Deporte y Religión_Lovisolo

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7. Deporte y religión 

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  • 7. Deporte y religin

    garcezNotaparei p. 35

  • Reencantando as quadras:basquete e espiritualidade

    c Hugo Lovisolo e Yara Lacerda*

    O campo dos esportes parece apelar para a presena de tradies e valorespoderosamente contrapostos em esforos de conciliao do que apare-ce como no concilivel: distanciamento cientfico e pertencimento,tecnicismo e vnculo religioso ou espiritual. Assim, mito e razo, emoo e cl-culo, pertencimento e distanciamento, espiritualismo e materialismo, individua-lismo e coletivismo, valores sagrados e profanos, tradicionais e modernos, apare-cem entremeados na produo do evento esportivo. De um lado, o apoio nas cin-cias e na razo instrumental fez do esporte um amplo campo de aplicao da f-sica, da qumica, da fisiologia e da psicologia, que se concretizou, principalmen-te, na elaborao de teorias sobre o desenvolvimento da potncia ou da exceln-cia e de tcnicas para o treinamento dos atletas, no desenvolvimento de imple-mentos, infra-estruturas, estratgias e tticas maximizadoras de resultados. Astcnicas de administrao empresarial e de mercado entraram tambm para fazerdo esporte um campo de negcios. Do outro, o campo dos esportes apela perma-nentemente para as metforas do corao e da raa, do pertencimento e da vin-culao, da emoo e dos sentimentos, da comunho e da doao, da solidarieda-de e da compaixo. Desencantamento e reencantamento parecem ser, portanto,processos coexistentes na dinmica esportiva. A hiptese a ser trabalhada a dacopresena do iluminismo e do romantismo, da razo e do mito, marcos ambosda modernidade no campo dos esportes. Para o desenvolvimento da hiptese, e a

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    * Hugo Lovisolo Doutor em Antropologia Social, professor da UGF, Programa de Ps-graduao em Educao F-sica, e da Universidade do Estado de Rio de Janeiro, Faculdade de Comunicao Social. Yara Lacerda Doutora emEducao Fsica, professora da UGF, Departamento de Educao Fsica.

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    modo de teste, usaremos as memrias autobiogrficas de Phil Jackson. Procura-remos destacar, sobre o pano de fundo da atividade competitiva, racionalizada eempresarial do basquetebol americano, a presena operacionalizada da espiritua-lidade, do pertencimento, dos relatos mticos.

    Introduo

    O basquete americano tornou-se, nos ltimos anos, um campo de negciosaltamente competitivo. Empresas e empresrios, profissionais e clientes; investi-mentos e lucros, audincia e publicidade; conflito e competio, materialismo einstrumentalizao, mdia e consumo so palavras que facilmente associamos aomundo do basquete. Nada, portanto, pareceria estar, em princpio, mais distantedo basquete que a procura de atitudes desinteressadas, a eleio do bem comum,a solidariedade e a compaixo; enfim, a busca da espiritualidade ou a produode um modo religioso de agir nas quadras. Essas atitudes, em princpio, parece-riam estar em oposio direta ao conjunto de valores que domina a economia domundo competitivo do basquetebol profissional.

    Contudo, uma das hipteses, mais polmica e bem sucedida, sobre as rela-es entre economia e religio, a de Max Weber, ensinou-nos a pensar nos mar-cos de uma afinidade eletiva entre tica protestante e esprito do capitalismo, en-tre crena religiosa e racionalidade econmica. Antecedente to poderoso abre ja-nelas para que possamos enfrentar, com alguma confiana, a possibilidade de quenovas crenas religiosas estabeleam afinidades eletivas com campos de ativida-des considerados, a priori, distantes delas.

    Entendemos que a afinidade eletiva uma relao constitutiva que vaialm da confiana, de tcnicos, atletas e torcedores, em amuletos, frmulas reli-giosas, oraes ou ritos antes e durante os encontros competitivos. Assim, descar-tamos as prticas referidas ao solicitar ajuda, apoio ou proteo a foras sagradasou superiores, um campo de aes sociais superficiais e pouco interessantes sobo ponto de vista das afinidades eletivas. O que pretendemos considerar o fen-meno de imbricao entre espiritualidade ou religiosidade e a dinmica racionalde um esporte como o basquete. Se pudermos entender essa imbricao, deriva-remos experincias analticas que, talvez, nos possibilitem entender outras imbri-caes em curso. Afirmaremos que existe imbricao quando valores religiososou espirituais esto solidamente vinculados com recomendaes tcnicas ou fa-tuais, isto , quando valores e fatos formam um entretecido consistente.

    As culturas atuais aparecem marcadas por duas atitudes polares no campo re-ligioso. De um lado, pela presena do integrismo, que se caracteriza pela rejeiode uma modernidade na qual a religio seja uma questo de opo. Do outro, umatendncia moderna que aposta no pluralismoe abre espao para que os indivduos

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  • desenvolvam composies religiosas vontade, frmulas ou formas pessoais deespiritualidade e religiosidade em clara correspondncia com valores individua-listas e relativistas e com fortes possibilidades de construo e desconstruo(Champion, 1995). Essas caractersticas parecem confrontar-se e extrair foras deum ativo fermento religioso que toma forma e fora, sobretudo, a partir dos anossetenta. Fala-se suficientemente de um despertar e de novas formas de conscin-cia religiosa, e os fenmenos vinculados New Agecirculam fluentemente na li-teratura especializada e jornalstica.

    Caractersticas significativas do religioso no Ocidente, como o lugar centraldo pecado e de sua liberao, entraram em poderoso declnio, pari passucom oaumento da heterogeneidade religiosa, cujo efeito mais visvel o da multiplica-o das seitas, das religies e das frmulas pessoais. Como resultado geral fala-se da perda ou declnio da institucionalizao da vida religiosa. O sincretismo e,ainda mais, o ecletismo religioso, tornam-se cada vez mais freqentes e legti-mos, e antigas e novas postulaes so reconhecidas como religies. Michel deCertau tinha anunciado, em Le cristianisme clat, a crescente desinstitucionali-zao do cristianismo, que cedia lugar para um crescimento dos cristos sem Igre-jas. A leitura da Bblia deixaria de estar submetida comunidade de crentes emultiplicariam-se suas interpretaes, ganhando legitimidade as realizadas comomeramente individuais e que podem estar influenciadas ou em interao com lei-turas de outras tradies. O cristianismo torna-se flutuante e assistimos ao flores-cer das religies paralelas no contexto ocidental: diversos esoterismos (que per-dem seu significado de ocultos para receber o de religies no oficiais), crenase prticas parareligiosas, antigas e novas, como a vidncia e a meditao.

    Um elemento importante do panorama que os que aderem a essas prticasesto orientados para a autoperfeio, a autenticidade, o pertencimento que serealiza preferentemente mediante um trabalho sobre a prpria interioridade, etambm na ncora do pertencimento a comunidades emocionais, ao invs de, co-mo em verses tradicionais, pelo estudo e pela aquisio de ensinamentos.1 Taiscaractersticas apontam claramente para a presena de valores romnticos salien-tados, entre outros, por Berlin e retomados por Taylor recentemente.2As novas re-ligiosidades mstico-esotricas tambm se relacionam significativamente comobjetivos mais prticos, como procura da sade e do equilbrio pessoal ou do agirconfluente das dimenses ou partes do eu. Temos a impresso que os investimen-tos no desenvolvimento de um esprito pessoal equilibrado, saudvel e integrado,parece tecer objetivos terrenos mais significativos que a elevao ou ascenso auma dimenso sagrada, presente ou futura.

    A heterogeneidade e a diversidade do processo religioso tanto podem nos le-var a pensar no declnio e, no extremo, na diluio do sagrado, quanto na emer-gncia de novas formas, marcadas pela importncia da definio e expanso in-dividual, sob o ponto de vista dos adeptos. Assim, as frmulas pessoais tanto po-

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    dem ser entendidas como emergncia de nova espiritualidade ou religiosidade,fim da secularizao, quanto como mera utilizao instrumental cujo destino fi-nal seria a diluio do sagrado. H, portanto, dois caminhos lgicos: a) o sagra-do desaparece porque apenas passa a existir o profano, ou b) incorpora-se uma vi-so anterior de encantamento do mundo e pelo qual tudo se torna sagrado, ima-nente e holstico. O segundo caminho, como veremos adiante, parece ser o escol-hido por Phil Jackson.

    Podemos pensar, de modo heurstico e tambm em nome da esperana, emoutros momentos de efervescncia espiritual nos quais tambm vozes bem funda-das profetizavam o declnio da religiosidade. Vauchez, a partir das observaesde Genicot, trabalha a hiptese de possibilidades crescentes de desenvolvimentoespiritual quando as coeres econmicas afrouxam. pocas medocres, sob oponto de vista econmico, tambm podem s-lo sob o religioso. O renascimentoeconmico e intelectual dos sculos X e XI foi, segundo Vauchez, acompanhadopor uma renovao do interesse pela interioridade quando se alargou a estrei-ta faixa daqueles que, na sociedade ocidental, tinham acesso vida do esprito,houve progresso no plano cultural, e uma elevao no nvel das aspiraes reli-giosas (1995: p. 181). Deslocando a observao de Genicot-Vauchez, podera-mos aventurar a hiptese sobre o papel do xito profissional nas sociedades ditasafluentes, como condicionante da expanso e aprofundamento das preocupa-es pela espiritualidade que j teria estado presente no movimento estudantil eda contracultura dos anos sessenta, com seus efeitos significativos sobre as clas-ses mdias e, em particular, sobre grupos com capital cultural elevado. Em outrostermos, poderamos orientar-nos pela hiptese de que a satisfao de ambiesmateriais e profissionais pode liberar ou impulsionar os indivduos para preo-cupaes bem mais espirituais. O perigo a ser superado na ao premiada com osucesso , paradoxalmente, que, segundo Michael Jordan, faz o Ns voltar a serEu (Jackson e Delehanty, 1997: p. 159).3 O mal, que torna o Ns Eu, poderia,num mesmo movimento, ser o sinal da resistncia para construirmos o Ns e o si-nal ou a abertura para o sentimento do vazio, da falta de sentido que parece estarocupando quando a luta por objetivos materiais ainda domina o plano das emo-es.

    Vauchez situa a espiritualidade como um conceito moderno, utilizado so-mente a partir do sculo XIX. Para a maioria dos autores, ele exprime a dimen-so religiosa da vida interior e implica uma cincia da ascese, que conduz, pelamstica, instaurao de relaes pessoais com Deus (op. cit.: p. 7).4 A tendn-cia dominante, segundo Bloom, nas tradies religiosas ocidentais institucional,histrica e dogmtica, sendo Deus encarado como externo ao eu. Contudo, sem-pre houve o caminho do conhecimento interior, condenado pelas fs institucio-nais. J por no mnimo dois sculos, a maioria dos americanos vem buscando oDeus interior, em vez do Deus do cristianismo europeu (Bloom, 1996: p. 19). ODeus interior pode significar, para os atores sociais, a procura da ascenso a um

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  • estado pessoal definido por valores tais como: equilbrio, eliminao do egosmo,autocontrole da angstia e da ansiedade, compaixo, impecabilidade, fraternida-de e solidariedade entre outros. Nessa procura, a construo de frmulas de cren-as pessoais e de prticas habitual. Retomaremos este tpico adiante.

    O ncleo paradoxal: basquete e espiritualidade

    Colocaramos palavras como compaixo, no egosmo e busca espiritual,quase que naturalmente como valores que devem ser procurados fora do campodo basquete profissional. Aceitaramos, talvez com maior facilidade, que essesvalores fossem associados com as atividades do velejador, do alpinista, do surfis-ta ou do praticante de vo livre, enfim, de atividades no diretamente competiti-vas e que, dominantemente, apelam para valores de integrao com a natureza,procurando absorver sua espiritualidade. Campos esportivos menos penetradospela lgica dos negcios e do espetculo, e onde o no egosmo, a compaixo ea busca espiritual, aparentemente, possuem um nicho ecolgico mais propcio.Campos esportivos que lidam com espaos ainda naturais, cuja padronizao muito baixa e o acaso da interao com a natureza se faz significativamente pre-sente. Em contraposio, o basquete lida com um espao padronizado, produzidoartificialmente e livre dos acasos da natureza, seguindo a tendncia moderna pa-ra a maioria dos esportes.5

    Phil Jackson, contudo, no exercitou essas atividades esportivas menos pa-dronizadas e em contato com a natureza. Sua vida, como jogador amador e pro-fissional, assistente e tcnico, apesar de uma curta passagem pelo beisebol, este-ve vinculada ao esporte talvez mais empresarial e competitivo existente, o bas-quete. O livro de memrias sobre sua vida, Cestas Sagradas, lies espirituais deum guerreiro das quadras,6 inicia-se dizendo

    Este livro sobre uma viso e um sonho. Quando fui nomeado tcnico dos Chi-cago Bulls em 1989, meu sonho no era apenas vencer campeonatos, mas fa-zer isto de uma forma que unisse as minhas duas grandes paixes: o basquetee a busca espiritual. Aprincpio isto pode parecer uma idia absurda, mas eusentia intuitivamente que existe um elo entre o esprito e o esporte (p. 17).7

    Podemos ento formular algumas questes significativas: como possvel quetenha conseguido ser um tcnico espiritualista e de xito num meio dominado pelalgica instrumental? Como possvel que encontrasse espao para tentar colocar emprtica uma idia absurda pela tremenda tenso entre os valores contrapostos queprocura fundir? Estamos diante de atitudes espirituais valorizadas ou pelo menosaceitas num territrio que definiramos como pouco frtil para as mesmas? Te m o s ,ento, um paradoxo: valores, atitudes e condutas espiritualistas num meio concebidocomo materialista, tecnicista, instrumentalista, consumista e competitivo. Se algum

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    tipo de espiritualismo pode vigorar nessas circunstncias paradoxais, temos que for-mular um horizonte de perguntas mais abrangentes para formular respostas que nosajudem em sua compreenso. Assim, por exemplo, estaramos diante de um meroacaso ou de possibilidades sempre renovadas pela ao de foras culturais densas ede longa atuao em nossas sociedades? Talvez renovadas pela prpria experimenta-o com os estilos de vida materialista e consumista? Ou ser que a imagem domi-nante que temos de nossas sociedades como consumista e materialista, enfim, afluen-tes, no apenas uma parte da verdade e que, ainda em atividades rotuladas com es-sas expresses, os valores espirituais teimam em retornar ou, mesmo, jamais saram?Ser que a busca espiritual continua sendo uma fora significativa e que a interaode tradies complexas e contrapostas pode determinar a coexistncia do consumis-mo espiritual e do espiritualismo consumista e no somente das alternativas de con-sumista ou espiritualista? Tais perguntas gerais funcionam como um horizonte envol-vente ou esto por trs dos comentrios que realizaremos sobre a autobiografia deJackson e apenas sero retomadas, explicitamente, na parte final do texto.

    A constelao familiar

    Jackson nos informa que o clima da vida familiar foi um slido cho para suaformao espiritual. Apresenta-nos sua me como uma pessoa passional em suarelao com a religiosidade e que, desde adolescente, tinha uma profunda voca-o evangelizadora. A Bblia era para ela um livro proftico e acreditava que otempo estava chegando. O pai foi uma pessoa compassiva e calorosa, com umaviso da vida baseada na traduo literal das escrituras. Enfim, um homem deDeus puro e simples. Vinculados pela f e pela atividade religiosa, a vida fami-liar seguia o ritmo da vida da Igreja. Jackson cresceu num clima de f e de ativi-dade religiosa cotidiana, e as esperanas de num futuro tornar-se pastor estiverampresentes durante anos em seus projetos de vida. Contudo, na adolescncia, quan-do sua f deveria ser confirmada por sinais, o que significaria experimentar expe-rimentando fisicamente a presena do Esprito Santo no falar em lnguas uma espcie de transe cuja vivncia indica sua manifestao do Esprito Santo,os sinais no se fizeram presentes e segundo ele aquilo nunca iria acontecer emmim.8 Comecei ento a sair cedo do culto. Minha me no ocultou o desaponta-mento (p. 41). Jackson abre sua mente ao ceticismo.

    Possuidor de caractersticas fsicas apropriadas, altura e comprimento dosbraos, o basquete tornou-se atividade salvadora que concentrava energias e ca-nalizava impulsos juvenis, especialmente os que se derivavam das competiesou conflitos entre os irmos, segundo o prprio Jackson (p. 42). Um campo deatividades substitutivas para o projeto religioso.9Aparentemente, uma sublimaopelo esporte da vontade ou impulsos religiosos, segundo ele mesmo. Vencer tor-nar-se-ia para Jackson uma questo de vida ou morte (p. 42).

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  • Jackson, de fato, teria podido, mediante o mundo competitivo do basquete,distanciar-se poderosamente dos valores familiares e sobretudo da busca do espi-ritual, dado que as confirmaes de religiosidade ou de espiritualidade do credofamiliar no lhe aconteceram como manda a tradio. Tambm poderia continuarsua procura espiritual recorrendo a outras tradies, convertendo-se para outra re-ligio que, de alguma forma, restabelecesse a coerncia entre a f e suas provas.Por ltimo, poderia partir na direo de construir uma frmula prpria de prti-cas espirituais. Um caminho de ascenso interior e uma procura do Deus inte-rior, entendendo sua presena como realizao de valores almejados. O que oco-rreu de fato, como veremos, foi essa construo da frmula prpria, orientada pe-la vontade de concretiz-la, alm das prticas espirituais, no prprio campo dobasquete.

    Elementos da frmula espiritual pessoal

    Os estudos atuais sobre a religio pem a descoberto um amplo leque decrenas e prticas religiosas, a partir de figuras santas ou carismticas, que setransformam numa multiplicao significativa de seitas religiosas. O carisma dosfundadores, segundo o conhecido tipo ideal weberiano, ser um capital raciona-lizado e burocratizado pelos sucessores na instituio religiosa. Por assumir umcarter institucional, a vida religiosa nas seitas bem mais visvel que as constru-es pessoais que realizam o bolo ou frmula espiritual vivida como pessoal. Asprimeiras so bem mais pblicas, as outras ficam mais restritas vida privada.Assim, a biografia e a autobiografia ainda so relatos privilegiados para mapeare entender as construes pessoais. Embora possam apresentar um conjunto deeventos, talvez desconexos ou aleatrios, como vinculados por um fio condutor,nem sempre visvel em todo momento para o construtor do relato, a autobiogra-fia tende a destacar uma trama ou lgica para um conjunto rememorado de acon-tecimentos que possibilitaram a construo pessoal.

    Jackson, ao longo de seu livro, ir apontando experincias que foram signi-ficativas, segundo seu auto-relato. A principal experincia negativa j foi mencio-nada, sua incapacidade de falar em lnguas. As experincias positivas, os ele-mentos que passaram a formar parte da construo pessoal so vrios e alinhava-dos, com algumas excees, cronologicamente. Os elementos destacados refe-rem-se a propriedades ou funes que so reiteradas pelas teorias sobre as reli-gies. Referem-se tanto a aspectos vinculadores ou de participao, presentes nomito e nas religies, quanto a etapas ou momentos altamente significativos do ro-teiro ou caminhada espiritual.

    Um eixo ou fio construtor do relato de Jackson a relao entre corpo e men-te. Jackson sofreu uma leso corporal num jogo de beisebol e seu irmo Joe, dou-torando em psicologia, no Texas, props auto-hipnose para recuperar o ritmo uma

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    vez que a leso cicatrizasse. A idia pareceu a Phil uma blasfmia, devido aoaprendizado religioso fundamentalista (p. 37). Entretanto concordou e, no diaseguinte, arremessei melhor do que nunca. Esta foi minha introduo ao poderoculto da mente, e ao que podia conseguir se diminusse o dilogo mental e sim-plesmente confiasse na sabedoria inata do corpo (p. 38).10 O saber inato do cor-po um componente altamente valorizado na literatura que se autodenomina co-mo natural, holstica ou espiritual e que se contrape viso cartesiana ou redu-cionista que, segundo o ponto de vista alternativo, estaria estruturando as ditascincias oficiais.

    Observemos que estamos diante de uma experincia em princpio contradit-ria, pois o poder oculto da mente ou da razo manifesta-se na diminuio do di-logo mental que leva a confiar na sabedoria inata ou no poder do corpo para aao ou expresso no controlada pela mente. O significado da experincia resi-de na fora que se deriva de sua prpria contradio e em sua confirmao pelodesempenho. Qual o dilogo mental que atrapalha? Esta a questo significa-tiva cuja resposta apenas pode ser prtica e pessoal.

    Pginas adiante, Jackson retoma a experincia e nos d sua prpria resposta.Vencer para ele era uma questo de vida ou morte. A obsesso por vencer atrapal-hou-o muitas vezes. Eu fazia tanta fora para que as coisas sassem como euqueria, que acabava prejudicando o resultado. Foi essa a lio que aprendi depoisde minha sesso de auto-hipnose com Joe (p. 43). Jackson descobre que podefuncionar soltando tudo e no pensando (p. 43) e esta sensao de liberdade oacompanhar a vida toda. Como tcnico de basquetebol, pretender que a sensa-o de liberdade, emocionante em si mesma, seja um dos estados espirituais pre-sentes na equipe quando joga. A emoo da liberdade deve vincular a equipe.

    A experincia positiva, um alicerce, ser seguida na narrativa por um conjun-to de experincias desestruturantes ou que provocam uma certa situao de limi-naridade em relao a suas convices religiosas familiares. Joe apresentar o zenbudismo a Jackson, sob o ponto de vista das tcnicas de limpar a mente e prestarateno ao presente. O conceito, para algum criado numa famlia pentecostal,foi, segundo Jackson declara, revolucionrio e assustador. Mais tarde, j na uni-versidade, e realizando uma formao combinada em psicologia, filosofia e reli-gio, o tcnico colocou Jackson junto ao astro do time, Pederson. Criado em am-biente luterano e possuidor de um saudvel cinismo, Pederson encorajar Jack-son a olhar crtica e desapegadamente para os valores que o alimentaram desde ainfncia, a explorar a vida com mais liberdade. As experincias desestruturantesfazem com que Jackson abandone a alternativa da mera reproduo da tradioreligiosa familiar. Criam, por assim dizer, a necessidade de explorao de uma al-ternativa prpria que o levar na direo da construo da frmula espiritualistaou religiosa pessoal. Trata-se, portanto, de irmos reconhecendo o cenrio dos ato-res e os elementos dessa construo da espiritualidade interior.

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  • Os anos sessenta corriam soltos e Jackson atualiza-se na vida mundana doscampiuniversitrios. Rock, filmes de Fellini, namoro com a primeira mulher. Oque nos interessa aquilo que Jackson declara que fica com ele dessas experin-cias: O que levei comigo quando essa dcada acabou foi a nfase na compaixoe irmandade, estar junto e amar uns aos outros, aqui e agora, parafraseando aYoungbloods. J no me sentia to isolado de minha gerao. Pela primeira vezem minha vida, no me sentia estranho entre as pessoas (p. 44). Participao,formar parte, vinculao so sentimentos atribudos ao campo religioso e mtico.As idias de comunidade e fraternidade, compaixo e irmandade, esto a presen-tes. Assim, qualquer que fosse a forma que a frmula pessoal de Jackson chegas-se a ter, elas deveriam ser constitutivas do mesmo.

    Jackson decola no basquete e vai para New York, onde inicia seu curso com otcnico Red Holzman. Aprende a viso no egosta de trabalho em equipe. Enun-ciemos as mximas de Holzman: No deixe que a raiva anuvie sua mente; a aten-o tudoe o poder de Ns maior que o poder do Eu. As duas primeiras mxi-mas esto altamente correlacionadas com as tcnicas de concentrao e de autocon-trole. O sentimento negativo da raiva controlado, como tambm o fluir dos acon-tecimentos na conscincia que desviam o guerreiro ou religioso, da concentraonecessria no instante, no presente, da ao ou da meditao. Ambas contribuemcom a impecabilidade, termo cuja filiao religiosa mais do que evidente.11

    Essa impecabilidade toma forma para Jackson no treinar relaxado e alerta.Nova contradio pois, de praxe, associamos o estado de alerta a tenso ou estres-se. De fato, a associao entre tenso e alerta est presente nos estudos psicofi-siolgicos sobre o estresse, realizados sobretudo com animais em laboratrio,desde os trabalhos pioneiros de Seyle.12 Jackson inicia seu percurso na direo dorelaxado alertamediante a prtica da visualizao, mediante a antecipao ima-ginada. O domnio de si mesmo no desenvolvimento da tcnica levou-o, nas suaspalavras, ao seu momento mximo como esportista (p. 50). As relaes com o yo-gae as tcnicas de concentrao zen so evidentes; porm, pelo relato, apenas to-mam um carter instrumental, so apropriadas em funo de um objetivo reduzi-do: maximizar o desempenho do atleta. Trata-se de um processo de autocontrolepor meio do qual se supera a condio natural de tenso alertapela condio dorelaxado alerta. Nova condio que um produto da cultura cuja matriz religio-sa no d lugar a dvidas. Contudo, ela no suficiente para completar a frmu-la religiosa de Jackson.

    De fato, Jackson admite que o autocontrole, a ateno relaxada alerta, fazcom que jogue sua melhor temporada e contribui para que seu time ganhe o cam-peonato (temporada 71-72). A grande emoo do trunfo, no entanto, logo senteque se esvai:

    Em vez de estar repleto de alegria, senti-me confuso e vazio (p. 50). O queme faltava era direo espiritual. O legado religioso de minha infncia, at

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    ento no assumido, deixara-me com um grande vazio interior e um anseiode reconexo com os mistrios maiores da vida (p. 53).

    A caminhada continua. Novas experincias e elaboraes na construo dafrmula pessoal: conversas com amigos, anlise das cenas familiares marcantes,leituras, influncias dos livros de Castaeda, aulas de yoga, livros sobre religiesorientais, palestras de Krishnamurti, Pir Vilayat Khan, participao nos rituais daFundao Lama de Novo Mxico, entre outras coisas. Tambm as leituras de ou-tras tradies aumentam a vontade de contemplar melhor as prprias razes. Sur-ge a compreenso, com William James, de que a experincia mstica no preci-sa ser uma grande produo (p. 55). Acontecem experincias de concentrao echegadas ao zen.

    O que mais me atraa no zen era sua nfase na clareza mental. Sob o pontode vista budista, o que polui a mente o nosso desejo de obrigar a vida a seconformar com as nossas idias pessoais de como as coisas deveriam ser, emoposio a como elas de fato so () nosso apego desesperado a eles (ospensamentos auto-referentes), e nossa resistncia ao que de fato est aconte-cendo, que criam em ns tanta angstia (p. 57).

    A concentrao um excelente instrumento. Faltava a Jackson cruzar-se como elemento vinculante que cria o sentimento de participao, de totalidade. O zentambm seria uma escola nesse sentido, pois leva-o a descobrir a nfase na com-paixo. nela, afirma Jackson, que o zen e o cristianismo se cruzam. Entre os La-kota Sioux,13 Jackson assimilou que o grande guerreiro podia ser tambm o sacer-dote, devido crena em que tudo era sagrado e na unidade da vida. Assim, o Euno era para eles uma entidade separada do Universo. Assimilou, segundo ele, aviso Lakota do trabalho em equipe. Tudo conduz afirmao de que sem a com-paixo seria impossvel realizar o aforismo o poder de Ns maior do que o po-der de Eu. A frmula pessoal fica delineada. Ateno relaxada em suas relaescom a concentrao acrescida da compaixo. A grande tarefa ser a de fazer fun-cionar na quadra de basquete. A relatar esse processo dedica Jackson o resto deseu livro. Entremos com ele na quadra de basquete para observar apenas algumasrelaes que estabelece, sem pretender realizar uma avaliao da eficcia de suasconcepes, embora o ato de ter conduzido os Bulls a vencerem seis campeona-tos nos anos noventa possa, para alguns, ser prova mais do que suficiente. Con-tudo, teremos em mente que no suficiente afirmar princpios espiritualistas pa-ra o basquete, faz-se necessrio demonstrar de alguma forma que isso funciona.

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  • Frmula religiosae basquete

    claro que existe um componente intelectual em jogar basquete. A estrat-gia importante. Mas depois que o trabalho mental foi feito, chega um mo-mento em que preciso mergulhar na ao e colocar o seu corao no jogo.Isto significa no apenas ser corajoso, mas tambm ser compassivo consigomesmo, com seus companheiros e seus adversrios. Esta idia foi uma partefundamental de minha filosofia como tcnico. Mais do que qualquer outracoisa, o que permitiu que os Bulls mantivessem um alto nvel de excelnciafoi a compaixo dos jogadores uns pelos outros (p. 61)

    No dia em que assumi os Bulls, fiz o voto de criar um meio ambiente basea-do nos princpios de no egosmo e da compaixo, que eu havia apreendidocomo cristo na casa de meus pais; sentado numa almofada praticando zen;e tambm estudando os ensinamentos dos ndios Lakotas Sioux (p. 17-18).

    A maioria dos lderes tende a ver o trabalho de equipe como uma questo deengenharia social; entretanto, aprendi que a forma mais eficaz de forjar umtime vencedor conseguir que os jogadores faam contato com algo maior doque eles mesmos O ato de criar uma equipe essencialmente espiritual. Exi-ge que os indivduos envolvidos abram mo de seu auto-interesse em prol dobem maior, para que o todo possa ser mais do que a soma das partes (p. 19).

    Um sistema que enfatiza a cooperao e a liberdade (p. 18).

    A ausncia de egosmo a alma do trabalho de equipe (p. 19).

    Em meu trabalho como tcnico, descobri que era melhor lidar com os proble-mas com uma perspectiva compassiva, tentando empatizarcom o jogador ever a situao de seu ponto de vista, porque esta atitude tem um efeito trans-formador no time como um todo () diminui a ansiedade do jogador ()inspira outros jogadores a reagir da mesma forma (p. 62).

    A questo ento : como fazer essas coisas funcionarem?

    O basquete americano tornou-se um esporte rpido e sincronizado. Jacksonparte de um diagnstico tcnico. O basquete praticado nos playgrounds dos cen-tros urbanos, com extenso, nos anos setenta para a prpria, NBA, tinha um esti-lo que reforava a perspectiva egosta do jogo com espetaculares jogadas de con-tra-ataque, e levando a pensar que basquete era uma sofisticada competio porenterrar que envolvia apenas dois ou trs jogadores.

    Tex Winter foi um tcnico diferente que tinha uma viso tcnica tambm di-ferente do jogo: propugnava que todos deviam participar num movimento de ata-que contnuo. Embora fosse altamente respeitado, existiam dvidas por parte deoutros tcnicos sobre a adequao de suas idias ao basquete profissional e eleprprio tambm as tinha. Jackson ouve Tex falar sobre seu sistema e acredita ter

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    encontrado o elo perdido que tinha procurado na CBA. Pensa que o sistema oveculo perfeito para integrar mente e corpo, esporte e esprito, de uma forma pr-tica, simples, que qualquer um pode aprender (p. 94). Significava uma evoluodo ataque que os Knicks usavam quando dirigidos por Red Holzman14. O trin-gulo ofensivo talvez seja melhor descrito como um tai-chi-chuan para cinco ho-mens (p. 94). Assim, Jackson traduz para a linguagem zen, ou talvez de fato crie,a estratgia a ser desenvolvida por meio dessa linguagem.15A idia bsica quena orquestrao do movimento a defesa acabe confundindo-se com o ataque. Aquesto no confrontar idias, porm brincar com os defensores at faz-losabrir a guarda.16 A descrio da vida intelectual torna-se metfora para o movi-mento fsico dos corpos na quadra.

    O sistema no pode funcionar, para Jackson, se os jogadores no superam oegosmo. O problema ento como ensinar-lhes a ausncia de egosmo, agindocontra os fatores da idolatria e da mdia (p. 96). A resposta emprica, que se pa-rece com a prtica zen, repetir as prticas para treinar o jogador tanto em ter-mos de experincia como intelectuais. No fim, alcanar um estado de pleno gozopor participar da dana mesmo que apenas por um lindo momento de transcen-dncia (p. 98). H que alcanar com o time um nvel de desapego (p. 99). Jogaruns com outros deve tornar-se o grande prazer. Assim, a vinculao, o pertenci-mento, devem estar na mente e no corpo dos atletas, em aliana como a autocom-paixo e a compaixo.

    Jackson utilizar todos os meios para alcanar seus objetivos: respeito peloatleta, tcnicas de meditao, concentrao e visualizao, exerccios, sentimen-tos de intimidade com as coisas, sala do time decorada com motivos rituais dosLakota Sioux, palestras, leituras e filmes, postura de liderana compassiva, entreoutros. Torna-se um predicador que utiliza os recursos modernos para educar deacordo com os valores de sua frmula espiritual pessoal, aplicando-os ao basque-tebol, e resume sua atitude diante do fato afirmando:

    Naquela poca (quando jovem), eu teria rido de qualquer pessoa que sugeris-se que compaixo e ausncia de egosmo fossem o segredo do sucesso. Estaseram qualidades que contavam na igreja, no na luta pelo rebote (p.33)

    O relato de Jackson serve para ilustrar o processo de transformao que vemsofrendo a viso de religiosidade na ps-modernidade. Essa viso, talvez, pode-ria ser vista como mais compatvel com as marcas da teodicia dita oriental que valoriza o imanente em detrimento do transcendente, permitindo que o coti-diano, inclusive o desportivo, seja atravessado pela idia e pela presena do divi-no. possvel tambm explorar a idia de que as marcas orientais so, em ver-dade, parte das prprias alternativas da tradio religiosa ocidental. Contudo, im-porta destacar que o esforo de conciliar ou harmonizar eficincia tcnica com es-piritualismo , de forma mais do que evidente, o tensor que atravessa os esforosde Jackson.

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  • Bibliografia

    Bernstein, R. 1991Perfiles filosficos(Mxico: Siglo XXI).

    Bloom, H. 1994 La religin en los Estados Unidos(Mxico: FCE).

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    Parlebs, P. 1988 Elementos de sociologa del deporte (Mlaga: Ed. Junta deAndaluzia e Universidad Internacional Deportiva de Andaluca).

    Taylor, Ch. 1997 Argumentos filosficos(Barcelona: Paids Ibrica).

    Vauchez, A. 1995 A espiritualidade na Idade Mdia; sculo VIII a XIII(Riode Janeiro: Jorge Zahar).

    Notas

    1. Uma panormica sobre as comunidades emocionais no campo religioso trabalhada por Hervieu-Leger, 1997.

    2. No caso de Berlin, ver especialmente seus trabalhos sobre Vico e Herder.Ver Lovisolo (1992) para uma ampliao das concepes sobre romantismoe iluminismo e as foras que trabalham na direo de sua conciliao incon-cilivel sob o ponto de vista formal ou filosfico. O comunitarismo de Tay-lor encontra fundamentos na posio herderiana sobre a linguagem e suas im-plicaes. Ver Taylor, 1997.

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    3. Os nmeros entre parnteses sem indicao de autor referem-se obra deJackson e Delehanty.

    4. interessante consignar que Gilberto Freire considerava a mstica espanho-la, e por extenso ibrica, central para nossa cultura, e em nada inferior a ou-tros desenvolvimentos msticos. Atradio da mstica ibrica no parece haversido suficientemente trabalhada nos estudos sobre religio em nosso contexto.

    5. Sobre a domesticao do espao esportivo conferir as anlises de Parlebs(1988). O basquete foi criado para espaos fechados, para quadras artificial-mente projetadas. A domesticao do espao e a padronizao das regras doesporte no impede, contudo, que a cultura o sub-cultura penetre nos esti-los dos jogos. Conferir para o basquete, como exemplo, a anlise de Geor-ge (1992) sobre o impacto da cultura negra americana no estilo do jogo.

    6. O livroSacred hoopsfoi publicado em ingls em 1995. A edio brasilei-ra de 1997.

    7. Indica-se entre parnteses as pginas da edio brasileira.

    8. Paulo, na Primeira Carta aos Corintos, 14, destaca a superioridade dosdons da profecia sobre o falar em lnguas: Aquele que fala em lnguasno fala para os homens e sim para Deus. Ningum o entende pois fala coi-sas misteriosas sob a ao do Esprito. Aquele, porm, que profetiza, fala pa-ra os homens, para edific-los, exort-los e consol-los. Aquele que fala emlnguas edifica-se a si mesmo; mas quem profetiza, edifica a comunidade.Jackson podia contar com Paulo como aliado de seu caminho para predicarsua religio pessoal. Agradecemos ao Dr. Olavo Feij a lembrana das palav-ras de Paulo.

    9. Gadamer (1997) um dos autores que pensa as possveis relaes entre re-ligio e esporte e entre religio e poltica. Nisbet (1985), no seu eplogo a suaobra Histria da idia de progresso,explorou a relao entre religio e pol-tica, enfatizando suas relaes em termos do que tm em comum (lderes ca-rismticos, profetas, seguidores, rituais, dias feriados, credo e evocao) edaquilo que os separa, resultando que o auge da poltica signifique o declnioda religio. Assim, pode-se perguntar se a desiluso com a poltica no pode-ria significar um ressurgimento da religio.

    10. H uma poderosa corrente do pensamento nas prticas teraputicas e nasatividades corporais que valoriza o saber do corpo, supostamente reprimidopela racionalizao cartesiana, pelo privilgio concedido conscincia ou ra-zo. Cf. Lacerda (1995).

    11. Talvez a idia de impecabilidade tenha sido difundida pelas influentesobras de Castaeda, atribuda ao estado espiritual e ao de Don Juan. No seulivro, Jackson menciona a obra de Castaeda.

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  • 12. Cf. Talvez a frmula relaxado e alerta possa ser traduzida como estressebom, boa tenso, equilbrio entre tenso e relaxamento, entre outras expres-ses semelhantes.

    13. Jackson organizou em 1973, juntamente com Bill Bradley, uma clnica debasquete para os lakota. Embora j tivesse amigos lakotas, declara que tra-balhando com as crianas ficou fascinado pela cultura lakota. O objetivo daclnica foi o de dar aos lakotas algo em que pensar que no fosse poltica (p.115).

    14. O leitor pode revisar as explicaes sobre os trs axiomas de Holzmanenunciados acima.

    15. No filme Full Monty (Tudo ou nada, na traduo brasileira), quando o ex-perto em dana tenta explicar uma coreografia, os danarinos improvisadosno conseguem realiz-la. Um deles diz que o mesmo que fazer linha deimpedimento movimentando os braos. As dificuldades acabam imediata-mente. Teramos uma traduo ou de fato uma criao de uma figura de dan-a a partir da tradio viva na linguagem do futebol?

    16. Nas pginas 95 e 96 Jackson enuncia e comenta as sete regras bsicas dosistema de Ted. Observe-se que o princpio de brincar com os defensores atfaz-los abrir a guarda, pareceria assemelhar-se estratgia pragmatista, des-construtivista e ps-moderna de Rorty. Cf. especialmente a reflexo deBernstein (1991) sobre a estratgia rortyana.

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  • Da fisiologia religio:argumentos a favor do exerccio

    c Hugo Lovisolo*

    Introduo

    N as ltimas dcadas do sculo passado foram desenvolvidos os argumen-tos tericos e empricos, especialmente no campo da fisiologia do tra-balho e do esforo, a favor da atividade corporal cientificamente pro-gramada. Os desenvolvimentos da fsica, em especial da termodinmica, da qu-mica e da fisiologia, possibilitaram a constelao de conhecimentos que cristali-zou na fisiologia do esforo e do trabalho. O estudo dessa constelao e as pro-postas de reformas no campo do trabalho e da interveno no campo da sade fo-ram detalhadas por Rabinbach (1992). Embora permanecessem vivos valores eelementos de prticas tradicionais, as propostas ganharam uma nova fundao emtermos dos conhecimentos da fsica, da fisiologia e da qumica. Digamos, a mo-do de sntese, que houve uma ruptura com os modos de tratar as mesmas ques-tes como, por exemplo, o problema axial da fadiga no trabalho.1

    A diferena significativa, em relao s recomendaes ou propostas anterio-res (gregas, romanas e medievais), foi o abandono do fundamento na tradio ouna observao no controlada da vida cotidiana. As novas propostas reivindi-caram a legitimidade cientfica de sua construo e seus resultados passaram a ser

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    * Doutor em Antropologia Social, UFRJ-PPGAS. Professor no Programa de Ps-graduao em Educao Fsica,Universidade Gama Filho, e na Faculdade de Comunicao Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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    produzidos nos laboratrios, nos experimentos controlados e mediante as anli-ses estatsticas e epidemiolgicas. A observao no sistemtica, base de muitasintervenes tradicionais, perdeu valor.A interveno cientfica ganha fora e le-gitimidade, sendo a metfora do motor humano seu elemento central (idem).

    No sculo XIX, o sculo centrado no trabalho, os argumentos de utilidadeeconmica e social cresceram em relevncia, deslocando para o fundo da cena osargumentos sobre a vida boa, que podiam ser encontrados nas filosofias de vidaou nas prticas. Os argumentos econmicos a favor da atividade corporal conti-nuam sendo relevantes ainda em nosso sculo. As circunstncias de um mundoem rpida industrializao, que caracterizou os pases europeus do sculo passa-do, foram favorveis a esse tipo de argumentos.

    O mundo central, os pases da Europa especialmente, enfrentavam um acele-rado e competitivo processo de industrializao, e a formao da classe trabalha-dora da grande indstria, adequada aos novos processo e ritmos do trabalho, eraum problema a ser superado. A fadiga aparecia como o mal a ser combatido,pois tinha como um de seus efeitos principais a baixa produtividade dos trabalha-dores. Administrar cientificamente as energias dos trabalhadores passou a seruma tarefa prioritria para a fisiologia do esforo e do trabalho. Equilibrar gastose reposies tornou-se um dos principais objetivos da interveno sobre o mo-tor humano. Lembremos que o termo fadiga e o correlato de stressforam corren-tes na engenharia dos materiais.

    Duas frentes de ao perfilaram-se. Por um lado, o diagnstico sobre a inci-dncia do gasto excessivo de energia no processo de trabalho levou a lutas pelareduo da jornada, o descanso durante a jornada e o descanso e lazer alm dajornada de trabalho. Havia que provar, e foi provado, que com um regime cient-fico de trabalho, que implicava menor gasto e esforo, os trabalhadores seriammais produtivos. A produtividade deixou de ser apenas funo da quantidade f-sica de tempo de trabalho. A disposio fsica e mental do trabalhador, sua quali-dade corporal e mental, tornou-se fator de produtividade. Por outro, havia que in-cidir sobre os estilos de vida dos trabalhadores e, ento, nutrio, sono, higiene,lazer e atividade corporal foram contemplados pela interveno.

    A atividade fsica, a ginstica, seria visualizada como o caminho certo de for-mao de corpos mais resistentes, fortes e geis para agentarem sem se deterio-rar, sem fadiga e sem doenas, s demandas de energia no trabalho e na vida co-tidiana. Mentes e corpos com melhor capacidade para administrar o gasto ener-gtico no trabalho e no turbilho da vida moderna.2 Adequado descanso, lazere condicionamento fsico formavam parte do leque das receitas para resistir for-a desorganizadora da entropia que a fsica do sculo XIX tinha consagrado. Omotor humano podia e devia ser cuidado e aperfeioado. Corpos mais produti-vos, mais resistentes s doenas, mais sadios fsica e mentalmente e com maiorlongevidade passaram a formar parte dos desejos e das promessas.

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  • No mesmo contexto, vai consolidando-se a idia revolucionria de que a po-pulao parte importante da riqueza nacional, tanto ou mais do que o capitaltransformado em instalaes e mquinas e do que a prpria riqueza natural. Osinterventores, fundamentados no conhecimento cientfico, ensinaram que os go-vernos e os capitalistas deveriam cuidar a fora de trabalho tanto ou mais do quese cuidam das mquinas. Aps algumas dcadas, a idia de capital humano tor-nar-se-ia corriqueira, chegando a ser considerado como principal fator produtivona atualidade. J em nosso sculo, a educao formal e o aprendizado na prticaganham carta de incorporao ao capital humano. Sade e educao tornam-sepilares das polticas sociais de formao e cuidado da populao.

    Vista a populao como riqueza nacional, fez-se necessrio ocuparem-se, go-verno e sociedade, de sua formao e atendimento. A ginstica e o esporte seriammobilizados para essa formao.

    A ginstica eugnica e higinica fez sua entrada e cresceu nos pases euro-peus, concretizando-se nos diferentes mtodos nacionais de ginstica reconhe-cidos como sueco, alemo e francs, entre outros. Vrios esportes como natao,remo, ciclismo e atletismo, principalmente os esportes ditos de resistncia, foramincludos, alm da calistenia que ocupava um lugar central, no rol das atividadescorporais que tanto podiam permitir a formao corporal e moral, quanto ummaior condicionamento fsico e uma resposta melhor adequada s demandas deum sculo centrado no valor do trabalho e cuja antropologia mais representativae de maior difuso foi a marxista, embora partilhada por positivistas e liberais.3

    Nela, o trabalhador e sua fora de trabalho ocuparam o cenrio da produo e otrabalho humano foi considerado motor da prpria evoluo ou progresso.

    No Brasil, as fontes indicam que as novidades chegaram com fora. J na vi-rada para o sculo XX, os jornalistas e cronistas registraram tanto em vinhetas davida cotidiana, quanto em obras pioneiras sobre o desenvolvimento dos esportese dos corpos, as caractersticas ativas dos novos tempos, embora restrita para ascamadas intermedirias e altas da sociedade. A esportivizao crescente da vidacotidiana esteve acompanhada de orientaes e aes de salubridade pblica e desade individual. A dita histria da vida privada enfatizar a narrativa desses pro-cessos (Prost, 1992; Sevcenko, 1992). Os promotores da atividade fsica, no ca-so do Brasil, salientaram que ainda avanado o sculo XIX dominava uma tradi-o que tanto desprezava o trabalho manual como o exerccio fsico. Confronta-vam-se, portanto, com uma mentalidade que devia ser mudada. Assim, a prticada atividade fsica forma parte da narrativa das mudanas das mentalidades e, demodo geral, da histria da cultura.

    J em nosso sculo, foram criadas as instituies que formariam os especia-listas em dirigir e orientar a populao na prtica ginstica e esportiva nos quar-tis, nas escolas, nos clubes, nas fbricas e nos espaos de recriao. O professorde educao fsica foi essa nova figura. Nas ltimas dcadas, as academias e os

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    espaos para a prtica da atividade corporal se multiplicaram. Os dados recentesindicam que os jovens esto crescendo em estatura mdia e massa muscular, co-mo produto de mudanas no campo da sade, da alimentao e, talvez, da prpriaprtica de atividades fsicas. O beneplcito com o qual so recebidos esses dadosindicam que, sob outros nomes, o projeto eugnico e higinico continua vivo.4

    Assim, a eugenia continua presente para vrios indicadores antropomtricos e so-ciais que avaliam o progresso da raa nacional ou humana.

    Os especialistas da sade, sobretudo mdicos e educadores fsicos, ao longode nosso sculo, foram acumulando argumentos fisiolgicos, psicolgicos e mo-rais a favor da atividade corporal. Os programas e mtodos contra o cansao, pa-ra manter a disposio fsica e mental, para se proteger das doenas, para prolon-gar a vida, multiplicaram-se. Os meios de comunicao acolheram solicitamentea propagao dos conhecimentos que vinculavam, de forma reconhecida comocientfica, atividade corporal e sade, atividade corporal e disposio psicolgi-ca. Mais recentemente, a formao moral e do eu disciplinado foram perdendoimportncia explcita, embora sejam permanentemente recuperadas como campoda motivao para a prtica da atividade fsica e, no campo da educao fsica edo esporte escolar, com novos valores. O valor do equilbrio, j presente na equa-o que igualava gasto e reposio, passar a englobar a energia no-fsica, psi-colgica ou espiritual, num mundo no qual a metfora do ser comunicacionalparece estar envolvendo a metfora mecnica do motor humano (Lacerda, 1999).

    H vrias geraes, entretanto, que foram criadas sob o axioma de uma fisio-logia do exerccio que insistiu e insiste sobre os benefcios respiratrios e circu-latrios da atividade corporal. Interesses privados e pblicos associaram-se napromoo da sade por meio da atividade corporal regular. Realizar esforos noprocesso de treinamento, condicionamento, desenvolvimento da aptido ou fit -nesstornou-se um valor para a interveno da educao fsica e, de modo maisgeral, para o movimento da sade. O componente moral desse movimento foi emvrias oportunidades destacado. Num sentido elementar e comum, a ao que de-manda algum esforo pode ser entendida por moral. O treinamento ou condicio-namento implica esforos treinar, em grego, diz-se asceses. O atleta deve acei-tar estoicamente os esforos do treinamento. A atitude estica tambm deve estarpresente no praticante da atividade corporal que visa o desenvolvimento e a con-servao de sua aptido, sade e longevidade.

    O panorama geral, no entanto, contraditrio. Se, por um lado, evidente amultiplicao das infra-estruturas e equipamentos para as prticas corporais e ocrescimento na participao dos jovens; por outro lado, as estatsticas parecem in-dicar que com relao ao nvel geral das populaes nacionais so ainda baixosos percentuais dos que praticam atividade fsica de forma regular. Os cientistasda atividade corporal afirmam que a constncia na prtica de pelo menos trsvezes por semana a que promove a sade e, tambm afirmam, que o atleta do pas-

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  • sado, hoje sedentrio, est em condies semelhantes quelas dos que sempre oforam.

    Nas ltimas trs dcadas, a personalidade Kenneth Cooper destacou-se comoinovador, divulgador e promotor popular das atividades fsicas, argumentando afavor das prticas aerbias como contribuio importantssima para a sade. Aprtica aerbia, segundo Cooper, teria incidncia positiva e direta sobre o desen-volvimento da aptido cardiorespiratria. Aumentando a capacidade de oxigena-o e de circulao, contribuiria poderosamente com a disposio fsica e psico-lgica e com a longevidade de cada praticante. Sua prdica ampla e intensa levoua identificar a corrida aerbia com seu nome; assim, as pessoas passaram a fazercooper e a falar sobre o cooper. Livros, palestras e conferncias, audiovi-suais, folhetos, entrevistas nos meios de comunicao, enfim, quase todos osmeios disponveis foram intensamente usados por Cooper para persuadir o pbli-co sobre a verdade e a utilidade de suas propostas de atividade corporal. Cooper, faz mais de trs dcadas, um missionrio da atividade aerbia e realiza umaverdadeira pastoral em prol da atividade fsica. No Brasil, suas obras foram tra-duzidas e tiveram grande divulgao e esteve repetidas vezes no pas promoven-do suas idias e prticas.5 Sob vrios pontos de vista, as propostas de Cooper po-dem ser consideradas como revolucionrias e inovadoras no campo da interven-o, embora no plano dos conhecimentos, dos valores e objetivos para a ativida-de fsica, Cooper forme parte da tradio que se inaugura com a viso cientficada fisiologia do esforo no sculo passado.

    O mistrio da constante

    No seu ltimo livro editado no Brasil, melhor acreditar, Cooper salientaseu desencanto porque nos EUA, entre 1985 e 1991, o percentual dos praticantesde atividades fsicas de resistncia permaneceu quase constante, apenas passandode 16 para 17%. Um tero dos americanos estaria acima do peso ideal, o que re-presentaria um incremento em relao ao 25% registrado para o perodo 1960-1980. As estatsticas, portanto, so crticas e desencantadoras para a intervenoe seus interventores.

    Estamos, ento, diante de uma quase constante na taxa de participao que de-sempenhou um papel significativo na reviso das propostas de interveno feitaspor Cooper sobre sua prpria produo. Mas, sob uma perspectiva mais geral, es-tamos diante de uma espcie de mistrio que se avoluma quando levamos em con-siderao os esforos de: divulgao dos conhecimentos cientficos sobre os bene-fcios da atividade fsica para a sade, divulgao das propostas tcnicas de ativi-dade fsica, apoio estatal e privado significativo para viabilizar a prtica, participa-o ativa por parte dos meios de comunicao em campanhas a favor da atividadecorporal com publicidade paga e tambm gratuita. Como resultado geral, temos um

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    incremento quase nulo na participao da populao na atividade fsica de resistn-cia e, alm disso, outros indicadores que salientam que a situao no melhorou e,talvez, piorou no campo mais geral da atividade fsica vinculada com a sade.

    O balano geral no parece ser altamente positivo e apenas poderia ser expli-cado apelando para uma espcie de resistncia muda e pacfica, a atividade fsi-ca sistemtica, embora tenhamos aumentado notadamente os conhecimentos so-bre seus benefcios. Resistncia que se refletiria na constncia dos percentuais depraticantes de atividade corporal de forma regular. Podemos, pelos dados do pr-prio Cooper, afirmar que faz mais de cem anos que presenciamos uma pastoral,uma misso a favor da atividade corporal com resultados bem modestos, espe-cialmente nas atividades de resistncia.6

    O no crescimento nas taxas dos praticantes poderia ser lido como uma refu-tao daqueles que acreditam no poder dos meios de comunicao ou na dita in-dstria cultural. Assim, para os cientistas sociais, o fracasso relativo das campan-has deveria obrig-los a refletir sobre o alcance e o poder dos meios de comuni-cao, mais ainda quando se considera que no existiram contramensagens signi-ficativas nem informao discordante em relao aos benefcios para a sade daatividade corporal. Os cientistas sociais estaramos diante de um problema aoqual no teramos dado importncia, talvez, por estarmos dominados pelo cresci-mento e aceitao do esporte espetculo. A resistncia diante da publicidade, dapropaganda, da informao a favor da prtica da atividade fsica apareceria, en-to, como um limite significativo para aqueles que acreditam na capacidade deorientao das condutas pelos meios de comunicao. Portanto, se essa capacida-de existe, ela questionvel no campo da orientao para a atividade fsica.

    Podemos, no entanto, pensar que lado a lado das mensagens especficas quelouvam o esforo e o ascetismo do treinamento, h mensagens no especficasque difundem, com vigor no menor, os ideais de um hedonismo psicolgico se-gundo o qual minimizar os esforos e maximizar o prazer seria a conduta desej-vel. Decorreria desse hedonismo tanto nossa vontade de comprar utilidades pou-padoras de esforos para a realizao das atividades quotidianas, quanto a reco-rrncia a mtodos e frmulas poupadoras de esforos no cuidado, conservao etransformao de nossos corpos e mentes, de nossos eus.

    Estaramos, ento, presos necessidade de escolher entre as posies ascti-cas ou esticas e as hedonistas? Seriam esses plos de atrao ainda atitudes for-tes para nossas escolhas? Teriam sobrevivido, no nvel de uma filosofia popularda existncia, a quase vinte sculos de rupturas e elaboraes filosficas? Seriamo hedonismo e o estoicismo espcies de filosofia em permanente estado prtico,limites populares que no podemos transcender?

    Surge uma questo importante para a fisiologia do esforo: se a atividade f-sica asctica to positiva em termos fsicos e psicolgicos, por que as pessoas

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  • no a praticam e tambm por que os que tiveram uma prtica constante durantelongo tempo, gozando de seus benefcios, deixam de faz-lo, caindo no hedonis-mo, na reduo dos esforos?7

    As respostas possveis so vrias. Parece, no entanto, que dominam as res-postas que se inclinam a considerar como fatores principais a falta de conscin-cia sobre seus benefcios e a falta de condies (tempo, recursos etc.) para suarealizao. A primeira razo no parece ser digna de crdito. As pesquisas indi-cam que as pessoas declaram que a atividade fsica tem benefcios diretos sobreo bem-estar, a sade e a longevidade. As pessoas esto informadas. Resta comodvida a questo sobre o grau de seus convencimentos ou at que ponto conside-ram que o esforo da atividade fsica um custo que merece ser pago pelos be-nefcios que gera. A falta de condies, que nunca absoluta, est estreitamenterelacionada com essa resposta. Os casos das pessoas que compram uma bicicletaou uma esteira e que logo deixam de us-las paradigmtico: h condies, po-rm, no h motivao para realizar o esforo de pedalar ou andar entre duas etrs horas por semana. O caso dos professores de educao fsica que deixam derealizar qualquer tipo de atividade fsica tambm significativo. Supomos que,no caso, temos alta informao e crena nos benefcios; no entanto, a prtica de-clina.

    Importa destacar que as razes situam-se no plano da conscincia, motivaoe informao ou das condies materiais e ocupao do tempo. Ou seja, estamosdiante do recurso a razes culturais e sociais para explicar a no-prtica. Entre-tanto, as recomendaes para a atividade fsica de condicionamento ou treina-mento surgem fundamentalmente dos desenvolvimentos da fisiologia do esforoe de sua incorporao pela medicina. H um conjunto poderoso de explicaes fi-siolgicas e bioqumicas para realizarmos atividade corporal; no entanto, noexistem explicaes fisiolgicas nem bioqumicas para explicar por que no serealiza a atividade ou abandonada mesmo aps anos de prtica. Assim, os fisi-logos e os mdicos empurram para o lado das cincias da cultura e da sociedade,da conscincia, da motivao e das condies, a explicao da no-prtica. Aspropostas tentam incidir aumentando a motivao, conscientizando sobre seusbenefcios e criando propostas adequadas a qualquer tipo de condies. Ou seja,reforam, na linguagem utilitria, os benefcios futuros dos esforos do presenteem sua adequao s condies.

    Empurrando a explicao para o lado das cincias da cultura ou da socieda-de, os fisilogos e os mdicos simplificam e tornam coerente sua proposio, dei-xando, entretanto, de enfrentar os paradoxos de suas afirmaes. Se a atividadefsica to boa para o organismo, por que ele a abandona? Por que a atividade f-sica abandonada ou suspensa se durante sua realizao so gerados hormniosque provocam sensaes de prazer, de potncia, de excitao agradvel? Por que to difcil, demanda tanto esforo fsico, e sobretudo mental, realizar o condi-

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    cionamento fsico, ganhar aptido, fitness? Por que, em contrapartida, to fcilperder o condicionamento?

    Os tipos de questes colocadas, a modo de exemplos, parecem ser to impor-tantes de serem respondidas pela fisiologia quanto dar argumentos a favor da ati-vidade corporal. Quando a fisiologia se nega a responder a essas questes, embo-ra melhor formuladas, sob o ponto de vista operacional, pareceria estar apenas fa-zendo cincia do 50%. A fisiologia do esporte deveria colocar-se como uma ques-to central explicar por que pessoas que praticaram atividade fsica de modo sis-temtico a abandonam sem esforos aparentes. Em outros termos, quais as razesfisiolgicas ou bioqumicas que possibilitam ou incidem sobre o abandono? Sa-bemos que os humanos temos dificuldades em abandonar o fumo, as drogas, o l-cool, o sedentarismo, a alimentao em excesso e inadequada. Constatamos as di-ficuldades em abandonar velhos hbitos e, sobretudo, os vcios. Por que, ento,parece to fcil abandonar o hbito ou vcioda atividade fsica? Precisamos deapoio para modificar essas condutas que caracterizamos como vcios sem aspas.Entretanto, por que to fcil abandonar o vcioda atividade corporal que ape-nas uma pequena minoria de praticantes reconhece como tal, como vcio impos-svel de ser abandonado? Se a fisiologia no responde a esse tipo de questes con-tinuar enganando-nos e, sobretudo, enganando-se sobre o poder de suas explica-es.

    Engana-se, talvez, porque no reconhece que o hedonismo e o estoicismo emestado prtico determinam o horizonte de seus esforos e suas propostas. Quan-do a interveno apela para o ascetismo das drogas, da alimentao e do exerc-cio est realizando uma escolha estica. Tambm est nesse caminho quando re-comenda os recursos naturais que resultam de aplicar a vontade reinante para ob-termos o controle das doenas e a disposio fsica e mental. Quando, ao contr-rio, orienta-se para procurar as frmulas qumicas que regulariam a assimilao eo acmulo de gordura, est a caminho do hedonismo e tambm est nesse camin-ho quando aposta na manipulao gentica ou bioqumica da doena e da dispo-sio, da gordura e do colesterol. Escolher as solues hedonistas ou esticas noest na natureza da fisiologia ou em suas teorias, est na filosofia ou moral queorienta sua interveno. Podemos derivar solues esticas ou hedonistas dasmesmas teorias. A opo pelas solues esticas moral, embora pretenda, porvezes, aparecer como fisiolgica.

    Retomando a tradio

    As elaboraes e propostas de Cooper se situam dentro da tradio da ativi-dade fsica inaugurada no sculo passado. Por um lado, suas propostas de inter-veno pretendem ser cientficas, baseadas na fisiologia do exerccio e na pesqui-sa emprica.8 Por outro, retoma como objetivo do condicionamento fsico, do de-

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  • senvolvimento da aptido fsica, o combate doena e ao cansao, fadiga, fal-ta de disposio para enfrentar as demandas do trabalho e da vida cotidiana e pro-mete maior energia, menos doena e maiores possibilidades de vida. Cooper umbaluarte na defesa do ascetismo do treinamento e da nutrio, do esforo e da dis-ciplina, do autocontrole e a autotransformao, enfim, do reforo do eu median-te a atividade corporal. Cooper escolheu o caminho estico, no sentido comumque damos a essa palavra.

    Cooper, inicialmente mdico da fora area americana, declara que custatempo e dinheiro o treino de um homem, seja para pilotar um jato, consertar ummotor ou trabalhar num escritrio; perd-lo por doena ser dispendioso e pro-blemtica sua substituio (1972: p. 2). E registra como positiva a declarao deposso trabalhar mais sem fatigar-me e durmo agora como uma pedra (1972:4).9 Retoma, ento, argumentos presentes na tradio utilitria ou econmica for-mulada no sculo passado. Contudo, Cooper no fica fixado nesses argumentos.Ao longo de suas obras, sempre promete que seus programas de exerccios leva-riam a uma situao de maior disponibilidade de energia para o trabalho, o lazerativo, a vida intelectual e social. Sua estratgia de persuaso a de acumular ar-gumentos e postular os benefcios econmicos e no-econmicos da aptido fsi-ca. A atividade fsica ento postulada como redutora de doenas, minimizadoraou quase eliminadora do cansao ou fadiga e tambm como fator para o aumen-to da longevidade. Cooper fala vigorosamente para estimular-nos a escalar amontanha e classifica os indivduos em funo de quanto podem subir pelas la-deiras do esforo fsico.

    As bases do programa aerbio de Cooper so conhecidas. Seu conceito cha-ve o de oxigenao. A maior oxigenao, maior capacidade corporal para res-ponder s demandas de gasto energtico. O efeito principal do treinamento ele-var a capacidade aerbia e cardaca com a conseqente maior e melhor distribui-o de oxignio para todo o organismo que se traduz em maior disponibilidadeenergtica.10Assim, a atividade corporal, nos formatos que preconiza, tem por fi-nalidade central maximizar as funes respiratria e circulatria do organismo.Enfatizemos, Cooper no pretende em suas primeiras obras, quando desenvolveos fundamentos e programas do mtodo Cooper, que alcancemos uma capaci-dade mdia ou normal em termos, por exemplo, e testes de distncia em tempospadronizados.11Pretende que cada praticante maximize sua capacidade cardiores-piratria elevando sua capacidade de consumo de oxignio. Seu ideal, que se re-flete nos mtodos de avaliao na pista ou na esteira rolante, o atleta da corridade mdia e longa distncia. Seus programas de treinamento estimulam para queseja subida a ladeira de sua escala de aptido ou condicionamento fsico. Seusfundamentos e suas propostas so universais, pretendem-se cientficos, e deixampouco ou nenhum lugar para adaptaes individuais, seus programas so elabo-rados para as categorias que se formam a partir da classificao pelos testes.

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    J nas primeiras obras, Cooper insiste sobre a necessidade de sermos disci-plinados, de manter alta a chama da motivao e da esperana, de no cairmos nodesnimo, de sermos persistentes. Exige dos praticantes uma alta no autocontro-le das foras que puxam na direo da desistncia. Sua pregao para reforar avontade necessria para cumprir com seus programas de desenvolvimento da ap-tido so constantes e ocupam lugar central ao longo de suas obras. Embora hajauma estrutura bsica em termos de fundamentos tericos, de pesquisa empri-cas e de tcnicas, h, em termos dos programas de condicionamento fsico, aolongo de sus obras, algumas diferenas significativas que aparecem entre, de umlado, AerobicseNew aerobics, escritas no final dos sessenta e comeo dos seten-ta, e, do outro, The aerobics program for total well-being, de 1982 e, especial-mente, e bem mais tarde, Its better to believe, publicada em 1995. Centraremosnossos comentrios sobre as diferenas e seus possveis significados.

    Da aptido ao equilbrio

    As duas primeiras obras de Cooper esto concentradas no desenvolvimentoda aptido ou do condicionamento fsico. Assim, em Aerobics, enfatiza o valor doexerccio fsico, a base de seu sistema, a explicao dos diferentes tipos de exer-ccios e o motivo de ser o aerbio superior; os testes, o sistema de desenvolvi-mento da aptido, as bases empricas do mtodo; os efeitos do treinamento, ascondies clnicas e as regras de nutrio, fumo e lcool. Os temas so retoma-dos em The new aerobicsquase sem variaes. Cooper destaca os efeitos benfi-cos dos exerccios aerbios, a importncia do exame mdico, os testes e suas ca-tegorias, as propostas ou programas de exerccios por grupo de idade e temas co-nexos. Em ambas as obras, propaga os efeitos teraputicos da prtica aerbia, suacapacidade de reduzir a probabilidade de doenas, sua contribuio para a dispo-sio fsica e mental e o aumento da capacidade para responder s demandas deconsumo energtico. Os dois livros, portanto, desenvolvem os mesmos temas, asmesmas idias e esto baseados na confiana de que as pessoas podero entendere experimentar os benefcios fsicos e mentais da atividade aerbia.

    Em sua obra publicada dez anos mais tarde, em 1982, O programa aerbiopara o bem-estar total, o modelo de exposio comea a mudar. Categorias quenem apareciam ou apareciam de forma apagada nas obras anteriores comeam aser destacadas. Assim, na prpria capa da obra lemos: exerccios, dietas, equil-brio emocional. A noo do equilbrio passa a estruturar a obra: princpio de equi-lbrio, equilbrio na dieta, equilbrio fsico e mental, equilbrio emocional, equil-brio geral do corpo so suas noes organizadoras. Na verdade, o equilbrio no definido nem demonstrado, o que Cooper faz dizer: onde existe o equilbrioexiste uma sensao de bem-estar, ou seja, se nos sentimos bem porque esta-mos equilibrados e se estamos equilibrados nos sentiremos bem. A circularidadeda definio e a falta de indicadores bastante bvia.

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  • H, portanto, um reconhecimento, talvez mais aparente do que real, da com-plexidade humana e o emocional passa a ser seu indicador. A proposta de inter-veno pareceria que se psicologiza, que permite a entrada de novas dimensesno presentes em suas primeiras obras. Contudo, a dimenso emotiva apenasvista sob a tica da tenso ou do estresse, provocados pelas supostas condiesda vida moderna. De fato, tenso e estresse apenas aparecem enunciados, no soteorizados, nem mesmo tratados com um mnimo nvel de fundamentao fisio-lgico, psicofisiolgico ou psicolgico. Temos indicaes, ento, de que Cooperest tentando conciliar sua proposta com novos dados que circulam no ambiente:a influncia da dimenso emotiva sobre a personalidade, sobre a disposio e asdoenas.12 Mas, sua mensagem final sobre o assunto que o exerccio pode inci-dir positivamente sobre o equilbrio emotivo.

    De um modo geral, a obra explicita um recuo que se expressa na defesa damoderao em relao aos exerccios aerbios. Cooper declara que em outra po-ca eu julgava que um bom programa de exerccios fsicos era capaz de compen-sar maus hbitos de sade e hoje eu me censuro por ter declarado que o exercciopode superar muitos, seno todos os efeitos deletrios da dieta alimentar (1982:p. 13). Cooper pareceria abandonar a alavanca do exerccio fsico como ferra-menta, seno nica, principal. Equilbrio e moderao passam a ser seus termoschaves. Cooper passa a declarar que se voc est correndo mais de 4,8 quilme-tros, cinco vezes por semana, est correndo por algo mais que a aptido fsica(idem). Introduz como elemento central o bem-estar espiritual. De fato, em co-mentrios de suas obras anteriores, Cooper tinha notado, com certo desconsolo eironia, que os participantes de seus programas de condicionamento na fora a-rea falavam de forma compulsiva sobre o condicionamento. Digamos que Coo-per tinha constatado algum tipo de diminuio da sociabilidade e espiritualidadena dedicao compulsiva ao treinamento ou, pelo menos, que participar ativa-mente do treinamento estava associado com o falar compulsiva e positivamentesobre ele. Podemos pensar que o esforo do treinamento exigia o reforo positi-vo de sua valorizao simblica na conversa constante sobre ele. Havia, ento,um centramento fsico e simblico sobre a atividade aerbia.

    Contudo, os anncios de espiritualidade ou de espiritualizao do bem-estarno levam Cooper a abandonar sua cientificidade.

    O corpo humano simplesmente mais uma parte do universo que deve estarem perfeito equilbrio. Somos constitudos de tal maneira que necessitamosde uma quantidade exata de exerccio, nem mais, nem menos. Necessitamosda quantidade exata de determinados tipos de alimentos. (...) E onde existefalta de equilbrio existe tambm uma falta de bem-estar pessoal. Da mesmamaneira, pelo lado positivo, onde existe equilbrio existe uma sensao debem-estar. E onde existe equilbrio perfeito existe o que chamo de bem-estartotal (1985: 17).

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    Cooper na sua guinada para a espiritualidade e o psicolgico no renuncia cientificidade nem universalidade, presentes em sua crena sobre a quantida-de exata. Novamente declara que seus resultados so produtos de pesquisas rea-lizadas por longo tempo. O objetivo, entretanto, passa a ser o bem-estar total eseus benefcios so os mesmos que eram publicitados para o exerccio aerbioque, no novo esquema, torna-se um dos componentes do bem-estar total.

    H, no entanto, uma variao no modelo. No se trata agora de maximizaruma das variveis, o esforo na atividade fsica, trata-se de realizar o esforo exa-to para alcanar o equilbrio de trs necessidades fundamentais: o exerccio aer-bio, fixado em no mais de 24 quilmetros por semana,13 a alimentao positivae o equilbrio emocional.

    Na necessidade bsica do exerccio aerbio Cooper retoma seus argumentos afavor da atividade de distncias longas e lentas (long, slow distance, ou L.S.D).Em minha opinio, este princpio de equilbrio por meio da atividade fsica simples-mente reflete o que o corpo humano foi originalmente destinado a fazer (i d e m: p.21). Aatividade aerbia levaria ao equilbrio que seria uma demanda corporal origi-nal ou de natureza em sua adequao ao meio. Cooper, ento, imagina a vida na tri-bo primitiva que exigiria muita atividade fsica, longas caminhadas, corridas etc.Cooper no se fundamenta em estudos antropolgicos, no os cita nem faz refern-cia (i d e m). De fato, ele imagina que assim foi o passado e que, portanto, o org a n i s-mo desequilibra-se quando submetido a uma vida sedentria1 4. Em poucas linhas,Cooper liquida com problemas de tamanha magnitude sem sequer levar em consi-derao, por exemplo, as etnografias que descrevem ciclos de atividade/inatividadena vida dos povos primitivos, nem o fato elementar de que a esperana de vida des-ses povos bem baixa apesar dos mecanismos de seleo natural agirem com signi-ficativos efeitos, nem que bem possvel que mesmo o estresse e a tenso sejammaiores que entre os modernos15 . Idealiza, portanto, a vida primitiva para tornar al-guns de seus elementos como modelo original das necessidades humanas.

    A segunda necessidade a de desenvolver hbitos alimentares destinados adurar a vida inteira (1982: p. 22)1 6. Cooper no parece entender que as recomen-daes alimentares que nossos conhecimentos permitem elaborar so, de fato,transitrias, pois dependem do estado dos mesmos. Cooper tem uma viso conge-ladora dos conhecimentos cientficos e somente por essa viso que pode reco-mendar hbitos para durar a vida inteira. Por ltimo, Cooper defende a idia deconseguirmos o equilbrio emocional. As tenses ou estresses da vida moderna le-variam perda do equilbrio emocional, falta de paz interior, ansiedade da qualgostaramos de livrar-nos para sentir-nos descontrados e felizes. Aperda do equi-lbrio emocional resulta numa queda de nossos nveis de energia e numa perda denosso mpeto de realizar e sobressair (1985: p: 24). De fato, a principal receita deCooper para as tenses e o estresse o exerccio e quanto mais aerbio melhor,alm dos discutveis valores culturais que defende de realizar e sobressair.

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  • Na obra que estamos comentando, Cooper incorpora como central o equil-brio emocional. Contudo, os dois vetores principais continuam sendo os hbitosalimentares e o exerccio aerbio. O que importa destacar que Cooper adapta atradio da fisiologia do exerccio s demandas de uma sociedade na qual a fadi-ga e o cansao passam a ceder o cenrio das preocupaes para o estresse, para olado emocional das pessoas. O exerccio aerbio no tem apenas a finalidade deaumentar o condicionamento cardiovascular, agora tambm deve agir sobre a an-siedade e a depresso. Cooper acumula argumentos nessa direo, embora se res-trinja em grande parte a contar casos pessoais favorveis e algumas experinciasde grupo tambm favorveis17. Sua insistncia em relatar casos positivos de curaou melhoras a partir do exerccio aerbio, alm de terem a funo pedaggica deconvencer o leitor, parecem esconder as dificuldades de usar dados de pesquisamais consistentes e mais discriminantes. discutvel, por exemplo, que o exerc-cio aerbio seja um bom remdio tanto para a depresso como para a ansiedade.Cooper no demonstra suspeitar que a melhora na autoconfiana e segurana dosmembros de um grupo, participantes de um trabalho de condicionamento fsico,pode tanto resultar do prprio exerccio quanto ser produto das atenes recebi-das por participar do programa18.Assim, no leva em considerao a eficcia sim-blica que produz participar de um programa, escolher participar, sentir-se for-mando parte de uma nova experincia, entre outras consideraes possveis.

    A famlia aerbia: um estudo do equilbrio

    Algumas crticas, no necessariamente personalizadas, devem ter arranhadoa couraa das crenas fisiolgicas de Cooper. Introduz um captulo, o do subttu-lo acima, para referir-se a que existe, contudo, outra espcie de equilbrio, quetranscende ao indivduo e diz respeito ao modo como nos relacionamos uns comos outros. Esse tipo de equilbrio concernente comunidade pode ser um fato toimportante para promover o bem estar total quanto qualquer outra coisa que ten-hamos abordado neste livro (idem: p. 217). Diante das palavras de Cooper, o lei-tor que acredita que somos seres sociais com interesses mltiplos pode ficar en-tusiasmado. Seu entusiasmo no durar muito, pois Cooper continua dizendo:em parte porque proporciona um meio ambiente frtil, no qual nossa dedicaoindividual aptido fsica pode desenvolver-se com maior rapidez (idem). As-sim, o lado positivo da famlia aerbia que possibilita que nossa aptido fsicadesenvolva-se mais rapidamente!

    Cooper declara-se preocupado pela unio da famlia moderna. Ento montauma paisagem aterradora e uma soluo aerbia Adespeito de todo esse caosesse desequilbrio radical em nossa estrutura familiar, eu tenho um sonho arespeito de como poderiam ser as relaes familiares. Existe um novo rtulo queeu gostaria de ver aplicado s famlias do futuro: famlia aerbia (idem: p. 218).

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  • Peligro de Gol

    A famlia aerbia que imagina est formada por membros que podem praticarseus esportes ou corridas isoladamente, dado que difcil faz-lo em conjunto.Porm, o que uniria a famlia seria o interesse mtuo pela boa sade que se ma-nifestaria nas conversas sobre o assunto, em especial sobre a atividade fsica e anutrio, reforando a vontade de realizao dos programas (idem: p. 219). As-sim, o que tinha comentado ironicamente em relao ao programa da fora area,seu centramento compulsivo, torna-se receita para a formao da famlia aerbia.

    Cooper absorve a diversidade dos relacionamentos e finalidades da vida fa-miliar no objetivo da boa sade e sobre os programas para realiz-lo. evidenteque estamos diante de uma absolutizao do valor da boa sade e de uma redu-o unidimensional. Essa operao poderia ser produto do desespero do missio-nrio diante do fracasso de sua pregao.

    Da fisiologia para a religio

    No livro melhor acreditar, Cooper avana na direo da crena ou f reli-giosa na atividade fsica. Reconhece que as pessoas dominam os conhecimentossobre os benefcios da atividade fsica, porm que h um hiato entre o desejo deestar em forma e o ato de estar em forma (1998: p. 16). No se trata de mero sa-ber, a resposta comea com a crena especificamente, as suas convices pes-soais mais profundas quanto quilo que bem, verdadeiro e definitivo para suavida (idem). Cooper distingue entre crenas extrnsecas e intrnsecas. As primei-ras permanecem na cabea sem deslocar-se para o corao. As segundas se carac-terizam por qualidades como profundo compromisso espiritual, certeza de terdescoberto o significado ltimo da vida, devoo pela orao sincera e busca deuma vida verdadeiramente transformada (idem: p. 17). Observemos que tantonazistas, como budistas, fundamentalistas e espiritistas podem entender que suascrenas religiosas tm as qualidades da crena intrnseca. Pode-se matar em no-me de crenas intrnsecas, racistas ou no, monotestas ou politestas. O adjetivoapenas se refere fora da crena, no sua bondade, beleza ou verdade.

    Cooper continua advogando em favor do poder das crenas intrnsecas ou re-ligiosas para o bem-estar fsico e emocional. Cooper passa uma revista em pes-quisas que afirmam existirem relaes significativas entre religiosidade e sade,ou entre religiosidade e cura, ou entre religiosidade e traos positivos de persona-lidade. Descobre os efeitos positivos sobre a sade dos laos sociais e do apoioemocional que, de modo geral, as religies promovem. Sem entrarmos a discutiras pesquisas nas quais Cooper baseia-se, podemos aceitar que a vida religiosa, co-munitria e de famlia boa para a sade individual e coletiva. Contudo, issoapenas importante se pensarmos que a sade, a disposio e a longevidade soo mais importante ou altamente importante. De fato, esse o ponto da crena in-trnseca de Cooper e ela pode no encontrar lugar definido como positivo em to-

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  • das as religies. Assim, o argumento pode ser importante para determinadas reli-gies, no necessariamente para todas. Outra posio religiosa poderia conside-rar como superior sacrificar-se pelos outros ao invs de preservar a si mesmo. Po-de considerar que melhor dedicar mais tempo leitura dos textos sagrados e orao do que atividade corporal. Pode optar por sacrificar o corpo e a sadepara alcanar verdades espirituais. Como de fato essas outras opes existem, eso bem representativas, podemos admitir que Cooper elabora uma religiosidadefuncional ou utilitria para a atividade fsica e a sade.

    Da mesma maneira que a famlia aerbia pode ser um caminho para a boaforma, a religio posta como meio da boa forma em Cooper.A motivao reli-giosa pode ser um caminho para a boa forma, e Cooper alegremente relata o ca-so de uma paciente que, por problema de doena, estava abandonando seus tra-balhos religiosos; retomar esses trabalhos foi sua motivao para realizar ativida-de fsica. No exemplo, a mulher do relato apenas realiza atividade fsica porquese sente mal e no pode realizar seus trabalhos religiosos. Se um comprimido lhetivesse devolvido o bem-estar e a capacidade de agir, possivelmente no teria en-carado um programa de exerccio fsico.

    Mas, h uma segunda elaborao das relaes em Cooper e nela a relao en-tre cuidados de si, no caso atividade fsica, e religio torna-se interior ou intrn-seca. Ele mesmo coloca-se como testemunha. Conta-nos sua vida de criana eadolescente dedicada prtica esportiva. Essa rigorosa rotina de exerccios pa-recia-me parte essencial do que Deus desejava que eu fizesse com a minha vidanaquele momento (idem: p. 28). Tudo mudou abruptamente quando iniciou seusestudos de medicina em Oklahoma.

    A minha condio fsica comeou a despencar porque eu, como muitos ou-tros atletas do ginsio e da faculdade, no tinha mais acesso ao ambiente deapoio e de motivao da equipe Eu no tinha absolutamente nenhuma mo-tivao interior. Mesmo a minha f religiosa, que casara to naturalmentecom as minhas atividades atlticas na escola, de alguma maneira no pareciaser relevante para a minha condio fsica de ento. Eu nem pensava que fos-se bastante importante rezar sobre o tema No me passou pela cabea quetalvez minha f exigisse que eu fizesse o possvel para manter meu corpo emforma. (idem: p. 29).

    Cooper conta-nos que para preencher as exigncias do curso de medicinapassou a dormir pouco, trs ou quatro horas, e a comer demais, talvez um meca-nismo de compensao ou de equilbrio. Tornou-se uma pessoa cansada, seden-tria, com muitos quilos a mais. Cooper declara que a pessoa ambiciosa e ativaque era estava desaparecendo. Ou seja, uma mudana nas condies e sobretudonos objetivos, o estudo, levou a uma transformao rpida da personalidade deCooper, abandonou sem dificuldades a atividade fsica e entregou-se sem culpaao sedentarismo.

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    A culpa fsica seguida da moral apareceria mais tarde. Um dia foi fazer esquiaqutico e praticar um pouco de slalom. O esforo provocou a dor, as nuseas, afreqncia cardaca elevada. Cooper ficou aterrado e ouviu o chamado de alerta.Declara ento que comeou a compreender

    que meu corpo era verdadeiramente um templo de Deus, mas um temploque eu deixara cair em lamentvel abandono. Era claro que cabia a mim man-ter esse templo em forma se eu tinha esperana de viver uma vida completae satisfazer os planos de Deus para ela (idem: p. 32).

    Cooper relata exatamente o mesmo episdio na sua obra editada em 1982,The aerobics program for total well-being; contudo, naquele relato, no faz nen-huma referncia a interpretaes religiosas. Assim, nos treze anos que se passa-ram entre essa obra e a outra, melhor acreditar, Cooper decidiu que devia e po-dia falar na linguagem da religio, no apenas ou somente na linguagem laica dafisiologia do esporte. Faz isso assumindo o Deus interior que caracteriza as cren-as religiosas dos Estados Unidos. Porque fez isso? Podemos elaborar uma ten-tativa de resposta. Podemos pensar que Cooper caminha na direo dos argumen-tos religiosos diante do pouco xito dos argumentos fisiolgicos ou de ordem m-dica, diante do desencanto com as baixas realizaes da pastoral do exerccio. Afundamentao da motivao em termos religiosos parece estar favorecida portrs condies: i) o que tem sido denominado como ressurgimento religioso, so-bretudo no campo das religies associadas New Age;19 ii) dados de pesquisa queapresentam uma relao positiva entre vida religiosa e sade20 e iii) a interpreta-o americana de Deus.

    A partir dos anos setenta crescem os trabalhos jornalsticos e cientficos querelatam estarmos diante de um ressurgimento da religio, de uma nova eferves-cncia religiosa. Sob a denominao de New Age, Nova Era, agruparam-se as no-vas buscas, propostas e expresses religiosas. A motivao religiosa passou a serreconhecida e estudada como formando parte da modernidade tardia ou da ps-modernidade. Neste sentido, surgiu um clima favorvel para reintroduzir as ti-cas religiosas na vida cotidiana e, muito especialmente, no campo do tratamentodos corpos e dos espritos, na manuteno da sade, na consecuo do equilbrio,na resistncia e manejo do estresse, enfim, em campos estreitamente vinculadoscom a interveno de Cooper. Assim, vincular religio com exerccio adquiriuuma nova legitimidade. Se essa vinculao era privada ou subjetiva, os novostempos permitiram que fosse posta como pblica e objetiva.

    Ambas caractersticas, pblica e objetiva, aparece nos estudos e pesquisasque correlacionam vida religiosa e sade, f e cura. Em Cooper, entretanto, a re-lao que importa a da crena religiosa como base motivacional ou motivaopara superar os custos dos esforos de subir a ladeira da montanha do condicio-namento. Tnhamos dito que Cooper trata essa relao quer como exterior, quercomo interior.

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  • A relao interior ou intrnseca aparece quando Cooper passa a pensar o cor-po como templo de Deus e, portanto, seus cuidados formam parte dos deveresreligiosos. O corpo se torna um templo que deve ser cuidado e devemos cuidarde nossas vidas para satisfazer os planos que Deus tem para elas. Como explicaressa representao das relaes de Deus com nosso corpo?

    Eu acredito que para comear a trabalhar essa relao deveramos partir daprovocativa obra de Harold Bloom21. A partir das elaboraes fundamentais deEmerson e James, Bloom desenvolve uma anlise das peculiaridades da religionos Estados Unidos. A essncia religiosa do americano seria o convencimento deque Deus o ama, em oposio total com a observao de Spinoza de que aqueleque ama verdadeiramente Deus no deve esperar ser amado por Ele. Bloom ob-serva que o Cristo americano mais um americano que um Cristo, e que a cons-cincia centrada na prpria identidade e sua exaltao a f dos americanos, emoposio comunidade, e no sentido que se sacrifica a sociedade ao indivduo navida espiritual da nao. A tese central de Bloom que a religio americana sedisfara de cristianismo, porm tendo deixado de ser crist. Conservou um Jesusamericano, muito solitrio e pessoal e ressuscitado, ao invs de um Jesus crucifi-cado que ascendeu de novo ao Pai. Afirma que o americano encontra Deus nelemesmo, porm, aps ter encontrado a liberdade para conhec-lo. A salvao parao americano no pode vir por meio da comunidade nem da congregao, um atode confrontao de um a um. James teria reconhecido em Emerson muitos dos es-tigmas que convencem Bloom da presena da religio americana: a liberdade deconscincia, confiana na percepo vivencial, um sentido de poder, a presenade Deus dentro de si mesmo, a inocncia da carne e a da sangue de si mesmo re-dimidas.

    O brevssimo resumo do entendimento de Bloom da religio americana ilu-mina as posies de Cooper. Permite sugerir pistas para entendermos como apa-rece a idia de um Deus interior e a considerao do corpo como templo. A difu-so do pentecostalismo no Brasil e a emergncia, no seu momento, dos Atletas deCristo deveria impulsar-nos na direo de refletir sobre semelhanas e diferenasno campo religioso e sobre as relaes entre atividade fsica, esporte e religio.

    A modo de concluso

    As elaboraes da fisiologia do esforo e do esporte foram construdas e for-maram uma tradio a partir do sculo passado. Suas mudanas no incidiram demodo significativo nas recomendaes favorveis ao exerccio fsico e a nutrio.Contudo, no campo dos fundamentos para a ao ela dever recorrer a argumenta-es variadas no tempo: utilidade, equilbrio, religiosidade aparecem como su-cesses no disjuntivas na obra de Cooper. Ou seja, o fundamento religioso podeenglobar o do equilbrio e o da utilidade, e isso parece ter acontecido com as ela-

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  • Peligro de Gol

    boraes de Cooper na interao de suas propostas aerbias e a recepo socials mesmas. Sua estratgia de esforar-nos para podermos responder s demandasde esforo, de treinar-nos e condicionar-nos asceticamente para que nossa potn-cia fsica e mental desabroche tem, sem dvida, uma marca estica forte.

    No h, no entanto, um fundamento motivacional de tipo fisiolgico para querealizemos o esforo. De fato, se a teoria darwiniana a que fornece o sentido pa-ra a biologia, e se a fisiologia forma parte dela, a reproduo do gene a nicamotivao ou teleologia possvel. Sade, longevidade, disposio