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El Ombligo de la Justicia:
La apertura en el yo a la novedad de la justa alteridad
André Morais Mendes
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Resumen: Parte central del cuerpo humano, el ombligo es comúnmente visto como símbolo del egoísmo, de
la (ilusoria) “soberanía” del yo – pero el ombligo es también la apertura originaria del yo a los demás: será esta apertura y esta dependencia originarias del yo al otro que nos proponemos enfatizar aquí a fin de sobresalir la relevancia de la relación del yo con el otro como Justicia (Lévinas/Derrida).
Como tribunal (justicia/derecho), Lévinas nos recuerda que el Sinedrio se encontraba en el ombligo del mundo – es de esta circularidad del ombligo, síntoma de la reducción de la diferencia por un yo autonómico y autocrático a la suya mismidad, que, con Lévinas, pasaremos a la disposición semicircular del Sinedrio como círculo interrumpido, como ombligo abierto a la alteridad, a la novedad, a la excepcionalidad de la Justicia que, según este filósofo, “bien ordenada, empieza por el otro” (Lévinas, 1961). Esta Justicia es “la justicia que excede la justicia” (Lévinas, 1974), de que, con Derrida, mostraremos la importancia de la mejora constante del edificio jurídico instituido y para el abrir de puertas para una vida a cada paso re-inventada, para nuevos horizontes labrados por el compromiso de una respuesta responsable a los desafíos que el mundo contemporáneo nos coloca.
Palabras claves: Justicia – Ombligo – Responsabilidad – Otro - Deconstrucción - Aporía
O Umbigo da Justiça: a abertura no eu à novidade da justa alteridade Resumo: Parte central do corpo humano, o umbigo é comummente tido como símbolo do egoísmo, da
(ilusória) “soberania” do eu – mas o umbigo é também a originária abertura do eu a outrem: será esta abertura e esta dependência originárias do eu ao outro que nos propomos enfatizar aqui a fim de salientarmos a relevância da relação do eu ao outro como Justiça (Lévinas/Derrida).
Como tribunal (justiça/direito), Lévinas lembra-nos que o Sinédrio se encontrava no umbigo do mundo – é desta circularidade do umbigo, sintoma da redução da diferença por um eu autonómico e autocrático à sua mesmidade, que, com Lévinas, passaremos à disposição semi-circular do Sinédrio como círculo interrompido, como umbigo aberto à alteridade, à novidade, à excepcionalidade da Justiça que, no dizer deste filósofo, “bem ordenada, começa pelo outro” (Lévinas, 1961). Esta Justiça é “a justiça que excede a justiça” (Lévinas, 1974), de que, com Derrida, mostraremos a importância para o aperfeiçoamento constante do edifício jurídico instituído e para o abrir de portas para uma vida a cada passo re-inventada, para novos horizontes lavrados pelo compromisso de uma resposta responsável aos desafios que o mundo contemporâneo nos coloca.
Palavras-chave: Justiça – Umbigo – Responsabilidade – Outro – Desconstrução - Aporia
Licenciando-se em Direito e havendo obtido o grau de mestre em Direito Civil (pela Universidade de Coimbra) com a tese Limites da Responsabilidade do Fiador, o autor muito cedo se apercebeu do seu gosto pelo filosófico, realizando presentemente a Licenciatura em Filosofia na mesma Universidade. Contactando com múltiplos pensamentos e leituras, teve o privilégio de ser iniciado à escuta da obra de Emmanuel Lévinas e de Jacques Derrida pela Professora Fernanda Bernardo, a quem manifesta, aqui, os mais sinceros agradecimentos pelas sábias palavras, generosamente cedidas durante os cursos leccionados, e pelos esclarecimentos prontamente prestados, os quais habitam, animam e possibilitam o trabalho que se segue.
Inscreve-se ainda uma palavra de sentido apreço ao Professor Anselmo Borges cujo pensamento permitiu ao autor alargar a sua reflexão filosófica.
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Que significa dizer “olhar para o seu próprio umbigo”?
Quando olhamos para o nosso umbigo, o que é que vemos?
Trata-se de um eu, cheio de si, que olha para si?
Não será que ao observarmos o nosso umbigo, localizamos já a grande marca,
corporalmente inscrita, da nossa dependência ao outro?
Olhando o nosso umbigo, não nos interrogaremos acerca da origem de tudo e do
papel fundamental do outro? E de que origem falamos? Será ela justa? Se sim,
poderemos afirmar que a justiça está na origem?
Que novidades, que respostas poderemos dar aos complexos desafios que o
mundo hodierno nos coloca se soubermos olhar, aproximando, o nosso justo umbigo?
Será tendo em mente tais questões que, com Emmanuel Lévinas e com Jacques
Derrida, procuraremos dar a escutar a urgência de uma resposta responsável, exigente,
hiper-ética, humana… ab-solutamente justa!
1. O Justo Umbigo do Mundo
Pretendendo aproximar a origem, Lévinas escuta não só o legado helénico - a
Grécia, mas ainda a herança bíblica – a Bíblia. É neste sentido que o autor defende que
Europa é Bíblia e Grécia. Na verdade, tudo é tradução de tradução do intraduzível
originário. A Grécia é tradução da Bíblia, a Bíblia, por sua vez, é tradução do
intraduzível originário (arché).
Enraizado no Judaísmo, Lévinas perscruta o legado grego e, para choque de
muitos, asseverou que ele encerrava ainda uma civilização bárbara. Sócrates e Platão,
tal como afirmaria Nietzsche, marcam a degenerescência da Filosofia que assim nasce a
morrer. É imperativo reactivar o sentido da Filosofia.
Assim sendo, Lévinas recorre aos Textos Sagrados, ao Antigo Testamento, como
primeira grande interpretação do mundo, aí encontrando o amor pelo outro sem
concupiscência e a justiça como misericórdia e compaixão pelo mundo, pelo próximo.1
O esquecimento, pela civilização ocidental, do cuidado incondicional pelo outro
impõe o retorno à matinalidade de modo a se encontrar o que havia sido
determinantemente olvidado.
Será esta (re)descoberta que Lévinas pretenderá inscrever na ocidentalidade.
1 Cf. LÉVINAS, Emmanuel, “Philosophie, Justice et Amour” in Entre Nous, Paris: Éditions
Grasset & Fasquelle, 1991, p. 121.
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O Homem desperta, humaniza-se, conquista-se quando se encontra com o outro,
na sua relação ao outro, como a grande experiência que vai para lá do saber.2
Para esta tarefa é preciso ter em conta não só o contributo da Filosofia, mas
ainda o do Judaísmo.
É neste sentido que Lévinas nos dará a escutar um texto do Talmude –
Sanhédrin3 (Sinédrio).
Em poucas palavras, o sinédrio trata-se de um tribunal judaico.
O texto que Lévinas escolheu examinar dá conta, precisamente, da composição,
da organização e do funcionamento de tal instituição. Isto parece-nos relevante na
medida em que o modo de pensar o sinédrio reflectirá ainda o pensamento judaico,
interpretado por Lévinas, acerca da justiça.
Entendemos até que o sinédrio poderá ser encarado como uma metáfora para a
Filosofia levinasiana, a qual preconiza “o humano enquanto humano” e isto é meta-ética
como responsabilidade incondicional pelo outro.
Ora, o sinédrio é formado em semicírculo de modo a que os seus membros se
possam ver uns aos outros, mas nunca de costas. Sempre de face-a-face ou de perfil,
precisamente porque “jamais a relação interpessoal se suspendia nessa assembleia”4.
Mais, Lévinas salienta mesmo que “as pessoas se olhavam no rosto”5, pelo que “jamais
(…) o ‘dialogo’ se interrompia, nem se perdia numa dialéctica impessoal. Assembleia
de rostos e não sociedade anónima.”6.
Para além disto, a forma que o sinédrio toma, a de semicírculo, poderemos ainda
designá-la como um círculo aberto e isto, precisamente porque o tribunal tem de estar
aberto ao mundo exterior e tal é o que entendemos por abertura à alteridade que
encontramos gravada no pensamento de filósofos como Lévinas e Derrida.
O círculo indica encerramento, clausura, autonomia do exterior e traduz também
a dialéctica que, presente nas rodas da quadriga da deusa do poema de Parménides,
mostra o nascimento já degenerescente da Filosofia.
2 Cf. LÉVINAS, Emmanuel, “De l’utilité des Insomnies” in Les Imprévus de l’Histoire,
Montpellier: Fata Morgana, 1994, p. 200. 3 LÉVINAS, Emmanuel, “Quatrième Leçon - Texte du Traité ‘Sanhédrin’” in Quatre Lectures
Talmudiques, Paris: Éditions de Minuit, 1968, pp. 149 a 187. 4 “Jamais la relation interpersonnelle ne se suspendait dans cette assemblée” in ibidem, p. 155. 5 “Les gens se regardaient en face” in ibidem, p. 155. 6 “Jamais (…) le ‘dialogue’ ne s’interrompait, ni se perdait dans une dialectique impersonnelle.
Assemblée de visages et non pas société anonyme.” in ibidem, p. 155.
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Como Lévinas nos dá a escutar, “círculo aberto: os juízes que se colocam no
coração do judaísmo (…) no umbigo do mundo, estão abertos sobre o mundo ou vivem
num mundo aberto”7.
Os juízes são aqueles que estão no coração do Judaísmo, no fundo, falamos aqui
da importância da justiça no pensamento judaico.
A justiça está no umbigo do mundo, o qual é aberto. Diremos até que a justiça,
encontrando-se no umbigo do mundo, é sempre aberta, porque, contrariamente ao uso
comum do vocábulo “umbigo”, o qual traduz egoísmo, a verdade é que o umbigo é uma
das maiores provas da nossa dependência do outro enquanto criaturas finitas e
vulneráveis.
Deste modo, se assim pudermos dizer, o umbigo é abertura, é círculo aberto ao
outro.
A organização semicircular do sinédrio não é casual. Assim, em Kant a
circunferência jamais é interrompida. O sujeito parte de si e retorna a si. O sujeito
kantiano “rumina” a diferença, reduzindo-a a si. O gesto reflexivo é completo. O sujeito
autonómico não reconhece a estranheza.
De outro modo, em Lévinas o sujeito ético não parte de si, uma vez que há um
outro. O movimento a si é interrompido, pois aqui a circunferência está quebrada,
interrompida e tal significa a marca da diferença, da alteridade no próprio sujeito.
Quer isto dizer que em Kant o outro é o meu outro, reduzindo-se a diferença à
sua mesmidade. Já em Lévinas, o sujeito entra em si e no íntimo de si descobre a
diferença, a estranheza, a alteridade.
Ora se os juízes, se a justiça se encontra no umbigo do mundo, perante a nossa
leitura, ela é aberta à alteridade. Recordemos pois, Lévinas que nos diz que “a justiça
consiste em reconhecer no outro o meu mestre”8 e que “a justiça (…) bem ordenada,
começa pelo outro”9, justiça é10 a relação ao outro. O juiz deveria estar sempre exposto
à novidade da alteridade, à excepcionalidade da justiça.
7 “Cercle ouvert: les juges qui se tiennent au coeur du judaïsme (…) au nombril du monde, sont
ouverts sur le monde ou vivent dans un monde ouvert” in ibidem, p. 155. 8 “La justice consiste à reconnaître en autrui mon maître” in LÉVINAS, Emmanuel, Totalité et
Infini, Paris: Kluwer Academic, 2000, p. 68. 9 “La justice (…) bien ordonnée, commence par autrui” in ibidem, p. 69. 10 Na verdade, Lévinas evita utilizar “é” na medida em que, assim, estaria a predicar a justiça.
Trata-se de uma definição não predicativa de justiça. Deste modo, temos “a relação com outrem - quer dizer, a justiça”. Assim, Lévinas obvia as malhas da ontologia. É também este o entendimento de Derrida, acompanhando as palavras de Lévinas em Totalité et Infini, sobre o “conceito” de justiça. Derrida diz-nos “Estaria tentado, até um certo ponto, a aproximar o conceito de justiça – que aqui tendo a distinguir do
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Prosseguindo na descrição do funcionamento do sinédrio, Lévinas mostra-nos a
possibilidade de, neste tribunal, se encontrarem diante dos magistrados dois escrivães,
acreditando-se que ambos teriam a tarefa de registar os argumentos expendidos em
determinado caso. No entanto, note-se que, como nos diz o filósofo, a tarefa destes não
é meramente maquinal, pelo contrário “as pessoas registam”11.
Mais, se há duas pessoas a registar a argumentação, tal significa que uma suporta
a outra, não só para o caso de ocorrer alguma falha, mas também como condição para
comprovar ou atestar determinado facto, para o que se impõe duas testemunhas.
Salienta-se assim a preocupação pela palavra do outro que é registada. A palavra
é endereçada e acolhida, ela não é meramente gravada, por isso se sublinha que “as
pessoas registam”, justamente porque o endereçamento implica que esteja alguém aí, do
outro lado, que escute, que responda, no fundo, que seja responsável imediatamente,
porque a responsabilidade não pode ser maquinal.
Fará ainda mais sentido toda a solenidade envolvida no acto de registo da
palavra se escutarmos Lévinas que define justiça como “dar a palavra ao outro”12, pelo
que se assim é, cremos, os escrivães, na medida em que gravam a palavra, são ainda
testemunhas da justiça.
Um outro pormenor interessante é o facto de o sinédrio ser ainda composto por
três “filas” de estudantes da Lei, da Tora, os quais sabem, de antemão, o lugar que
ocupam entre os seus pares. “Cada um conhecia o seu lugar”13 e também isto nos
reporta à ética de Lévinas, pois saber o seu lugar é ainda saber-se inapelavelmente eleito
para “exercer” a “sua” responsabilidade, a qual não se pode transferir, porque é
incessível. Ser responsável implica ocupar o seu lugar, ter-se como eleito sem
possibilidade de transferência de risco.
A responsabilidade preconizada por Lévinas não tem preço. Se a ética é o
humano enquanto humano, este é responsabilidade incondicional para e pelo outro.
Conhecer o seu lugar, aquele mesmo e não outro qualquer, é tomar consciência
da responsabilidade que é an-árquica e não anárquica, eventual, contingente. Não é direito – do de Lévinas. Fá-lo-ia, justamente, em razão desta infinitude e da relação heteronómica com outrem, com o rosto de outrem que me ordena, de quem não posso tematizar a infinitude e de quem sou refém. Em Totalité et Infini, Lévinas escreve: ‘[…] a relação com outrem – quer dizer, a justiça’ – justiça que, aliás, ele define como ‘rectidão do acolhimento feito ao rosto’” (DERRIDA, Jacques, Força de Lei – O ‘Fundamento místico da autoridade’, trad. Fernanda Bernardo, Porto: Campo das Letras, 2003, p. 36).
11 “Des personnes enregistrent” in LÉVINAS, Emmanuel, “Quatrième Leçon…” cit., p. 156 (itálico nosso).
12 “La justice est un droit à la parole” (LÉVINAS, Emmanuel, Totalité…, cit., p. 332). 13 “Chacun connaissait sa place” in LÉVINAS, Emmanuel, “Quatrième Leçon…”, cit., p. 158.
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possível escolher ou trocar de lugar, porque este é de cada um, é acusação,
singularização, individuação… responsabilidade!14
Estando próximo dos Textos Sagrados, Lévinas dar-nos-á a escutar o Cântico
dos Cânticos (um texto erótico) a partir do qual se fundamentará um tribunal (sinédrio)
e a justiça.
Para o filósofo existe uma relação entre o erótico e a justiça. O erótico, a paixão,
caracterizam-se pela errância, pelo equívoco. A justiça assumiria o papel de dominar
esta “desordem” e seria neste movimento que aquela teria o seu fundamento. A justiça
só pode vingar, precisamente, na medida em que triunfa sobre o erótico, mas para isso é
preciso estar próxima do domínio do vício, i.e. da decadência, da corrupção, no fundo,
do esquecimento.15
O vício, de que Lévinas nos fala, e que faz perigar a justiça, é aquele que corrói
a civilização ocidental, a interioridade, a Pessoa que assim “ne regarde personne”16 e
que a pouco e pouco desfigura a justiça.
Diríamos nós que “justiça” passa então a ser uma designação oca, duplamente
traidora (!), porque para além do desvio que a palavra sempre comporta, como mera
tradutora-traidora da justiça, i.e. da “justiça que excede a justiça”17, a expressão “ne
regarde personne” dá-nos a escutar o esquecimento, a que nos referimos anteriormente,
que nada mais é que o esquecimento do outro, da alteridade em proveito do (im)poder
da egologia.
Ora, o esquecimento do outro traz ainda consigo uma nova traição à justiça,
inquinando-a, colocando-a já ao serviço daqueles que, após uma conveniente
transmutação daquela, a hasteiam, hipocritamente, nela se escudando como defensores
de uma verdadeira justiça.
Do que dissemos resulta então a necessidade de se pensar uma outra “justiça”,
uma justiça “bem ordenada” que encontre, sem apropriar, o seu altíssimo parâmetro na
alteridade.
14 Cf. LÉVINAS, Emmanuel, “Philosophie, Justice…”, cit., pp. 126 e 127. 15 Cf. ibidem, p. 163. 16 Ibidem, p. 163. A realçar será que a significação (em francês) da expressão “ne regarde
personne” (em português teríamos “não olha para ninguém” e “não olha a ninguém”) dá a escutar não só a humanidade presente no olhar, a qual como que é retirada, precisamente por esse olhar não se efectuar, como também o facto de que não olhando para o outro, o outro como que deixa de nos dizer respeito, como se o outro não nos concernisse e isto vai contra a heteronomia-dissimétrica em que a unilateralidade da relação ao outro é ética que nos obriga incondicionalmente perante ele. A expressão aludida mostra frieza e indiferença. Ela é, em suma, o vício que corrói a Pessoa – o esquecimento do outro.
17 “La justice passe la justice” in LÉVINAS, Emmanuel, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, [Dordrecht]: Kluwer Academic, 1974, p. 246.
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A justiça, para Nancy, é um exterior ao mundo, no mundo, i.e. a condição de
possibilidade do mundo não é o mundo, mas a exterioridade absoluta.
São o poeta, o profeta, que estão fora da Pólis, e que esta expulsa como
irresponsáveis, que têm o encargo não reconhecido, a difícil, solitária e singular
responsabilidade de a vigiar. Também para nós, a justiça, como lei anómica, terá de
estar fora da Pólis, pois isto, aquilo que denominaríamos como a não contaminação da
justiça pelo “jogo” jurídico-político, é condição de possibilidade da perfectibilidade do
instituído, o qual tende para o status quo, para a estável “Estatal” inércia redundando em
“necrose”.
É aqui que poderemos notar a heterogeneidade, sem oposição, e a
indissociabilidade entre justiça e direito. Aquela, como “lei das leis” mostra-se como
uma “força” arqui-originária que aperfeiçoa constantemente o direito como instituído. A
justiça é a fonte a partir da qual poderemos (re)pensar e criticar o direito, a política, o
Estado. Contudo, é o direito que traduz, se bem que traindo, a justiça, pois ela não é
apropriável. A justiça dá-se retirando-se.
Reforce-se, porém que se não ocorresse a aludida traição, o pensamento de
Lévinas não passaria de um mero idealismo. A espectralidade, que é a da alteridade,
traduz-se traindo-se, mas não se trata de tradução sem resto, justamente, porque o dizer
permanece no dito.
A ética e a justiça são, pois a insónia do político. É neste sentido que Lévinas
nos diz e nos exorta “politique, après!”18.
Deste modo, o vício, o perigo que espreita a justiça é o da frieza, o da
indiferença perante a diferença, a singularidade, a alteridade, no fundo, perante o
outro.19
Aproximando um pouco mais o sinédrio e o Cântico dos Cânticos, como poderá
a (des)ordem do erótico justificar um tribunal, uma justiça, e como podem estes ainda
nutrir aquele perigo que pretendem dominar?
É com subtileza que Lévinas nos dá a ler o versículo 7, 2 do Cântico “o teu
umbigo é como uma taça redonda cheia de vinho”.
Para o filósofo, o umbigo representa o sinédrio, na medida em que este tribunal
se reúne no umbigo do universo, aludindo-se deste modo à centralidade de Jerusalém20
18 LÉVINAS, Emmanuel, Au-delà du Verset, Paris: Éditions de Minuit, 1982, p. 227. 19 Cf. LÉVINAS, Emmanuel, “Quatrième Leçon…”, cit., p. 163.
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e da justiça da Tora através do sinédrio. É assim que Lévinas entende que se pode falar
de justiça a partir de um texto erótico, “ultrapassando” ou “dominando” este erotismo,
se bem que tal não represente um corte com este último, pelo contrário, preservando-se
com ele uma relação que o filósofo considera essencial.
Tendo o cordão umbilical sido cortado, a criatura separa-se da fonte que a
alimenta, no entanto Jerusalém, o sinédrio, a justiça, estando no centro, no umbigo
encontram-se no rasto da criação. A justiça recorda, pois a origem, a “alimentação
celeste”21, no entanto a ideia de umbigo do mundo não é judaica, mas grega, afirmando-
-se n’As Euménides de Ésquilo que Delfos é o umbigo do universo.22
Não obstante, o Judaísmo tem o seu próprio timbre. A voz de Delfos não é a de
Jerusalém, pelo que será nestas pequenas diferenças “que se abrem os abismos que
separam as mensagens”23.
É tendo isto em mente que Lévinas entende encontrar no sinédrio uma
mensagem minimamente diferente daquelas vociferadas pelos umbigos de outras
nações.
Assim, no versículo 7, 2 do Cântico “o teu umbigo” corresponderia ao sinédrio,
“uma taça redonda” significaria “protecção”, atestando, deste modo, que “umbigo” se
reporta ao sinédrio, na medida em que este, enquanto tribunal, atendendo à etimologia
da palavra, é o protector do universo.
O sinédrio, como umbigo, é o lugar da justiça, grande pilar do universo.
“Taça redonda” seria uma alusão ao semicírculo que o sinédrio forma, com toda
a significação que referimos.
“Cheia de vinho” indica a abundância do líquido que, uma vez mais, Lévinas
julga estar ligado ao sinédrio visto que este funciona com um mínimo de vinte e três
elementos, ocorrendo, sempre que necessário, a substituição de algum deles, para que o
tribunal não deixe de operar.
Ora, a taça redonda cheia de vinho representa o sinédrio, cuja actividade não é
interrompida porque a sua “taça” está sempre cheia.
Este tribunal terá sempre o número mínimo de vinte e três magistrados
independentemente de qualquer eventualidade.
20 Interessante notar, como veremos, que na Grécia, o oráculo de Delfos ostentava uma pedra a
que chamavam de umbigo, na medida em que se acreditava ser o centro do mundo. 21 “Alimentation céleste” in ibidem, p. 165. 22 Recorde-se que também o sinédrio tem origem no synédrion grego. 23 “Que s’ouvrent les abîmes qui séparent les messages” in ibidem, p. 167.
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Quer isto dizer que o centro, o umbigo, o sinédrio, a justiça não cessam, pelo
contrário, perseveram.
Os magistrados podem ausentar-se para atender aos seus assuntos privados,
desde que se mantenha o referido número mínimo, caso contrário a ausência não é
admitida. Significa isto que os cargos públicos, como a magistratura, não devem
justificar um poder pessoal que se sobreponha ao serviço ao outro, que no fundo, é o
outro sempre acima do eu. Não deverá ser sobre o outro, como que o destituindo da sua
permanente injunção sobre o eu, que este construirá o edifício do seu (im)poder. O eu
está obsidiado pelo outro, o eu é refém do outro.
Se as obrigações ao outro estão sempre antes dos interesses individuais, do
egoísmo do eu, então, uma vez mais o sinédrio nos mostra o cerne da meta-ética
levinasiana, a relação heteronómico-dissimétrica. O sinédrio não é indiferente ao outro,
pelo contrário, ele reaviva a relação de não-indiferença ao outro.
Os juízes do sinédrio devem ser pessoas excepcionais. Para julgar outros é
preciso ser-se extraordinário, melhor do que eles. Trata-se de uma exigência absoluta.
Não é por acaso que Lévinas entende a sua ética como justiça. O sujeito ético ou
responsável é também o mais justo. Contudo, não será correcto apelidar alguém como
“justo”, precisamente porque nunca se é suficientemente justo, pois a justiça não pode
ser tematizada.
A justiça é como que uma “força” e, como tal, sob pena de o deixar de ser, não
pode capturar-se. Justiça é renovação, é (re)pensamento. Se assim pudermos dizer,
justiça é desconstrução.24
O juiz tem de ser aquele que está desperto, que é insone, uma vez que deve ter
atenção ao outro que o interpela a todo o tempo. A insónia é a atenção ao outro.
Falamos assim numa exigência utópica, que é bem a da ética levinasiana, aos
juízes. Contudo, se por “utópica”25 entendermos “impossível”, tal não equivalerá a
desistência, mas a perseverança. A persistência no caminho da utopia ou da
impossibilidade é aquela que marcará a diferença, conduzindo à mudança. A
impossibilidade deverá ser sempre pensada como (im)possibilidade, como grito de
encorajamento à perfectibilidade.
24 Cf. DERRIDA, Jacques, op. cit., p. 26. 25 De notar que “utopia” é pensada por Lévinas e por Derrida como o fora do lugar, i.e. u-topos.
A u-topia é o tempo que excepcionaliza o espaço. O tempo passa através do espaço, não se fixando no lugar, porque está sempre por vir. Por isso Shakespeare nos lembra em Hamlet (I, 5) que o tempo está sempre fora dos eixos (time is out of joint).
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Só através de uma exigência (im)possível, levinasiana, levada a cabo por
homens excepcionais, se poderá alcançar uma verdadeira justiça.26
A ossatura do homem é a responsabilidade incessível diante do outro e é neste
“desequilíbrio” da balança que reside o justo.
O julgador que não se satisfaça junto das tentações, que não se deixe sucumbir à
tentação da tentação27, logrará ultrapassá-las.
É no eleito, no singularizado que começará a ética e será ele que terá de
responder pelos outros incondicionalmente. A ética de Lévinas não está comprometida
ideologicamente. As instituições não a anunciam nem a conservam, bem pelo contrário,
tal ética deve vigiá-las e assegurar o seu bom funcionamento. É isto a bondade, o para-
-o-outro, característica da relação ética. A meta-ética é o humano enquanto humano,
abertura incondicional para outrem, prévia ao querer e ao poder da consciência.
A ética levinasiana é sobre-humana, mas começa em cada um de nós, eleitos.
É em tal sentido que, para Lévinas, o discurso, o logos, é sempre apologético,
precisamente porque somos respondentes, começando logo endividados ao outro. O
“eis-me aqui”, pronto a responder, a matinalidade do “sim” como palavra originária - a
Urwort salientada por Rosenzweig - manifestam a primazia de uma “consciência de
responsabilidades”28 em detrimento de uma “consciência de direito”29, na medida em
que somos, imediatamente acusados em vez de “entrar confortavelmente no mundo
como em sua casa, sem pedir licença”30.
Isto é ser exigentemente justo, tendo em vista uma meta-ética,
incondicionalmente responsável, pois somos “amassados” pela responsabilidade que
corre na nossa alma. A responsabilidade somos nós e é isso que permite dizermo-nos
como humanos.
A responsabilidade em Lévinas assume uma dimensão imediatamente praxística,
porque ser responsável é responder em acto. É responsável aquele que age e responde
prontamente diante dos que não têm voz ou que a perderam. Não se trata, pois de mero
ideal, mas de uma exigente tentativa de realização de tal “ideal”.
26 Cf. LÉVINAS, Emmanuel, “Quatrième Leçon…”, cit., pp. 170 e 171. 27 Lévinas fala-nos no perigo da “tentação da tentação do Ocidente”, referindo-se ao saber, o
qual tem comandado os destinos do mundo ocidental em geral. Ensina-nos este filósofo que o saber não deverá ser o grande critério ético orientador, mas sim a humanidade. O homem é sempre um enigma para os outros e para si próprio. O humano não pode ser teorizado porque o humano é o limite do saber.
28 “Conscience de responsabilités” in ibidem, p. 175. 29 “Conscience de droit” in ibidem, p. 175. 30 “Entrer confortablement et sans demander pardon dans le monde comme chez soi” in ibidem,
p. 175.
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O “conceito” de responsabilidade é repensado por Lévinas, o qual abandona a
tradicional re-spondeo que tem inerente um pacto entre dois actores numa relação
simétrica, de reciprocidade. Responsabilidade aqui traduzir-se-ia em resposta a que
implicaria a resposta por. Responder a é responder por si.
Já na meta-ética levinasiana, em primeiro lugar vem a responsabilidade diante
do outro e ela é pelo outro e para o outro. Não é o eu que se faz responsável, mas sim o
outro que torna o eu responsável. Daí a responsabilidade em Lévinas ser infinita,
incondicional e hiperbólica.
É neste sentido que o filósofo, enquanto vítima dos campos de concentração
nazis, aceita responder pelos seus carrascos, pelo mal da civilização.
Trata-se de um gesto de humanidade à altura do que se espera que seja a
humanidade. Atenção absoluta à alteridade! Daí que Lévinas pense a célebre máxima
cristã “amarás o teu próximo como a ti mesmo”31, como “ama o teu próximo, assim és
tu mesmo”32. O outro não é característica nossa. O outro está “presente” no eu,
obsidiando-o. Rimbaud diria “je est un autre”33.
É tendo isto em mente que Lévinas nos exorta e nos ensina afirmando que “para
que o mundo humano seja possível – a justiça, o sinédrio - é preciso que a todo o
momento se encontre alguém que possa ser responsável pelos outros. Responsável!”34.
Daqui retiramos que o sinédrio, a justiça, o mundo dependem daqueles que
aceitem responder pelos outros. A responsabilidade é a incondição do humano. O eu
responde incondicionalmente diante do outro, para o outro e pelo outro.
O eu é refém do outro, pelo que a liberdade de cada um de nós não existe
plenamente. Indubitavelmente, defender tal será um choque para muitos, porém, na
condição de responsáveis pelos outros somos ainda seus reféns, pelo que a nossa
liberdade vem sempre depois da nossa humanidade, da nossa responsabilidade. Para
Lévinas, a liberdade justifica-se em responsabilidade.
É respondendo numa cena heteronómica que o eu afirma a sua liberdade.
31 Levítico 19, 18. Sublinhámos “teu”, uma vez que Lévinas não concordaria com a posse do
outro, da alteridade que nunca se deixa apropriar pelo eu. 32 Cit. por NUNES, Etelvina, Para uma Nova Justiça, nota 75, disponível em
http://www.facfil.ucp.pt/justicaet.htm, (acedido em Maio de 2012). 33 RIMBAUD, Arthur, Première lettre du Voyant (à Georges Izambard, 13 mai 1871),
disponível em http://www.azurs.net/arthur-rimbaud/rimbaud_correspondance_14.htm, (acedido em Maio de 2013).
34 “Pour que le monde humain soit possible – la justice, le sanhédrin -, il faut qu’à tout moment se trouve quelqu’un qui puisse être responsable pour les autres. Responsable!” in LÉVINAS, Emmanuel, “Quatrième Leçon…”, cit., p. 182.
11
A liberdade como autonomia é pura ficção daquele que pensa poder… poder.
Inspirando-se nos ensinamentos do Judaísmo, Lévinas dá-nos a escutar uma
meta-ética (des)centrada “no” outro, a partir da qual se deverá, urgentemente, (re)pensar
a justiça (como direito, o qual deverá passar a ser visto como o direito do outro), a
política, a sociedade… o mundo. É em tal sentido que Nancy advoga que é preciso,
talvez, partir para repensar uma outra civilização.
De facto, Lévinas espera muito de todos nós! Daí que ele afirme que “os homens
encontram o seu lugar no mundo por relação ao Lugar absoluto”35.
Por isso o filósofo nos ensina que o humano está sempre acima do humano, pelo
que o homem é uma promessa.
É isto que poderemos encontrar na meta-ética levinasiana e bem assim na justiça
como ética.
A meta-ética, como resposta constante e imediata à injunção do outro, é
exigência permanente a um eu aberto à alteridade. Não há estagnação, pois nunca se
alcançou a derradeira meta. Há sim um seguir e um perseguir.
Do mesmo modo, a justiça, distinguindo-se de direito, é a desconstrução, a
“passagem” do tal “Lugar absoluto” pelo instituído, sempre vigiado, criticado, o qual,
sucumbindo à resistência da heteronomia dissimétrica, à alteridade, se reinventa.
A grande lição da meta-ética de Lévinas, da responsabilidade heteronómico-
-dissimétrica, é a génese para repensar todo o instituído.
Porque no sinédrio cada estudante da Tora sabe da responsabilidade do lugar que
ali ocupa, o facto de esse estudante ser chamado a ocupar, naquele tribunal, um lugar de
maior relevo do que anteriormente, tem já em si o espírito da meta-ética de Lévinas,
precisamente porque esta ética é o “lugar” onde se coloca o não-lugar.36 Trata-se de
uma ética acima da “ética”, da justiça que excede a “justiça”, da lei das leis. O lugar é o
da “ética”, do direito, das leis, do instituído. O não-lugar é o da meta-ética, da justiça, da
Lei.
O “Lugar absoluto” é o não-lugar, espaço de excepção, de singularidade e
condição de perfectibilidade.
A mensagem de Lévinas é a do profeta que é colocado fora da Pólis, do Estado,
porque é acusado de loucura. Mas isto não é assim. O profeta, o poeta é aquele que
35 “Les hommes trouvent leur place dans le monde par rapport au Lieu absolu” in ibidem, p. 187. 36 Lembre-se que Lévinas nos ensina que a responsabilidade por outrem é o lugar onde se coloca
o não-lugar da subjectividade.
12
protesta contra o Estado que se assimila à política do mundo.37 Ora, o que se pretende
não é meramente um Estado de Direito, mas mais que isso e anteriormente a tal, arqui-
-originariamente, um Estado Ético, o qual é uma ideia bíblica.38
A lição que Lévinas nos deixa na sua leitura do Texte du Traité ‘Sanhédrin’ será
a da necessidade de saber escutar a voz da justiça presente na Bíblia, no Judaísmo.
Trata-se de uma lição que é ainda exortação, grito de rebeldia e de diferença.
Justiça é ainda desafiar os seus pares, acreditar no (im)possível, “colocando-se
em jogo” pelos outros.
Justiça será mesmo decidir contra o direito positivo, para clamor de muitos,
“lugar” ab-soluto, singularidade, excepção, humanidade, desde que, para tal, se atribua a
primazia ao direito do outro. Trata-se de ousadia, manifestação da insegurança do pilar
jurídico-político, o qual, se construído, também pode ser desconstruído… embriaguez
apolínea!
Porque se ainda vivemos numa civilização bárbara é preciso, mais que nunca,
relembrar as palavras de Dostoievski que na sua obra Os Irmãos Karamazov afirma que
“todos somos responsáveis por todos e eu mais que todos os outros”39, acrescentando
Lévinas que “o eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros”40.
Aí, acreditamos, residirá a novidade, a (re)invenção da justiça e assim a
esperança num mundo melhor.
2. O Fundamento Místico da Autoridade: justiça, direito e aporia
Tendo em conta, como vimos, a proximidade do pensamento de Derrida ao de
Lévinas no que concerne à justiça, propomo-nos agora ir um pouco mais longe, ser mais
radicais e mais justos acompanhando as palavras do primeiro filósofo.
Derrida, reforce-se, é um pensador ainda mais exigente e, por isso, mais justo
que Lévinas, na medida em que se este último recua até à Bíblia, Derrida pretende ir
mesmo até antes do Judaísmo e de todas as religiões.
37 Cf. LÉVINAS, Emmanuel, “Philosophie, Justice…”, cit., p. 124. 38 Cf. ibidem, p. 124. 39 Cit. por LÉVINAS, Emmanuel, Ética e Infinito, Lisboa: Edições 70, 2000, pp. 90 e 91. A
tradução varia entre as expressões “culpados” e “responsáveis” (cf. MANCE, Euclides, A Reciprocidade na Dádiva – Condição Ética de Libertação?, p. 2, disponível em http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/reciprocidade.pdf, (acedido em Maio de 2013).
40 LÉVINAS, Emmanuel, Ética e Inf…, cit., pp. 90 e 91.
13
Aspira-se, assim a olhar o avesso do tecido civilizacional, aproximando, deste
modo, a origem. Note-se que a própria Bíblia não seria uma origem, se bem que
remetesse para ela. Ao olhar para trás, Derrida apercebe-se de uma ausência jamais
presentificada e presentificável. A alteridade absoluta é aquilo que está na origem, pelo
que os Textos Sagrados ostentam uma “ferida”, uma “falha” e que é o segredo
originário, o avesso do Texto.
Pretendendo aproximar a origem, o intraduzível, Derrida dar-nos-á a escutar o
fundamento místico da autoridade.
Tal expressão foi utilizada por Montaigne e retomada por Pascal, pretendendo
Derrida dar-lhe uma nova interpretação.
Em Pensées Pascal diz-nos:
“[…] um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador,
outro, a comodidade do soberano, outro, o costume vigente; e isto é o
mais certo: nada, segundo a estrita razão, é justo por si; tudo se altera
com o tempo. O costume faz a equidade, pela simples razão de ser
recebido; tal é o fundamento místico da sua autoridade. Quem a reconduz
ao seu princípio, aniquila-a.”41.
Nos Essais de Montaigne podemos ler:
“Ora as leis mantêm-se credíveis, não por serem justas, mas por serem
leis. É o fundamento místico da sua autoridade, elas não têm nenhum
outro […]. Quem lhes obedece por elas serem justas, não lhes obedece
justamente por onde deve.”.42
Como salienta Derrida, Montaigne ao afirmar que as leis se mantêm credíveis,
não por serem justas, mas por serem leis efectua uma importante distinção entre justiça
e direito.43
Legalidade não equivale a justiça. Uma lei não é cumprida por ser justa, mas por
deter autoridade.
41 Cit. por DERRIDA, Jacques, op. cit., p. 21. 42 Cit. por ibidem, p. 21. 43 Ibidem, p. 22.
14
As leis são credíveis não dependendo tal da sua justeza. É na sua credibilidade
que reside o jaez “místico” da sua autoridade, a qual lhes advém do crédito que se lhes
atribui.
Existe uma crença, uma fé nas leis e que as fundamentam.44
Quando Pascal nos fala da aniquilação da “nossa justiça” perante a “justiça
divina”45 ele ajuda-nos a pensar a diferença entre justiça e direito e ainda o fundamento
místico da autoridade.
A “nossa justiça” equivaleria ao direito, o qual se aniquila diante da justiça
divina, i.e. perante a origem, a justiça.
Será tendo isto em conta que julgamos que Derrida nos fala de uma Filosofia
que critica e que conduz à des-sedimentação, à fragmentação da esfera do direito.
Devemos, pois atentar na justiça e no momento de fundação do direito envolvendo este
uma “força performativa”, i.e. realizadora, e um “apelo à crença”.46
A força ou a violência que Derrida aqui salienta não é aquela que sujeitaria o
direito ou que o moldaria aos diversos interesses. Trata-se do momento violento em que
o direito se funda, dilacerando a homogeneidade da tessitura.
O rasgão do tecido, a violência da instituição do direito, não é justa, nem injusta.
Não existe um direito anterior, nenhum arrimo ou padrão orientador. A impetuosidade
do momento fundador é o que Derrida entende denominar de “o místico”.47
A força performativa “realiza-se” por si mesma, é imediatamente praxística. Daí
se aludir a um apelo à crença, a um “acto de fé” onde reside a credibilidade e a
autoridade das leis (direito) que são já obliquidade, traição da origem. Isto será, para
Derrida, o fundamento místico da autoridade.48
A origem da autoridade tem em si mesma o seu próprio esteio, ela é “violência
sem fundamento”49. No momento da sua fundação, a autoridade não é legal ou ilegal,
mas sim a-legal. Diríamos nós que o “místico” se trata de um limite da autoridade,
“alçapão sem fundo” em que o direito se “apoia”, mostrando o seu (im)poder. No
entanto, tal limite abismal, feliz rasgão no tecido, possibilita a reinvenção do direito, do
instituído.
44 Cf. ibidem, p. 22. 45 Cf. ibidem, p. 23. 46 Cf. ibidem, p. 23. 47 Cf. ibidem, p. 24. 48 Cf. ibidem, p. 24. 49 Ibidem, p. 25.
15
A desconstrutibilidade do direito está no facto de ele ser construído e de o seu
grande fundamento não ser fundado. A sua desconstrutibilidade é a chance do
progresso. A chance é o tempo da justiça, do aleatório, do evento, da promessa, é o
tempo em oposição ao espaço, fora dele, u-tópico, “fora dos eixos”50. Mas, a chance é
ainda possibilidade de “emendar”51, de perfectibilizar o instituído.
Ora, a justiça é o tempo que dá tempo ao tempo. Na justiça apenas se fala no
modo do talvez porque ela não é certa, é o tempo do acaso, de abertura ao porvir.
A justiça não é desconstrutível, em oposição ao direito que, sendo construtível, é
consequentemente desconstrutível.
A desconstrução situa-se no intervalo entre a indesconstrutibilidade da justiça e a
desconstrutibilidade do direito. A desconstrução é possível como uma “experiência do
impossível”52. Este impossível não é presentificado ou presentificável. No impossível
não há ontologia, pois “impossível” é “não poder ser”. Diríamos, assim que a
desconstrução é (im)possível.
Derrida endereça estas questões ao e na língua do seu auditório. Neste
endereçamento e no facto de falar a língua do outro, encontra-se já a justiça. Porque há
endereçamento, há justiça, contudo este é desvio, errância. No endereçamento a alguém
reside a meta-eticidade da desconstrução, mas tal endereçamento na língua do outro é
ainda a uma multidão, perdendo-se, desse modo, a singularidade do destinatário.
A aporia está em nos endereçarmos singularmente ao outro, na língua do outro,
sendo que o endereçamento é a chance de relação ao outro, mas ainda o apagamento da
singularidade do outro.
Note-se que o endereço é sempre singular, contudo o direito envolve a norma, a
regra que, por sua vez, implica generalidade e universalidade.53
O paradoxo reside na questão de saber se é possível harmonizar a justiça,
marcada pela insubstituibilidade, pela singularidade, com a regra, a norma, a abstracção,
50 “Out of joint” in Hamlet, I, 5. 51 “Set it right” in ibidem, I, 5. 52 DERRIDA, Jacques, op. cit., p. 26. 53 Generalidade e universalidade da lei assentam na igualdade de todos os “sujeitos” destinatários
de tais leis. Comparação de “iguais”, homogeneidade… linguajar da metafísica da presença, a qual Derrida pretende desconstruir. Esquece-se aqui a singularidade, o momento de excepção, a incomparabilidade. Lévinas lembraria ainda, em oposição à tradição da ocidentalidade filosófica, a sua extravagante tese advogando que a igualdade brota da desigualdade originária.
16
a generalidade, características da justiça como direito, mesmo quando se regule
atendendo à particularidade do caso concreto.54
A mera aplicação de normas, apoiada no sistema jurídico, é desoneradora, mas
tal não se pode dizer justo. Justiça implica uma certa rebeldia, criatividade, invenção da
norma. A “captura” da justiça pelo sujeito que se arroga como justo, mais não é que
ficção, abstracção, sintoma de impoder.55
A discussão de que Derrida se ocupa, implica a “experiência da aporia”56, que se
relaciona com o que o pensador entende por “o místico”.
“Experiência” é encontrar um percurso até um destino em concreto, ela é
possibilidade lograda.
“Aporia” é aquilo que impede a viagem até ao destino, trata-se de um obstáculo,
no fundo, de um “não-caminho”57.
Falar em experiência da aporia é problemático, mas é nestes termos que Derrida
nos dá a pensar a justiça, a qual seria “a experiência daquilo de que não podemos fazer a
experiência”58. Mais, o filósofo advoga até que sem a experiência impossível da aporia,
não existe justiça. “A justiça é uma experiência do impossível”59.
A justiça não se reduz a um ordenamento, a um sistema jurídico.
O direito satisfaz-se na boa aplicação da norma geral e abstracta ao caso
concreto. Já a justiça, nestes termos, não encontra “satisfação”, nem o poderia! A justiça
é chance, aleatoriedade, promessa. Missão inglória a do legislador que, pretendendo
fazer coincidir justiça e direito, se depara com uma aporia.
Direito não equivale a justiça, pois enquanto ele privilegia o cálculo, esta é do
âmbito do incalculável. Como calcular com o incalculável?
A experiência aporética é desconcertante, surge como um sismo, marca
indelével da justiça, abalando o sistema, a norma, na medida em que a decisão acerca do
que é justo ou injusto está para além do saber, da doutrina, da jurisprudência, da
legalidade ou da ilegalidade. Tal decisão, lembrando Kierkegaard, é uma loucura,
justamente, porque é sem saber.
54 Cf. ibidem, p. 29. 55 Cf. ibidem, p. 29. 56 Ibidem, p. 27. 57 Ibidem, p. 27. 58 Ibidem, pp. 27 e 28. 59 Ibidem, p. 28.
17
Escusado será dizer que a “justiça”, em geral, no dia-a-dia dos nossos tribunais,
é direito, o qual preza a estabilidade e a previsibilidade. Assim, deste ponto de vista,
justiça é vertigem, acaso, porvir. Ousaremos dizer até que na “casa da justiça”, a justiça
é excepção, não raro, revolução contra legem!
Tal como nos apela Derrida, “é preciso reconsiderar a totalidade da axiomática
metafísico-antropocêntrica que domina no Ocidente o pensamento do justo e do
injusto”60.
É urgente desconstruir o instituído, reinterpretando, de modo a responder à
exigente injunção que clama por justiça.
A desconstrução implica uma responsabilidade infinita. Só a responsabilidade
incondicional permite julgar a responsabilidade estruturada nas normas jurídicas e que
as rege. Trata-se de uma hiper-responsabilidade, responsabilidade da responsabilidade,
julgadora daquilo que julga e, enquanto tal, assume-se como justiça.
A tarefa da desconstrução é mostrar a auto-desconstrutibilidade do direito a
partir do diferendo entre justiça e direito. Como nos diz Derrida, importa lembrar a
história, a origem, o sentido, os limites dos conceitos de justiça, de lei e de direito,
atendendo responsavelmente a todo um conjunto de injunções.61
É preciso saber olhar para trás, respeitar a herança da justiça, escutá-la. Urge
“haver ouvidos” para a justiça, mas que estejam à altura dela.
Justiça sempre endereçada à singularidade do outro e com afã de universalidade,
pelo que há que se questionar, constantemente, acerca da origem, fundamentos e limites
de toda a conceptualidade que rodeia aquela primeira. Tal será a missão da
desconstrução, insaciável exigência de justiça. 62
A desconstrução da conceptualidade não é “irresponsabilização”, mas apelo a
maior responsabilidade. Tendo isto em mente, pensamos que a desconstrução, grosso
modo, pode ser perspectivada em dois momentos. Um de “aniquilação”, que não é
irresponsabilização, e outro de reconstrução, de renovação, que se traduz,
simultaneamente, na convocação de uma maior responsabilidade.
A desconstrução implica, pois a suspensão, a epokê da credibilidade do axioma.
Na medida em que acarreta uma “reconstrução”, a desconstrução trata-se de um
“começar de novo”. É com Husserl que lembramos a condição do filósofo, a sua
60 Ibidem, p. 32. 61 Cf. ibidem, p. 33. 62 Cf. ibidem, p. 33.
18
responsabilidade, como eterno debutante, suspendendo mas ainda “recapitalizando”,
repensando. Epokê não é negação de sentido, mas reavaliação, como condição de
abertura para o futuro, evitando assim o dogmatismo.
Em poucas palavras, suspensão implica exigência de pensar de novo, de pensar
“melhor” e esta reside na “força” da justiça, sempre apelante e insaciável, que anima o
momento da epokê e a própria desconstrução.63
Ora, a desconstrução caminha entre justiça e direito, os quais não se distinguem
verdadeiramente. Entre eles não existe oposição, mas sim heterogeneidade e
indissociabilidade, pelo que “acontece que o direito pretende exercer-se em nome da
justiça e que a justiça exige instalar-se num direito que deve exercer-se (constituído e
aplicado) pela força.”64.
É com isto em mente que Derrida nos dá a escutar três aporias.
A primeira aporia remete-nos para a epokê da regra.
Para que uma decisão seja justa, não é suficiente o cumprimento rigoroso de
normas, a aplicação de um programa, de um sistema, de um cálculo. Se tal bastasse,
poder-se-ia dizer que haveria conformidade ao direito, mas já não justiça porque a
decisão, para ser efectivamente decisão, implica inovação, reinvenção, como se o juiz
não tivesse que se apoiar numa lei anterior, forjando uma nova para cada caso. A
decisão só será realmente justa se se traduzir numa sentença sempre “de fresco”, ou
inaugural.65
Não quer isto significar que Derrida seja um “legicida”. A “sentença de fresco”
apoia-se na lei, pelo que ela acabará por repetir algo anterior a si, contudo tal não se
trata de uma repetição-necrose, pelo contrário, o mínimo de arrimo legal deverá ainda e
sempre contar com uma interpretação de carácter re-instaurador e re-inventivo que,
evidenciando o juiz responsável, obvia o dogmatismo e uma maquinal conformidade à
lei.
Ora, a decisão pode ser legal, de acordo com o direito, mas onde se funda tal
direito? A sua instituição é violenta, justamente, porque “esquece” o problema do
fundamento místico da autoridade. O direito não resolve a questão da justiça, recalca-a,
porque, no fundo, pretende ser justiça quando se arroga de uma autoridade intrínseca,
contudo isso é fictício, trata-se de um impoder.
63 Cf. ibidem, p. 34. 64 Ibidem, p. 37. 65 Ibidem, p. 38.
19
A justiça dá-se ao direito, mas retira-se dele, justamente, porque ela não pode ser
aprisionada. O “cativeiro” da justiça desfigura-a. O “círculo”66 do direito é como se
afiguram as malhas que imbricam o tecido que a justiça, sempre em aberto, rasga.
A tarefa da desconstrução é “acusar”, colocar a nu, permanentemente, a ficção, a
“auto-coroação” do direito como autoridade em si próprio, mostrando o jaez místico do
fundamento da autoridade.
Relativamente à segunda aporia, Derrida sublinha “a assombração do
indecidível”67.
A prova do indecidível é caminho de provação a percorrer por uma decisão que
se queira justa. Esta prova é marca indelével, cicatriz irreversível, hemorragia da
decisão, a qual não consegue ultrapassá-la ou estabilizá-la. É marca de singularidade!
Dos tribunais esperam-se decisões que realizem a justiça no mundo, se bem que
Derrida nos ensine que não é possível uma decisão plenamente e presentemente justa,
na medida em que a justiça não se deixa capturar pelo direito, ela é incalculável.
Contudo, impõe-se a decisão que, como direito, é o “aparecer”, a
fenomenologização da justiça. A decisão é um corte relativamente à justiça.68
Não obstante tal corte, que mostra a heterogeneidade entre justiça e direito, o
“fantasma” do indecidível está patente no interior de toda a decisão.
Derrida dá-nos a escutar o fantasma da indecidibilidade, o qual assombra a
decisão, desconstruindo toda a alegada segurança na justiça da decisão.69
Ora, o direito, o aparelho em que o Estado assenta é uma tentativa de captura
daquilo que se não pode capturar. O fundamento intrínseco da autoridade é ficção, o
poder que o Estado se arroga não lhe pertence, não lhe é próprio e daí falarmos em
fundamento místico da autoridade. A autoridade está no abismo.
A “ideia de justiça” é infinita, irredutível, porque devida ao outro, porque
proveniente, vinda do outro enquanto singularidade sempre outra.
Como nos diz Derrida, esta “ideia de justiça” é loucura, mas a desconstrução é
louca por esta justiça, a qual, não se tratando de direito, é já o movimento da
desconstrução a actuar nele.70
66 Aquilo que aprisiona. 67 Ibidem, p. 39. 68 Cf. ibidem, p. 39. 69 Cf. ibidem, p. 41. 70 Cf. ibidem, p. 42.
20
A terceira aporia coloca-se, precisamente nesta loucura, na “urgência que barra o
horizonte do saber”71.
Ora, impõe-se que uma decisão, para ser justa, seja também imediata,
precisamente porque a justiça não espera, ela é do “domínio” do evento.
A decisão justa está para lá do saber que a suportaria. Ela é um salto de fé.
Para além do saber e dos critérios da dogmática, urge decidir. A decisão age “na
noite do não-saber e da não-regra”72, os quais não são o mesmo que ausência de regra e
de saber. Estes últimos devem estar sempre presentes na decisão, contudo a justiça
demanda que re-inventemos, que re-instituamos as regras pelas quais decidimos e tal
movimento não é antecedido por qualquer saber ou garantia.73
Perspectivada a justiça como um excesso ou transbordamento relativamente ao
direito, ela não deverá ser descurada sob pena de ser tomada pelo cálculo mais
pernicioso.74
Será esse o “problema” da interpretação, se a entendermos como (re)apropriação
da justiça que, negligenciada, sucumbirá à calculabilidade perversa.
É preciso calcular bem, mesmo que o risco de tal não acontecer faça parte da
loucura da decisão. Não é possível protegermo-nos absolutamente do perigo de um
“mau cálculo”, sob pena de asfixiarmos a voz que apela incessantemente à justiça.75
O instituído precisa sempre de ser reinterpretado. O cálculo anteriormente
efectuado precisa ser recalculado.
As aporias da justiça abrem para a desconstrução, para a realização da justiça no
mundo.
Derrida é pois o “libertador” da justiça, a qual identifica à desconstrução. É
urgente ultrapassar a ilusão redutora da justiça ao direito.
O mundo contemporâneo coloca-nos constantemente novos desafios. Urge
desconstruir, pois só assim poderemos construir um (im)possível mundo novo.
(Im)possível porque, envolvido num exigente apelo à perfectibilidade, clamamos hoje,
mais que nunca, por uma resposta responsável… por uma resposta radicalmente justa!
71 Ibidem, p. 43. 72 Ibidem, p. 44. 73 Cf. ibidem, p. 44. 74 Cf. ibidem, p. 46. 75 Cf. ibidem, p. 46.