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AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

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Cena II – Fidalgo (Dom Anrique)

Símbolos cênicos:

Pajem: elemento do povo, vítima da opressão da nobreza, tirania;

Manto: vaidade, classe social da nobreza;

Cadeira: poder, luxo, estatuto social.

Nota: O Fidalgo é a primeira personagem a entrar em cena devido à classe social a que pertence.

Acusações / Argumentos de defesa

O Diabo acusa o Fidalgo de ter levado uma

vida imoral e de prazer: “Tu viveste a teu

prazer.”

O Fidalgo defende-se dizendo que deixou

na outra vida quem rezasse sempre por

ele.

O Anjo acusa-o de tirania, de ter levado

uma vida de prazer e de ter explorado os

mais fracos:

“Não se embarca tirania / neste batel

divinal”.

“…desprezaste os pequenos.”

O Fidalgo defende-se dizendo “Sou Fidalgo

de solar / é bem que me recolhais”

Para demonstrar que ele vivera a seu prazer,

Gil Vicente analisa a vida sentimental do

Fidalgo, repartida entre duas mulheres: a

esposa e a amante. Mas o que o Fidalgo

ignora e que o dramaturgo denuncia, para

caracterizar a sociedade do seu tempo, é

que tanto uma como outra lhe eram infiéis.

É um elemento essencial para a

caracterização do tipo e da sociedade em

que estava inserido.

Destino Condenação

- Orgulho de raça fidalga (”generoso”);

- Desprezo dos humildes (“fumosa

senhoria”);

- Vida imoral e descuidada do fim.

Objetivos da cena:

Crítica

- à nobreza exploradora e corrompida (na fala do Diabo);

- à atitude calculista face à religião da época “Que leixo na outra vida…”;

- Infidelidade e hipocrisia da mulher da corte.

Caracterização Psicológica

Psicologicamente, sente-se confiante no

seu estatuto social e nas rezas das

mulheres que lhe garantiam a salvação.

Tirano e opressor em relação ao povo;

vaidoso e presunçoso, no vestir e no falar.

Após a argumentação do Diabo e do Anjo,

revela a sua ingenuidade, a sua tristeza

ao entrar na barca do Inferno.

Cena III - Onzeneiro

Símbolos cênicos:

Bolsão, que simboliza a ambição

desmedida.

Acusações / Argumentos de defesa

O Anjo refere o facto de o bolsão não caber

na barca “Porque esse bolsão / tomará

todo o navio”.

Acusa-o de cobiça e de ambição “Ó onzena

como és fea / e filha de maldição”

O Onzeneiro defende-se dizendo que o

bolsão vai vazio e sente-se “constrangido”

por não ter dinheiro para pagar ao

barqueiro.

Destino condenação

- Exploração a alto juro (onzena);

- Ambição, só tinha interesses materiais.

Objetivos da cena:

Crítica

- à inutilidade do dinheiro (na fala do Diabo):

“Ora mui muito m´ espanto / nom vos livrar

o dinheiro”

- à exploração por altos juros (na fala do

Anjo) “Ó onzena como és fea”

Caracterização psicológica

Psicologicamente, existe uma evolução na

personagem do Onzeneiro. Inicialmente

está triste, porque morreu e não pôde

amealhar o seu dinheiro, no entanto está

convicto de que irá para o paraíso. A

tomada de consciência da sua

condenação fá-lo ficar desiludido “Ó triste,

quem me cegou?”.

Ele é ambicioso: “Na safra do apanhar / me

deu saturno quebranto” e presunçoso

“Quero lá tornar ao mundo / e trarei o meu

dinheiro”. Estes versos também

demonstram o seu apego ao dinheiro que

é comprovado pela utilização do

determinante possessivo “meu”.

Cena IV – Joane (Parvo)

O parvo é um tipo psicológico.

• Símbolos cênicos: ausência de símbolos;

A linguagem desarticulada e ilógica –

elemento distintivo e caracterizador.

• Representatividade: Não representa

nenhuma classe social e/ou profissional;

Argumentação: Não faz qualquer

argumentação;

Função do Diabo: Não é advogado de acusação e/ou juiz.

Função do Anjo: é advogado de defesa. Traça o destino da personagem.

Destino: Fica no cais à espera de embarcar na Barca da Glória.

Funcionalidade do destino do Parvo:Joane fica no cais para ajudar o Anjo e o Diabo na caracterização e crítica das personagens.

• Caracterização psicológica:

Pela linguagem:

- Simples e ingênuo “Samica alguém”

- Cómico “… De quê?

Samicas de caganeira”

Para o Diabo: Trocista: “É esta a naviarra

nossa?”

Agressivo: “Hiu!hiu! Barca do cornudo /

Pero Vinagre, beiçudo”.

O Anjo em relação ao Parvo é compreensivo:

“Tu passarás, se quiseres; / porque em todos

teus fazeres / per malícia non erraste.”

Destino salvação:

- Errou sem responsabilidade;

- Era um “pobre diabo”, simples.

Objetivo da cena: Gil Vicente, ao construir

esta personagem, tem uma intenção lúdica

e crítica, provocando o riso e utilizando o

Parvo para a crítica de costumes –

“Ridendo, castigat mores.”

Nota: O Parvo insulta o Diabo numa

reacção de espontâneo asco ao mal, que

a Humanidade, normalmente sensata e

pecadora, aí não sente.

Movimentação cênica diferente

Cais

Barca do Inferno Barca da Glória

Função do Parvo na peça

Os Parvos têm, no teatro vicentino, uma função cómica, ocasionada pelos disparates que proferem . Assim acontece neste auto, embora, em certos passos, o Parvo se junte às personagens

sobrenaturais para criticar os que

pretendem embarcar e sirva, algumas

vezes, de comentador.

Cena V – sapateiro (João Antão)

• Símbolos cénicos:

• O avental – representa a sua profissão de

sapateiro;

• As formas – materialização (prova dos

seus pecados)

Acusações / Argumentos de defesa:

O Diabo acusa o sapateiro de roubar o

povo “Tu roubaste bem trint´anos / o povo

com teu mester”.

“E os dinheiros mal levados / Que foi da

satisfação?”

O Sapateiro defende-se com o

cumprimento de preceitos religiosos:

faleceu confessado e comungado, ouviu

missas, ofereceu donativos à igreja e

assistiu à hora de finados.”

O Diabo elucida-o que isso nada abona em

sua defesa, uma vez que roubava:

“Ouvir missa, então roubar / É caminho

per´aqui.”

O Anjo esclarece o Sapateiro dizendo-lhe

“a cárrega t´embaraça” e mais adiante

adverte-o “Se tu viveras direito / Elas

foram cá escusadas” (as formas são as

provas de acusação no julgamento).

Argumentos de defesa:

O Sapateiro diz que não achou mal

nenhum em levar “(…) quatro forminhas

cagadas / Que podem bem ir i chantadas /

num cantinho desse leito”

Destino condenação:

- roubava e, por isso, a sua prática religiosa

não lhe valia de nada.

Objectivos da cena:

- Crítica a uma prática religiosa negativa (na

acusação do Diabo e na defesa do

Sapateiro).

- Os preceitos religiosos (ouvir missa,

confessar-se, comungar, etc) só ajudam

os que levam uma vida verdadeiramente

honesta. É, portanto, mais uma cena

moralista de caráter religioso do que a

condenação de um sapateiro, acusado de

roubar o povo.

Caracterização psicológica:

Hipócrita face à religião “ouvir missa, então

roubar…”, explorador dos seus clientes e

ganancioso “Tu roubaste bem trint´anos /

O povo com teu mester.”

Cena VI – Frade (Fr. Babriel)

Símbolos cénicos:

- O hábito (frade);

- A moça (quebra dos votos de castidade);

- Um broquel, uma espada e um capacete

(vida mundanal).

Acusações / Argumentos de defesa:

O Diabo sentencia que ele irá para o Inferno

por viver amantizado, desprezando assim

os votos de castidade que formulara:

“Gentil padre mundanal”

“Devoto padre marido”

Argumentos de defesa:

Toda a defesa do Frade consiste em

acreditar que o hábito que enverga o

livrará das chamas infernais, bem como

os salmos rezados “E este hábito nom me

val?”, “com tanto salmo rezado?”

Silêncio do Anjo:

O Anjo não dirige a palavra ao Frade,

porque este não cumpriu os preceitos

religiosos, nem os votos de castidade e

dedicava-se a uma vida mundana.

Interpretação do papel do Parvo:

Critica o Frade por viver amantizado com a

moça Florença e ter um procedimento

contrário aos seus votos.

Destino condenação:

- Do Frade devasso, depravado,

amantizado.

- Da moça

- Falsidade na vida religiosa, mundanismo.

Objetivos da cena

- Crítica ao Clero devasso (na fala do

Diabo);

- Crítica à ausência de vocação, à

desconformidade entre os actos e os

ideais, evidenciando um comportamento

hipócrita.

• Caracterização Psicológica

Devasso “Por minha la tenho eu / E sempre

a tive de meu”, folgazão, mundanal: canta,

dança e dedica-se à esgrima “Sabe que

fui da pessoa! Esta espada é roloa / e este

broquel rolão”; era falso em relação à vida

religiosa: “Um padre tão namorado / e

tanto dado a virtude.”

Cena VII – Brísida vaz

Símbolos cénicos:

“seiscentos virgos postiços”

“Três arcas de feitiços”

“Três almários de mentir”

“Cinco cofres de enlheos”

“jóias de vestir”

“Guarda-roupa”

“Alguns furtos alheios”

“Casa movediça”

“Estrado de Cortiça”

- “Dous couxins” e as moças.

Toda a carga simboliza as diversas

actividades da personagem: roubo,

mentira, feitiçaria e prostituição.

Finalidade de tanta carga: continuar a sua

atividade no outro mundo.

Acusações / Argumentos de defesa

Quando o Diabo lhe diz que ela tem de

entrar na Barca do Inferno, ela

argumenta, dizendo “Eu sou uma

mártela tal / açoutes tenho levados /

tormentos soportados”

“Se fosse ò fogo infernal / lá iria todo o

mundo”

Tentando convencer o Anjo a deixá-la entrar na Barca da Glória, além de o lisonjear, utiliza argumentos que demonstram que ela está convicta de que vai para o Paraíso, uma vez que se considera mártir e por ter criado moças para os cónegos da sé. Ela compara-se a um apóstolo e a um anjo das meninas:

“A que criava as meninas / pera os cónegos da sé”.

“Eu som apostolada / angelada e martelada/ e fiz cousas mui divinas”.

A atitude do Anjo face à alcoviteira é de

indiferença, não contra-argumentando

sequer o seu discurso. Esta situação

deve-se, talvez, ao fato de o clero também

estar implicado.

Destino Condenação

- Mentia, enganando as raparigas que

levava à prostituição;

- Vivia descaradamente dessa exploração;

- Era hipócrita.

Objectivos da cena:

- Denúncia de uma profissão escandalosa

(na fala de Brísida Vaz);

- A crítica social, moral e até religiosa está

subjacente a esta cena (prostituição,

roubo, clero…).

Nota: a sua linguagem, sendo hipócrita e

persuasiva, demonstra a sua faceta

profissional, habituada a persuadir as

moças e os clientes, a mentir, a fazer

intriga, a roubar…, revelando assim a

falsidade do seu caráter.

Caracterização Psicológica

Com o Diabo é despachada “O que me

convém levar” e descarada “seiscentos

virgos postiço”.

Com o Anjo é hipócrita “Barqueiro, mano,

meus olhos /prancha a Brísida Vaz”, pois

tenta cativar o Anjo.

Cena VIII – Judeu ( Semah Fará)

Símbolo cênico

Bode às costas: apego à religião (fanatismo)

O Judeu insiste em entrar na Barca do Inferno , pois sabe que não embarcaria na Barca do Anjo.

Acusações

Nesta cena, o Parvo assume o papel de acusação, incriminando-o por não cumprir determinados preceitos da religião vigente:

“Furtaste a chiba, cabrão?”

“E ele mijou nos finados / n`ergueja de São

Gião! / E comia a carne da panela / no dia

de Nosso Senhor!”

O Judeu é acusado de ter roubado e

desrespeitado os preceitos religiosos –

profanar sepulturas cristãs e comer carne

em dia de jejum.

Destino Condenação

- Prática de judaísmo;

- Como tenta subornar o Diabo, subornava

os outros;

- Como judeu, não respeitava a abstinência

e o jejum cristão;

- Profanava o sagrado – sepulturas nos

finados

Percurso cênico diferente

Cais

Barca do Inferno vai a

reboque da Barca do Inferno

Objetivos da cena:

- Denúncia do fanatismo judaico e do amor

ao dinheiro (na fala do Judeu);

- Crítica à falta de respeito pelos valores

cristãos (na fala do Parvo).

Caracterização psicológica

Fanático: “pois também o bode há-de ir”;

Apegado ao dinheiro: “Eis aqui quatro testões / e mais se vos pagará”

Praguejador: Azará, pedra miúda”.

Nota: O pormenor de o Diabo não ter permitido a entrada do Judeu na sua barca é muito significativo: marginaliza de tal modo o Judeu que o coloca num plano inferior ao dos restantes condenados ao Inferno.

Cena IX- Corregedor/Procurador

Símbolos cénicos:

- Processos (“carregado de feitos”);

- A vara;

- Os livros (Procurador).

Acusações / argumentos de defesa

A principal e quase única acusação que o Diabo lança ao Corregedor é a de não ter sido imparcial nas suas sentenças, deixando-se corromper por dádivas recebidas até de Judeus:

“Oh amador de perdiz”; “E as peitas dos

Judeus / que vossa mulher levava?”

Mais tarde o Diabo recorda-lhe que ele

não temeu a Deus e que enriqueceu com

o trabalho dos lavradores ingénuos:

“Não temuistis Deus. / A largo modo

adquiristis /sanguinis laboratorum /

ignorantes peccatorum.”

O Corregedor declara que não tem ar de quem se deixa subornar “No meu ar conhecereis / que nom é ela do meu jeito”.

Diz, ainda, que nunca se deixou corromper e que desempenhou bem o seu papel: “Semper ego justitia / fecit e bem per nivel”.

Ele defende-se retorquindo que os pecados eram da sua mulher “Eram lá peccatus seus/peccavit uxore mea”. Refere ainda que se confessou, no entanto não deu a conhecer os seus pecados ao confessor:

“Eu mui bem me confessei / mas tudo

quanto roubei / encobri ao confessor”.

O Anjo diz-lhes que a carga de papel que

trazem, ou seja, “os feitos” e “os livros”

dos processos judiciais representavam a

injustiça, o suborno, a corrupção…

“Oh! pragas pera papel, / pera as almas

odiosos!” (traziam vários processos

comprometedores).

Destino condenação

- Corrupto, deixando-se subornar;

- Ladrão;

- Parcial;

- Confissão pecaminosa.

Procurador: também e não quis confessar-

se.

Objectivos da cena:

Denúncia da justiça corrompida que se deixava comprar e espoliava o que podia (no diálogo entre o Corregedor e o Procurador e nas palavras do Parvo (Joane).

Nota: A cena IX forma um amplo quadro da justiça humana, que Gil Vicente opõe à justiça divina, que repõe a verdade, sendo intransigente e imparcial. O juiz do tribunal terreno torna-se réu no tribunal divino.

Posicionamento das personagens em

julgamento sobre o sacramento da

confissão e intenção crítica de Gil

Vicente

As duas personagens estão na mesma

situação: uma por não se ter confessado,

cuidava que não morria subitamente

(Procurador); a outra confessou-se, mas

ocultou o que roubara (Corregedor) com

medo de não ter a absolvição sem restituir

o roubo.

A forma como é praticada a religião

evidencia hipocrisia, falsidade e interesse.

Cena X – O Enforcado

Símbolo cénico: a corda

- Representa o modo como a personagem

morreu.

Nota: neste caso a corda (forca) não é um

elemento caracterizador da sua

personalidade ou do seu estatuto social /

profissional, não é um elemento

incriminatório: revela o modo / motivo da

morte do Enforcado.

O condenado morreu enforcado, porque era

ladrão e assassino.

Destino condenação

Em vida à forca (ladrão e assassino)

Depois de morto Inferno

Nesta cena, o Diabo não assume o papel

de advogado de acusação, o seu objectivo

é convencê-lo de que vai para o Inferno.

Percurso cénico diferente

Cais

Barca do Inferno Embarca

Nesta cena, Gil Vicente dá-nos a conhecer

que o Enforcado foi intrujado por Garcia

Moniz, Mestre da Balança da Moeda de

Lisboa. Este teria convencido o ladrão

enforcado de que iria para o Paraíso, visto

ter-se já purificado dos pecados

cometidos, no purgatório do Limoeiro e

que poder-se-ia considerar um “santo

canonizado” por muito ter sofrido durante

toda a vida.

Objectivo da cena:

Crítica à doutrina ou doutrinas que

manobravam as vontades fracas como a

do réu.

Cena XI – Os Quatro Cavaleiros

Símbolos cénicos:

- A cruz de Cristo, a espada e o escudo.

Os símbolos representam a apologia à

reconquista e à expansão da fé cristã

como meio de salvação.

Nota: O juízo final está representado no

alerta aos pecadores pela vida terrena

que condicionará a vida post mortem.

O Anjo apresenta a razão pela qual

esperava os Cavaleiros e lhes permitiu o

acesso à Barca da Glória: morreram

pelejando por Cristo e, por isso, são livres

de todo o mal.

Destino Salvação

- morreram ao serviço da igreja;

- despreendidos dos bens terrenos.

Objetivos da cena:

- Exaltação nacionalista;

- Apologia do espírito de cruzada na luta

contra os Mouros e o elogio ao

despreendimento dos bens terrenos;

- Moralização.

Conclusão da obra

Gil Vicente critica os principais aspectos da

época quinhentista, tais como as classes

sociais, o estatuto social, a religião, a

justiça, o judaísmo, a vida terrena, as

profissões, os costumes, a exploração, a

tirania, a ganância, a vaidade, a

frivolidade…

Todos estes objetos da crítica vicentina

fazem deste auto uma obra atual, pois são

vícios e defeitos que fazem parte da

sociedade contemporânea.