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    Artigo de ReflexoDeus, o mal e a metafsica

    do livre arbtrio1

    God, evil and the metaphysics of freedom

    Alvin Plantinga2Universidade de Notre Dame

    Traduo3:Andr Nascimento Pontes4Universidade Federal do Cear

    Ricardo Sousa Silvestre5Universidade Federal de Campina Grande

    Filosofia Unisinos10(3):317-344, set/dez 2009 2009 by Unisinos doi: 10.4013/fsu.2009.103.07

    RESUMO: Este artigo uma traduo, para o portugus, do nono captulodo livro The Nature of Necessity de Alvin Plantinga, de 1974. Neste, est

    exposta, na sua forma mais completa, a famosa defesa do livre arbtrio para oproblema do mal. Utilizando-se da teoria dos mundos possveis desenvolvidanos captulos anteriores do livro, Plantinga concretiza, reconhecidamente, umabem-sucedida tentativa de mostrar que a existncia do mal no inconsistentecom a existncia de um ser onipotente, onibenevolente e onisciente. Alm datraduo, o artigo contm uma breve introduo defesa do livre arbtrio dePlantinga e ao debate acerca de Deus e o mal na filosofia analtica da religio.

    Palavras-chave: problema do mal, defesa do livre-arbtrio, mundos possveis,filosofia analtica da religio.

    ABSTRACT: This paper is a translation to Portuguese of the ninth chapter ofAlvin Plantingas 1974 bookThe Nature of Necessity, in which the famous free-

    will defense for the problem of evil is presented in its most complete form. Bymaking use of the theory of possible worlds developed in the previous chaptersof the book, Plantinga engages in a recognizably successful attempt to show

    1 Originalmente publicado em Plantinga (1974, p. 164-195).2 Professor de filosofia da Universidade de Notre Dame. Department of Philosophy, University of Notre Dame,100 Malloy Hall, Notre Dame, IN 46556, USA. E-Mail: [email protected] Trabalho parcialmente financiado pelo CNPq (Edital Universal 2007) e FUNCAP (edital BPI 2008).4 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Cear. Departamento de Filosofia, Av. da Universidade,2995, 2 Andar, Benfica, 60020-181, Fortaleza-CE. E-mail: [email protected] Professor de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande. Departamento de Filosofia, Rua AprgioVeloso 882, Bairro Universitrio, 58429-900, Campina Grande-PB. E-mail: [email protected].

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    Alvin Plantinga

    A defesa do livre arbtrio de Alvin Plantinga:uma breve introduo ao debate acerca deDeus e o mal na filosofia analtica da religio6

    Um dos problemas mais debatidos dentro da filosofia analtica da religio o que historicamente se convencionou chamar de o problema do mal. De um modogeral, trata-se dos diversos desdobramentos, tanto tericos como prticos, que

    surgem quando colocamos lado a lado a existncia do mal e a ideia ou crena deque o universo foi criado e governado por um ser onipotente, onibenevolente eonisciente. Em sua forma clssica, o problema nada mais do que um argumento(ou classe de argumentos) que visa estabelecer a irracionalidade da crena em umDeus onipotente, onisciente e onibenevolente por meio da demonstrao de quetal existncia incompatvel com a ocorrncia do mal. Se h um Deus sumamentepoderoso, ento Ele pode fazer qualquer coisa que deseje; se Ele sumamentebom, ento Ele desejar impedir todo o mal do qual Ele tiver conhecimento; e seEle onisciente, Ele saber de toda instncia de mal. A concluso bvia disso que, se h um Deus com esses atributos, ento no deve haver mal no mundo; ou,equivalentemente, se h mal no mundo, ento no existe tal ser.

    Na tentativa de avaliar os diversos movimentos realizados contra e a favor de tais

    argumentos, algumas distines metodolgico-conceituais so fundamentais. Em primei-ro lugar, existem, grosso modo, dois tipos diferentes de problemas ou argumentos domal: o problema lgicodo male o problema evidencial do mal. A diferena entre eles ,basicamente, uma questo de como interpretamos o termo incompatvel na expressoa existncia de Deus incompatvel com a existncia do mal. Enquanto um argumentolgico do mal visa estabelecer uma incompatibilidade lgica (ou inconsistncia) entre Deuse o mal (a existncia de Deus inconsistente com a existncia do mal), um argumentoevidencial visa estabelecer uma incompatibilidade evidencial (a existncia do mal evi-dncia contra a existncia de Deus). A clebre formulao de Hume (2005) e a influentecontribuio de Mackie (1995) so exemplos de argumentos lgicos do mal; formulaesevidencialistas que, atualmente, constituem a regra na rea, so paradigmaticamenteexemplificados pelos argumentos de Rowe (1979, 1996) e Draper (1989).

    Em segundo lugar, h um entendimento de que a formulao precisa doenunciado o mal existe, em um argumento do mal, tem implicaes cruciais sobrea sua avaliao. Podemos, por exemplo, falar sobre a existncia do mal de formageral, indiscriminada, ou podemos ser mais especficos, falando, por exemplo,sobre a existncia de sofrimento causado por agentes morais (mal moral), sofri-mento causado por eventos naturais tais como terremotos, furaces ou doenascongnitas (mal natural), ou, ainda, sobre a quantidade e heterogeneidade do malexistente no mundo. Trivialmente, cada uma dessas maneiras de se falar sobre o

    6 Introduo escrita por Ricardo Sousa Silvestre.

    that the existence of evil is not inconsistent with the existence of an omnipotent,omnibenevolent and omniscient being. In addition to the translation, weprovide a brief introduction to Plantingas free-will defense and to the debateabout God and evil in the analytic philosophy of religion.

    Key words: problem of evil, free-will defense, possible worlds, analyticphilosophy of religion.

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    mal dar origem a verses diferentes tanto de argumentos lgicos do mal comode argumentos evidenciais do mal.

    E, por fim, dado um argumento do mal especfico, existem basicamente duasrespostas disponveis ao testa. A primeira efetuar o que chamamos de defesa,ou seja, uma tentativa de refutar ou mostrar que um dado argumento (ou classede argumentos) do mal no bem-sucedido. A segunda construir uma teodiceia

    (theos: Deus; dikes: justia), ou seja, um corpo terico que mostre no apenas queo argumento do mal no correto, mas que tambm exiba as razes que levariamDeus a permitir o mal. Supostamente tais razes devem ser, no mnimo, razoveis ouplausveis em vista de tudo o que sabemos sobre o mundo (Van Inwagen, 1991, p.139)7. Escritos clssicos sobre o problema do mal, tais como os de Santo Agostinho(1995) e Leibniz (1952) so classificados como teodiceias. Sobre os desenvolvimen-tos recentes, podemos citar a teodiceia de aprimoramento da alma (soul-makingtheodicy), de Hick (1966), e a teodiceia do livre-arbtrio, de Swinburne (1978).

    No que diz respeito defesa, o trabalho de Alvin Plantinga tem sido tradicional-mente considerado como o exemplo paradigmtico de tal empresa. Mais que isso: consenso que a sua defesa do livre-arbtrio refutou de forma bem-sucedida o argumentolgico do mal8, o que explica o relativo abandono do desenvolvimento e anlise de ar-gumentos lgicos do mal e a concentrao em argumentos evidencialistas. Inicialmenteproposto em artigo de 1965 e, dois anos depois, no livro God and other Minds, a versomais bem acabada de sua defesa se encontra no captulo nove do seu livro The Natureof Necessity, de 1974, que apresentada como uma aplicao das ideias sobre necessi-dade e possibilidade, elaboradas no decorrer dos captulos anteriores (Plantinga, 1965,1967, 1974). do captulo nono a traduo integral que apresentamos neste artigo.

    O foco da defesa de Plantinga (1974) o argumento lgico do mal em suaforma geral. Seu objetivo, podemos dizer, refutar o argumento que visa estabelecerque a existncia de um ser onipotente, onibenevolente e onisciente inconsistentecom a existncia de qualquer tipo de mal. Ele faz isso mostrando que a existnciade tal ser consistente com a existncia do mal moral, e oferece, assim, uma defe-sa para o argumento lgico do mal moral. No entanto, nas trs ltimas sees doreferido captulo (que correspondem s trs ltimas sees deste artigo), Plantingaescreve sobre como sua defesa pode ser estendida de forma a se aplicar a um ar-gumento lgico da quantidade do mal, ao argumento lgico do mal natural e aum argumento evidencial, chamado por ele de argumento probabilstico do mal.

    No que se refere ao mtodo usado por Plantinga, trs pontos podem sermencionados aqui. O primeiro diz respeito anlise que faz da estrutura do argu-mento lgico do mal. Duas proposies P e Q so inconsistentes se, e somente se, impossvel que P e Q sejam verdadeiras, ou, equivalentemente, se podemos derivaruma contradio (como, por exemplo, A e no A) a partir de P e Q. No entanto,claramente, nenhuma contradio segue das proposies abaixo:

    (G) Deus, que onipotente, onibenevolente e onisciente e o criador do uni-verso, existe.(E) H mal no mundo.

    Para que isso acontea, preciso que o atesta exiba uma proposio neces-sria R, possivelmente esclarecendo o significado de termos como onipotncia,

    7 Apesar de haver controvrsias a respeito do real papel que uma defesa ou teodiceia tm dentro do debateacerca de Deus e o mal, a maneira como definimos esses termos corresponde, em linhas gerais, visotradicional sobre o assunto. Ver, por exemplo, Peterson (1998) e Trakakis (2007).8 Entre os autores que ecoam tal consenso, podemos mencionar Madden e Hare (1968) e Rowe (1978).

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    onibenevolncia. Tambm necessrio que mostre que uma contradio podeser derivada a partir de GR e E; e isso efetivamente no foi feito por nenhum dosproponentes do argumento lgico do mal. Vejamos que tal argumentao, por sis, j uma defesa9. Plantinga, no entanto, vaialm disso que uma defesa suposta-mente deve fazer: exibindo uma proposio X consistente com G e que, juntamentecom G, implica E, ele se prope a mostrar que G consistente com E, elaborando,

    assim, algo como um meio termo entre uma defesa e uma teodiceia. Para melhorverificar isso, basta notar que uma coisa mostrar que um dado argumento no bem-sucedido em provar que G inconsistente com E, que tudo o que umadefesa precisa; e outra, mostrar que G consistente com E.

    O segundo ponto considera que na busca dessa proposio X que Plan-tinga faz uso da ideia de que o mal que seres dotados de livre-arbtrio cometem,isto , o mal moral, algo que, possivelmente, situa-se alm do controle de Deus.Mais especificamente, ele envereda na tarefa de mostrar que possvel que Deusno tenha criado um universo contendo bem moral sem tambm ter de criar umuniverso que contenha mal moral; ou, equivalentemente, o autor trata de exibirum estado de coisas possvel, em que G verdade e no qual Deus no pde criarum universo com agentes livres, capazes de realizar bem moral, mas sem nenhum

    mal moral. Trivialmente, se somos bem-sucedidos nesse empreendimento, fcilconstruir uma proposio X com as caractersticas acima mencionadas, e, portanto,mostrar que G consistente com E.

    Como terceiro ponto, temos que para mostrar que possvel que Deus nopossa criar um universo contendo bem moral, mas sem mal moral, Plantinga temde refutar o que ele chama de o lapso de Leibniz, isto , a tese de que um seronipotente pode criar todo e qualquer mundo possvel. As implicaes de tal tesepara o projeto de Plantinga so bvias: como h claramente um mundo possvel,com seres livres que nunca cometem aes ms, se o lapso de Leibniz no umlapso, ento Deus, como ser onipotente, poderia ter criado um universo contendoseres livres, mas sem nenhum mal moral. Assim, aps refutar o lapso de Leibniz emostrar que h mundos possveis que Deus no poderia ter criado, Plantinga tem

    de mostrar que, entre tais mundos, esto todos os mundos contendo bem moral,mas sem nenhum mal moral. parte do papel que tal tarefa desempenha no pro-blema acerca de Deus e do mal, Plantinga apresenta, aqui, um valioso e sofisticadoexemplo de anlise conceitual das noes de onipotncia e livre-arbtrio.

    Problema

    Neste captulo e no prximo, aplicam-se algumas das ideias anteriormentetratadas a dois tpicos tradicionais da filosofia da religio: o Problema do Mal (queser tratado neste captulo) e o Argumento Ontolgico. Talvez o primeiro consti-tua a mais formidvel objeo crena testa ou, de qualquer modo, assim tem

    parecido a muitos pensadores. Um grande nmero de filsofos tem defendidoque a existncia do mal , no mnimo, um estorvo para aqueles que acreditam emDeus10. A maioria dos filsofos contemporneos que entende que o mal constituiuma dificuldade para a crena testa alega detectar uma inconsistncia lgica nascrenas que um testa tipicamente aceita. Assim, por exemplo, de acordo com.McCloskey (1960, p. 97):

    9 Aparentemente, o primeiro a efetuar tal anlise e chegar a essa concluso foi Pike (1963).10 Epicuro, por exemplo, assim como Hume, alguns dos enciclopedistas franceses, F.H. Bradley, J. McTaggart,J.S. Mill e muitos outros.

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    O Mal um problema para o testa, pois nele est envolvida uma contradio entre o fatoda existncia do mal de um lado, e a crena na onipotncia e perfeio de Deus de outro.

    Mackie (1955, p. 200) levanta a mesma acusao:

    Penso, contudo, que uma crtica mais significativa pode ser feita atravs do problema

    tradicional do mal. Aqui se pode mostrar, no que as crenas religiosas so vaziasde suporte racional, mas que elas so positivamente irracionais, que as vrias partesessenciais da doutrina teolgica so inconsistentes umas com as outras.

    Aiken (1957-1958, p. 79) repete com mais detalhes esta alegao. Contudo, bvio que a alegada contradio surge quando consideramos o fato de que existeo mal juntamente com a crena que Deus existe e onisciente, onipotente, com-pletamente bom ou moralmente perfeito. Obviamente, essas proposies no soformalmente inconsistentes; os recursos da lgica sozinhos no nos permitem deduziruma contradio explcita da conjuno delas. Mas presumivelmente o atelogo11 aquele que oferece provas contra a existncia de Deus nunca quis afirmar que huma contradio formal aqui. Ele pretende, em vez disso, afirmar que a conjuno

    dessas duas proposies necessariamente falsa, ou seja, falsa em todos os mundospossveis. Para mostrar que est correto, por conseguinte, ele deve exibir uma propo-sio que seja, ao menos, plausivelmente necessria e que, em conjuno com nossasduas proposies iniciais, produza formalmente uma contradio.

    Eu argumentei em outra ocasio (Plantinga, 1967, cap. 5), que extremamen-te difcil achar tal proposio. Tenho argumentado tambm (Plantinga, 1967, cap.6) que a Defesa do Livre Arbtrio pode ser usada para mostrar que, de fato, essasproposies no so inconsistentes. No que se segue, desejo examinar novamenteas questes envolvidas na Defesa do Livre Arbtrio desta vez da posio estratgicadas ideias anteriormente tratadas acerca de mundos possveis.

    A Defesa do Livre ArbtrioA Defesa do Livre Arbtrio um esforo para mostrar que

    (1) Deus onipotente, onisciente e completamente bom.

    (que eu devo tomar como implicando que Deus existe) no inconsistente com

    (2) H mal no mundo.

    Isto , o Defensor do Livre Arbtrio tem por objetivo mostrar que h um mun-do possvel no qual (1) e (2) so ambas verdadeiras. Agora, um modo de mostrar

    que uma proposiop consistente com uma proposio q oferecer uma terceiraproposio r, cuja conjuno comp seja consistente e que implique q. A proposior, claro, no precisa ser verdadeira ou conhecida como verdadeira; ela no precisanem mesmo ser plausvel. Tudo que requerido dela que ela seja consistente com

    p e, em conjuno com esta ltima, implique q. O que o Defensor do Livre Arbtriodeve fazer, portanto, achar tal proposio.

    Antes de tudo, necessrio estabelecer algumas definies e distines prelimi-nares. O que o Defensor do Livre Arbtrio quer dizer quando afirma que pessoas so

    11Atheologian (N. do T.).

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    ou podem ser livres? Se uma pessoaS livre com respeito a uma dada ao, entoela livre para realizar aquela ao e livre para abster-se de realiz-la. Nenhuma leicausal ou condies antecedentes determinam se ela realizar ou no tal ao. Estem seu poder, no momento em questo, realizar a ao, e est em seu poder abster-se de realiz-la. Considere o estado U do universo at o momento em que tal pessoarealiza ou decide realizar a ao em questo. SeS livre com respeito quela ao,

    ento causalmente ou naturalmente possvel tanto que U seja o caso, eS realize(ou decida realizar) a ao, como que U seja o caso, eS no realize a ao.12 Almdisso, dizemos que uma ao moralmente significante, para uma dada pessoa emum dado momento de tempo, se for errado para ela realizar a ao e correto no arealizar, ou vice-versa. Cumprir uma promessa, por exemplo, tpica e moralmentesignificante, assim como recusar a convocao para o exrcito; ao passo que comeruma ma no almoo (em vez de uma laranja) no moralmente significante. Umapessoa erra com respeito a uma ao moralmente significante, se errado realizar aao e ela a realiza, ou se errado no a realizar, e ela no a realiza. Mais ainda, umapessoa significantemente livre em uma dada ocasio, se ela livre com respeito auma ao que moralmente significante para ela. Finalmente, devemos distinguirentre mal moral e mal natural. O primeiro o mal que resulta de algum ser humanoerrar com respeito a uma ao que seja moralmente significante para ele; qualqueroutro mal mal natural.13 O sofrimento devido crueldade humana o tratamentodado por Hitler aos judeus, por exemplo um exemplo de mal moral; o sofrimentoresultante de um terremoto ou maremoto, um exemplo de mal natural. Uma distinoanloga feita entre bem moral e bem natural.

    Dadas essas definies e distines, podemos oferecer uma descrio preliminarda Defesa do Livre Arbtrio como segue. Um mundo contendo criaturas que so, de vezem quando, significantemente livres (e, livremente, realizam, de modo quantitativo,mais aes boas do que ms) mais valoroso, se todo o resto for igual, que um mundosem nenhuma criatura de fato livre. No obstante, Deus pode criar criaturas livres, masEle no pode causar ou determinar que elas faam somente o que correto. Se Eleassim fizesse, ento elas no seriam, de fato, significantemente livres; elas no fariamo que correto livremente. Portanto, para criar criaturas capazes de bem moral, Eledeve criar criaturas capazes de mal moral e no pode deixar essas criaturas livres pararealizar o mal e, ao mesmo tempo, impedi-las de fazer tal coisa. De fato, Deus cria seressignificantemente livres, mas alguns deles erram no exerccio da sua liberdade: esta a origem do mal moral. O fato de estas criaturas livres, algumas vezes, errarem nodepe nem contra a onipotncia de Deus, nem contra sua bondade; Ele, pois, somentepoderia impedir a ocorrncia do mal moral, eliminando a possibilidade do bem moral.

    Eu disse que o Defensor do Livre Arbtrio tenta achar uma proposio queseja consistente com

    (1) Deus onipotente, onisciente e completamente bom.

    e que, juntamente com (1), implique que o mal existe. De acordo com aDefesa do Livre Arbtrio, devemos encontrar esta proposio em alguma parte daestria acima. O corao da Defesa do Livre Arbtrio a tese de que possvel queDeus no tenha criado um universo contendo bem moral (ou com tanto bem moralquanto o que este universo contm) sem criar um mundo contendo mal moral.

    12 claro que, seS livre com respeito a alguma de suas aes, no se segue, ento, que o que ele far , emprincpio, imprevisvel ou desconhecido.13 Esta distino no muito precisa (como, exatamente, reconstruiramos a expresso resulta de?); mastalvez ela sirva ao nosso presente propsito.

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    A objeo

    Uma objeo formidvel pode ser descrita como segue. logicamentepossvel que haja um mundo contendo criaturas significantemente livres quesempre fazem o que correto. Certamente, no h contradio ou inconsistncianesta ideia. Contudo, se isso estiver correto, h mundos possveis contendo bemmoral, mas nenhum mal moral. Agora, o testa diz que Deus onipotente oque significa, grosso modo, que no h limite no lgico para seu poder. Porconseguinte, ele poderia ter criado qualquer mundo possvel que ele quisesse,incluindo aqueles que contm o bem, mas nenhum mal moral. Se for possvelque haja um mundo contendo criaturas significantemente livres que nunca fazemo que errado, ento disso segue que um Deus onipotente pode ter criado talmundo. O Defensor do Livre Arbtrio, portanto, est equivocado em sua insis-tncia sobre a possibilidade de que Deus, embora onipotente, no poderia tercriado um mundo contendo bem moral sem permitir o mal moral. Como Mackie(1955, p. 209) afirma:

    Se Deus criou homens de tal forma que em suas escolhas livres eles algumas vezespreferem o que bom e outras vezes o que mal, por que ento Ele no cria homensde tal forma que eles sempre escolham livremente o bem? Se no h impossibilidadelgica em um homem livremente escolher o bem em uma ou em vrias ocasies, nopode haver uma impossibilidade lgica em sua livre escolha do bem em todas asocasies. Ento, Deus no estava diante de uma escolha entre criar autmatos ino-centes ou criar seres que, atravs da livre ao, poderiam algumas vezes fazer o que errado; havia sua disposio a possibilidade, obviamente melhor, de fazer seresque agiriam livremente, mas sempre escolheriam agir corretamente. Claramente, suafalha em se utilizar dessa possibilidade inconsistente com sua natureza onipotentee sumamente boa.

    Est ao alcance do poder de um Deus onipotente criar qualquer mundo logi-camente possvel? Esta uma questo importante para a Defesa do Livre Arbtrio,e uma questo sutil. Leibniz insistiu que este mundo, o mundo atual, deve ser omelhor de todos os mundos possveis. Seu raciocnio era o seguinte: antes de Deuscriar qualquer coisa, Ele se confrontou com uma enorme gama de possibilidades;poderia ter criado ou atualizado qualquer um dos mundos da mirade de diferentesmundos possveis. Sendo perfeitamente bom, Ele deve ter escolhido criar o melhordos mundos que poderia ter criado; sendo onipotente, Ele foi capaz de criar qualquermundo possvel que quisesse. Ele deve, portanto, ter escolhido o melhor de todosos mundos possveis. Por essa razo, este mundo, o nico mundo que Ele criou deveser (a despeito das aparncias) o melhor dos mundos possveis. Mackie concordacom Leibniz sobre o fato de que Deus, se onipotente, poderia ter criado qualquer

    mundo que desejasse e que Ele teria criado o melhor mundo que pudesse criar. Mas,enquanto Leibniz conclui que este mundo deve ser o melhor dos mundos possveis,Mackie conclui, em vez disso, que no existe um Deus onipotente e completamentebom, pois, como diz esse autor, suficientemente bvio que o mundo atual no o melhor dos mundos possveis.

    O Defensor do Livre Arbtrio discorda tanto de Leibniz como de Mackie. Pri-meiro, questionamos se htal coisa como o melhor de todos os mundos possveis,ou mesmo um melhor. Talvez, para qualquer mundo que escolhamos, haja ummundo ainda melhor. No entanto, o que realmente caracterstico e central para aDefesa do Livre Arbtrio a tese de que Deus, embora onipotente, no poderia tercriado qualquer mundo possvel que quisesse: esta a tese que devemos investigar.

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    Quais mundos Deus poderia ter criado?

    Falamos de Deus como criadordo mundo; ainda assim, se estamos falandode um estado de coisas possvel , ento isso simplesmente falso. Uma coisa criada somente se h um tempo anterior no qual ela no existia; e isso cla-

    ramente falso para , como para qualquer outro estado de coisas. O que Deuscriou foram os cus, a terra e tudo que eles contm; Ele no criou a si mesmo,nem nmeros, proposies, propriedades ou estados de coisas: estes no tiveramincio. Podemos dizer, contudo, que Deus atualiza estados de coisas; sua atividadecriadora consiste no fato de estes estados de coisas se tornarem atuais. verdadeque Deus criou Scrates; no entanto, Ele no criou, mas atualizou os estados decoisas correspondentes existncia de Scrates. Portanto, Deus atualiza, mas nocria, o estado de coisas .

    Alm disso, embora possamos propriamente dizer que Deus atualiza, isso no implica que Ele atualiza todos os estados de coisas que inclui.Ele no atualiza, como mencionado, sua prpria existncia. Dessa forma, Ele

    no cria a si mesmo nem cria suas propriedades; Ele, portanto, no atualizaos estados de coisas que consistem na existncia de tais propriedades comooniscincia, onipotncia, excelncia moral e a propriedade de ser o criadordos cus e da terra. Entretanto, isso tambm verdade em relao a outraspropriedades: Deus no cria as propriedades de ser vermelho mais do que Eleno cria a propriedade de ser onipotente. Propriedades no so criveis: suporque elas foram criadas conjeturar que, embora elas existam agora, havia umtempo no qual elas no existiam; e isso parece claramente falso. Novamente,visto que Deus no criou nmeros, proposies, conjuntos puros e coisas seme-lhantes, Ele no atualizou os estados de coisas consistindo na existncia dessasentidades. Nem tampouco Ele atualiza outros estados de coisa necessrios taiscomo o estado de coisas consistindo em 7+5 ser igual a 12. Estados de coisasnecessrios no devem atividade criadora de Deus a sua atualidade. Assim,se falamos de Deus como atualizando , no devemos tomar isso como umaao atualizadora divina de todos os estados de coisas que inclui. Talvezpossamos dizer que Ele atualiza todo estado de coisas contingente includoem ; e tambm Deus pode atualizar um dado mundo possvel W, somente seEle puder atualizar todos os estados de coisas contingentes que Winclui. Comisso, podemos situar nossa questo de forma mais satisfatria: pode um seronipotente atualizar qualquer mundo possvel que ele queira ou seja, todomundo possvel pode ser atualizado por um ser onipotente?

    Aqui mais distines so necessrias. Embora haja muitos mundos possveisem que Abrao nunca encontrou Melquisedec, Deus no poderia atualizar nenhumdeles. Isto , Ele no pode mais atualizarnenhum destes mundos possveis, poisAbrao, de fato, encontrou Melquisedec (suponhamos) e nem mesmo um ser oni-potente pode fazer com que Abrao no tenha encontrado Melquisedec: tardedemais para isso. Tomando qualquer momento de tempo t,, haver em tvriosmundos que Deus no pode atualizar, pois haver vrios mundos nos quais as coi-sas aconteceram de forma diferente antes do momento t. Dessa forma, Deus nopode atualizar nenhum mundo no qual Abrao no tenha encontrado Melquisedec;talvez Deus pudesse ter atualizado tais mundos. Talvez devssemos dizer que Deuspoderia ter atualizado um mundo W, se e, somente se, para todo estado de coisascontingenteS includo em W, houvesse um momento de tempo no qual atualizar

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    S estivesse (de forma atemporal) ao alcance do poder de Deus.14 E, talvez, agora atese do atelogo possa ser enunciada como se segue:

    (3) Se Deus onipotente, ento Deus poderia ter atualizado qualquer mundopossvel.

    No entanto, isso tambm no seria completamente correto no se o prprioDeus um ser contingente. Se Ele, pois, um ser contingente, ento h mundos nosquais Ele no existe; e, certamente, Ele no poderia ter atualizado nenhum destesmundos. Claramente, os mundos que Deus tem o poder para atualizar so somenteaqueles que incluam sua existncia. Assim, devemos, supostamente, restringir nossaateno a estes mundos.15 verdade que

    (4) Se Deus onipotente, ento ele poderia ter atualizado qualquer mundopossvel que inclusse sua existncia?

    Ainda so necessrias mais algumas distines. Em particular, devemos olhar maisatentamente para a ideia de liberdade. De acordo com o Defensor do Livre Arbtrio, Deus

    considerou ser bom criar pessoas livres. E uma pessoa livre com respeito a uma aoA em um momento de tempo t, somente se as leis causais e condies antecedentesno determinam nem que ela realizaA em t, nem que ela se abstm de realizarA emt. Isto no um comentrio sobre o uso ordinrio da palavra livre; o uso ordinriopode ou no coincidir com o uso do Defensor do Livre Arbtrio. O que Deus considerouser bom, neste ponto de vista, foi, ento, a existncia de criaturas cujas atividades nofossem causalmente determinadas criaturas que, como Ele mesmo, fossem fontes deatividade criadora. A liberdade de tais criaturas, sem dvida, ser limitada por leis causaisou condies antecedentes. Elas no sero livres para fazer qualquer coisa; mesmo se eusou livre, eu no sou livre para correr a distncia de uma milha em dois minutos. claroque minha liberdade tambm aumentada pelas leis causais; somente em virtude detais leis que sou livre para construir uma casa ou caminhar na superfcie da terra. Mas,

    se sou livre com respeito a uma aoA, ento leis causais e condies antecedentesno determinam nem que realizoA, nem que no realizoA.

    De maneira geral, se sou livre com respeito a uma ao A, ento Deus nocausa ou faz com que seja o caso16 nem que eu realize, nem que eu me abstenhade realizar esta ao; Ele no faz com que isso seja o caso nem por meio das leispor Ele estabelecidas, nem por interveno direta, nem por qualquer outro modo.Se Ele faz com seja o caso que eu realizeA, ento eu no sou livre para me absterde realizar A, situao na qual eu no sou livre com respeito a A. Entretanto, claro, Deus pode fazer com que seja o caso que eusou livre com respeito aA; Ele

    14 Dizer que Deus poderia ter atualizado Wsugere que h algum momento de tempo mesmo um momento

    de tempo passado tal que Deus poderia ter realizado a ao de atualizar Wnaquele momento. Isso sugere,portanto, que atualizar um mundo possvel requer nada mais do que um momento de tempo, ou, de qualquermodo, um intervalo de tempo limitado. Devemos resistir a essa sugesto; talvez para Deus atualizar um mundopossvel seja requerido um espao de tempo ilimitado; ou, talvez, isso exija uma ao sua todo o tempo,passado, presente e futuro.15 Plantinga (1974, cap. 10) argumenta em favor da tese de que, na realidade, essa estratgia no constituiuma restrio (N. do T.).16 H certa dificuldade em encontrar tradues para as expresses bring it aboute cause it to be the casequefaam jus s palavras que as compem. Por exemplo, cause it to be the caseseria muito mais naturalmentetraduzido como faz com que seja o casoem vez de algo como causa que seja o caso. Ambas as expresses, naverdade, so utilizadas para expressar a ideia de um agente como o causador ou responsvel por determinadoevento ou estado de coisas. E, conforme Plantinga bem adverte, no pargrafo seguinte, em todo o texto taisexpresses so usadas como sinnimos. Dado tudo isso, decidimos ento traduzir bring it aboute cause itto be the casecomo causa e faz com que seja o caso, respectivamente (N. do T.).

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    no pode fazer com que seja o casonem que eu livremente realize, nem que eulivremente me abstenha de realizar esta ao muito embora Ele seja onipotente17.Diante disso, verificamos que h muitos estados de coisas contingentes, e no estao alcance do poder de Deus fazer com que eles sejam atuais. Ele no pode fazercom que seja o caso que eu livremente me abstenha de realizar uma aoA, pois,se Ele assim o faz, Ele faz com que seja o caso em que eu me abstenho de realizar

    A, situao na qual eu no mais ajo livremente.At agora tenho usado a expresso faz com que seja o caso como sinnimo

    para causa. Suponha que usemos o termo atualizar do mesmo modo. Ento Deuspode atualizar um dado estado de coisasS, somente se Ele pode causarS ou fazercom queS seja o caso, ou seja, fazer com que S seja atual. Dessa forma, havermuitos estados de coisas contingentesS, embora no haja um momento de tempono qual Deus pode atualizarS. Mas ns dissemos anteriormente que

    (5) Deus poderia ter atualizado um mundo possvel W, se, e somente se, paratodo estado de coisas contingenteS tal que Winclui S, h um momentode tempo no qual Deus pode atualizarS.

    Dada apenas a possibilidade de que existem criaturas-agentes livres, podemosdizer que existem vrios mundos possveis que incluem a existncia de Deus e quetambm incluem um estado de coisas contingenteS tal que no h um momento detempo no qual Deus pode atualizarS. Portanto (contrrio (4) e tese do atelogo),existem muitos mundos possveis que Deus no poderia ter atualizado, embora elesincluam sua existncia: todos aqueles mundos contendo um estado de coisas comum agente livremente realizando ou se abstendo de realizar uma ao. Visto que ummundo contendo bem moral um mundo com tais caractersticas, Deus no poderiater atualizado nenhum mundo contendo bem moral; a fortiori, Ele no poderia teratualizado um mundo contendo bem moral, mas sem nenhum mal moral.

    A rplica mais apropriada do atelogo como segue. Suponha que ns ad-mitamos que nem mesmo Deus pode fazer com que seja o caso que eu livremente

    me abstenha de realizarA. Mesmo assim, Elepode fazer com que eu seja livre comrespeito aA e com que eu me encontre em um determinado conjuntoS de circuns-tncias, incluindo leis adequadas e condies antecedentes. Ele deve tambm saber,alm disso, que, se Ele me criar e fizer com que eu seja livre nestas circunstncias,eu no realizareiA. Se assim for, h um estado de coisas que Ele pode atualizar, oufazer com que seja atual; se Ele assim o fizer, ento eu livremente me absterei derealizarA. No sentido amplo de causar ou fazer com que seja o caso, portanto,Ele pode fazer com que seja o caso que eu livremente me abstenha de realizarA.Em um sentido estrito, h muitos estados de coisas que Ele no pode fazer comque sejam o caso. O que relevante para a Defesa do Livre Arbtrio, contudo, no este sentido estrito, mas o sentido amplo, pois o que est realmente em jogo se h, para cada mundo possvel, alguma ao que Deus poderia ter realizado, de

    forma que, se Ele a realizasse, tal mundo moralmente perfeito (um mundo incluindobem moral, mas sem nenhum mal moral) teria sido atual.

    Talvez ns possamos precisar mais este ponto. O sentido estrito de fazer comque tal que a sentena (6) expressa uma verdade necessria.

    (6) Se Deus faz com que seja o caso que eu me abstenho de realizarA, entoeu no me abstenho livremente de realizarA.

    17 Para simplificar a discusso, tomarei, de agora em diante, como certo que,se Deus existe, Ele onipotente uma verdade necessria.

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    Voc livre com respeito a uma aoA somente se Deus no causa ou faz comque seja o caso que voc se abstenha de realizarA. Mas agora suponha que Deus sabeque, se ele criar voc livre com respeito aA, em algum conjuntoS de circunstncias, vocse abster de realizarA; alm disso, suponha que Ele faz com que (no sentido estrito)voc seja livre com respeito aA emS; e suponha, finalmente, que voc de fato se abstmlivremente de realizarA. Ento, no sentido amplo de fazer com que, ns poderamos

    apropriadamente dizer que Deus fez com que fosse o caso que voc se abstivesse de rea-lizarA. Devemos fazer, ento, uma distino similar entre um sentido forte e um sentidofraco de atualizar. No sentido forte, Deus pode atualizar somente o que Ele pode causarou fazer com que (no sentido estrito) seja atual; neste sentido, Ele no pode atualizarnenhum estado de coisas que inclua a existncia de criaturas que livremente realizamuma ao ou outra. Contudo, at agora, ns no temos razo alguma para supor que omesmo ocorre no caso da atualizao fraca. O atelogo no requer para seu argumento,presumivelmente, que todo mundo possvel (que inclua a existncia de Deus) tal queDeus poderia t-lo atualizado no sentido forte; a atualizao fraca suficiente para seupropsito. O que est em jogo no a questo se cada mundo tal que Deus poderiat-lo atualizado no sentido forte, mas (grosso modo) se, para cada mundo W, h algo queDeus poderia ter feito alguma srie de aes que Ele poderia ter realizado de forma

    que, se Ele tivesse assim agido, Wteria sido atual. Se Deus completamente bom e estavaao alcance do seu poder para assim assegurar a atualidade de um mundo perfeito, ento,presumivelmente, Ele o teria feito. Portanto, a tese do Defensor do Livre Arbtrio queDeus no poderia ter atualizado um mundo contendo bem moral sem tambm atualizarum mundo contendo mal moral ou irrelevante ou infundada: irrelevante, se atualizar tomado no sentido forte; e infundada, do contrrio.

    Visto que a atualizao fraca relevante aqui, usaremos, de agora em diante,o termo atualizar significando atualizar fracamente. Assim, nossa questo esta:Deus poderia ter atualizado qualquer mundo possvel que inclusse sua existncia?

    Talvez ns possamos progredir melhor na nossa investigao por meio de umexemplo. Curley Smith, o prefeito de Boston, contrrio proposta de construo deuma autoestrada. Do ponto de vista do Departamento de Estradas, sua objeo ftil; elealega que a rodovia requer a destruio de uma Velha Igreja, juntamente com algumasoutras construes antiquadas e estruturalmente abaladas. O Diretor de Estradas ofereceua ele um suborno de $35.000 para abandonar sua oposio. No disposto a quebrar aboa e velha tradio dos polticos do seu estado, Curley aceitou; logo aps, o Diretorpassou uma noite sem sono se perguntando se ele poderia ter obtido o apoio de Curleypor $20.000. Isto , Smedes se perguntou qual das sentenas abaixo seria verdadeira:

    (7) Se tivesse sido oferecido a Curley $20.000, ele teria aceitado o suborno.

    ou

    (8) Se tivesse sido oferecido a Curley $20.000, ele teria rejeitado o suborno.

    Contrafactuais

    Surge aqui uma objeo. Os enunciados (7) e (8), claro, so condicionais contrafactuais, sujeitos a todas as dificuldades e obscuridades dessa classe peculiarde enunciados, que contm armadilhas para os imprudentes. Aqui, por exemplo,parecemos estar assumindo que ou (7) ou (8) deve ser verdade. Mas qual a justifi-cativa para isso? Como sabemos que ao menos um desses enunciados verdadeiro?O que nos leva a supor que h uma resposta para o que Curley teria feito se lhefosse ofertado um suborno de $20.000?

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    Esta questo pode ser ampliada. De acordo com uma interessante proposta(Stalnaker, 1968, p. 98), um condicional contrafactual tal como (7) pode ser explicadocomo segue. Considere aqueles mundos possveis que incluem o antecedente de (7);e ento, entre estes, considere aquele mundo W, que o mais semelhante ao mundoatual. (7) verdade se, e somente se, seu consequente isto , (9) verdade em W.

    (9) Curley aceita o suborno.

    Um contrafactual verdade se, e somente se, seu antecedente impossvel,ou, se o seu consequente verdade no mundo mais semelhante ao mundo atualno qual seu antecedente verdade.

    Esta intrigante proposta provoca algumas questes. Em primeiro lugar, a re-querida noo de semelhana , em muitos aspectos, problemtica. O que significadizer que um mundo possvel mais semelhante a que outro? Neste contexto, oque podemos entender como semelhana absoluta (berhaupt), ou devemos falar desemelhana somente sob um determinado aspecto? Estas so boas questes e, apesarde no termos tempo para nos debruarmos sobre elas, paremos o suficiente para notarque parecemos, efetivamente, ter uma compreenso intuitiva desta noo a noo de

    semelhana entre estados de coisas. Em segundo lugar, a proposta presume que, parauma dada proposiop contingentemente falsa, h um mundo possvel, incluindopque o mundo mais prximo do (isto , o mais semelhante ao) mundo atual. Assim,considere tal proposiop e qualquer proposio q: de acordo com a proposta emquesto, nemse p ento q, nemse p ento q ser verdade. Isto pode parecer umpouco forte:se eu tivesse cabelo vermelho, Napoleo no teria perdido a batalha deWaterloo , obviamente, falso, ese eu tivesse cabelo vermelho, Napoleo teria vencidoa batalha de Waterloo no parece muito melhor (Mesmo se, talvez, mas nose). Defato, considere qualquer proposiop: de acordo com essa viso, h algum mundopossvel completo Wtal que o contrafactualse p fosse verdade, ento W teria sidoatual o caso. Mas no excessivamente extravagante defender que h um mundopossvel Wtal que, se eu tivesse cabelo vermelho, Wteria sido atual? H um mundo

    possvel W* tal que, se no tivesse sido atual, W* teria sido? H razo para acreditarque existe um mundo incluindo o antecedente de (7) e (8) (chame este de A) que onico mundo mais prximo a? Talvez vrios mundos o incluam, de forma que nenhumdeles, incluindo o mundo ora em tela, mais prximo que os demais.18 E isso nos levadiretamente nossa questo. Talvez haja uma famlia de mundos mais prximos, nosquais A verdade e, talvez, em algum deles, tenhamos (9).

    (9) Curley aceita o suborno

    Em outros, podemos ter (10) como verdade.

    (10) Curley rejeita o suborno

    Se isso estiver correto, ento, talvez, devssemos concluir que nem (7) nem(8) so verdadeiras; no existe, ento, tal coisa como o que Curley teria feito sobas circunstncias imaginadas.

    18 De uma forma mais radical, talvez no existam mundos mais prximos de fato; talvez para qualquer mundoque inclua A, haja um mundo mais prximo que tambm inclui A (Lewis, 1973, cap. 1, seo 1.3). De acordocom Lewis, um contrafactualAB verdade, se, e somente se, ou A impossvel, ou algum mundo Wno qual

    A e Cocorrem mais semelhante ao mundo atual que um mundo no qualA e Cocorrem. Ao escrever estaseo, me beneficiei da anlise de Lewis (1973); sou grato a ele por uma crtica que provocou uma melhorasubstancial no argumento deste captulo.

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    De fato, talvez nosso crtico no precise se limitar suspeita de que devaexistir tal famlia de mundos; talvez ele possa ir mais longe. H mundos possveisWe W* que incluem A e que so exatamente iguais at as 10 da manh do dia 10de Novembro de 1973, hora em que Curley deu sua resposta ao suborno oferecido;em W, Curley aceita o suborno, e em W*, ele no o aceita. Se t= 10h do dia 10 denovembro de 1973, ns dizemos que We W*compartilham um segmento inicial att. Podemos chamar o t-segmento inicial de W de SW , onde o subscritoW indicaqueS um segmento de W, e o sobrescrito -t indica que este segmento terminaem t(SW seria o segmento sem fim de Wque inicia em t). E, claro, SW = SW*.

    No uma tarefa trivial dar uma descrio rigorosa da noo de segmentoinicial. claro que, se We W* compartilham um segmento inicial que termina emt, ento, para qualquer objetoxe para qualquer momento de tempo t* anterior at,xexiste em Wem t* se, e somente se,xexiste em W* em t*. Mas no podemosdizer que, se uma coisaxtem uma propriedade P em Wno instante t*, ento xtemP em W* no instante t*. Pois uma propriedade que Curley tem, no instante t* em W, a de ser tal que, em t, ele aceitar o suborno; esta propriedade ele, obviamente,no tem em W* no instante t*. Talvez exista uma noo intuitiva de uma proprie-dade atemporal sobre a qual podemos dizer que, se em t*xtem uma propriedadeatemporal P, em W, ento,xtem a propriedade P em W* no instante t*. claroque o problema dizer a que essa noo de propriedade atemporal equivale; e issono , de forma alguma, trivial. Ainda assim, a ideia de um par de mundos W eW* compartilhando um segmento inicial razoavelmente clara. Grosso modo, elapermite dizer que os dois mundos so o mesmo at um certo momento de tempot. E, se no h nenhum instante t* posterior a t, tal que SW = SW* , ento, em t,We W* se ramificam. claro que haver uma grande classe de mundos comparti-lhando SW com We W*; e se e um evento que ocorre em W, mas no ocorre emW*, haver uma classe de mundos incluindo SW, em que e ocorre, e outra classeincluindo SW, em que e no ocorre.

    Suponha que faamos uma concesso e admitamos ter esta noo de seg-

    mento inicial em mos. Pode ento parecer que podemos construir um argumentoconvincente para a concluso de que nem (7) nem (8) so verdades. Isso se ex-plica, pois, tanto Wcomo W* so to semelhantes a , nos aspectos relevantes,quanto qualquer mundo incluindo A. Mas, se eles compartilham SW, ento elesno so, de modo apropriado, igualmente semelhantes a A? At o momento t,as coisas so exatamente iguais nesses dois mundos. O que acontece aps tpa-rece pouco relevante para a questo sobre o que Curley teria feito, se lhe fosseofertado suborno. Deveramos concluir, portanto, que We W* so igualmentesemelhantes a , mas esses dois mundos se parecem com tanto quanto qual-quer outro. Portanto, os mundos mais prximos nos quais A verdade no so,de modo algum, homogneos no que se refere verdade de (9) ou (10); logo,nem (7) nem (8) so verdade.19

    O que podemos dizer sobre esse argumento? Em primeiro lugar, ele provademais. Ele obtm uma plausibilidade especial do caso que estamos considerando.No sabemos se, de fato, Curley aceitaria o suborno a oferta reconhecidamentepequena, e, talvez, seu orgulho fosse ofendido. Vamos perguntar, em vez disso,se ele teria aceitado um suborno de $36.000, sendo tudo, na medida do possvel,como no mundo atual. Aqui, a resposta parece razoavelmente clara: de fato, eleteria aceitado. Isso, apesar do fato de que, para qualquer mundo possvel W,toprximo a quanto voc queira, no qual Curley teria aceitado o suborno, h um

    19 Esse argumento apareceu em discusso com Kaplan.

    t

    t+t t

    t*

    t

    t

    t

    t

    t*

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    mundo W* que compartilha o segmento inicial apropriado com W, no qual Curleybravamente recusa a oferta.

    O argumento, contudo, sofre de outro defeito um que mais instrutivo.Suponha que ns o abordemos por meio de outro exemplo. Royal Robbins estescalando o paredo Dihedraldo El Capitan. O mtodo usual envolvendo cordas eroldanas saiu de moda; ele est escalando o paredo sem proteo alguma. Exa-

    tamente quando ele alcana o Thanksgiving Ledge20, cerca de 2.500 ps acima dovale, um dos equipamentos fixados na rocha que ele segura, com uma das mos,se quebra. Ele se sustenta com dificuldade sob um p, recuperando seu equilbrioe saltando suavemente sobre uma salincia, onde, finalmente, consegue se apoiar;no dia seguinte, ele continua triunfantemente at o topo.

    Agora, considere a seguinte suposio:

    (11) Se Robbins tivesse escorregado e cado do Thanksgiving Ledge, ele teriamorrido.

    Sem dvida, estamos inclinados a aceitar esta proposio. Mas deveramosaceit-la? No mundo atual, Robbins no caiu do Thanksgiving Ledge; em vez disso,

    ele agilmente o escalou e passou uma noite confortvel l. Agora, o que acontecenos mundos mais prximos nos quais ele cai? Bem, h pelo menos um deles quechamarei de W no qual ele cai no instante t, exatamente quando est escalandoa salincia; no momento seguinte t+1(to prximo de tcomo podemos querer) eleaparece exatamente onde ele est em t+1 no mundo . Assim, tudo o mais acontecetal qual em . W no seria mais semelhante ao mundo atual que qualquer mundono qual Robbins despenca no vale, privando, portanto, o alpinismo americano deseu porta-voz mais eloquente? E se isto estiver correto, no deveramos considerar(11) falsa?

    Naturalmente, a resposta que estamos negligenciando leis causais ounaturais. Nosso mundo contm uma poro dessas leis, e elas esto entre seusconstituintes mais relevantes. Em particular, existe uma lei implicando (junto com as

    condies antecedentes relevantes) que algum que cai sem proteo alguma de umparedo de 2.500 ps mover-se- com velocidade crescente em direo ao centroda terra, e, finalmente, chegar superfcie desta com um impacto considervel.Evidentemente, nem todas essas leis esto presentes em W, pois Wcompartilhacom condies iniciais relevantes, mas, nele, Robbins no cai no vale em vezdisso, aps uma breve indicao de cair naquela direo, ele reaparece no penhas-co. Uma vez que ns notamos que essas leis no valem em W, assim o argumentoprocede, no devemos mais estar tentados a pens-lo como muito semelhante a, em que tais leis valem.

    Sem dvida, h uma verdade nessa rplica. Mas a relao entre leis causaise contrafactuais, assim como aquela entre Guinevere e Sir Lancelot tanto ntimacomo notria. De fato, uma caracterstica saliente das leis causais que, ao contrrio

    das generalizaes acidentais, elas supostamente sustentam ou implicam contra-factuais. Assim, em vez de negar Wcom base no fato deque suas leis diferem dasleis de , podemos igualmente replicar, sob a tica da conexo acima, que, a W,faltam alguns dos contrafactuais de . Uma medida da semelhana entre mundosenvolve saber se eles compartilham situaes contrafactuais.

    Estaramos excessivamente apressados, se chegssemos concluso de que aanlise de contrafactuais a partir dos mundos possveis viciosamente circular ou sem

    20 Thanksgiving Ledge: famosa salincia (ledge) do paredo Dihedral(N. do T).

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    nenhum interesse ou nenhuma importncia terica. Mas isso no quer dizer que nsno podemos, via de regra, descobrir o valor de verdade de um contrafactual, pergun-tando se seu consequente vale naqueles mundos mais semelhantes ao atual em queseu consequente vale. Isso explicado mediante o fato de que uma caracterstica quedetermina a semelhana de mundos se eles compartilham situaes contrafactuais.

    claro que isso relevante para o argumento que estamos examinando, o

    qual ser retomado aqui. H mundos We W* que compartilham SW; esses mundos,portanto, so igualmente semelhantes a no sentido relevante. Contudo, em W,Curley aceita o suborno e, em W*, ele o rejeita. Portanto, no o caso que o conse-quente de (7) verdadeiro nos mundos mais prximos a nos quais seu antecedentetambm , o mesmo podendo ser dito a respeito de (8). Assim, nem (7) nem (8) soverdadeiras. Mas, agora, vemos que esse argumento no resolve a questo, pois,do fato de que We W* compartilham o segmento inicial apropriado, no podemosdizer que eles so igualmente semelhantes a . Suponha que (7) verdade; entoW* no compartilha aquele contrafactual com e , na mesma proporo, menossemelhante a ele do que W. Aqui, temos uma diferena relevante entre os doismundos, em virtude do fato de que um deles pode ser mais semelhante ao mundoatual que o outro. O argumento falha, portanto.

    Um segundo argumento , algumas vezes, oferecido para a concluso deque ns no estamos corretos ao assumirmos que ou (7) ou (8) seja verdade. Talvezseja o caso que

    (12) Se tivesse sido oferecido a Curley um suborno de $20.000 e ele tivesseacreditado que sua deciso seria manchete no Boston Globe, ele teriarejeitado o suborno.

    Se isso estiver certo, ento (7) falsa. Mas, talvez, tambm seja verdade que (13)

    (13) Se tivesse sido oferecido a Curley um suborno de $20.000, e ele tivesse

    acreditado que seu ato desonesto no seria descoberto, ele teria acei-tado o suborno.

    Neste caso, (8) seria falsa. Assim, se (12) e (13) so verdadeiras (como pode-riam bem o ser), ento nem (7) nem (8) so verdadeiras.

    Esse argumento est errado. Se representamos o conectivo contrafactual pormeio do smbolo , vemos que a inferncia crucial aqui da forma

    A C

    A & B C

    que claramente falaciosa (e invlida tanto na semntica para contrafactuais de

    Stalnaker, quanto na de Lewis). Sem dvida, verdade que, de (14), no se tem (15).

    (14) Se o Papa fosse um protestante, ele seria um hipcrita.(15) Se o Papa fosse um protestante, tivesse nascido em Frieslande fosse um

    membro vitalcio do Gereformeerde Kerk, ele seria um hipcrita.

    Nem seria possvel (7); se tivesse sido oferecido um suborno a Curley e eletivesse acreditado que sua deciso seria manchete no Globe, ele o teria aceitado.

    Agora, claro que a falha desses argumentos no garante que ou (7) ou (8) devaser verdade. Mas considere, no entanto,um estado de coisas que inclui a oferta de umsuborno de $20.000 a Curley e todas as condies relevantes a situao financeira de

    t

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    Curley, sua tendncia materialista geral, seu carter sendo, de fato, idnticas ao mundoatual. Nossa questo , realmente, se h algo que Curley teria feito, caso esse estadode coisas tivesse sido atual. Um ser onisciente saberia o que Curley teria feito saberiaele ou que Curley teria aceitado o suborno ou que ele o teria rejeitado?

    A resposta, penso eu, bvia e afirmativa. Existe algo que Curley teria feito, casotal estado de coisas tivesse sido atual. Mas eu no sei como produzir um argumento

    conclusivo para esta suposio caso voc, por acaso, esteja inclinado a coloc-la emdvida. Penso que o ponto de vista natural, o nico que aceitamos ao refletir sobrenossas prprias falhas e triunfos morais. Suponha que eu tenha me inscrito para con-correr a uma bolsa da Fundao Nacional de Cincia e pea a voc para escrever umacarta de recomendao para mim. Estou ansioso para conseguir a bolsa, mas sou cla-ramente desqualificado para desenvolver o projeto que propus. Ao perceber que vocsabe disso, ajo sob a mxima de que todo homem tem seu preo e ofereo a voc $500para me dar um parecer favorvel (e falso). Voc, indignadamente, recusa a proposta eacrescenta torpeza moral aos meus outros defeitos. Depois, discutimos refletidamenteo que voc teria feito, se lhe tivesse sido ofertado um suborno de $50.000. Uma coisaque ns devemos ter como certa que h aqui uma resposta. Podemos no saber qual a resposta; mas podemos rejeitar de antemo a sugesto de que simplesmente no

    existe resposta alguma. Devo, portanto, no que segue, tomar temporariamente comocerto que ou (7) ou (8) verdade; como veremos na seo 6, essa suposio, mesmopodendo ser considerada inofensiva, pode ser completamente dispensada.

    O lapso de Leibniz

    Munidos dessas observaes, retornemos questo que provocou esta digres-so. Estava ao alcance do poder de Deus, supondo sua onipotncia, atualizar qualquermundo possvel que inclua sua existncia? No. De forma resumida, tomemos a razoque segue. H um mundo possvel W, onde Deus atualiza fortemente uma totalidadeTde estados de coisas, incluindo a liberdade de Curley com respeito aceitao do su-

    borno, e em que Curley o aceita. Mas h outro mundo possvel W*, onde Deus atualizaos mesmos estados de coisas e em que Curley rejeita o suborno. Agora, suponha que verdade que, se Deus tivesse atualizado T, Curley teria aceitado o suborno: ento,Deus no poderia ter atualizado W*. E se, por outro lado, Curley tivesse rejeitado osuborno, caso Deus tivesse atualizado T, ento Deus no poderia ter atualizado W.Assim, de um modo ou de outro, h mundos que Deus no poderia ter atualizado.

    Podemos expor este argumento de forma mais detalhada como segue. SejaCo estado de coisas consistindo na oferta de um suborno de $20.000 a Curley, eele estando livre para aceit-la ou rejeit-la; sejaA aceitao do suborno por partede Curley, e seja GCa atualizao forte de Cpor parte de Deus. Ento, de acordocom nossa suposio, (16) ou (17) verdadeira.

    (16) GCA(17) GC

    Primeiramente, suponha que (16) seja verdade. Se isto estiver correto, ento,tanto na semntica de Stalnaker como na de Lewis, h um mundo possvel Wtal queGCeA ocorrem em We tal queA ocorre em qualquer mundo prximo o suficienteonde GCocorre. Sem dvida, em W,Deus atualiza muitos estados de coisas almde C; seja To estado de coisas que inclui cada um destes estados; T um estado decoisas que Deus atualiza fortemente em W; e Tinclui todo estado de coisas que Deusatualiza fortemente em W. evidente que, se Deus tivesse atualizado fortemente T,ento Curley teria aceitado o suborno, pois, conforme (18), GTeA so o caso em W.

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    (18) GTA

    Por (16) vemos que, em qualquer mundo to prximo quanto Wonde GCocorre,A ocorre; mas GTinclui GC; ento, em qualquer mundo to prximo quantoWonde GTocorre,A ocorre. Agora, no h um mundo possvel no qual Deus atualizafortementeA; poisA consiste exatamente na aceitao livre do suborno por parte de

    Curley. Mas, ento, GTno incluiA; pois, se ele inclusse, qualquer mundo onde Deusatualiza Tseria um mundo onde Ele atualizaA; mas no h mundos onde Ele atualiza

    A; e h mundos W, por exemplo, onde Ele atualiza GT. Assim, existe outro mundopossvel W*, em que Deus atualiza os mesmos estados de coisas que Ele atualiza em W,e no qual Curley rejeita o suborno. W*, portanto, inclui GTe. Ou seja, em W*, Deusatualiza fortemente T, mas nenhum estado de coisas propriamente incluindo T; e emW* ocorre. Agora, fcil ver que Deus no poderia ter atualizado este mundo W*.

    Suponha que Deus poderia ter atualizado W*. Ento, h um estado de coisasC* tal que Deus poderia t-lo atualizado fortemente, e, se ele o tivesse atualizado,W* seria atual. Ou seja,

    (19) GC*W*.

    Mas W* inclui GT, ento

    (20) GC*GT.

    Agora, W* ou inclui ou exclui GC*; se este ltimo for o caso, ento GC* excluiW*. No entanto, de acordo com (19), GC* no exclui W*, a menos que, ao contrrioda nossa hiptese, GC* seja impossvel. Dessa forma, W* inclui GC*. Alm disso,T o maior estado de coisas que Deus atualiza em W*; portanto, Tinclui C*, e GTinclui GC*. Disso decorre que o estado de coisas GT & GC* idntico ou equivalentea GT. De acordo com (18), GTA; por conseguinte

    (21) GC* & GTA.

    Mas de (20) e (21) segue que

    (22) GC*A.21

    Entretanto,A exclui W* e, portanto, inclui W*; ento

    (23) GC*W*.

    Assim, (19) e (23) so ambos verdadeiros, somente se GC* impossvel, casono qual Deus no poderia ter atualizado C*. Portanto, no h um estado de coisasC* tal que Deus poderia ter atualizado fortemente C* e tal que, se Ele o tivesseatualizado, W* teria sido atual. Portanto, se (16) verdade, h mundos possveis,incluindo sua existncia, que Deus no poderia ter atualizado, a saber, aquelesmundos nos quais Deus atualiza Te Curley rejeita o suborno. Por outro lado, se

    21 A forma do argumento envolvido aqui :A BA & B C A CEsta forma intuitivamente vlida tanto na semntica de Stalnaker (1968) quanto na semntica de Lewis (1973).

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    (17) GC

    verdade, ento, por um argumento similar, que h outros mundos possveisos quais Deus no poderia ter atualizado. Como j assumido, ou (16) ou (17) ver-dade; portanto, apesar da onipotncia de Deus, h mundos incluindo sua existnciaque Ele no poderia ter atualizado.

    Agora, a suposio de que ou (16) ou (17) seja verdade bastante inocen-te; mas tambm dispensvel. Seja, pois, Wum mundo onde Deus existe, ondeCurley livre com respeito ao de aceitar um suborno de $20.000 e onde ele oaceita; e como anteriormente, seja To maior estado de coisas que Deus atualizafortemente em W. A atualizao de Tpor Deus (GT) no inclui nem a aceitao dosuborno por parte de Curley (A) nem sua rejeio (); portanto, h um mundo W*onde Deus atualiza fortemente Te no qual Curley rejeita o suborno. Agora, (24) verdadeiro ou falso?

    (24) GTA

    Se (24) verdadeiro, ento, pelo argumento anterior, Deus no poderia ter

    atualizado W*.Por outro lado, se (24) falso, ento Deus no poderia ter atualizado W.

    Suponha que ele pudesse ter atualizado W; ento (como j demonstrado) haveriaum estado de coisas Ctal que Deus poderia ter atualizado fortemente Ce tal que,se Ele o tivesse atualizado, Wseria atual. Isto ,

    (25) GCW

    Se (25) verdade, ento, ou

    (26) GC& GTW,ou

    (27) GC& GTW

    verdade22. Contudo, ambos (26) e (27) so falsos, se (24) tambm o for. Consi-dere (26): se (25) verdade, ento Winclui GC(a menos que GCseja impossvel, caso emque, contrrio suposio, Deus no poderia t-lo atualizado); mas T o maior estadode coisas que Deus atualiza fortemente em W; portanto GTinclui GC. Contudo, se issoestiver correto, GC& GT equivalente a GT. E, como (24) falso, o mesmo vale para (26).

    Agora considere (27). Ou GCinclui GT, ou ele no o inclui. Suponha que ele oinclui. Como vimos, se GC possvel e (25) verdade, ento Winclui GC; mas TincluiC; assim, GTinclui GC. Portanto, se GCinclui GT, ento GCe GTso equivalentes.Mas (24) falso; portanto (25) tambm , caso GCinclua GT. Portanto, GCno incluiGT; logo GC& GT um estado de coisas possvel. Mas Winclui GT; logo GTincluiW; portanto, GC& GTinclui ; portanto W, (como GC & GT possvel) (27) falso.

    O enunciado (24), portanto, verdadeiro ou falso. Em qualquer um doscasos, h mundos possveis, incluindo sua existncia, que Deus no poderia teratualizado. Portanto, h mundos possveis, incluindo sua existncia, que Deus nopoderia ter atualizado.

    22 A forma do argumento envolvido aqui, a saber,__________A B__________(A & C B) (A & C B) tanto intuitivamente vlida, como vlida nas semnticas de Stalnaker (1968) e Lewis (1973).

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    Se considerarmos um mundo no qual GTocorre e no qual Curley livrementerejeita o suborno, vemos que a questo de se estava ao alcance do poder de Deusatualiz-lo depende parcialmente do que Curley teria feito, se Deus tivesse atualizadofortemente T. Portanto, h mundos possveis para os quais o fato de Deus poderou no atualiz-los depende parcialmente de Curley. claro que depende de Deus,se ele cria ou no Curley, e tambm se ele o faz livre ou no com respeito ao

    de aceitar o suborno num instante t. Mas, se ele o cria e o cria livre com respeito aessa ao, ento aceitar ou no o suborno depende de Curley e no de Deus.

    Agora podemos retornar Defesa do Livre Arbtrio e ao problema do mal.O Defensor do Livre Arbtrio insiste na possibilidade de que no est ao alcancedo poder de Deus criar um mundo contendo bem moral sem criar um mundo con-tendo mal moral. Seu oponente atelogo concorda com Leibniz na tese de que,se (como afirmam os testas) Deus onipotente, ento ele poderia ter atualizadoqualquer mundo possvel (ou qualquer mundo possvel que inclua sua existncia)que ele deseje. Vemos agora que essa tese chamemo-la de o Lapso de Leibniz incorreta. O atelogo est correto, ao afirmar que h muitos mundos possveiscontendo bem moral, mas sem mal moral; seu erro consiste em endossar o Lapsode Leibniz. Assim, uma de suas teses centrais que Deus, se onipotente, poderia

    ter criado qualquer mundo possvel que ele desejasse falsa.

    Depravao transmundana

    Recapitulemos, agora, a lgica da situao. O Defensor do Livre Arbtriodefende que a proposio (28) possvel.

    (28) Deus onipotente e no estava ao alcance do seu poder criar um mundocontendo bem moral, mas sem mal moral.

    Como rplica, o atelogo insiste que h mundos possveis contendo bem

    moral, mas sem nenhum mal moral. Ele acrescenta que um ser onipotente poderiater atualizado qualquer mundo que Ele quisesse. Assim, se Deus onipotente, Elepoderia ter atualizado um mundo contendo bem moral, mas nenhum mal moral e,portanto, (28) no possvel. O que vimos at ento foi que essa segunda premissa o Lapso de Leibniz falsa.

    claro que isso no resolve a questo a favor do Defensor do Livre Arbtrio.O Lapso de Leibniz (bem como todo lapso) falso; mas isso no mostra que (28) possvel. Para mostrar isso, devemos demonstrar a possibilidade de que, entre osmundos que Deus no poderia ter atualizado, esto todos os mundos contendobem moral, mas sem nenhum mal moral. Como podemos abordar essa questo?

    Retornemos Curley e sua desonestidade. Esta ltima, na verdade, notem limites. O potencial de Curley de aceitar subornos total e absoluto. Podemos

    expor isso de maneira mais precisa. Tome qualquer positivo inteiro n. Se (1) noinstante ttivesse sido oferecido a Curley n dlares com objetivo de suborn-lo, (2)ele fosse livre com respeito ao de aceitar o suborno e (3) as condies tivessemsido, tanto quanto possvel, semelhantes quelas que de fato ocorreram, Curleyteria aceitado o suborno. Mas h algo pior por vir. Obviamente, liberdade signifi-cativa no implica em fazer algo errado. H mundos possveis nos quais tanto Deusquanto Curley existem e nos quais Curley significantemente livre, mas nos quaisele nunca comete erro algum. Considere Wcomo qualquer um desses mundos. Hum estado de coisas Ttal que Deus atualiza fortemente Tem W, e Tinclui todos osestados de coisas que Deus atualiza fortemente em W. Alm disso, tendo em vistaque Curley significantemente livre em W, h algumas aes que so moralmente

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    significantes para Curley em W, com respeito s quais ele livre em W. Contudo,a triste verdade pode ser esta: entre essas aes h uma chamemo-la deA talque, se Deus tivesse atualizado T, Curley teria errado com respeito aA. Ento (peloargumento da seo 6) Deus no poderia ter atualizado W. Mas Wera exatamentequalquer um dos mundos nos quais Curley significantemente livre e sempre fazsomente o que correto. Portanto, no estava ao alcance do poder de Deus atua-

    lizar um mundo no qual Curley produz bem moral, mas nenhum mal moral. Todomundo que Deus poderia ter atualizado tal que, se Curley significantementelivre nele, ele realiza pelo menos uma ao errada.

    A ideia intuitiva subjacente neste argumento pode ser exposta como segue. claro que Deus pode criar Curley em vrios estados de coisas que incluem ele sersignificantemente livre com respeito a alguma aoA. Alm disso, Deus sabe deantemo o que Curley faria se ele fosse criado e colocado nesses estados de coisas.Agora, tome qualquer um desses estados de coisasS. Talvez o que Deus saiba que,se ele cria Curley, faz com que ele seja livre com respeito aA e faz com queS sejaatual, ento Curley errar com respeito aA. Talvez o mesmo seja verdade para qual-quer outro estado de coisas no qual Deus pudesse criar Curley e dar a ele liberdadesignificativa; ou seja, talvez o que Deus saiba de antemo que no importa em

    quais circunstncias ele coloca Curley, contanto que ele o deixe significantementelivre, Curley realizar, pelo menos, uma ao errada. E, claro, que a presente teseno a de que Curley ou qualquer outra pessoa seja, de fato, assim, mas somenteque essa histria acerca de Curley seja possivelmente verdadeira.

    Entretanto, se isto verdade, Curley sofre do que devo chamar de depravaotransmundana23. Por meio de uma definio explcita:

    (29) Uma pessoa P sofre de depravao transmundana se, e somente se, paratodo mundo Wtal que P significantemente livre em We P somente fazo que correto em W, h um estado de coisas Te uma aoA tal que(1) Deus atualiza fortemente Tem We Tinclui todo estado de coisas que

    Deus atualiza fortemente em W,

    (2)A moralmente significante para P em We(3) Se Deus tivesse atualizado fortemente T, P teria errado com respeito aA.

    O que importante acerca da ideia de depravao transmundana que, sealgum sofre dela, ento no estaria ao alcance do poder de Deus atualizar nenhummundo no qual essa pessoa significantemente livre, mas no comete erro algum em outras palavras, um mundo no qual ela produz bem moral, mas nenhum malmoral. Entretanto, claramente possvel que todos sofram de depravao trans-mundana. Se essa possibilidade fosse atual, ento Deus no poderia ter criadonenhum dos mundos possveis que incluem a existncia e a liberdade significativadas pessoas que, de fato, existem e que contivessem bem moral, mas nenhum mal

    moral. Para fazer isso, Ele deveria ter criado pessoas que fossem significantementelivres, mas sofressem de depravao transmundana. E o preo de criar um mundono qual tais pessoas produzem bem moral criar um mundo em que elas tambmproduzem mal moral.

    Agora, podemos pensar se isso soluciona a questo em favor do Defensordo Livre Arbtrio. O fato que no. Suponha que todas as pessoas que existam em sofram de depravao transmundana; no segue disso que Deus no poderia ter

    23 Deixo como dever de casa o problema de comparar depravao transmundana com o que os calvinistaschamam de depravao total.

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    criado um mundo contendo bem moral sem criar um mundo contendo mal moral.Deus poderia ter criado outras pessoas. Em vez de nos criar, ele poderia ter criadoum mundo contendo pessoas completamente corretas, mas no contendo nenhumde ns. E, talvez, se Ele tivesse feito isso, teria criado um mundo contendo bemmoral, mas nenhum mal moral.

    Talvez sim. Mas, novamente, talvez no. Retornemos noo de essncia ou

    conceito individual24: a essncia de Curley uma propriedade que ele tem em todomundo no qual ele existe e que no exemplificada em qualquer mundo por qual-quer outro objeto diferente de Curley. Uma essncia,simpliciter, uma propriedadeP tal que h um mundo Wno qual h um objetoxque tem P essencialmente e talque, em nenhum mundo, W* h um objeto que possua P e que seja diferente dex.Mais resumidamente, uma essncia uma propriedade encptica que essencial-mente exemplificada em algum mundo, onde uma propriedade encptica implicaou P ou P, para toda propriedade P indexada por mundo.

    Agora, lembre que Curley sofre de depravao transmundana. Esse fato implicaalgo interessante acerca da Curleydade, ou seja, a essncia de Curley. Tome aquelesmundos Wtais que a essncia de Curley implicaser significantemente livre em Wenunca fazer o que errado em W. Cada um desses mundos tem uma importante

    propriedade, se Curley sofre de depravao transmundana; cada um deles tal queDeus no o poderia ter atualizado. Podemos ver isso da seguinte maneira. Suponhaque W* um mundo qualquer tal que a essncia de Curley implica a propriedadeser

    significantemente livre, mas nunca fazer o que errado em W*. Ou seja, W* ummundo no qual Curley significantemente livre, mas sempre faz o que correto. Mas, claro, Curley sofre de depravao transmundana. Isso significa (como j vimos) queDeus no poderia ter atualizado W*. Assim, se Curley sofre de depravao transmun-dana, ento a essncia de Curley tem tambm essa propriedade: Deus no poderiater atualizado nenhum mundo Wtal que a Curleydade contivesse as propriedades

    ser significantemente livre em Wesempre fazer o que correto em W.Podemos usar essa conexo entre a depravao transmundana de Curley e sua

    essncia como a base para uma definio de depravao transmundana aplicada

    a tais essncias, em vez de s pessoas. Devemos notar, primeiramente, que se Ea essncia de uma pessoa, ento tal pessoa a instanciao de E; ela a coisa quetem (ou exemplifica) toda propriedade em E. Para instanciar uma essncia, Deuscria uma pessoa que tem aquela essncia, e, ao criar uma pessoa, ele instancia umaessncia. Agora, podemos dizer que

    (30) Uma essncia Esofre de depravao transmundana se, e somente se, paratodo mundo Wtal que Eimplica a propriedade ser significantementelivre em Wesempre fazer o que correto em W, h um estado de coisasTe uma aoA tal que(1) T o maior estado de coisas que Deus atualiza fortemente em W,(2)A moralmente significante para a instanciao de Eem W

    e(3) se Deus tivesse atualizado fortemente T, a instanciao de E teria

    errado com respeito aA.

    Note que a depravao transmundana uma propriedade acidental daquelasessncias e das pessoas que ela aflige. Suponha que Curley sofre de depravaotransmundana: ento sua essncia tambm sofre. Contudo, h um mundo no qual

    24 Essas noes so desenvolvidas em detalhes em Plantinga (1974, cap. 5) (N. do T.).

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    Curley significantemente livre, mas sempre faz o que correto. Se esse mundotivesse sido o atual, ento, claro, nem Curley e nem sua essncia sofreriam dedepravao transmundana. Assim, depravao transmundana no uma proprie-dade essencial nem para as pessoas em questo, nem para as essncias que elasexemplificam. Mas, por enquanto, evidentemente, eu assumo que, se uma essn-cia Esofre de depravao transmundana, ento no estaria ao alcance do poder

    de Deus atualizar um mundo possvel Wtal que Econtivesse as propriedadessersignificantemente livre em Wesempre fazer o que correto em W. Portanto, noestaria ao alcance do poder de Deus criar um mundo no qual a instanciao de Efosse significantemente livre, mas sempre fizesse o que correto.

    Agora, h outro fato interessante aqui: possvel que toda essncia criada25sofra de depravao transmundana. Suponha que isso seja verdade. Deus pode criarum mundo contendo bem moral somente criando pessoas significantemente livres.E, tendo em vista que toda pessoa uma instanciao de uma essncia, Ele podecriar pessoas significantemente livres, somente ao instanciar algumas essncias cria-das. Mas, se todas essas essncias sofrem de depravao transmundana, ento noimporta quais essncias Deus tenha instanciado, as pessoas resultantes, caso sejamlivres com respeito a aes moralmente significantes, sempre realizariam, ao menos,

    alguma ao errada. Se toda essncia criada sofre de depravao transmundana,ento estaria para alm mesmo do poder de Deus criar um mundo contendo bemmoral, mas sem mal moral. Ele poderia ter sido capaz de criar mundos nos quais omal moral consideravelmente superado pelo bem moral, mas no estaria ao alcancedo poder da onipotncia criar mundos contendo bem moral, mas sem nenhum malmoral. Sob essas condies, Deus poderia ter criado um mundo sem nenhum malmoral, somente criando um mundo sem pessoas significantemente livres. Mas, se possvel que toda essncia sofra de depravao transmundana, ento possvelque Deus no tenha criado um mundo contendo bem moral, mas sem mal moral.

    Defesa do livre arbtrio triunfante

    Formalmente, voc deve lembrar, o projeto do Defensor do Livre Arbtrio eramostrar que

    (1) Deus onisciente, onipotente e completamente bom.

    consistente com

    (2) O mal existe.

    Isso decorre do fato de que um par de proposies p e q so consistentesentre si, se h uma proposio rcuja conjuno comp consistente e implica q.

    O que ns vimos que

    (31) Toda essncia sofre de depravao transmundana.

    consistente com a onipotncia de Deus. Ento, ela claramente consistente com(1). Dessa forma, ns podemos us-la para mostrar que (1) consistente com (2).Considere, pois, a conjuno de (1), (31) e

    25 Ou seja, toda essncia implicando a propriedadeser criada por Deus.

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    (32) Deus atualiza um mundo contendo bem moral.

    Essa conjuno evidentemente consistente. Mas ela implica(2) O mal existe.

    Diante disso, (1) consistente com (2); a Defesa do Livre Arbtrio bem-

    sucedida. claro que a conjuno de (31) com (32) no a nica proposio que pode

    cumprir a funo de rna Defesa do Livre Arbtrio. Talvez, por exemplo, estivesse aoalcance do poder de Deus atualizar um mundo incluindo bem moral, mas nenhummal moral; contudo, no ao alcance do seu poder atualizar um mundo sem nenhummal moral e incluindo tanto bem moral quanto contido no mundo atual. Assim,(33), que mais fraco que (31), poderia ser usado em conjuno com (34) paramostrar que (1) e (2) so consistentes.

    (33) Para qualquer mundo W, se Wno contm nenhum mal moral e Wcontm tanto bem moral quanto contm, ento Deus no poderiater atualizado W.

    (34) Deus atualiza um mundo contendo tanto bem moral quanto o contidoem .

    O ponto essencial da Defesa do Livre Arbtrio que a criao de um mundocontendo bem moral um projeto cooperativo; ele requer a participao espon-tnea de criaturas significantemente livres. Assim, a atualizao de um mundo Wcontendo bem moral no uma tarefa apenas de Deus; ela depende tambm do queas criaturas significantemente livres de Wfariam se Deus as criasse e as colocassenas situaes que Wcontm. claro que possvel, para Deus, no criar nenhumacriatura livre; mas, se Ele pretende produzir bem moral, ento deve criar criaturas

    significantemente livres, mas a cooperao destas algo do qual Ele deve depender.Assim, o poder de um Deus onipotente limitado pela liberdade que Ele confere asuas criaturas (Wainwright, 1968).

    A existncia de Deus e a quantidadede mal moral

    O mundo, afinal de contas, contm umagrande quantidade de mal moral; eo que temos visto at agora somente que a existncia de Deus compatvel comalgum mal. Talvez o atelogo possa replicar argumentando que, de qualquer modo,a existncia de Deus no consistente com a vasta quantidade e variedade de mal

    que o universo atualmente contm. claro que no podemos medir o mal moral ouseja, no temos unidades tais como volts, libras ou kilowatts por meio das quais pu-dssemos dizer essa situao contm 35 turps de mal moral. Ainda assim, podemoscomparar situaes em termos de mal; podemos ver que algumas contm mais malmoral que outras. E talvez o atelogo queira sustentar que, de qualquer modo, b-vio que Deus, se onipotente, poderia ter criado um mundo moralmente melhor ummundo contendo uma mistura melhor de bem e mal moral do que digamos, ummundo contendo tanto bem moral quanto em , mas contendo menos mal moral.

    Mas isso realmente bvio? Penso que no. Possivelmente, isso no estavaao alcance do poder de Deus, que tudo que o Defensor do Livre Arbtrio precisa.Podemos ver isso acompanhando os prximos argumentos.

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    claro que h muitos mundos possveis contendo tanto bem moral quantoem , mas menos mal moral. Digamos que W* um desses mundos. Se W* fosseatual, haveria tanto bem moral (presente, passado e futuro) quanto de fato houve,h e haver; e haveria menos mal moral em tudo. Em W*, certo conjuntoS de es-sncias instanciado. Assim, para atualizar W*, Deus teria que ter criado pessoasque fossem as instanciaes dessas essncias. Mas, talvez, uma dessas essncias

    tivesse uma instanciao no cooperativa. Isto , possivelmente,

    (35) Existe um membro EdeS, um estado de coisas Te uma aoA tal que(1) A instanciao de Erealiza livrementeA em W*,(2) T o maior estado de coisas que Deus poderia ter atualizado em W*,e(3) Se Deus tivesse atualizado fortemente T, a instanciao de Eno teria

    realizadoA.

    Afirmo que possvel que (35) seja verdade; mas, claramente,se assim o ,ento por razes com as quais ns j estamos bastante familiarizados, Deus nopoderia ter atualizado W*. O fato que possvel que todo mundo moralmente

    melhor seja como W,no sentido de que Deus no o poderia ter atualizado. pos-svel que, para todo mundo moralmente melhor, haja um membro Ede S, umaaoA e um estado de coisas Tque rena as condies expostas em (35). Mas, seisso estiver certo, ento (1) compatvel com a existncia de tanto mal quanto de fato contm.

    A existncia de Deus e o mal natural

    Talvez o atelogo possa replicar mais uma vez. E quanto ao mal natural? O malque no pode ser atribudo ao livre de seres humanos? Sofrimentos devidos aterremotos, doenas e coisas similares? A existncia desse tipo de mal compatvel

    com (1)? Aqui, duas linhas de pensamentos vm, naturalmente, tona. Algumaspessoas lidam criativamente com certos tipos de dificuldade ou sofrimento, agindode tal forma que, no total, o estado de coisas como um todo valoroso. Talvez asrespostas dessas pessoas fossem menos impressionantes, e as situaes como umtodo menos valorosas sem o mal. Talvez alguns males naturais e algumas pessoasestejam, de tal forma, relacionados que tais pessoas teriam produzido menos bemmoral, se tais males estivessem ausentes26. Mas outra linha de pensamento, maistradicional, seguida por S. Agostinho, que atribui muito do mal que ns encon-tramos a Satans, ou a Satans e seus seguidores. Satans, tal como descrito peladoutrina tradicional, um poderoso esprito no humano que, juntamente commuitos outros anjos, foi criado muito antes de Deus criar os homens. Ao contrrioda maioria de seus colegas, Satans se rebelou contra Deus e, desde ento, tem

    causado todo o tipo de destruio que lhe possvel causar. O resultado o malnatural. Portanto, o mal natural que encontramos deve-se livre ao de espritosno humanos.

    Isso, ao contrrio de uma defesa, uma teodiceia27. S. Agostinho acredita-va que o mal natural (com exceo daquele que pode ser atribudo punio deDeus) deve ser de fato atribudo atividade de seres que so livres e racionais, masno humanos. O Defensor do Livre Arbtrio, por outro lado, no precisa afirmar

    26 Como na teodiceia de aprimoramento da alma (soul-making theodicy) de Hick (1966).27 Devo o uso desses termos a Schuurman.

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    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    que isso verdade; ele diz somente que isso possvel (e consistente com (1)). Eleaponta para a possibilidade de que o mal natural seja causado pela ao de seressignificantemente livres, mas no humanos. Temos notado a possibilidade de queDeus no poderia ter atualizado um mundo com um melhor equilbrio entre bemmoral e mal moral do que o que o mundo atual apresenta. Algo similar ocorre aqui;possivelmente, o mal natural se deve livre atividade de um conjunto de seres no

    humanos, e talvez no estivesse ao alcance do poder de Deus criar um conjuntode tais pessoas cuja livre ao produzisse um grande equilbrio de bem e mal. Ouseja, possvel que

    (36) Todo o mal natural devido livre atividade de seres no humanos; hcerta proporo entre bem e mal com respeito ao desses seres nohumanos; e no h nenhum mundo que Deus poderia ter criado quecontenha uma proporo mais favorvel entre bem e mal com respeito livre atividade dos seres no humanos que tal mundo contm.

    Novamente, deve ser enfatizado que a Defesa do Livre Arbtrio no requerque (36) seja verdade para que ela seja bem-sucedida; (36) precisa somente ser

    compatvel com (1). E esse parece definitivamente ser o caso. Alm disso, se (36) verdade, ento o mal natural significantemente se assemelha ao mal moral, nosentido de que, assim como o mal moral, ele o resultado da atividade de pessoassignificantemente livres. De fato, tanto o mal moral quanto o mal natural seriamcasos especiais do que podemos chamar mal moral amplo o mal resultante dalivre ao de seres pessoais, sejam eles humanos ou no ( claro que h uma noocorrelata de bem moral amplo). Alm disso, para facilitar a discusso, podemos es-tipular que o turp a unidade bsica de mal e que h 10 turps de mal no mundoatual; a soma total do mal (passado, presente e futuro) contido em 10 turps.Dado isso, podemos combinar (35) e (36) em um nico enunciado:

    (37) Todo o mal presente no mundo atual mal moral amplo; e todo mundoque Deus poderia ter atualizado e que contm tanto bem moral amploquanto o mundo atual apresenta contm, pelo menos, 10 trups de mal.

    Agora, (37) parece ser consistente com (1) e (38).

    (38) Deus atualiza um mundo contendo tanto bem moral amplo quanto oque o mundo atual contm.

    Mas, juntos, (1), (37) e (38) implicam que existe tanto mal quanto o que contm. Dessa forma, (1) consistente com a proposio de que h tanto malquanto o que contm. Por conseguinte, concluo que a Defesa do Livre Arbtriorebate com sucesso as acusaes de inconsistncia levantadas contra o testa. Seo mal um problema para o crente, ele no o no sentido de que a existncia domal moral ou natural inconsistente com a existncia de Deus.

    O argumento probabilstico do mal

    Nem todos os atelogos que argumentam que no podemos aceitar racio-nalmente tanto a existncia de Deus como a existncia do mal defendem que huma inconsistncia envolvida aqui. A outra possibilidade que a existncia do malou da grande quantidade de mal que encontramos (talvez com outras coisas quesabemos) torne implausvel ou improvvel que Deus exista. claro que isso pode

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    Filosofia Unisinos, 10(3):317-344, set/dez 2009

    Alvin Plantinga

    ser verdadeiro mesmo que a existncia de Deus seja consistente com a existnciado mal. Mas isso , de fato, verdadeiro? Analisemos, brevemente, a questo. Diga-mos que uma proposiop confirma uma proposio q, se q mais provvel doque no-q, considerando apenas a presena dep: isto , q seria mais provvel doque no-q, com respeito ao que ns sabemos, considerando quep a nica coisarelevante para q que ns sabemos. E digamos quep desconfirma q sep confirma

    a negao de q. Agora lembremos (37):

    (37) Todo o mal presente no mundo atual mal moral amplo; e todo mundo queDeus poderia ter atualizado e que contm tanto bem moral amplo quantoo que o mundo atual apresenta contm, pelo menos, 10 trups de mal.

    Ou mesmo (39), que leva em considerao a possibilidade de que nem todomal natural mal moral amplo:

    (39) Todo mundo que Deus poderia ter atualizado e que contm menos que10 turps de mal contm menos bem moral amplo e um balano geralmenos favorvel de bem e mal do que o que o mundo atual contm.

    evidente que (40) no desconfirma nem (37) nem (39)

    (40) H 10 turps de mal.

    Assim como no desconfirma (41) ou (42):

    (41) Deus onipotente, onisciente e o criador moralmente perfeito do mun-do; todo mal no mundo mal moral amplo; e todo mundo que Deuspoderia ter atualizado e que contm tanto bem moral quanto o mundoatual apresenta, contm pelo menos 10 turps de mal.

    ou

    (42) Deus onipotente, onisciente e o criador moralmente perfeito do mundo;e todo mundo que Deus poderia ter atualizado e que contm menos de10 turps de mal, contm menos bem moral amplo e um equilbrio geralmenos favorvel de bem e mal do que o mundo atual contm.

    Agora, se uma proposiop confirma uma proposio q, ento ela confirmatoda proposio que q implica. Assim, sep desconfirma q, entop desconfirmatoda proposio que implica q. (40) no desconfirma (41) ou (42); tanto (41)quanto (42) implicam (1); portanto, a existncia de uma grande quantidade de

    mal atualmente presente no mundo no torna improvvel a existncia de um Deusonisciente, onipotente e completamente bom. At onde esse argumento nos per-mite concluir, claro, pode haver outras coisas que conhecemos tal que (41) e/ou(42) seja(m) improvvel(is) com respeito conjuno de (40) com tais coisas. Podeser que (41) e (42) sejam improvveis com respeito nossa evidnciatotal, isto, totalidade do que ns sabemos. (41), por exemplo, envolve a ideia de que omal que no devido ao livre humana devido ao livre de outras criaturasracionais e significativamente livres. Temos evidncia contra essa ideia? Muitaspessoas acham-na absurda; mas isso dificilmente pode ser contado como evidnciacontra ela. Os telogos algumas vezes nos falam que essa ideia repugnante parao homem de nossa poca ou para nossos padres modernos de pensamento. Eu

  • 7/30/2019 Artigo de Alvin Platinga

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    Filosofia Unisinos, 10(3):317-344, set/dez 2009

    Deus, o mal e a metafsica do livre arbtrio

    no estou convencido de que isso seja correto; em todo caso, isso no pode sertomado como evidncia significativa. O mero fato de que uma crena impopularno presente (ou em algum outro tempo) , sem dvida, interessante de um pontode vista sociolgico; mas evidncia irrelevante. Talvez tenhamos evidncia contraessa crena; mas, se a temos, no sei qual .

    De qualquer modo, no posso ver como nossa evidncia total desconfirma a ideia

    de que o mal natural resulta da atividade de criaturas racionais e significativamentelivres. claro que nossa evidn