Cidade Avatar (Abciber_2008)

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1 Cidade Avatar: a reescritura da cidade no ciberespaço 1 ESPACC Grupo de Pesquisa Espaço, Visualidade / Comunicação, Cultura PUC-SP Coordenação Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara Adriana Gurgel 2 Debora Cristine Rocha 3 Eduardo Louis Jacob 4 Gisele Sayeg Nunes-Ferreira 5 Resumo Este trabalho propõe analisar o processo de desmetaforização da cidade “espetáculo” e as possibilidades de remetaforização da cidade agora transformada em meio comunicativo proporcionadas pelo ciberespaço. A análise se dará a partir dos conceitos de sociedade do espetáculo (Debord) e a cidade como meio, mídia e mediação (Ferrara), e tem como exemplo a Parada do Orgulho GLBT Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros realizada anualmente na Avenida Paulista e arredores, na cidade de São Paulo. Palavras-chave Cidade; Espetáculo; Metáfora; Imagem; Ciberespaço 1. Introdução Uma das características mais marcantes de nossa época deve-se à transição da vivência imediata do território para um reconhecimento cada vez mais operado por imagens deste território. A farta disponibilidade e o acesso facilitado a dispositivos eletrônicos satélite como o sistema de posicionamento global mais conhecido por GPS ou global positioning system utilizado para determinar a posição de um aparelho receptor na superfície da Terra, incorporado em palm-tops, celulares e veículos automotivos, e o Google Earth, com suas imagens tomadas a partir de satélites, são exemplos de uma sofisticação tecnológica cada vez mais diversificada, de um mundo mapeado geograficamente. As cidades perdem a predominância da convivência e há a consumação do deslocamento acelerado como modo de vida. A navegação daí derivada não leva em consideração a distância, mas o tempo percorrido. A cidade assume e incentiva essa característica de passagem. Para o indivíduo, os caminhos oferecidos são como obstáculos que ajudam ou impedem o rápido deslocamento do ponto “A” ao ponto “B”. Aquele deslocamento continua sendo exigido, porém a velocidade é mais relevante que a amplitude da distância. Agora, perguntamos quanto tempo dispomos ao invés de qual a distância a 1 Artigo apresentado no II Simpósio da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura, realizado de 10 a 13 de novembro de 2008 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2 Arquiteta e bacharel em Filosofia, mestranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CNPq, [email protected] 3 Jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CAPES, [email protected] 4 Programador visual, mestre e doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CNPq, [email protected] 5 Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação (ECA-USP), doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC- SP), bolsista CAPES, [email protected].

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ResumoEste trabalho propõe analisar o processo de desmetaforização da cidade “espetáculo” e as possibilidades de remetaforização da cidade – agora transformada em meio comunicativo – proporcionadas pelo ciberespaço. A análise se dará a partir dos conceitos de sociedade do espetáculo (Debord) e a cidade como meio, mídia e mediação (Ferrara), e tem como exemplo a Parada do Orgulho GLBT – Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros realizada anualmente na Avenida Paulista e arredores, na cidade de São Paulo.

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Cidade Avatar:

a reescritura da cidade no ciberespaço1

ESPACC – Grupo de Pesquisa Espaço, Visualidade / Comunicação, Cultura – PUC-SP

Coordenação Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara

Adriana Gurgel2

Debora Cristine Rocha3

Eduardo Louis Jacob4

Gisele Sayeg Nunes-Ferreira5

Resumo Este trabalho propõe analisar o processo de desmetaforização da cidade “espetáculo” e as

possibilidades de remetaforização da cidade – agora transformada em meio comunicativo –

proporcionadas pelo ciberespaço. A análise se dará a partir dos conceitos de sociedade do

espetáculo (Debord) e a cidade como meio, mídia e mediação (Ferrara), e tem como exemplo

a Parada do Orgulho GLBT – Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros realizada

anualmente na Avenida Paulista e arredores, na cidade de São Paulo.

Palavras-chave Cidade; Espetáculo; Metáfora; Imagem; Ciberespaço

1. Introdução Uma das características mais marcantes de nossa época deve-se à transição da vivência

imediata do território para um reconhecimento cada vez mais operado por imagens deste

território. A farta disponibilidade e o acesso facilitado a dispositivos eletrônicos satélite como

o sistema de posicionamento global – mais conhecido por GPS ou global positioning system –

utilizado para determinar a posição de um aparelho receptor na superfície da Terra,

incorporado em palm-tops, celulares e veículos automotivos, e o Google Earth, com suas

imagens tomadas a partir de satélites, são exemplos de uma sofisticação tecnológica cada vez

mais diversificada, de um mundo mapeado geograficamente.

As cidades perdem a predominância da convivência e há a consumação do

deslocamento acelerado como modo de vida. A navegação daí derivada não leva em

consideração a distância, mas o tempo percorrido. A cidade assume e incentiva essa

característica de passagem. Para o indivíduo, os caminhos oferecidos são como obstáculos

que ajudam ou impedem o rápido deslocamento do ponto “A” ao ponto “B”. Aquele

deslocamento continua sendo exigido, porém a velocidade é mais relevante que a amplitude

da distância. Agora, perguntamos quanto tempo dispomos ao invés de qual a distância a

1 Artigo apresentado no II Simpósio da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura, realizado de 10 a 13 de novembro de 2008 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2 Arquiteta e bacharel em Filosofia, mestranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CNPq,

[email protected] 3 Jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CAPES,

[email protected] 4 Programador visual, mestre e doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CNPq,

[email protected] 5 Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação (ECA-USP), doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC-

SP), bolsista CAPES, [email protected].

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percorrer. A velocidade superficializa a paisagem e comprime o espaço e o indivíduo, que,

projetado no tempo, perde a noção de distância. Assim, quanto maior a velocidade da

travessia, menor será a capacidade contemplativa dos objetos e da paisagem. Tudo passa em

um relance, o olhar fica impossibilitado de se fixar. Desta maneira, a cidade é determinada

pela velocidade desse trafegar.

Ao operar no nível urbano, estes aparelhos servem para revelar outras imagens da

cidade. A cidade apropriada pelos dispositivos móveis se mostra em outras imagens, que são,

por sua vez, projetadas globalmente. A conexão wireless permite que qualquer um acesse e

interaja com qualquer ponto do planeta em qualquer lugar e momento, o que transforma

radicalmente o modo de ver, de se tornar visível e se relacionar com as imagens. Toda sorte

de conteúdo está sempre disponível. Na hibridização do urbano com o digital, a cidade perde

seus pontos de referência e ganha referencialidades. Os pontos de referência dizem respeito à

imagem real, que se fazem reais a partir do modo como nos relacionamos com suas

qualidades: a altura dos edífícios e o skyline da cidade; a extensão de uma praça etc. São

pontos nos quais se pode mergulhar enquanto metáforas. Quando transpostas para o

ciberespaço, essas imagens reais se transformam em imagens de sínteses, numéricas, pois são

as que fazem sentido no virtual.

O Google Earth e o Google Maps bidimensionalizam o espaço da cidade e criam

horizontalidades a partir de um ponto de vista inédito da paisagem urbana. Como reconhecer a

cidade agora bidimensionalizada? A verticalidade eliminada constrange o olhar, desmonta os

pontos de referência que antes serviam para indiciar os trajetos, substituindo-os por

referencialidades imateriais.

A Avenida Paulista, em São Paulo, impressiona quem por ela passa, seja em função da

coluna de edifícios gigantescos que se estendem lado a lado por toda a sua extensão, seja pela

largura das vias de circulação de veículos. O paulistano possui uma relação com a Avenida

Paulista enquanto imagem real muito diferente de quando a observa num dispositivo como o

Google Maps, por exemplo. Ali, fica difícil distinguir o MASP – Museu de Arte de São Paulo

– do Edifício Gazeta pois, destituídos de sua verticalidade e comprimidos na tela, ambos

parecem ter as mesmas dimensões. Desaparecem o vão livre do MASP, tradicionalmente

ocupado por toda sorte de atividades culturais, e as escadarias da Gazeta, ponto de encontro

das mais diversas tribos.

O indivíduo passa a reconhecer a cidade não mais a partir do sentido que ele apreende

de suas metáforas, mas agora pelas referencialidades imateriais que encontra no traçado

virtual. O mapa tem o tamanho do território: o trajeto se realiza no momento mesmo em que o

traçado se faz. Na medida em que se cria um mapa com escala 1:1, a cidade se desmetaforiza,

“escapa à esfera das metáforas para entrar no mundo dos modelos” (QUÉAU, 1993, p. 93,

grifo do autor) como imagem numérica. Ao contrário das metáforas, o modelo se dá ao teste,

à experimentação, à exploração sem limites; eis a simulação. (op. cit.)

A cidade metaforizada, por sua vez, constitui o espetáculo, no qual as relações entre as

pessoas que dela participam passam a ser mediadas por imagens. É essa cidade compreendida

como lugar, pleno de metáforas elaboradas por representações individuais e coletivas, que

cede vez à cidade avatar – a cidade reescrita no ciberespaço que levará à cidade planetária, ao

deixar de lado seus pontos de referência ou imagens espetaculares e abraçar o universo

numérico.

Auto-referente, a cidade avatar não aponta o real, mas projeta o ideal, o desejado.

Território da fluidez e da transitoriedade, ela só se lugariza no instante, porque não tem

história e nem geografia, na medida em que não tem tempo, nem espaço fixo. Não tem tempo

porque está sujeita à simultaneidade, um imenso agora, no qual a divisão entre passado,

presente e futuro – que caracteriza o tempo histórico – deixa de existir. Uma ausência de

tempo, ou um tempo que só pode ser entendido como líquido, diluído (BAUMAN, 2007).

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Quando num continuum espaço-tempo, o tempo deixa de existir (por ser sempre o

presente) tudo que existe é o espaço em aceleração. Já não se pode estar em apenas um lugar,

em um determinado tempo, porque se está em todos os lugares simultaneamente. O que não

significa que essa simultaneidade suponha o fragmento ou elimine a diferença. Ao contrário,

ela supõe a inteireza de um outro tipo ou forma de inteligibilidade: ver, ouvir, tatear, tocar,

sentir, tudo ao mesmo tempo, agora. Como aponta Quéau:

A imagem virtual transforma-se num “lugar” explorável, mas este lugar não

é um puro “espaço”, uma condição a priori da experiência do mundo, como em Kant. Ele não é um simples substrato dentro do qual a experiênciaq viria

inscrever-se. Constitui-se no próprio objeto da experiência, no seu tecido

mesmo e a define exatamente. Este lugar é, ele mesmo, uma “imagem” e uma espécie de sintoma do modelo simbólico que encontra-se na sua origem.

É a própria experiência desse espaço que permite voltar à fonte da sua

inteligibilidade, isto é, ao modelo. É a experiência interativa e progressiva do espaço que o constitui epigeneticamente como “espaço”. (op. cit., p. 94)

Por se auto-referencializar, a cidade avatar substitui a fenomenologia – que é sempre

situada no existente – pela matemática. A imagem numérica não é um “acontecimento” [e a

exemplo de Derrida, usamos o termo, aqui, com precaução]. Ela significa todas as

possibilidades, por se constituir um código numérico passível de ser operacionalizado. Já

estamos, em virtude da informação, além do acontecimento que, por sua vez, não teve lugar.

O sistema de informação substituiu o sistema da história, da contagem progressiva. O

acontecimento que é produzido pela informação não tem um significado histórico próprio

(BAUDRILLARD, 2001, p. 57). Nesse sentido, a cidade avatar é um simulacro.

Para Baudrillard não há mais possibilidade de diferenciação entre real e imaginário:

A existência de espaços como os hipermercados, organizados para que nos

relacionemos com os objetos a partir das imagens a eles associadas (hipermercadorias), gera a fragmentação das cidades modernas e o

esvaziamento (indiferenciação) das atividades sociais. O real desertifica-se,

pois o sentido esvaziou-se. (...) Não existe relevo, perspectiva, linha de fuga onde o olhar corra o risco de perder-se, mas um ecrã total onde os cartazes

publicitários e os próprios produtos, na sua exposição ininterrupta, jogam

como signos equivalentes e sucessivos. (COELHO, 2001)

O resultado é um espaço urbano fragmentado, acelerado, destituído das funções

sociais, onde já não se distingue tempo histórico e tempo real: “no tempo histórico, o

acontecimento ocorreu e as provas estão aí. Mas não estamos mais no tempo histórico;

doravante estamos no tempo real, e, no tempo real, não há mais prova de nada”.

(BAUDRILLARD, 1997, p. 72-73)

Dessa forma, os lugares construídos pelos mais diversos suportes materiais e tidos

como pontos de referência que identificam essa ou aquela cidade, dada a sua imensa carga

metafórica, serão apenas dígitos no ciberespaço. Esses dígitos trazem consigo a ausência de

tempo, a relação entre passado, presente e futuro, pois só dispõem do agora. É verdade que os

dígitos formam imagens numéricas, transmitidas digitalmente, mas não prescindem do

analógico para serem compreendidas por milhões de pessoas. Então, mesmo o meio digital

encontra uma forma de reconstruir o analógico, já que se trata de possibilidade intrínseca ao

meio comunicativo. Ou seja, se a cidade se desmetaforiza pela digitalização, ela encontra

outras formas para se remetaforizar enquanto meio comunicativo.

Em São Paulo, a remetaforização fará a cada ano da Avenida Paulista, uma passarela,

uma verdadeira praça horizontal durante a parada gay. Essa passeata lugariza a Avenida

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Paulista com a apropriação festiva dos participantes que celebram o orgulho gay e protestam

contra o preconceito, mas o impacto dessa lugarização não se atém a São Paulo, alcança o

planeta. Afinal, trata-se do maior evento do tipo no mundo todo, contando, nos últimos anos,

com mais de 3 milhões de participantes.6

É interessante notar que, ao menos na sua edição mais recente, em 2008, a parada foi

um evento em grande parte articulado pela Internet, uma forma de planejamento que revela a

desmetaforização da cidade na rede. A Avenida Paulista, durante a fase de organização da

passeata, será referencialidade para quem pretende participar do desfile. Mas, durante o

evento, a Avenida Paulista será remetaforizada e recuperará seus pontos de referência, ainda

que por um instante fugaz e efêmero que corresponde ao momento exato da passeata.

Extrai-se daí a necessidade de uma inteligência conectiva (KERCKHOVE), derivada

da rede mundial de computadores, aberta e em expansão, que proporciona os meios de

convergência, traduzida pela nova multidão (HARDT e NEGRI, 2001) que faz com que o

digital permita a reapropriação da cidade e a retomada de sua capacidade de decisão.

A dinâmica desmetaforização e remetaforização observada na Avenida Paulista,

durante a parada gay, indica o quanto o lugar será concebido na cidade planetária de forma

diversa do lugar próprio da cidade “espetáculo”. Se o lugar espetacular é assinalado por um

ponto de referência fixo, bem conhecido e passível de ser encontrado a qualquer tempo, o

lugar planetário será configurado em tempo real, não possuirá duração, mas conceberá novas

metáforas a fim de gerar consequências político-sociais.

2. A cidade e o ciberespaço Com a globalização e a tendência à homogeneização da cultura, o espaço parece não

mais se situar; ao contrário, ausenta-se. Nômades digitais procuram, no ciberespaço, um lugar

onde possam construir identidades. O lugar de encontro é o “nenhum lugar”, o ciberespaço,

que transforma o mundo em uma sala de passagem. O deslocamento, errante e sem percursos

pré-definidos, ocorre num espaço sem limites ou territórios, marcado pela possibilidade

tecnológica do acesso informacional. Com a tecnologia digital, conceitos e representações de

tempo e espaço vigentes desde a antiguidade pedem uma revisão de seus elementos

constituintes: “A nova comunicação digital e o ciber-espaço surgem como um desafio porque

assinalam a perda dos paradigmas de estabilidade que caracterizavam o espaço físico,

geográfico ou territorial” (FERRARA, 2007, p. 28).

A velocidade das transformações banaliza o tempo histórico na medida em que nos faz

perceber que o tempo gasto num deslocamento pode ser menor do que a distância envolvida.

Na era do digital, caracterizada pela velocidade por aceleração, o tempo é o presente e o

espaço é o aqui (onde se está). Os paradigmas temporais e espaciais que estruturaram a

ciência ocidental (temporalidade contígua, causalidade) perdem sua aparente eficácia diante

de um tempo inseguro, impreciso e desconfortável, bem como de um espaço que não está

situado definitivamente, mas é construído na mobilidade de suas espacialidades.

O presente é o espaço em que ocorrem as coisas presentes, um espaço sem tempo (sem

passado, nem futuro), ou seja, é o espaço da complexidade sistêmica. O fixo se torna fluxo, o

objeto se torna líquido – daí decorre a dificuldade de se trabalhar o espaço, de identificá-lo, já

que este se desmonta e se remonta em um processo contínuo, onde não se tem condição de

perceber o que vem antes e o que vem depois, já que tudo ocorre ao mesmo tempo. O

ciberespaço e a cibercultura obrigaram, portanto, à realização de um revisão na teoria do

6 Segundo a Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, em 2007, o evento reuniu 3,5 milhões de

participantes e em 2008, 3,4 milhões. Ver: Público da Parada Gay cai para 3,4 milhões, diz ONG após medição.

Folha Online, 28/05/2008. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u406419.shtml. Acesso em

08/10/2008.

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espaço.

Como a cidade é reescrita pelo digital? O que acontece, por exemplo, ao se acessar o

Google Maps, dispositivo gratuito que possibilita a visualização, via web, de imagens da

Terra feitas por satélites, com maior ou menor proximidade (zoom)? Estados Unidos, Canadá,

Europa e Brasil já têm mapas e rotas de pontos importantes disponíveis, e é possível cadastrar

empresas e encontrá-las nas imagens da rede. Além disso, pode-se criar suas próprias rotas,

destacar pontos relevantes e áreas de interesse, fazer comentários e compartilhar este

conteúdo através de links de acesso ao novo mapa criado.

Na cidade, os pontos de referência indicam caminhos, indiciam o deslocamento,

marcam o trajeto. As imagens numéricas do ciberespaço, por sua vez, estão presentes no

tempo atual e auto-referencial. A cidade planificada (imagens que não têm dimensões,

profundidade) é vista por meio de sua funcionalidade: o MASP e o Edifício da Gazeta são

identificados no Google Maps, por exemplo, por sua função de identificação instrumental e

não por sua função social. Destituída de pontos de referência, já que estes se tornaram

desnecessários – não remetem mais a coisa alguma –, explicitam referencialidades que não

perduram.

Pode-se falar em mapa aqui, já que o ciberespaço se confunde com o próprio

território? Desenhado pelo dispositivo digital utilizado para identificá-lo, o ciberespaço abarca

imagens numéricas que se identificam com a própria natureza do dispositivo que as produz e

acaba por substituí-las. A relação perceptiva se dá, portanto, não mais com a imagem, mas

com o dispositivo que a produz. Tem-se um simulacro, a perda do ponto de contato entre a

imagem e o objeto representado, e a imagem de síntese passa a valer por ela própria.

Em toda imagem existe a possibilidade de se empreender uma arqueologia do objeto.

Através de uma escavação arqueológica, pode-se tentar desvelar possibilidades de dizer, de

representar o objeto. Desconstruir, tal como apontava Derrida (que criticava a cultura

ocidental, baseada num racionalismo pretensamente universal, e partia para uma

desconstrução – e não destruição – da metafísica logocêntrica), ou seja, abordar criticamente

qualquer prática ou teoria, desmontar as experiências para compreendê-as. Desconstrução não

como um mero método ou procedimento de análise, mas com a intenção de expor a

insuficiência de uma estrutura formal que não é mais capaz de explicar muito. Perceber nas

ausências outras possibilidades de representação, alimentar-se daquilo que não se mostra.

Desmontar a estrutura e descentrar os sentidos consolidados.

O ciberespaço e sua imagem auto-referencial (que não precisa do outro para se

completar) parecem dificultar tal processo. O digital não trabalha com a desconstrução pois,

ao criar uma realidade que não tem tempo nem espaço – uma realidade numérica, um dígito,

um algoritmo – , impossibilita o trabalho analógico. Aqui não há imaginário – o tempo é o

tempo real, o espaço idem.

A imagem numérica nega a alteridade, a mediação e impossibilita a comunicação, a

troca. O dispositivo, no entanto, tem a possibilidade de gerar interatividade a partir de suas

conseqüências, transformando-se em meio. É dessa forma que uma multidão de minorias

consegue, através do suporte digital, enorme capacidade mediativa, com inúmeras

conseqüências, que podem ser situadas, datadas, marcadas em termos temporais, espaciais,

geográficas etc.

Paradoxalmente, a interação face a face parece não ter se perdido no ciberespaço. A

comunicação (o surgimento e a manutenção de vínculos) ocorre de forma similar às cidades,

numa rede de mediações – mas que agora são tecnológicas. A criação destas redes de

mediações torna-se possível, neste espaço-tempo onde o pertencimento a um determinado

grupo faz-se mais importante do que qualquer fragilidade do meio – já que espacialidades são

cada vez mais frágeis e momentâneas, esporádicas e de vida cada vez mais curta. O que

importa é pertencer e aparecer (ligado à visibilidade e ao simulacro como mais uma

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possibilidade de mediação). Hoje.

3. Dimensões comunicativas da Avenida Paulista A rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a rua do Ouvidor, conserva Noé, a

família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da

cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os

sentimentos e todas as idéias... (Tempo de crise, Machado de Assis)

A cidade é palco e é ator, é sujeito e objeto comunicativo. Para Machado de Assis,

tem um corpo de pedra e um rosto. Em São Paulo, a Avenida Paulista é apenas um dos muitos

rostos que a revelam como cidade. Será que se pode dizer que é “o rosto” de São Paulo?

Também há o Horto Florestal, o centro e a Sé, a Rua Oscar Freire, a Avenida 23 de Maio, a

25 de Março, a José Paulino, a Faria Lima e muitos outros rostos “eloqüentes que exprimem

todos os sentimentos e todas as idéias”. São Paulo é, sem dúvida, múltipla, como a Hidra de

Lerna aterrorizante com suas inúmeras cabeças mitologicamente associadas aos vícios e

perversões. A própria Avenida Paulista se faz múltipla, a exemplo do mito enfrentado por

Hércules em um dos seus doze trabalhos.

Mas a Paulista também é corpo, microcosmo em relação à megalópole que a

envolve, macrocosmo daqueles que a apropriam todos os dias. Corpo de pedra, concreto, aço

e algum verde, composto por inúmeras possibilidades. Meio que se desvenda e esconde, que

põe à mostra e oculta, que permite e limita inúmeras possibilidades e dimensões

comunicativas. A Paulista não é uma ou outra coisa; mas, sendo uma e/ou outras muitas, só

pode ser lida a partir dessa ambigüidade que a constitui:

ou seja, a cidade [e a própria Paulista] é, ao mesmo tempo, objeto

comunicativo e sujeito da própria interação que nela se desenvolve: entre as

duas possibilidades podemos salientar a dimensão do seu ambiente mediativo e observar as nuances e nexos que se estabelecem entre meio, mídia e

interação (FERRARA, 2008, p. 43).

“O meio é a pele da cidade” (op. cit., p. 44), edifícios, ruas, monumentos, todos

aqueles suportes que, em sua concretude, criam os ambientes que podem ser os facilitadores

ou inibidores da comunicação. “A imagem da cidade é a sua mídia” (op. cit., p. 45), ou seja, a

imagem que instrumentaliza sua paisagem e sua visualidade, indicando (e quase

determinando) o modo de olhar e, como conseqüência, de se relacionar com a cidade. A

imagem midiática pretende representar os desejos individuais e coletivos daqueles que vivem

a cidade, pretensamente de modo sempre novo e original. No entanto, só o pode fazer , a cada

nova imagem, impondo um “significado de mão única”, que ignora as contradições, as

ambigüidades e as transformações provocadas pela interação do homem e a cidade.

O próprio plano urbano procura transformar a cidade em mídia, dispondo-a de

forma a valorizar imagens e gerar visibilidades distintas; o que, por sua vez, não significa,

necessariamente, que a cidade seja meio. Vide Brasília, como exemplo. Ou mesmo as

dimensões agigantadas (tanto vertical como horizontalmente) da Avenida Paulista.

Já a mediação, por se constituir o seu “grau zero”, não pode (e não o faz) prescindir

da mídia. Ao contrário, toma como ponto de partida as imagens e possibilidades que dela

advém:

a mediação supera a imagem e é processo, justaposição de experiências e movimento em transformação contínuos. (...) [uma] complexa experiência que

atinge, ao mesmo tempo, o usuário e a cidade e, nessa relação ética, ambos

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aprendem a encontrar as melhores alternativas e soluções, independentes de

programas e planos indutores de usos, funções e valores. (op. cit., p. 49)

A Avenida Paulista se faz meio pelos altos prédios de concreto e vidro; os, hoje já

raros, casarões seculares, que quebram, em alguns poucos pontos, a verticalidade que a

circunda; pelo parque, cujo verde desafia o cinza que dá tom ao espaço; nas estações de metrô

e paradas de ônibus que a todo momento alimentam o fluxo ininterrupto; etc. A largura de

suas vias e calçadas impressiona não apenas os turistas, mas também quem vive na cidade.

E se faz mídia, por exemplo, na gigantesca linha reta que se abre aos olhos – como

um trajeto de imensas promessas compostas por aço e vidro – uma das imagens mais comuns

da avenida. Não importa se a imagem ilumina o Museu de Arte de São Paulo e ao fundo a

antena da Gazeta, ou se destaca o prédio da FIESP, a Praça dos Expedicionários, a Casa das

Rosas, Parque Trianon: a linearidade de dimensões assombrosas e a largura das vias, quase

sempre, ajudam a conduzir o olhar.

Mas a imagem é apenas o “grau zero” de um processo de mediação. A largura e a

extensão da Paulista impressionam, sobretudo, os paulistanos, pouco habituados a outros

caminhos nas mesmas proporções. Por outro lado, pode gerar impactos distintos, de acordo

com o “interator”.7

Vista do alto, a avenida se assemelha a um corpo gigante, composto de uma

infinidade de veias que permitem o cruzamento e intersecção de carros e pedestres de um

ponto a outro, como que a alimentar de vida o próprio organismo da cidade. O ritmo, marcado

pelos semáforos, garante a sensação de fluxo contínuo e aceleração que marca a Paulista a

qualquer hora do dia ou da noite. Por outro lado, quem vai a pé está permanentemente envolto

por sua verticalidade, a amplitude em linha reta e o contato constante com outros milhares de

corpos e olhares anônimos. De carro ou ônibus, se o trânsito flui, a linearidade toma conta da

visão e, de certa forma, achata a verticalidade da avenida. Em um ou outro caso, torna-se cada

vez mais comum a apropriação das imagens da avenida por dispositivos digitais (em

aparelhos celulares ou GPS, por exemplo), que, por sua vez, acabam funcionando como

extensões do próprio meio Avenida Paulista / cidade de São Paulo.

E como se dá a mediação, nesse corpo com tantos rostos? O monstro mítico mesmo

se dá à mediação. As tribos todas que circulam pela Paulista – dos trabalhadores e

engravatados homens de negócios que parecem dominar a paisagem durante os dias da

semana; aos gays e travestis que ocupam as noites da avenida (sobretudo no Parque Trianon);

passando pelos emos, punks, skinheads e outras tribos – apropriam-se de suas múltiplas

imagens e as transformam e reconstroem permanentemente. Nesse sentido, a materialidade

real da Paulista acaba por se revelar “como mediação na grande experiência coletiva que é

dada ao homem descobrir e viver” (ops. cit., p. 52).

Já na imaterialidade virtual da Avenida Paulista, apropriada por toda sorte de

dispositivos digitais, a mediação só pode se dar a partir das histórias que são engendradas e

que se apropriam do analógico/material. Isso porque, ao ser transformada em número e

7 Em palestra conferida na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), em setembro de 2008, o professor italiano Franciscu Sedda (Torvergata/Sapienza), recém-chegado de uma viagem aos Emirados Árabes Unidos,

afirmou que a largura da Paulista deixa de impressionar depois que se conhece a Sheikh Zayed Road.

Considerada a maior avenida do mundo, a Sheikh Zayed Road corta Dubai e possui uma característica única,

segundo Sedda: não há possibilidade – ou ao menos não há passagens visíveis – de pedestres atravessarem de um

lado a outro da avenida. Bem diferente da Avenida Paulista que, a cada 30 ou 50 metros, é cortada por passagens

de pedestres com sinalização aérea e de solo. Ressalte-se, aliás, que em toda Dubai as imagens mídiaticas

propiciadas por construções gigantes (concluídas, em obras ou apenas em projeto) proliferam e ajudam a

construir sentidos de cidades: Palm Islands, Burj Dubai (o arranha-céu mais alto do mundo), o Hotel Burj Al

Arab (que parece flutuar sobre o mar), o arquipélago The World, etc.

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desprovida de tempo e espaço fixo, o digital produz uma realidade integral, onde são

rompidas as possibilidades de trabalhar com o imaginário e de se criarem as metáforas.

A visualidade da Avenida Paulista faz dela um dos órgãos principais do corpo da

cidade de São Paulo, órgão que se permite multiplicar como cartão postal nas tomadas

fotográficas e televisivas. É uma visualidade midiática que convida à interação, o que a

transforma em grande praça, assim como revela a falta de espaços que possam dar conta da

concentração e da expressão públicas:

Em São Paulo, a ocupação imprevista de um ponto de grande visualidade

midiática como a Avenida Paulista, a transforma, de um lado, em grande praça

onde se rotaciona a influência da imagem dos lugares horizontais das grandes metrópoles mundiais que se concentram nas avenidas e a transformam, desde

o antigo espetáculo de 1968, em Paris, no lugar do espetáculo urbano. Mas,

por outro lado, indicia a falta, em âmbito mundial, de espaços que, pela

adequação da sua escala, possam permitir, agasalhar ou estimular a concentração e a expressão públicas, supostamente cada vez mais rejeitadas

politicamente. (op. cit., p. 51)

No cenário da cidade de São Paulo, a visualidade da Avenida Paulista estimula a

metaforização e a sua apropriação a transforma no lugar ideal para a agregação popular.

Afinal, o cartão postal, visitado e revisitado a cada menção feita a São Paulo, torna a avenida

tão visível que ela será capaz de fazer tudo o que nela acontece também muito visível. A

avenida será o local mais aspirado, mais procurado para enviar uma mensagem ao maior

número possível de pessoas simultaneamente, ela será o local mais buscado para a experiência

da interação pública. Ou seja, a visualidade desse meio possibilitará que a mídia Avenida

Paulista possua tamanha visibilidade que a dotará com a capacidade de tornar visível

automaticamente tudo o que nela acontece.

Daí, a Avenida Paulista ser o palco mais desejado de São Paulo. Um palco que garante

a construção de novas metáforas.

4. O virtual e a construção de uma nova metáfora Numa busca rápida pelo Google, apenas nas páginas em português, clicando no ícone

Imagens, é possível encontrar mais de 52 mil arquivos referentes à Avenida Paulista. São

mais de 52 mil formas de ver a avenida, 52 mil possibilidades de concebê-la ou 52 mil modos

de metaforizar a Paulista.

As metaforizações mais comuns da avenida e seus arredores instituem a região como

centro financeiro; pólo de cultura e lazer que abriga museus, teatros, salas de cinema, livrarias

e restaurantes; referência hospitalar, pois é o endereço de vários hospitais, laboratórios e

institutos de pesquisa da área de saúde; referência educacional, pois é a sede de vários

colégios e escolas de renome; ponto turístico e complexo viário, uma vez que integra vias

importantes como Rua Brigadeiro Luís Antônio, Rua da Consolação, Avenida Rebouças,

Avenida Doutor Arnaldo, Avenida 9 de Julho e Avenida 23 de Maio.

Há, também, a metaforização dada pela História da Avenida Paulista que a coloca

como ponto histórico da cidade de São Paulo, local escolhido pelos barões do café para

construir seus casarões e residir. E, ainda, as metaforizações que dizem respeito a festividades

e manifestações como o Réveillon na Paulista, a Corrida de São Silvestre, a Parada Gay e toda

sorte de protestos.

Trata-se da cidade espetáculo que se nutre da simulação, que se mostra mas não faz

ver. Ela é espetáculo enquanto exponibilidade, é cena expositiva e contemplativa, na medida

em que ao mesmo tempo em que se vê, se é visto. O espetáculo de Debord, pelo nosso

Page 9: Cidade Avatar (Abciber_2008)

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entendimento, pode ser tomado como metáfora do fetiche da mercadoria, justamente porque o

que faz o espetáculo é a mercadoria fetichizada. Nesse sentido, sociedade do espetáculo é a

sociedade do valor que se apropria das metaforizações para gerar esse valor.

No entanto, quando a Avenida Paulista é transposta para o ambiente digital, quando é

localizada com o auxílio de um dispositivo como o Google Maps, por exemplo, a cidade

perde suas metáforas ao perder seus pontos de referência, ao mesmo tempo em que se

bidimensionaliza. Trata-se da cidade avatar, cujas ruas, para serem percorridas, necessitam de

uma navegação sempre auto-referencial, que se basta ao não remeter a mais nada, e se faz

através de referencialidades e não mais por pontos de referência.

Mesmo as propagandas e banners publicitários inseridos num mapa digital (como por

exemplo, os endereços de bancos ou postos de gasolina sugeridos num trajeto qualquer) são

pontos de consumo, ou supostas referências (referencialidades). A ausência de pontos de

referência se deve à própria ausência de metaforização da cidade. Durante essa navegação,

somos guiados pelos mapas e não pela geografia urbana.

Fonte: http://maps.google.com.br/maps?utm_campaign=pt_BR&utm_source=pt_BR-

ha-latam-br-bk-gm&utm_medium=ha&utm_term=google%20maps

O exemplo da Parada Gay

A Parada do Orgulho GLBT – Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros, realizada

anualmente na cidade de São Paulo desde 1996, tem sido considerada a maior parada gay do

planeta. Em 2008, com o tema Homofobia Mata! Por um Estado Laico de Fato, a organização

do evento estima que a parada tenha reunido 3,4 milhões de pessoas na Avenida Paulista e

arredores, o que transformaria um dos centros financeiros e culturais da maior cidade

brasileira numa imensa passarela.

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Na cidade espetáculo, a Parada Gay é espetáculo carnavalizado, onde o valor de troca

se sobrepõe ao valor de uso. Basta lembrar que atrai todos os anos, milhares de turistas,

vindos de todas as partes do Brasil e do mundo. Segundo a empresa São Paulo Turismo

(SPTurism), este já é o segundo maior evento da cidade de São Paulo e um dos maiores do

Brasil, em termos de movimentação financeira relacionada ao turismo. Em 2008, a estimativa

era de que mais de 320 mil turistas, entre os quais 5% estrangeiros, prestigiassem o evento,

movimentando em torno de R$ 190 milhões e gerando 13,5 mil empregos diretos e indiretos.8

Parada do Orgulho GLBT na Avenida Paulista (Fontes: www1.folha.uol.com.br e g1.globo.com)

Se o evento pode ser compreendido como passeata para reivindicar os direitos dos

homossexuais e atuar como ação afirmatória contra a discriminação, ele também se revela

como a festa que contagia a cidade inteira com a alegria e a irreverência dos participantes. É a

oportunidade de uma minoria se tornar visível ao desfilar em trajes cheios de brilho e pompa e

colorir a Avenida Paulista com o arco-íris, símbolo mundial da homossexualidade.

Nesse sentido, a parada paulistana se aproxima muito mais do carnaval do que

concentrações como as Diretas Já ocorridas durante a ditadura, o que de modo algum diminui

a sua forma de mobilização. Afinal, o humor pode denunciar tão bem o preconceito e

reivindicar mudanças quanto o discurso sério e compenetrado de outras linguagens.

Cheia de graça e comicidade, a parada lembra o desfile das escolas de samba no

Sambódromo do Anhembi, projetado por Oscar Niemeyer. Ao ter lugar numa avenida larga e

retilínea como a Paulista, com milhares de espectadores posicionados nos prédios que a

ladeiam, a parada repete a espacialidade encontrada no sambódromo paulistano, na qual,

enquanto a escola desfila na pista, das arquibancadas, o público acompanha a evolução dos

foliões. Assim, cria-se uma ortogonalidade: espectadores nos edifícios e arquibancadas

indicam a verticalidade; manifestantes e passistas no chão respondem pela horizontalidade.

No eixo horizontal, a marcha dos participantes liga os dois extremos da Avenida

Paulista, do Paraíso à Consolação, em linha reta. Trata-se de uma horizontalidade explorada a

cada passo que, pela concentração de tanta gente, faz desaparecer o asfalto. O ápice ocorre

quando a bandeira do arco-íris, levada pelos manifestantes, recobre a Avenida Paulista. A

avenida agora canta e dança sob uma única bandeira, ou melhor, a avenida se transforma, ela

mesma, numa bandeira colorida. A Avenida Paulista encontra uma nova forma de

remetaforizar-se.

8 http://g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL535251-15561,00-

SELO+VAI+IDENTIFICAR+LOJAS+QUE+ATENDEM+BEM+PUBLICO+GAY.html

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A bandeira do arco-íris recobre a Avenida Paulista

(Fonte: O Estado de São Paulo)

Nessa remetaforização, esse local de São Paulo é apropriado e se torna o lugar do

encontro, da afirmação de um estilo de vida. Agora, a Paulista é o lugar da convivência e da

recreação que caracteriza a praça, o lugar onde a comunidade comparece para ver e ser vista.

Embora a arquitetura da praça esteja em grande parte associada à idéia de círculo ou

quadrado, centralizados e circundados pela cidade em trânsito, o que de fato cria a sua

espacialidade é a lugarização que oferece visibilidade aos membros de um grupo. Desse

modo, e a despeito de sua construção retilínea, a Avenida Paulista passa a funcionar como

praça.

Trata-se, porém, de uma lugarização momentânea, fugaz e que corresponde ao

momento exato da parada. Ao término do evento, o lugar será desfeito. Ele somente será

reconfigurado no próximo ano quando uma nova edição da parada gay acontecer.

É interessante notar que a articulação de toda essa mobilização, ao menos em 2008, foi

realizada em grande parte pela Internet. Ou seja, na rede mundial de computadores, pessoas

de diferentes partes do planeta se comprometem a comparecer ao mesmo local, na mesma

data e no mesmo horário para defender a mesma causa. Na passagem para o digital, a

desmetaforização alcança o ponto máximo, pois o que transita na rede são apenas dígitos,

códigos numéricos que fazem da Avenida Paulista pura referencialidade, destituída de

analogias.

Carnaval contra o preconceito (Fontes: www.estadao.com.br/cidades/not_cid177793,0.htm e http://www.portalaz.com.br/noticias/sexo-geral/108104/20

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Para articular a parada gay da cidade de São Paulo, cria-se na rede uma cidade avatar,

de amplitude planetária, que proporciona os meios de convergência da nova multidão (Hardt e

Negri, 2005 e 2006) a um único ponto do globo em dia e hora determinados. Para além da

multidão do século XIX, a multidão de minorias deste século caracteriza-se pela capacidade

de articulação em nível global, mantendo-se como um conjunto de singularidades. Ela não

pode ser confundida com povo, classe social, população, turba ou massas. Apesar de se

organizar com vistas à realização de um objetivo comum e de não ser fragmentada, a multidão

permanece múltipla, heterogênea, e muitas vezes anárquica e incoerente. Ela surge, se

organiza, existe e desaparece em questão de instantes. Mantém-se apenas enquanto perdurar o

objetivo que une indivíduos tão diferentes. Diferente do corpo humano, a carne viva da

multidão, para Hardt e Negri, governa a si mesma:

A carne da multidão é puro potencial, uma força informal de vida, e neste

sentido um elemento do ser social, constantemente voltado para a plenitude da vida. Dessa perspectiva ontológica, a carne da multidão é uma força elementar

que constantemente expande o ser social, produzindo além de qualquer

medida de valor político-econômico tradicional. Qualquer um pode tentar capturar o vento, o mar, a terra, mas eles sempre serão mais do que podemos

apreender. Do ponto de vista da ordem e do controle políticos, assim, a carne

elementar da multidão é desesperadoramente fugidia, pois não pode ser inteiramente enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político (2005, p.

251).

Desmetaforizada, a cidade – já não mais espetáculo – é transposta para a rede. Num

processo de inteligência conectiva (Kerckhove), os participantes da parada utilizam a rede

para engendrar uma nova metáfora da Avenida Paulista. Mas para que o processo ocorra,

esses participantes precisam passar pela experiência da cidade avatar, onde a parada gay não

mais está restrita à Avenida Paulista ou à cidade de São Paulo. Para remetaforizar a Avenida

Paulista a seu modo, é preciso desmetaforizá-la primeiro no ciberespaço. Remetaforizada, a

cidade volta a ser lugarizada durante o evento.

Os interessados pelo evento agregam-se virtualmente em uma nova multidão e

compartilham a concepção dessa metáfora, articulada como uma nova apropriação simbólica

da Avenida Paulista, que deverá gerar outras conseqüências político-sociais.

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