Guia Nelson Rodrigues

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Programação especial em comemoração ao centenário de nascimento de Nelson Rodrigues

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Nelson Rodrigues para todos

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Programação especial em comemoração ao centenário de nascimento de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues para todos Uma das principais missões do SESI de São Paulo é levar mais cultura para a nossa população. Acreditamos
que o desenvolvimento do Brasil só estará completo quando aliar o crescimento econômico ao
amadurecimento cultural de nossa sociedade. Na condição de uma das mais importantes fomentadoras
de ações culturais no país, a entidade promove atividades nas diferentes linguagens artísticas, capazes de
atrair novos públicos e renovar o interesse das plateias mais tradicionais.
A contribuição de Nelson Rodrigues para a cultura brasileira é algo inquestionável e o legado de sua obra é
motivo de inspiração para inúmeros artistas. No ano em que se comemora o centenário de seu nascimento,
o SESI-SP preparou uma intensa programação que abrange, entre outras ações, espetáculos teatrais,
leituras dramáticas e debates, como forma de homenageá-lo.
As várias facetas do chamado “universo rodriguiano” estão contempladas nesta iniciativa, inclusive,
muitas daquelas que foram motivo de censura em um recente período de nossa história. Trazer à luz este
universo é permitir que as atuais gerações tenham contato com a grandeza da obra de Nelson Rodrigues e
proporcionar o entendimento sobre sua importância para a dramaturgia e para a literatura brasileira.
O SESI-SP trabalha com a convicção de que o futuro do Brasil depende de um trabalho efetivo na educação
e na cultura, a fim de construir uma sociedade mais independente, livre e democrática. A obra de Nelson
Rodrigues certamente contribui com esse objetivo.
Paulo Skaf Presidente
Por Ruy Castro*, curador do projeto Nelson Rodrigues 100 Anos
Nelson Rodrigues faria 100 anos em agosto próximo. O autor que, em vida, conheceu a glória
e a maldição, o aplauso e a agressão e, no fim, o desprezo e o esquecimento, foi reabilitado há
20 anos e, hoje, tornou-se aquilo que ele mais temia: uma unanimidade nacional.
Muitas homenagens lhe estão sendo dedicadas neste seu centenário de nascimento – e
ele merece todas. Mas coube ao SESI-SP, com o projeto Nelson Rodrigues 100 Anos, a
programação que, durante sete meses a partir de maio, lhe dará Nelson Rodrigues por inteiro
– envolvendo teatro, exposição, debates e oficinas, entre outras ações.
No Centro Cultural Fiesp - Ruth Cardoso, na avenida Paulista, teremos a leitura dramática de 15
das 17 peças do autor e a encenação completa das outras duas, A Falecida e Boca de Ouro, com
elencos cheios de estrelas, entre elas os atores Marco Ricca e Maria Luísa Mendonça – dirigidos
por Marco Antônio Braz. Estão programadas 13 mesas-redondas, cada qual abordando um
tema importante na trajetória de Nelson – a censura, a crítica, o futebol, a televisão, o cinema,
a psicanálise e vários outros –, com a presença de importantes debatedores, muitos dos quais
conviveram com ele. O público poderá ainda participar de oficinas de folhetim/novela de TV,
crônica esportiva e contos/crônicas – especialidades de Nelson. O evento, itinerante, também
passará pelos 19 teatros do SESI localizados na Grande São Paulo e no interior do estado, com
a leitura de peças como Vestido de Noiva, Anjo Negro, Toda Nudez Será Castigada e Viúva
Porém Honesta. As montagens serão encenadas pelos alunos dos Núcleos de Artes Cênicas
do SESI-SP, com direção dos Orientadores de Artes Cênicas da instituição e coordenação de
Marco Antônio Braz.
Se você pensava conhecer Nelson Rodrigues, o SESI-SP lhe dá agora a oportunidade de tirar isto
a limpo – e de ficar íntimo do “anjo pornográfico”.
*Ruy Castro é escritor e jornalista. Começou como repórter em 1967 e trabalhou nos principais
veículos da imprensa carioca e paulistana. Atualmente, é colunista da Folha de S.Paulo.
Como escritor, desde 1990, notabilizou-se pelas biografias de figuras importantes da cultura
brasileira, como Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues – sobre quem escreveu o livro
O Anjo Pornográfico, lançado em 1992 e hoje na 26ª impressão.
O curador Ruy Castro faz a mediação de todos os debates.
Marco Antônio Braz, considerado um dos maiores encenadores de Nelson Rodrigues, é o diretor
artístico das leituras dramáticas e das montagens inéditas "A Falecida" e "Boca de Ouro".
Em meados de 1941, Nelson Rodrigues estava recuperado da
tuberculose que o acometera na década de 1930, obrigando-o a anos
de internação em Campos do Jordão. Já estava casado e empregado
na revista Globo Juvenil. Porém, continuava na pindaíba, precisando
faturar por fora. Uma de suas ideias era escrever um romance, mas, um
dia, passou pela porta do Teatro Rival, na Cinelândia, onde uma fila se
atropelava para ver Jayme Costa em A Família Lero-Lero, de Raymundo
Magalhães Jr. Nelson ouviu alguém comentar “Essa chanchada está
rendendo os tubos!” e pensou “Por que não escrever teatro?”. Sua
vocação, como ele acreditava, era o romance, mas quem garantia que
conseguiria publicar? O teatro parecia mais imediato — e talvez fosse
mais fácil de escrever. Com os dedos salivando, resolveu tentar.
Na época em que Nelson escreveu sua primeira peça, A Mulher sem
Pecado, dizia-se que o teatro brasileiro ia do Rocio à Cinelândia. O
Rocio era o antigo nome da Praça Tiradentes, reduto do teatro de
revista no Rio desde o século XIX, e a Cinelândia, que supostamente
deveria abrigar o teatro sério, era o território de Procópio Ferreira,
Jayme Costa e Dulcina de Moraes. Como astros que arrebatavam
as plateias, era para eles que todos os autores queriam escrever.
Como empresários e donos de seus narizes, era natural que eles só
escolhessem as peças de acordo com o seu estilo. E, como eram todos
comediantes, só queriam saber de comédias.
O teatro, então, era assim. Cada peça ficava em cartaz uma ou
duas semanas. Raras eram as que chegavam a três. A maioria das
companhias trocava de peça toda semana. Os atores principais
não precisavam decorar o texto. Os grandes astros nem ensaiavam
porque em geral faziam o papel deles mesmos. O diretor, ironicamente
chamado de ensaiador, limitava-se a arrumar os móveis no palco para
que os atores não tropeçassem neles. A figura-chave da equipe era
o ponto, o sujeito que ficava lendo a peça baixinho num buraco do
proscênio, sem o qual nenhum ator daria um pio.
Os autores das peças não recebiam 10% da bilheteria como hoje, mas
o equivalente em dinheiro a 18 poltronas por récita, com casa cheia
ou vazia. Era bom negócio porque cada peça oferecia duas récitas
por noite, inclusive às segundas-feiras. Algumas davam três récitas às
quintas-feiras, aos sábados e domingos. E o autor que não se metesse
a sério, porque o público ia ao teatro para rir.
Num primeiro momento, foi por dinheiro que Nelson resolveu
escrever teatro. No entanto, se fosse só por isso, ele teria escrito uma
comédia. De fato, ele chegou a começar A Mulher sem Pecado como
uma chanchada, mas, em poucas páginas, a história daquele marido
paralítico e ciumento foi adquirindo uma tintura dramática que ele
não podia prever. Escrita a peça, Nelson ainda precisou batalhar
muito até conseguir vê-la encenada. Em 9 de dezembro de 1942 —
um ano e quatro meses depois de escrita —, ela foi levada ao palco
pela companhia de teatro Comédia Brasileira, com direção de Rodolfo
Mayer, no Teatro Carlos Gomes. E sabe o que aconteceu? Nada. A
Mulher sem Pecado ficou duas burocráticas semanas em cartaz. Na
estreia, o pano subiu e desceu uma vez, ouviram-se alguns aplausos
e mais nada. Ninguém vaiou, ninguém gritou “O autor! O autor!”.
Nelson sentiu aquela indiferença, mais do que se tivesse sido vaiado.
O crítico Mário Nunes, do Jornal do Brasil, odiou a peça, classificou-a
como uma “pura e simples coleção de horrores”. Nelson já esperava
por isso. Surpresa foi que Bandeira Duarte, crítico do Globo e seu
colega de redação, também arrasou a peça. Roberto Marinho, que
tinha visto e adorado, não gostou de saber que seu crítico pensava
diferente dele, mas quem sabe o outro tinha razão? Afinal, era um
crítico. Porém, Bandeira Duarte não deu sorte. Dias depois, seu quase
xará, o poeta Manuel Bandeira, foi ao jornal. Roberto Marinho sabia
que ele vira a peça e perguntou-lhe o que tinha achado. Bandeira não
poupou elogios e disse que Nelson tinha um grande talento. “A peça
é formidável!”, falou. Ao ouvir uma opinião tão autorizada, Roberto
Marinho não vacilou: demitiu Bandeira Duarte.
Entretanto, para Nelson, o melhor ainda estava por vir. Álvaro Lins
era o crítico literário mais importante do país. Meses antes, ele
tinha recebido o original da peça de Nelson. Leu, gostou e quando
A Mulher sem Pecado estreou, foi vê-la numa noite de plateia quase
zero. Depois, escreveu o seguinte: “Este é um autor que conhece
as condições do gênero teatral”. Achou que a peça continha “arte
literária, imaginação, visão poética dos acontecimentos; técnica de
construção; que não era uma cópia servil de cenas burguesas de
sala de jantar; e, sim, a interpretação de sentimentos dramáticos ou
essenciais da vida humana”.
Ora, se Álvaro Lins, que era Álvaro Lins, achava isso, que importava
para Nelson que aquela plateia de lorpas e pascácios não lhe tivesse
dado bola? Era a glória!
Dia 9 de maio
A Mulher sem Pecado,
Nenhum outro autor de teatro — talvez nenhum outro escritor brasileiro — foi mais
perseguido pelos moralistas do que Nelson Rodrigues. Em 40 anos de atividade, ele
teve quatro peças proibidas antes de estrear, sendo duas delas, Anjo Negro e Boca
de Ouro, depois liberadas e outras duas proibidas por longo tempo: Senhora dos
Afogados por sete anos e Álbum de Família por 19! E nenhuma das demais estreou
sem a expectativa de que algo pudesse acontecer, como Perdoa-me por me Traíres,
atacada em cena aberta por um político armado.
Nelson teve também as três novelas de televisão que escreveu, nos anos 1960,
perseguidas pela censura e empurradas para horários cada vez mais tardios e menos
nobres. Além disso, o único romance que escreveu, O Casamento, em 1966, também
foi retirado de circulação por algum tempo — dessa vez, pela própria ditadura militar.
Para debater esses obstáculos que sempre se apresentaram na carreira de Nelson,
o SESI-SP convidou as gloriosas atrizes Maria Della Costa, estrela de Anjo Negro;
Léa Garcia, que participou do elenco da atacada Perdoa-me por me Traíres; além do
jornalista Pedro do Coutto, um dos “irmãos íntimos” de Nelson e que seguiu de perto
o episódio da proibição de O Casamento.
Dia 14 de maio
Nelson proibido: as batalhas contra a censura
Em 1957, Nelson Rodrigues anunciou que estaria no elenco de sua nova peça, Perdoa-me
por me Traíres, vivendo o tio Raul. Em determinada cena, o personagem bebe veneno,
estrebucha, rola três ou quatro degraus de escada e morre espetacularmente. Os amigos
de Nelson não conseguiam imaginá-lo fazendo isso no palco, muito menos no Municipal!
“Você não é ator, Nelson, nunca foi ator! É um canastrão! Como vai saber morrer em
cena?”, perguntou um deles.
A lógica de Nelson era irrebatível. Segundo ele, “um Laurence Olivier, quando morre no
palco, morre como Laurence Olivier. Mas, na vida real, ninguém morre como Laurence
Olivier. Morre como um canastrão”. E completava: “Só o canastrão é capaz de estrebuchar
no palco com o máximo realismo”.
A ideia de usar Nelson como ator pode ter sido do próprio Nelson. Seria a perfeita isca
publicitária para Perdoa-me por me Traíres. Além disso, a peça ficaria no Municipal por
apenas dez dias. Se o problema fosse ele dar conta do papel, teriam seis semanas de
ensaios. Quanto a outro possível obstáculo, o de Nelson ter medo do palco, esse nunca
existiu. Pelos aplausos discretos ao fim dos primeiros dois atos, naquela noite de 19 de
junho, a estreia de Perdoa-me por me Traíres parecia caminhar para uma carreira tranquila.
Ninguém podia adivinhar que uma parte da plateia provocaria um distúrbio ao fim do
espetáculo, nem a conflagração que se seguiria — dez vezes pior do que a da estreia de
Senhora dos Afogados, três anos antes.
Nelson, como ator, era de uma sinceridade comovente. Atirou-se de corpo, alma e
ectoplasma ao personagem de tio Raul. Até as bofetadas que dava em Dália Palma eram
de verdade, ao contrário do que tinha aprendido nos ensaios. Apesar disso, a sinceridade de
Nelson não passava para a plateia. Segundo os críticos, foi o pior canastrão que já passou
pelo Municipal. A peça terminou e, atrás do pano, elenco e diretor ouviram os aplausos
e, para sua surpresa, vaias. No decorrer do espetáculo, nada indicava que haveria vaias. A
plateia parecia sob controle e tinha inclusive rido do que não era para rir. Léo Júsi planejou
fazer a entrada isolada ou em grupo dos atores para os aplausos, mas, ao ouvir os apupos,
decidiu que era melhor entrarem todos juntos, de mãos dadas.
O pano se abriu e de repente a plateia parecia possessa. Os palavrões que a peça não tinha
estavam sendo berrados pelas pessoas mais insuspeitas. Como Nelson contaria depois,
“santas senhoras cavalgavam cadeiras e ululavam como apaches”, xingando-o de imoral,
indecente e de coisas impublicáveis. Ele não se conteve, deu um passo em direção do
proscênio e começou a gritar para as cadeiras e camarotes: “Burros! Zebus!”.
Os burros e os zebus ofenderam-no de volta. Nelson estava a ponto de descer para
enfrentar fisicamente a multidão, para dar e levar pescoções. Seria uma chacina. E, de
repente, ouviu-se um tiro. Meia hora antes, o vereador pela UDN Wilson Leite Passos, de
26 anos, passava distraído pela porta do teatro. Viu amigos saindo e esbravejando contra a
peça — sabia que era uma peça do abominável Nelson Rodrigues — e resolveu dar uma
espiada. Wilson Leite Passos era correligionário de Carlos Lacerda e estava convicto de
que Nelson Rodrigues era tarado. Quando chegou ao balcão, a peça estava no começo do
terceiro ato. Já não gostou do que viu, mas resolveu esperar pelo fim. Achou um absurdo
aquele desfile de taras entre tio e sobrinha num teatro da Prefeitura, mantido com o
dinheiro do contribuinte e resolveu que ia falar com o prefeito Negrão de Lima. O pano
caiu, parte da plateia começou a aplaudir e a maior parte a vaiar. Nelson Rodrigues veio
à boca de cena e se pôs a chamar o público de zebus. Wilson Leite Passos sentiu-se na
obrigação de protestar. Valendo-se de sua voz de tribuno, conseguiu fazer-se ouvir sobre
a balbúrdia e declarou:
— Esta peça é um deplorável atentado à moral e aos bons costumes, incompatível com um
teatro destinado a óperas, balés e clássicos sinfônicos!
Um cidadão, dos que aplaudiam, afrontou-o no próprio balcão:
— Palhaço!
— Palhaço é você!
O homem partiu para cima dele, que o empurrou e o fez cair sobre as cadeiras do balcão,
depois, levantou-se, voltou à carga e foi então que Wilson Leite Passos sacou sua arma.
Ninguém sabe se houve um tiro — o vereador iria no dia seguinte ao programa de Gilson
Amado, na TV Tupi, para garantir que não houve. Mas a versão de Nelson sobre o episódio
podia dar a entender qualquer coisa. Ele escreveria muitas vezes que o vereador tinha
“puxado o revólver e, como um Tom Mix, queria fuzilar o texto”.
No dia seguinte, a censura proibiu Perdoa-me por me Traíres. Nelson ficou inconformado.
A peça já tinha sido liberada! Três censores haviam assistido aos ensaios e consentido a
exibição. Descobriu-se então o motivo da proibição: o vereador Wilson Leite Passos fez
uma campanha junto ao prefeito Negrão de Lima, dizendo que o Municipal estava sendo
avacalhado pelo espetáculo. Também havia a pressão de setores da Igreja, que não se
conformavam com a cena do aborto. Nelson foi aconselhado a falar com Negrão e também
a pedir apoio a dom Helder Câmara.
Ele fez isso e a peça foi liberada. A partir daí, seguiu uma carreira de casa lotada no
Municipal, sem qualquer incidente. Por isso, o espetáculo que havia sido anunciado como
uma temporada de dez dias teve de estender-se por mais dois meses no Teatro Carlos
Gomes, porém, agora, com um substituto no papel de Raul. Nelson tinha encerrado sua
carreira de ator, mas não a de autor maldito. Poucas de suas peças foram tão enxovalhadas
pela crítica quanto Perdoa-me por me Traíres. Paulo Francis, que gostava de Nelson e
achava Dorotéia um dos maiores espetáculos que já vira, reduziu Wilson Leite Passos a
palhaço de circo, mas atacou Perdoa-me por me Traíres na própria Última Hora. E Henrique
Oscar, do Diário de Notícias, insinuou que Nelson contratava claques ao contrário, ou seja,
gente para vaiá-lo e chamá-lo de tarado e obsceno. Nelson rompeu com os dois.
Ao saber que Francis o chamara de ignorante, apenas riu: “Eu li muito mais do que o Paulo
Francis! Ele pula de um livro para o outro como uma gazela!”. Quanto a Henrique Oscar,
foi duro. Disse a um amigo: “Leonardo da Vinci está morto, mas Henrique Oscar viverá para
sempre, porque a burrice é eterna”.
Dia 15 de maio
Perdoa-me por me Traíres
Há quem acredite que, até mais do que o teatro, o grande palco de Nelson Rodrigues foi... o
jornalismo. As redações de jornais e revistas foi onde ele passou a maior parte de sua vida.
Desde os 13 anos começou a trabalhar como repórter nos jornais A Manhã e Crítica, que
pertenciam ao seu pai, Mario Rodrigues. A partir daí, teve passagens marcantes por todos os
veículos de que participou.
Em O Jornal, de Chateaubriand, ele escreveu o folhetim Meu Destino é Pecar, sob o pseudônimo
de Suzana Flag, e deixou milhares de pessoas paralisadas, à espera do capítulo seguinte,
durante meses, em 1944. Em 1951, na Última Hora, deu início à série de contos de A Vida como
Ela É... — um por dia “e sempre a história de um adultério”, dizia ele, e pelos 11 anos seguintes
eletrizou os leitores. No mesmo jornal, em 1959, ele publicou o ousadíssimo folhetim Asfalto
Selvagem — a história de Engraçadinha, você sabe —, e é preciso dizer mais? Nos anos 1960
e 1970, em O Globo, tornou-se o maior polemista da imprensa brasileira, com sua coluna As
Confissões de Nelson Rodrigues.
Para debater a importância do Nelson nessa área, o SESI-SP convidou os jornalistas Arnaldo
Niskier, seu contemporâneo na Última Hora e na Manchete Esportiva nos anos 1950; Nelson
Motta, seu colega na TV Globo em fins dos anos 1960; e Otavio Frias Filho, diretor de redação da
Folha de S.Paulo, que administra diariamente em seu jornal a aparente dualidade informação/
opinião. Eles têm muito o que contar.
Dia 16 de maio
Nelson jornalista: o gênio na redação
Nelson Rodrigues escreveu sua grande e última peça, A Serpente, em meados de
1979, pouco antes de se envolver num turbilhão que exigiria tudo até dos mais
arejados pulmões e do mais possante coração. De julho para agosto daquele ano,
seu filho Nelsinho e os 13 últimos presos políticos cariocas contra a ditadura militar
sustentaram uma greve de fome pela transformação de uma anistia apenas ampla em
total e irrestrita. No dia 21 de agosto, o Congresso votou a lei que o governo queria,
excluindo-os da anistia. No dia 22, o trigésimo segundo da greve, os presos encerraram
o protesto, antes que alguém morresse. No dia seguinte — quando Nelson completou
67 anos —, Nelsinho teve permissão para deixar o presídio e assistir ao nascimento
de sua filha Cristiana. Como seu avô Mário Rodrigues, ele também gerou uma filha
na prisão, quando Cristina, sua companheira, visitava-o. A cesariana foi marcada para
coincidir com o aniversário de Nelson. Nelsinho chegou algemado à maternidade
Clara Basbaun, em Botafogo, na presença de uma multidão de repórteres, e assistiu
ao parto. Nelson emocionou-se ao saber que ganhara uma neta — Joffre tinha dois
garotos. Nascida a criança, Nelsinho foi levado de volta para o camburão dos órgãos
de segurança e devolvido ao presídio na Frei Caneca.
Estava aguardando desde fevereiro o julgamento do recurso que lhe daria a liberdade
condicional. Durante aquele tempo, seu pai pedira a anistia total em dezenas de
entrevistas. Com a derrota desta no Congresso, a luta passara a ser pela liberdade
condicional. Em 14 de outubro, Nelson foi novamente apelar ao presidente Figueiredo
no Programa Flávio Cavalcanti, a convite do apresentador e de Marisa Urban. Flávio
tinha providenciado uma ambulância na garagem da TV Tupi, temendo que Nelson
pudesse precisar — e ele quase precisou. Ao ver um teipe de Nelsinho na prisão
dirigindo-se a ele — “Alô, pai!” —, Nelson sentiu-se mal. Enquanto o jornalista Salim
Simão, que o acompanhava, fazia um discurso libertário para as câmeras, Nelson teve
de tomar um Isordil. E, no dia seguinte, em 15 de outubro, foi para o Pró-Cardíaco, em
Botafogo, com insuficiência respiratória e coronariana.
No dia 16, Nelsinho recebeu a liberdade condicional. Aos 34 anos, voltava para
casa para dedicar-se a seu pai. Porém, naquele dia, Nelson não pôde recebê-lo.
Estava inconsciente na casa de saúde. No fim do ano, com todos esses problemas já
serenados, procurei Nelson por telefone no Rio e perguntei-lhe se podia ler sua nova
peça. Ele não fez objeções e deixou uma cópia na portaria de seu prédio, no edifício
Sabará, no Leme, à minha espera. Passei lá pessoalmente e peguei o envelope. Não
aguentei esperar que chegasse a algum lugar para ler a peça. Sentei-me ali mesmo,
num banco da avenida Atlântica, quase em frente ao edifício Sabará, e, pela hora e
meia seguinte, mergulhei em primeira mão no que viria a ser a última fatia do universo
teatral de Nelson.
No dia seguinte, telefonei-lhe e disse-lhe que queria comprar um trecho da peça para
publicá-lo na revista Playboy, onde eu trabalhava. Nelson relutou, mas aceitou. Submeti-
lhe o trecho escolhido, ele aprovou e mandei pagá-lo — não me lembro quanto, mas era
uma quantia substancial. O trecho saiu quase ao mesmo tempo em que a peça estreava,
em março de 1980. Como muitas de suas peças, recebeu críticas mistas ao ir ao palco pela
primeira vez e cresceu aos olhos da posteridade, anos depois. Foi sempre assim: o teatro de
Nelson nos obrigando a evoluir para um dia chegarmos ao seu alcance.
Dia 23 de maio
A Serpente
Nos anos 1950 e 1960, se alguém ainda não conhecesse Nelson Rodrigues como o mais discutido
dramaturgo brasileiro, sem dúvida o conheceria como um fabuloso cronista esportivo. Suas colunas, Meu
Personagem da Semana, na Manchete Esportiva, e À Sombra das Chuteiras Imortais, em O Globo, do Rio,
eram lidas em todo o país. E havia a televisão, com a Resenha Facit, na TV Globo, em que Nelson brilhava ao
lado de João Saldanha, Armando Nogueira, o Marinheiro Sueco, entre outros.
Em todos os veículos, Nelson caracterizou-se por defender o futebol brasileiro contra as influências externas,
por lutar pela convocação de João Saldanha para técnico da Seleção em 1970, por criar frases e conceitos
geniais, como “O videoteipe é burro”, “O Brasil perdeu o complexo de vira-lata”, “A Seleção é a pátria em
chuteiras”, e, claro, por não esconder seu amor pelo Fluminense. Foi ele também o primeiro a chamar Pelé
de “rei”, em março de 1958, antes da Copa do Mundo.
Para debater essa importante atividade na carreira de Nelson — e que ajudou a torná-lo ainda mais
popular —, o SESI-SP convidou três comentaristas de peso: Juca Kfouri, que dispensa apresentações; Renato
Mauricio Prado, do SporTV e que trabalhou com Nelson no jornal O Globo; e Hans Henningsen, o Marinheiro
Sueco, que conviveu intimamente com Nelson no Maracanã, nas ruas e na famosa Resenha Facit.
Dia 30 de maio
Dia 5 de junho
Vestido de Noiva Nelson Rodrigues começou a escrever Vestido de Noiva na redação de O Globo Juvenil,
onde trabalhava. Mas logo viu que ali não lhe dariam sossego. O secretário da revista
chegava por trás e bufava na sua nuca:
— Escrevendo teatro aqui?
Então, passou a trabalhar em casa, de madrugada. Em seis dias escreveu os três atos; no
sétimo, um domingo, revisou. Era janeiro de 1943. Quando terminou, entregou a peça à
sua mulher, Elza, para que ela a batesse a limpo, tirando cópias a carbono. Elza às vezes
telefonava para O Globo Juvenil:
— Nelson, você deve ter errado. A peça não faz sentido. Não estou entendendo nada.
— Vai batendo, meu coração. — respondia Nelson. — Depois eu explico.
Na sua ânsia de conseguir adeptos para Vestido de Noiva, Nelson foi à casa de Manuel
Bandeira, na Lapa, e deixou-lhe uma cópia da peça. Dias depois, Bandeira lhe disse:
— Li duas vezes. O que me agrada na peça é que ela não tem literatice.
Como se não bastasse, Bandeira escreveu no jornal A Manhã, de 6 de fevereiro, o seguinte:
“Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que
me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação.
‘Vestido de Noiva’, em outro meio, consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem aceita,
consagrará... o público.”
Ou seja, segundo Manuel Bandeira, se gostasse de Vestido de Noiva, o público estaria
passando um atestado de maioridade para si mesmo.
Nelson saiu distribuindo cópias da peça pelo Rio e pedindo aprovações por escrito. Mas os
elogios desses intelectuais pareciam assustar mais do que estimular possíveis produtores.
Augusto Frederico Schmidt, por exemplo, escreveu: “É mais que uma peça. É um processo
e uma revolução”. Astrogildo Pereira, fundador do Partido Comunista e pessoa muito
querida, exceto pela polícia, disse: “É uma peça que poderá marcar novos rumos no teatro
brasileiro”. Do vienense Otto Maria Carpeaux, recém-chegado ao Brasil, veio só uma
palavra: “Magistral!”. Uma cópia foi mandada para Drummond no MEC e ele também
gostou.
O primeiro a destoar foi Álvaro Lins, o grande crítico do Correio da Manhã: a peça
era excepcional, mas era para ser vista, não lida. Podia ser uma revolução — ou uma
catástrofe. Tudo iria depender da montagem. Depois veio Henrique Pongetti: “A peça é
um caos. Ninguém vai saber quem é quem. Nem os intérpretes vão se identificar com os
personagens.”
Mas havia alguém no Rio que não concordava com isso: um desenhista, músico e poeta de
34 anos, Thomaz Santa Rosa, também ilustrador de jornais e capista de Jorge Amado, José
Lins do Rego e Graciliano Ramos. Pouco antes ele tinha invadido as artes plásticas como
pintor e crítico e, finalmente, tornara-se cenógrafo de teatro.
Desde 1938, Santa Rosa estava envolvido com um grupo de jovens amadores de teatro
ao qual ele dera o nome de Os Comediantes. Agora o grupo tinha acabado de receber
um novo adepto: um polonês maluco, recém-chegado ao Rio, chamado Zbigniew (que
ninguém sabia pronunciar seu nome) Ziembinski.
Uma cópia de Vestido de Noiva caiu nas mãos de Santa Rosa em março de 1943. Santa
Rosa leu e não quis acreditar. Passou-a a Brutus Pedreira, que também leu e também
não acreditou. Brutus passou-a a Ziembinski e o comentário deste confirmou o que eles
suspeitavam:
— Não conheço nada no teatro mundial que se pareça com isso.
Os Comediantes só conseguiram datas no Teatro Municipal para dezembro, dali a oito
meses, o que lhes daria tempo para se preparar. Ia começar a aventura de Vestido de Noiva:
oito meses de ensaios, oito horas por dia — para um resultado que poderia significar a
glória ou o fim de Os Comediantes.
Ziembinski começou pela leitura em voz alta com o grupo. Ficava horas debruçado
sobre uma fala, até certificar-se do que poderia extrair dela em termos cênicos, plásticos,
psicológicos. Cada linha era repassada centenas de vezes. Sua primeira exigência foi a
abolição do “ponto”. Quem não soubesse o papel na ponta da língua, que ficasse em casa.
Ziembinski tornou sagrada a instituição do ensaio: cobrava frequência com um rigor de
bedel. Quem se atrasasse levava broncas vulcânicas. Mas quem queria se atrasar? Eram
aulas práticas de representação e direção, que caíam como pepitas douradas nos ouvidos
daqueles meninos completamente crus. E fora preciso uma guerra mundial para trazer
aquele gênio ao Brasil!
Todos no elenco tinham empregos e ocupações, que relaxaram, deixaram de lado ou dos
quais foram despedidos. Eram funcionários públicos, advogados, jornalistas, estudantes
de Direito e de Engenharia, bancários, contadores, comerciários e até um tenente da
Aeronáutica. As duas principais figuras do elenco foram as últimas a ser escolhidas e nunca
tinham trabalhado, no que quer que fosse, nem por um minuto em suas vidas: Stella Perry
e Evangelina Guinle da Rocha Miranda.
Até então, Stella era apenas amiga e anfitriã de Os Comediantes. Seu interesse por teatro
resumia-se na escolha do vestido que usava nas estreias. E nem sua família (a família
Rudge, cheia de ramos nobres no Rio, em São Paulo e na Inglaterra) queria vê-la misturada
com gente de teatro. Mas o marido de Stella, Carlos Perry já havia sido selecionado para o
elenco de Vestido de Noiva. Quando Ziembinski viu Stella, apenas lhe comunicou:
— Você vai ser Lúcia em ‘Vestido de Noiva’.
Às 20h30 do dia 28 de dezembro de 1943, os porteiros, nos seus uniformes de lã azul e
botões dourados, abriram os portões do Municipal para os 2.205 espectadores que ali
estavam.
Nelson foi o primeiro a entrar. Manuel Bandeira, por acaso, o segundo. Nelson zanzou pelo
saguão, depois sumiu. Escondeu-se no fundo de seu camarote. A úlcera, em fogo, subia-lhe
pelas paredes do duodeno como uma lagartixa profissional.
O pano subiu às 21h30 com o palco às escuras. Nelson Vaz, um de Os Comediantes,
Quando qualquer uma de suas peças estava sendo montada, Nelson Rodrigues ia
todos os dias aos ensaios e, depois de estreada, não perdia uma representação. Como
seria ele junto ao diretor e aos atores? Interferia muito ou pouco? Permitia que os
atores improvisassem em cena? Dava alguma margem de liberdade ao diretor? E que
história era aquela de que, ao fim do espetáculo, ele saía pessoalmente ao saguão para
perguntar aos espectadores o que eles tinham achado?
Em suas 17 peças, Nelson teve como diretores gigantes como Ziembinski, Bibi
Ferreira, Henriette Morineau, Fernando Torres e José Renato. Outros grandes nomes
se encarregaram de remontá-las ou propor novas formulações, como Antunes Filho,
com sua série de extraordinárias antologias, e Antonio Abujamra, que levou ao palco
o romance O Casamento.
Aqui estão os três diretores que o SESI-SP convidou para debater suas relações com
Nelson e a arte de dirigir suas obras: o professor gaúcho Luís Artur Nunes que pesquisa
a teatralidade nas crônicas de Nelson (A Vida Como Ela É, 1991; Vestido de Noiva,
1993 e O Correio Sentimental de Nelson Rodrigues, 1999), o diretor, cenógrafo e
figurinista mineiro Gabriel Villela (A Falecida, 1994) e o carioca Marco Antonio Braz (O
Beijo no Asfalto, 1990; Perdoa-me por me Traíres, 1995; Viúva, porém Honesta, 1996;
Bonitinha, mas Ordinária, 1999; Valsa Nº 6 e Boca de Ouro, 2002).
Dia 6 de junho
Nelson dramaturgo: o herói dos jovens diretores
apareceu em cena e leu uma breve explicação de Nelson Rodrigues sobre o que iria
acontecer na peça. A história se passava em três planos: o da realidade, o da memória e o
da alucinação. Nelson Vaz retirou-se sem aplausos. O palco continuou às escuras por alguns
momentos, sob um silêncio em que se podiam ouvir os pernilongos. Então, os refletores
colocados na sala jorraram luz sobre o cenário de Santa Rosa. Ouviram-se buzinas, pneus
cantando e sons de vidros partidos. Era Alaíde sendo atropelada em frente ao relógio da
Glória. Vestido de Noiva começava.
A plateia podia esperar por muita coisa, mas não pelo que transcorria diante dos seus
olhos: 140 mudanças de cena, 132 efeitos de luz, 20 refletores, 25 pessoas no palco e
32 personagens, contando os quatro pequenos jornaleiros de verdade que gritavam as
manchetes de A Noite. Mesas e cadeiras subiam e desciam pelo palco, manobradas por
cordões invisíveis. Um personagem se transformava em outro, e depois em outro, vivido
pelo mesmo ator. Os planos se cruzavam, se sobrepunham, se confundiam. Apesar da
explicação lida por Nelson Vaz, grande parte da plateia sentia-se ofendida por não estar
entendendo. E a outra parte sentia-se ofendida pelos temas do adultério e da prostituição
ou por frases como “É tão fácil matar um marido”.
Ao fim do primeiro ato, poucos aplausos — partidos do camarote onde estavam Nelson,
sua mulher, sua mãe e suas irmãs. Lá embaixo, outra meia dúzia de gatos pingados fez coro.
(Talvez fossem Manuel Bandeira e seus amigos.) Nelson tinha ficado de costas para o palco
durante todo o primeiro ato, sem coragem para assistir à peça.
No intervalo, espectadores reclamavam da “pobreza” dos diálogos — não faziam ideia
de como Nelson lutara para livrar-se de seu ranço parnasiano e escrever de forma simples.
Outros diziam que a linguagem chula era para destacar a vulgaridade dos personagens,
que só falavam em sexo.
Ao fim do segundo ato, Nelson contou os aplausos: um ou dois. Desta vez, em seu
camarote, nem sua mãe tinha aplaudido. Uma coisa agora lhe dava vontade de morrer: a
possibilidade da vaia. Não suportaria ser vaiado na presença da própria mãe.
Duas horas depois, a peça chegou ao fim. Na fala final, Lúcia pediu: “O buquê”. E caiu
o pano. Silêncio total na plateia — e pânico em surdina nos bastidores. Era para subir
o pano? Ninguém sabia. “Eles não gostaram!”, sussurrou Stella para Evangelina. Mal
acabou de dizer isso, ouviram palmas esparsas. Outras palmas se juntaram e, de repente,
num crescendo, transformaram-se numa ovação, como se só então a plateia tivesse sido
sacudida de um torpor.
Os atores surgiram no palco e o teatro veio abaixo. O elenco ia e vinha, e as palmas não
paravam. Ziembinski também apareceu e o teatro delirou.
Alguém gritou da plateia: “O autor! O autor!”. O grito foi de um jornalista do Correio da
Manhã. Nelson ouviu que o chamavam e foi à varanda do camarote, para acenar. Mas
ninguém olhava para ele, só para o palco, onde todos se abraçavam. Ninguém do elenco
o apontou no camarote. E, como não o conheciam, era como se ele fosse invisível, um
marginal da própria glória. Nelson nunca superaria o trauma de ter sido involuntariamente
ignorado na sua hora máxima.
Desceu às cegas a escadaria rumo aos camarins, ouvindo exclamações de entusiasmo
de quem não sabia que ele era o autor. Quando chegou lá, Nelson finalmente recebeu
a ovação. Ziembinski gritou: “O autor!”, e uma multidão arremessou-se para abraçá-lo,
em meio a montanhas de flores. Nelson sentiu as pernas bambas, a vista turva e teve
uma impressão de irrealidade. Era como se aquilo estivesse acontecendo a alguém que ele
pudesse observar de fora.
Ao contrário do que acontecia na noite de uma grande estreia da Broadway, Nelson não
teve uma festa com champanhe numa suíte de hotel, à espera dos matutinos com as
primeiras críticas.
Depois de inventar o teatro brasileiro, o autor de Vestido de Noiva viu-se na avenida Rio
Branco, escura e deserta, caminhando feito um zumbi em direção à leiteria Palmira, no
largo da Carioca. Ele, sua mulher, sua cunhada Julieta e sua sogra foram comer o “jantar
Avenida” da leiteria: bife, batata frita e dois ovos. O resto do elenco fora comemorar na
sorveteria A Brasileira, na Cinelândia. Mas Nelson não foi com eles porque não tinha
dinheiro.
Poucos dias depois da estreia de Anjo Negro, a nova peça de Nelson Rodrigues,
em abril de 1948, o Diário da Noite publicou um anúncio de página inteira no qual
propunha em manchete: “Anjo Negro: imoral ou obra de arte?”. O anúncio oferecia
frases que defendiam as duas posições, dando a entender que a alternativa certa era
a segunda, mas deixando uma suspeita de que a primeira não estaria muito errada.
Quem havia escrito tudo aquilo? O próprio Nelson, capitalizando o rótulo de “imoral”
recebido na época da proibição de Álbum de Família. Se esta fora condenada por
mostrar uma meia dúzia de incestos, o que dizer de Anjo Negro, que continha essas e
outras abominações e em que o principal personagem era um negro?
Nenhuma dúvida: três meses antes, em janeiro, já em ensaios pela companhia de
Maria Della Costa e Sandro Polloni, Anjo Negro também foi proibida pela censura
federal. Ela nunca seria liberada se, dessa vez, Nelson não tivesse apelado para canais
mais competentes: o Ministério da Justiça e a Igreja Católica. Começou com uma
caçada ao ministro Adroaldo Mesquita da Costa pelos gabinetes do poder, capturou-o,
entregou-lhe o manuscrito da peça e ele prometeu lê-lo.
Em seguida, Nelson conseguiu o apoio do padre Leonel Franca, teólogo jesuíta,
consultor dos bispos brasileiros e fundador da PUC, que lhe redigiu um parecer
favorável sobre Anjo Negro. Passados alguns dias, Nelson convidou o ministro para
jantar em sua casa, pois queria explicar-lhe pessoalmente a peça. Adroaldo, que tinha
achado Anjo Negro um escândalo, aceitou o convite — mais por curiosidade — e
compareceu à casinha de vila na rua Joaquim Palhares, no Estácio.
Elza, mulher de Nelson, serviu macarronada e ofereceu ao ministro uma Malzbier.
Adroaldo observou a sala acanhada, a geladeira encimada pelo pinguim de louça,
os filhos brincando debaixo da mesa e Elza ralhando com eles e e se enterneceu pela
simplicidade daquele homem de suspensórios e de calças quase sob as axilas, de quem
os censores queriam beber o sangue como se fosse groselha. Só por causa disso, a
peça foi liberada.
Mas foi sorte. Quando ela estreou, um crítico, o futuro ator Ruy Affonso, fez de
brincadeira uma lista dos “crimes” cometidos pelos personagens, cada qual mais
tenebroso: “homicídios com agravantes, indução à lascívia, três infanticídios, adultério,
corrupção de menor, lesões corporais graves, estupro e cárcere privado”, como se
Nelson quisesse concentrar naqueles três atos “todos os delitos previstos no Código
Penal”. Outros críticos condenaram os “incestos, suicídios, violações de virgens”,
falaram em “último degrau dos instintos” e se indignaram: “Sexo, sexo, sexo, é só
nisso que ele pensa?”.
Nelson tinha escrito Anjo Negro em meados de 1946, depois de perdida a batalha de
Álbum de Família. Escrever uma peça sobre negros era uma antiga ideia sua, mas o
que o motivara a sentar-se e escrever fora o seu convívio com Abdias do Nascimento,
o jovem ator negro com quem ele se encontrava diariamente no Vermelhinho, o café
dos escritores e jornalistas na Cinelândia, em frente à ABI. A ideia corrente, muito
mais naquela época, era a de que no Brasil não havia preconceito racial. Não era a
opinião de Nelson: “Nos Estados Unidos, o negro é caçado a pauladas e incendiado
com gasolina, mas no Brasil é pior: ele é humilhado até as últimas consequências”.
Abdias achava surpreendente ouvir aquilo de um branco.
Ismael, o personagem central de Anjo Negro, era um preto como Abdias, para quem
foi escrita a peça: doutor de anel no dedo e orgulhoso de sua raça, mas com todos os
defeitos do ser humano, branco, amarelo ou furta-cor. Nelson tinha uma birra particular
contra a mania do teatro brasileiro de apresentar o negro como um moleque gaiato.
Antes de passar o texto pela censura, o autor teve de submetê-lo a uma “comissão
cultural” que selecionava o repertório do Teatro Municipal, onde a peça seria
encenada. A comissão, inacreditavelmente, não viu nenhum inconveniente nela ou no
personagem — desde que Ismael, com esse nome bíblico, fosse interpretado por um
branco. Nelson ficou horrorizado: “Mas o personagem é negro!”. Um dos membros
da comissão sugeriu então que o papel fosse interpretado por um branco com a cara
pintada. Negros interpretados por brancos com o rosto pintado não eram apenas coisa
de americano, de Al Jolson. Eram a regra no teatro sério brasileiro.
A peça acabou não sendo feita pelos Comediantes, mas por Maria Della Costa e
seu marido, Sandro; nem foi levada ao Municipal, mas ao Phoenix; e Ismael não foi
interpretado por Abdias, nem por outro negro, Edison Lopes, que chegou a ensaiar,
mas pelo branco Orlando Guy, com graxa no rosto. A prova de que Nelson era o único
incomodado com isso é que nenhum crítico da época estranhou a ausência de um
negro no papel do negro.
Anjo Negro foi um sucesso em seu tempo — dois meses em cartaz —, embora, para
Nelson, os deslumbrantes efeitos plásticos da produção tivessem anestesiado a plateia
para a contundência social e dramática do espetáculo. Fora o branco pintado de
preto, Nelson achou o elenco perfeito: Maria Della Costa como Virgínia, a mulher que
mata os seus próprios filhos negros com Ismael; Itália Fausta como a tia vingativa; e a
estreante Nicete Bruno, ainda adolescente, como Ana Maria, a filha de Virgínia com o
irmão branco e cego de Ismael.
Nelson seria um ingrato se se queixasse de Anjo Negro. A peça (e um financiamento
do IAPC) permitiu-lhe, pela primeira vez, ter casa própria, um sobradinho no humilde
bairro do Andaraí.
Anjo Negro
A avaliação crítica de Nelson Rodrigues como dramaturgo passou por várias fases.
Vestido de Noiva, em 1943, foi uma explosão e todos se apaixonaram por ele. Já com
Álbum de Família, que foi a peça seguinte, em 1946, muitos se afastaram subitamente
— e mal o defenderam quando a peça foi proibida. Durante todo o resto de sua
carreira, a recepção à sua obra seria dúbia: os críticos não podiam deixar de admirar
o savoir-faire de Nelson, mas, tanto quanto o público, chocavam-se com a temática
sempre crua.
Por causa disso, deixaram de perceber as inovações propostas a cada peça, inclusive
sua antecipação do teatro do absurdo em Dorotéia, de 1949, e sua mudança de ângulo
em 1953, quando lançou A Falecida. Mas não é possível afirmar que ele foi um maldito
sempre. De tempos em tempos, críticos como Sábato Magaldi voltavam a se apaixonar
por ele e a defendê-lo.
Para discutir a obra de Nelson à luz dessa avaliação, o SESI-SP convidou três ensaístas
de indiscutível importância no panorama de hoje: Jefferson Del Rios, Leyla Perrone-
Moyses e Aimar Labaki. Eles enxergam sua obra por prismas diferentes e, deles, tiram
avaliações surpreendentes.
Dia 11 de julho
Nelson sob ataque: por que os críticos massacravam o seu teatro?
Foi para Nonoca Bruno, mãe de Nicete Bruno e avó de Beth Goulart, que Nelson
Rodrigues escreveu Dorotéia em 1949 — a peça em que ela trocaria sua incipiente
carreira lírica pela comédia. Nelson convenceu Nonoca de que ela sabia representar
e escreveu sob medida para ela o papel-título, o da mulher linda, airosa e dissoluta
que vai morar com suas primas velhas, feias, sem ancas e que “não dormem para não
sonhar”. Dorotéia quer ficar como elas, feiíssima, para apagar da memória o tempo
em que desejava e era desejada por todos os homens. Mas, para isso, seu rosto terá
de ser destruído pelas chagas. No decorrer da peça, as primas se traem e revelam
que, sob suas pesadas vestes pretas, também alimentam um desejo em brasa — e,
por isso, têm de morrer. No final, purificadas e reduzidas a duas, Dorotéia e dona
Flávia, a prima “mais velha e mais feia”, decidem: “Vamos apodrecer juntas”.
Grande papel o de Dorotéia, mas não o principal, nem o com mais falas. Este era o de
dona Flávia, a cargo da experiente Luiza Barreto Leite, egressa de Os Comediantes.
Dorotéia foi uma empreitada quase familiar — o que explica que, sendo uma peça
profissional, fosse estrelada por uma quase desconhecida como Nonoca. Seria
também a estreia, aos 21 anos, de Dulcinha, irmã de Nelson, no papel de Das Dores,
a menina que tinha nascido morta e continuava viva apenas porque ninguém a
informara de que morrera.
O produtor nominal da peça era Paschoal Bruno, irmão de Nonoca, mas o grosso do
dinheiro da produção veio de Nelson — e só faltou arrombar os cofres-porquinhos de
seus filhos para levantá-lo. O Teatro Phoenix foi arrendado para a temporada, que se
esperava de pelo menos um mês.
Desta vez Nelson não quis jogar com a sorte: depois de três proibições seguidas (duas
definitivas), calculou que era ele que os censores queriam matar, não as peças. Então
mandou Dorotéia para a censura como “um original de Walter Paíno” — cunhado
de Nonoca — e a peça passou sem um arranhão. Os censores devem ter ficado uma
vara ao vê-la anunciada, tempos depois, como mais uma do excomungado Nelson
Rodrigues. Assim, Dorotéia subiu ao palco do Phoenix no dia 7 de março de 1950. O
cenário de Santa Rosa era um enorme tablado em forma de ringue, tendo ao fundo
um ciclorama azul. Sua simplicidade não diminuía o impressionante efeito visual. Mas
o que deixava a plateia sem fôlego era a iluminação de Ziembinski: seis refletores
coloridos que seguiam a movimentação das seis mulheres em cena, com uma cor
para cada uma. À medida que elas evoluíam pelo palco, as cores se cruzavam, se
confundiam, se separavam. Era lindo. O jogo de cores continuava nos figurinos, com
as primas de preto, sinistras como papa-defuntos, e Dorotéia de vermelho, como uma
cortesã antiga. Ao fim do primeiro ato, a cortina não desceu de imediato. O encarregado
de puxar a corda quis esperar pelos aplausos — que não vieram. Finalmente, baixou-
se o pano — em silêncio — e os atores tiveram uma pálida ideia do que os esperava
pelo resto da peça. O cruel era que, naquela noite de estreia, metade do público era
de convidados: jornalistas, amigos do elenco e da produção, parentes e agregados —
pessoas a quem o universo de Nelson não era estranho. Quando o pano se fechou
de vez, ao fim da peça, apenas essa metade da plateia aplaudiu e, mesmo assim, por
honra da firma. A outra metade retirou-se muda. Quase ninguém parecia ter entendido
direito o que vira. O cartaz dizia: “‘Dorotéia’. Farsa irresponsável em três atos”. Se era
uma farsa, era para rir, ou não? Mas rir daquilo? Mais parecia uma tragédia — que,
no entanto, tinha umas coisas bem engraçadas. E por que “irresponsável”? De fato,
Dorotéia continha audácias de Nelson que só ficariam claras depois que Beckett e
Ionesco inventassem o “teatro do absurdo”, muitos anos mais tarde. O “noivo” de Das
Dores, a garota interpretada por Dulce Rodrigues, era um par de botinas. Os homens
que viviam ameaçando voltar para Dorotéia eram um jarro que se iluminava ou se
apagava, conforme a intensidade do seu desejo. Das Dores, ao ser afinal informada de
que estava morta, recusava-se a ir para o Céu e simplesmente voltava para o útero da
mãe. Como se esperava que 1950 entendesse isso? Ao fim do espetáculo, Ziembinski
chegou esbaforido para Nelson:
— Nelson, estão me perguntando o que significa o jarro, o que significam as botinas.
O que eu digo?
— Diga que não significam nada. — respondeu Nelson, amargurado. Quem
entendeu, entendesse. Quem não entendesse, azeite. O próprio Ziembinski,
segundo Nelson, não tinha entendido a peça: em suas mãos, Dorotéia deixou
de ser “uma farsa irresponsável” e tornou-se uma tragédia explícita, o que
atrapalhava o seu entendimento. Na concepção de Nelson, jarro e botinas não
eram metáforas de nada, eram a própria realidade e, por isso, aquela era uma
“farsa irresponsável”. Sem essa escandalosa “irresponsabilidade”, o absurdo da
história não se sustentaria e a exuberância poética dos diálogos perderia a força.
Nelson já não podia fazer nada por Dorotéia. Os críticos, entre os quais Paschoal
Carlos Magno, arrasaram-na.
Um jovem que estava na plateia de Dorotéia ficou deslumbrado. Ele iria ver a peça
cinco vezes: era o futuro crítico Paulo Francis. Mas, quando Francis pôde exaltar a
peça em um artigo, classificando-a como um dos maiores espetáculos já produzidos
no Brasil, muitos anos tinham se passado e até Nelson já dava Dorotéia como morta.
A maravilhosa Dorotéia aguentou apenas treze dias em cartaz. Menos que qualquer
comediota do Teatro Recreio. Nelson fechou a peça, pagou todo mundo, voltou de
bonde para casa e começou a pensar seriamente na vida. Depois, queixou-se para
Antônio Callado:
— Dorotéia é o maior fracasso do Ocidente. Nem minha mãe gostou.
Claro, ela também ainda não conhecia Ionesco e Beckett, os “inventores” do teatro
do absurdo...
Dorotéia
Quando se tratava de Nelson Rodrigues, não era incomum que espectadores exaltados
se manifestassem durante o espetáculo, protestando contra alguma cena ou fala.
“Protesto em nome da família brasileira!”, gritou um deles na estreia de O Beijo no
Asfalto, em meados de 1961. Todos se voltaram para ele: os outros espectadores, o
elenco, os contrarregras. Era como se aquele homem de gravata, sobraçando uma
honesta pasta, representasse ali, na plateia do Teatro Ginástico, a típica célula familiar
brasileira de 1961, composta de marido, mulher, amante, um casal de filhos, a sogra,
a cunhada, o gato e a empregada. Alguém ainda tentou reagir, mandando-o calar a
boca, mas outras vozes se juntaram à do homem de pasta.
O motivo da revolta era uma fala de Selminha, interpretada por Fernanda Montenegro,
quando ela tentava defender a virilidade de seu marido Arandir (Oswaldo Loureiro)
contra as insinuações do delegado Cunha (Ítalo Rossi) de que Arandir seria
homossexual. Ela gritava: “Eu conheço muitas que é uma vez por semana, duas e, até,
15 em 15 dias. Mas meu marido, todo dia! Todo dia! Todo dia! [num berro
selvagem] Meu marido é homem! Homem!”.
A insurreição da plateia só não foi adiante porque maridos
em quantidade apreciável, talvez pouco assíduos em suas
obrigações domésticas, tomaram suas mulheres pelo
braço e retiraram-se masculinamente do teatro.
Fernanda Montenegro tinha levado quase dois
anos para extrair uma peça de Nelson para
a sua companhia, o Teatro dos 7.
Tinha-o procurado pela primeira
lhe prometera a peça. No
entanto, só em fins de 1960
Nelson procurou-a, a ela e a
seu marido, Fernando Tôrres,
Ele tinha escrito a peça em 21 dias, inspirado
na história de um velho repórter do Globo, Pereira Rego, que
fora atropelado por um tipo de ônibus antigo, chamado arrasta-a-sandália, em frente
ao Tabuleiro da Baiana, no largo da Carioca. Ao ver-se no chão, perto de morrer, Pereira
Rego pedira um beijo a uma pessoa que se debruçava para socorrê-lo. Era uma jovem.
Nelson fez com que o atropelado na praça da Bandeira pedisse o beijo a um homem, a
Arandir. Um repórter, Amado Ribeiro, da Última Hora, presenciou o atropelamento e o
beijo. Anotou o nome e o endereço do atropelado e do outro, e procurou um delegado
decadente, a quem propôs criar um caso em cima daquele beijo no asfalto. Pederastia
na via pública — um escândalo para vender jornal e parar a cidade. O repórter e o
delegado forjaram testemunhas e transformaram o que fora um beijo de piedade num
caso amoroso entre dois homens.
Última Hora estampa o caso em manchetes e em toda a cidade só se fala no beijo
no asfalto. Arandir, o rapaz que tinha dado o beijo, começa a ser perseguido no
trabalho e se demite; seu sogro, que não gostava dele como genro, intriga-o com sua
mulher; e até esta começa a duvidar. Quando a história ameaça esfriar, Amado Ribeiro
(interpretado por Sérgio Britto) transforma o caso num crime e reúne indícios para
provar que Arandir tinha empurrado o sujeito para debaixo do lotação. É puro Kafka,
o Kafka de O Processo. Uma cidade inteira acredita no homossexualismo de Arandir. É
esmagador porque, agora, até sua mulher passou a acreditar. Ele é o único que sabe a
verdade — uma voz solitária contra a unanimidade.
Entretanto, O Beijo no Asfalto não foi um sucesso tranquilo. Apesar de ocasionalmente
se ouvirem gritos de protesto na plateia, Nelson tivera de ser convencido pelos
Fernandos — Tôrres e Montenegro — a tornar o texto um pouco mais ofensivo,
salpicando-o com alguns palavrões. Foi quando muitos se deram conta de que, até
então, nenhuma peça de Nelson contivera um único palavrão!
A contragosto, Nelson enxertou alguns nomes feios no texto. Quer
saber quais eram? “Chupão”, “gilete” e “barca da Cantareira”,
nenhum deles a ser dito por Fernanda, mas pelo repórter e
pelo delegado, dois boçais. Com ou sem aquelas palavras,
no entanto, O Beijo no Asfalto teria o mesmo impacto.
A pecha de reacionário também era assumida ali pela
primeira vez por Nelson — isso numa época, em pleno
governo Jango, em que as cobranças eram
tão intensas na área cultural que
até os concretistas estavam
Asfalto, a voz solitária contra a
unanimidade.
divertido de sua história”, escreveu Nelson. “Hoje em dia,
chamar um brasileiro de reacionário é pior do que xingar a mãe.” E continuava: “Sou o
único reacionário do Brasil! E, no entanto, vejam vocês: como é burra a burguesia! Eu,
com todo o meu reacionarismo, confesso e brutal, sou o único autor perseguido do Brasil,
o único autor proibido, o único que, até hoje, não mereceu jamais um mísero prêmio. Pois
bem. Enquanto a classe dominante me trata a pontapés e me nega tudo, que faz com
os outros? Sim, que faz com os autores altamente politizados? A burguesia os trata a
pires de leite, como gatas de luxo. O Dias Gomes, com o seu Pagador de Promessas, fez
um rapa de prêmios. O Flávio Rangel não dá um espirro sem que lhe caia um prêmio na
cabeça. O meu amigo Augusto Boal, premiado. O Vianinha, premiadíssimo.”
Nesse ponto, o mundo seria coerente com Nelson. Ele morreu sem jamais receber um
prêmio de teatro.
Nelson vs. Marx: o reacionário libertário
Não se pode dizer que a posição política de Nelson — anticomunista feroz, como sempre houve
muitos na imprensa — tivesse acontecido porque as esquerdas nunca se mobilizaram para defendê-
lo quando ele era perseguido pela censura. Isso também aconteceu, mas, na verdade, o apego ao
indivíduo e à aversão a qualquer coletivismo já vinham de muito antes em Nelson. Porém, justiça seja
feita: ele nunca deixou que a política contaminasse seu teatro.
Em 1964, Nelson apoiou a ação militar, como fizeram muitos outros de seus ilustres contemporâneos.
A diferença é que eles se livraram daquela craca, enquanto Nelson continuou agarrado à sua. Com
isso, comprou briga com quase toda a intelligentsia brasileira. Mesmo assim, continuou profundo
amigo de pessoas que, como ele, não confundiam amizade com política, como Helio Pellegrino e
Antonio Callado. Para debater as posições políticas de Nelson, o SESI-SP convidou seu filho, Nelson
Rodrigues Filho, adversário do regime que seu pai defendia; o jornalista Otavio Frias Filho, diretor de
redação da Folha de S.Paulo; e Wilson Figueiredo, um dos mais experientes profissionais em exercício
no jornalismo brasileiro.
Nelson Rodrigues tinha trânsito livre na televisão. Sua obra, não. Desde os anos 1960, sua presença era
requisitada na telinha, tanto como debatedor na Grande Resenha Facit, uma mesa-redonda de futebol, que
ia ao ar aos domingos, a partir das 22h, como na condição de entrevistado. Nelson teve vários programas,
em que podia comentar a atualidade, um deles foi A Cabra Vadia, em que contracenava com uma cabra que
pastava ao seu lado. Todos de grande sucesso.
Entretanto, quando se tratava de sua ficção, a barra pesava. Escreveu três novelas para a então poderosa TV
Rio: A Morta sem Espelho, em 1963; e Sonho de Amor e O Desconhecido, ambas em 1964. Suas estrelas eram
Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg, Sergio Britto e Jece Valadão. Porém, a censura não lhe dava trégua.
Todo dia empurrava as novelas para mais tarde da noite, até torná-las impraticáveis.
Para debater a presença de Nelson na televisão, o SESI-SP convidou duas de suas estrelas — as grandes
Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg — e Daniel Filho, que, mais de 15 anos depois da morte de Nelson,
conseguiu produzir na TV Globo nada menos que os contos ousadíssimos de A Vida como Ela É... — e não
num horário impossível, mas em pleno Fantástico, aos domingos.
Dia 15 de agosto
Nelson na televisão: o maldito do horário nobre
Em 1962, na marquise do Teatro Maison de France, na avenida Presidente Antônio
Carlos, piscava o título da nova peça de Nelson Rodrigues: Otto Lara Resende ou
Bonitinha, mas Ordinária. Para desespero de Otto Lara, seu nome — por extenso —
vinha em letras menores, mas era visível do mesmo jeito e estava acoplado àquela
coisa de "bonitinha, mas ordinária". O que iriam pensar? Que a bonitinha, mas
ordinária era ele! O culpado de tudo, como sempre, era o Hélio Pellegrino, resmungava
Otto. Era o Hélio que estimulava essas brincadeiras sádicas do Nelson.
— O Otto vai adorar, Nelson. Vai até se oferecer para pagar o gás néon! Na verdade,
ser o título da peça (e de uma peça como aquela) deixou Otto Lara Resende
profundamente irritado. Tanto que ele não foi ver o espetáculo. E não era por falta de
tempo: ficou cinco longos meses em cartaz. Nelson mobilizou todos os amigos, não se
conformava com que ele não visse. “Mas até o Tancredo já viu, Otto!”, argumentava.
Não ir ao teatro era a única vingança ao alcance de Otto, porque, de resto, não podia
fazer nada, nem reclamar. Há muito tempo tinha descoberto que, quando se tratava
de qualquer coisa que Nelson escrevesse a respeito de alguém, se esse alguém não
gostasse devia ficar quieto. Se não, aí é que ele falava mesmo. Agora era a vez de Otto
seguir o próprio conselho. Tinha de fingir que não se importava de ver o seu nome nos
anúncios, nos cartazes, nas críticas, na fachada do teatro, na boca dos personagens e
da plateia. Otto podia não dizer nada, mas seu mal-estar chegou a Nelson através dos
outros. Nelson se defendia:
— Mas o título da peça é a verdadeira estátua, o busto de corpo inteiro do Otto! —
dizia. Outros queriam saber se Otto iria brigar com Nelson. A briga nunca chegou a
acontecer e Nelson também comentou:
— Assim é o mundo. Impotente de sentimento, o ser humano precisa ver o desamor por
toda parte. Ninguém admite que o nome de minha peça é uma homenagem, apenas
uma homenagem, uma cândida, límpida, inequívoca homenagem. Não tão inequívoca.
Em Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária, doutor Werneck, um milionário,
oferece a Edgar, um simples boy de sua empresa, a oportunidade de casar-se com sua
filha, Maria Cecília, que tinha acabado de ser estuprada por cinco homens negros num
lugar deserto, talvez Floresta da Tijuca. Defeito no motor, o carro parou, ela desceu, os
sujeitos apareceram e já sabe. É preciso salvar as aparências, casá-la o quanto antes.
E Maria Cecília é jovem e linda, as mulheres que saem na capa de Manchete não lhe
Dia 22 de agosto
Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária
chegam aos pés. Para completar, o intermediário de doutor Werneck — seu genro
Peixoto, sujeito sem qualquer moral — oferece um cheque astronômico a Edgar, um
“adiantamento” em relação ao que ele receberia se topasse. Muitos topariam, e na
hora. Acontece que Edgar gosta de Ritinha, tão pé-rapada quanto ele e que, embora
ele não saiba, sustenta a mãe louca e as três irmãs prostituindo-se. O dilema dá-se
entre a consciência de Edgar e uma frase de Otto Lara Resende que Edgar leu não
sabe onde: “O mineiro só é solidário no câncer”. Era uma outra maneira de dizer,
como Dostoiévski, que, se Deus não existe, tudo é permitido, ninguém precisa ter
escrúpulos, moral, sentimentos, nada.
Edgar quer e não quer acreditar na terrível frase de Otto, mas, para todo lado que
se vira, vê a frase sendo confirmada. Não é só o mineiro, mas todo mundo. Ninguém
tem escrúpulos. Só no câncer. Conclui no final que o verdadeiro câncer é a frase de
Otto — e que, se não acreditar nela, estará salvo. Naquela época, Nelson Rodrigues
tinha se separado da mãe de seus filhos e estava casado com uma bonita grã-
fina, décadas mais jovem do que ele e saída de uma família bem posta na vida e
maciçamente conservadora. Eles não gostaram nada daqueles ataques aos ricos. Era
natural também que Otto Lara Resende se sentisse incomodado. Seu nome e sua
suposta frase eram citados 47 vezes no texto. Imagine o efeito disso no espetáculo.
Na primeira vez em que Edgar cita Otto, e logo na primeiríssima cena, Peixoto ainda
pergunta: — Otto Lara? Um que é ourives? — Ourives? Onde? O Otto escreve. O
Otto! O mineiro, jornalista! Tem um livro. Não me lembro o nome. Um livro! A partir
daí, nome e frase pontilham a ação de Nelson como uma ladainha. Peixoto também
adere à frase e passa a repeti-la, só que, para um canalha como ele, ela é a verdade
irrespondível. O mineiro só é solidário no câncer. No terceiro e último ato, nome e
frase eram mencionados 18 vezes! O espectador saía do teatro com aquilo na cabeça.
E não adiantava o próprio Edgar dizer que a frase era só uma imagem, que “mineiro”
e “câncer” eram metáforas.
Nem adiantaria a Otto jurar que nunca dissera aquilo — e que, como outras, a frase
fora uma invenção de Nelson atribuída a ele. Nunca se livraria dela e, um dia, chegaria
a compará-la a um rabo de papel que Nelson lhe tivesse pregado. Além disso, como
Otto sabia muito bem, podia ser que, num momento de distraída inspiração, e nem
que fosse de outra maneira, ele realmente tivesse dito a bendita frase.
Depois da unanimidade nacional a que fora promovido com Vestido de Noiva, Nelson
Rodrigues se dizia cheio de “ex-amigos” por causa de Álbum de Família — juntando
nesse balaio tanto os que haviam atacado a peça como os que não lutaram como
deveriam pela sua liberação. A peça seguinte, Anjo Negro, passou 1947 inteiro sem
saber qual seria o seu destino. E agora Nelson se preparava para lutar por outra peça
escrita naquele ano: Senhora dos Afogados.
Ela seria também proibida em janeiro de 1948, na mesma época que Anjo Negro.
Com duas proibições simultâneas, Nelson tentou salvar Anjo Negro, que já estava em
produção, e conseguiu. Mas Senhora dos Afogados não teria a mesma sorte. Assim que
a peça recebeu o carimbo de interdição, Nelson propôs ao ministro da Justiça a criação
de uma “comissão de intelectuais” para analisar o caso e decidir se a peça devia ou
não ser liberada. O ministro Adroaldo Mesquita da Costa achou razoável e deixou
que Nelson sugerisse três nomes para formar a comissão que iria julgar Senhora dos
Afogados.
Nelson podia ter escolhido Manuel Bandeira, Prudente de Morais Neto e Pompeu de
Souza. Seria uma goleada. Mas preferiu ser honesto e político: escalou Gilberto Freyre,
Olegário Mariano e Alceu Amoroso Lima.
Os três eram respeitáveis, moralmente insuspeitos. Nelson sabia que dois votariam
a seu favor. Por acaso, os dois pernambucanos: Gilberto Freyre, porque o admirava e
era grande fã de seu irmão Mário Filho; e Olegário, porque era velho amigo e protetor
de sua família desde a chegada de Mário Rodrigues ao Rio, em 1915. O voto contra
viria, naturalmente, de Alceu. Mas, com isso, ele teria 2x1 a seu favor, e Senhora dos
Afogados iria à cena assim que Anjo Negro encerrasse a carreira. Os três aceitaram ser
juízes e Nelson distribuiu as cópias. Dias depois, veio o resultado: por 2x1, a proibição
estava mantida!
O voto contra, que Nelson não esperava, tinha sido de Olegário Mariano. Nelson ligou
para Olegário e chamou-o inclusive de cachorro. Olegário, do outro lado, respondeu
no mesmo volume.
Mas, anos depois, Nelson reconheceria que, aos 59 anos, em 1948, o espantoso seria
se Olegário tivesse aprovado Senhora dos Afogados. Naquela época, o velho poeta
já não era o único a olhar para Nelson com um sentimento de má vontade. Nelson
percebia isso. Em apenas dois anos, tinha tido duas peças proibidas (Álbum de Família
e Senhora dos Afogados) e uma que escapou por pouco da guilhotina (Anjo Negro).
E alguns de seus admiradores começavam a abandoná-lo. O poeta Augusto Frederico
Schmidt, por exemplo, um dia lhe perguntou:
— Por que você insiste na torpeza?
Dia 29 de agosto
O próprio Manuel Bandeira já sugeriu a Nelson:
— Por que você não escreve sobre pessoas normais?
Nelson não teve coragem de responder que suas peças tratavam de pessoas como
Bandeira, como ele próprio, Nelson, e como todo mundo.
Passaram-se cinco anos. O ano era 1953 e Getúlio era de novo presidente. Tancredo
Neves era seu ministro da Justiça. E Otto Lara Resende, grande amigo de Nelson,
era conterrâneo e amigo de Tancredo Neves. Senhora dos Afogados foi finalmente
liberada.
Nelson ofereceu a peça ao TBC, em São Paulo, que a recusou. As hipóteses variavam:
Nelson seria “carioca” demais para São Paulo ou, como se dizia, “brasileiro” demais
para o TBC. Ou muito forte para a plateia paulistana de 1953. E, de fato, hoje, parece
difícil imaginar Senhora dos Afogados dentro da estética clean do TBC. Não pela
cena em que dona Eduarda diz à sua filha Moema: “Desce e vem chamar tua mãe de
prostituta”; mas pelas referências aos eczemas da cafetina, aos peixes que comem
apenas um dos lados do rosto dos afogados, às mãos decepadas e sangrentas da
protagonista. A plateia do teatro da rua Major Diogo não se sentiria bem nas suas
casacas de quatrocentos anos.
Senhora dos Afogados terminaria sendo levada no ano seguinte, em 1954, ao Rio, e
pela mesma Companhia Dramática Nacional do SNT. A direção foi de Bibi Ferreira; os
cenários, de Santa Rosa; as estrelas, Nathalia Timberg e Sônia Oiticica; e o palco, o do
Municipal.
Antes de o pano subir, um político foi cumprimentar Nelson e Santa Rosa no camarote:
o ministro da Justiça de Getúlio, Tancredo Neves. Mas, mesmo na presença de
Tancredo, a plateia do Municipal vaiou Senhora dos Afogados. E não foi apenas uma
vaia, foi uma batalha.
Assim que a peça terminou, a plateia dividiu-se em dois grupos, ambos disputando
para decidir quem gritava mais alto: os que aplaudiam e os que insultavam. Eram
coros de “Gênio!” e “Tarado!” e não se sabe como uma metade não saiu aos tapas
com a outra. A jovem Nathalia Timberg, que fazia aquela noite a sua estreia como
profissional, estava atordoada. E mais atordoada ficou quando Nelson surgiu no palco
e desafiou os que o vaiavam, gritando:
— Burros! Zebus!
Alguns ameaçaram subir para agredi-lo. Dois ou três do elenco pegaram Nelson pelo
braço e o levaram para a coxia, afogueado e respirando com dificuldade. Até então,
para Nathalia, a imagem de Nelson era a de uma enorme fragilidade. E ali, no palco,
defendendo a sua peça, era como se o autor de Senhora dos Afogados tivesse tirado de
dentro de seu terno da Ducal um leão que ela não suspeitava que existisse.
O cinema brasileiro custou a descobrir Nelson Rodrigues. Ou descobriu-o até cedo, mas não ousou
filmá-lo. O primeiro filme baseado em uma de suas obras foi Boca de Ouro, produzido por Jece
Valadão e dirigido por nada menos que Nelson Pereira dos Santos, em 1962, vinte anos depois que
Nelson começara sua carreira no teatro. No restante da década, vieram vários outros Nelsons. Depois,
uma pausa — até ele ser retomado em 1973 por Arnaldo Jabor, com Toda Nudez Será Castigada. Veio
então o megassucesso A Dama do Lotação, de Neville d’Almeida, em 1978, e isso abriu a porta para
mais uma série de filmes baseados em Nelson, mas com grande apelo erótico e popular. De alguns
anos para cá, ele está sendo retomado, mas de um ângulo mais sóbrio. Para debater sua presença no
cinema, o SESI-SP convidou nada menos que Nelson Pereira dos Santos, o primeiro a colocar Nelson
na tela, e Neville d’Almeida, que o popularizou de vez. Além de Claudio Torres, que representa o novo
enfoque sobre Nelson.
Nelson no cinema: visto por seus diretores
Pouco depois da Copa do Mundo de 1958, Nelson Rodrigues encontrou Millôr Fernandes
e Paulo Mendes Campos, deu a cada um uma cópia de sua nova peça, Os Sete Gatinhos,
e advertiu: — Eu sei que vocês vão achar sensacional. E não me venham com pequenas
restrições!
Nelson nunca soube se Millôr teve grandes ou pequenas restrições a Os Sete Gatinhos.
Mas a opinião de Paulinho Mendes Campos saiu melhor do que a encomenda: ele achou
a melhor peça de Nelson Rodrigues. “É um dos trabalhos mais belos, mais fortes e mais
impressionantes do teatro mundial contemporâneo”, escreveu.
Paulo Mendes Campos contestou a velha tese de que o teatro é uma casa destelhada que
se pode xeretar; nas peças de Nelson, segundo ele, o teatro podia ser a tal casa destelhada,
mas com o espectador lá dentro, nu, “despido dos convencionalismos com que cobria suas
próprias vergonhas”.
E olhe que na casa de Os Sete Gatinhos morava uma família em que as quatro irmãs se
deixavam prostituir pelo pai para que a caçula se casasse virgem. Enquanto isso, alguém,
que não vou dizer quem, rabiscava palavrões na parede do banheiro.
“Como se o autor quisesse dizer-nos”, escreveu Paulo Mendes Campos, “que, neste
mundo corrompido pela hipocrisia, está se realizando o incrível e inelutável milagre:
a puta transformada em vestal da virgindade. Em outras palavras, só as prostitutas são
conscientes do valor da virgindade”.
Para ele, pouco se lhe dava que os conceitos de Nelson a respeito do bem e do mal lhe
parecessem preconceitos: “O mundo perde sempre um pouco da sua potencialidade trágica
quando um preconceito é destruído. Se admitirmos, por hipótese, um mundo mentalmente
asséptico, varrido de todos os preconceitos, o drama e a tragédia desaparecerão dos
palcos”.
Isso, dito numa época em que nem se sonhava com a febre do “politicamente correto”,
não era pouca coisa.
Em 1958, não havia ainda muitos indícios de que os preconceitos estivessem sendo
varridos, exceto para baixo do tapete. Na estreia de Os Sete Gatinhos, em outubro daquele
ano, Paschoal Carlos Magno saiu do teatro dizendo:
— É uma pena que esse autor, dos mais importantes do Brasil em todos os tempos,
desperdice o seu talento com a imundície.
E olhe que Paschoal tinha sido amigo do irmão de Nelson, Roberto Rodrigues, e se dava
bem com toda a família. Se Paschoal conhecia Nelson tão bem, por que reagia daquele
jeito? Porque era uma besta, achava Nelson.
A respeito de Os Sete Gatinhos, outro crítico acusou Nelson de “exploração
ignominiosa e lucrativa de crimes torpes” e de “deleitar-se com a podridão”. Da
mesma forma como tinha acontecido na época de Anjo Negro, voltaram a ser feitas
estatísticas dos incestos, mortes violentas, suicídios, taras e, agora, lesbianismo em
suas peças. Às vezes, parecia
cômico a Nelson que ninguém
enxergasse o óbvio. Foi o que ele
disse no programa de televisão de
Gilson Amado:
— Minhas peças são obras morais. Deveriam ser
encenadas na escola primária e nos seminários.
Os Sete Gatinhos era, nominalmente, uma produção de seu irmão, Milton, mas o grosso
do dinheiro saíra do bolso de Leonardo Bloch, um dos diretores de Manchete. E retornou
com lucros, porque, da estreia ao encerramento, quase três meses depois, o espetáculo teve
lotação esgotada e foi aplaudido em pé — talvez pelo colorido “social” do texto. A família
de seu Noronha (interpretado por Jece Valadão, de peruca branca) era da baixa classe
média e morava numa rua pobre do Grajaú. Ele se fazia passar por funcionário da Câmara
dos Deputados quando na verdade era um humilde contínuo, aquele que serve cafezinho.
Um dos momentos culminantes do espetáculo era quando uma de suas filhas, resumindo
o que ela considerava de mais insignificante na espécie humana, o insultava:
— Contínuo!
Nelson não gostava de interpretações sociologizantes de suas peças. “Para mim, seja de
que classe for, seja esquimó ou mandarim, o homem continua sendo o mesmo homem”,
diria ele, anos depois.
Em 1958, não interessavam os motivos do sucesso, Nelson saboreou o triunfo de Os Sete
Gatinhos como se ele fosse um bilhete premiado que achasse na rua. Aliás, ninguém ficou
mais surpreso com esse triunfo do que ele:
— Parece incrível, mas desta vez não me jogaram tomates. — disse.
Era quase como se ele tivesse errado em alguma coisa. Mas Nelson não estava fazendo as
pazes apenas com a plateia. Os melhores críticos, entre os quais Décio de Almeida Prado,
eram quase sempre positivos a seu respeito. É verdade que Décio gostaria que ele não
“fugisse tanto à norma”. Nelson achava graça. Para ele, “fugir à norma” deveria ser, ao
contrário, uma virtude. Décio também fazia restrições ao que considerava de “mau gosto”
em suas peças — como a cena de A Falecida em que o personagem está sentado “à
maneira do ‘Pensador’ de Rodin”, alguém bate à porta e o sujeito responde: “Tem gente!”.
Passeando com Décio pela avenida Atlântica, numa das vezes em que o crítico paulista foi
ao Rio, Nelson defendeu-se:
— Mas, meu coração, ir ao banheiro é a coisa mais natural do mundo. Até você vai!
Dia 12 de setembro
Os Sete Gatinhos
Em 1965, a revista Fatos e Fotos trouxe uma reportagem sobre a nova peça de Nelson
Rodrigues, Toda Nudez Será Castigada. Várias estrelas do teatro foram entrevistadas:
— Li três páginas da peça e a personagem principal me repugnou. — declarou a atriz
Gracinda Freire à revista.
Pois é. Gracinda leu três p&a