Millar, Tomando a Medida Do Mundo Antigo

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8/3/2019 Millar, Tomando a Medida Do Mundo Antigo http://slidepdf.com/reader/full/millar-tomando-a-medida-do-mundo-antigo 1/14 TOMANDO A MEDIDA DO MUNDO ANTIGO 1  Fergus Millar [p.25] Há quase exatamente quarenta anos atrás, eu cursava meu último período em uma escola pública escocesa nas margens do Firth of Forth [o estuário do rio Forth], onde o clima fazia esse de Durham parecer, em comparação, decididamente tropical, e os meninos só eram protegidos de congelarem jogando rugby sem parar. Mas, por mais importante que rugby („rugger‟, na linguagem cotidiana) fosse para a ideologia da escola, até eu me surpreendi quando o presidente de turma se aproximou de mim e disse, com uma voz sem esperança, „Millar, eu às vezes fico deprimido. Existem algumas pessoas nessa escola que acham que rugger é assim como o latim, algo em que você não pensa a não ser quando está praticando‟.  Eu não estou contando esta estória para fazer graça de minha origem. Até por que, em um mundo onde nosso primeiro ministro pode nos dizer que não existe „algo como a sociedade‟, os valores do „espírito de equipe‟ e responsabilidade mútua que Loretto ensinou agora parecem menos evidentes e mais importantes do que na época. Em segundo lugar, quando, no início do segundo infantilismo que é comum a homens de meia idade, eu depois de muitos anos voltei a assistir partidas internacionais de rugger, eu percebi que o presidente da turma estava correto, ao menos em parte: nós apenas jogávamos e jogávamos, sem na realidade refletir sobre como o jogo podia ser  jogado melhor. Assim, em terceiro lugar, será que ele poderia estar correto em sugerir que o latim era algo que apenas „fazíamos‟, e que não costumamos perguntar a nós mesmos qual é nossa disciplina, no que ela consiste, ou como nós e nossos alunos podem lidar com ela da melhor maneira? Essa é a oportunidade que eu gostaria de [p.29] aproveitar agora: não, ao menos inicialmente, para me auto-questionar e criticar, mas o contrário. Ao definir no que é que nossa disciplina consiste, nós também podemos lembrar a nós mesmos, e a outros, do quão vasto é o seu escopo. 1  Fergus Millar, “Taking the Measure of the Ancient World”, in The Roman Republic and the Augustan  Revolution, Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2002, pp. 25-38. Discurso Presidencial apresentado no encontro da Classical Association, em Durhanm, Abril de 1993, originalmente publicado nos Proceedings of the Classical Association 90 (1993) 11-33. (Traduzido por Carlos Augusto R. Machado)

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TOMANDO A MEDIDA DO MUNDO ANTIGO1 

Fergus Millar

[p.25] Há quase exatamente quarenta anos atrás, eu cursava meu último período em uma

escola pública escocesa nas margens do Firth of Forth [o estuário do rio Forth], onde o

clima fazia esse de Durham parecer, em comparação, decididamente tropical, e os

meninos só eram protegidos de congelarem jogando rugby sem parar. Mas, por mais

importante que rugby („rugger‟, na linguagem cotidiana) fosse para a ideologia da

escola, até eu me surpreendi quando o presidente de turma se aproximou de mim e

disse, com uma voz sem esperança, „Millar, eu às vezes fico deprimido. Existem

algumas pessoas nessa escola que acham que rugger é assim como o latim, algo em que

você não pensa a não ser quando está praticando‟. 

Eu não estou contando esta estória para fazer graça de minha origem. Até por

que, em um mundo onde nosso primeiro ministro pode nos dizer que não existe „algo

como a sociedade‟, os valores do „espírito de equipe‟ e responsabilidade mútua que

Loretto ensinou agora parecem menos evidentes e mais importantes do que na época.

Em segundo lugar, quando, no início do segundo infantilismo que é comum a homens

de meia idade, eu depois de muitos anos voltei a assistir partidas internacionais de

rugger, eu percebi que o presidente da turma estava correto, ao menos em parte: nós

apenas jogávamos e jogávamos, sem na realidade refletir sobre como o jogo podia ser

 jogado melhor.

Assim, em terceiro lugar, será que ele poderia estar correto em sugerir que o

latim era algo que apenas „fazíamos‟, e que não costumamos perguntar a nós mesmos

qual é nossa disciplina, no que ela consiste, ou como nós e nossos alunos podem lidar

com ela da melhor maneira? Essa é a oportunidade que eu gostaria de [p.29] aproveitar

agora: não, ao menos inicialmente, para me auto-questionar e criticar, mas o contrário.

Ao definir no que é que nossa disciplina consiste, nós também podemos lembrar a nós

mesmos, e a outros, do quão vasto é o seu escopo.

1 Fergus Millar, “Taking the Measure of the Ancient World”, in The Roman Republic and the Augustan

 Revolution, Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2002, pp. 25-38. Discurso Presidencialapresentado no encontro da Classical Association, em Durhanm, Abril de 1993, originalmente publicadonos Proceedings of the Classical Association 90 (1993) 11-33. (Traduzido por Carlos Augusto R.Machado)

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Deixem-me começar oferecendo uma definição possível: os estudos clássicos

são o estudo da cultura, no sentido mais amplo, de qualquer população utilizando o

Grego e o Latim, do início até (digamos) a invasão islâmica do século VII d.C.

Desde o deciframento da Linear B por Michael Ventris, „o início‟ deve

naturalmente cobrir o segundo milênio a.C.; e certamente não podemos de forma

alguma deixar a Idade do Bronze tardia de fora de nossa concepção do que é a História

Grega. Mesmo assim, poderíamos escolher tratar dela como uma forma de „Pré-História

Grega‟, e tomar o início decisivo como sendo o século VIII a.C. Fazer isso seria tomar

dois pontos de referência interligados: o aparecimento dos primeiros fragmentos de

escrita que estão não apenas em grego, mas no alfabeto grego; e os trabalhos de Homero

e Hesíodo.

Se devemos, ou não, falar de um mundo histórico real (seguindo o brilhante O

 Mundo de Ulisses de Moses Finley), ainda assim é importante que uma gama admirável

de elementos básicos da cultura e da vida social e política grega já são representados

nos poemas de Homero: uma multiplicidade de deuses e deusas; sacrifícios oferecidos a

eles; templos; cidades, e cidades „coloniais‟ de fundação recente; guerra; competição;

honra; oratória; assembléias populares; competições atléticas. Assim a história do

 jornalismo esportivo europeu começa, muito apropriadamente, com o canto 23 da Ilíada,

e uma controvérsia famosa sobre se uma vitória em uma corrida de charretes foi vencida

legitimamente. (Talvez, tendo em vista a farsa do Grand National de 1993, a Classical

Association poderia oferecer um prêmio por 50 linhas de hexâmetros homéricos

descrevendo a corrida que nunca começou por que alguma divindade maliciosamente

anulou a inteligência dos oficiais da corrida?).

Mas se formos começar com Homero, é absolutamente essencial não nos

deixarmos enganar em pensar na „História Grega‟ como algo que aconteceu primeiro,

seguida algum tempo depois pela „História Romana‟. Pois as duas histórias e as duas

culturas foram intimamente ligadas do século VIII em diante, e se tornaram ainda mais

inextricavelmente ligada conforme o tempo passou. Assim, devemos nos lembrar que

vasos gregos importados já alcançavam Roma por volta da data especulativa, ou

lendária, de sua „fundação‟, 753 a.C. E também a partir de aproximadamente esta data  

temos o skyphos em estilo geométrico grego oriental descoberto na ilha de Pithekoussai

(Ischia) [perto de Nápoles], o mais antigo assentamento grego no Ocidente, e não muito

mais do que 100 milhas de Roma. O famoso grafite escrito nele, “Eu [sou] a taça de Nestor, boa para se beber”, reflete tanto o conhecimento do épico e, sendo escrita da

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direita para a esquerda, ilustra o (provavelmente recente) empréstimo do alfabeto grego

da Fenícia. Quase tudo [p.27] o que podemos esperar saber do Mediterrâneo no século

VIII está representado nesse fragmento de cerâmica.

Nós nos aproximamos, entranto, muito mais da Roma arcaica com a cratera do

século seguinte, descoberta em Caere [na Itália], meras 20 milhas de Roma, pintadas

com uma cena mostrando Ulisses e seus companheiros cegando Polifemo; ou, ainda um

século mais tarde, com a estória de Heródoto (1.167) de como um agon (competição)

foi instituído em Caere (Agylla) sob as instruções de Delfos, em expiação pelo

assassinato de alguns cativos Foceenses, e que ainda era mantido no século seguinte.

Não é apenas que a evolução de Roma aconteceu dentro da órbita da cultura grega, mas

que as pré-condições para que os romanos se vissem como descendentes de Enéias

existiam desde o início.

Do período arcaico em diante, nós precisamos ver a cultura grega e romana

como evoluindo em paralelo. Roma efetivamente ficou para trás, com certeza. Cidades

gregas se espalharam pelo Mediterrâneo oriental e ocidental, e o Mar Negro, muitos

séculos antes de a expansão romana começar. Além do mais, e de forma crucial para

nossos conhecimentos, a literatura romana só começou uns cinco séculos após a grega.

O fato é mais surpreendente do que pode parecer. A Roma do final do século VI já era

uma cidade importante, com ao menos um templo imenso no Capitólio. E se a inscrição,

em uma forma primitiva de latim, no Lapis Niger do Forum, for realmente de meados

do século VI, então ela é mais antiga do que qualquer inscrição pública conhecida de

Atenas. Por que uma literatura latina não se desenvolveu antes do século III a.C. é

realmente um quebra-cabeças.

O momento quando as duas histórias associadas porém separadas realmente

começam a se tornar uma é o final do século IV a.C. Pois as conquistas de Filipe e

Alexandre, levando os exércitos da Macedônia para a Grécia, e exércitos de línguagrega para todo o oriente próximo, Egito, Babilônia, Pérsia e Ásia Central, são paralelas

aos desenvolvimentos de menor escala, mas ainda mais significativos, na Itália. Eu

estou me referindo ao desmantelamento da liga latina em 338 a.C., e então meio século

de guerras contra os Samnitas, Etruscos, Celtas e Gregos. Mesmo antes de os romanos

atravessarem o estreito da Sicília em 264 a.C., uma longa lista de cidades gregas já

havia sido dominada pelos romanos, e Roma já era um poder reconhecido nas margens

do mundo grego.

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Nós devemos aceitar que tanto a conexão da cultura e história grega e romana,

 para produzir um único mundo „greco-romano‟, assim como a vasta expansão daquele

mundo foram produzidos pelo imperialismo e colonização. Não importa o quão

complexos foram os fatores correlatos, e as reações mútuas entre os diferentes grupos

culturais, foi muito simplesmente o imperialismo e o desejo de conquista que levaram a

cultura grega ao Afeganistão e ao Norte da Índia, e a cultura greco-rmana até a muralha

de Adriano [na Inglaterra]. Como eu estou tentando enfatizar, nós [p.28] temos todos os

motivos para nos vangloriar da pura extensão, no espaço e no tempo, da cultura greco-

romana. Mas quando enfatizamos demais a importância de nosso campo como uma

parte fundamental da experiência humana, nós não devemos, justamente porque

„imperialismo‟ e „colonialismo‟ são conceitos impopulares na cultura moderna,

falsificar a história obscurecendo o fato de que foi, em primeiro lugar, a guerra,

conquista, e assentamentos além-mar, tanto gregos quanto romanos, que criaram este

mundo greco-romano vasto e duradouro.

Quanto ao processo em si, não precisamos seguir todos os detalhes aqui. Será

suficiente relembrar que as duas fases mais importantes foram de fato as conquistas de

Alexandre na Ásia no século IV e a conquista romana, no oriente grego e no que se

tornaria ocidente latino, que alcançaram uma fase decisiva no século I a.C.

No contexto da imposição de uma cultura grega na Ásia, será útil escolher três

áreas onde as consequências foram especialmente notáveis. A primeira é o Egito, que

tem uma significância especial pela sobreviência de papiros. Então, em primeiro lugar,

podemos encontrar os colonos do mundo grego que se estabeleceram lá a partir do final

do século IV. Talvez o mais notável de tudo, por ser tão antigo, é o papiro grego de 311

a.C., de Elefantina, aproximadamente 600 milhas Sul do delta do Nilo. O papiro registra

o contrato de casamento entre dois colonos gregos:

No sétimo ano do reinado de Alexandre filho de Alexandre, 14º da satrapia dePtolomeu, no mês de Dius. Contrato de casamento Heráclides e Demétria. Heráclides toma comosua legítima esposa Demétria, de Cós, ambos nascidos livres, de seu pai Leptines, de Cós, e suamãe Filótis, trazendo roupas e ornamentos no valor de 1000 dracmas, e Heráclides irá proverDemétria com tudo o que é adequado para uma esposa nascida livre, e nós viveremos juntosonde parecer melhor para Leptines e Heráclides através de consultas mútuas... Testemunhas:Cleon, de Gela; Anticrates, de Temnos; Lysias, de Temnos; Dionísio, de Temnos; Aristomaco,de Cirene; Aristodico, de Cós.

Mais importante, talvez, porque de então até a conquista árabe o Egito

permaneceu uma área biblíngue, na qual tanto o egípcio quanto o grego foram usados,

as dezenas de milhares de papiros que sobrevivem preservam para nós uma grande,

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apesar de aleatória, parte da literatura grega, na qual Homero predomina acima de todos

os outros. Nós agora podemos ler a literatura grega (e um pouco da latina), não como foi

transmitida pelos escribas medievais, mas como era lida no mundo antigo.

A segunda área de imensa significância foi é claro a Judéia, pois uma das

consequências duradouras das conquistas de Alexandre foi que o [p.29] judaísmo pós-

bíblico, e obviamente o cristianismo, foram formados em um ambiente grego. Olhando

para trás do século I d.C., o grande historiador judeu Josefo, escrevendo em grego toda

a história de seu povo da Criação até 66 d.C., incorporaria essa maravilhosa história

folclórica, ou (pode-se dizer) novella, sobre a visita de Alexandre a Jerusalém:

Então ele foi ao templo, onde sacrificou a Deus sob a direção do sumo-sacerdote, emostrou o respeito devido aos sacerdotes e ao próprio sumo-sacerdote. E, quando o livro deDaniel foi mostrado a ele, no qual foi declarado que um grego destruiria o império dos persas,ele acreditou ser o indicado; e em sua alegria ele dispensou a multidão pelo momento, mas nodia seguinte convocou-os novamente e lhes disse que pedissem qualquer presente quedesejassem. Quando o sumo-sacerdote pediu que eles pudessem seguir as leis de sua próprianação e que no sétimo ano fossem isentos de tributo, ele concedeu tudo isso.

Nós não precisamos hesitar em dizer que essa história, da forma como é contada,

é uma lenda, pois o Livro de Daniel  –  no qual essa pseudo-profecia de fato aparece

(8.21) ainda não havia sido escrito. Ele seria composto, na forma que o possuímos, no

meio do período helenístico, para ser preciso na década de 160 a.C., durante a

perseguição do judaísmo pelo rei Selêucida Antíoco IV Epiphanes.

Única entre todas as culturas que foram submersas na cultura grega, o judaísmo

continuou a produzir obras escritas em suas duas línguas nativas, o hebraico e o

aramaico (Daniel usa as duas), e a ter suas obras canônicas traduzidas para o grego. A

lenda de como a Bíblia, ou ao menos o Pentateuco, foi traduzida para o grego, envolve

tanto o Egito, no reino de Ptolomeu II Philadelpho (283-246 a.C.), e a Judéia. Pois diz-

se que o rei enviou uma missão a Jerusalém para trazer tradutores para trabalhar em

Alexandria. A estória de fato parece ser lenda, paesar de setenta (ou setenta e dois)

tradutores terem dado seu nome à versão grega da Bíblia, a Septuaginta. Mas é fato que

o trabalho de tradução tinha ao menos começado no século III; e com ele uma visão

razoavelmente nova d emundo, e como ele surgiu, passaram a ser expressas em grego.

Quantas aulas de tradução de prosa grega, eu imagino, começaram com as palavras

iniciais do primeiro capítulo do Gênesis?

[p.30] E ainda assim essa visão da natureza do mundo e da divindade se tornou,

conforme o tempo passou, ao menos tão importante quanto os clássicos pagãos para asmilhões de pessoas cuja língua culta era o grego, e mais tarde para os que falavam o

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latim. O século III foi assim também o momento quando as duas linhagens da cultura

que herdamos se uniram.

Antes de examinarmos o mundo greco-romano mais tardio, vale a pena olhar de

relance para outra conjunção de culturas e sistemas religiosos que poderia ter levado a

uma civilização igualmente duradoura, mas que no fim não o fez. Na época de Ptolomeu

Philadelpho grandes partes da Índia e do Afeganistão, profundamente afetados pela

chegada de Alexandre, mas deixados de lado por Selêuco Nicator, foram governadas

pelo grande imperador da dinastia Mauryana, Asoka, de quem um dos epítetos foi

„piodasses‟, que aparentemente significa „de semblante benevolente‟. Tendo uma

mensagem importante a transmitir ao seu povo, Asoka ordenou que uma série de

proclamações fossem inscritas em diferentes pontos de seu império. Um destes lugares

foi Kandahar, onde ele inscreveu um edito em grego e aramaico. Uma vez que esse

documento memorável, publicado pela primeira vez em 1958, nunca se tornou bem

conhecido dos classicistas, ele merece ser citado inteiro aqui:

Quando dez anos haviam passado, Piodasses demonstrou devoção perante todos oshomens, e daquele tempo em diante tornou os homens mais devotos, e tudo prosperou na terra.Pois o rei abstém de (comer) coisas vivas, e outros homens  –  como os caçadores do rei e ospescadores  – abandonaram a caça. E se alguém não consegue se auto-controlar, ele deixa seusexcessos o máximo que pode. Além disso são obedientes ao pai e à mãe, e aos mais velhos, maisdo que o eram anteriormente. No futuro, vivendo de acordo com estes princípios, eles serão

pessoas mais agradáveis e melhores.

Porque estava o rei divulgando estes ideais entre o povo? Porque ele havia sido

convertido recentemente aos ensinamentos de Bhudda. O documento é um dos dois

únicos (o outro é outro edito de Asoka, publicado em 1964) no qual crenças budistas

são expressas em grego clássico.

Essa conjunção admirável acabou, até onde sabemos, por ser abortada. No fim, o

mundo das cidades gregas não iria se extender além do Tigre, ou no máximo a Selêucia

no [rio] Eulaeu, a antiga Susa. Mas na região mediterrânea em geral, a expansão

romana, começando como vimos no mesmo exato momento que as conquistas de

Alexandre, absorveu praticamente todas as áreas onde aquelas conquistas tiveram

efeitos duradouros, e ao mesmo tempo levou a cultura latina para o Norte da África e a

[p.31] Europa ocidental, incluindo depois a Britânia, a Europa central até o Danúbio e o

Mar Negro, com uma extensão notável até a Dácia, a atual Romênia. O efeito, portanto,

foi produzir durante os primeiros séculos d.C. uma cultura greco-romana dual, expressa

em grego, latim, ou ambos, do Tigre ao Atlântico, ou de Elefantina no alto Nilo àmuralha de Adriano.

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Devemos destacar a própria escala deste processo. Estimativas modernas (ou

adivinhações) situam a população do império romano por volta de 50 milhões de

pessoas. É importante enfatizar que o que foi produzido foi uma cultura dual, o grego e

o latim, na qual os elementos constituintes da cultura latina deveram mais à cultura e

tradição gregas do que o contrário. O exército romano, é claro, carregou consigo a

língua latina, e mesmo a literatura latina, para todos os cantos do império. Nos últimos

anos novas descobertas demonstraram como o exército levou o texto da Eneida em suas

missões mais distantes: uma linha da Eneida (9.473) de Vindolanda tem eco em outra

(4.9) em Masada, a grande rocha perto do Mar Morto que o exército romano ocupou

depois de seus defensores, na estapas finais da revolta judaica, se suicidaram em 73 ou

74 d.C.

Mas o primeiro de dois fatos fundamentais que devemos entender sobre o

império romano é que a „latinização‟, nunca buscada de maneira sistemática, teve um

progresso muito pequeno no oriente de língua grega. Não existe por exemplo nenhuma

prova de que alguém tenha traduzido qualquer trabalho de Virgílio para o grego até o

início do século IV, quando o imperador Constantino apresentou algo da Quarta Écloga

em grego para uma assembléia de bispos.

Mais importante, na metade oriental do império a língua da vida cotidiana, e

mesmo (na maioria) dos negócios públicos, permaneceu o grego. Seria uma estimativa

razoável dizer que, em todas as fases do império romano, este possuiu mais falantes

nativos do grego do que do latim. Assim é que sobreviveu uma tradição contínua da

cultura grega durante o período helenístico, pelos três primeiros séculos do império

romano, a fundação de Constantinopla por Constantino, a queda do império no Ocidente

no século V, e no mundo bizantino.

Mas o outro fato essencial sobre o império romano é igualmente importante.

Trata-se da difusão do latim, a ponto de se tornar não apenas a língua do império mas ada vida cotidiana, nas regiões não-gregas. Quando, quarenta anos atrás, meu presidente

de turma presumiu que não se „pensava sobre‟ o latim, eu acho que ele estava certo. No

caso da Itália em si, da Gália e Espanha, nós podemos ter certeza de que no fim uma

língua popular que evoluiu do latim tornou-se a língua principal da fala cotidiana. Mas

quando, por quais etapas e através de quais processos educacionais e sociais? Teria o

mesmo ocorrido [p.32] no Norte da África antes das invasões islâmicas? Teria ocorrido

na Britânia na época em que os romanos a deixaram no início do século V? Nóspodemos encontrar o latim comum da rua e do mercado (por exemplo) nas tabuinhas de

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maledição do templo de Sulis Minerva em Bath, esplendidamente editadas por R. S.

Tomlin. Teria o celta sido falado durante os quase 4 séculos de dominação romana, sem

deixar qualquer traço por escrito? Problemas similares são apresentados por quase toda

a Europa central, sem falar na Romênia e sua língua derivada do latim. Nós precisamos

„pensar sobre‟ o latim; e a história social da difusão do latim e de sua adoção como

língua da vida cotidiana mal começou a ser escrita.

De todo modo, ao pensarmos sobre a expansão do latim, nós não estamos

preocupados apenas com uma língua, mas com uma cultura e consciência histórica por

inteiro. O fato de que praticamente nenhum traço de qualquer literatura pré-romana

sobrevive, escrita ou oral, ou de qualquer concepção própria de história local, entre os

povos do Mediterrâneo ocidental ou da Europa central e do Noroeste, é um

extraordinário tributo à atração da cultura latina. A única literatura que estes povos

herdaram foi o latim, e a única história a romana  –  exceto nos casos onde também

tinham consciência da cultura grega e, com o cristianismo, da tradição do Antigo

Testamento.

Muito poucas pessoas, hoje como à época, se permitiram ficar suficientemente

surpresas com esse fato. Uma pessoa que se permitiu, no entanto, foi Aurélio

Agostinho, nascido em 354 d.C. e educado na pequena cidadezinha de Tagaste, no

Norte da África Romana. Relembrando-se, em suas As Confissões, escrita nos anos 390,

Agostinho viu que era possível perguntar-se porque é que sua educação havia sido feita

da forma que foi:

Mesmo agora ainda não descobri as razões pelas quais eu odiava a literatura gregaenquanto eu era ensinado na minha infância. Eu amava o latim profundamente, não na época demeus professores primários, mas no nível secundário quando eu era ensinado pelos professoresde literatura chamados „gramáticos‟. Os elementos iniciais, quando se aprende a leitura, escrita e

aritmética, eu achei tão enfadonhos e dolorosos quanto uma série inteira de aulas de grego.

Mas por que, de todo modo, sua educação foi sobre as paixões de Dido[personagem famosa da Eneida], e não sobre sua própria alma?

O que é mais digno de pena do que um pobre coitado sem pena de si próprio que chorapela morte de Dido, morrendo de amor por Enéias, mas não chora por si próprio, morrendo porsua falta de amor por Ti, meu Deus, luz de meu [p.33] coração, pão da boca de minha alma, opoder que dá vida em minha mente e nos mais recônditos recessos de meu pensamento.

A questão expressou as tensões insolúveis entre duas tradições, a judaico-cristã e

a clássica, que àquela altura formavam a cultura do império greco-romano  –  que, na

época em que Agostinho escrevia, em 395 d.C., estava alcançando o primeiro passo naeventual divisão entre o Ocidente latino e o Oriente grego.

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Onde devemos ver o final da história da cultura greco-latina é evidentemente um

problema insolúvel. Em um sentido a resposta é, certamente, nunca. Em outro, é 1453 e

a queda de Constantinopla. Ou talvez as invasões islâmicas do século VII. Ou talvez, se

quisermos escolher uma data terminal, com o reinado de Justiniano em Constantinopla,

m 527-565. Pois não só este reinado assistiu à última tentativa de reunificação de

Ocidente e Oriente por meios militares, mas ele também produziu um dos maiores

monumentos da prosa latina e da cultura romana, o  Digesto. Parece estranho, mais uma

vez, que ninguém (até onde eu sei) use extratos desta obra em um contexto educacional.

Porque, em primeiro lugar, não importa qual tenha sido a intenção de Justiniano, o que

os compiladores do  Digesto produziram na verdade foi algo familiar a todos nós: uma

coletânea de fontes. O que eles fizeram foi selecionar extratos dos principais escritores

do direito romano clássico, principalmente aqueles do início do século III d.C., Ulpiano,

Papiniano e Paulo, e os organizaram em seções. Através do Digesto nós temos acesso a

um vasto corpo de escrita romana em prosa do apogeu do império, quase um milhão de

palavras ao todo. Não só isso, o principal manuscrito do Digesto, agora em Florença, foi

escrito, naturalmente em latim, em algum lugar do mundo grego no final do século VI

ou no século VII. Ele é assim muito próximo de sua data original de compilação.

Suponha que nós achamos que a escrita deste vasto manuscrito em latim tenha

sido feita em 622 d.C., o ano da hégira de Maomé de Meca para Medina. Nós podemos

então escolher estes dois eventos como marcando o fim simbólico do mundo antigo.

Essa data está a quase exatamente 1400 anos depois de os primeiros colonos gregos

terem chegado em Pithekoussai, e que seus sucessores imediatos trouxeram com eles o

conhecimento da „taça de Nestor‟ e do épico homérico. O intervalo de que estamos

falando é um pouco mais longo do que o período de tempo entre 622 e hoje. Ao

defender nossa disciplina, e ao enfatizar sua significância para a história humana, e sua

própria escala em espaço e tempo, nós não devemos ser muito modestos.Ao mesmo tempo, devemos estar preparados para fazer algumas perguntas a nós

mesmos. Para começar, quem permitiu que nosso „canône‟ do que merece ser lido em

grego e latim fosse reduzido ao que quer que se consider „literatura‟? Não seriam [p.34]

extratos de textos jurídicos romanos, com seu uso repetido de situações da vida

cotidiana, ser mais acessível para alunos do que (por exemplo) Ovídio com sua

complexa rede de alusões mitológicas? Igualmente, não será que alunos responderiam

melhor a manuais militares ou arquitetônicos romanos? Ou à medicina grega, na formado corpus hipocrático? Ou a cartas em papiros, por exemplo, de filhos viajantes a pais

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irritados? Mas acima de tudo, por que é que nós excluímos de nossa concepção usual do

que é uma educação clássica textos judaicos e cristãos em grego, cristãos em latim?

(Até onde eu sei não existe nenhuma literatura judaica em latim na antiguidade). Acabar

com essa exclusão seria, como afirmei anteriormente, trazer a Septuaginta para o cânone

da literatura grega, sem falar daquelas duas imensamente poderosas narrativas (em

grego) da resistência judaica ao heleniso no século II a.C., o primeiro e o segundo livros

dos Macabeus. Estes textos, convenientemente disponíveis na bíblia católica ou em

edições protestantes dos apócrifos (traduzidos por exemplo na Bíblia de Jerusalém e na

Nova Bíblia Anglicana), são não apenas poderosos escritos, mas têm um impacto direto

na natureza e no impacto da cultura grega no período helenístico. Tomem por exemplo

o relato em 2 Macabeus 4, de como o sumo-sacerdote dos anos 170 a.C. “apreciou

encontrar imediatamente abaixo da acrópole um ginásio, e levou para lá os mais nobres

dentre os efebos vestindo um  petasos [um chapéu-sombreiro grego]. Aquele foi o

momento de apogeu do helenismo e do avanço de costumes estrangeiros através da

poluição do ímpio Jasão, não um sumo-sacerdote verdadeiro, tanto que os sacerdotes

não queriam mais conduzir os serviços do altar, mas, desprezando o Templo e

negligenciando os sacrifícios, eles correram para participar dos exercícios da  palaistra 

[ginástica], quando convocados pelo som do diskos.” 

Se nos permitíssemos esse ponto de vista sobre o mundo clássico, poderíamos

também aceitar a centralidade dos trabalhos de Josefo, escritos em grego em Roma na

parte final do século I d.C., mas representando para o mundo pagão uma tradição e

história locais com origens na Criação. Poderíamos até ler nas aulas de grego aquelas

visões vívidas da sociedade provincial no império romano apresentadas pelos

Evangelhos e pelos Atos dos Apóstolos.

Existem além disso razões importantes para nos permitir incluir textos judaicos e

cristãos em nossa concepção de „estudos clássicos‟. Uma é que, no caso do cristianismo,

nós podemos seguir a transmissão da nova fé de um contexto grego para um latino, e

com isso chegamos mais uma vez no mundo greco-romano da Antiguidade Tardia, onde

a cultura e tradição pagãs viveram em uma coexistência desconfortável com a screnças,

tradições e literatura judaico-cristã. Devemos nos lembrar que foi provavelmente no

mundo romano tardia dos séculos IV e V d.C. (digamos) que o maior [p.35] número de

pessoas tinha ou o grego ou o latim como sua língua natal. De certo modo, como o

retrato de Agostinho de sua educação em sua pequena cidade natal mostra, esse foi omais „clássico‟ de todos os períodos. 

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Mas a segunda razão é mais relevante para o modo como podemos apresentar o

mundo clássico para os dias de hoje. Pois os dois importantes processos que acabei de

mencionar, a transferência do cristianismo e suas escrituras sagradas para um ambiente

de língua latina e o conflito entre o cristianismo e o paganismo, são ilustrados por textos

com tremenda força dramática, combinados com simplicidade linguística, os  Atos dos

 Mártires Cristãos. Estes  Atos não são, apesar de parecerem, registros de processos do

 julgamento de mártires. Mas eles são uma evocação literária antiga daqueles processos,

que seja na realidade ou apresentados nos  Atos serviram para demonstrar o que estava

em jogo na luta entre duas visões do mundo.

Um aspecto destes processos complexos é capturado perfeitamente nos mais

antigos  Atos de Mártires em latim conhecidos, representando o julgamento de alguns

cristãos de um lugarejo chamado Scilli pelo procônsul da África em 180 d.C. Uma das

perguntas do procônsul produz uma resposta de significância muito maior do que a

linguagem simples sugere:

Saturnino o procônsul perguntou: O que está nessa sua caixa?Sperato respondeu: Os livros e cartas de Paulo, um homem justo.

Com isso nós temos a evidência mais antiga para a tradução do Novo Testamento em

latim, um processo que culminou com o grande trabalho de revisão de Jerônimo e a

produção da Vulgata, que permaneceu desde então a Bíblia da igreja católica.In principio creavit Deus caelum et terram, terra autem erat inanis et vacua et tenebrae superfaciem abyssi. Et spiritus Dei ferebatur super aquas. Dixitque Deus „fiat lux‟; et facta est lux.  

De um ponto de vista, a difusão desta visão do que era o mundo é sem dúvidas

importante para nosso entendimento do que foi o mundo antigo. Mas de outro ponto de

vista, não poderiam estas frases simples, cheias de significado, fornecer a iniciantes uma

boa introdução ao latim da Antiguidade Tardia (como textos judaicos servem para o

grego do período helenístico)? Mas se quiséssemos usar o latim cristão para iniciantes,não haveria escolha melhor do que os  Atos que representa o julgamento de Frutuoso,

bispo de Tarragona, perante o governador ( praeses) em 259 d.C. Percebam o uso

carregado e significativo de tempos verbais, o emprego de orações subordinadas, o

contraste entre singular e plural (deum e deos) ao falar da ordem divina, e a forte clareza

com que o conflito entre religiões é apresentado: [p.36]

Aemilianus praeses Fructuoso dixit: Audisti quid imperatores praeceperunt?Fructuosus dixit: Nescio quid praeceperunt. Ego Christianus sum.

Aemilianus praeses dixit: Praeceperunt deos coli.

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Fructuosus dixit: Ego unum Deum colo, qui fecit caelum et terram et mare et omnia quae in eissunt.Aemilianus dixit: Scis esse deos?Fructuosus dixit: Nescio.Aemilianus: Scies postea.* * * * *Aemilianus praeses Fructuosus dixit: Episcopus es?Fructuosus dixit: Sum.Aemilianus dixit: Fuisti.

O governador Emiliano o governador perguntou a Frutuoso: Você ouviu o que os imperadoresordenaram?Frutuoso respondeu: Eu não sei o que ordenaram. Eu sou um cristão.O governador Emiliano disse: Eles ordenaram que os deuses sejam cultuados.Frutuoso respondeu: Eu cultuo o Deus único, que fez o céu e a terra e o mar e tudo o que estáneles.Emiliano perguntou: Você sabe que existem deuses?

Frutuoso: Eu não sei.Emiliano: Você saberá mais tarde.* * * * *O governador Emiliano perguntou a Frutuoso: Você é um bispo?Frutuoso respondeu: Sou.Emiliano disse: Era.

O suficiente foi dito para ilustrar os três temas principais que eu queria

transmitir: a própria escala em tempo e espaço do que chamamos de „mundo antigo‟; a

significância neste contexto daqueles textos em grego ou latim que faríamos bem em

incorporar à nossa visão desse período; e o uso que poderia ser dado a alguns desses

textos, sendo gramaticalmente simples mas cheios de significados, ao introduzir

iniciantes à cultura e crenças clássicos.

Se eu tivesse espaço, eu diria algo sobre as centenas de milhares de inscrições e

as dezenas de milhares de papiros que nos dão acesso direto às palavras escritas nas

milhares de pequenas cidades e vilarejos do mundo antigo (muitos destes textos também

serviriam para estudantes começando [p.37] a ler grego ou latim). Mas ao invés disso eu

irei me permitir citar meu trabalho preferido da Antiguidade Tardia, o brilhante relato

 jornalístico feito por jerônimo da vida de Hilário, um habitante da antiga cidade de

Gaza, que nasceu por volta de 290 e se converteu nos primeiros anos do século IV para

a vida de um asceta cristão.

A antiga cidade filistina de Gaza era então um exemplo perfeito de um lugar

„greco-romano‟. Helenizada há muito tempo, ela havia recebido no século III o status de

colônia romana. Assim (ao menos em princípio) ela usava o latim em seus assuntos

públicos, e seus dois principais magistrados anuais tinham o título latino de duumviri.

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Como uma urbs romana, Jerônimo relata, a cidade organizava um festival anual em

honra ao deus Consus, para comemorar o rapto das Sabinas. Como parte do festival, um

cristão, Itálico, deveria guiar uma quadriga (carroça puxada por quatro cavalos) em uma

corrida contra outra de propriedade de um duumvir  pagão, e temia o efeito de

encantamentos. Então foi pedido a Hilário que providenciasse água benta para jogar

sobre os cavalos, a quadriga e o corredor cristão.

Assim, Jerônimo escreveu, „quando o sinal foi dado, eles [os cavalos do cristão]

saíram correndo, e os outros ficaram parados.‟ Jerônimo retoma aqui a tradição de

 jornalismo esportivo inaugurada no canto 23 da Ilíada, e começa a usar o presente

histórico: „Sob a carroça cristã as rodas ficaram vermelhas de tão aquecidas; eles [os

cavalos do pagão] mal podiam ver as costas de seus rivais quando estes passavam.‟

„Marnas foi derrotado por Cristo!‟, gritou a multidão. E assim seria no fim, mas apenas

após muitos séculos em que adoradores de Cristo e de divindades pagãs coexistiram, e

mais pessoas eram educadas na língua, cultura e tradição gregas e latinas do que em

qualquer tempo antes.Nós não devemos ter medo, no mundo moderno, de nos orgulhar

de quanto da história humana é representado por esses processos. Mas, ao mesmo

tempo, devemos nos deixar „pensar sobre o latim‟, e sobre como o iniciante moderno

pode ser melhor ajudado a estudar o mundo greco-romano.

UMA NOTA SOBRE AS FONTES 

Para quem quer seguir qualquer um dos textos mencionados nesta palestra, segue uma

nota sobre os lugares onde eles foram publicados:

1. O papiro de 311 a.C. é mais facilmente encontrado em A. S. Hunt e G. C. Edgar,

Select Papyri I (1932), n. 1, edição da Loeb.

2. O relato de Josefo sobre Alexandre em Jerusalém vem de sua  Antiguidades Judaicas 2.8.5 (329-39); a passagem citade é 336-8 (Loeb).

3. A inscrição budista de Asoka foi originalmente publicada por D. Schlumberger,

[p.38] L. Robert, A. Dupont-Sommer e E. Benveniste no  Journal Asiatique 246 (1958):

1. O texto e tradução em francês em J. Pouilloux, Choix d’inscriptions grecques (1960)

n. 53. O segundo texto grego foi publicado por E. Benveniste no  Journal Asiatique 252

(1964): 1, e é reproduzido em P. Steinmetz, org.,  Beiträge zur hellenistischen Literatur 

und ihren Rezeption in Rom (1990), nas págs. 47-49.

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4. A tradução da Quarta Écloga para o grego de Constantino é contida em sua Oração à

 Assembléia dos Santos, normalmente publicada com a „biografia‟ de Eusébio, Sobre a

vida do abençoado Constantino. A passagem referida é Oração, 19-20. A única

tradução em inglês que eu conheço é a de P. Schaff e H. Wace em Select Library of 

 Nicene e Post-Nicene Fathers, I (1890; rep. 1952). Mas veja agora A. Cameron e S.

Hall, Eusebius: Life of Constantine, traduzida com introdução e comentário (1999).

5. A edição de R. S. O. Tomlin das tabuinhascom maldições de Bath podem ser

encontradas em B. Cunliffe, org., The Temple of Sulis Minerva at Bath II (1988).

6. A tradução das Confissões (1.13) é tirada da de H. Chadwick, Saint Augustine,

Confessions (World‟s Classics, 1992). 

7. O texto grego dos livros I e II dos Macabeus podem ser encontrados nas edições da

Septuaginta, por exemplo, a de A. Rahlfs, originalmente publicada em 1935; e também,

com tradução francesa e comentários, em F.-M. Abel, Les livres des Maccabées (1949).

8. Os atos dos mártires cristãos podem ser encontrados com uma tradução (muito pobre)

em H. Musurillo, The Acts of the Christian Martyrs (1972). O texto dos atos dos

mártires de Scilli é o de número 1, o dos atos de Frutuoso é o número 12.

9. A Vita Hilarionis de Jerônimo é publicada em C. Mohrmann, org., Vita dei Santi IV

(1975), 69ff., e traduzida em R. J. Deferrari, org.,  Early Christian Biographies (1952),

245ff.