia ser simultaneamente quente e frio, nem

seco

e

húmido, nenhum par

de

qualidades opostas

se

poderia tomar inerente simulta

neamente

à

matéria-prima. Contudo, as combinações de pares não opostos são

possíveis e podem produzir elementos.

Se as

qualidades

frio

e

seco

se tomassem

inerentes à matéria-prima, produzi riam o elemento terra; frio e humidade pro

duziriam

água;

calor e humidade , ar; e calor e secura, fogo.

Assim

foram obti

dos os quatro elementos. Os corpos da região terrestre não eram, co ntudo, ele

mentos puros, mas misturas, ou compostos, de dois ou mais elementos, geral

mente designados na Idade Média como corpos mistos .

Na filosofia natural, ou fisica, de Aristóteles, cada corpo é um composto

de matéria e forma, onde a matéria-prima existe como substrato a que a

forma se torna inerente. A forma de uma coisa, ou de um corpo, é a soma das

suas características essenciais, as propriedades que fazem dessa coisa o que ela

é.

Natureza,

no

domínio terrestre, mais não é do que um termo colectivo para

a totalidade dos corpos existentes, cada um constituído por matéria e forma.

Cada um desses corpos pertence à sua próp ria espécie e possui as proprieda

des e características - ou seja, a forma - da sua espécie. Se estiver livre de

impedimentos, agirá em conformidade com essas propriedades. Aristóteles

atribuiu, pois, aos corpos do mundo o poder de actuarem de acordo com as

suas capacidades naturais. Deste modo, concebeu uma causalidade secundá

ria, quando os corpos eram capazes de actuar sobre outros corpos, isto é,

quando eram capazes de causar efeitos noutros corpos. Aristóteles acreditava

que cada efeito era produzido por quatro causas agindo em simultâneo;

nomeadamente, uma causa material, ou aquilo de que alguma coisa é feita;

uma causa formal, ou a estrutura básica a ser imposta a alguma coisa; uma

causa eficiente,

ou

o agente de uma acção; e uma causa final, ou a finalidade

para a qual se empreende a acção.

As

causas que produzem uma pedra não ó

a fazem pesada, mas, se nada se lhes opuser, também lhe conferem a capaci

dade de cair naturalmente em direcção ao centro da Terra com um movi

mento rectillneo. De modo semelhante, os agentes que produzem o fogo con

ferem-lhe leveza

e,

consequentemente, a capacidade de se elevar naturalmente

para cima, sempre que nada os contrariar.

Aristóteles ocupou-se também dos tipos de mudanças que as quatro cau

sas

podiam originar, distinguindo quatro tipos: 1) mudança substancial,

qu ndo um forma supl nt outr na matéria subjacente a esta, como

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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66 os RJNDAMENTOS DA CIID<CJA MODERNA NA IDADE MeoIA

quando o

fogo

reduz uma acha a cinzas; (2) mudança qualitativa, quando a

cor de uma folha é alterada de verde para castanho na mesma matéria subja

cente; (3) mudança de quantidade, quando um corpo cresce ou diminui man

tendo sob todos os

outros

aspectos a sua identidade; e, finalmente,

mudança de lugar, quando um corpo sofre mudança ao deslocar-se de um

para outro.

Destes quatro tipos de mudança, só o primeiro e o quarto requerem expli

cação. A mudança substancial é a forma mais básica de mudança, implicando

geração e corrupção. Para Aristóteles, cada mu'dança substancial implicava

que algo tinha passado a existir porque qualquer outra coisa tinha deixado de

existir. Este passar-a-existir e deixar-de-existir das coisas era a base de toda a

mudança na região terrestre. Acontecia com todas as substâncias compostas

de matéria e forma, o que, na região terrestre, incluía todas

as

coisas.

As

for

mas, ou qualidades, eram potencialmente substituíveis por outras suas con

trárias. Quando isto sucedia, uma substância era transformada noutra. or

exemplo, o fogo, que possui

as

qualidades primeiras de calor e secura, trans

forma-se em terra, que possui as qualidades primeiras de secura e frio,

quando o calor no fogo é substituído pelo frio, sua qualidade,

ou

forma, con

trária. Enquanto uma forma

exisk

realmente

na

matéria diz-se da sua contrá

ria que está em privação embora tendo o potencial de substituir a forma

actual. Eventualmente, cada forma ou qualidade potencial virá a tornar-se

naquilo em que é susceptível

de se

tomar. De outro modo uma forma perma

neceria irrealizada e a natureza tê-Ia-ia produzido em vão. Enquanto uma

forma de um par de formas contrárias se realiza em matéria, a sua contráría

está ausente e em privação, porque duas formas contrárias não podem existir

em simultâneo no mesmo corpo. Virtualmente tudo muda, isto é, geração e

corrupção implicam a posse de uma forma, e a exclusão da outra, de um par

de formas ou qualidades contrárias.

A última das quatro mudanças, mudança de lugar, representa aqUilO a que

geralmente chamamos movimento, a deslocação de

um

corpo de

um

lugar

para outro. A doutrina do lugar de Aristóteles pode ser encarada de duas

maneiras. No seu significado mais lato, diz respeito

à

estrutura do mundo

sublunar; e no seu sentido mais estrito, diz respeito ao lugar específico de um

único corpo. O sentido lato de lugar é, na realidade, a doutrina do lugar natu

ral, na qual Aristóteles concebeu a parte do mundo abaixo da Lua como uma

região estruturada, dividida em quatro regiões concêntricas, sendo cada uma

o lugar natural de

um

dos elementos, e a região em direcção

à

qual

esse

ele

mento se deslocaria naturalmente se estivesse livre de qualquer impedimento.

Assim, o anel concêntrico exterior, localizado logo abaixo da superfície côncava

o

LEGADO DE

ARISTÓTELES PARA A

IDADE

MI DIA

67

da esfera é o lugar natur al do fogo; o anel concêntri co seguinte é o

lugar do ar, para o qual o ar se ergue quando se encontra nas regiões abaixo, e

para o qual cairia se, p or alguma razão, estivesse localizado na região do fogo;

abaixo do ar, fica o anel da água; e abaixo desse a esfera da nossa Terra, cujo

centro coincide com o centro geométrico do Universo.

A esfericidade da Terra era uma verdade básica no sistema do mundo de

Aristóteles. Como prova observável da esfericidade da Terra, Aristóteles apon

tou

as

linhas curvas na superfície da Lua durante um eclipse lunar, inferindo

com toda a razão que eram projectadas pela sombra de uma Terra esférica

interposta entre o Sol e a Lua. Fez igualmente notar que,

ao

mudarmos de posi

ção na superfície terrestre, surgiam

à

vista diferentes constelações, indicando

que a Terra possuía uma superfície esférica. A esfericidade da Terra parecia ser

ainda confirmada pelo modo como se observava que os corpos caíam para a

superfície terrestre, em linhas não paralelas que se encontravam no seu centro.

Se todos os corpos terrestres caíam desta maneira, agrupar-se-iam no centro

do

mundo e formariam naturalmente uma esfera.

Os

argumentos

de

Aristóteles

em favor de uma Terra esférica foram aceites de imediato.

Mas, e quanto ao lugar de qualquer corpo particular? A doutrina do lugar

de Aristóteles baseia-se na convicção fundamental de que o mundo é uma

plenitude ma terial na qual a existência de espaço vazio é impossíveL Daqui se

depreende que o lugar de qualquer coisa na região s ub-luna r consiste na

matéria que a rodeia. Ou, como Aristóteles o descreveu, o lugar de uma coisa

é o limite do corpo continente em que este está em contacto com o corpo

contido .1 O limite, ou superfície interior do continente, devia igualmente ser

destituída

de

movimento, uma qualificação que levantou sérios problemas na

história da doutrina do lugar de Aristóteles. Acontecia frequentemente que

quando a condição do contacto era conseguida, a

da

imobilidade não era, e

vice-versa. No entanto, quando um corpo se adequava a estas condições rigo

rosas, presumia-se que estivesse no seu lugar próprio , isto

é, num

lugar que

apenas

ele

ocupava. Os lugares que incluíam mais do que

um

corpo distinto

eram caracterizados como lugares comuns . Na medida em que Aristóteles

pressupôs que cada corpo estava em algum lugar, foi inevitavelmente levado a

perguntar se a superfície exterior da esfera exterior que continha o mundo

estaria ela própria num lugar, uma questão que equivalia a perguntar se o

próprio mun do está em algum lugar. Na convicção de que não existiam corpos

para lá do mundo, Aristóteles argumentou que, se nenhum corpo material, e

consequentemente n enhuma superfície

de

um corpo, podia rodear o nosso

mundo, nenhum corpo poderia funcionar como seu lugar. Paradoxalmente,

embora cada corpo no mundo esteja

num

lugar, a última esfera, ou o próprio

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681 os

FUND MENTOS

D

C I ~ N C l MODERN

N ID DE MÉDI

mundo, não está directamente em nenhum lugar. Aparentemente constran

gido por esta consequência da sua doutrina do lugar, e temendo que o consi

derassem inconsistente, Aristóteles

encontrou uma

espécie de lugar para a

última esfera, argumentando que a

última

esfera está indirectamente num

lugar, devido

às

suas partes, porque

numa

orbe cada parte contém outra .2

Muitos dos comentadores de Aristóteles rejeitaram esta

sua

tentativa enigmá

tica de atribuir um lugar à última esfera. E os que o não fizeram foram fre

quentemente levados a encontrar bizarras explicações para defender o mestre,

como q uando Averróis argumentou que a última esfera está num lugar por aci

dente per acddens porque o seu centro, a Terra, está num lugar por essência

per se).

São Tomás

de

Aquino considerou ridículo dizer que a última esfera

está num lugar acidentalmente, [simplesmente] porque o centro está

num

lugar .3

Como

poderia

um

continente estar

num

lugar em virtude

da

coisa

que contém?

Movimento na física

de

Aristóteles

O movimento dos corpos

foi

um problema que Aristóteles abordou

com

frequência, embora em nenhuma parte da sua obra conhecida se encontre um

tratamento sistemático e abrangente desse problema. A explicação que se

segue

é

baseada

em

argumentações dispersas

por

várias das suas obras, sobre

tudo na Física e em

Sobre os

Céus.

Num mundo

sublunar

que

não incluía espaços vazios e era

uma

plenitude

material, o movimento,

ou

movimento local como era algumas vezes desig

nado, tinha de ser de um lugar nessa plenitude para outro. Aristóteles distin

guiu dois tipos

de

movimento: natural e violento

(ou

antinatural), divisão

que

terá provavelmente tido

origem

na observação comum. A divisão do

movimento local

em

natural e violento, e o conjunto de conceitos, argumen

tos e hipóteses tisicas associados a estes dois m ovimentos contrá rios constitu í

ram o cerne

da

física sub lunar de Aristóteles.

ovimento natural de corpos sublunares. O

conceito

de movimento

natural de Aristóteles dependia de propriedades óbvias

que

ele observava

nos

quatro elementos - terra, água,

ar

e fogo - que formavam a base material

de

todos os corpos terrestres. Via-se que alguns corpos, como as pedras quando

caíam de

uma

certa altura, se moviam

em

linha recta

em

direcção ao centro

da Terra. Outros corpos, tais como o fogo e o fumo, pareciam erguer-se sem

pre

em

direcção

à

esfera lunar, afastando-se do centro

da

Terra. Dado

que

f

'I

tt

~ l i

O LEG DO DE RlSTOTELES P R A ID DE MIDIA 169

se observara, com base na experiência, que a classe de

corpos

que caiam

naturalmente para o centro da Terra era mais pesada do que

as

classes de cor

pos

que

se erguiam, Aristóteles concluiu que, se não for contrariado, um

corpo terrestre pesado se movia naturalmente para baixo, numa linha recta,

em direcção ao centro da Terra. Assim, o centro da Terra - ou, mais precisa

mente, o centro geométrico do Universo - era o lugar natural de todos os cor

pos pesados. Em contrapartida, os corpos leves moviam-se naturalmente para

cima, em linha recta, em direcção à esfera lunar. Aristóteles descreveu estes

movimentos natur ais ascendent e e descendente como acelerados.

Apliquemos agora estas generalizações especificamente aos quatro ele

mentos. Sempre que um corpo elementar, composto

de

terra, estava acima

do seu próprio lugar natural - quer fosse na água, no ar quer na região

do

fogo acima

do ar

-

era

considerado absolutamente pesado porque, se não

fosse contrariado, cairia em direcção ao centro da Terra. O fogo era conside

rado absolutamente leve; sem ser contrariado, erguer-se-ia sempre para cima

e

em

direcção ao seu lugar natural acima

do ar

e abaixo

da

esfera lunar. Para

sublinh ar a absoluta leveza do fogo, Aristóteles declarou ser um facto palpá

vel

que

quanto maior a quantidade {de fogo], mais leve é a massa e mais

rápido o seu movimento ascendente .' Ao presumir que quanto

maior

a

quantidade

de

fogo, mais leve se

toma

e mais depressa se ergue, Aristóteles

parece ter dissociado a absoluta leveza do conceito de peso, conceito que se

toma ininteligível neste contexto. Quanto à água e ao ar, Aristóteles enca

rou-os

como elementos intermédios,

dotados

apenas de peso e leveza relati

vos.

Quando

estivesse abaixo do seu lugar natural, algures dentro da terra, a

água subiria naturalmente; mas quando se encontrasse acima do seu lugar

natural, no ar ou no fogo, cairia. Entretanto, o ar cairia quando estivesse no

lugar natural do fogo,

mas

subiria quando se encontrasse no' lugar natura l

da

terra ou

da

água.

Até aqui descrevemos o

comportamento

natural, idealizado, de cada

um

dos quatro elementos. Mas os elementos não existiam naturalmente

no

seu

estado primitivo.

No

mundo real, os corpos eram

na

verdade compostos,

constituídos de proporções variadas de todos

os

quatro elementos. Os corpos

que caíam naturalmente para o centro

da

Terra, faziam-no porque o seu ele

mento predominante

era

pesado (quanto mais pesado o corpo, maior a

sua

velocidade descendente); aqueles

que

se erguiam naturalmente para

cima

faziam-no porque

eram

dominados por um elemento leve (quanto maior a

quantidade de ar

ou

fogo

num

corpo aéreo

ou

ígneo, maior seria a sua veloci

dade ascendente).

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k

\

I

1 I os FUNDAMENTOS DA

CI1 .NCIA

MODERNA

NA

IDADE M1.DIA

Três pares de opostos desempenhavam um papel significativo na interpre-

tação aristotélica da estrutura do mundo terrestre, ou sublunar. Podem ser

esquematizados como segue:

1. Superfície côncava da esfera lunar Centro geométrico

do

Universo

(ou

centro

da Terra)

2. Ascendente

Descendente

3.

Leveza absoluta (fogo)

Peso absoluto (terra)

Estes pares de opostos eram utilizados como condições de fronteira vir

tuais para a explicação de Aristóteles do movimento dos corpos. A coluna da

esquerda diz-nos que

um corpo

absolutamente leve (fogo) se ergueria

natu-

ralmente num movimento ascendente rectilíneo em direcção à esfera lunar,

enquanto a da direita nos informa que um corpo absolutamente pesado cairia

naturalmente para baixo, em linha recta, em direcção ao centro da Terra.

Embora Aristóteles soubesse que a ter ra era mais dens a

do

que o

ar

e a água,

teria negado que a densidade pudesse explicar a queda

de uma pedra

através

do ar

ou

da

água.

Uma

pedra apenas cai

porque

é absolutamente pesada. O

fogo não se ergue em direcção ao seu lugar

natural

perto da superfkie da

esfera

lunar por

ser menos denso

do que

a terra, a água ou o ar, mas antes por

ser absolutamente leve. Na realidade, o fogo nem sequer possui peso no seu

próprio lugar natural, de modo que, se o ar abaixo dele fosse retirado, o fogo

não cairia

nem

se moveria para baixo. Retrospectivamente, podemos

ver

que

a introdução das noções de peso e leveza absolutos feita por Aristóteles dificil

mente conduziria ao progresso da física, embora o próprio Aristóteles a con

siderasse um aperfeiçoamento significativo relativamente a Platão e aos ato

mistas, que

tinham

atribuído peso a todas

as

coisas e

para

os quais o peso era

um

conceito relativo. Das duas possibilidades que

se

lhe apresentavam, Aris

tóteles escolheu aquela que historicam ente viria a revelar-se menos útil. Con-

tudo, fê-lo

por ter tornado

o seu sistema dependente

em

elevado grau

de uma

diversidade de contrários absolutos, preferindo evitar as comparações relati

vistas de Platão e dos atomistas.

Para oferecer uma explicação causal para o movimento natural (e,

como

veremos, para o movimento violento, ou antinatural), Aristóteles invocou o

princípio geral de que para cada efeito há

uma

causa e pressupôs que cada

coisa animada e inanimada capaz de se mover é movida por qualquer outra

coisa que se encontra, ela própria, em movimento ou

em

repouso.

5

(Ou, para

citar a versão sucinta medieval deste princípio,

toda

a coisa que é

movida é

movida por

uma

outra .) A coisa que fazia mover e a coisa que era movida

o

LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A

IDADE

MEDIA 111

eram sempre consideradas entidades distintas. Embora pudesse parecer que

os movimentos naturais não requeriam explicações causais

na

medida em que

são naturais , Aristóteles atribuiu um agente específico (cham ado generans

ou gerador, na Idade Média) como causa primeira do movimento natural. O

agente causador, ou gerador, era a coisa que tinha inicialmente produzido o

corpo agora em movimento.

Por

exemplo,

um

fogo produz outro fogo (como

quando se incendeia uma acha) e confere ao novo fogo todas as propriedades

que pertencem

ao fogo,

sendo

uma delas a capacidade

espontânea

de se

erguer naturalmente quando não constrangido. De modo semelhante, qual

quer agente natural que

produz

uma pedra confere-lhe todas as suas proprie

dades essenciais, inclu indo a tendênc ia natural para cair para a Terra quando

é retirada do seu lugar natural.

Embora tendo identificado o generans ou gerador de uma coisa, como

uma espécie de remota causa motriz no movimento natural, Aristóteles inter

pretou a queda de um corpo como se o seu peso fosse a causa imediata do seu

movimento natural descendente; e encarou a subida de um corpo como se a

sua leveza fosse a causa imedi ata do seu movimento natural ascendente. Par

tindo do príncipio que todas as outras coisas são iguais, Aristóteles pôde con-

cluir que a velocidade é directamente proporcional ao peso

do corpo

em

movimento natural e inversamente proporcional à resistência que encontra,

medida pela densidade

do

meio através do qual o corpo se move, e que o

tempo do seu movimento é directamente proporcional à resistência, ou den

sidade,

do

meio e inversamente proporcional ao seu peso. Por exemplo, a

velocidade de um corpo podia ser duplicada, quer duplicando o seu peso

(mas mantendo o meio constante), quer reduzindo para metade a densidade

do meio (e mantendo constante o peso do corpo). De modo idêntico, o inter

valo de

tempo

associado movimento podia ser duplicado, quer duplicando a

densidade do meio (mas mantendo o peso constante), quer reduzindo para

metade o peso

do

corpo (e mantendo constante a densidade do meio).

Embora reconhecendo que os corpos pesados, não constrangidos, aceleravam

quando se aproximavam do seu lugar natural, Aristóteles discutiu os movi

mentos naturais

como

se

as

suas velocidades fossem uniformes.

Movimento violento ou antinatural de corpos sublunares. Os movimentos

que são violentos, ou antinaturais, ocorrem quando os corpos são impelidos

para

fora ou

para

longe dos seus lugares naturais. Assim, uma pedra que

é

lançada rectilinearmente para cima, para o ar,

ou é

arremessada

numa

trajec

tória horizontal, está

em movimento

violento; o

movimento de um

fogo

que

é de algum modo forçado

para

baixo a partir

do

seu lugar

natural

e

em

Page 22: Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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72 I os FUNDAMENTOSDA CillNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA

direcção

à

Terra é antinatural, ou violento. De igual modo, o movimento do

ar quando

é

forçado a sair do seu lugar natural, para baixo em direcção

à

terra

ou para cima em direcção ao lugar natural do fogo, é caracterizado por um

movimento violento. Aristóteles formulou regras específicas em que descre

veu as consequências que adviriam da aplicação de uma força motriz a um

objecto que lhe resistisse. Embora essas regras sejam expressas em termos de

força, corpo resistente, distância atravessada e tempo, em vez de serem

expressas directamente em termos de velocidade, esta última permite um

resumo mais apropriado. A velocidade de um corpo em movimento violento

é inversamente proporcional ao seu próprio poder de resistência, que é dei

xado indefinido, e directamente proporcional ao poder motriz, ou força apli

cada. Em símbolos, oe F/R em que V é a velocidade, F a força motriz eR a

resistência total oferecida à força aplicada, uma quantidade que, presumivel

mente, inclui o objecto ou corpo resistente mais a resistência do meio externo

em que o movimento ocorre. Para duplicar uma velocidade V a resistência R

poderia ser reduzida a metade e

F

mantida constante; ou

F

duplicada e

R

mantida constante. Para reduzir

a

metade,

F

poderia ser reduzida a metade

e R mantida constante; ou R duplicada eFmantida constante.

O movim ento violento exigiu uma explicação causal radicalmente dife

rente da atribuída ao movimento natural. O motor inicial,

ou

agente causal,

era identificado de imediato porque tinha de estar em contacto físico directo

com o corpo que fazia mover. Alguém que atira uma pedra para cima ou

empurra um carro por uma estrada é o motor, ou energia motriz, desses

movimentos violentos. Mas a fonte de energia que permitia a um corpo con

tinuar o seu movimento depois de perdido o contacto com o seu moto r ini

cial estava muito longe de ser óbvia. Por exemplo, como podia uma pedra

continuar o seu movimento depois de perder o contacto com a mão que a

lançara? Aristóteles defendeu que o meio externo no exemplo da pedra, o ar

-- era a fonte do movimento contínuo. Acreditava que o motor original não só

punha a pedra em movimento como ainda, e simultaneamente, activava o ar.

Aparentemente, a primeira porção,

ou

unidade, de ar activada empurra a

pedra e ao mesmo tempo activa a segunda unidade de ar adjacente que

faz

mover a pedra um pouco mais para a frente. A segunda unidade, por seu

turno, activa simultaneamente a seguinte, ou terceira, unidade de ar, e assim

por diante. A medida que o processo decorre, a força motriz das sucessivas

unidades de a r

vai

progressivamente diminuindo até que

se

atinge uma uni

dade de ar que é apenas capaz de activar a unidade de ar imediatamente a

seguir, mas incapaz de lhe comunica r a força para mover o corpo para mais

o LEGADO DE

ARiSTÓTELES PARA A iDADE MeDIA 73

longe.

Nesse

ponto, a pedra começa a cair com o seu movimento natural des

cendente. Através deste mecanismo, Aristóteles utilizou ao mesmo tempo o

meio como força motriz e resistência. Não

acreditava que o meio, como

força motriz, tinha de estar em contacto constante com o corpo que fazia

mover, como estava também convencido de que o mesmo meio tinha de flm

cionar como um travão do movimento

desse

corpo a

fim

de prevenir o impos

sível: a ocorrência de uma velocidade infinita ou de um movimento instantâ

neo. Aristóteles considerou óbvio que a resistência

ao

movimento aumentava

à

medida que aumentava a densidade do meio, e decrescia à medida que o meio

se rarefazia. Dado que uma rarefacção ilimitada do meio resultaria num

aumento da velocidade proporcional e ilimitado, Aristóteles concluiu que

se

o

meio desaparecesse por completo, deixando um vácuo, o movimento seria ins

tantâneo ou para além de qualquer proporção, segundo

as suas palavras).

O absurdo de

uma

velocidade infinita foi apenas um entre vários argu

mentos que levaram Aristóteles a rejeitar a existência de um vácuo. Os princí

pios fundamentais que ele considerava activos no mundo seriam inúteis em

espaços vazios. O movimento seria impossível por uma série de razões. A

natureza homogénea de um espaço vazio contínuo significava que cada parte

tinha de ser idêntica a qualquer outra parte. Dado que não poderiam existir

lugares naturais diferenciáveis num espaço homogéneo,

os

corpos não teriam

qualquer motivo válido para

se

moverem numa direcção em

vez

e noutra.

Os movimentos naturais seriam impossíveis, tal como o seriam os movimen

tos violentos, porque o meio externo que Aristóteles considerava essencial

para o movimento violento estaria ausente. Se o vazio fosse infinito e o movi

mento pudesse de algum modo ocorrer, esse movimento ou seria eterno -

pois o que poderia fazer parar um corpo em movimento num vácuo de que

estavam ausentes outro s corpos e lugares naturais que o fizessem parar? - ou,

na ausência de resistências externas, seria instantâneo_ Entre os restantes

argumentos de Aristóteles contra o vazio, um é digno de nota. Corpos de

pesos diferentes cairiam necessariamente a velocidades iguais no vácuo, o que

Aristóteles considerava

um

absurdo, pois deviam cair a velocidades directa

mente proporcionais aos respectivos pesos.

Mas

esta última relação só podia

ocorrer num plenum onde um corpo mais pesado abrisse caminho através do

meio material mais facilmente do que o faz um corpo menos pesado. Na

ausência de um meio, Aristóteles não descortinava uma razão plausível para

que um corpo se movesse a uma velocidade maior do que a de outro. Con

cluiu pois que o mundo era necessariamente um plenum cheio de matéria em

todos os seus pontos.

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74 OS FUNDAMENTOS DA CItlNClA MODERNA NA IDADE MÉDIA

RegiãO celeste: incorruptível e imutável

A parte do mundo que Aristóteles visualizava para além da superfície con

vexa da esfera do

fogo

era radicalmente diversa da parte terrestre acabada de

descrever. Aristóteles considerava a região celeste tão incomparavelmente

superior à terrestre que lhe atribuiu propriedades que sublinhavam

essas

pro

fundas diferenças. Se a incessante mudança era básica para a região terrestre,

então a ausência de mudança teria de caracterizar a região celeste. Esta con

vicção foi reforçada em Aristóteles pela sua crença de que os registos huma

nos não revelavam modificações nos céus. Dado que

os

quatro elementos da

região sublunar estavam envolvidos em incessante mudança, eram obvia

mente inadequados para os céus imutáveis. Em Sobre os éus (livro

1

caps. 2

e 3), Aristóteles estabeleceu o contraste entre o movimento rectilíneo natural

dos quatro elementos sublunares (terra, água, ar e fogo) e o movimento cir

cular, regular, observável e aparentemente natural dos planetas e das estrelas

fixas

da região celeste.

O

contraste entre a linha recta e o círculo, a primeira

finita e incompleta, o segundo fechado e completo em si próprio, convenceu

Aristóteles

de

que a figura circular era necessária e naturalmente superior à

figura rectilínea. Dado que

os

quatro corpos elementares se moviam num

movimento natural rectilíneo (ascendente e descendente), Aristóteles con

cluiu que o movimento circular dos corpos celestes observado tinha necessa

riamente de estar associado a uma espécie diferente de corpo elementar sim

ples: um quinto elemento, ou éter.

Como que para sublinhar a importância especial do éter, Aristóteles cha

mava-lhe frequentemente primei ro corpo . As suas propriedades primitivas

eram quase o oposto das dos elementos terrestres. Enquanto os elementos ter

restres se moviam naturalmente em movimentos rectilíneos, o éter movia-se

naturalmente num movimento circular, um movimento superior porque a

circunferência era uma figura completa em si mesma, ao passo que a linha recta

não o era. Enquanto

os

quatro elementos e

os

corpos compostos por

eles se

encontravam em estado de fluxo constante, o éter celeste não sofria mudanças

de substância, de quantidade ou de qualidade. A mudança substancial era

impossível porque Aristóteles pressupunha que os pares de qualidades opos

tas, ou contrárias, tais como calor e frio, humidade e secura, rarefeito e denso,

que eram forças básicas para a mudança na região terrestre, estavam ausentes

dos céus e, por conseguinte, não desempenhavam

qualquer papel. A rejei

ção de qualidades contrárias nos céus levou Aristóteles a negar também a

existência das qualidades contrárias de leveza e peso, de onde concluiu que o

éter celeste não podia ser leve nem pesado.

As

qualidades leveza e peso na

O LEGADO DEARISTOTELES PARA A IDADEMIDIA 75

região terrestre estavam associadas a movimentos rectilíneos ascendentes e

descendentes: os corpos pesados aproximavam-se da erra

quando

se

moviam naturalmente para baixo; e os corpos leves afastavam-se da Terra

quando se moviam naturalmente para cima. Na ausência de peso e leveza na

região celeste, Aristóteles inferiu que os movimentos rectilíneos não podiam

ali

ocorrer. Assim, não só era evidente pela observação que os movimentos

celestes eram circulares, como também,

de

acordo com

as

propriedades

do

próprio éter, era óbvio para Aristóteles que os movimentos rectilíneos eram

impossíveis na região celeste.

Dado que se pode observar que planetas e estrelas se movem no céu, Aristó

teles

supôs que a mudança de posição era o único tipo de mudança possível nos

céus. Os

corpos celestes mudam continuamente de posição, deslocando-se pelo

céu num movimento sem esforço, uniforme e circular. Este movimento circular

uniforme é um movimento natural, tal como os movimentos rectilíneos ascen

dentes e descendentes são naturais para os corpos terrestres. Mas enquanto os

movimentos ascendente e descendente eram movimentos terrestres contrários,

o movimento circular não tinha contrário. Aristóteles concluiu que o movi

mento circular, para o qual não havia movimento contrário, era natural para os

corpos compostos de éter celeste, para o qual não havia qualidades contrárias.

Na ausência

de

todos os contrários, a mudança, tal como era observada na

região terrestre, não podia ocorr er nos céus etéreos.

Os

corpos celestes tinham

de se deslocar eternamente através dos céus num movimento natural, uniforme

e circular. Embora mudassem de posição, a ausência de contrários impedia

variações nas suas distâncias. Aristóteles pressupôs, assim, que os corpos celes

tes nem se aproximavam nem

se

afastavam da Terra.

Aristóteles associava a mudança

à

matéria, mas negava que houvesse

mudança nos céus. Deveria concluir-se daí que os céus careciam de matéria e

que o éter celeste, independentemente do que pudesse ser, não devia ser consi

derado como matéria? Quanto a esta importante questão,

os

comentários de

Aristóteles são inconclusivos e

os

filósofos naturais da Idade Média tiveram

liberdade para reflectir sobre o seu significado. Ambas as interpretações a de

que a matér ia existia nos céus e a de que não existia tiveram os seus apoiantes.

Quer fosse quer não fosse concebido como matéria, o éter celeste levantava

outros problemas. Sendo uma substância perfeita que

se

estendia desde a

tua

até às

estrelas fixas Aristóteles parece ter considerado o éter como homogéneo,

com todas as suas partes idênticas entre

si.

Um olhar para os céus deveria ter

sido suficiente para eliminar uma tal noção. No mínimo, a região celeste consis

tia em corpos visíveis rodeados por porções de céu vazias uma configuração

Page 24: Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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761 os FUNDAMENTOS DA Cl€NCIA MODERNA NA IDADE

MÉDIA

que dificilmente poderia sugerir homogeneidade. Se os corpos celestes e o céu

vazio eram ambos compostos d o mesmo éter, porque diferiam? Porqu e eram

os planetas e as estrelas visíveis e o resto do céu, para todos os efeitos, invisí

veis? Porque variavam as suas propriedades? Talvez estas questões nunca

tivessem ocorrido a Aristóteles, por isso ele não lhes deu resposta nenhuma.

Quando este tipo de questões surgiram aos seus comentadores gregos, árabes

e latinos, estes tiveram de idealizar

as

suas próprias respostas, um destino

comum

a todos aqueles que dedicaram uma grande parte das suas vidas a des

vendar o significado dos textos de Aristóteles.

Aristóteles foi, no entanto, muito claro no que diz respeito à natureza dos

espaços celestes vazios. Estavam cheios de esferas etéreas, invisíveis, transpa

rentes, encaixadas umas nas outras e cada uma delas girava num movimento

regular e uniforme. Os corpos celestes - planetas e estrelas fixas - estavam de

algum

modo

embutidos nessas esferas que os levavam consigo. Aristóteles

baseou o seu sistema nos anteriores sistemas matemáticos de esferas concên

tricas idealizados por Eudóxio de Cnido e Calipo de Cízico

no

século IV a. C

No esquema deste último, sobre o qual Aristóteles fundou directamente a sua

cosmologia de esferas concêntricas, ao planeta Saturno,

por

exemplo, era atri

buído um total de quatro esferas que justificariam a sua posição celeste. Des

tas,

uma

dava conta

do

movimento diário de Saturno;

outra do

seu movi

mento pró prio ao longo do zodíaco, ou eclíptica; e as duas restantes represen

tavam os seus movimentos retrógrados, observados ao longo do zodíaco.

Aristóteles transformou

as

esferas matemáticas de Calipo num sistema de

orbes celestes físicos, reais, centrados na Terra e que eram coextensos com a

regiãO celeste. A fim de impedir a transmissão dos movimentos zodiacal e

retrógrado de Saturno para Júpiter, o planeta logo abaixo de Saturno , Aristó

teles atribuiu a Saturno três esferas neutralizadas que giravam em sentidos

contrários e que anulavam os movimentos das outras. A finalidade destas três

esferas era contrariar o mov imento de três das quatro esferas de Saturno, com

excepção da esfera que representava o movimento diário (como o movimento

diário era comum a todos os planetas, a cada um era atribuída uma esfera

especial destinada a dar continuidad e, admitindo-se assim que o movimento

diário fosse transmitido através de cada

conjunto

de esferas planetárias).

Como o explica D. R Dicks:

Assim, para

as

quatro esferas de Saturno, A B C e

D

postula-se uma

esfera neutralizante

D'

colocada dentro de D (a esfera mais pró xima da

Terra e que transporta o planeta no seu equador) e que roda em tomo

dos mesmos pólos e à mesma velocidade que D mas

na

direcção

O LEGADO DE ARISTÓTELES PARAA DADE

MÉDIA

77

oposta, de modo que os movimentos de D e

D' se

anulam um ao outro,

e cada pont o em D parecerá mover-se apenas devido

ao

movimento

de

C.

Dentro de D' é colocada uma segunda esfera neutralizante, C', desempe

nhando a mesma função relativamente a C que D' desempenha para D; e

dentro de C ' existe

uma

terceira esfera de movimento inverso ao de B',

que, de modo semelhante, neutraliza o movimento de

B.

O resultado

final

é

que o único movimento restante é o

da

esfera exterior do con

junto, representan do a rotação diária, de modo que as esferas de Júpi

ter (o planeta logo abaixo) podem agora descrever

as

suas próprias

revoluções com o se as de Saturno não existissem. Do mesmo modo, as

esferas neutralizantes de Júpiter abrem caminho

às

de Marte e assim

por diante (sendo o número de esferas neutralizantes, em cada caso,

menor em uma unidade

do

que o número original de esferas de cada

conjunt o) até chegarmos à Lua que, sendo o último dos corpos plane

tários (isto é o mais próximo da Terra) não precisa, de acordo com

Aristóteles, de esferas neutralizantes.'

Em vez das quatro esferas que Calipo considerou necessárias para explicar

o movimento de Saturno, verificamos que Aristóteles lhe atribuiu sete. De

modo semelhante, pensou ser necessário acrescentar esferas neutralizantes, de

movimento contrário,

às

de todos os planetas, à excepção da Lua, localizada

directamente acima da região sublunar. Aristóteles afasta-se pois

do

sistema

de Calipo de trinta e três esferas matemáticas, ou hipotéticas, para os cin

quenta e cinco orbes físicos.

Uma

questão importantíssima colocava-se de imediato: que levava os

orbes a moverem-se com

um

movimento un iforme circular, transportando os

planetas e as estrelas? Aristóteles deixou a este respeito uma herança dupla e

incompatível. No seu tratado cosmológico, Sobre os Céus recorreu a um prin

cípio interno do movimento ao descrever o éter celeste como um u

corpo

sim

ples naturalmente constituído de tal modo que mover-se

num

círculo é vir

tude da

sua

própria

natureza

(2.1.284

a. 14-15). Mas na ísica e na

Metafisica Aristóteles pressupôs que os motores espirituais externos, ou inte

ligências, eram os agentes causais dos movimentos rotativos dos orbes celes

tes. Neste esquema, Aristóteles presumiu que cada orbe tIsico tinha o seu pró

prio motor imaterial, o qual, se bem que completamente imóvel, estava eter

namente apto a fazer com que o orbe anunciado se movesse sem esforço ao

redor da Terra, num movimento circular uniforme. Estes motores uinamo

víveis

ou

uinamovidos eram únicos no

mundo

porque eram susceptíveis

de causar

movimento

sem que eles próprios estivessem em movimento.

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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78 os FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA

A regressão potencialmente infinita de causas e efeitos para t odos os movimen

tos interrompia-se nos motores inamovidos, que eram pois as fontes últimas e

imóveis de todos os movimentos. Embora Aristóteles se referisse a ci nquenta e

cinco motores inamovidos, o seu conceito de Deus concentrava-se no motor

inamovido associado à esfera das estrelas fixas, a fronteira do mundo. Para

Aristóteles, o mais remoto dos motores inamovidos era o primei ro motor ,

que desfrutava do estatuto especial de primeiro entre iguais. No entant o, o seu

papel como motor celeste em nada diferia do dos outros motores inamovidos,

ou inteligências, como algumas vezes eram designados.

Mas

como podia

um

motor inamovido imaterial determinar que um orbe

físico

se

movesse?

Produz movimento por ser amado

foi

a resposta

de

Aristó

teles Metafisica 12.7.1072b.3-4). Aristóteles deixou por dizer precisamente o

que pretendia explicar.

Como

se relacionavam a causa motora e a coisa

movida?

Esta

sua frase de sentido obscuro não só veio pôr à prova o engenho

dos muitos comentadores subsequentes, como também originou a ideia intri

gante do amor como u ma força motriz cósmica que parece ter captado a imagi

nação de poetas e menestréis. No último verso da Divina Comédia, Dante fala

de

O

amor que move o Sol e as outras estrelas (l amor che move iI

sole

e l altre

stelle) e uma canção anónima francesa proclama O amor, o amor faz girar o

mundo

(L amour, { amour

Jait

toumer

le monde)B. E se bem que não lhe tenha

surgido qualquer contrapartida e m lingua inglesa na Idade M édia

ou

na Renas

cença, esta ideia do amor emergiu finalmente na opereta de Gilbert e Sullivan,

Iolanthe, onde ficamos a saber que

Ê

o amor que faz girar o mundo .9 Embora

não haja de modo algum a certeza de que Aristóteles seja a fonte destes senti

mentos poéticos, ele é seguramente um -

se

não o - principal candidato.

Tendo caracterizado o éter celeste como substância divina e incorruptível

e encarado a matéria terrestre como fonte de incessante mudança através da

geração e da corrupção, Aristóteles estava convencido de que a região celeste

imutável exercia

uma

influência dominante sobre a região terrestre sempre

em mudança. Era próprio de uma coisa mais nobre e perfeita influenciar uma

coisa menos nobre e menos perfeita. Daqui decorria também um reforço

poderoso da crença astrológica tradicional. Os vários modos como o dominio

celeste se efectivava viriam a alimentar as especulações dos filósofos naturais

até ao final do século XVII, altura em que a concepção do Cosmo foi radical

mente alterada. Mas, tal como com a causa do movimento celeste, Aristóteles

deixou a este respeito um legado ambíguo. Embora acreditasse que os cor

pos terrestres estavam sujeitos ao domínio celeste, acreditou igualmente que

pudessem causar efeitos por si próprios, não sendo pois meras entidades

O

LEGADO

DE ARISTOTELES

PARA

A

IDADE

MEDIA

79

passivas, dependentes de causas celestes. Como entidades compostas de mat é

ria e forma, os corpos terrestres possuíam

as

suas próprias naturezas capazes

de causar efeitos. Um corpo pesado caía para o centro da Terra não em vir

tude de qualquer poder celeste, mas porque possuía uma natureza que lhe

permitia fazê-lo sempre que não houvesse qualquer impedimento. Cada espé

cie de ser animado e inanimado tinha aspectos e propriedades característicos

que permitiam aos seus membros individuais agir de acordo com essas pro

priedades.

O responsável pela actividade celeste e pela sua influência nos assuntos

terrestres era indubitavelmente o

Sol,

cujas influências eram manifestas e pal

páveis. A sua deslocação anual ao l ongo da eclíptica originava as estações que,

por sua vez, davam origem a várias gerações e corrupções. A geração humana

dependia também do Sol, como o evidencia a muit o citada frase de Aristóteles

de que o homem é gerado pelo homem e igualmente pelo 501 .10 Aexcepção

da Lua, as provas de actividade celeste dos outros planetas eram quase inexis

tentes. No entanto, Aristóteles pressupôs que estavam também activamente

envolvidos

na

mudança terrestre. Mas foi incapaz de explicar como

as

activi

dades dos ,corpos celestes, excluindo o Sol, se relacionavam com as naturezas

independentes dos corpos terrestres. Uma vez mais, os comentadores subse

quentes ficavam entregues às suas próprias elucubrações.

A maioria das principais ideias e conceitos de Aristóteles sobre o mundo

físico acabou de ser descrita. Essas opiniões de Aristóteles contribuíram para

moldar a explicação medieval das mudanças que ocorriam na região terrestre

e esclarecer porque não ocorriam mudanças na região celeste. As ideias aqui

descritas

formam

o cerne da filosofia natural medieval, e algumas delas

impulsionaram novas áreas do pensamento. As ideias de Aristóteles não só

forneceram o esqueleto da filosofia natural medieval como também muitos

dos seus músculos e tecidos. E, no entanto, há temas sobre os quais Aristóte

les pouca orientação deixou, quer porque o tópico lhe era desconhecido, quer

porque pouco tinha a dizer a seu respeito. Noutras ocasiões, foi vago,

ou

ambíguo, e os seus comentadores tiveram de tirar as suas próprias conclusões.

Outras vezes, as suas explicações revelaram-se inadequadas e exigiram substi

tuição. Em alguns casos,

as

suas interpretações foram drasticamente modifi

cadas com base

na

experiência, como sucedeu com o seu sistema de orbes

concêntricos, ou com base na teologia cristã, como foi o caso da eternidade

do mundo. No entanto, a maioria das ideias de Aristóteles foi utilizada como

o melhor e o mais fiável guia para a compreensão da natureza e das suas

obras. Para

os

estudiosos medievais, Aristóteles era o verdadeiro Filósofo.

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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8

os

FUNDAMENTOS DA C I ~ N C [ MODERNA NA

IDADE

MllDIA

No seu comentário ao

Sobre

s

Céus caelo ,

Averróis prestou a Aristóteles

a mais honrosa homenagem, ao declarar que o filósofo era:

A regra e o exemplo que a natureza idealizou para mostrar a perfeição

última do homem .. os ensinamentos de Aristóteles são a suprema ver

dade, porque a sua mente era a expressão última da mente humana.

Daí que se tenha afirmado com toda a razão que foi criado e nos foi

dado pela divina providência para virmos a saber tudo o que é possível

saber-se. Louvemos a Deus por ter colocado este homem à parte de

todos os outros no que respeitaàperfeição e de lhe ter permitido apro

ximar-se tão perto da mais elevada dignidade que à humanidade foi

permitido atingir.

David Knowles, um historiador de filosofia medieval, não exagerava ao

considerar este como o mais impressionante panegírico alguma vez prestado

por um grande filósofo a outro».12 Na verdade, Averróis considerou Aristóte

les

quase infalível porque, ao longo de mil anos, não fora detectado nenhum

erro nos seus escritos.

 

Aristóteles era também muito admirado

no

Ocidente Latino. Dante falou

por muitos ao descrever Aristóteles como o Mestre daqueles que sabem .

São Tomás de Aquino encarava Aristóteles como alguém que atingira o nível

mais elevado do pensamento humano sem o beneficio da fé cristã. Poderia

supor-se que, com tão reverentes atitudes, os estudiosos medievais teriam

tentado permanecer tão próximo quanto possível do grande mestre. Mas,

pelos motivos já aduzidos, afastaram-se frequentemente. No capítulo 6 irei

descrever o modo como os discípulos e os admiradores medievais de Aristóte

les modificaram e expandiram a sua filosofia natural, mesmo defendendo os

seus prindpios básicos e permanecendo fiéis ao seu espírito. Antes, porém,

descreverei a introdução turbulenta da filosofia natural aristotélica na Europa

duran te o século XIII.

ENSINAMENTOS

ARISTOTIlLICOS

E osTEOLOGOS

81

5 O acolhimento e o impacto dos ensinamentos

aristotélicos e a reacção da Igreja e dos seus

teólogos

Existiam importantes pontos de conflito entre a doutrina da Igreja e

as

ideias defendidas nos livros de filosofia natural de Aristóteles. A introdução

das obras de Aristóteles na Cristandade Latina no século XIII era potencial

mente problemática para a Igreja e

os

seus teólogos. O choque, que era quase

inevitável, não tardou e parece ter sido particularmente violento na Universi

dade de Paris, que possuía a maior escola teológica da Idade Média Latina e

uma das melhores e maiores faculdades de artes. No entanto, nunca se deverá

permitir que o conflito que se gerou obscureça o facto mais importante, ou

seja, que as obras traduzidas de Aristóteles foram entusiasticamente acolhidas

e muito respeitadas, tanto por mestres em artes como por teólogos. Na reali

dade, a filosofia de Aristóteles foi tão calorosamente recebida que,

por

muito que o tentassem, as forças contra ela reunidas viram-se incapazes de

prevalecer.

Condenação de

1277

A luta contra Aristóteles concentrou-se na Universidade de Paris e nos

seus arredores. Em

1210,

pouco depois de as obras de Aristóteles sobre filoso

fia natural terem ficado disponíveis em latim, o sínodo diocesano de

Sens

decretou que os livros de Aristóteles sobre filosofia natural e todos os seus

comentários não podiam ser lidos em Paris, quer em público quer em pri

vado, sob pena de excomunhão. Confinada

à

região de Paris, esta interdição

foi repetida em 1215 especificamente para a Universidade de Paris. A 13 de

Abril de 1231, a mesma interdição foi modificada e recebeu uma sanção do

papa Gregório

IX

que, numa famosa bula, Parens scientiarum (frequente

mente chamada, por outras razões, Magna Carta da Universidade de Paris),

ordenou que os tratados ofensivos de Aristóteles

fossem

expurgados de erro,

para essa tarefa nomeou a

3

de Abril uma comissão de três individuos. Por

motivos até hoje desconhecidos, a comissão papal não chegou a apresentar

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821 os FUNDAMENTOS DA ClllNCIA MODERNA NA IDADE MWIA

qualquer relatório e a ordem para que os livros de Aristóteles fossem

expurgados nunca foi levada a cabo. Curiosamente, em

1245,

o papa Inocên

cio IV estendeu a interdição à Universidade de Toulouse,

de

onde fora feito

anos antes 1229) um convite endereçado a mestres e estudantes para ali se

dirigirem, dado que os livros de Aristóteles, proibidos e m Paris, eram aí estu

dados livremente. A interdição lançada em Paris sobre os livros de Aristóteles

sobre filosofia natural esteve em vigor durante aproximadamente quarenta

anos, até 1255.

Ao que parece, só as obras sobre ética e lógica de Aristóteles

eram ensinadas publicamente em Paris; apesar da interdição pública e pri

vada, as obras sobre física e filosofia seriam provavelmente lidas

em

privado.)

Nesse ano, u ma lista dos textos utilizados em cursos na Universidade de Paris

incluía todas as obras disponíveis de Aristóteles. As restrições, pesadas mas

impraticáveis, impostas aos estudiosos parisienses tinham chegado ao fim e

estes podiam agora desfrutar dos mesmos privilégios que os seus colegas de

Oxford a quem nunca tinha sido negado o direito de estudar e de comentar

todas as obras de Aristóteles durante os longos anos de p roibição em Paris.

Durante

as

décadas de 60 e

70

do

século XIII, desenvolveu-se em Paris

uma segunda fase da luta. Inspirados por São Boaventura Giovanni Fidanza)

1221-1274),

teólogos conservadores procuraram limitar a filosofia aristoté

lica, que constituía o cerne do novo conhecimento pagão e arábe.

passara

muito o tempo em que uma simples interdição à leitura das obras de Aris

tóteles podia ser implem entada Com alguns resultados. Em vez de interdita

rem obras, os teólogos conservadores tentaram resolver o pr oblema pela con

denação de ideias que pensavam ser perigosas e ofensivas. Qua ndo se tornou

evidente que os seus repetidos avisos sobre os perigos da filosofia secular eram

inúteis, os teólogos tradicionalistas apelaram para o bispo de Paris, Etienne

Tempier, que, em

1270,

interveio e condenou treze artigos que provinham

quer dos ensinamentos de Aristóteles quer dos comentários de Averróis às

suas obras. Em

1272,

os mestres

em

artes

da

Universidade

de

Paris instituíram

um juramento que os obrigava a evitar a consideração de questões teológicas.

Se, por qualquer motivo, um mestre em artes se sentisse incapaz de evitar um

problema teológico, o

seu

juramento obrigava-o ainda a resolvê-lo em favor da

fé.

A intensidade da controvérsia foi sublinhada na obra Erros dos

Filósofos

de

Giles de Roma, escrita entr e

1270

e

1274,

na qual se encontrava compilada uma

lista de erros retirados das obras de Aristóteles, Averróis, Avicena, Al-Ghazzali

Abu-Hamid Muharnrned al-Ghazzali), al-Kindi e Moisés Maimonides, filóso

fos não cristãos. Quando estas medidas de contenção se revelaram incapazes de

resolver a agitaçãO, o papa João XXI deu instruções ao bispo de Paris, ainda

ENSINAMENTOS ARlsTOttLlCOSE

s

TEÓLOGOS

83

Etienne Tempier, para que tomasse providências. Após três semanas, em Março

de 1277, Tempier, baseando-se na opinião dos seus consultores teológicos, pro

clam ou a espectacular condenação de duzento s e dezanove teses.

Embora a lista de artigos cond enados pelas autoridades teológicas tivesse

sido organizada

à

pressa, sem

ordem

aparente e com pouca atenção pelos

aspectos de consistência

ou

repetição, muitos dos artigos eram relevantes para

a ciência e para a filosofia natural. C ontudo, a conde nação de um artigo não

significava que fosse controverso no âmbito da filosofia natural.

As

autorida

des podiam apenas ter exagerado a sua importância ou simplesmente tê-lo

considerado potencialmente perigoso para discussão pública. Na realidade,

alguns artigos condenados podiam nem ter sido expressos por escrito, mas

talvez apenas pronunciados em debates públicos ou em conversas privadas.

Mais ainda, a inclusão de um artigo pode ter-lhe conferido uma importância

que de outro

modo

nunca teria alcançado. A maioria dos duzentos e deza

nove artigos condenados em 1277 reflectia questões que estavam directa

mente associadas com a filosofia natural de Aristóteles e

por

conseguinte,

essa condenação fazia parte

da

recepção aos ensinamentos de Aristóteles.

Antes de nos debruçarmos sobre essas questões específicas, é essencial des

crever uma luta interdisciplinar acesa que decorreu

no

século XIII, envol

vendo a faculdade de artes e a faculdade de teologia. A questão consistia em

determinar se a faculdade

de

artes

tinha

direito a

um

estatuto igual ao da

faculdade de teologia. O contlito exprimiu-se de variadas maneiras, mas em

nenhuma de forma tão básica como

na

luta inultrapassável entre razão e reve

lação. A razão era o modo de análise em filosofia, considerada frequentemente

equivalente às ciências teóricas, a maioria das quais só

se

tornaria uma disci

plina independente no século XVII, ou mais tarde. Os mestres em artes con

trolavam o domínio da razão

e

por conseguinte, da filosofia. Mas

os

teólogos

controlavam o domínio da revelação e não será difícil compreender porque

detinham

uma

posição superior n uma sociedade dominada pela religião.

Na sua maior parte, os teólogos

do

século XIII estavam convencidos de

que a revelação era superior a todas as formas de conhecimento e por conse

guinte subscreviam a

doutrina

tradicional que considerava o conhecimento

secular como auxiliar da teologia. São Boaventura, um dos teólogos mais

importantes do século XIII, dedicou todo um tratado à defesa da tese de que

os temas seculares ensinados na faculdade de artes da Universidade de Paris

estavam subordinados à disciplina de teologia ensinada na faculdade de teolo

gia. No tratado Da Redução das Artes à

Teologia De

reductione artium ad

theologiam , São Bonaventura procurou demonstrar que a teologia é a rainha

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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media

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84 os

FUNDAMENTOS DA CIWCIA MODERNA NA

IDADE MÉDIA

das ciências porque, em última análise, todo o ensino e conhecimento

depende da iluminação divina da Sagrada Escritura, cujo estudo é

do

domínio

exclusivo de teólogos. No mund o de São Boaventura, como

no

de muitos teó

logos, a fé e a razão estavam harmoniosamente unificadas, a primeira guiando

e inspirando a segunda.

Os professores das faculdades de artes de Paris e das outras universidades

tinham uma visão radicalmente diferente quanto à relação da sua disciplina

com a teologia. No sentido mais lato, ensinavam filosofia que, embora

incluisse as sete artes liberais como temas introdutórios, era constituída prin

cipalmente por metafísica, filosofia natural e filosofia moral. Dado que a filo

sofia no seu todo se baseava quase totalmente nos escritos de Aristóteles, os

professores das faculdades de artes,

na

sua maioria, consideravam-se seguido

res de Aristóteles e encaravam este filósofo como a personificaçãO da análise

racional. Na verdade, os seus meios de subsistência baseavam-se na explicação

das ideias e dos pensamentos de Aristóteles. Como demonstração de respeito,

os autores escolásticos medievais referiam-se geralmente a Aristóteles pelo

título honorífico de Filósofo

philosophus).

Encaravam-se a si próprios

como guardiões da razão e tinham orgulho no seu papel como filósofos. Se

não tivessem sido restringidos, os mestres em artes teriam provavelmente

aplicado a razão a todos

os

ramos do conhecimento, incluindo à teologia. Na

realidade. muitos deles teriam seguido a razão até

às

suas últimas consequên

cias. mesmo que colidisse com a revelação, embora, no final,

se

submetessem

à revelação com base na

fé.

De qualquer modo, encaravam a filosofia como o

instrumento apropriado para compreender o mundo. Para eles, este facto jus

tificava a sua independência em relação à teologia

e

por isso, lutaram pela sua

autonomia (para mais informação sobre este assunto, ver Capítulo 8).

Embora

os

teólogos estivessem, eles próprios, interessados na filosofia (e na

filosofia natural), e muitos a encarassem como urna disciplina distinta da teo

logia, a maioria atribuía-lhe o estatuto de subalterna. Durante o século XIII, o

primeiro século da institucionalização

da

filosofia natural aristotélica na

Europa Ocidental, as tensões entre estas duas disciplinas universitárias e as

suas faculdades indepe ndentes er am quase inevitáveis.

A disputa é evidente em pelo menos três controvérsias principais, as quais

disseram respeito I) à eternidade do mundo, (2) à chamada doutrina da

dupla verdade e (3) ao poder absoluto de Deus. O atrito interdisciplinar que

dividiu teólogos e filósofos naturais era composto de rivalidades intradisciplina

res entre

os

próprios teólogos. Os neoconservadores agostinhos acirravam-se

contra os dominicanos seguidores de São Tomás de Aquino,

os

primeiros

ENSINAMENTOS ARlSTOTÉUCOS E

os

TEÓLOGOS 85

preocupados com a demasiada confiança que

os

dominicanos depunham na

filosofia aristotélica e os segundos determinados em procurar obter uma har

monização entre razão e revelação. Entretanto, os próprios artigos condena

dos ilustram bem

as

controvérsias que oc orreram nos finais do século XlII.

Os três artigos seguintes confirmam a hostilidade entre mestres em artes e

teólogos:

152. Que as discussões teológicas são baseadas em fábulas.

153. Que nada é mais conhecido por se conhecer teologia.

154. Que

os

únicos homens sábios do mundo

são

filósofos.

Se os mestres em artes mantinham tais opiniões, e alguns ao que parece

fizeram-no, podemos calcular o sentimento de ultraje e a animosidade que os

teólogos manifestaram. A partir de 1220, ou até mesmo antes, as autoridades

eclesiásticas preocuparam-se com o facto de a filosofia estar a penetrar rapi

damente,

e

talvez mesmo, a dominar a teologia. O papa Gregório IX tentou

preservar a relaçãO tradicional entre teologia e fllosofia, com a segunda a

actuar como auxilíar da primeira. Na realidade, Gregório reflectia uma

enorme preocupação, que vinha desde os doutores da Igreja, de que

os

esfor

ços para fortalecer a é com a razão natural fossem potencialmente perigosos,

pois implicavam que, de algum modo, a

não conseguia manter-se

por

si.

Em 1228, Gregório

IX

orden ou em Paris q ue os mestres teológicos excluíssem

a filosofia natural da sua teologia.

A interdição de Gregório

IX

não prevaleceu. A filosofia começou a ser gra

dualmente reconhecida como uma disciplina autónoma, sendo Aristóteles a

sua autoridade principal

do

mesmo

modo

que os santos padres eram autori

dades em teologia, e

as

críticas contra o uso da filosofia natural em teologia

desvaneceram-se, embora ressurgissem de tempos a tempos,

IJlas

sempre em

vão. Talvez mais do que qualquer outro, São Tomás de Aquino procurou

definir a relaçãO entre teologia e filosofia. Fê-lo tomando cada uma como

uma

ciência independente. Os princípios fundamentais da teologia são os

artigos da fé ao passo que os princípios da filosofia

se

fundam

na

razão natu

ral. Por conseguinte, os artigos da

não podem ser demonstrados pela razão.

Se a teologia e a filosofia são ciências independentes, concluir-se-á daí que

aqueles que

se

dedicam à filosofia não devem teologizar e que aqueles que

estudam teologia não devem filosofar? Relativamente

à

teologia,

São

Tomás

acreditava que um teólogo deveria servir-se da lógica, da filosofia natural e

da metafísica na medida em que o considerasse necessário, embora não

aprovasse que se teologizasse em filosofia.

Ao

estabelecer a teologia como

uma ciência independente,

São

Tomás concedia implicitamente autonomia à

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86 os

FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MeDIA

filosofia daí, também à filosofia natural) como ciéncia, embora a encarasse

ainda como subordinada à teologia. No conflito iniciado no século XII, a teo

logia mantinha a supremacia face

à

filosofia. Até ao século XVII, as verdades

da fé, reveladas e não demonstradas, t inham prioridade definitiva sobre

as

verdades demonstradas pela razão.

Eternidade do mundo

Durante a década de 60 do século XIII, alguns dos mestres em artes, ou

filósofos, exerciam já a autonomia na sua disciplina, ao raciocinarem unica

mente em termos de princípios naturais. Mas era difícil permanecer indife

rente

ao

impacto teológico das suas conclusões, como se verifica em relação à

primeira das três questões controversas atrás mencionadas, nomeadamente, à

eternidade do mundo. Esta questão era, para

as

relações entre ciência e reli

gião na Idade Média, o que a teoria heliocêntrica de Copérnico veio a ser nos

séculos XVI e XVII, e a teoria da evolução de Darwin nos séculos

XIX

e XX.

A partir dos argumentos no final do primeiro livro

Sobre

os

Céus,

Aristóte

les

concluiu, logo no início do segundo livro, que o mundo no seu todo não

foi gerado e não pode ser destruido, como alguns alegam, antes

é

único e

eterno, não havendo princípio nem fim para toda a sua vida .l Na medida em

que Aristóteles baseava a sua filosofia natural na firme convicção de que o

mundo é eterno, havia aí uma forte ameaça à narrativa da Criação no Génesis.

A comprovar que a eternidade do mund o era encarada como potencialmente

perigosa, vinte e sete dos duzentos e dezanove artigos condenados em 1277

(mais de dez por cento) eram dedicados

à

sua denúncia. A eternidade do

mundo manifestava-se assim sob muita s formas. P or exemplo, o artigo 9 con

denava a proposição segundo a qual não houve um primeiro homem, nem

haverá um último; pelo contrário, sempre houve e sempre haverá a geração

do homem pelo homem ; o artigo

98

condenava a proposição de que o

mundo é eterno porque aquilo que tem uma natureza pela [actuação da] qual

poderia existir por todo o futuro, [certamente] tem uma natureza pela [actua

ção da] qual poderia ter existido por tod o o passado ; e a tese do artigo 107 de

que os elementos são eternos mas que foram feitos [ou criados] de novo na

relação que hoje apresentam foi igualmente condenada.

Levando em linha de conta que

as

autoridades teológicas condenaram a

eternidade do mundo em vinte e sete versões diferentes, poderiamos esperar

descobrir que a crença na eternidade do mundo estava muito espalhada. Mas

a verdade é que não há registo de alguém que tenha

m ntido

essa opinião

ENSINAMENTOS

ARISTOTt:uCOS E OS TEOLOGOS I8

herética sem reservas. Porque teriam então as autoridades condenado vinte e

sete artigos para impedir que se disseminasse uma proposição que ninguém

parecia advogar explicitamente? Embora seja possível que algumas destas pro

posições, ou todas elas, tenham sido defendidas em privado e que o tema

fosse do conhecimento comum, um resposta mais provável é a que decorre

d s

respostas

às

afirmações sobre a eternidade do mundo, como é evidente

nas reacções dos dois mestres em artes mais conhecidos do século XIII, Boé-

cio de Dácia f. após 1283) e Siger de Brabante (f. ca. 1284), os quais trocaram

a França pela Itália após a promulgação da Condenação de 1277.

Boécio e Siger escreveram, cada um, um tratado sobre a eternidade do

mundo, e Boécio também abordou este terna na obra Questões sobre a ísica

Quaestiones super libras Physicorum).

No tratado

Sobre a Eternidade do

undo De aeternitate mundi), Boécio argumenta que nenhum filósofo podia

demonstrar que alguma vez tivesse surgido um primeiro movimento e daí

que um início do mundo não seja determináveL Todavia, a eternidade do

mundo

é

tão pouco demonstrável como a sua criação. Embora não se pudesse

apresenta r uma prova aceitável para qualquer destas duas afirmações, Boécio

insistiu em que não há contradição entre a

cristã e a filosofia. A

deve pre

valecer. E conclui que:

o mundo não é eterno, antes foi criado de novo, embora .. isto não

possa ser demonstrado por argumentos, tal como

se

pode afirmar de

outras coisas respeitantes à fé. Porque, se pudessem ser demonstradas,

não pertenceriam à

fé,

mas à ciência. [

..

] Há muitas coisas na

que

não podem ser demonstradas pela razão, como [por exemplo] que

uma pessoa morta renasce exactamente como era antes, e que uma

coisa gerada regressa sem geração. E quem não crê nestas coisas é um

herético;

[e]

quem tenta conhecer estas coisas pela razão é um 10uco.

2

Contudo, nas Questões Sobre a Física, escrito aproximadamente na mesma

altura, Boécio defende que a matéria-prima é eterna

e,

por conseguinte, tem

de ser co-eterna com Deus. Na verdade,

Deus

tem de ser encarado como o

criador da matéria-prima. Para Boécio, esta conclusão decorria logicamente

da aplicação da razão ao funcionamento do mundo. Neste contexto, Deus

continua a ser considerado o criador tanto da matéria como do mundo, mas a

matéria criada

é,

mesmo assim, eterna.

Siger argumentou de modo semelhante. O mundo e as suas espécies não

podem ter sido criados, porque nenhuma espécie poderia ser tornada real a

partir de um estado prévio de potencialidade

e,

por conseguinte, cada espécie

deve ter existido previamente. Embora a razão o levasse a esta conclusão, que

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os

FUNDAMENTOS DA CIllNCIA MODERNA

NA IDADE

MllDIA

parecia proclamar a eternidade do mundo, Siger tentou precaver-se contra

possíveis acusações de heresia, insistindo em afirmar que "nós dizemos estas

coisas como sendo a opinião do Filósofo [isto

é

Aristóteles], embora sem

as

asseverar como verdadeiras".3 Onde os ditames da fé entravam em conflito

com

as

conclusões de Aristóteles, a

devia prevalecer.

A atitude de Boécio e de Siger era provavelmente semelhante

à

de outros

-

talvez

de muitos - mestres em artes de finais do século XIII e

foi

exposta, no

século XIV por João de Jandun, um famoso e controverso mestre em artes.

Quando a doutrina da Igreja entrava em conflito directo com as conclusões da

filosofia natural de Aristóteles - como sucedia na questão da eternidade do

mundo

-, os

mestres em artes cediam perante a teologia e a

fé. Na

realidade,

como já vimos,

os mestres em artes de Paris estavam obrigados a fazê-lo por

juramento desde

1272

um requisito que permaneceu efectivo até ao século

XV.

Mesmo

entre os

teólogos, havia opiniões contrárias. São Tomás de

Aquino, um dos teólogos mais importantes, afastou-se dos seus colegas con

servadores e adoptou uma posição semelhante à de Boécio de Dácia. Tal

como Boécio, São Tomás de Aquino negou que qualquer demonstração ade

quada pudesse ser formulada em favor quer da criação quer da eternidade.

Por conseguinte, é forçoso admitir que a eternidade do mundo é uma possibi

lidade (no que respeita aos argumentos de

São

Tomás de Aquino, ver Capí

tulo 6). Para o bispo de Paris e para os teólogos tradicionalistas de igual opi

nião, os argumentos propostos por Boécio, Siger e São Tomás de Aquino

devem ter parecido suspeitos. Pareciam conferir respeitabilidade à crença na

eternidade do mundo, ao mesmo tempo que minavam a confiança na sua

criação.

E

no entanto, com base na fé os três proclamavam a sua crença na

criação do mundo tal como é descrita no Génesis. Como o exprimiu São

Tomás de Aquino: "Que o mundo teve

um

princípio .. é um dogma de

mas não de demonstração ou de ciência. 4

Doutrina da dupl a verdade

A atitude que os mestres em artes assumiam quando

se

vergavam perante

a fé deixava os teólogos inquietos e desconfiados. Defendiam, e muitas vezes

declararam explicitamente, que

as

verdades da filosofia natural, baseadas na

aplicação da razão natural aos princípios apriorísticos e à experiência senso

rial, não

se

podiam conciliar com

as

verdades da fé. Nestas circunstâncias, a fé

tinha de ser defendida. Mas era-o de forma ambígua, porque

os

mestres em

ENSINAMENTOS ARlSTOTl uCOS EOS TEÓLOGOS

89

artes deixavam geralmente intactas as conclusões racionais da filosofia natu

ral, mesmo quando proclamavam

as

correspondentes verdades da fé. Se por

exemplo, a eternidade do mundo era considerada uma conclusão apropriada

em filosofia natural, não deixava no entanto de ser contrária

à

fé e devia, por

conseguinte, ser rejeitada. Nestas circunstâncias, era evidente que os argu

mentos a favor da eternidade do

mundo

não tinham sido rejeitados

por

serem imperfeitos, mas apenas porque eram contrários à

fé.

Isso dava a

impressão de existirem duas verdades, uma para a filosofia natural e outra

para a fé. Uma

vez

que os mestres em artes se abstinham geralmente de conci

liar os princípios e as conclusões de Aristóteles - em que presumivelmente

acreditavam - com

as

verdades da fé poder-se-ia dizer que estavam, ainda

que de forma subtil, a defende r a causa de Aristóteles. No minimo, parece que

transmitiram aos teólogos a impressão de que subscreviam uma doutrina de

dupla verdade, como

se

torna evidente na Condenação de 1277. No prólogo à

condenação, o bispo de Paris menciona brevemente uma doutrina da dupla

verdade ao denunciar aqueles que dizem que "as coisas são verdadeiras de

acordo com a filosofia, mas não de acordo com a

católica; como

se

pudes

sem existir duas verdades contrárias".5 Como exemplo do que pretendia sig

nificar, o bispo podia apontar o artigo 90 que condenava

os

que acreditavam

que um filósofo natural devia negar em absoluto a novidade [isto

é

a cria

ção] do mundo porque

ele

deve ater-se a causas naturais e a razões naturais.

Os fiéis contudo, podem negar a eternidade do mundo porque devem ater-se

a causas sobrenaturais."

Embora possa parecer que alguns mestres em artes tenham estado próxi

mos de aceitar implicitamente uma dupla verdade, ainda não

se

identificou

nenhum que acreditasse literalmente

numa

doutrina da dupla verdade.

Porém, com base no que ficou dito, podemos compreender o motivo pelo

qual muitos teólogos podem ter pensado que

Boécio

de Dácia, Siger de Bra

bante e outros - incluindo mesmo um dos seus, São Tomás de Aquino - acre

ditavam realmente na eternidade

do

mundo, mesmo quando proclamavam a

sua fidelidade ao dogma cristão da Criação. Isto torna-se óbvio na descrição

feita por Armand Maurer acerca da abordagem de Boécio de Dácia

à

eterni

dade do mundo:

Para que existissem duas verdades contrárias, a verdade cristã de que o

mundo não é eterno teria de se opor a uma verdade filosófica de que o

mundo é eterno. Mas é em vão que, no tratado de Boécio, procuramos

a afirmação de que a eternidade do mundo é filosoficamente verda

deira. É-nos simplesmente dito que tal decorre dos principios da

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9 os FUNDAMENTOS DA CItlNCIA MODERNA NA IDADE MIDIA

filosofia natural. Num ponto, Boécio afirma que decorre das verdades

das causas naturais ; mas a conclusão

em

si não é afumada explicita

mente como verdadeira. Boécio chega

muito

perto de afirmar

uma

verdade dupla mas no entanto evita fazê-lo tão declaradamente, que só

podemos concluir que o terá feito de form a deliberada. Tal como Siger

de Brabante, Boécio parece ter o maior cuidado em não colocar a fé e a

filosofia em contradição aberta no domínio

da

verdade.

E,

contudo,

aproxima-se tanto de o fazer que nos

é-fácil ver por que motivo foi

condenado pelo bispo de Paris.

6

limitações ao poder absoluto de Deus

Das três principais controvérsias anteriormen te apontadas, a terceira, a con

testação do poder absoluto de Deus, pode ter sido considerada como a poten

cialmente mais subversiva para as tradições teológicas. Dispersas pelas obras de

Aristóteles, havia proposições e conclusões que demonstravam a impossibili

dade natural de certos fenómenos. Por exemplo, Aristóteles demonstrara que

era impossível um vácuo ocorrer naturalmente dentro ou fora do mundo e

demonstrara também a impossibilidade de que pudessem existir naturalmente

outros mundos, além do nosso. Os teólogos vieram a encarar estas afirmações

aristotélicas

de

impossibilidades naturais como restrições

ao

poder absoluto

de

Deus para fazer o que lhe aprouvesse. Porque não haveria Deus de poder criar

um

vácuo dentro ou fora

do

mundo, se escolhesse fazê-lo? Porque não haveria

de criar outros mundos, se escolhesse

fazê-lo?

O artigo 147 reveIa a atitude do

bispo de Paris e dos seus colegas quando denunciou como errónea a opinião de

que Deus não pod ia fazer o que era natural mente impossível. Os artigos seguin

tes da Condenação de 1277 faziam parte daqueles que impunham limites ao

poder absoluto de Deus:

7

21. Que nada acontece por acaso, mas todas as coisas ocorrem necessaria

mente e que todas as coisas futuras existirão necessariamente, e aquelas

que não existirão ser-lhes-á impossível existir ..

34. Que a primeira causa [isto é, Deus) não poderia fazer vários mundos.

35. Que sem

um

agente adequado, como um pai e um homem, um homem

não podia ser feito [apenas) por Deus.

48. Que Deus não pode ser causa de um novo acto [ou coisa), nem Ele pode

produzir

algo

de novo.

ENSINAMENTOS R I S T O T ~ U C O S E OS TEOLOGOS

191

49. Que Deus não poderia mover os céus [ou mundo)

num

movimento

rectilíneo, porque deixaria um vácuo.

139. Que

um

acidente existindo sem um sujeito não é um acidente, excepto

equivocamente;

[e]

que é impossível que urna quantidade ou dimensão

exista por

si

própria porque isso tomá-Ia-ia uma substância.

140. Que fazer com que um acidente exista sem

um

sujeito é um argumento

impossível que implica uma contradição.

141.

Que Deus não pode fazer existir um acidente sem

um

sujeito, nem

fazer com que várias dimensões existam simultaneamente [no mesmo

lugar).

Poderiam citar-se muitos mais artigos limitativos do poder de Deus.

Todos eram condenados p orque as autoridades teológicas queriam que todas

as pessoas aceitassem que o poder de Deus era infinito, desde que não

entrasse em contradição lógica. Ao condenar a opinião de que Deus não

podia criar outros mundo s, o artigo 34 decretava que Deus podia criar tantos

mundos quantos quisesse. Embora

não

se pedisse a ninguém para acreditar

que Deus tinha criado outros mundos, o efeito do artigo 34 sobre a filosofia

natural era o de encorajar a especulação sobre as condições e as circunstâncias

que prevaleceriam se Deus tivesse realmente criado out ros mundos. O artigo 49

negava a Deus a capacidade de fazer mover o céu extremo

e,

por conseguinte,

o próprio mundo,

num

movimento rectilíneo, porque tal movimento teria

deixado

um

vácuo depois de o mundo sair da sua posição actual.

De

acordo

com a condenação do artigo 49

em

1277, os filósofos naturais escolásticos

admitiram ordeiramente que, se tal aprouvesse a Deus, Ele podia na verdade

mover o mundo rectilinearmente.

Nos artigos 139, 140 e 141, as autoridades condenaram o principio aristo

télico, na aparência evidente em si mesmo, de que um acidente não podia

existir sem

um

sujeito,

ou

uma

substância, a que era inerente e que Deus não

podia criar um acidente, ou qualidade, que não

fosse

inerente a um sujeito ou

substância. Condenaram ainda (nos artigos

139

e

141

o axioma aristotélico

segundo o qual nem quantidad e nem dimensão podiam existir independente

mente de um corpo material e denunciaram também o princípio aristotélico,

igualmente fundamental, de que du as ou mais dimensões não podiam existir

em simultâneo no mesmo lugar. Os artigos 139, 140 e 141 não só se qualifica

vam como colocando limites ao poder de Deus, mas negavam também a Deus

o poder de efectivar o dogma teológico da Eucaristia, no qual Deus transfor

mava miraculosamente o pão e o v inho usados na missa no corpo e sangue

de