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  • \01 .S \1.\fOAuO. 2013 Rf VIS I A LJL DI RL ITO BRASII.EIR.\

    2 }USTIA E DESIGUALDADE NO DIREITO BRASILEIRO

    justice and inequality in brazilian law

    LUIZ EDUARDO ABREU Possui graduao em Cincias Sociais pela Universidade de Braslia ( 1989). mes-trado em Ciencia Social (Antropologia Social) pela Universidade de So Paulo ( 1993) e doutorado cm Antropologia pela Universidade de Braslia ( 1999). Aluai-mente coordena o Ncleo de Pesquisa e Monografia da Faculdade de Direito do UniCEUB e professor do Programa de Ps-Graduao em Direito (mestrado e doutorado) da mesma instituio. E-mail: [email protected]

    R ECCBIDO cM : 05.02.2013 APROVADO EM: 29.06.2013

    O artigo critica o pressuposto de que um ato de importao de concei-instrumentos, decises de um sistema jurdico nacional para outro seja um ato

    ...-ontinuidade, como se o sentido daquilo foi importado fosse o mesmo nos dois .:mas jurdicos. O exemplo utilizado para demonstrar os limites deste pressupos-.. o uso do conceito de igualdade no direito brasileiro. Para tanto, comparamos

    0 1 Barbosa, considerado o clssico brasileiro sobre o assunto, com dois autores tdigmticos da ideologia individualista europia e norte-americana, Rousseau e 'b. O objetivo da comparao marcar as diferenas entre as duas ideologias, !'ato de Barbosa ser considerado um clssico diz algo importante, a saber, que bosa afirmava na dcada de 20 do sculo passado tem ressonncia nas prticas

    do direito. A comparao mostra que a ideologia jurdica brasileira 1dcologia individualista moderna representam duas vises de mundo que, em

    .;o ao conceito de igualdade, so. em muitos sentidos, diametralmente opostas.

    P "KAS-CnAvE: D ESIGUALDADE. Rui B \RBOSA. RAWLS. AU. TRADIES JR-" JusrJ

  • ANO 1 \'Ol. 5 M \lO K.O 2011 Rf\ISTI

    ARSTRACT

    Are the conccpts, instrumcnts, decisions of a nationallegal systcm import ed by another one an act of continuity? H as what is imported the sarne meaning in the two legal systems? This articlc's main hypothesis is that one cannot presuppOSl it. The use of the concept of equality in Brazilian legal system shows the limits ol this assumption. The comparison bctween Rui Barbosa, considered thc Brazilian classic on the subjcct, and two European and North 1\mcrican paradigmatic author' Rousseau and Rawls displays fundamental differences between both Brazilian and European, North-American legal ideologies. Thercfore Brazilian legal idcology and European, North American moral individualism cmbody two diametrically opposc world views.

    KrvwoRos: l Nr:QUALITY. R ui BARBOSA. RAwLs. RoussEAU. LFGAL TRADITIONS. JusriCI

    SUMRIO: Introduo. I. A importao das ideias. 2. As diferentes 3. Entre a desigualdade justa e a piedade obrigatria. 4. A extenso do sistema Concluses: sugestes para o debate. Referncias.

    INTRODUO

    O direito brasileiro, de um modo geral, supe que existe uma relao dl continuidade entre a tradio jurdica brasileira c a tradio do sistema de direi!( romnico germnico europeu; alm disso, c de forma geral, a importao de solu es jurdicas de outros pases imaginada como no problemtica. H nisso algun-. pressupostos. A ideia de importao no seu sentido mais, comum" im plica cm "traLer algo de fora", em reproduzir "dentro" algo que tem sua "origem em algum outro lugar. O nosso problema de pesquisa- e a nossa crtica maneira como o direito brasileiro trata aquilo que vem de - est no suposto de esta importao um ato de continuidade, como se o que existe em outro pas e o foi tra/ido para o nosso possussem uma identidade, um substrato comum que fosse em alguma medida, universalizvel. O ponto que, se universalizvcl, este substral\ seria, por consequncia, indiferente ao contexto social.

    Este texto estabelece, cm relao a essa pretenso uma oposio radical. < que ele pretende criticar a ideia de que estejamos todos falando da mesma eoisa 42 A crtica pode no se aplicar da mesma maneira a outros sistemas jurdicos. No Bras1 particularmente pretende-se que os instrumentos. tcnicas c princpios que utilizamos so o mesmos que outros sistemas utilizam, pa11icularmente os sistemas jurdicos de pases eun' peus, como Frana, Alemanha c, paradoxalmente em menor grau, Portugal.

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  • \01..5 1013 REVJSn DI UI REI TO BRASJLEIR \

    o que isso significa? Ora, um exame do uso, no Brasil, de alguns institutos, ou tcnicas mostra exatamente o contrrio: reinterpretamos e modifica-

    ) que vem de fora, de forma que o que, a primeira vista, pareceria um ato pas-dc reproduo , na prtica, um ato criativo de adaptao ao nosso contexto e,

    .!uns casos, um ato de subverso. Para desenvolver esse ponto, vamos recorrer a um exemplo que temos uti-

    Jo com a lguma frequncia: o valor da igualdade. O direito d-lhe outros nomes, ll princpio da igualdade, direito igualdade ou, no caso brasileiro, sonomia, outros. O exemplo particularmente interessante para o nosso assunto por.

    motivos. Primeiro, ele quase um meta-exemplo. Isso quer dizer que o valor ;ualdade no um instituto ou uma tcnica que tenha um impacto restrito no sis-

    JUrdico; ao contrrio, a igualdade fundante dos sistemas contemporneos de rl!Jto e, por isso mesmo, repercute pelas suas mais diversas prticas. Em segundo ,r. parte-se do princpio de bom mtodo sociolgico, segundo a qual a compara-) sistemas jurdicos no deveria considerar um elemento isolado do contexto

    mais amplo no qual ele est inserido. Deveria, ao contrrio, comear pelas entre sistemas para depois examinar o lugar de um elemento que seja se-lnante nos dois tenha em cada um deles. Ora, a centralidade do valor da igualdade

    x-nite-nos admitir esse carter comparativo de uma maneira muito mais imediata UI.!, por exemplo, a discusso sobre a propriedade intelectual. Por fim, o valor do '1duo tem relao direta tanto com o pensamento social brasileiro, quanto com a la sociolgica francesa.

    Em resumo, pretendemos, neste artigo, examinar o uso que o direito bra-. rn faz do princpio ou valor da igualdade. A hiptese de pesquisa que, quando

    cito brasileiro o utiliza, ele est falando de algo completamente diferente da Jade como encontramos na ideologia individualista ocidental, de uma maneira

    I. Para tanto, o texto se divide em 4 partes. A primeira discorre brevemente sobre .i 1.mcira como esse debate se desenvolve, de uma maneira mais ampla, no direto e

    -:incias sociais; isso nos ajudar situar a discusso. A segunda examina a ideia gualdade no pensamento poltico de autores estrangeiros para compar-la com ,l..,sico brasileiro sobre o assunto. A terceira estende o argumento para abarcar a da justia. A quarta explora a general idade das concluses da comparao.

    I. \ 1\IPORTAO DAS IDEIAS

    A discusso sobre a importao e adaptao de ideias estrangeiras no Bra-1O nova. H vrios trabalhos neste sentido. No campo do direito, por ex.et?plo, uaptao, para a realidade brasileira, das leis, princpios e institutos jurdicos-

    a maioria dos juristas brasileiros de hoje simplesmente ignora ou prefere no

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  • Al\'0 .l VOU IJE DIRllO

    ver-j pertencia s reflexes de um Visconde do e de Oliveira Apesar da corrente majoritria hoje puxar na direo contrria, alguns autores jur-dicos mais modernos ainda vo discutir as especificidades do no direito brasileirc face sua realidade social. Adeodato, por exemplo, o faz a partir da ideia de sub-desenvolvimento: o subdesenvolvimento no seria, para ele, um desenvolvimentr. ainda no alcanado, um vir a ser cujo caminho j est de alguma maneira traado. mas uma realidade em si mesma, uma substncia distinta45 Na antropologia, faland0 do direito, temos os trabalhos de Kant de Lima que vo mostrar justamente como o sistema jurdico brasileiro uma mistura entre dois sistemas distintos e contr-rios: um deles adversaria! e o outro acusatorial; e, como as instituies jur!dicas qw.' vem d'alhures- o juri, por exemplo - so reinterpretadas transformando-as algo completamente distinto46 . Ou ainda, nas cincias sociais brasileiras, o debate entre Schwartz47 e FrancoH sobre o lugar das ideias liberais no Brasil.

    Parte do pensamento social brasileiro vai se estruturar justamente a partir da ideia de que nossa configurao societria tem, em relao ao modelo europeu e norteamericano, diferenas imp01tantes. Alguns autores vo examinar nossas dife-rentes a partir da oposio entre indivduo e pessoa. A ideia que o individuo estaria ligado a um sistema de ideias c valores, uma ideologia4Q, propriamente moderna, na qual prevaleceriam os valores de liberdade, igualdade, autonomia, etc. J a pessoa

    43 SOARES DE SOUZA, P. J. Ensaio sobre o direito administrativo. ln: Carvalho (Org.). Visconde do Uruguai. So Paulo: Editora 34, 2002. pp.65-504. 44 VIANNA, F. J. O. instituies pollicas brasileiras. Braslia: Conselho Editora! do Se-nado Federal, 1999. 45 A DEODATO, J. M. Subdesenvolvimento e direito alternativo. ln: (Org.). tica e retrica. para uma teoria da dogmtica jurdica. So Paulo: Saraiva, 2002. pp.IIJ-13 7. 46 KANT DE LIMA, R. Constituio, direitos humanos e processo penal inquisitorial: quem cala consente? Dados, v. 33, n. 3, p. 471-487, 1990 .. KANT DE LIMA, R. Verdade ou menti-ra? Uma perspectiva comparada do processo (Brasil/EU A). Revista de Direito Alternativo, v. 2, p. 60-73, 1993. , neste sentido, vide tambm o trabalho de BAPTISTA, Il. G. L. Os rituais judicirios e o princpio da oralidade: construclo da verdade 110 processo civil brasilem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabis Ed, 2008. 4 7 SCHWARZ, R. Ao Ven,edor as batatas: forma literria e processo social nos incios do romance brasileiro. 511 So Paulo: Livraria Duas Cidades, Editor::t34, 2000. 48 FRANCO, M. S. C. As idias esto no seu lugar. Cadernos de Debate, v. I, 1976. 49 Uso a ideia de ideologia no sentido que lhe d DUMONT, L. Essais sur L 'mdividualisme Une perspective anthropologique sur I 'idologie moderne. Paris: ditions du Seu i], 1983 .. sentido diretamente derivado de Durkheim; para este ltimo fatos sociais so prticas ou ideias, um sistema de ideias seria assim uma ideologia. A ideologia , aqui, o contrrio da ideia marxista de falsa conscincia MARX, K. A Conlribution to the Critique ql Politica/ Economy. Eletronic version. Marxists.org, 1993. - e se aproxima mais da ideia de tradio em GADAMER, H.-G. Verdad y mtodo. Fundamentos de u1w lumnenutica.filo.w){ica. sn. Salamanca: Ediciones Sgueme, 1993.

  • ' ; VOl .. S MAIO:\(i0. 201.1 HhVIS I,\ DI DIRII'IOOKASIUII1A

    p. tenceria a uma ideologia na qual a nfase na relao com o grupo: o papel e a .:ntidade de um sujeito seriam o resultado das suas relaes de pertencimento."Eie Ja famlia dos Almeida" ou "ele um juiz" so expresses que, mesmo no Brasil

    tcmporneo (em algumas de suas partes, pelo menos), so suficientes para estabe-..:r uma identidade e um juzo do sujeito; e essa maneira de lidar com a identidade

    .1 ..:ia representa, face ideologia individualista, uma outra maneira de ver o mundo. > \1atta50, por exemplo, vai afinnar que o "dilema brasileiro" conformado pela

    '"'o irredutvel entre uma tica do indivduo, que ele associa lei e ao direito, e .1 da pessoa que ele associa ao grupo familiar: a primeira seguiria o modelo '11:ssoal da rua; a segunda, as relaes de pertencimento da casa. Mas nisso ele

    sozinho. Autores como e vo utilizar de algo semelhante 1. t:araterizar nossa sociedade. E h um certo "ar de famlia" entre algumas das

    ..,nulaes destes autores com os clssicos do pensamento jurdico brasileiro53. Arago, Da Matta e Velho foram, por sua vez, influenciados pela Escola Francesa, e, no que tange a esse assunto, sobretudo pelos trabalhos de uh Dumont. A partir da comparao entre a ndia e a sociedade europeia. parti-trmente a francesa, Dumont argumenta que o indivduo enquanto valor a ideia 1ral do que ele chamou de "ideologia Em outras sociedades, no o valor do indivduo estaria subordinada a outros valores, valores que,

    sua vez, estabeleceriam uma relao hierrquica entre o todo e a parte. No ws entrar aqui nas mincias do pensamento dumontiano, embora o leitor mais to v reconhec-las mais adiante. Para o nosso assunto, gostaramos de lembrar

    )t ptese de pesquisa que Dumont avana no final da introduo do Individual is-no incio da dcada de 19RO: segundo ele, estaramos ento num estado que se

    a ia caracterizar como "ps-modernidade"; mas com isso ele queria dizer algo to preciso: o estado no qual valores individualistas, ao se propagarem por socie-s no modernas, se combinariam com valores holistas, criando algo novo: nem

    \ iclualistas, nem holistas, estas sociedades seriam uma combinao inusitada de . 'lentos ideolgicos das duas. No sei qual o grau de generalidade que possvel

    l \ MATTA, R. C amovais. malandros e heris: para uma sociologia do dilema bmsilei-Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1997.

    ' !:LHO, G. lml;vidualismo e cultura. Notas para uma antropo!ot:;ia da sociedade con-minea. 7". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004 .

    \Ri\GO, L. T. Mere noire, tristesse blanche. Le discours psychanafvtique - revue de ' 1ciation Freudienne, v. 4, pp. 47-65, 1990.

    l AL, V. N. Coronelismo, enxada e voro. O municpio e o regime representativo no Era-Rio de .Janeiro: Edio Revista Forense, 1948, VIANNA, F. J. O. lnstituiespulbricas

    eiras. Braslia: Conselho Editora! do Senado Federal, I 999, por exemplo, SOARES -.;ouzA, P. J. Ensaio sobre o direito administrativo. ln: Carvalho (Org.). Visconde do

    .1(/i. So Paulo: Editora 34, 2002. pp. 65-504. 'L' :vlONT, L. Homo hierarchicus: essa i sur !e systeme des wstes. Paris: Gallimard, . DUMONT, L. La Civilisation lndienne et Nous . Paris: Librairie Armand Colin, 1975.

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  • AI'O 3 VOJ .5 \1AIO- \C.O. 1201) KE\'IST\ 01 DIREITO llR\'1

    dar a hiptese dumontiana. No Brasil ela parece ter alguma aplicao, algo que tk bem evidente ao examinarmos o sentido de que o valor da igualdade tem para o d reito brasileiro. Seja como for, a discusso acima mostra que o exemplo da igualdac.. tem uma vantagem adicional para o nosso assunto. Nele, encontramos encontrar ur campo onde direito e cincias sociais podem dialogar mais vontade, onde a tcnic do direito e a teoria social se encontram frente frente.

    2. AS DIFERENTES IGUALDADES

    Na discusso das questes acima, vamos examinar o valor da em trs autores: Rousseau, Rawls e Rui Os dois primeiros dispensarr maiores apresentaes para o pblico estrangeiro, e o ltimo , para este mesmc pblico, um desconhecido, embora seja, para o direito brasileiro, um clssico. Para t argumento deste texto, a importncia e centralidade dos trs servem como um de que, de alguma forma, eles expressam aspectos centrais das suas respectivas tra-dies56. neste sentido, e apenas nele, que vamos examin-los.

    Duas so as proposies que queremos desenvolver: a igualdade no direit0 brasileiro (a) significa algo completamente diferente da igualdade "moderna''57; , (b), em alguns de seus usos, ela o inverso do seu sentido moderno - no mais " igualdade como algo que nos protege das desigualdades sociais consideradas injus-tas, mas a igualdade como o lugar de reproduo da desigualdade legtima. Repare-

    55 No procuramos no discurso destes autores a verdade, no sentido de correspondncia d\ enunciado com a experincia, quer dizer, no nosso caso. com a observao sociolgica o .. etnogrfica; mas a verdade no sentido de atualizao de uma tradio, a aplicao em urr contexto particular de algo que se compattilha como membro de um grupo social, vide o con ceito de clssico em GAOAMER. H.-G. Verdad _r mtodo. Fundamentos de una hermenll ticafilosfica. 5'. Salamanca: Ediciones Sgueme. I 993. Essas observaes so importante-por dois motivos: o primeiro que toda ideologia potencialmente contraditria e tem, err relao experincia social, desvios. Estas contradies, por sua vez, podem ser importante-para o funcionamento e reproduo da sua estrutura social o argumento j est presente er-GELLNER, E. Concepts and society. ln: Wilson (Org.). Rationali(r. Oxford: Oxford Bast Blackwell, 1970. pp. 18-49 .. O segundo moti vo que, como princpio de mtodo, a anlis, comea pelas representaes conscientes e no pelos comportamentos. Isso quer dizer que a representaes do sentido s prticas, mesmo se, em relao s representaes. as prtica sejam contraditrias, desviantes ou simplesmente problemticas. O inverso, contudo, no fa sentido: no faz sentido dizer que as representaes so desvios do somatrio de sentidos da-prticas. 56 Aplica-se aqui o princpio de boa sociologia, segundo o qual todo pensamento social. .J frase , de propsito, sinttica; ela quer dizer que o homem no pensa sozinho, mas a parti. de um lugar no mundo, do pertencimento a uma tradio. 57 Aceitando a caracterizao de DUMONT, L. Essa is sur l'individualisme. Une perspecth anthropo/ogique sur /"idologie moderne. Paris: ditions du Seuil, 1983. para a modemi-dade.

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  • ' VOL.S \1AIOAG0. / 2013 REVISTA DE DIREITO BRASILEIRA

    que no estou falando de uma desigualdade legitimada - o que implicaria, por lado, na precedncia do valor da igualdade e, por outro, no mecanismo sociol-

    ...:o da sua ocultao, fazendo, por exemplo, a desigualdade passar como o resul- inevitvel do movimento da igualdade. Estamos, ao contrrio, sugerindo algo ..:iramente diverso e muito mais chocante, da perspectiva de uma ideologia indivi-ll ista: o Estado e o direito brasileiros incorporando, nos seus aspectos ideolgicos '"' centrais, a ideia de que a desigualdade no apenas legtima, mas, sobretudo,

    ra . Em Rousseau e Rawls, queremos chamar a ateno para a substanciali-

    ,_Jo do valor de igualdade. Por substancializao vamos entender a possibilidade derivar daquele valor expresses como "todos somos, em essncia, iguais", ou Jeia de que o valor est incorporado, incrustado (embedded) no indivduo. Em

    isso no difcil de ver. Est j na prpria ideia que ele faz do estado de Jreza. O estado de natureza , para Rousseau, o grau zero de sociabilidade: Rou-.u imagina um seu contemporneo (um homem do sculo XVlll, portanto) e dele ., todos os atributos que, porventura, fossem o resultado da ao da sociedade: daes sociais, a propriedade, a linguagem, as paixes criadas em sociedade, as

    11:!' mcntas, a cultura, as ideias, tudo enfim que o caraterizaria como um ser social. ... homem despido caminha pelas paisagens do mundo sem preocupaes e am-

    "' ,_...., que no fossem as de sua sobrevivncia imediata; vnculos ele no os tem, ..:.;o do desejo que surge no encontro fortuito com uma mulher e da piedade que . .:d ica quele que sofre. Neste homem desnudo, Rousseau encontra a essncia de ' des: a liberdade e a igualdade. Isso lhe permite concluir que a desigualdade o tcldo da sociedade que perverte a natureza humana. "Ouso afirmar que o estado

    .tkxo contrrio natureza e o homem que medita um animal depravado", .. 4

    bem verdade que, em Rousseau, o estado de natureza um estado ...:t1co, um estado que no mais existe, que talvez nunca tenha existido, que . ldmente no existir jamais, e do qual , no entanto, necessrio de termos j ustas para bem julgar nosso estado Mas isso no altera nosso

    . ' 10 j mostrou Rawls, a justia um critrio muito mais restritivo que o da legitimi-\ \VLS, J. Politicai libcralism: reply to Habermas. The Journal of Philosophy, v. 92,

    , 132-180, 1995.

  • AlIIH ITO URASIL.W

    argumento, pois o carter hipottico , num certo sentido, a resposta as deturpaes .. a decadncia que a sociedade nos impe. A deturpao da sociedade no nos permill bem perceber o homem, e a sua natureza s nos visvel por meio de um arti'llcio E exatarnente no artificio que encontraremos o carter essencial e substantivo d igualdade.

    Em Rawls a demonstrao menos direta. Quanto centralidade do vai< da igualdade no preciso dizer muito: ela explcita, por exemplo, nas da posio original ou no conceito de autonomia que ele retira de Kant. Mais com plicado concil iar Uma Teoria da Justia com a ideia de que ali tambm o valor d igualdade substancializado no indivduo. A afirmao parece ainda mais diticil sustentar se levarmos em considerao crtica que os comunitaristas fazem ao libl ralismo de Rawls e posio original em Estes vo argumentar que, n posio original, o indivduo seria um ser desencardo, apesar dos esforos de Ra\\ I em sentido contrrio62 Isso quer dizer mais ou menos o seguinte: o indivduo n posio original no seria o resultado de nenhuma vnculo sociaL As relaes fam liarcs, a histria pessoal, as crenas religiosas, afiliaes morais, enfim tudo aqui!\ que os indivduos utilizam para formarem e professarem uma identidade esto a ausentes. Na posio originaL o indivduo apenas a possibilidade de realizar esco lhas e, portanto, tudo aquilo que servira para caracteriz-lo em sociedade (religi( identidade, escolha, histria, tradio, etc.) no conforma o que ele , mas seriar atributos que ele poderia possuir. Ento como seria possvel afirmar que a igualdad, uma substncia?

    A crtica dos comentaristas serve para explicitar o meu argumento. prec1 so, para tanto, fa7.er a crtica da crtica. A posio original serve- e Rawls o afirm explicitamente - para construir uma conjectura63 . O seu objetivo permitir aquill que Rawls chama de equilbrio reflexivo, quer diLer, o ajuste dos ju/OS intuitin sobre a justia com princpios generalizveis. O mecanismo seria o seguinte: partir do dos juzos intuitivos nos quais depositamos maior confiana (por exemplo, que escravido uma mal, que ningum deveria ser punido pelas escolhas de seus pa1 e assim por diante), vamos at a posio original e os formulamos em Dali examinamos as suas conseqncias para saber se elas tambm esto de acord com nossos juzos. H trs possibilidades: (a) estamos satisfeitos e, ento, repetimo o exerccio com os juzos que temos menos confiana; (b) as conseqncias de

    61 A referncia di reta SANDEL, M. J. Liberalism and lhe limils ofjustice. 2nd. Cambridge Cambridge University Press, 1998. Mas h argumentos semelhantes cm TAYLOR, C. Hegc history and politics. ln: Sande! (Org.). Liberalism and its critics. New York: New York Un versity Press, 1984. pp.l77-199. 62 SANDEL, M. J. Libera/ism and the limits o.fjustice. 2nd. Cambridge: Cambridge Uni ver sity Press, 1998. introduo 63 RAWLS, J. Politicalliberalism: reply to Habermas. Thelournal o.fPhilosophy, v. 92. r 3. pp. 132-180, 1995.

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  • VOU Mf\10-AGO. 21113 REVISTA 0[ DIREITO BRASILhiRA

    -:i pios nos mostram que nossos juzos estavam errados e precisariam ser modifi- ou, ao contrrio, (c) elas nos convencem de que os princpios ou as condies "lOsio original precisariam ser alteradas. um processo circular de ajuste entre n,:ipios e juzos, construdo pelo movimento, pelo ir e vir entre juzos e princpios, objetivo decidir os princpios da justia pelos quais o indivduo vai viver a

    . ' ida em sociedade6-4. O equilbrio a situao onde juzos intuitivos e princpios em paz uns com outros65 A questo ento no se o indivduo na posio ori-11 suficientemente denso ou desencarnado, mas por que, para formular juzos

    "-.,tantivos em princpios generalizveis, um estadunidense liberal do sculo XX .:1sa utilizar a figura de um indivduo sem ligaes, nus, completamente desim-Jdo e desvinculado66?

    Mesmo admitindo a razo da crtica dos comentaristas Rawls, preciso li tir que h algo de substantivo na posio original: a sua radical igualdade. Na '1o original todos so igualmente racionais, tem a mesma informao, no co- suas posies sociais, etc., de forma que ningum saberia se a escolha de I.ILI qual princpio o beneficiariam individualmente. Em outras palavras, quem se

    "'mete ao equilbrio reflexivo se dispe a examinar os seus prprios juzos a partir lima condio de igualdade radical que, embora se coloque num plano hipottico, caracteriza subtantivamente. Oito de outro jeito, a posio original permite que reflexivo dos prprios juzos realize-se para alm das distores que aso--:Jade impe e para alm da loteria natural dos talentos. Novamente no artificio o carter essencial da igualdade: est a a tora da teoria da justia, , J lor central que ela reproduz, valor que a torna to sedutora para uma sociedade ral67. Rawls , no entanto, mais sofisticado. Ele no vai argumentar, como faz usseau, pela universalidade da sua teoria. Ela servira para certos tipos de sacie-de e uma tradio particular68 . Mas esse exatamente o ponto: uma tradio para .JI a igualdade imaginada como a substncia do indivduo.

    Nada disso muito novo. Dumont j dizia que a cmacterstica da ideologia ui \'idualista justamente a substancializao do valor da igualdade, quer dizer, a

    "lCANLON, T. M. Rawls on justification. ln: Freeman (Org.). The Cambridge Compan-1 to Rawls. Cambridge: Camb1idgc University Press, 2003. p.139-167.

    ' RAWLS, J. A theory o_fjustice. Revised. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Har-d Universiry Press, 1999.

    , "Unencumbered self', na expresso de SANDEL, M. J. The procedural republic and the self. ln: Avineri and De-Shalit (Org.). Communitarianism and individualism. \Iord [England] ; New York: Oxford University Press, 1992. pp.l2-28. - Este o argumento de DWORKIN, R. M. The original position. In: Daniels (Org.). Read-:: Rawls. Criticai studies on Rawl :S A theory ofjustice. Stanford, California: Stanford Uni-

    ..:rsity Press, 1989. pp. 16-53. \ ABREU. L. E. Qual o sentido de Rawls para ns? Revista de b?formao Legislativa, v. -::. pp. 149- 168, 2006.

  • ANO 3 MAIOAGO. ' 2013 Ri'. V ISTA DL IJ!RE\10 111\ASILIIK

    igualdade no imaginada como um valor, mas como uma substncia69 Ento por que gastar tanto tempo com uma demonstrao que j seria bvia desde o princpio? Esse justamente o ponto. Ela bvia para algum que vem de uma ideologia in-dividualista moderna; ela no bvia para, por exemplo, boa parte dos operadores do direito brasileiro. A razo disso que eles imaginam a igualdade a partir das ronnulaes que encontramos em Rui Barbosa - formulaes que passamos agora a examinar.

    O trecho que nos interessa est na Orao aos moos70 Vamos tomar a liberdade de transcrever um perodo relativamente longo c, ao nos referirmos s suas ideias, se necessrio, reprodulir outros trechos. O fato de Rui Barbosa serdes-conhecido para os nossos colegas estrangeiros motivo suficiente para o cuidado. H outra razo, contudo. Os cientistas sociais brasileiros tambm o desconhecem. r mesmo os autores jurdicos, para quem ele um clssico, muitas vezes pouco sabem do que ele rata. Assim, um trecho deste perodo constantemente citado por autores brasileiros que, na maioria das vezes, o usam no sentido contrrio ao original, como argumentarei adiante. O perodo o seguinte:

    "A vida no tem mais que duas portas: uma de entrar, pelo nascimento: outra de sair, pela morte. Ningum, cabendo-lhe a vez, se poder furtar entrada. Ningum, desde que entrou, em lhe chegando o turno, se conse-guir evadir sada. [ ... )Em to breve trajeto cada um h de acabar a sua tarera. Com que elementos? Com os que herdou, c os que cria. Aqueles so a parte da natureza. Estes, a do trabalho.'' ''A parte da natureza varia ao infinito. No h, no universo, duas iguais. Muitas se parecem umas outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma s rvore, as folhas da mesma planta, os traos da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo nuido, os argueiros do mesmo p. as raias do espectro de um s raio solar ou estelar. Tudo assim, desde o:-astros no cu, at os micrbios no sangue, desde as nebulosas no espao. at aos aljfrcs do rocio na relva dos prados." "A regra da igualdade no consiste seno em quinhoar desigualmente desiguais, na medida em que se desigualam [grifo nosso). Nesta desigual-dade social, proporcionada desigualdade natural, que se acha a verda-deira lei da igualdade. O mais so desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade. seria desigualdade Oagrante, e no igualdade real. Os apetites

    69 DUMONT, L. Homo hierarchicus: essai sur /e systeme des castes. Paris: Gal limard 1966. posfcio tel 70 Discurso que Barbosa, corno paraninfo, iria proferi r na formatura da turma de 1920 dl Largo de So Francisco (a faculdade de direito de So Paulo) e que, em razo da sua sade foi lido por outro professor.

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  • \ OL.S . .! REVISTA DE IJIRf-110 BRASILEIRA

    conceberam inverter a nom1a universal da criao, pretendendo, no dar a cada um, na razo do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem." "Esta blasfmia contra a razo e a f, contra a civilizao e a humanidade, a filosofia da misria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, no tria seno inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organizao da misria." "Mas, se a sociedade no pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigual-dades nativas, pela educao, atividade e perseverana. Tal a misso do traballio." "Orao e trabalho so os recursos mais poderosos na criac,o moral do ho-mem.[ .. . ] O indivduo que trabalha, acerca-se continuamente do autor de todas as coisas, tomando na sua obra uma parte, de que depende tambm a dele. O criador comec,a, e a criatura acaba a criao de si prpria. "71

    U ma leitura superficial do trecho acima j demonstra que se trata, em Bar-,J. de um conceito de igualdade bem diferente do utilizado por Rousseau e Rawls. ,!Ualdade em A orao dos moos no substantiva como nos outros dois autores; ue substantiva a desigualdade. Mais ainda, o fundamento do que Barbosa cha-de desigualdade bem diferente do que em Rousseau e Rawls. Nestes ltimos,

    "lente possvel falar em desigualdade tomando como ponto de partida o valor a desigualdade seria nestes termos- como vimos acima- a degra- ela igualdade. Para Barbosa, ao contrrio, o fundamento da desigualdade , na

    1dade, a diferena de valor: alguns valem mais do que outros. Isso, por sua vez, rl ica numa segmentao de status: criam-se grupos de pessoas de status seme- nte que se dispem num linha, digamos, vertical. Internamente, entre os segmen-' operaria a regra da igualdade; externamente, entre segmentos diferentes, a regra jesigualdade. Portanto, para Barbosa, a igualdade est contida da desigualdade e resultado dela.

    Desta perspectiva, o trecho introduz a caracterstica prpria de um sistema ,rquico: a diferena de valor organizando a relao dos homens entre si, tpico

    , -.istemas no modernos. O exemplo extremo nesta direo o que Dumont72 cha-' de a grande cadeia do ser: uma ordem hierrquica onde esto todos os seres em Jl.'m decrescente de valor ou dignidade, dos mais sublimes e sagrados, aos mais

    )!anos e mundanos. Todos os seres tem um lugar determinado nesta grande ordem. J-. preciso reconhecer que Barbosa no vai to longe. A maneira como ele utiliza

    BARBOSA, R. Orao aos moos. 5" Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa, 19. DU MONT, L. Essais sur l 'individualisme. Une perspective anthropologique sur l'idolo-IIOderne. Paris: ditions du Seuil, 1983. O valor nos modernos e nos outros

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  • ANO 3 \ OL.5 MJ\10-AGO. 2t)l .\ RE\'1\ li\ IJE DIRU I O

    a natureza nos lembra algo de Rousseau, como se Barbosa aceitasse a ruptura entre natureza e sociedade (ou cultura como prefeririam os antroplogos) prpria de uma mentalidade moderna.

    em razo da diferena do valor que cada um merece o seu quinho, quer dizer, sua parte. E quinho vocbulo antigo, pouco utilizado nos dias de hoje, que significa "dividir para distribuir em partes ou quinhes", embora ainda seja utilizada em direito de famlia para falar da parte que cabe a um herdeiro. Mas a frmula admitamos, complexa. O princpio geral que quem tm um valor maior recebe um quinho maior, evidente. No entanto, isso se desdobra em dois planos distintos. Por um lado, a desigualdade antecede e segmenta. Assim, a distribuio justa de\l considerar as diferenas entre segmentos, no sentido de que os de maior valor recebem mais. Por outro, h uma igualdade suposta, embora derivada da desigualdade, m interior de casa segmento; portanto, a distribuio tambm precisa levar em conta a equidade dentro de um grupo de mesmo status. Ele , inclusive, bem enftico ao dizer "no dar a cada um, na razo do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, come se todos se equivalessem" significaria "inverter a norma universal da criao".

    V-se, portanto, que A Orao aos Moos , no fundo, um texto sobre jus-tia e, especificamente no trecho citado acima, sobre justia distributiva. A constata-o nos permite aprofundar a comparao com os dois outros autores para alm da relao entre igualdade e desigualdade, para abarcar tambm os critrios de justia

    3. ENTRE A DESIGUALDADE JUSTA E A PIEDADE OBRIGATRIA

    Todos os trs autores partem da intuio de que a sociedade tal como ela nos seus respectivos tempos e lugares injusta. Mas as semelhanas param por m E no apenas em relao soluo que cada um d ao que seja justia - e de St esperar que as solues sejam todas diferentes visto que cada um escreve pocas l lugares to distintos - ; mas, sobretudo, possibilidade de conhecermos o que sej .. ou no justo. Tanto Rousseau como Rawls estabelecem critrios para justia que po-dem ser, seno universalizados. ao menos generalizados dentro das sociedades regi-das ou pelo contrato social (caso do primeiro), ou pelos princpios da justia ( exem-plo do segundo). Mais do que isso, h um mtodo (embora a palavra no mais apropriada) pelo qual os fundamentos justos para um e para outro podem se descobertos: no caso de Rousseau pelas clausulas do contrato que permitem o reco-nhecimento da vontade geral, em Rawls por meio do equilbrio reflexivo. Algo ben diferente se passa com Barbosa. Apesar de a palavra "justia se repetir 34 vezes a, longo do texto, dela no se encontra nenhuma definio ou mtodo capaz de qesco brir o seu sentido mais profundo. Mas esta seria justamente a sua, poder-se-ia dizer "natureza''. Para Barbosa, a justia seria o resultado de uma intuio que reprodu/ no homem, algo sobre o qual no possvel ter-se certeza seno como convico l

    RDB - 80 .

  • lU\ lO., I,\ IJF OIRIITO BRASILEIRA

    73, algo que o transcende, um valor absoluto- uma "centelha divina", d11 que no cabe cm palavras ou razes. Dito de outro jeito, cm Barbosa a justia

    evidente, no sentido de que se tem acesso a ela por meio de uma intuio intelectual mediatamente dada ao sujeito: aquele que se v defronte a ela capaz de reconhecer, a justia, pelo menos a injustia.

    Mas as diferenas no param por a. Para autores como Rawls c Rousseau, ma ve" que os indivduos tenham acordado as regras que vo reger a sua vida cm 1ciedadc, regras que, alm de justas, necessariamente, implicam na limitao da bcrdade individual, eles vo segui-las, seja em Rawls por um sentido de justia,

    '> .:Ja cm Rousseau porque viol-las significaria ir contra si mesmo. Inversamente, ' regras, norma ou princpios devem ser aplicados a todos igualmente. Embora a plicao universal das regras no seja nenhuma surpresa, h para tanto duas razes '11portantcs. Uma deriva da prpria igualdade: se todos so substantivamente iguais

    .:nto o que vale para um necessariamente vale, igualmente, para todos. A outra est .:lacionada ao prprio contrato: as partes do contrato no iriam aceitar uma norma,

    , ,Jusula ou princpio que uma delas pudesse, sua convenincia, no cumprir. Em Barbosa, ao contrrio, as coisas no so to simples, nem dirctas.

    po..;svcl dividir o caminho do argumento em trs passos. O primeiro deles que a k i no nosso pas no representa o sentimento da maioria, mas favorvel a uma p qucna parcela da sociedade74 . lncidcntcmcnte, isso significa que, se para Rousseau Rawls, as normas ou os princpios representam uma conjectura (para utilizar os :,rmos de Rawls)1' que permite julgar o estado presente (para usar a formulao de

    n1sscau), a Barbosa, ao contrrio, o que interessa 6 lidar com uma conjuntura. ..:rdadc que os trs autores esto dialogando com as particularidades do seu tempo, .1" cm Barbosa o dilogo tem um cartcr mais pragmtico: o importante agir cm

    - \justia em Rui j est dada no mundo e em Deus. um mundo desigual que da von-J, de Deus, a ns no cabe outra coisa que no nos conformamos a ele. Portanto, devemos IJr pelas coisas que nos vo ao corao, pois ali residem o ideal e o moral. Assim, o cora-

    H ' ultrapassa as condies e as contingncias; ele v mais longe. "( ... )o corao no to 'tllo, to exterior, to cama I quanto se cuida. H, nele, mais que um assombro fisiolgico: u . prodgio moral. o rgo da f, o rgo esperana, o rgo do ideal. V, por isso, com lllhos d'alma, o que no vem os do corpo. V ao longe, v cm ausncia, v no invisvel,

    .. no infinito v. Onde pra o crebro de ver, outorgou-lhe o Senhor que ainda veja; e no tbc at onde. At onde chegam as vibraes do sentimento, at onde se perdem os surtos at onde se somem os vos da crena: at Deus mesmo, inviso como os panoramas

    : nos do corao, mas presente ao cu c terra. a todos ns presente, enquanto nos palpite, -.o Tupto. no seio, o msculo da vida c da nobreza e da bondade humana." BARBOSA, R.

    ) /('tio aos moos. 5" Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa, 1999. ora, senhores bacharelandos. pesai bem que vos ides consagrar lei. num pas onde a

    .tbsolutamcnte no exprime o consentimento da maioria." BARBOSA, R. Orao aos os. 5" Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa, 1999. Ri\ WLS, J. Politicai liberalism: reply to llabermas. The Journal o( Philosophy, v. 92, n.

    p. 132-180, 1995.

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  • RL VJST\ DE DI Rlll O EIRA

    uma pluralidade de situaes concretas, de processos judiciais que esto em curso. Mas tambm preciso apontar que a injustia no deriva da desigualdade sobre a qual a sociedade se estrutura, mas particularmente pela poltica dos fins do sculo XIX e incio do XX, "onde so as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais im-populares e menos respeitveis, as que pem, e dispem, as que mandam, c desman-dam em tudo; a saber: num pas, onde, verdadeiramente, no h lei, no o h, moral. poltica ou juridicamente falando " 76 O segundo passo que, haja vista a dificuldade inerente s prprias leis, ento o juiz tem o dever de aplic-la a partir do seu senso de justia e no a partir do seu sentido mais literal, quer dizer, de uma interpretao mais restritiva. Isso significa que ajustia est na latitude com a qual a lei aplicada: ela em outras palavras, a reinterpretao virtuosa da lei. Novamente recorremos aqui a um trecho do autor:

    '' verdade que a execuo corrige, ou atenua, muitas vezes, a legislao de m nota. Mas, no Brasil, a lei se deslegitima, anula e torna inexistente. no s pela bastardia da origem, seno ainda pelos horrores da aplicao: ''Ora, dizia S. Paulo que boa a lei, onde se executa legitimamente. "Bona est lex, si quis ea legitime utatur.'' [grifo do original] Quereria dizer: Boa a lei, qunndo executada com retido. Isto : boa ser, em havendo no executor a virtude, que no legislador no havia. Porque s a moderao, a inteireza e a eqidade, no aplicar das ms leis, as poderiam, em certa me-dida, escoimar da impureza, dureza e maldade, que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente, se bem o entendo, pretenderia significar o apstolo das gentes que mais vale a lei m, quando inexecutada, ou mal executada (para o bem), que a boa lei, sofismada e no observada (contra ele)." "Que extraordinrio, que imensurvel, que, por assim dizer, estupendo e sobre- humano, logo, no ser, em tais condies, o papel da justia! Maior que o da prpria legislao. Porque, se dignos so os juzes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis - em sendo justas, lhes man-tero eles a sua justia, e, injustas, lhes podero moderar, se no, at, no seu tanto, corrigir a injustia." "De nada aproveitam leis, bem se sabe, no existindo quem as ampare con-tra os abusos; e o amparo sobre todos essencial o de uma justia to alta no seu poder, quanto na sua misso." (A exceo do grifo indicado como presente no original, os outros so nossos)77

    O terceiro passo justamente a explicitao destes critrios. H vrios ao.

    76 BARBOSA, R. aos moos. 5" Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa. 1999. 77 BARBOSA. R. Orao aos moos. s Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa. 1999.

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  • > ' \ "01 .S \t\10-AGO. :>OIJ RE\'JSTA DE JJIRFlTO BRA L EIRA

    1go do texto que parecem encarnar algo que poderamos chamar de uma sabedoria ,rasi leira - que se reproduz at hoje cm vrias das expresses que encontramos

    -..cnso comum. O ponto que os critrios no esto sistematizados em Barbosa, '1 se, por serem evidentes em si mesmos, s precisassem ser lembrados. De todos

    ....... dois so relevantes para o argumento deste texto: a justa desigualdade na distri-o dos quinhes e a obrigao da piedade7t . O ponto todo que eles devem ser

    t: endidos como um par de oposies. Assim, o sentido da desigualdade justa de-.ndc do sentido no qual a piedade obrigatria e vice versa. Como j examinamos

    1 igualdade justa, vamos ento nos voltar para a questo da piedade. O contexto da obngao da piedade aparece em vrios trechos de Barbosa.

    J ')nmeiro deles est longo no comeo, onde, falando sobre o idealismo e a justia, t escreve: "E tudo viver num mundo, em que estamos sempre fora deste, pelo

    "'1l)r, pela abnegac,o, pelo sacrifcio, pela caridade"79. Se, por um lado, a referncia l lugar transcendente da justia, no fundo, torna a piedade obrigatria; sua justi-

    ... 1o, por outro, o resultado da situao de desigualdade. importante notar ... se trata de dois planos distintos nos quais se aplica desigualdade. Um, vimos

    - na. o plano da justia. no qual ela um critrio de distribuio; o outro a sua iij:"' cao na poltica c no poder. neste ltimo plano que os efeitos perversos da

    _. ,,gualdade exigem o equilbrio e a interpretao que, num certo sentido, quebra .. 11 a universalidade para dar espao justia. Barbosa bastante explcito quando

    'seus conselhos aos juzes.

    "Mas o direito dos mais miserveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, no menos sagrado, perante a justia, que o do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miserveis que a justia deve ser mais atenta, c redobrar de escrpulo; porque so os mais maldefendi-dos, os que suscitam menos interesse, c os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condio com a mngua nos recursos."80

    Estas trs caractersticas, a correo da lei na sua aplicao, a desigualdade J ta c a piedade obrigatria, colocam as diferenas entre Rawl e Rousseau, de um

    Jo. e Barbosa, de outro, noutro patamar. No se trata somente de maneiras diferen-dc articular as categorias igualdade e desigualdade. No. Trata-se de algo intei-

    - ._ >sentido de piedade na oposio que propomos , por hiptese, bem diferente do sen-da piedade rousseauniana. Sobre esta ltima, vide LVI-STRAUSS, C. Jean Jacques

    .JSseau, fundador das cincias do homem. ln: (Org.) . Antropologia estrutural dois . Rio de Tempo Brasileiro, 1976. pp. 41-51. B.\RBOSA, R. Orao aos moos. 5" Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa, .

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  • ANO 3 VOL.5 \ IAIO-AG0. / 2013 REVISTA DE DIREITO BRASILEik.

    ramente diverso. A diferena entre eles no a diferena entre mtodos ou as regras da justia, mas, sobretudo, entre duas maneiras completamente estrangeiras entre si de perceber o que justia - o. papel desta na conformao das instituies, na apli-cao da norma jurdica, na relao do indivduo com a norma etc. Utilizando com certa liberalidade as ideias de Dworkin, dir-se-ia que est em jogo uma divergncia terica sobre o sentido de justia, com o complicador de os interlocutores pertence-rem a comunidades de argumentao que, em muito dos valores que professam, so incomensurveis entre si. O que est em jogo so duas formas de vida (Wittgenstein as chamaria assim), duas maneiras de ver o mundo, dois horizontes de sentido cuja traduo aparentemente fcil (afinal trata-se, graficamente, da mesma palavra) no passa de uma iluso81

    4. A EXTENSO DO SISTEMA

    Mas as ideias de Rui Barbosa tm alguma relevncia para o direito de hoje? A resposta j est presente na ideia de que ele um autor clssico. Esta no uma qualidade de menor relevncia. O clssico aquilo que permanece ao longo do tempo e que, de algum modo, faz sentido no presente; ou, como diria Gadamer, o clssico "no designa uma qualidade que se possa atribuir a certos fenmenos histricos, mas um modo de ser caracterstico do ser histrico"82 justamente a capacidade de ser de algum modo, utilizado ou reutilizado ao longo do tempo, de permanecer fazendo sentido (embora, claro, o sentido possa mudar e mude ao longo do caminho), que interessa ao nosso argumento. Dito de outro jeito, as formulaes de Rui Barbosa so mais do que bons conselhos a jovens advogados ou uma teoria da justia brasileira. Ele o exemplo de uma certa mentalidade que, at hoje, compe parte daquilo que poderamos chamar de nossa ideologia jurdica.

    Utilizar Barbosa para falar desta ideologia jurdica traz uma vantagem su-plementar. Os comportamentos aos quais vamos descrever a seguir fazem parte da maneira de ser dos nossos operadores do direito, mas eles so comportamentos no sistematizados e, sem a comparao com o texto de Barbosa ou, mais precisamente, sem o conjunto de relaes que o texto articula para nos guiar, eles poderiam pare-cer a um observador menos atento como um conjunto de anedotas divertidas sem maiores pretenses ou relevncia - e sem relaes entre si. A partir de Barbosa, no entanto, elas revelam um modo de ser e ver o mundo que tem profundo impacto na maneira com a lei aplicada, os precedentes reintepretados e, por hiptese (voltare-mos a isso no final do texto), decises de outros pases so apropriadas.

    interessante reparar que os operadores do direito de hoje repetem, COIT\

    81 O ponto j est em MACINTYRE, A. Whose justice? Which rationality? Notre Dame, Indiana: University ofNotre Dame Press, 1988. 82 GADAMER, H.-G. Verdad y mtodo. Fundamentos de una hermenutica filosfica. 5". Salamanca: Ediciones Sgueme, 1993.

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  • ''-O' VOL5 M f\10-AGO. 201' REVISTA IJf' IJIRI I ro 13RASILFIRA

    HrJs palavras, a mesma relao entre a percepo individual e a justia. A justia nas palavras destes, o grande objetivo do direito. E isso que dizem interpretes

    aorizados e eminentes. Em recente palestra, o ministro do Supremo Tribunal Federal rmava que a busca de todos os juzes pela justia; e, que, no entanto, apesar da

    \ ntade coletiva, ningum conseguia defini-la, quase como se a ela realizasse no do inefvel e portanto pertencesse ao reino do indizvel. No com as mesmas

    lavras, mas com o mesmo esprito, afirmou outro desembargador que ningum .... o que seria a justia, mas que ele reconhecia a injustia quando a via. Frases .. 1rno essa esto presentes no cotidiano do campo jurdico, principalmente quando

    I\! um dos seus chamado a dizer algo sobre o direito e o seu papel social; elas tam-:x:m permeiam os textos mais tcnicos e doutrinrios. Da mesma maneira, apesar de

    .la a sofisticao que o debate sobre a interpretao normativa ganhou nos ltimos us (digamos: desde a Constituio de 1988)83, ainda assim entre os nossos juzes destilado entre os montes de processos e a necessidade dos nmeros (hoje os a;cs so avaliados pela quantidade de decises que produzem), o mesmo princpio

    ,. .... que ele deve interpretar a norma, s vezes contra ela mesma, para garantir a jus-'.l. E no so poucos que, ao se debruarem sobre os processos, o fazem. quando o npo o permite, o mesmo papel de um investigador cm busca daquilo que, no caso, .... rw o mais justo. Atitude, no mais das vezes, disfarada sob o pesado manto da tec-

    .:alidade do direito. Da algumas das interpretaes que tanto desconforto trazem , juristas que se preocupam com as suas racionalidade e universalidade.

    Mas os outros aspectos tambm esto presentes, embora curiosamente dis- O melhor exemplo o trecho de Barbosa que citamos, "Tratar desigual-.:nte os desiguais na medida em que se desigualam" repetido no apenas pela

    nrina, mas j se tornou parte do senso comum Assim, toda a vez que se -..:ute com colegas do direito a questo da igualdade ouve-se, quase que repetindo o ..:ho acima, o argumento que supostamente encerraria o debate: "mas no h duas '"tlaS iguais!". Isso no mostra que sejam todos os operadores do leitores vidos

    .... Orao aos moos, mas, repetimos, que o trecho muito fel iz em representar ) que est presente no nosso imaginrio social. E a dificuldade de entender e se 1priar de Rawls que encontramos por aqui parece ser o resultado das maneiras

    L'rentes como percebemos a igualdade e a justia conforme apontamos acima. Jo:uldade que podemos atestar a partir das aulas de ps-graduao das quais j

    "''.lruciparam advogados, juzes, procuradores, recm formados, promotores e um

    ' REITAS FlLHO, R. Jntervencio judicia/ nos contratos e aplicao dos princpios e das "idas gerais: o caso do feasing. Porto Alegre: Fabris Ed .. 2009. Sobretudo o Captulo l;

    o assunto, vide CASAGRANDE, R. and FREITAS FILHO, R. O problema do tempo .\rio nas polticas pblicas. Revisla de lnformao Legislativa, v. 47, n. 187, pp. 21 -34,

    ' t) .

    ...._. \\ .-\RAT, L. A. O sentido comum terico dos juristas. ln: Faria (Org.). A crise do direito ,, 1ociedade em mudana. Braslia: Editora da UnB. 1988. pp.31 -40.

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  • t\1\0 3 q)l .. 5 1 1 RI \'lq\ DE DIREITO IIR.\SII.EIRA

    desembargador. Geralmente, na discusso dos sentidos da igualdade que a dis-cusso perde os alunos. Apenas com grande dificuldade, eles conseguem conceber que, para os liberais como Rawls, os indivduos sejam imaginados como substanti-vamente iguais, no sentido acima. "Mas no assim em todo lugar?", recebe-se s vezes como resposta, querendo dizer que em todo lugar no h duas pessoas que, de fato, sejam iguais. Se a frase, noutro plano, seria uma critica importante ideologia individualista, ela, no contexto, no a abertura para o debate, mas expressa a difi-culdade de lidar com o que, para ns, representa a alteridade.

    Mas h mais. Embora o trecho de Barbosa seja bastante explcito, a manei-ra como os juristas brasileiros o interpretam esquece, no discurso, a parte sobre a na-turalizao da desigualdade. Eles se esquecem do verbo "quinhoar''. E, ironicamen-te, eles, aparentemente pelo menos, invertem o sentido que Barbosa d a tudo isso e do ao trecho o sentido da obrigao da piedade que, nos instrumentos jurdicos e na doutrina, ganha, muitas vezes, o carter assistencialista de dar mais queles que tem menos. Assim, tratar desigualmente os desiguais transforma-se, na doutrina mais recente citando Barbosa, dar mais direitos, possibilidades ou instrumentos a quem tem menos, para, desta maneira, minorar a distncia entre os plos da relao assi-mtrica. Nossa hiptese que essa inverso apenas aparente e que o esquecimento, alm de intencional, tem um papel importante a desempenhar: no mnimo ela retira a ateno da outra parte da equao, a desigualdade justa, que fica quase como que esquecida e submersa em vrios diplomas legais, no combinao de vrios institutos ou, simplesmente, na aplicao da lei. A desigualdade, enfim, j no est no que dito, mas no que feito, no movimento dos instrumentos jurdicos.

    Sobre as razes da inverso, cabe-nos apenas especular. Talvez isso seja o resultado da presso do discurso da igualdade, que, internacionalmente, tem uma fora ilocucionria qual o direito brasileiro no consegue ficar indiferente. Talvez, o motivo seja o mal estar coletivo das nossas elites que, embora no o digam e prefi-ram esquec-lo, percebem que a pujana econmica das nossas classes mdias e al-tas s se conseguiu graas misria dolorida de grande parte da populao brasileira, processo que, no custa lembrar, teve avanos importantes durante o regime militar, por conta da poltica econmica de "fazer o bolo crescer para depois dividi-lo''. O bolo cresceu, mas a distribuio no veio. Talvez ainda, o problema seja esttico: defender a desigualdade legtima caiu de moda.

    CONCLUSES: SUGESTES PARA O DEBATE

    Agora estamos em condies de voltar provocao inicial. Estamos todo,s falando a mesma coisa? No caso das categorias de igualdade c desigualdade clara-mente no. Mas preciso tomar cuidado na aplicao das concluses acima. Embo-ra, o sistema de relaes que encontramos em Barbosa possua alguma generalidade na nossa ideologia jurdica, disso no se segue que ele se aplique igualmente em

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  • \\0 .l VOI .S I\IAIO-AGO. 'lO I:< RI'\ DI IJIRUTO BR.\SILEIRA

    1da s ituao ou ramo do direito. preciso admitir a probalidade de especificidades, '\ l!rses, desvios e compromissos confonne varia o contexto da aplicao da nor-1:L Tambm preciso admitir que, como qualquer tradio, cabem a muitas vozes que, entre elas, h dissonncias, discordncia e, mesmo, contradies. Mas no .:-,se o ponto do debate.

    O uso das categorias de igualdade e desigualdade nos serviu como exem-r (l de uma hiptese de pesquisa mais geral: a de que, sob o aparente olhar otimista , internacionalizao, se escondem divergncias profundas, talvez inconciliveis e

    A partir da, possvel colocar em questo duas ideias que esto base das discusses mais atuais: a primeira a ideia de que haja progresso, no

    --:nido de que o uso de jurisprudncia de outros pases implica no aumento da con--uncia seno entre sistemas jurdicos nacionais, pelo menos em relao maneira 11110 so intcrnalizados tratados, princpios, instrumentos, conceitos ou casos; a

    .:gunda a ideia segundo a qual, por mais distintos que sejam os diferentes sistemas ridicos, haveria algo em comum que permitira a comunicao no problemtica

    - rc eles; quer dizer, uma comunicao que, apesar das diferenas, teria uma base .... mpartilhada, um substrato comum a partir do qual seria razovel esperar a cons-

    .,:o de consensos. O nosso exemplo no capaz de, por si s, provar que as duas ideias es-

    ... p n erradas, mas ele certamente constri um caso slido contra elas. No mnimo esse o ponto que gostaramos de enfatizar-, ele sugere que a facilidade de

    r duo de um sistema de direito para o outro seja, no fundo, uma fico. O caso J tgualdade mostra cxatamente isso: sob um aparente consenso, o nosso campo ju-.. .., tco cm muitos sentidos, e da perspectiva de uma ideologia individualsta, resiste,

    subverte. E mesmo que no se aceite uma verso mais forte da nossa hiptese ;mal, uma segundo a qual todos os consensos e as convergncias so apenas apa- tese para a qual, alis, nos faltam dados empricos -, possvel, e mesmo

    1a\ e!, aceitar uma verso mais fraca, uma que advogue que, ao falarmos de "fer-;ao cruzada" ou processos assemelhados, tenhamos em mente alguns cuidados

    .:todolgicos. Trs nos parecem os mais relevantes. O primeiro deles assumir, como princpio interpretativo, o contrrio do usualmente adotam juristas brasileiros: o de que estamos falando, at que se ..,..,. o contrrio, de tradies jurdicas diferentes cuja traduo , por princpio,

    hlcmtica. Esse nos parece um cuidado prudente c razovel, tendo em vista o ttO da discusso e os argumentos apresentados ao longo deste texto. O segundo dtantamos no comeo: comparar sistemas de relaes e no elementos retirados contextos. Mas o que isso significa? Vamos supor um exemplo no qual_se 1para o uso de um caso ou deciso judicial de um pas em um outro. Comparar de relaes, neste exemplo, implica em no restringir a anlise deciso -.ua aplicao, mas em examinar como as diversas categorias, tcnicas, casos,

    ... hcs, doutrinas, por assim dizer, andam juntas, tanto no pas de onde se origina

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  • A"O .1 I 01 .. \1 110 \liO. 2013 RI LI DI' DIREITO BR.-\SII.LIR I

    o caso, quanto do pas onde se o aplica. Mas isso impe um outro problema: no extremo, qualquer caso pode estar ligado a um conjunto muito grande de do sistema jurdico. Qual seria o limite? Onde seria razovel parar? A resposta depende de cada caso e dos interesses do pesquisador. sempre possvel estender o feixe de relaes para abarcar algo mais. E, claro, em se alterando o conjunto, podem-se modificar as concluses. Isso, porm, no se constitui um empecilho anlise; apenas mostra, como j nos dizia Weber, que nossas concluses so sempre provisrias- e, que a realidade uma fonte inesgotvel de possibilidades para o nosso olhar. O terceiro cuidado metodolgico o de examinar o uso da tcnica den-tro do seu contexto. O cuidado to mais relevante se considerarmos a importncia da tcnica jurdica e o fato de que ela tem, face aos seus possveis contedos, alguma autonomia. Justamente por isso, sistemas jurdicos diferentes podem utilizar uma mesma tcnica de maneira muito semelhante, seno idntica. A ideia de examinar o uso dentro de um contexto, ento, serve como a lembrana de que, embora, enquanto tcnica, elas sejam parecidas, elas podem servir para dizer coisas muito diferentes.

    REFERNCIAS

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