A Escola Da Ponte

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    Rui Canrio, Filomena Matos e Rui Trindade

    (Orgs.)

    ESCOLA DA PONTE

    DEFENDER A ESCOLA PBLICA

    Textos de

    Joo Barroso

    Maria Emlia Brederode Santos

    Rui Canrio

    Ariana Cosme

    Fernando Ildio Ferreira

    Isabel Menezes

    Antnio Nvoa

    Jos Pacheco

    Manuel Jacinto Sarmento

    Rui Trindade

    Teresa Vasconcelos

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    NDICE

    Nota de Apresentao

    R u i C a n r i o , F i l o m e n a M a t o s e R u i T r i n d a d e

    Pag.

    APRENDER COM A ESCOLA DA PONTE

    Escola da Ponte:

    defender, debater e promover a escola pblica.

    J o o B a r r o s o

    Pag.

    A escola do futuro

    M a r i a E m l i a B r e d e r o d e S a n t o s

    Pag.

    Uma inovao apesar das reformas

    R u i C a n r i o

    Pag.

    Repensar a escola e o sentido do trabalho escolar

    F e r n a n d o I l d i o F e r r e i r a

    Pag.

    Memrias de um projecto em forma de ponte

    I s a b e l M e n e z e s

    Pag.

    A educao cvica de Antnio Srgio vista a partir da Escola da Ponte

    (ou vice-versa)

    A n t n i o N v o a

    Pag.

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    Reinveno do ofcio de aluno

    M a n u e l S a r m e n t o

    Pag.

    A construo de uma escola pblica e democrtica

    R u i T r i n d a d e

    A r i a n a C o s m e

    Pag.

    Para que no interrompamos o projecto

    T e r e s a V a s c o n c e l o s

    Pag.

    FAZER A PONTE, CONSTRUIR A MEMRIA

    Uma escola sem muros

    J o s P a c h e c o

    Pag.

    Manifesto de apoio Escola da Ponte

    Pag.

    Tornar mais pblica a Escola Pblica

    Pag.

    Cronologia recente

    Pag.

    Nota sobre os autores e organizadores

    Pag.

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    Nota de Apresentao

    O Projecto Educativo que, ao longo dos ltimos 25 anos, vem sendo construdo

    por um colectivo de professores na Escola da Ponte, em Vila das Aves, constitui um

    sinal de esperana para todos os que acreditam e defendem a possibilidade de construir

    uma escola pblica aberta a todos os pblicos, baseada nos valores da democracia, da

    cidadania e da justia, que proporciona a todos os alunos uma experincia bem sucedida

    de aprendizagem e de construo pessoal. O ataque desencadeado pelo Ministrio da

    Educao, pondo em causa a continuidade deste projecto, despoletou sentimentos de

    perplexidade e de indignao que se traduziram num amplo movimento de

    solidariedade. A publicao deste livro constitui um prolongamento desse movimento

    de solidariedade em que, insubstituvel espontaneidade e dimenso afectiva do

    primeiro impulso, se pretende acrescentar o testemunho lcido e reflectido, susceptvel

    de alimentar um combate de mais largo flego.

    A Escola da Ponte representa uma singularidade na qual possvel vislumbrar a

    totalidade sistmica dos problemas que se colocam ao nosso sistema escolar, bem como

    algumas hipteses slidas de possveis solues que contrariam o nosso proverbial

    cepticismo. Referimo-nos aos problemas da organizao escolar e da sua gesto, aos

    problemas da incluso e da construo de uma vida escolar democrtica e participada,

    ao problema de exercer o rigor nas aprendizagens com base no gosto por aprender, ao

    problema de fazer coincidir a formao de professores com a construo autnoma de

    uma profissionalidade responsvel. A atitude adoptada pelo Ministrio da Educao,

    relativamente a esta escola, ilustra a realidade profunda que marca a sua poltica e a

    contradio entre os actos e a retrica. No caso da Escola da Ponte, o mrito

    penalizado, o protagonismo das famlias contrariado, a responsabilizao da escola

    pelos seus resultados desencorajada, o rigor da avaliao externa ignorado.

    Nesta perspectiva, o caso da Escola da Ponte no constituiu mais um dos muitos

    fait-divers em que costumam ser frteis os incios de ano lectivo, mas um verdadeiro

    analisador da nossa realidade educativa e do sentido da poltica prosseguida pela actual

    equipa do Ministrio da Educao. A luta da Escola da Ponte marcou uma fronteira que

    separa duas maneiras distintas de diagnosticar e pensar o futuro da escola e o papel a

    desempenhar pelo poder pblico. A defesa da Escola da Ponte passou a representar para

    muitos educadores e cidados um meio de preservar e promover um servio pblico de

    educao que tenha como vocao o sucesso de todos e faa da participao de

    professores, alunos e pais um exerccio permanente de cidadania. O exemplo da Escola

    da Ponte, pelas finalidades que prossegue, pelas metodologias de organizao e de

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    trabalho que constri, pelas alianas em que se fundamenta e pelos resultados que

    evidencia um bom ponto de partida para promover o debate sobre o futuro de uma

    escola pblica que preciso tornar mais pblica.

    Este livro organiza-se em duas partes. Rene-se, na primeira, um conjunto de

    testemunhos sobre o projecto que vem sendo desenvolvido na Escola da Ponte que

    foram solicitados a um conjunto de especialistas na rea da educao, conhecedores

    directos da experincia em causa e solidrios com ela. Numa segunda parte, rene-se

    um conjunto de documentos para memria futura que incluem, nomeadamente, um

    texto que apresenta a experincia da Escola da Ponte, bem como uma cronologia dos

    acontecimentos mais recentes.

    Com a publicao deste livro pretendemos, por um lado, documentar a

    solidariedade com o projecto Fazer a Ponte e, por outro lado, favorecer a possibilidade

    de que todos possamos aprender com a sua experincia. Pretendemos, ainda, marcar um

    momento de um debate necessrio a que urge dar sequncia.

    Os organizadores

    Rui Canrio, Filomena Matos e Rui Trindade

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    Aprender com a

    Escola da Ponte

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    Escola da Ponte:

    defender, debater e promover a escola pblica.

    J o o B a r r o s o

    A Escola da Ponte uma escola pblica onde se tem vindo a construir, desde h

    quase trinta anos, um projecto pedaggico slido e inovador, com um forte

    envolvimento da sociedade local, em particular dos pais, e com um sentido activo e

    responsvel de autonomia institucional. A consistncia do projecto, a capacidade de

    dinamizao do seu principal promotor, bem como o comprovado sucesso dos seus

    resultados (quer em funo de critrios formais e externos de avaliao das

    aprendizagens quer em funo do grau de concretizao dos objectivos propostos)

    fizeram da Escola da Ponte um case-study para todos os que se interessam pela

    educao, em diferentes domnios: do curricular ao organizativo, do trabalho e

    formao dos professores ao trabalho e formao dos alunos, das prticas inovadoras s

    teorias da mudana, da cidadania pedagogia.

    A visibilidade que o projecto foi tendo, ao longo destes anos, deu Escola da

    Ponte, em particular aos seus professores e alunos, uma notoriedade pblica, a nvel

    nacional e internacional, alimentada e ampliada pelas inmeras visitas que foram feitas

    escola, pelos textos que foram publicados, pelas investigaes realizadas

    (normalmente em contexto acadmico) e pelas intervenes produzidas pelos autores /

    actores do projecto, em congressos, seminrios, e encontros, ou na simples partilha de

    experincias com outras escolas.

    Em todos os pases existem casos destes e, mesmo em Portugal, no faltam

    outros exemplos de escolas que, isoladamente ou integradas em movimentos mais

    amplos (como o Instituto das Comunidades Educativas ou a Escola Moderna), fazem a

    diferena, pela maneira inovadora como os seus professores desenvolvem as

    aprendizagens dos alunos, estabelecem parcerias com a comunidade e adequam as suas

    obrigaes de servio pblico aos valores da justia social, da igualdade de

    oportunidades e da construo da cidadania.

    Embora, no caso portugus, os vrios governos no estivessem, normalmente,

    muito interessados na promoo e alargamento destas experincias pedaggicas (ou por

    opes de poltica educativa contrrias a esses movimentos ou por receio de perderem o

    controlo da situao), o certo que sempre as toleraram e, por vezes, aqui e ali as

    apoiaram atravs de medidas derrogatrias e recursos extraordinrios que lhes

    consagravam um estatuto especial. Digamos que, sem pretender pr em causa o enorme

    mrito destas iniciativas, o apoio ou tolerncia que recebiam da administrao

    resultavam, normalmente, de dois tipos de estratgias: a possibilidade de estas

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    iniciativas serem utilizadas como vitrines de uma poltica que se pretendia assumir

    como progressista ou modernizadora, preocupada com a qualidade do servio pblico; a

    possibilidade de a administrao exercer um melhor acompanhamento e controlo sobre

    situaes potencialmente incmodas, fazendo delas objecto de um reconhecimento

    oficial e de intervenes e programas especiais.

    Parece estar em vias de se romper com o actual governo este aparente

    compromisso entre poderes instituintes (as escolas/professores inovadores) e poderes

    institudos (os responsveis polticos no Ministrio da Educao e sua administrao)

    que permitiu a sobrevivncia (ou mesmo desenvolvimento) de diversos projectos

    educativos de inovao da escola pblica, centrados na promoo da igualdade de

    oportunidades, no atendimento preferencial a populaes desfavorecidas e em prticas

    pedaggicas visando a autonomia dos professores e dos alunos. luz desta situao

    que deve ser interpretado o que se passa, hoje, com a Escola da Ponte, com o

    encerramento das escolas rurais, com a extino do Instituto de Inovao, com o fim

    dos programas de incentivo inovao, com o silncio sobre o programa de reforo da

    autonomia das escolas, com a ameaa eleio dos gestores escolares, etc.

    Neste sentido e independentemente do carinho, solidariedade e interesse que nos

    merecem a Escola da Ponte e todos os que esto associados a este projecto, o que

    preciso sublinhar, neste momento, o facto de este caso ser exemplar para mostrar o

    modo como o actual governo se posiciona face escola pblica em geral e os

    problemas e desafios que se levantam a todos os que, defendendo a escola pblica, no

    se limitam a fazer dela um baluarte de conquistas passadas, mas um espao de

    interveno para a construo de melhores futuros. Na verdade:

    - O caso da Escola da Ponte no um episdio pontual, mas, antes pelo contrrio, constitui um exemplo paradigmtico das posies e aces em confronto no

    debate actual sobre a escola pblica: por um lado, os que, na Escola, se esforam

    por promover um ensino justo, democrtico, participativo, adaptado

    diversidade e caractersticas dos alunos, pedagogicamente eficaz e civicamente

    activo; por outro lado, os que, no governo e nos meios de comunicao social,

    querem fazer crer que a escola pblica est condenada ao fracasso, que a

    competio e o mercado devem ser os seus valores de referncia, mas que, ao

    mesmo tempo, tm (ou defendem) polticas centralizadoras, burocrticas e

    conservadoras que a impedem de mudar e de se aperfeioar.

    - O caso da Escola da Ponte no pode ser reduzido a uma mera discordncia (tcnica administrativa e financeira) quanto maneira de gerir com mais eficincia os dinheiros pblicos que o governo gasta na educao, em particular

    na gesto da rede escolar (construo de edifcios e fluxo de alunos). A questo

    poltica e interpela simultaneamente os defensores da escola pblica que, neste

    caso, so confrontados com a necessidade de defenderem a existncia de

    projectos pedaggicos prprios e a possibilidade de os alunos e as suas famlias

    escolherem uma escola da sua preferncia; e os defensores da introduo de uma

    lgica de mercado na educao e da livre escolha da escola que, neste caso,

    aparecem como acrrimos defensores da sectorizao e da carta escolar,

    obrigando os pais a matricular os seus filhos numa escola determinada pelo

    Estado, em funo de critrios meramente administrativos.

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    com base nestes pressupostos que eu irei fazer trs breves comentrios,

    procurando situar as recentes medidas tomadas pelos responsveis do Ministrio da

    Educao sobre a Escola da Ponte num contexto mais vasto de ataque escola pblica1.

    O primeiro comentrio tem como tema defender a escola pblica e pretende chamar a ateno para o facto de ser necessrio reafirmar, hoje, os valores

    fundadores da escola pblica, perante a difuso transnacional de uma vulgata neo-liberal

    que v no servio pblico a origem de todos os males da educao e na sua privatizao

    a nica alternativa.

    O segundo comentrio tem como tema debater a escola pblica e pretende pr em evidncia a complexidade dos problemas com que se debate a escola pblica

    numa sociedade cada vez mais injusta, individualista e mercantilizada, bem como a

    necessidade de encontrar, na transformao da escola, novas formas e espaos de

    interveno pblica.

    Finalmente, o terceiro comentrio tem por tema promover a escola pblica e constitui uma oportunidade de afirmar a importncia de uma escola pblica que garanta a universalidade do acesso, a igualdade das oportunidades e a continuidade dos

    percursos escolares, aberta diversidade dos pblicos, mas praticando uma poltica

    activa de justia social, em benefcio dos mais desfavorecidos.

    Defender a escola pblica

    Durante mais de 150 anos o Estado assumiu, no mundo ocidental, a funo de

    Estado Educador. A criao e desenvolvimento da escola pblica tornou-se, primeiro,

    um imperativo para a consolidao do Estado-Nao e, mais tarde (principalmente a

    partir da Segunda Guerra Mundial), um elemento essencial do desenvolvimento

    econmico.

    A escola pblica desenvolveu-se, assim, com base num voluntarismo poltico,

    claramente centralizador, que pressupunha um forte consenso social no valor da

    educao e nas modalidades de organizao da escola.

    Nos ltimos tempos, como sabido, tem-se assistido a uma crise do prprio

    conceito de Estado-Nao e a uma quebra clara do consenso social em que se baseava o

    Estado Educador. Alm disso, o crescimento extraordinrio dos sistemas educativos e a

    complexificao da sua organizao tornaram difcil a sua renovao e adaptao s

    necessidades do mundo actual. Os resultados alcanados ficam sistematicamente aqum

    das expectativas e a confiana na capacidade de os poderes pblicos resolverem os seus

    problemas vem-se reduzindo de maneira notria.

    Perante estas situao de crise, os governos procuraram responder, agora como

    dantes, com grandes reformas que, com grande optimismo retrico, eram anunciadas

    como o mito regenerador da educao e a boa soluo para tudo resolver de maneira

    racional e planificada.

    1 Estes comentrios incorporam diferentes reflexes que desenvolvi em outras publicaes e em outros contextos

    temticos, nomeadamente Barroso, 1996, 1999, 2003.

  • 10

    O balano que se faz destas grandes reformas que, principalmente depois dos

    anos 60, constituam o manifesto poltico de qualquer ministro que se prezasse

    conhecido. A maior parte das reformas no passou do papel e as que foram um pouco

    mais longe raramente se radicaram nas escolas e, muito menos, na sala de aula e nas

    suas prticas quotidianas.

    Alis, o que se passou com mais frequncia, como assinalam David Tyack e

    Larry Cuban (1995) ao analisarem um sculo de reformas nos Estados Unidos, foi que,

    ao contrrio dos seus propsitos iniciais, em vez de as reformas modificarem as escolas,

    acabaram sendo mudadas por elas.

    Paralelamente com este insucesso das grandes reformas conduzidas pelo Estado,

    tem-se assistido, principalmente desde o incio dos anos 80, ao alargamento de uma

    perspectiva desenvolvimentista da educao com a sua subordinao aos imperativos da

    competitividade econmica e s regras do mercado.

    Um dos traos mais marcantes desta lgica de mercado consiste na tentativa de

    reduzir o monoplio pblico da educao, de acordo com o que Dale (1994) chama, em

    termos muitos gerais, de objectivos da Nova Direita: retirar os custos e

    responsabilidade ao Estado e, simultaneamente, aumentar a eficincia e capacidade de

    resposta e consequentemente a qualidade do sistema educativo.

    Neste sentido, para os defensores de uma poltica neo-liberal, a modernizao da

    educao passa, entre outras coisas, pela libertao da escola das mos do Estado, pela

    empresarializao da sua gesto e pela introduo de um sistema de concorrncia em

    que a satisfao do consumidor decide da sua rentabilidade e eficcia.

    No possvel fazer, no mbito do presente texto, um balano das principais

    crticas que tm sido feitas a estas polticas de modernizao baseadas na construo de

    um mercado da educao. Mas h um aspecto que importa referir, tendo em conta os

    objectivos de mostrar a necessidade de defender a escola pblica: as consequncias

    daquilo que Ball (1994) chama de os valores da mudana e os dilemas ticos

    provocados pela actividade do mercado e pela competio (p.129).

    Falando da experincia inglesa, este autor chama a ateno para o facto de, ao

    sublinhar-se a pretensa neutralidade do mecanismo da escolha do consumidor, se

    estar a desviar a ateno dos valores e dos aspectos ticos ligados (e requeridos) pela

    aplicao da lgica de mercado educao. Entre estes valores contam-se os que

    celebram a tica do que Nagel (1991) chama de ponto de vista pessoal interesses pessoais e desejos individuais e, ao mesmo tempo, obscurecem e desprezam as preocupaes igualitrias daquilo que o mesmo autor designa por ponto de vista

    impessoal.

    Como afirma Ball (1994) no final do seu livro em que analisa criticamente a

    reforma educativa inglesa: O que se perdeu na educao no Reino Unido foi a

    existncia de qualquer tipo de discurso sobre as virtudes cvicas ou tica social (p.

    144). E acrescenta, citando Plant (1992):

    Sem o sentido da virtude cvica ou da orientao para valores que no tenham

    unicamente em vista o interesse pessoal, o comportamento do mercado exigir

    uma regulao crescente, em funo dos interesses do prprio mercado. Este

    tipo de regulao tende a tornar-se cada vez mais problemtica se no houver

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    uma maior preocupao em cultivar o sentido da responsabilidade social e

    cvica, o que, como eu sugeri, se torna cada vez mais difcil devido eroso dos

    valores sociais em favor dos interesses prprios e privados. (p. 89).

    Idntica preocupao pelas consequncias de uma poltica educativa que v na

    desinstitucionalizao e desregulao o nico processo de colmatar as deficincias de

    funcionamento da escola pblica, ao mesmo tempo que olha para a educao como um

    bem de consumo e no como um bem comum, est presente na anlise que David Tyack

    e Larry Cuban (1995) fazem de um sculo de reformas escolares nos Estados Unidos:

    Nesta ltima gerao, o discurso sobre a escola pblica tornou-se

    extremamente limitado. Passou a estar centrado na competio econmica

    internacional, nos resultados dos testes e na escolha individual da escola. Mas, em contrapartida, negligenciou por completo o tipo de escolhas que so

    essenciais para o bem-estar cvico: escolhas colectivas sobre um futuro comum,

    escolhas feitas, atravs de processos democrticos, sobre os valores e os

    conhecimentos que os cidados querem passar para a prxima gerao. (p.

    142).

    Neste sentido, a defesa da escola pblica passa, por um lado, por desmontar o

    carcter pretensamente neutro da introduo de uma lgica de mercado na educao,

    denunciando a sua tica perversa e a sua intencionalidade poltica e, por outro, por fazer

    da definio e regulao das polticas educativas um processo de construo colectiva

    do bem comum que educao cabe oferecer, em condies de igualdade e justia

    social, a todos os cidados.

    Debater a escola pblica

    A defesa da escola pblica no pode estar prisioneira de qualquer tipo de

    ortodoxia sobre o modo como se concretizam os seus ideais e se organizam as suas

    estruturas e actividades. A preservao da escola pblica passa pela sua capacidade de

    se actualizar face s mudanas que ocorreram ao longo do tempo, nos vrios domnios

    da vida social. Entre as questes mais importantes a debater neste propsito de mudana

    situa-se a questo da regulao das polticas educativas e o papel que o Estado, os

    professores, os pais dos alunos e a sociedade em geral, devem ter nesse processo.

    Como tenho vindo a afirmar em diferentes momentos e contextos (Barroso,

    1997, 1998, 1999, 2000), no possvel reduzir o debate sobre os modelos de

    governao da educao a uma opo entre, por um lado, uma administrao

    centralizada, planificada e hierarquizada e por outro, um mercado, descentralizado,

    concorrencial e autnomo. Existem outras alternativas na educao pblica, entre o

    centralismo estatal e a livre concorrncia do mercado, entre a fatal burocracia do

    sector pblico e o mito da gesto empresarial, entre o sbdito e o cliente.

    Whitty (2002, p. 20) afirma a este propsito:

    (...) nem o Estado nem a sociedade civil constituem um contexto adequado

    para o exerccio de uma cidadania activa e democrtica, atravs da qual seja

    alcanada a justia social. A reafirmao dos direitos dos cidados em

    educao parece exigir o desenvolvimento de uma nova esfera pblica, algures

    entre o Estado e a sociedade civil mercantilizada, em que novas formas de

  • 12

    associao colectiva possam ser desenvolvidas. O desafio reside em saber como

    sair de um processo de deciso atomizado, para o assumir de uma

    responsabilidade colectiva em educao, mas sem recriar um sistema de

    planificao supercentralizado (...).

    Segundo o mesmo autor, se se pretende evitar um processo de deciso atomizada

    que gera a fragmentao e a polarizao entre as escolas e no interior de cada escola

    (como acontece actualmente em Inglaterra), necessrio criar novos contextos de aco

    colectiva no interior da prpria sociedade civil. Isto obriga a uma nova concepo de

    cidadania que vise criar a unidade sem negar a especificidade (Whitty (2002, p. 20).

    Um dos exemplos mais significativos da necessidade de debater o modo como a

    escola pblica deve poder criar a unidade sem negar a diversidade diz respeito ao

    processo de planeamento e regulao dos fluxos escolares dos alunos e da introduo,

    ou no, de dispositivos de escolha da escola pelos alunos e suas famlias.

    A livre escolha da escola constitui uma das expresses mais emblemticas das

    formas de regulao pelo mercado e tem sido objecto de vrias investigaes que

    permitem caracterizar muitas das suas modalidades e efeitos. Embora existam mltiplas

    modalidades de escolha (parcial, total, por voucher, sorteio, critrios previamente

    definidos, etc.) e no se possam ignorar os contextos especficos de cada pas, as

    investigaes realizadas tm mostrado que a regulao exercida por este dispositivo est

    longe de orientar o sistema na direco com que a retrica liberal pretende legitimar esta

    medida (nomeadamente, aumento da eficcia dos resultados, maior informao e

    liberdade das famlias). Na verdade, os comportamentos das famlias no so

    homogneos, havendo diferenas claras de estratgias e resultados, conforme o seu

    estatuto social e proximidade aos valores escolares, pelo que, em vez de diversificar a

    oferta, o que este tipo de regulao faz hierarquiz-la.

    Apesar destes resultados, convm sublinhar (como o fazem os mesmos autores e

    os trabalhos de Van Zanten, 2000, Barroso et alli, 2002, Barroso e Viseu, 2003, entre

    outros, confirmam) que, nos pases onde funciona a carta escolar com a consequente

    obrigao de os alunos frequentarem a escola da sua residncia, a situao no muito

    mais risonha, uma vez que o mesmo tipo de famlias acaba por conseguir furar o

    sistema, em funo dos mesmos critrios. A polarizao social, a hierarquizao dos

    estabelecimentos, as desigualdades entre as escolas continuam a existir nos sistemas que

    utilizam a carta escolar, embora de uma maneira mais encoberta.

    Isto significa que, no caso do debate sobre a escolha da escola, como dizem

    Dubet e Duru-Bellat (2000, p. 136), mais do que impedir as famlias de fugir, mais

    valia dar-lhes boas razes para o no fazer. Isto passa por garantir uma escola pblica

    justa e de qualidade para todos, que tenha em conta as especificidades locais,

    promovendo uma poltica de discriminao positiva que corrija as assimetrias

    econmicas e sociais e fazendo da participao dos alunos, dos professores e dos pais

    um exerccio permanente de cidadania.

    No caso presente, isso significa que a opo no pode estar limitada entre, por

    um lado, preservar a escola pblica impedindo as famlias de fugirem dela, e por outro,

    aniquilar a escola pblica com a criao artificial de um mercado educativo sustentado

    com dinheiro pblico. A soluo passa, pelo contrrio, por um reforo da dimenso

    cvica e comunitria da escola pblica, restabelecendo um equilbrio entre a funo

    reguladora do Estado, a participao dos cidados e o profissionalismo dos professores,

  • 13

    na construo de um bem comum local que a educao das crianas e dos jovens. Por

    isso, em vez de dar a cada escola o seu pblico, preciso que cada escola se abra

    diversidade dos seus pblicos, o que s possvel se for intransigente no

    reconhecimento dos seus direitos e se for solidria com as suas necessidades, interesses

    e anseios.

    E era isto que se passava na Escola da Ponte! Por isso que importante a

    continuidade do seu projecto e preocupante a ameaa que sobre ele cai por pretensos

    critrios administrativos.

    Promover a escola pblica

    A promoo da escola pblica exige que o Estado continue a assegurar, como

    lhe compete, a manuteno da escola num espao de justificao poltica (Derouet,

    2003), sem que isso signifique ser o Estado o detentor nico da legitimidade dessa

    justificao.

    Esta alterao do papel do Estado (de burocrata e garante da ordem universal a

    regulador das regulaes e compositor da diversidade local e individual) insere-se no

    que Dubet (2002) chama de declnio do programa institucional.

    Com o desenvolvimento das polticas pblicas, o programa institucional no

    pode aparecer como a cristalizao duma teologia moral e poltica de que o

    Estado podia ser considerado como o senhor todo-poderoso. J no se trata de

    conceber a aco pblica como a execuo dum programa atravs de uma

    burocracia impessoal, mas de mobilizar as redes e grupos de actores pblicos e

    privados encarregados de atingir objectivos definidos como resultados mais ou

    menos mensurveis. (...) O interesse geral j no surge como uma categoria

    transcendente, mas como uma produo local resultante de uma aco colectiva

    e dum modo de regulao contnuo. (...) As grandes arbitragens ticas e

    polticas, no podendo fazer-se no topo atravs da magia retrica das

    instituies ou graas soberania poltica, so delegadas aos actores de base,

    que devem, deste ponto de vista, comportar-se como sujeitos polticos e morais

    obrigados a deliberar e a produzir arbitragens (Dubet, 2002, pp. 63-65).

    Esta desinstitucionalizao da vida social (pela perda de referncia a normas

    universais) leva multiplicao dos espaos de produo poltica (enquanto lugares de

    legitimao, escolha, inveno de normas, construo de projectos e tomada de

    deciso). Por exemplo, as escolas deixam de ser (ou de parecer ser) lugares de aplicao

    de um projecto educativo nico construdo a partir do centro, para serem (ou parecerem

    ser) lugares de construo de projectos educativos mais ou menos autnomos. Isto

    significa, entre outras coisas, que necessrio, no caso da administrao das escolas,

    passar de uma regulao pelas normas a uma regulao pelos resultados, tendo

    em vista j no garantir a sua homogeneidade, mas sim a sua equidade (Dubet e Duru-

    Bellat, 2000, p. 206).

    A proliferao de espaos de deciso no domnio das polticas (com a

    descentralizao e o reforo da autonomia das escolas e com o alargamento

    participao da sociedade civil) pode conduzir sua atomizao e consequente

    fragmentao e polarizao do servio educativo. Torna-se, por isso, necessrio, como

    adverte Whitty (2002, p. 92), criar novos contextos para determinar mudanas

  • 14

    curriculares e institucionais que estejam ao servio da sociedade no seu conjunto. Isto

    passa, segundo este mesmo autor, por novas formas de associao na esfera pblica nas

    quais os direitos dos cidados sejam reafirmados (e defendidos), face s actuais

    tendncias para a constituio de uma verso reduzida do Estado e para a

    mercantilizao da sociedade civil.

    Por tudo quanto foi dito, podemos concluir que a repolitizao da educao, a

    multiplicao das instncias e momentos de deciso, a diversificao das formas de

    associao no interior dos espaos pblicos e o envolvimento de um maior nmero de

    actores conferem ao sistema de regulao da educao uma complexidade crescente.

    Esta complexidade exige um papel renovado para a aco do Estado, com o fim de

    compatibilizar o desejvel respeito pela diversidade e individualidade dos cidados,

    com a prossecuo de fins comuns necessrios sobrevivncia da sociedade de que a educao um instrumento essencial.

    Essa compatibilizao s possvel com o reforo da formas democrticas de

    participao e deciso o que, nas sociedades contemporneas, exige cada vez mais uma

    qualificada e ampla informao, a difuso de instncias locais e intermdias de deciso,

    uma plena incluso de todos os cidados (particularmente dos que, at aqui, tm sido

    sistematicamente excludos, do interior e do exterior). S assim possvel estabelecer

    um acordo sobre uma base comum suficientemente generosa, atractiva e plausvel que

    possa unificar os cidados no apoio escola pblica e que Tyack e Cuban (1995)

    consideram ser uma necessidade crucial do nosso tempo (p. 142).

  • 15

    Em sntese

    Tomando como pano de fundo os comentrios atrs produzidos, possvel

    perceber at que ponto as medidas tomadas pelos responsveis do Ministrio da

    Educao em relao Escola da Ponte podem servir de elemento de diagnstico sobre

    a orientao que vem sendo dada poltica educativa pelo actual governo e pelas foras

    polticas e movimentos de opinio que o apoiam2. Essa orientao visa produzir uma

    ruptura com os valores que serviram de base democratizao da educao aps 25 de

    Abril de 1974 e s inmeras iniciativas e projectos de renovao do ensino pblico que

    emergiram em muitas escolas, nestes quase 30 anos: em favor da igualdade de

    oportunidades; no combate excluso social; na promoo de formas participativas de

    gesto; na construo de organizaes democrticas; na integrao de minorias e

    desenvolvimento do multiculturalismo; na criao de situaes de aprendizagem que

    incorporem os progressos tcnicos e do conhecimento cientfico, mas que sejam

    ajustadas diversidade cultural e social dos alunos e suas comunidades de pertena.

    Esta ruptura processa-se atravs de uma estratgia que se manifesta

    politicamente por trs tipos de comportamentos: hipocrisia, dramatizao, mistificao.

    Por hipocrisia poltica quero significar uma inconsistncia deliberada (uma

    dissonncia e um paradoxo) entre os discursos, as decises e as aces. Esta hipocrisia

    visa criar uma falsa aparncia de negociao e consenso necessria aprovao de

    determinadas medidas susceptveis de provocarem uma forte conflitualidade poltica e

    social, escondendo as reais intenes que lhes esto subjacentes e remetendo para a sua

    regulamentao e aplicao (menos visvel, mais dispersa e desfasada no tempo) a

    verdadeira concretizao desses propsitos.

    Por dramatizao quero significar a representao que os responsveis fazem de

    uma determinada situao (absentismo dos professores, indisciplina nas escolas, gesto

    de recursos, resultados escolares, etc.) baseada numa viso impressionista parcial e

    raramente fundamentada da realidade. Generalizam-se situaes isoladas e conjunturais,

    associam-se factos que tm diferentes explicaes causais, transformam-se problemas

    gerais em responsabilidades individuais, buscam-se bodes expiatrios, etc., com o

    sentido de gerar, por anttese, um sentimento favorvel aceitao de princpios,

    modelos e prticas apresentados como as nicas alternativas possveis: o mercado para

    combater os malefcios do Estado; o autoritarismo para combater os malefcios da

    indisciplina; a avaliao para combater os malefcios da autonomia; a qualidade para

    combater os malefcios da quantidade; etc.

    Por mistificao quero significar a arte de iludir a opinio pblica, abusando da

    sua credulidade, explorando os seus sentimentos de insegurana (pela instabilidade

    2 Esta orientao no exclusiva do actual governo e em Portugal ela comeou a manifestar-se, com relativa

    visibilidade, desde o primeiro governo constitucional, com o perodo da normalizao (ver entre outros, Grcio, 1981, Stoer, 1986,

    Correia, 1999 e Teodoro, 2001), tendo atingido uma expresso significativa no ministrio de Roberto Carneiro (ver entre outros,

    Afonso, 1997, Marques Cardoso, 2003).

  • 16

    social em que se vive) e de frustrao (pela no concretizao das promessas da

    escolarizao). Esta mistificao assenta numa viso maniquesta sobre os problemas da

    educao: de um lado, esto os maus (os governos anteriores, os pedagogos e as

    cincias da educao) responsveis pela situao calamitosa em que dizem encontrar-se

    o ensino; do outro lado, esto os bons que pretendem resolver a situao fazendo o

    oposto do que dizem que os outros fizeram e legitimando as suas aces com o

    fatalismo da obedincia aos imperativos da globalizao, da qualidade, da eficcia, e

    outros conceitos de aluguer (cabe l dentro tudo o que se quiser). Para concretizar esta

    estratgia, tomam-se medidas anunciadas como bombsticas encerramento de institutos, suspenso de reformas, alterao da Lei de Bases, etc. cujas consequncias ficam muito aqum dos efeitos prometidos, mas que servem para entreter a opinio

    pblica e fazer de conta que a educao est a mudar no rumo certo. Entretanto, de

    maneira mais velada, vo-se tomando medidas mais pontuais e menos publicitadas,

    justificadas por supostas razes de eficcia, qualidade, poupana de recursos que

    constituem pequenos passos de um programa oculto e de longa durao. Este programa

    visa desestruturar o actual sistema educativo e os seus fundamentos democrticos e

    igualitrios para que, em devido tempo, possa ser introduzida e aceite pacificamente a

    soluo final: privatizao da escola pblica; criao de uma escola elitista e

    segregacionista; substituio dos interesses colectivos pelos interesses privados.

    luz desta estratgia que devem ser analisadas as medidas tomadas contra o

    projecto educativo da Escola da Ponte, seja qual for o destino que este caso venha a ter

    no futuro prximo.

    luz desta estratgia que urge defender, debater e promover a escola pblica,

    cujo destino se encontra ameaado pelos que, a pretexto de resolverem os problemas da

    educao, querem entregar a sua soluo chamada mo invisvel do mercado,

    esquecendo que em educao (como no resto) a mo tem dono e s invisvel para

    quem no quer ver!

    Lisboa, 12 de Outubro de 2003

    Referncias bibliogrficas

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  • 18

    WHITTY, Geoff (2002). Making Sense of Education Policy. London: Paul Chapman

    Publishing.

  • 19

    A escola do futuro

    M a r i a E m l i a B r e d e r o d e S a n t o s

    No falarei da importncia da Escola da Ponte para os seus alunos, professores,

    pais, comunidade Dessa, certamente bem marcante, podero falar os prprios melhor que ningum. Entendo, por isso, a pergunta Por que importante a experincia da Ponte? a outros nveis e noutros domnios:

    Em primeiro lugar, como um exemplo possvel duma escola pblica diferente,

    que desnaturaliza algumas caractersticas da escola tradicional e quer ter em conta as

    mudanas econmicas, polticas e tecnolgicas ocorridas ou em curso e, ao mesmo

    tempo, reforar e desenvolver as suas qualidades democrticas e democratizadoras.

    Em segundo lugar, como um ensaio de modos de inovar que sejam desejados e

    construdos pelos prprios interessados, designadamente pelos professores, a partir da

    escola, da sua situao, dos seus actores e parceiros.

    Em terceiro lugar, como uma concretizao de uma teoria e de uma prtica de

    formao de professores, baseadas, como diz Rui Canrio, no exerccio profissional

    em contexto, combinando a aco e a reflexo colectivas.

    Parece haver um consenso a nvel internacional, quer entre decisores polticos

    quer entre estudiosos e investigadores, quanto necessidade de busca de novas formas

    de escolarizao e de organizao escolar, de novos paradigmas de mudana e de novos

    modelos de formao de professores.

    Em 1996, os Ministros da Educao dos pases da OCDE, reunidos em Paris,

    manifestaram a sua preocupao com as mudanas rpidas e profundas em curso

    mundialmente, com a capacidade de acompanhamento dessas mudanas pelos sistemas

    educativos e com a necessidade de repensar os modos actuais de organizao da escola.

    Convidaram, ento, a OCDE a avaliar as implicaes de diferentes vises da escola de

    amanh, tendo em conta, em especial, as novas tecnologias e os progressos da

    pedagogia. Assim nasceu o projecto A Escola de Amanh do Centro para a

    Investigao e o Ensino (CERI) da Organizao de Cooperao e Desenvolvimento

    Econmico (OCDE) onde se tenta perscrutar o futuro, construir cenrios de evoluo

    possvel e apoiar e dar a conhecer experincias de escolas e de sistemas educativos

    inovadores.

    Mais recentemente, os Ministros da Educao, reunidos aquando da 45 sesso

    da Conferncia Internacional da Educao, propuseram-se: Assegurar a participao

    activa dos docentes e do conjunto de parceiros da educao nos processos de

    transformao dos sistemas educativos () recrutar e manter na profisso docente indivduos () motivados e competentes () reforar a autonomia profissional e o sentido das responsabilidades dos professores () Suscitar o compromisso de todos os

  • 20

    parceiros () para que contribuam activamente para a criao de uma escola entendida como um centro activo de aprendizagem intelectual, moral, espiritual, cvica

    e profissional adaptada a um mundo em constante mudana. (Projecto de declarao

    in a Pgina da educao).

    De 18 a 20 de Setembro deste ano 2003, reuniu em Lisboa, na Universidade

    Lusfona, a International Sociological Association com o tema Critical Education and

    Utopia. Emergent Perspectives for the 21st century. Tambm aqui a mesma preocupao

    com o futuro, com a mudana e a inovao, com a necessria desnaturalizao da

    escola, com o questionamento da sua organizao formal e dos objectivos por ela

    servidos.

    Ou seja, parece haver, por todo o lado e tanto da parte de decisores polticos,

    como de cientistas da educao, uma preocupao profunda com as transformaes

    recentes e em curso (desde a globalizao da economia emergncia de novas

    realidades regionais e supranacionais; desde o desenvolvimento das novas tecnologias

    ao conceito de sociedade do conhecimento e evoluo do mundo do trabalho e do

    emprego; desde as transformaes sociais e demogrficas ao conceito de

    desenvolvimento sustentvel) e com a dificuldade de a organizao centenria que a escola lhes dar resposta, para j no falar da sua dificuldade em preparar o futuro.

    Daqui decorre um apelo permanente melhoria da qualidade das escolas e sua

    mudana e o estudo que tem vindo a ser feito paralelamente, designadamente pela

    OCDE, sobre os processos mais eficazes para promover esta mudana. O processo de

    reforma centralizado, descendente e linear posto em causa e, em seu lugar, fala-se de

    mudanas mais limitadas, surgindo a nvel local de escola, fundamentalmente e expandindo-se horizontalmente atravs de redes mais ou menos informais de

    professores.

    A biologia da evoluo, com a demonstrao de que as espcies novas se

    formam muitas vezes a partir de pequenas populaes perifricas, ou a teoria da

    gesto, com os conceitos de instituio aprendente e de empresas criadoras de saber,

    inspiram, por exemplo, David Hargreaves, da Universidade de Cambridge, a defender

    que, dado que as autoridades escolares no podem saber antecipadamente quais sero

    as estruturas e as culturas educativas de que necessitaremos em 2020 e mais alm,

    seria prudente deixar as escolas procurarem, por si mesmas, esta informao to

    necessria e experimentarem, atravs de inovaes, o que funciona nas novas

    condies.

    A Escola da Ponte (actual Escola Bsica Integrada das Aves/S.Tom de

    Negrelos e seu projecto Fazer a Ponte) parece ser um exemplo bem sucedido de escola

    inovadora.

    Ao longo de 25 anos foi alterando a sua estrutura organizativa, desde o espao

    (de rea aberta que as crianas percorrem como uma casa que verdadeiramente

    habitem), ao tempo (planificado quinzenalmente), ao modo (trabalho de pesquisa

    predominantemente), a uma muito maior participao dos alunos na planificao das

    aprendizagens e na vida social da escola e a uma muito maior autonomia na sua

    realizao. Inspira esta organizao uma filosofia inclusiva e cooperativa que se traduz,

    por exempto, nas seguintes normas simples: todos precisamos de aprender e todos

    podemos aprender uns com os outros, quem sabe mais deve ajudar quem tem mais

    dificuldades e quem aprende, aprende a seu modo. O no estilhaar da organizao por

  • 21

    classes implica um trabalho em equipa dos professores e a sua disponibilidade quase

    permanente. Mas, como respondeu Jos Pacheco, num colquio, a algum que

    lamentava os professores da escola da Ponte por terem que ser missionrios, antes

    missionrios que demissionrios!

    A escola da Ponte foi, alis, apresentada como uma rede informal de formao

    contnua de professores, num Seminrio realizado em Lisboa, em Setembro do ano

    2000, pela OCDE, em colaborao com o Instituto de Inovao Educacional.

    Este mesmo Instituto (IIE) , atravs do programa Boa Esperana/Boas Prticas,

    reconheceu a qualidade deste trabalho e apoiou o seu estudo e disseminao. Antes, j

    iniciara esse apoio atravs do programa Educar Inovando / Inovar Educando do Sistema

    de Incentivos Qualidade da Educao (SIQE, no IIE).

    Existem, assim, documentos vrios em texto e imagem, em Portugal e no

    estrangeiro, que do testemunho detalhado desta inovao. Por outro lado, a Escola da

    Ponte foi-se tornando polo formal e informal de uma rede de formao contnua de

    professores. Finalmente, os resultados, genericamente muito positivos, obtidos pelos

    alunos da Escola da Ponte nas provas nacionais de aferio do 1 ciclo do Ensino

    Bsico, vieram demonstrar que as alteraes introduzidas se traduziram tambm em

    mais e melhores aprendizagens acadmicas. Estes resultados so tanto mais admirveis

    quanto se no trata de uma populao seleccionada que, pelo contrrio, inclui at uma

    percentagem de crianas com Necessidades Educativas Especiais bem superior mdia.

    Prolongar esta experincia to rica e to bem sucedida para o 2 ciclo foi o

    passo seguinte. Falta agora o 3. Trata-se de um verdadeiro desafio cheio de

    dificuldades e de riscos, mas com algumas condies altamente favorveis porque

    desejado por alunos, pais e professores.

    Para todos aqueles que se interessam por educao, esta experincia da Escola

    da Ponte deveria ser seguida, estudada e apoiada como um verdadeiro laboratrio de

    mudanas necessrias, proporcionando-lhe um ambiente securizante, reduzindo-lhe os

    riscos e aumentando as possibilidades de xito.

    S assim confiando, ensaiando, estudando, reorientando... poderemos participar na construo de uma escola do futuro, pblica e aberta a todos os pblicos,

    democrtica no acesso, na organizao e na participao e democratizadora nos seus

    efeitos. Ou no ser isso que todos queremos?

  • 22

    Uma inovao apesar das reformas

    R u i C a n r i o

    Por que foi to importante o movimento de solidariedade gerado em torno da

    Escola da Ponte, por aco de tantos professores, educadores e cidados? Que lies

    encerra a experincia da Escola da Ponte e em que nos pode ser til para o futuro?

    Como pde uma pequena escola, aparentemente isolada, gerar apoios e resistir? Donde

    vem a sua fora? Em que reside a exemplaridade desta luta? Eis algumas das perguntas

    para as quais pretendo, neste texto, esboar algumas tentativas de resposta. Para que a

    solidariedade com a Escola da Ponte seja, para alm da sua dimenso afectiva, um acto

    de lucidez.

    Aprender a escutar as escolas

    Por contraste com uma perspectiva de estabilidade e continuidade, os conceitos

    de mudana, inovao e reforma emergiram, a partir do final dos anos sessenta, como

    palavras-chave para descrever, pensar e planear o funcionamento dos sistemas

    escolares. A criao de agncias especializadas na promoo de inovaes, o

    desenvolvimento da investigao aplicada e o crescente domnio do saber tcnico-

    cientfico reforaram os mecanismos de tutela externa sobre os professores e as escolas.

    Apesar da retrica sobre a criatividade das escolas, os processos de mudana deliberada

    basearam-se numa atitude de desconfiana relativamente aos professores e s escolas,

    apresentados como intrinsecamente resistentes inovao. A obrigao imposta s

    escolas de serem inovadoras colocou estas numa situao penosa, de permanente duplo

    constrangimento, ou seja, na impossibilidade de corresponder a esta exigncia: no

    possvel ser criativo, por imposio externa.

    Os processos de mudana deliberada, em larga escala, saldaram-se, regularmente

    e por toda a parte (como particularmente notrio no caso portugus), por fracassos e

    decepes. Estes fracassos podem ser relacionados com dois erros principais, um erro

    de diagnstico e um erro de metodologia. O primeiro erro consiste em referenciar a

    crise da escola como uma mera crise de eficcia e de meios, sobrevalorizando-se uma

    resposta de natureza tcnica. Sabemos hoje que a crise da escola se situa, sobretudo, no

    campo da legitimidade e apela, por isso, a respostas polticas que se situam no terreno

    dos fins da aco educativa. O segundo erro radica em processos de mudana

    construdos a partir de cima, numa lgica de exterioridade relativamente aos contextos e

    aos actores locais. Esta importao para o campo educativo de processos industriais de

    produo de mudanas contribuiu para acentuar, em vez de resolver, a crise da escola,

    estabelecendo uma relao de conflito entre os processos de mudana institudos (do

    centro para a periferia) e os processos de mudana instituintes (construdos a partir de

    baixo). Em sntese, as escolas e os professores tm vindo de forma metdica, regular e

    persistente, a ser vacinados contra as mudanas.

  • 23

    Este efeito perverso de vacina s pode ser prevenido e contrariado se, de uma

    atitude de tutela, a Administrao puder evoluir para uma atitude de escuta,

    relativamente s escolas e aos actores locais, nomeadamente, os professores.

    Reconhecer, compreender, valorizar e apoiar iniciativas inovadoras das escolas

    representa assumir uma estratgia indutiva de conhecimento e interveno na realidade

    que se situa nos antpodas da lgica da reforma. Esta estratgia indutiva implica

    reconhecer duas coisas que, sendo irritantes para alguns, no deixam, por isso, de ser

    bvias: por um lado, tm sido as escolas a mudar (ou esvaziar de sentido) as reformas e

    no o contrrio; por outro lado, s possvel mudar as escolas com os professores e no

    contra eles. Implica, ainda, uma terceira concluso, a de que possvel e necessrio

    aprender a aprender com aquilo que as escolas fazem (de bom e de mau).

    nesta perspectiva que deve ser entendido o meu testemunho sobre a

    experincia que, desde h mais de duas dcadas, tem vindo a ser laboriosa e

    persistentemente construda, com avanos e recuos, feita e refeita, maneira de Ssifo,

    por uma equipa de professores que, em Vila das Aves, teimam em ser autnomos,

    criativos e donos da sua profisso sem, para isso, pedirem autorizao prvia. possvel

    e necessrio aprender com a Escola da Ponte. Tentarei, de modo sucinto, enunciar

    alguns dos aspectos desta experincia que me parecem mais marcantes e mais fecundos,

    em termos da nossa aprendizagem.

    Uma inovao contra as reformas

    Ao longo dos ltimos 25 anos desenvolveu-se na Escola da Ponte uma

    experincia mpar, marcada por um percurso complexo, no linear e necessariamente

    conflitual, enquanto que, paralelamente, se processava uma sucesso de reformas

    conduzidas pelas sucessivas equipas do Ministrio da Educao. Como prprio das

    paralelas, estes dois processos nunca se encontraram, no sentido de mutuamente se

    fecundarem. Ao longo de mais de duas dcadas o Ministrio agiu como um obstculo,

    primou pela ausncia e raramente se colocou numa posio facilitadora, com excepo

    do curto lapso de tempo em que esta, como outras experincias inovadoras, esteve

    integrada no Programa Boa Esperana, da responsabilidade do Instituto de Inovao

    Educacional. Pode, assim, dizer-se que a experincia da Escola da Ponte se desenvolveu

    margem e apesar das reformas. Seremos at mais exactos se afirmarmos que ela se

    desenvolveu contra as reformas, na medida em que se baseia em pressupostos e em

    solues que so contraditrios com aquilo que tem sido a aco dominante da

    Administrao.

    - A experincia da Escola da Ponte tem subjacente uma teoria e uma prtica de formao de professores baseada no exerccio profissional em contexto,

    combinando a aco e a reflexo colectivas. Na histria da experincia ganha

    particular relevncia a construo de projectos autoformativos, baseados na

    figura do crculo de estudos. Esta formao nada tem a ver com o desenfreado

    consumo da formao, orientado para a acumulao de crditos que constituiu o

    eixo estruturante da formao contnua de professores durante a dcada de 90.

    - A experincia da Escola da Ponte encontrou uma resposta pedagogicamente coerente para lidar com a heterogeneidade do pblico escolar, sendo exemplar a

    forma como integra e resolve os problemas dos chamados alunos difceis ou com

    necessidades especiais. A construo desta resposta s foi possvel num quadro

  • 24

    de superao da organizao em classe, na medida em que esta foi

    historicamente concebida para lidar com o aluno mdio. Pelo contrrio, as

    sucessivas reformas, em termos da individualizao pedaggica, tm

    permanecido no estdio da retrica ou, pior que isso e em nome da

    diferenciao, reproduzem o que h de mais negativo na organizao

    homognea em classes. Disto so um claro exemplo os chamados currculos

    alternativos.

    - Na experincia da Escola da Ponte os professores falam pouco de autonomia, mas exercem-na e constroem-na desde h muito. uma autonomia no

    outorgada nem tutelada. Em contrapartida, a autonomia decretada pelo

    Ministrio desencadeou (por boas ou ms razes) um sentimento defensivo e de

    rejeio pelos professores, da autonomia que lhes caiu em cima. Parece ser

    bvio que no a mesma autonomia que est em causa.

    - As preocupaes com a flexibilidade da gesto curricular esto melhor representadas na experincia da Ponte (polivalncia dos espaos, flutuao dos

    agrupamentos dos alunos, gesto autnoma dos tempos, diversidade de

    dispositivos de aprendizagem, organizao democrtica da vida da organizao)

    do que nas sucessivas reformas curriculares que, em nome da flexibilidade,

    estabelecem, de modo inflexvel, solues uniformes (por exemplo, que a aula de

    50 minutos seja substituda, em todo o lado, de forma obrigatria e autnoma

    pela aula de 90 minutos).

    Se a experincia da Escola da Ponte e a actividade reformadora central

    obedecem a lgicas divergentes, no possvel reconhecer a experincia da Ponte e

    praticar o contrrio? O que que estamos disponveis para aprender com a escola da

    Ponte?

    Escola: alargar o campo dos possveis

    O dois ltimos sculos representaram o triunfo incontestvel da escola, enquanto

    trao distintivo da modernidade. Esse triunfo desvalorizou todas as modalidades

    educativas no escolares e empobreceu o nosso patrimnio educativo, tornando a

    educao refm do escolar. A sada para este paradoxo reside, por um lado, na

    relativizao do escolar (integrado como componente da educao permanente) e, por

    outro lado, na sua reinveno, o que possvel, na medida em que se trata de uma pura

    criao humana, tal como tudo o que social. A escola uma inveno histrica recente

    e corresponde, por isso, a uma escola entre vrias escolas possveis. A escola que

    historicamente conhecemos corresponde a trs dimenses que, em termos de anlise e

    de aco, pertinente distinguir:

    - Corresponde a uma outra forma de conceber a aprendizagem, com base na dissociao entre o tempo e o espao de aprender e o tempo e o espao de agir,

    privilegiando a ruptura com a experincia dos sujeitos e os modos de

    aprendizagem baseados na continuidade com a experincia.

    - Corresponde a uma nova instituio portadora de uma forma especfica de socializao normativa que ganhou progressivamente uma posio hegemnica;

  • 25

    - Corresponde, ainda, a uma nova organizao, que corporiza uma relao social indita a relao pedaggica escolar com base num conjunto de invariantes (organizao do espao, do tempo, dos saberes e do agrupamento dos

    alunos) que, por efeito de um processo de naturalizao, se tornaram

    particularmente pouco visveis e refractrios a mudanas. O cerne estruturante

    da escola a organizao dos alunos em classes homogneas, objecto de um

    ensino simultneo por parte de um professor.

    A ruptura com a organizao em classe constitui o trao mais distintivo,

    importante e original, da experincia da Escola da Ponte. essa ruptura que explica que

    o processo de mudana tenha sido lento, mas consistente (e no superficial e passageiro,

    como frequente). Essa ruptura representa uma mudana radical (que vai raiz das

    coisas) e equivale a construir uma organizao outra que pe em causa todos os

    esteretipos no explicitados que continuam a servir de referncia para analisar e

    intervir na realidade escolar. Nesta mudana radical reside o poder de atraco da

    experincia da Ponte mas, simultaneamente tambm, os temores que inspira. Da que a

    admirao, por vezes reverente, possa ser concomitante com a ideia de que se trata de

    algo excepcional e que no pode constituir um referente para as restantes escolas.

    a ruptura com a organizao em classe que obriga a que a experincia da Ponte

    corresponda a uma interveno sistmica que abrange a escola como um todo e implica

    uma aco colectiva do conjunto dos professores. desta ruptura com a classe (que as

    sucessivas reformas e inovaes oficiais no s no questionaram como, em muitos

    casos, reforaram) que decorre a possibilidade de a Escola da Ponte ser uma escola onde

    no h aulas, no h anos de escolaridade, nem turmas, onde os espaos so

    polivalentes, onde os professores no se queixam da falta de tempo para dar o

    programa, onde os discursos e o pensamento dos professores goza de autonomia, em

    vez de ser reactivo ao que o Ministrio faz, diz ou pensa fazer.

    A organizao escolar moderna baseou-se na transposio da relao dual entre

    um professor e um aluno para uma relao dual entre um professor e uma classe. O

    pensamento pedaggico continuou preso primeira alternativa (a relao professor-

    aluno) em desfasamento com a realidade (a relao professor-classe). Na experincia da

    Ponte, esta contradio foi superada, na medida em que a organizao estruturada por

    uma relao entre uma equipa de professores e um conjunto de alunos, considerados na

    sua individualidade e que multiplicam entre si, na relao com os espaos e na relao

    com os professores, uma gama variada de modalidades de interaco. assim que se

    torna vivel uma escola que, em princpio, no deveria funcionar: todos os professores

    trabalham com todos os alunos e estes no tm um lugar fixo para brincar, trabalhar e

    aprender.

    A demonstrao prtica de que possvel organizar uma escola de forma bem

    sucedida, sem o recurso organizao por classes, representa uma contribuio

    inestimvel dos professores da Escola da Ponte para enriquecer a utensilagem mental

    que nos permite lidar com os problemas da organizao escolar.

    Desalienar o trabalho escolar

    A impresso mais imediata, e marcante, que se retira do contacto com os

    professores e alunos da Escola da Ponte a de que todos se sentem bem na sua pele,

  • 26

    conhecem o seu papel e so protagonistas de um projecto comum que envolve toda a

    escola. O modo como os alunos mostram a sua escola aos visitantes um indicador

    relevante da sua implicao e responsabilizao na vida colectiva, igualmente

    observvel nas reunies de debate, nas assembleias de escola e nos mltiplos grupos de

    responsabilidade em que se organizam. A escola constri-se a partir do trabalho dos

    alunos que, no sendo considerados nem clientes nem matria prima, so tratados como

    crianas que esto a aprender a ser gente. Esta organizao a partir do trabalho dos

    alunos baseado na construo progressiva da sua autonomia para gerir tempos e espaos, planear actividades, gerir informao e organizar a sua avaliao corresponde a modalidades de regulao extremamente complexas baseadas numa

    grande diversidade de dispositivos que, no seu conjunto, representam uma alternativa

    organizao por classes. Esta organizao funcional relativamente a uma actividade

    dos alunos como produtores que permanentemente se exercitam no uso da palavra como

    instrumento autnomo de cidadania. Aprender a ler e a escrever , ento, indissocivel

    de aprender a ser gente, o que permite escola um acrscimo de eficcia nas suas

    funes instrutivas tradicionais: as crianas lem e produzem escrita desde o primeiro

    dia de escola.

    O modo original de organizar o trabalho dos alunos tem uma contrapartida

    simtrica quer no modo igualmente original de organizar o trabalho do professor, quer

    no modo como este se relaciona com os colegas (trabalho colectivo), com os alunos e

    com os saberes profissionais. particularmente estimulante o modo como na Escola da

    Ponte se reequaciona a especificidade dos professores do 1 Ciclo no que diz respeito

    articulao entre generalismo e especializao e como se dissocia a especializao da

    disciplinarizao. Os contributos da experincia da Ponte, quer em relao

    organizao escolar (como reconhecido pela sua transformao numa Escola Bsica

    Integrada), quer em relao reconfigurao do ofcio de professor, no se

    circunscrevem ao mbito do 1 ciclo do ensino bsico. Por outro lado, esses contributos

    no se fundamentam em palavras, mas em aces que colocam em bases diferentes o

    debate sobre o futuro da escola e da profisso docente.

    Se a actividade desenvolvida na escola for encarada como um trabalho, as

    possibilidades de ele ser vivido com prazer ou como algo penoso permanecem em

    aberto. A dissociao entre o sujeito e o trabalho que realiza exprime-se por uma

    ausncia de sentido que fonte de alienao. Esta alienao est presente de forma

    dominante no trabalho assalariado. O prazer s possvel se o trabalho puder ser vivido

    como uma expresso de si, ou seja, como uma obra. A distncia que vai do enfado ao

    prazer, no trabalho escolar, a distncia que separa a escola linha de montagem da

    escola feita projecto colectivo em que todos so produtores de saberes. A experincia da

    Escola da Ponte fornece-nos elementos para que outras escolas possam percorrer este

    caminho. Ensina-nos tambm que as mudanas nos modos de organizar o trabalho

    escolar tm de abranger simultaneamente os professores e os alunos, os quais esto

    condenados a ser aliados.

    Continuidade e inovao

    A experincia construda na Escola da Ponte no inteiramente original porque

    no pode (nem seria desejvel que pudesse) partir do zero. Nesta experincia est

    subjacente um elo de continuidade com um patrimnio de profissionalismo autnomo

    consubstanciado em movimentos pedaggicos (Escola Nova, Movimento da Escola

  • 27

    Moderna) e no pensamento e obra de educadores como Freinet, Dewey ou Paulo Freire.

    A experincia da Escola da Ponte situa-se numa linha de continuidade relativamente a

    este patrimnio comum, mas vai mais alm. Situa a questo da relao pedaggica num

    quadro organizacional que o pensamento pedaggico anterior tendeu a subestimar ou

    mesmo a negar. A construo de um outro referencial faz-se, no caso da Ponte, a partir

    de uma escola ordinria, com os problemas, os constrangimentos e os recursos de

    qualquer outra. A construo do projecto tem como fundamento a recusa de uma

    atomizao do trabalho do professor, confinado a um territrio (a sala de aula) e a um

    grupo (a classe), ou seja, a recusa de uma cultura profissional baseada na insularidade

    que fonte de solides e sofrimentos.

    Nas ltimas dcadas no escassearam as solues para os problemas educativos.

    As reformas correspondem, justamente, a gigantescas mquinas para impr solues,

    com o sucesso que se conhece. Parece que somos fortes em solues mas temos mais

    dificuldade em equacionar os problemas de forma lcida e criativa. A experincia da

    Ponte, com base em factos e no apenas em palavras, permite-nos reequacionar

    diferentes dimenses do problema da escola: o problema do trabalho dos professores e

    da sua formao profissional, a gesto da diversidade de pblicos, a construo de

    processos de aprendizagem baseados no conceito de sujeito aprendente, a construo de

    processos educativos contextualizados e participados pelos actores locais, a questo da

    dimenso cvica da educao.

    A melhor maneira de aproveitar, de modo fecundo, a experincia da Escola da

    Ponte a de no encarar o seu contributo como uma soluo acabada e pronta a

    exportar. O que se fez e faz na Escola da Ponte pode e deve ser apropriado por outros

    colectivos e reconfigurado noutros contextos. No pode ser exportado e muito menos

    copiado. A sua principal virtude reside em mostrar que o problema da escola tem um

    carcter indeterminado e admite uma pluralidade de solues, cuja pertinncia uma

    varivel social e histrica. A procura de caminhos alternativos no axiologicamente

    neutra e, por isso, os problemas educativos com que nos defrontamos so, no essencial,

    problemas de fins e no de meios. A experincia da Ponte tem subjacente uma

    articulao entre projecto educativo e projecto social.

    A centralidade da autonomia da escola

    Para muitas pessoas, a forma obstinada e teimosa como a actual equipa

    ministerial conseguiu transformar uma escola que funciona muito bem, inclusive

    segundo os seus prprios critrios, num problema de alcance nacional s pode ser

    revelador de inabilidade poltica ou de uma total incapacidade para compreender as

    potencialidades que a experincia educativa da Escola da Ponte encerra. Mas o ataque

    Escola da Ponte no poder ser plenamente compreendido se no for situado no quadro

    de uma incompatibilidade de fundo entre a natureza desta experincia e as orientaes

    de poltica educativa prosseguidas pelas diferentes equipas ministeriais desde os anos

    80.

    A experincia educativa desenvolvida na Escola da Ponte constitui a mais clara

    afirmao do que pode ser a construo da autonomia de uma escola, baseada no

    profissionalismo de uma equipa docente, em alternativa, quer a tutelas burocrticas e

    centralizadas, quer a tutelas de clientelas polticas locais. Este processo de conquista,

    construo e afirmao de uma autonomia real, no outorgada nem imposta por decreto,

  • 28

    portador de futuro, na medida em que enuncia e corporiza as trs orientaes que, por

    contraste com as estratgias de reforma, podem fazer coincidir a melhoria do

    desempenho da escola com um processo de desenvolvimento simultaneamente

    organizacional e profissional.

    Essas trs orientaes so: em primeiro lugar, instituir, no funcionamento da

    escola, mecanismos de regulao divergente que permitam transformar a escola numa

    organizao qualificante, capaz de aprender com a experincia e de reorientar, de forma

    permanente, o modo como articula recursos e finalidades, instituindo modos de gesto

    estratgica; em segundo lugar, reforar a profissionalidade docente, contrariando os

    processos de tendencial proletarizao do trabalho dos professores, o que implica que

    eles possam controlar o sentido e o produto do seu trabalho; em terceiro lugar, instituir

    processos e dinmicas indutivas de mudana que possam optimizar o potencial de

    criatividade e o capital de inteligncia que existe nas escolas. A metodologia da

    Reforma, que domina a cena da gesto do sistema escolar desde meados dos anos 80,

    ope-se a estas orientaes, ponto por ponto: prope-se ensinar s escolas o que devem

    fazer, procura transformar os professores numa alavanca humana capaz de servir

    funcionalmente uma poltica de mudana dedutiva em que a periferia (as escolas) aplica

    o que decidido, decretado e regulamentado no centro. O problema criado pelo

    Ministrio da Educao na Escola da Ponte o resultado de uma contradio entre

    lgicas de aco distintas, representa uma aco deliberada e coerente e no um

    acidente de percurso devido a um mal entendido ou a um confronto de teimosias.

    Escola da Ponte: uma luta exemplar

    Razes boas e vlidas para justificar a solidariedade com a Escola da Ponte no

    faltam. A dificuldade reside em escolher e hierarquizar. O processo de luta em que esto

    implicados os professores, os alunos e os encarregados de educao desta escola , a

    vrios ttulos, exemplar e nessa exemplaridade reside a sua importncia,

    independentemente dos resultados imediatos que possam ou no ser obtidos.

    Em primeiro lugar, o processo da Escola da Ponte representa um referencial para

    todos os que continuam a considerar fundamental a existncia de um servio pblico de

    educao, norteado pelos valores da democracia e da justia. O projecto educativo da

    Escola da Ponte ilustra bem a possibilidade de construir uma escola simultaneamente

    exigente e eficaz na promoo das aprendizagens e capaz de acolher uma grande

    diversidade de pblicos, construindo um ambiente educativo que reconhece nos alunos

    as pessoas que os habitam. Em segundo lugar, os professores desta escola batem-se pelo

    reconhecimento do seu direito a definir o sentido e a controlar o produto do seu trabalho

    e este combate faz-se em consonncia com uma concepo de idntica dignidade e

    valorizao do trabalho dos alunos. Em terceiro lugar, a construo de um dispositivo

    global de aprendizagem, inovador em relao tradicional gramtica da escola,

    concomitante com um processo de co-produo da oferta educativa com os seus

    destinatrios e interessados (alunos e encarregados de educao), atravs de

    mecanismos de participao que ultrapassam o mero registo formal.

    A autenticidade destes mecanismos participativos tem sido bem evidenciada

    pelos acontecimentos mais recentes. Esta experincia anuncia-nos uma escola cujo

    projecto educativo pode assentar em valores que so emergentes da aco colectiva dos

  • 29

    actores educativos, nico suporte slido para uma autonomia liberta de tutelas centrais

    ou locais.

  • 30

    Repensar a escola e o sentido do trabalho escolar

    F e r n a n d o I l d i o F e r r e i r a

    O tipo de investigao que tenho privilegiado nos ltimos anos a pesquisa etnogrfica tem-me permitido manter um contacto e uma presena directa e prolongada em contextos educativos concretos. Tem sido em situaes diversas, de

    envolvimento em projectos, de participao em aces de formao, de observao de

    reunies, de visitas a escolas, de entrevistas com alunos, professores, pais, autarcas,

    gestores escolares e outros actores educativos, que tenho construdo um conhecimento

    por dentro da vida quotidiana das escolas. Mas nem sempre esse conhecimento tem sido

    fruto da investigao mais estruturada e planificada. Frequentemente, tem sido nas

    situaes mais informais, de conversa com as pessoas, nas quais escuto, mais do que

    fao perguntas, que esse mundo se revela com maior clareza. Essas conversas revelam,

    muitas vezes, um conhecimento diferente um conhecimento da escola, vista de fora, por quem no vive no seu seio e para quem ela se apresenta como uma realidade mais

    estranha. E este conhecimento da estranheza essencial, sobretudo quando o que est

    em causa uma realidade que tende a ser encarada como naturalmente boa

    independentemente das suas prticas e experincias concretas.

    Poderia contar vrios episdios reveladores deste tipo de conhecimento, mas

    refiro aqui apenas uma conversa recente com um casal jovem que tem uma filha de seis

    anos que acabou de entrar na escola. Como outros pais e mes, estes esto interessados

    na vida escolar dos filhos. Neste caso, pude aperceber-me que eles no esto apenas

    interessados, como j esto tambm bastante preocupados, apesar de a menina s ter

    entrado para a escola h duas ou trs semanas. Contavam-me, receosos, que a professora

    lhes dissera que a filha estava atrasada no i. Poderamos discutir amplamente o

    significado desta expresso, que profundamente reveladora de concepes e prticas

    de ensino, mas o que provocou maior estranheza foi o facto de eu prprio ter verificado

    que a criana identificava e desenhava o i perfeitamente. Durante a conversa, pude

    perceber, no entanto, que no era isso que estava em causa. Estar atrasada no i

    significava que a criana no escrevia tantas linhas de iiiii quantas a professora

    pretendia.

    Este episdio ilustra uma das caractersticas mais enraizadas da forma escolar

    tradicional o trabalho desprovido de sentido, baseado na mera repetio que as sucessivas reformas educativas das ltimas dcadas conduzidas pelo Ministrio da

    Educao no conseguiram alterar, apesar de tanta retrica e de tanta legislao

    produzidas. Neste perodo, tm-se desenvolvido, apesar de tudo, experincias que

    questionam profundamente a forma escolar tradicional e mostram que a escola da

    repetio no uma fatalidade e que possvel construir uma escola com sentido para

    os saberes e para as pessoas que os trabalham no contexto escolar.

  • 31

    A Escola da Ponte talvez o exemplo mais marcante de uma escola com sentido

    que nasceu e se desenvolveu no perodo democrtico em Portugal, com a qual temos

    muito a aprender. E possvel aprender com ela, no apenas nas suas dimenses

    endgenas, mas tambm sobre os mecanismos das reformas educativas e de outras

    decises do Ministrio da Educao que frequentemente criam dificuldades,

    inviabilizam e at destrem experincias e projectos inovadores, tal como est a

    acontecer hoje em relao ao projecto educativo da Escola da Ponte.

    A lgica de reforma como mecanismo inibidor da transformao da escola

    As reformas educativas so frequentemente apresentadas como um desgnio

    nacional, com base no argumento de que o pas est atrasado, de que tem pela frente o

    desafio da modernizao e de que necessrio proceder a reformas estruturais. Porm,

    como lembra Stephen Ball (2002), as tecnologias polticas de reforma educacional no

    so apenas veculos para a mudana tcnica e estrutural; so tambm mecanismos que

    contribuem para a mudana das subjectividades, das identidades e dos valores. Por

    exemplo, sob a aparncia de liberdade criada pela retrica da devoluo de poderes, da

    flexibilidade e da autonomia, emergem novas formas de controlo que impregnam as

    subjectividades dos professores e afectam as condies de trabalho e de vida nas

    escolas. Estas tecnologias, das quais este autor destaca o mercado, o gerencialismo e,

    particularmente, a performatividade, pem em causa a colegialidade e a autenticidade

    dos professores. A cultura da performatividade competitiva gera sentimentos de culpa,

    incerteza e insegurana ontolgica: Estarei a trabalhar bem?, Estarei a trabalhar o

    suficiente?, Estarei a trabalhar no sentido certo?, Ser isto que querem que eu faa?.

    Ora, esta insegurana tende a gerar uma fantasia encenada para ser vista e avaliada; o

    espectculo e a opacidade tendem a sobrepor-se transparncia e autenticidade.

    Estes mecanismos tm gerado a ideia, no interior das escolas e entre os

    professores, de que as mudanas educativas lhes so exteriores. Isto , tendem a ser

    encaradas como assuntos de gesto e da exclusiva responsabilidade dos administradores

    e dos gestores, em relao s quais os professores que trabalham quotidianamente com

    os alunos parecem considerar-se alheios ou apenas actores secundrios. Mesmo falando-

    se muito, actualmente, em autonomia da escola, a gesto que tem estado no centro das

    preocupaes das escolas e dos agrupamentos de escolas, designadamente com a

    instalao de rgos, com a realizao de muitas reunies e com a elaborao de

    documentos escritos, como os regulamentos e os projectos.

    Se bem que as preocupaes com a gesto da escola j viessem da dcada

    anterior, designadamente em torno da ideia de gesto democrtica, no contexto da

    reforma educativa iniciada em Portugal em meados da dcada de 80 que se instala no

    debate educacional, o conceito de gesto: o novo modelo de gesto, o regime de

    autonomia e gesto, a gesto local da escola, a gesto da rede escolar, a gesto

    curricular, a gesto pedaggica, a gesto de recursos. Os diversos documentos que tm

    que elaborar o regulamento interno, o projecto educativo, o projecto curricular, etc. , os aspectos morfolgicos da composio dos rgos de gesto da escola e as questes

    da rede escolar, expressas por exemplo nas preocupaes com as modalidades de

    agrupamentos de escolas horizontais ou verticais invadiram as preocupaes dos professores, em detrimento dos assuntos respeitantes s actividades, aos saberes e s

    aprendizagens escolares.

  • 32

    No perodo recente, embora sejam abundantes as referncias s polticas de

    autonomia e de gesto local da escola, as estruturas da administrao do Ministrio da

    Educao tm criado um verdadeiro corrupio nos contextos da aco local. Por

    exemplo, o projecto transformou-se numa das principais preocupaes da escola, mas

    apenas nas suas dimenses formais e instrumentais. Como temos vindo a observar, os

    professores viram-se obrigados a elaborar o projecto educativo de escola, o projecto

    curricular de escola, o projecto curricular de turma, e outros, mas em grande medida

    assumindo esse trabalho como um processo administrativo de elaborao de

    documentos escritos exigidos pela Administrao e pela Inspeco. Do mesmo modo,

    no mbito da reorganizao curricular, as novas reas a rea de Projecto, a Formao Cvica e o Estudo Acompanhado tendem a ser encaradas como modas, como mais uma disciplina a leccionar, como uma forma de intensificao do seu trabalho.

    A caracterizao que Antnio Nvoa (1999) faz da situao actual dos

    professores e da educao escolar bastante elucidativa. O perodo recente tem sido

    marcado, como diz, pelo excesso de discursos e pela pobreza das prticas e por um

    pensamento que se projecta num excesso de futuro como forma de justificar um

    dfice de presente. A mudana tende a ser encarada como um mero jogo nominalista,

    como se no houvesse outra mudana para alm da alterao dos nomes. o caso, por

    exemplo, da passagem da rea escola para a rea de projecto, ou dos currculos

    alternativos para a gesto flexvel do currculo. Mas estas mudanas no tm penetrado

    no mago do trabalho escolar. Pelo contrrio, o entendimento da mudana como uma

    mera alterao dos nomes no apenas inibidor da transformao do trabalho

    pedaggico como tambm legitimador da conservao das prticas tradicionais. Isto ,

    para sobreviverem profissional e institucionalmente no clima de urgncia criado pelas

    reformas educativas, as escolas e os professores tendem a esconder as suas prticas e a

    preocupar-se mais com a produo de discursos pedagogicamente correctos em

    conformidade com os temas do momento das reformas educativas.

    O ambiente de reforma permanente das duas ltimas dcadas no tem sido,

    portanto, favorvel reflexo, experimentao e descoberta de alternativas forma

    escolar tradicional, pois a azfama de mudana e o alvoroo projectocrtico em que as

    escolas e os professores tm estado mergulhados tm gerado uma mentalidade

    expectante e uma lgica de sobrevivncia que se traduz numa maior preocupao com a

    encenao, o aparato e o faz-de-conta do que com os processos educativos concretos.

    Tal clima no tem deixado tempo para a reflexo sobre questes que possam fazer a

    prpria agenda educativa das escolas e dos actores locais. Estes andam cada vez mais

    atarefados, desinteressando-se, ou vendo-se impossibilitados, muitas vezes, de

    exercerem uma atitude reflexiva e crtica sobre os constrangimentos e as oportunidades

    da sua aco profissional. Os temas do momento das reformas educativas tendem,

    assim, a ser encarados numa lgica aditiva mais trabalho, mais disciplinas, mais reunies, mais papis e de exterioridade relativamente aos processos de mudana a mudana o que eles (o Ministrio e as estruturas da administrao) determinam e no como uma possibilidade de transformao do prprio trabalho quotidiano. No

    deixando tempo aos professores, aos alunos, aos pais e a outros actores locais para a

    reflexo sobre o que realmente necessrio mudar nas escolas, o ambiente de reforma

    permanente tem sido, assim, mais favorvel emergncia de um pensamento fatalista e

    resignado do que aco autnoma e reflexiva.

  • 33

    A Escola da Ponte como smbolo de esperana e de coragem

    A lgica de reforma avessa s experincias inovadoras que escapam sua

    obsesso pela uniformidade e pelo controlo. Ignorando o valor dessas experincias, a

    lgica de reforma impe-lhes enquadramentos legais, aplica-lhes decises e inviabiliza-

    lhes projectos, acabando muitas vezes por as destruir. Frequentemente, esses

    enquadramentos e decises so apresentados como uma espcie de desgnio nacional,

    com base no argumento de que necessrio proceder a reformas. Acontece, porm, que,

    apesar da difuso de slogans como em cada escola fazer a reforma ou a escola no

    centro das polticas educativas e da retrica da autonomia da escola, da possibilidade

    de as escolas construrem um projecto educativo prprio, da necessidade da

    participao de todos os interessados no processo educativo, as reformas educativas

    conduzidas pelo Ministrio da Educao tm-se desenvolvido quase sempre em funo

    de crenas, interesses e estratgias muito particulares, parecendo por vezes mais o

    resultado de um capricho do que de um processo de produo de polticas pblicas.

    Sendo, embora, apresentadas como reformas, as ditas decises tornam-se, na realidade,

    muito volteis. E , em grande medida, esta volatilidade que est na origem do

    desalento que se vive hoje no interior das escolas, face constatao de que essas

    reformas intensificaram o trabalho, mas no em benefcio da construo de uma escola

    com sentido.

    Uma das ltimas ideias difundidas pelo Ministrio da Educao a de que agora

    pretende que a rede escolar privilegie a integrao do 1 e do 2 ciclos do ensino bsico

    e no a integrao dos trs ciclos, na modalidade que ficou conhecida, desde os anos 90,

    como a escola bsica integrada. Apesar desta matria de tipologias de rede escolar j

    estar esgotada no debate educacional e de, ao longo das duas ltimas dcadas, j ter

    esgotado a pacincia de muitos autarcas, gestores escolares, professores e outros actores

    do sistema escolar, elas continuam a ser apresentadas pelos responsveis do Ministrio

    da Educao como prioridades educativas. Tal no significa que a tipologia e os nveis

    de ensino que uma escola deve abranger sejam aspectos irrelevantes; o que significa

    que a questo se torna relevante apenas quando inserida num projecto educativo que no

    fique refm dos aspectos de morfologia. Esta a caracterstica essencial do projecto

    educativo da Escola da Ponte quando pretende desenvolver uma experincia de integrao dos trs ciclos do ensino bsico , mas paradoxalmente com base em argumentos de natureza gestionria e de mera morfologia que a continuidade desse

    projecto ameaada pelos responsveis pelo Ministrio da Educao.

    A Escola da Ponte e o seu projecto educativo assumem hoje, por isso, redobrada

    importncia. Importncia para todos quantos nela tm estado envolvidos directamente,

    mas tambm como smbolo de esperana e de coragem para todos os que levam a srio

    o desafio de repensar a escola e o sentido do trabalho escolar.

    Na minha actividade de investigador e de formador de professores, um dos

    objectivos que procuro no perder de vista o de promover um pensamento reflexivo e

    crtico que tenha em conta os constrangimentos e as possibilidades da aco humana. Os

    diversos contactos que tenho mantido com as escolas e os professores tm revelado uma

    enorme descrena em relao s possibilidades de transformao da escola, nos seus

    aspectos mais substantivos. Surgem, porm, nesses contactos, momentos em que os

    professores encaram essas possibilidades a partir de experincias inovadoras que

    observaram. E a experincia da Escola da Ponte a que referida mais frequentemente.

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    J participei em diversos encontros on