8 Teorias Linguisticas Contemporaneas

download 8 Teorias Linguisticas Contemporaneas

If you can't read please download the document

description

Teoria

Transcript of 8 Teorias Linguisticas Contemporaneas

  • 247

    Teorias Lingsticas II

  • 248

  • 249

    ABORDAGENS DA LINGSTICA CONTEMPORNEADA ESTRUTURA AO USO

    Jan Edson RodriguesMaria Leonor Maia dos Santos

    Introduo

    Nesta disciplina, vamos estudar algumas reas de pesquisa lingstica atuais: Sociolingstica, Lingstica Interacional, Lingstica Funcional e Lingstica Cognitiva. Cada uma ser apresentada por alguns princpios bsicos, aspectos metodolgicos, e um panorama do que feito atualmente na rea. Para iniciarmos o estudo, interessante tomar conhecimento da distino entre o formalismo e o funcionalismo em Lingstica.

    Forma e funo

    Em lingstica, vrias correntes so ditas formalistas, e vrias outras so ditas funcionalistas. Algumas vezes elas so apresentadas como inconciliveis por aqueles autores que optaram por alguma das duas denominaes. Vamos tentar aqui apresentar uma caracterizao geral dessas atitudes de pesquisa, a formalista e a funcionalista, para entender suas diferenas, e, ao nal, gostaramos de defender que, apesar de diferentes, ambas so teis e corretas em Lingstica. Podemos nos aproximar inicialmente da oposio entre o formalismo e o funcionalismo em Lingstica pensando no papel central atribudo forma ou funo da linguagem. Ser que as lnguas humanas tm uma certa forma, uma natureza intrnseca, e por isso servem para fazer certas coisas, ou ser que as lnguas tm certas funes, e por isso ganham determinada forma? Pense numa faca: ela tem uma forma de faca e por isso serve para cortar (a forma veio antes e determina o uso) ou ela tem a funo de cortar e por isso foi feita com essa forma (o uso veio antes e determina a forma)? No caso da faca, que um objeto fabricado e no da natureza, parece bvio que foi o uso pretendido que motivou a forma. Mas imagine que voc est num lugar onde no h facas, e sim muitas pedras, e precisa cortar com cuidado alguma coisa. Uma fruta bem grande e madura, como uma jaca, por exemplo, ou uma fruta-po. Que tipo de pedra ser melhor? Podemos pensar que as pedras que tiverem uma borda comprida e aada sero a melhor escolha. A forma da pedra j est l, e por isso ela serve para cortar a fruta. A forma, nesse caso, foi o que permitiu o uso.

    Isso se parece, claro, como lembra Jos Borges Neto (BORGES NETO 2004:83) com o popular dilema do ovo e da galinha. O que veio primeiro? A forma, e ento podemos usar algo para certo propsito, ou a funo, e ento modicamos as coisas para fazer o que queremos? Como o dilema do ovo e da galinha, essa uma questo difcil de decidir, talvez impossvel. No caso aqui, primeiro precisamos conhecer um pouco o que motiva as decises dos formalistas e dos funcionalistas em Lingstica, a histria dessas posies e o tipo de pesquisa que se faz em cada uma delas. Vamos comear pelo formalismo. Na verdade, h vrias concepes de formalismo, o que importante para entendermos as diversas reaes funcionalistas.

    ABORDAGENS DA LINGSTICA CONTEMPORNEADA ESTRUTURA AO USO

    Jan Edson RodriguesMaria Leonor Maia dos Santos

  • 250

    Se caracterizarmos o formalismo de uma maneira bem ampla como a atitude de dar mais importncia forma da linguagem, vemos que essa uma posio muito antiga.

    O estoicismo foi uma escola losca antiga, iniciada em Atenas por Zenon (ou Zeno) de Ctia, no incio do sculo III a.C.

    Podemos citar como exemplo o trabalho dos lsofos esticos, que nos sculos III e II a.C. se ocupavam, entre outras coisas, com o que h de comum em exemplos como os abaixo:

    Se no temos a ltima aula, os alunos podem ir pra casa mais cedo. De fato, no 1. temos a ltima aula. Ento, os alunos podem ir pra casa mais cedo.Se o salrio no foi depositado, minha conta est sem fundos. De fato, meu 2. salrio no foi depositado. Ento a minha conta est sem fundos.

    claro que os exemplos dos lsofos esticos eram outros, mas a idia era encontrar uma forma comum a esses conjuntos de frases, alguma coisa como:

    Se acontece ISSO, acontece AQUILO. De fato, acontece ISSO. Ento acontece AQUILO.

    Eles consideravam que era a forma comum que permitia que exemplos assim fossem usados de maneira eciente numa argumentao. No importa o assunto, se voc construir frases seguindo o esquema, vai sempre ter o que cou conhecido como um argumento vlido, que deveria servir para convencer algum.

    Numa denio informal, um argumento vlido um conjunto de armaes seguido de uma concluso, que tem a seguinte caracterstica: se todas as armaes fossem verdadeiras, a concluso seria obrigatoriamente verdadeira. O silogismo um tipo de argumento vlido.

    Claro que voc percebeu: a forma o que permite certo uso, certa funo, que nesse caso era uma argumentao. Aristteles, que viveu entre 384-322 A.C e cou conhecido, entre outros feitos, como o criador da lgica, tambm estudou formas semelhantes de argumentos vlidos, como os seus famosos silogismos:

    Todos os professores de Letras da UFPB virtual so brasileiros. Jan e Leonor so 3. professores de Letras da UFPB virtual. Portanto, Jan e Leonor so brasileiros.

    Tambm nesse caso, a idia era encontrar a forma subjacente que faz com que o argumento seja vlido, no importando qual assunto abordado (compare com Todos os mamferos tm corao. As girafas so mamferos. Portanto as girafas tm corao). Tanto os esticos como Aristteles estavam interessados em caracterizar, nesse caso, a forma da linguagem usada na argumentao. Um exemplo diferente de formalismo muito antigo nos estudos da linguagem ainda denindo o formalismo de uma maneira bastante frouxa a descrio gramatical tradicional. A preocupao em descrever paradigmas de exo e unidades da orao so bons exemplos de preocupaes formais. De algum modo, na descrio gramatical tradicional, supe-se que h uma forma inerente lngua, e que essa forma pode ser descrita de maneira independente das situaes de uso. A forma, nesse caso,

  • 251

    pode ser o padro de exo de um verbo (amava, amavas, amava, etc.), ou as partes da orao (sujeito, predicado, complementos, adjuntos, etc.). O que est em jogo encontrar uma regularidade que j estava na lngua e que no depende de estarmos conversando sobre futebol, preenchendo o requerimento de matrcula ou reclamando porque o vizinho deixou a calada suja. Novamente, nesse caso, o que importante a forma, que existe antes da funo e no modicada pelo uso. Na Lingstica no sculo XX a situao bastante complexa, porque nem todos concordam com o que formalista e o que no . Em primeiro lugar, vamos mencionar a preocupao de Ferdinand de Saussure, no Curso de Lingstica Geral, com a oposio entre lngua e fala. A lngua geral, comum aos indivduos de uma comunidade falante, em oposio fala, que individual e heterclita, ou seja, composta por elementos variados e no homogneos. O objeto da Lingstica, diz Saussure no Curso, a lngua, que no varia de uma situao de comunicao para outra, nem de um falante para outro. Vejamos o que diz Rodolfo Ilari acerca dessa opo saussureana:

    Saussure ops claramente o sistema, entendido como entidade abstrata, e os episdios comunicativos historicamente realizados. Alm disso, estabeleceu com toda clareza que o objeto especco da pesquisa lingstica teria que ser a regra do jogo, isto , o sistema, e no as mensagens a que ele serve de suporte. (ILARI 2004: 57-58)

    claro que a posio de Saussure muito mais complexa do que a simples denio do par lngua/fala, mas a caracterizao da Lingstica como o estudo da lngua (e no da fala) pode coexistir com uma postura formalista, ou pode ser interpretada como favorecendo uma postura assim. Aqui, no estamos mais pensando no formalismo da maneira ampla que utilizamos nos pargrafos anteriores. Formalismo aqui j no simplesmente a atitude de valorizar e descrever a forma lingstica, mas vai alm disso. A forma, nesse caso, alm de importante, existe fora do uso e no depende dele, sendo mais estvel do que a diversidade de enunciados possveis, e escolhida como objeto de estudo justamente por essa relativa estabilidade. curioso observar, por outro lado, que o surgimento do funcionalismo tambm est muitas vezes associado s propostas saussureanas e aos seus seguidores, mas no vamos tratar disso nesta introduo.

    Como um segundo exemplo de formalismo mais prximo de ns, podemos lembrar o esforo dos lingistas norte-americanos da primeira metade do sculo XX em descrever uma grande quantidade de lnguas indgenas da Amrica do Norte (como navajo, cherokee, choctaw, chickasaw, creek e seminole). Essas lnguas eram grafas (no tinham escrita) e nunca haviam sido descritas, ou no havia descries conhecidas. Um grande esforo foi feito ento para elaborar mtodos que permitissem aos lingistas coletar grandes quantidades de dados, gravando ou anotando o que os falantes diziam, e depois descobrir a gramtica da lngua que estivesse sendo estudada. Por motivos que no vamos discutir aqui, alguns dos principais autores da poca, como Leonard Bloomeld (1887-1949) e Zellig Harris (1909-1992), consideraram que toda descrio devia ser feita exclusivamente a partir dos dados, ou seja, o lingista que estava estudando uma certa lngua indgena no devia usar seu conhecimento de outras

  • 252

    lnguas para fazer nenhuma hiptese acerca das palavras, sons ou sintaxe da lngua estudada.

    Se voc sabia, por exemplo, que muitas lnguas tm uma distino entre adjetivos e verbos, ou uma ordem bsica sujeito-predicado, mesmo assim no podia usar isso na descrio, a no ser que esses padres aparecessem nas falas que voc tinha gravado ou anotado.

    Alm disso, esses autores consideravam que o signicado das palavras, frases e textos no devia ser levado em conta para se fazer a descrio. O lingista deveria observar quais partes da lngua combinavam com quais outras partes, sem precisar saber o signicado dos enunciados, de maneira que a tarefa era perceber regularidades formais, sem se preocupar com a interpretao. As formas (fonticas, morfolgicas, sintticas) j estavam todas nos dados coletados, era preciso descobri-las. Nem mesmo a signicao das palavras e frases devia ser levada em conta, e portanto nada podia ser dito acerca do texto completo, ou de uma conversao. Mais uma vez, temos uma preocupao com extrair uma forma que j est na lngua, e que independe do uso, da funo. Voc certamente notou que aqui h um aspecto do formalismo que diferente, por exemplo, da gramtica tradicional, ou da proposta saussureana. Nem a gramtica nem Saussure propunham que o signicado fosse deixado de lado para se fazer a descrio da lngua. claro que os estruturalistas norte-americanos que seguiam os mtodos propostos por Bloomeld ou Harris sabiam que as palavras e frases tm signicado, mas talvez motivados pela necessidade de descrever tantas lnguas diferentes propunham que o estudo fosse feito sem levar isso em conta. Se o estudo devia ser feito sem levar em conta o signicado (e muito menos as situaes de uso, as intenes das pessoas, etc.) claro que eles deviam pensar que a organizao da lngua no inuenciada pelo signicado. Esse um tipo de formalismo um pouco mais radical, porque o signicado est sendo excludo do estudo.

    Entretanto, isso que estamos chamando de estruturalismo americano no era um grupo to homogneo. Aqueles que seguiam Edward Sapir (1884-1939) e entre eles o brasileiro Mattoso Cmara Jr. (1904-1970) no tentavam excluir o signicado das descries. Alm disso, tanto os seguidores de Sapir, como de Bloomeld ou Harris, concordavam em considerar as lnguas como intrinsecamente ligadas s culturas dos povos.

    Outro exemplo sempre citado de formalismo no sculo XX a posio de Noam Chomsky (1928) e dos gerativistas. Eles no esto preocupados, como os estruturalistas da primeira metade do sculo, em descrever as lnguas a partir de grandes quantidades de dados gravados. Pelo contrrio, o trabalho dos lingistas, no gerativismo, tentar propor um padro abstrato que explique no s as sentenas que j existem, que algum j pronunciou, mas tambm todas as sentenas possveis na lngua. Alm disso, o gerativismo mantm a hiptese de que as lnguas so a manifestao de uma capacidade inata para a linguagem. Essa capacidade biolgica, tpica da espcie humana:

    vamos postular que o ser humano possui em seu aparato gentico alguma coisa como uma faculdade de linguagem,

  • 253

    alocada no crebro humano, uma hiptese plausvel que se presta a marcar a diferena fundamental entre a espcie humana e todos os outros seres do planeta. (MIOTO et al. 2007:22)

    Temos aqui ento um tipo de formalismo diferente dos mencionados anteriormente: no s as caractersticas da linguagem so independentes do uso, da funo, como so originadas na mente e na biologia, e no na cultura. Por outro lado, de uma maneira que lembra um pouco as preocupaes dos estruturalistas com a excluso do sentido, os gerativistas propem a modularidade da descrio, isto , sustentam que a descrio da sintaxe da lngua ao menos na teoria independente da fonologia e da semntica. Como voc pode ver, temos grandes preocupaes formais nessas trs correntes lingsticas estudadas. Mas formalismo no signica a mesma coisa em todas as ocasies. s vezes temos apenas uma preocupao com a descrio de formas, outras vezes se diz que o signicado no deve ser utilizado na descrio, e outras vezes a natureza da lngua explicada a partir de caractersticas da mente. Os vrios funcionalismos lingsticos vo se opor a algumas dessas opes, ou a todas elas.

    Formalismo e Funcionalismo em Lingstica

    As teorias da linguagem sempre reetem concepes particulares do fenmeno lingstico, concebidas em funo das posturas cientcas da tradio cultural em que estavam inseridas (o que a lngua, quem o sujeito da linguagem, o que lingstico, o que extralingstico, etc.). Em cada poca, as teorias lingsticas denem, ao seu modo, a natureza e as caractersticas relevantes do fenmeno investigado.

    Podemos armar que os estudos do fenmeno lingstico inserem-se em duas grandes tradies cientcas, que correspondem a dois grandes paradigmas: o formalista e o funcionalista. O primeiro privilegia a estrutura interna da lngua e o outro, cada vez mais forte em nossos dias, busca relacionar o lingstico e o social.

    A Lingstica do sculo XX teve um papel decisivo na considerao da relao entre linguagem e sociedade: em um momento exclui do seu mtodo toda considerao sobre a natureza social, histrica e cultural na observao, descrio, anlise e interpretao do fenmeno lingstico (referimo-nos, aqui, constituio da tradio estruturalista, iniciada por Saussure em seu Curso de Lingstica Geral, em 1916). Em outro momento, traz para o centro dos estudos da linguagem a preocupao com toda sorte de fenmenos capazes de afetar, em situaes comunicativas concretas, o uso que os falantes fazem da lngua, seja a cultura, seja a sociedade, a histria, a ideologia, etc. (esse momento corresponde parcialmente introduo da Pragmtica no fazer lingstico).

    A relao entre linguagem e sociedade, reconhecida, mas nem sempre assumida como relevante, encontra-se diretamente ligada questo da determinao do objeto de estudo da Lingstica: a lngua. Isto , embora se admita que a relao entre linguagem-sociedade seja evidente por si s, possvel privilegiar uma determinada ptica (o ponto de vista determina o objeto), e esta deciso repercute na viso que se tem do fenmeno lingstico, de sua natureza e caracterizao.

    Saussure dene a lngua, por oposio fala, como objeto central da Lingstica. Na viso do autor, a lngua o sistema subjacente atividade da fala, mais concretamente, o sistema invariante que pode ser abstrado das mltiplas

  • 254

    variaes observveis da fala. Da fala, se ocupar a Estilstica, ou, mais amplamente, a Lingstica Externa. A lingstica, propriamente dita, ter como tarefa descrever o sistema formal, a lngua. Inaugura-se, assim, a chamada abordagem imanente da lngua, que, em termos saussurianos, signica afastar tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema.

    Saussure privilegia o carter formal e estrutural do fenmeno lingstico, embora reconhea a importncia de consideraes de natureza etnolgica, histrica e poltica. Saussure institucionaliza a distino entre uma Lingstica Interna oposta a uma Lingstica Externa. essa dicotomia que dividir, de maneira permanente, o campo dos estudos lingsticos contemporneos, em que orientaes formais se opem a orientaes contextuais, sendo que estas ltimas se encontram fragmentadas sob o rtulo das muitas disciplinas inter-relacionadas: Sociolingstica, Etnolingstica, Psicolingstica etc.

    Dentro da perspectiva funcionalista, a lngua conceituada como forma de interao social realizada por meio de enunciaes: um produto scio-histrico. A concepo de lngua como interao social inuenciou os estudos que hoje se desenvolvem sobre a interao verbal, como a pragmtica, a teoria da enunciao e a anlise do discurso, e que adotam o princpio de que linguagem ao e no meramente instrumento de comunicao.

    Assim, os dois grandes paradigmas da lingstica (formalismo e funcionalismo) tm diferentes concepes sobre a natureza geral da linguagem (natureza dos dados e evidncias empricas), os objetivos da lingstica, os mtodos de estudo da cincia da linguagem. Segundo Leech (1983, p.46), os formalistas (como Chomsky), tendem a observar a linguagem principalmente como fenmeno mental. J os funcionalistas (como

  • 255

    Halliday) tendem a perceb-la como um fenmeno social. Sobretudo, os formalistas estudam a linguagem como um sistema autnomo, enquanto os funcionalistas a estudam na relao com sua funo social. Para Schiffrin, o funcionalismo est baseado em duas concepes bsicas:

    a) a linguagem tem funes que so externas ao prprio sistema lingstico;b) as funes externas inuenciam a organizao interna do sistema

    lingstico.

    Para o formalismo, a lngua vista enquanto signo, sistema de regras esttico, transparente, determinada, a-histrica, homognea. Nesse sentido, sua unidade de anlise a gramatical, notadamente nos nveis fonolgico, morfolgico e sinttico, no plano descritivo e explicativo das formas. Para o funcionalismo, a lngua tida como atividade scio-histrica, opaca, indeterminada, heterognea e, sua unidade de anlise a funo que a lngua exerce em contexto. Com isso, o objeto de estudo do formalismo a competncia lingstica, o papel do cdigo na comunicao, as regularidades nas combinaes dos constituintes, a identicao de enunciados bem formados ou no. J o objeto de estudo do funcionalismo a competncia scio-comunicativa, a anlise de aes performativas dos usurios com um objetivo especco, em determinado contexto cultural e social, tendo em vista os conhecimentos partilhados. A lngua, nesse sentido, no usada apenas para descrever o mundo, mas para realizar aes dos usurios sobre o mundo ou mesmo sobre outros usurios. No se trata apenas de atos de dizer, mas de atos de fazer no uso da lngua. Ainda que os formalistas no neguem que a lngua possua funes sociais e cognitivas, essas no interferem no sistema, nem constituem objeto de estudo da Lingstica. Por sua vez, ainda que os funcionalistas no neguem a forma, o discurso no percebido apenas como uma seqncia de unidades lingsticas, mas envolve, sobretudo, o contexto. De qualquer modo, os dois paradigmas raticam uma viso dicotmica na relao entre forma/funo; individual/social; sujeito/objeto; subjetivo/objetivo. Atualmente, os estudos lingsticos e das cincias em geral buscam superar essa dicotomia, pleiteando uma viso holstica dos fenmenos.

  • 256

    Sntese das caractersticas dos paradigmas Formalista e Funcionalista

    ASPECTO FORMALISTA FUNCIONALISTA

    CONTEXTO Texto Texto + informaes extralingsticas

    UNIDADE DE ANALISE Gramatical (morfema, fonema etc).

    Funcional (atos de fala)

    OBJETO DE ESTUDO Competncia lingstica Competncia scio-comunicativa

    AQUISIO Capacidade inata Inferncia a partir do uso

    LNGUA Cdigo/sistema Atividade

    UNIVERSAIS LINGUSTICOS

    Decorrentes das propriedades inatas

    Decorrentes dos usos

    OBJETIVO DA ANLISE Descrever as regularidades e regras de boa ou m formao

    Explicar a adequao ou inadequao

    Hymes (1974) sugere que os aspectos abaixo indicados contrastam a abordagem estrutural e funcional:

    Paradigma estrutural Paradigma funcional

    1. Estrutura da linguagem (cdigo) como gramtica.

    1. Estrutura a lngua como realizao da fala

    2. Anlise do cdigo antecede a anlise do uso

    2. A anlise do uso prioritria do cdigo

    3. Funo referencial preenchimento dos usos semnticos como norma

    3. H um conjunto de funes estilsticas ou sociais

    4. Elementos e estruturas so analiticamente arbitrrios

    4. Elementos e estruturas como etnogracamente apropriados

    5. Equivalncia funcional entre as lnguas. Todas as lnguas so essencialmente iguais

    5. Diferenciao funcional entre as lnguas, variedades, estilos

    6. H relao de homogeneidade entre cdigo e comunidade

    6. Comunidade de fala como matriz do cdigo ou dos estilos de fala (organizao da diversidade)

    7. Conceitos fundamentais como: comunidade de fala, ato de fala, uncia, funes da lngua so dados como garantidos ou arbitrariamente postulados

    7. Conceitos bsicos so tidos como problemticos e merecem ser investigados

  • 257

    Dik (1978) tambm faz uma comparao detalhada entre formalismo e funcionalismo:

    PARADIGMA FORMAL PARADIGMA FUNCIONAL

    1. Uma lngua um conjunto de sentenas 1. Uma lngua um instrumento de interao social

    2. A funo primria de uma lngua a expresso de pensamentos

    2. A funo primria de uma lngua comunicao

    3. O correlato psicolgico de uma lngua a competncia: a capacidade de produzir, interpretar e julgar sentenas

    3. O correlato psicolgico de uma lngua a competncia comunicativa: a habilidade promover interao social por meio da linguagem

    4. O estudo da competncia tem prioridade lgica e metodolgica sobre o estudo do desempenho

    4. O estudo do sistema da linguagem deve estar inserido dentro do seu sistema de uso

    5. As sentenas de uma lngua devem ser descritas independentemente do contexto e do funcionamento, dada a situao em que esto sendo usadas

    5. A descrio dos elementos lingsticos do uso da lngua deve apresentar pontos de contato para a descrio do seu contexto.

    6. A aquisio de linguagem inata a entrada de dados restrita e no estruturada (teoria da pobreza de estmulo)

    6. A criana descobre o sistema subjacente lngua e ao seu uso, auxiliada por uma entrada de dados lingsticos extensiva e altamente estruturada, apresentados em contextos naturais.

    7. Os universais lingsticos so propriedades inatas ao organismo biolgico e psicolgico humano

    7. Os universais lingsticos so coeres inerentes aos objetivos da comunicao, constituio dos usurios da lngua e aos contextos onde a lngua usada.

    8. Sintaxe autnoma com respeito semntica; sintaxe e semntica so autnomas com relao pragmtica e as prioridades vo da sintaxe via semntica em direo pragmtica.

    8. A pragmtica o esquema no qual a semntica e a sintaxe devem ser estudadas; a semntica subordinada pragmtica e as prioridades vo da pragmtica via semntica para a sintaxe.

  • 258

  • 259

    UNIDADE I

    SOCIOLINGSTICA

    1. A sociolingstica e o paradigma funcionalista

    A Sociolingstica se posiciona no paradigma lingstico representado pelo modelo terico funcionalista. As vrias denies de Sociolingstica como o estudo da linguagem em relao sociedade; como uma tentativa de construir um discurso coerente sobre o relacionamento entre uso da linguagem e os modelos sociais de vrios tipos; como parte da lingstica que se interessa pela linguagem enquanto um fenmeno social e cultural; como o estudo da linguagem como fenmeno social; como o estudo das caractersticas das variedades da linguagem, as caractersticas de suas funes e as caractersticas de seus falantes, como estes trs elementos interagem constantemente, mudam, e mudam um ao outro dentro de uma comunidade de discurso; ou como o estudo das vrias realizaes lingsticas dos signicados socioculturais em que a ocorrncia de interaes sociais cotidianas relativa a culturas particulares, a sociedades, a grupos sociais, a comunidades lingsticas, lnguas, dialetos, variaes, estilos (Figueroa, 1994, p. 25) conrmam o objeto da Sociolingstica como sendo o mesmo do paradigma mencionado.

    Desta forma, levando-se em conta a natureza social da linguagem, as reas de interesse da Sociolingstica incluem alguns fenmenos sociais e culturais, tais como as estruturas e padres sociais; as variedades lingsticas, como os dialetos e estilos; os grupos sociais, como as comunidades lingsticas; as funes da linguagem na sociedade; a mudana lingstica; o sentido sociocultural e a interao social.

    O tema da Sociolingstica denido por Aracil (1978) como sendo o uso da lngua o enfoque sociolingstico obviamente difere daquele da lingstica propriamente dita, centralizado nas condies existenciais. Enquanto a lingstica separa a lngua das estruturas socioculturais no-lingsticas, a sociolingstica a relaciona com elas.

    Do mesmo modo, Romaine (1982) escreve: O contraste entre lingstica propriamente dita e sociolingstica repousa no fato de que a estrutura da lngua constitui o tema da lingstica, enquanto o uso da lngua deixado para a sociolingstica. Uma teoria sociolingstica, entretanto, pressupe uma teoria lingstica; se para ser verdadeiramente interativa, deve-se relacionar estrutura e uso.

    Ao armar que o tema da sociolingstica o uso da linguagem Figueroa (1994, p. 26) ressalta tambm que, em sendo a sociolingstica o estudo da enunciao (falada, escrita, simbolizada), vrias questes precisam ser levadas em considerao: uma enunciao a realizao da lngua em um contexto particular e no pode haver uma descrio adequadamente contextualizada de enunciao que exclua os agentes que produzem a enunciao, bem como os contextos em que a enunciao ocorre.

    A Sociolingstica moderna tem base nas teorias desenvolvidas por William Labov, na dcada de 1960, no contexto cultural dos Estados Unidos da Amrica. A teoria de Labov, conhecida como Sociolingstica Variacionista porque estuda os processos de variao e mudana lingstica segundo uma metodologia quantitativa, a partir de variveis sociais e lingsticas apenas um desdobramento da preocupao dos estudos da linguagem a partir da realidade social. Outros tericos,

    UNIDADE I

    SOCIOLINGSTICA

  • 260

    simultaneamente a Labov, desenvolveram disciplinas sociolingsticas, abordando dimenses diferentes da relao linguagem-sociedade. Um deles Dell Hymes, que adota a dimenso interdisciplinar da linguagem, ocupando-se de aspectos culturais e etnogrcos relativos aos usos lingsticos de uma comunidade, sob forte inuncia da antropologia lingstica. Outro John Gumperz, que se ocupa da dimenso interacional dos usos da linguagem, em eventos lingsticos face a face. Essa teoria denominada Sociolingstica Interacional.

    2. Premissas da Sociolingstica:

    Relativismo 1. cultural

    Princpio que prega que uma crena e/ou atividade humana individual deva ser interpretada em termos de sua prpria cultura. Defende a validade e a riqueza de qualquer sistema cultural e nega qualquer valorizao moral e tica dos mesmos

    Equivalncia 2. funcional de todas as lnguas

    A equivalncia funcional entre lnguas ou variedades signica que essas se equivalem, tanto em sua estrutura quanto em seu uso, ou seja, todas as lnguas tm igual complexidade

    Heterogeneidade 3. lingstica regular

    Diferentemente do que sugerem as gramticas pedaggicas, a lngua no um fenmeno homogneo. A regra a variao, a mudana, a heterogeneidade.

    Igualdade essencial 4. entre as variedades lingsticas

    No apenas as lnguas so funcionalmente equivalentes. Dentro de uma comunidade lingstica, as variedades empregadas por grupos scio-culturais diferentes so equivalentes, no podendo ser descritas como melhores, mais complexas ou mais bonitas do que outras variedades.

    Stella Bortoni aponta que o relativismo cultural uma postura adotada nas Cincias Sociais, inclusive na Lingstica, segundo a qual uma manifestao de cultura prestigiada na sociedade no intrinsecamente superior a outras. Quando consideramos que as variedades da lngua portuguesa, empregadas na escrita ou usadas por pessoas letradas quando esto prestando ateno fala, no so intrinsecamente superiores s variedades usadas por pessoas com pouca escolarizao, estamos adotando uma posio culturalmente relativa e combatendo o preconceito baseado em mitos que perduram h muito tempo em nossa sociedade.

    Ainda no dizer de Bortoni (1997, p. 2), desde os anos sessenta a Sociolingstica vem lutando em favor do que chama de igualdade essencial das variedades lingsticas e teve que lidar com as correlaes entre os dialetos das crianas e seu sucesso educacional. Como exemplo, cita a pesquisa realizada por Kelmer Pringle e associados (Stubbs, 1980), que trata do desempenho na leitura, abaixo da mdia nacional, de crianas consideradas de classes sociais inferiores ou de minorias tnicas. Essa pesquisa

  • 261

    agrupou 11.000 alunos na faixa de sete anos em trs grupos: leitores bons, mdios e pobres, usando como parmetro, sua performance no Teste de Reconhecimento de Palavras Southgate. A porcentagem de leitores fracos na classe alta foi de 7,1%; na classe mdia, 18,9% e na classe baixa, mais que 26,9%. O esforo da Sociolingstica tem sido o de tratar os conitos dialetais como apenas diferenas e no decincias. Para William Labov (1987, p. 10), no entanto, a causa primria do fracasso escolar no a diferena entre as linguagens, mas o racismo institucional. 3. Dimenses da Variao/Mudana Lingstica:

    Uma concepo idealizada de norma nega qualquer tipo de validao s variedades lingsticas. Estas, ao contrrio da norma ideal, dizem respeito aos parmetros lingsticos que cada comunidade adota em funo no apenas nas necessidades comunicativas, sociais e contextuais, mas em respeito a regras lingsticas de mudanas, que operaram no decorrer do tempo sobre os princpios gerais daquela lngua. Por exemplo, a lngua portuguesa falada no Brasil sofreu, ao longo dos quinhentos anos de seu uso em nosso territrio, inmeras transformaes, seja pelo contato com outras lnguas da colonizao (as lnguas indgenas, as lnguas africanas, as lnguas dos invasores), seja pelo convvio com as lnguas dos imigrantes (japoneses, italianos, alemes), seja pela distncia geogrca em relao aos centros onde as mudanas sociais eram mais freqentes (os sertes em relao s capitais do Imprio, por exemplo), seja pelas necessidades de cada lugar (a instalao das indstrias no sudeste, a agricultura de subsistncia no norte-nordeste, a produo canavieira nos litorais). Essas transformaes so observadas com muita clareza no Brasil, basta que constatemos os contrastes entre as diversas regies. O resultado que temos um pas em que a lngua utilizada pela maioria dos falantes o Portugus, e que no entanto, no se pode considerar essa lngua como homognea, j que apresenta variaes que a tornam muito particular em relao s comunidades que as adotam. Essas variedades tm normas diferentes umas das outras, e essas normas so consensualmente utilizadas pelos falantes. No se pode dizer, portanto, que uma variedade do portugus seja mais bem empregada do que outra, visto que seu uso sempre coerente com a norma. Variedade lingstica no erro ou desvio. uma forma legitima de uso de uma lngua que sofreu processos naturais de variao e mudana no seu desenvolvimento. A variao lingstica no ocorre apenas no Brasil, todas as lnguas do mundo passam por esse processo, mas mais fcil de not-la em um pas com a dimenso do nosso, pois o processo de mudana no homogneo, ou seja, no ocorre ao mesmo tempo em todas as regies em que a lngua falada.

    As variaes lingsticas so, pois, as diferentes realizaes de uma dada lngua, que resultam de fatores de natureza histrica, regional, social ou contextual. Essas variaes podem ocorrer nos nveis fontico e fonolgico (a realizao efetiva de um determinado som na lngua, por exemplo o R retroexo, utilizado no interior de So Paulo, para indicar pejorativamente a fala caipira), morfolgico (a realizao de uma concordncia de nmero, em que apenas um termo recebe a marca do plural, como em as menina), sinttico (como a colocao pronominal, amplamente usada no Brasil, em oraes do tipo me d um cigarro) e semntico (encontrada na diferena lexical de diversas regies, como os adjetivos doce e melado).

    O estudo da variao lingstica pode ser feito a partir da observao das

  • 262

    mudanas sob vrios aspectos: a) o aspecto diacrnico (do grego dia+kronos = ao longo do tempo), que explica as manifestaes diferentes de uma lngua atravs dos tempos. No portugus brasileiro, possvel observar a mudana do portugus colonial com relao ao portugus moderno, especialmente pela presena de dados escritos daquela variedade, como tambm pelo uso de formas tpicas do portugus colonial, preservadas nas variedades de algumas regies do Brasil. b) o aspecto sincrnico (do grego syn = simultaneidade), que explica as variaes num mesmo perodo de tempo, como os usos de uma variedade da atualidade em relao a outra, a exemplo do portugus falado no sul e no nordeste. Os demais aspectos, por sua relevncia na explicao do Portugus Brasileiro, sero analisados em seo prpria. 3.1. Variao diatpica, diafsica e diastrtica.

    Entre os diversos processos de variao que ocorrem em uma determinada lngua, destacaremos aqueles que dizem respeito aos contextos sociais que impem a essa lngua, normas de uso especcas, diferentes de outras normas encontradas em outras variedades.

    A variao diatpica (do grego topos = lugar), tambm reconhecida como variao geolingstica ou variao dialetal, o tipo de processo relacionado a fatores geogrcos, como o uso de pronncia diferente em diferentes regies, diferentes palavras para designar os mesmo conceitos, acepes diferentes de um termo de regio para regio, expresses ou construes frsticas prprias de uma regio, etc. A variao diatpica diz respeito aos processos de identicao da norma lingstica com os usos aceitveis em lugares ou regies diferentes de onde se fala a lngua padro. Assim, pode-se perceber que os lugares que se afastam geogracamente do centro onde se usa a variedade padro, adotam normas lingsticas diferentes daquele. Isso pode acontecer por diversos motivos: as regras lingsticas que afetaram a padro podem no ter afetado essa variedade, os usos sociais da lngua nessa regio podem ser diferentes de outra, inuncias de outras lnguas podem ser mais presentes no centro do que na regio onde se fala a variedade no-padro, etc. O exemplo clssico da variao diatpica o falar rural em oposio ao urbano. Nesse exemplo, percebe-se que a mudana ocorreu com menos freqncia na variedade rural, que preserva vrias formas do portugus medieval, enquanto que o falar urbano sofreu inuncias de diversos tipos, como processos de industrializao, de imigrao, etc.

    A variao diafsica (do grego phasis = fala) relacionada s diferentes situaes de comunicao e a fatores de natureza pragmtica e discursiva, que so impostos em funo do contexto de uso da lngua. Esses fatores levam o falante a adaptar-se s circunstncias comunicativas, por meio da variao do registro de lngua, seja para mais formal, ou para mais informal.

    Em lingstica, o termo registro designa a variedade da lngua denida de acordo com o seu uso em situaes sociais. Assim, registros lingsticos so os diversos estilos que um falante pode usar em uma situao comunicativa dada. Em uma conversa informal com os amigos, por exemplo, utilizar um registro diferente do que utiliza em famlia, ou no emprego, ou na Universidade.

    A variao diastrtica (do grego stratos = camada, nvel) refere-se aos modos de falar que correspondem a cdigos de comportamento de determinados grupos sociais. A variedade diastrtica corresponde ao uso lingstico partilhado por um grupo social, cujos membros mantm entre si relaes de identidade que os diferenciam em relao a outros grupos (por exemplo, o uso de grias, de jargo prossional, etc.).

  • 263

    Entre os fatores relacionados variao social, encontramos a classe social, situao ou contexto social, idade, sexo, etc.

    A classe social um fator que tem estreita ligao com a escolha de variedades lingsticas de uso. Em pases como a ndia, em que o sistema de estraticao social bastante fechado, a lngua utilizada por uma casta superior, no pode ser usada por uma inferior. No Brasil, alguns membros da elite intelectual insistem em identicar a variedade padro da lngua com a classe alta. Essa identicao no procede, uma vez que tal classe se dene em termos de poder econmico, e no em funo de escolaridade. Pode-se dizer que num pas mais agrcola do que industrializado, como o Brasil, o poder econmico se concentra mais nas mos dos grandes produtores e fazendeiros e dos altos empresrios da indstria do que na elite intelectual. Assim, a variedade lingstica em torno de classes, no Brasil, mais aberta, no podendo ser identicada com uma classe apenas. Assim, importante que se compreenda que um falante de uma variedade social pode utilizar outra variedade para comunicao, o que destaca a relevncia de todas as variedades e sua adequao s necessidades de uso.

    A situao ou contexto social dene a variedade lingstica a ser utilizada a partir da relao mutua entre dois falantes ao discutir um dado assunto, em uma dada situao. H contextos que exigem maior formalidade, como os institucionais, relacionados escola, ao trabalho, s atividades pblicas; e contextos em que a informalidade a regra a se seguir, como nos contextos privados. Assim, em relao pessoa a quem se dirige, o falante pode utilizar uma variedade mais ou menos formal, dependendo se o seu interlocutor mais velho, ou superior hierarquicamente, ou se trata de um par; dependendo tambm do lugar onde os falantes se encontram, se em um bar, uma igreja ou uma escola; bem como do tema sobre o que se conversa, um assunto srio, amenidades, etc.

    No que diz respeito variao social, segundo os fatores sexo e idade, observa-se que alguns recursos expressivos, como o alongamento de vogais, o uso freqente de diminutivos, entre outros so mais comuns na fala da mulher do que na do homem, enquanto que o registro social por meio de grias, palavres, etc. so mais freqentes na variedade usada por esses. Grias, palavres e outras marcas do registro informal so tambm mais freqentes nas variedades usadas por jovens (homens e mulheres) do que na faixa etria de mais idade. O uso de certos pronomes (como o tu) ocorre com mais freqncia entre jovens, enquanto certas pronncias (como senhora, com o fechamento da vogal o) so mais comuns entre os mais velhos.

    Categorias de anlise da sociolingstica

    Variante Identicao de formas usadas simultaneamente sem alterao de sentido

    Varivel Fator ou grupo de fatores que determinam o uso de uma variante

    Variao Processo comum e natural s lnguas. Pode ser instvel ou estvel.

    A anlise das variantes dene:

    A co-existncia estvel entre variantes ocorre assim o fenmeno da 1. Variao;

  • 264

    A competio entre variantes com aumento do uso de uma delas ocorre assim 2. a Mudana em curso

    Variveis sociais (extralingsticas):

    Sexo1. Idade2. Nvel de Escolaridade3. Contexto Lingstico (Regio)4. Classe Social5. Etnia6. Rede social7.

    O peso dos fatores sociais tem sido minimizado, pois reformulaes na teoria variacionista destacam motivaes essencialmente lingsticas para a variao/mudana.

    Diante de duas variantes, por exemplo, /cantandu/ e /catanu/ (ambas referindo-se ao gerndio do verbo cantar), o sociolingista considera:

    Qual o contexto social de uso de uma das variantes pelo mesmo falante Em que contextos especcos uma forma tende a ser usada pela comunidade lingstica H diferena no uso de uma das formas, de acordo com faixa-etria do falante?H diferena no uso de uma das formas, segundo o nvel de escolaridade do falante?H diferena no uso de uma das formas, de acordo com o nvel socioeconmico do falante?H diferena no uso de uma das formas, de acordo com o nvel registro de linguagem (formal ou informal) empregado pelo falante?

    4. A Sociolingstica Interacional

    A Sociolingstica Interacional pode ser considerada como um desenvolvimento contemporneo da Sociologia da Linguagem, da Etnograa da Comunicao e da prpria Sociolingstica do tipo variacionista da qual William Labov (1966, 1972) o principal representante. Atuantes da rea de Sociologia como Goffman (1967, 1974) e Garnkel (1967) contriburam para alguns dos fundamentos da Sociolingstica Interacional, especialmente no que diz respeito anlise da conversao. Este primeiro inuenciou muitos tericos da Sociolingstica Interacional atravs de seus trabalhos sobre interao social. O ltimo tambm o fez atravs de um modo particular de lidar com a sociologia, ao qual ele denominou Etnometodologia. Os lsofos da linguagem cotidiana (ou Ordinary Language Philosophers) como Strawson (1950), Austin (1962) e Grice (1968), estabelecidos principalmente em Oxford e que buscavam esclarecimento de conceitos luz do emprego corrente dos termos da linguagem comum que os designam, tambm tiveram grande inuncia na fundamentao da teoria da Sociolingstica Interacional, no que diz respeito pragmtica e s teorias sobre atos de fala. As noes de contexto e competncia comunicativa desenvolvidas por Hymes (1962) para sua Etnograa da Comunicao tambm forneceram subsdios para a anlise interacionista proposta pela Sociolingstica Interacional, mas foi John

  • 265

    Gumperz (1971, 1982) quem desenvolveu e deniu o tipo particular de sociolingstica que reconhecido atualmente como um paradigma distinto.

    Consoante Figueroa (1994) a Sociolingstica Interacional de Gumperz se diferencia das teorias que a precederam por ocupar-se do comportamento do indivduo numa situao de comunicao face a face ao tratar a linguagem enquanto fenmeno social. Prtica que at ento no havia sido levada em conta por Labov e outros nomes da sociolingstica, preocupados especialmente com os agregados populacionais.

    Os pontos que separam Gumperz de Labov e tornam a Sociolingstica Interacional uma teoria distinta dos modelos anteriores so, em primeiro lugar, a escolha deste tipo de comunicao face a face, ou seja, um tipo que elege o indivduo para ser o ponto de interesse da anlise lingstica. Esta escolha exclui a anlise baseada nas mdias obtidas em comunidades de falantes, o que, na maioria das vezes, produz apenas generalizaes estatsticas baseadas em dados coletados segundo mtodos de inquritos e no dados validados pela anlise profunda da competncia lingstica. O segundo ponto de divergncia consiste no fato de o interesse de Gumperz concentrar-se no conhecimento individual e suas problemticas: o que partilhado desse conhecimento, como ele distribudo e at que ponto ele signicante e generalizvel; esta preocupao no se verica no nvel do discurso da comunidade lingstica. O terceiro ponto refere-se aceitao, por Gumperz, da teoria do comportamento individual que v na interao uma constituinte da realidade social.

    Assim, a teoria de Gumperz se situa no terreno das interaes humanas onde os signicados, ordens e estruturas no so predeterminados, mas se desenvolvem na interao e se baseiam num conjunto complexo de fatores materiais, experienciais e psicolgicos (Figueroa, 1994, p.113). Gumperz rejeita a separao de lngua do seu contexto social e se interessa pelo conhecimento de como o comportamento lingstico cria interpretaes, de como as intenes individuais levam ao comportamento lingstico, e de como o sucesso da comunicao est relacionado ao conhecimento sociolingstico.

    A teoria da Sociolingstica Interacional enfoca diretamente as estratgias que governam o uso, por parte do falante, dos conhecimentos lexicais, gramaticais, sociolingsticos ou de outra natureza, na produo e interpretao das mensagens em contexto (Figueroa, 1994, p.113). Este processo s possvel pelo uso de pistas de contextualizao, ou qualquer trao de forma lingstica que contribui para assinalar pressuposies contextuais, que permitem acessar a forma como a inteno do locutor est sendo comunicada e interpretada.

    De forma um pouco diferente dos etnometodologistas, que ao analisar um ato conversao, procedem seqenciao do ato, vericao de como este ato conseqncia de um anterior, ou como seguido sistematicamente por outro, Gumperz se ocupa mais da interpretao da intencionalidade conversacional do que da anlise estrutural de ordem social. Os etnometodologistas desenvolveram unidades de anlise, tais como turnos, pares adjacentes, tpicos, aes de reparo, entre outros, que tambm so utilizados por Gumperz ao fazer Sociolingstica Interacional, mas este inclui em sua anlise traos lingsticos de ordem supra-segmental, como entoao, ritmo, que so usualmente ignorados pelos analistas da conversao.

    A unidade mnima de signicao social de que se ocupa a anlise da Sociolingstica Interacional a atividade ou evento de fala, termo denido como um conjunto de relaes sociais realizadas segundo um conjunto de esquemas em relao a algum propsito comunicativo (Figueroa, 1994, p.13). A atividade de fala pressupe a anlise da interao entre os participantes, porque atravs dela que as expectativas

  • 266

    dos participantes sobre as atividades subseqentes, em relao ao curso de um evento de interao, so reavaliadas, desenvolvidas e at mudadas. Sendo assim, a interao produz um processo de interpretao de sentido dinmico.

    A interao produzida atravs das trocas conversacionais dotada de algumas propriedades dialgicas que permitem ao analista chegar a processos de inferncia de sentido. Uma destas propriedades a possibilidade de negociao das interpretaes entre falante e ouvinte, cujos julgamentos so conrmados ou mudados segundo as reaes que eles produzem no interlocutor. Assim, no possvel que um nico enunciado produzido pelo falante seja suciente para que o ouvinte faa inferncia de tal ou qual interpretao. A segunda propriedade a armao de que a conversao contm em si mesma, evidncias internas do que ser seu resultado. Gumperz d como exemplo dessa propriedade a possibilidade de os participantes compartilharem ou no das convenes interpretativas, ou de serem bem sucedidos ou no em atingir os ns da teoria comunicativa.

    A Sociolingstica Interacional, vista deste modo, uma teoria fundamentada no discurso e no no nvel da sentena, e se interessa mais pela comunicao de intencionalidade do que de gramaticalidade. Os traos bsicos de uma lngua so classicados por Gumperz como traos nucleares ou centrais e traos marginais ou perifricos. A Sociolingstica Interacional se concentra no estudo dos traos considerados marginais, que tratam da funo expressiva da linguagem e envolvem aspectos supra-segmentais como entoao, ritmo, escolha entre opes lexicais, fonticas e sintticas, alm de sempre basear sua anlise em termos de linguagem contextualizada, servindo aos propsitos da comunicao. A teoria lingstica vigente, por outro lado, considera apenas os traos nucleares que carregam informaes referenciais. Estes traos so de cunho segmental e funcionam apenas ao nvel da sentena. So alguns deles os fonemas segmentais, os marcadores gramaticais ou axos, as categorias sintticas bsicas e alguns elementos de acentuao, que tratam da linguagem de forma descontextualizada e idealizada.

  • 267

    UNIDADE II

    LINGSTICA INTERACIONAL

    1. A noo de interao na Lingstica:

    O interesse pelo fenmeno da interao social na Lingstica geralmente atribudo abordagem da linguagem verbal humana, em sua modalidade oral, por meio da anlise das aes comunicativas entre os falantes e os ouvintes. Vrias correntes tericas da Lingstica, como as anlises do discurso, a sociolingstica, a anlise da conversao, etc. ao abordar o fenmeno interacional renovaram o enfoque dos estudos da linguagem, passando a ocupar-se com a chamada gramtica oral.

    O funcionamento e o uso da lngua em situaes concretas no cotidiano dos falantes, assim como a funo scio-comunicativa das produes lingsticas, nesse novo enfoque, passaram a ter prioridade sobre a anlise formal das estruturas da lngua. Essa mudana de foco de anlise geralmente denominada de mudana ou virada pragmtica (do ingls, pragmatic turn).

    Virada pragmtica: na virada pragmtica o funcionamento e o uso da lngua em situaes concretas no cotidiano dos falantes tm prioridade sobre a anlise formal, assim como a funo

    scio-comunicativa e o enquadre cognitivo das produes lingsticas e no-lingsticas.

    Entretanto, antes da prpria virada pragmtica, outras abordagens denominadas interacionistas j haviam se estabelecido no campo de estudos da linguagem, voltadas especialmente para a investigao da fala infantil (Lev Vygotsky, 1896-1934) e dos processos sociais que motivam a produo dos enunciados verbais (Mikahil Bakhtin, 1895-1975).

    Lev Semionovitch Vygotsky Mikhail Mikhailovich BakhtinA perspectiva de Vygotsky (1896-1934), denominada scio-interacionismo ou interacionismo sociocultural, trata do papel das interaes sociais aplicadas gnese da linguagem e ao desenvolvimento cognitivo da criana. Em sua abordagem, a interao social e a linguagem so fundamentais para o desenvolvimento humano. O indivduo, em sua opinio, no apenas ativo, mas interativo, porque constri conhecimentos e se constitui como sujeito a partir de relaes intra e interpessoais.

    O desenvolvimento cognitivo se processa na internalizao da interao social com os dados disponveis culturalmente, em um processo construdo de fora para dentro, ou seja, trata-se de um processo que caminha do plano social (relaes interpessoais) para o plano individual interno (relaes intra-pessoais). Nessa perspectiva, internalizamos conhecimentos, construmos papis e funes sociais, no intercmbio com outros sujeitos e conosco prprios.

    Bakhtin se ope a uma noo de lngua que seja fundada tanto em sua forma objetiva como na subjetividade pura. Ao invs disso, adota a concepo de dialogismo ou interao. Para o autor, a linguagem tem natureza scio-ideolgica. H, portanto, entre linguagem e sociedade relaes dinmicas e complexas que se materializam nos enunciados constitudos em discursos.

    A verdadeira substncia da lngua no constituda por um sistema abstrato de formas lingsticas nem pela enunciao monolgica e isolada, nem pelo ato psicosiolgico de sua produo, mas pelo fenmeno social da interao verbal, realizada atravs da enunciao ou das enunciaes. A interao verbal constitui assim a realidade fundamental da lngua. A lngua vive e evolui historicamente na comunicao verbal concreta, no no sistema lingstico abstrato das formas da lngua nem no psiquismo individual dos falantes (BAKHTIN, 1992, p. 109-110)

    UNIDADE II

    LINGSTICA INTERACIONAL

  • 268

    Os estudos da interao social consideram que a conversao (fenmeno lingstico de base) um dos lugares fundamentais onde se estabelecem o vnculo e a ordem social; onde se realiza a socializao dos indivduos; onde os falantes adquirem suas capacidades comunicativas; e onde a lngua usada de maneira prototpica. Em razo disso, a organizao da conversao no pode ser indiferente organizao social nem estruturao dos recursos lingsticos. Postula-se, ento, que o fenmeno interacional integra, em termos lingsticos, as dimenses pragmticas (funcionais) e estruturais (formais) da linguagem.

    Duas hipteses sobre essa questo so formuladas por Lorenza Mondada, lingista sua (2001, p.15):

    As formas lingsticas so usadas como o recurso interao. A 1. organizao da interao explora estes recursos de acordo com suas

    especicidades e suas caractersticas formais. Em termos prticos, gerenciamos a interao atravs do emprego de estruturas lingsticas (marcas sintticas, discursivas, lexicais) que se organizam por modelos interativos seguidos em nossas prticas de linguagem.As formas lingsticas no so apenas exploradas interacionalmente, mas 2. so conguradas tambm pela interao. Sua adequao atividade de

    conversao no seria uma mera possibilidade, mas uma conseqncia do fato de que os falantes estruturam os recursos da lngua para a interao.

    Ao propor as bases de uma Lingstica Interacional, tericos como Lorenza Mondada reete sobre as conseqncias de se adotar integralmente a dimenso interacional dos fenmenos lingsticos. Algumas destas conseqncias so:

    o reconhecimento do papel constitutivo da interao social na prpria estruturao dos recursos lingsticos, ou seja, a interao social no apenas estabeleceria os modelos para o uso da lngua em suas situaes comunicativas, mas a prpria escolha dos recursos lingsticos que usamos (as estruturas, os sentidos, a organizao sinttica) seria feita de acordo com a dinmica interacional. o fato de que a anlise interacional permite conceber um modelo de prticas sociais dos falantes que expliquem os fenmenos dinmicos e emergentes da linguagem, ou seja, os processos locais de variao social e as mudanas lingsticas (sintticas, semnticas, pragmticas) seriam decorrentes de alteraes nos modelos interacionais utilizados nas prticas scio-comunicativas dos falantes.

    Duas grandes tradies lingsticas se estabeleceram fortemente a partir da segunda metade do sculo XX: a tradio do produto e a tradio da ao.

  • 269

    Tradio do Produto Tradio da Ao

    Iniciada ainda no sculo XIX com os neogramticos se estendeu at Saussure e Chomsky, tornando-se paradigmtica a partir do tratamento dado lngua pelo gerativismo, como sendo um produto bem denido da fonologia, da morfologia, da semntica e da sintaxe. Esta tradio tem como caractersticas o fato de que o aspecto estrutural mais bsico do que o aspecto do uso e de que a lngua autnoma e suciente para centrar sua anlise no nvel da frase.

    A tradio da ao foi postulada, sobretudo, pelos pragmaticistas, analistas da conversao e etnometodlogos, que denem o funcionamento da lngua em nveis de ao, desde os nveis estritamente lingsticos at os da enunciao, da modalidade, da cognio, da situacionalidade, etc. A lingstica interacional subscreve essa tradio, em vista de seu objeto de estudo tratar-se de um tipo de ao intersubjetiva.

    Para Herbert Clark (1992, 1996) o uso da linguagem , de fato, uma forma de ao conjunta, e por ao conjunta entende-se aquela que levada a efeito por um conjunto de pessoas agindo coordenadamente em relao s outras. O uso da linguagem, portanto, incorpora ambos os processos individuais e sociais da interao social.

    2. Objeto de Estudo da Lingstica Interacional:

    A comunicao face a face

    O que as pessoas fazem ao usar linguagem realizar aes intencionalmente. Em um dado nvel de abstrao elas negociam e conhecem uns aos outros, etc., em outro nvel, fazem armaes, pedidos, promessas, pedem desculpas, categorizam objetos, referem-se s pessoas e situam as coisas. Todas essas aes so conjuntas. Mas, o que so e como funcionam as aes conjuntas?

    Alguns dos traos mais elementares usados para entender a linguagem e seu uso como ao conjunta so apresentados por Clark (1996, p. 23), abaixo resumidos:

    A linguagem

    fundamentalmente usada para propsitos sociais.

    O uso da lngua essencialmente performativo, isto , todos os usos da lngua envolvem atividades sociais sem as quais no haveria sentido em us-la. Ilustra esta assero o questionamento feito por Salomo (1999, p. 65):

    A rigor, para que existiria linguagem? Certamente no para gerar seqncias arbitrrias de smbolos nem para disponibilizar repertrios de unidades sistemticas. Na verdade, a linguagem existe para que as pessoas possam relatar a estria de suas vidas, eventualmente mentir sobre elas, expressar seus desejos e temores, tentar resolver problemas, avaliar situaes, inuenciar seus interlocutores, predizer o futuro, planejar aes.

  • 270

    A linguagem uma espcie de

    ao conjunta.

    No pode haver uso solitrio da lngua, mas as aes de no mnimo dois indivduos so exigidas para que as atividades lingsticas tenham sentido. As aes conjuntas constituem a coordenao das aes individuais de pelo menos dois sujeitos, que podem estar face a face, ou distantes no tempo e no espao.

    O uso da linguagem sempre envolve a signicao do

    falante e a compreenso do interlocutor

    Esta armao pe em evidncia o fato de que os signicados no esto estavelmente nas estruturas das palavras, mas se revelam na situao comunicativa concreta. A compreenso lingstica depende do signicado do falante associado s especicidades contextuais em que os enunciados so produzidos. Isto quer dizer que qualquer sentena, para ser compreendida, envolve o reconhecimento das intenes do falante dentro de um contexto situado scio-culturalmente.

    O uso da linguagem geralmente tem mais de uma camada de atividade.

    H muitos domnios de ao em uma nica atividade discursiva. Cada um destes domnios (ou camadas de atividade) denido por um conjunto de participantes, um lugar, um tempo, e um conjunto de aes executadas. A conversao em sua forma mais simples tem apenas um domnio de ao. No entanto, no decurso desta atividade, os participantes podem introduzir novas camadas de ao quando, por exemplo, contam uma histria, uma piada, imitam uma personagem ou uma terceira pessoa, enm, fazem da conversao um contexto rico para os diversos usos da linguagem.

    Para os estudos da comunicao face a face, talvez o trao mais elementar a partir do qual entendemos o objeto da lingstica interacional seja:

    O locus bsico da linguagem a conversao face a face.

    Esta armao aponta para o fato de que o contexto de uso da lngua mais bsico aquele da conversao face a face. Toda uma tradio dos estudos da linguagem tem se voltado para a investigao deste contexto, a m de elucidar os mais diversos propsitos, desde a aquisio da linguagem at os usos scio-dialetais de variedades lingsticas.

  • 271

    Koch (1992, p. 9; 66), por exemplo, encara a linguagem como atividade, forma de ao interindividual e lugar de interao que possibilita aos membros de uma comunidade executar aes, jogar um jogo.

    Bange (1983, p. 3) arma que se a conversao pode ser considerada a forma de base da organizao da atividade de linguagem, tal ocorre porque ela , de fato, a forma de vida cotidiana, interativa, inseparvel da situao.

    Para Fillmore (1981, p.152) a lngua da conversao face a face o uso mais bsico e primrio da linguagem, todos os outros sendo mais bem descritos em termos do modo como se desviam desta base.

    Clark (1996, p. 11) tambm rearma a condio da conversao face a face como cenrio bsico de uso da lngua. Para ele, a conversa universal, no requer habilidade especial, e essencial na aquisio da lngua materna.

    A prioridade da conversao face a face sobre os demais cenrios ocorre porque nestes faltam traos como a imediaticidade, o meio e o controle da interao face a face, os quais devem ser supridos por tcnicas ou prticas especiais. A natureza destes traos d conversao face a face caractersticas que faltam aos cenrios no bsicos, como a co-presena, visibilidade, audibilidade e instantaneidade no enquadre da imediaticidade; a evanescncia, a no registrabilidade e a simultaneidade como caractersticos do meio; e a improvisao, autodeterminao e auto-expresso, no quadro do controle das aes da linguagem.

    Traos da conversao face a face (CLARK & BRENNAN, 1991):

    IMEDIATICIDADE

    1. Co-presena Os participantes partilham o mesmo contexto fsico.

    2. Visibilidade Os participantes se vem mutuamente.

    3. Audibilidade Os participantes ouvem um ao outro.

    4. Instantaneidade Os participantes percebem as aes dos demais sem atraso perceptivo.

    MEIO

    5. Evanescncia O meio evanescente os sinais lingsticos e no-lingsticos so transitrios e desaparecem no espao e tempo.

    6.No-

    registrabilidade

    As aes dos participantes no deixam marcas ou vestgios fsicos.

    7. Simultaneidade Os participantes podem produzir e receber aes lingsticas imediatamente e simultaneamente

  • 272

    CONTROLE DASAES

    8. Improvisao Os participantes formulam e executam suas aes de maneira improvisada, em tempo real.

    9. Autodeterminao Os participantes determinam por si mesmos quais aes so tomadas e quando so tomadas.

    10. Auto-expresso Os participantes atuam por expresso prpria.

    Em nossa opinio, ao enfatizar a no exigncia de habilidade especial no uso face a face da linguagem, Clark deixa de reconhecer que as habilidades bsicas, presentes neste cenrio, exigem um nvel complexo de operaes cognitivas e sociais. O modo de interagir no contexto social no um dado de que os falantes dispem; eles o constroem no dia-a-dia de suas experincias culturais e na relao como os outros interlocutores.

    A habilidade da conversa face a face no exige, por exemplo, a escolarizao formal, mas os falantes que dela fazem uso tiveram que aprender a manipular recursos interacionais desde cedo. Operaes cognitivas como a inferncia, a referenciao e a interpretao tambm desempenham papel crucial na interao face a face. Consider-las bsicas seria negar a complexidade dos processos neurocognitivos e scio-cognitivos que elas executam.

    A conversa organizada de modo que haja interao entre os participantes, ou seja, para que estes negociem o sentido social das atividades em que esto envolvidos. A organizao da conversao dotada de uma complexidade que permite conceber uma gramtica prpria: a gramtica oral ou interacional. Para ns didticos, apresentamos alguns itens que estruturam a gramtica interacional, os quais sero tratados no decorrer deste captulo:

    Tpicos

    Os diversos assuntos abordados pelos falantes so denominados, segundo a anlise etnometodolgica da conversao, tpicos. Numa situao de interao os tpicos podem continuar, mudar ou simplesmente chegar ao m, pela negociao dos falantes.

    Turnos

    Para falar sobre os tpicos, os participantes organizam a conversao em turnos, que constituem a oportunidade que cada um tem de dar sua contribuio para a conversao, a vez que cada falante tem de se expressar sobre dado tpico.

    Tomada de Turno ou Assalto ao

    Turno

    Os turnos geralmente no so distribudos automaticamente aos falantes. Um interlocutor pode, em dado momento, querer tomar a palavra de quem est falando e, para isso, sobrepe sua voz at que o outro ceda. Este procedimento denominado assalto ao turno.

    Simetria interacional

    Em interaes simtricas, todos os participantes tm direitos iguais ao uso dos turnos; isto se verica em conversaes informais entre amigos ou familiares.

  • 273

    Assimetria interacional

    Em interaes consideradas assimtricas, como entrevistas de emprego, consultas mdicas, e at em sala de aula, um dos integrantes da conversao possui o domnio sobre os turnos e os distribui a seu critrio. As interaes assimtricas so tpicas dos ambientes institucionais e as relaes entre prossionais e leigos se do em termos de pares adjacentes, ou seja, os prossionais determinam os tpicos e controlam os turnos atravs de perguntas, as quais os leigos somente respondem, mas no opinam sobre tpico, nem fazem assalto aos turnos

    Pares Adjacentes

    So dois turnos emparelhados (do tipo bom dia/bom dia) e constituem principal unidade de anlise interacional. So encontrados tanto em interaes assimtricas (entrevistas mdico-paciente; inquiridor-testemunha) quanto em interaes simtricas, freqentemente atravs de expresses cristalizadas (al/al; tudo bom/tudo bom, etc.)

    Relevncia Condicional

    Nos pares adjacentes a produo de um turno condiciona a realizao do segundo. Nos pares: pergunta-resposta; saudao-saudao; convite-aceitao; pedido-concordncia, a no-ocorrncia do segundo par, embora possvel, causaria estranheza ou sano social.

    O contexto interacional

    A noo de contexto tem sido abordada na Lingstica, especialmente nos campos da pragmtica, a partir da referncia ao uso da linguagem em situaes interacionais. As escolhas lingsticas de um falante so denidas contextualmente e so denidoras do contexto, ou seja, linguagem e contexto se alimentam mutuamente um do outro. As escolhas lingsticas do falante so pistas de contextualizao que acionam um conjunto de expectativas, atitudes e processos inferenciais associados com o tipo de atividade de que so ndices. Deste modo, contexto e linguagem so concebidos como uma relao dinmica e evolutiva, na qual as palavras so mediadoras de diferentes verses do mundo e normalmente permitem mais de uma verso co-existir em uma atividade de fala.

    Em seus estudos sobre o uso da linguagem e as arenas nas quais os falantes agem conjuntamente, Clark apresenta cenrios de uso da lngua, classicando-os de acordo com as cenas e os meios em que ocorrem, ou seja, os lugares (contextos) e os canais de produo lingstica (falada, escrita, gestual). Da combinao dos dois, o autor sugere a noo de contexto falado e contexto escrito. Clark (1996, p. 5) prope sete tipos de cenrios no mbito do contexto falado: no-pessoais, pessoais, institucionais, prescritivos, ccionais, mediados e privados:

  • 274

    Tipologia dos Cenrios de Uso da Lngua (CLARK, 1996, p. 8):

    CENRIOS FALADOS CENRIOS ESCRITOSNo-pessoais Professor A profere

    palestra a alunos BJornalista A escreve artigo informativo para leitores B

    Pessoais A conversa face a face com B

    A escreve carta a B

    Institucionais Promotor A interroga testemunha B no tribunal

    Gerente A escreve carta comercial a cliente B

    Prescritivos Noivo A faz voto ritual de matrimnio a noiva B em frente de testemunhas C

    A assina formulrios ociais para B em frente a notrio pblico C

    Ficcionais A atua em pea teatral para espectadores B

    Escritor A escreve romance para leitores B

    Mediados C simultaneamente traduz para B o que A diz a B

    C, enquanto ghost-writer, escreve um livro de A para leitores B

    Privados A fala consigo mesmo sobre seus planos

    A escreve lembrete a si mesmo sobre seus planos

    Nos cenrios no-pessoais os monlogos so bastante representativos. Referem-se prtica na qual uma pessoa fala com pouca ou nenhuma possibilidade de interrupo ou tomada de turno por parte dos membros da audincia. As diversas variedades do monlogo no excluem a presena de uma audincia, mas a natureza deste cenrio no conversacional: as pessoas falam para si mesmas, enunciando palavras formuladas por elas para a audincia a sua frente, e da audincia no se espera interrupo.

    Os cenrios pessoais, por sua vez, so tpicos da conversao face a face, e mesmo da conversao telefnica. Trata-se de trocas de turno relativamente livres entre os participantes, que so no mnimo dois, e constituem a unidade bsica de uso da linguagem. O cenrio pessoal, de fato, inclui os demais cenrios, j que se trata de uma modalidade em que as caractersticas scio-interacionais da linguagem parecem se atualizar com muita freqncia. Os demais cenrios so sempre denidos com relao ao modo como compartilham caractersticas dos cenrios pessoais e ao modo como diferem destes.

    Nos cenrios institucionais, por exemplo, os participantes se engajam em trocas discursivas que lembram a conversao cotidiana, face a face, mas estas trocas so limitadas por regras da instituio controladora (conjunto de coeres construdas anteriormente s atividades de fala) o uso da lngua na sala de aula enquadra-se tambm neste tipo de cenrio. Os turnos de fala, geralmente, so controlados por um lder, e apresentam outros tipos de restrio, especialmente no que se refere estrutura de participao dos falantes.

  • 275

    Estrutura de ParticipaoModelo de participao de falantes e ouvintes em uma atividade de fala. Veja a prxima seo para exemplos.

    Os cenrios prescritivos so caractersticos dos eventos religiosos, rituais

    sagrados e jurdicos, a exemplo dos membros de uma igreja recitando palavras de um livro de orao, de noivos fazendo seus votos na cerimnia de casamento, entre outras. H um alto grau de dependncia em arranjos feitos anteriormente, normalmente xados em cenrios escritos, ou em ritos transmitidos verbalmente de gerao a gerao.

    Ilustrativo dos cenrios ccionais, que tambm tm alta dependncia de cenrios escritos, elaborados por outras pessoas de antemo, o uso da linguagem por um ator num ato teatral, representando Hamlet. A co representa um nvel de atividade que se sobrepe ao uso pessoal da linguagem no dia-a-dia das conversaes. No entanto, no raro, ver que a co se benecia da realidade quando, por exemplo, os atores improvisam em sua atuao ou interagem com o pblico, etc. O que dizer, por exemplo, do cenrio de linguagem utilizado pelos participantes de um reality show? O cenrio ccional parece congurar-se mais um suporte para o uso da linguagem, que ocorre sempre de forma pessoal, seja institucional, seja prescritiva, seja mediado pela escrita, como o caso de um executivo que dita uma carta a sua secretria endereada a um parceiro de negcios e faz uso caracterstico do cenrio mediado. Cenrios ccionais so, portanto, um caso em que a audincia se congura como espectadora sem interferncia na atividade desenvolvida e o uso de linguagem concerne to somente aos participantes envolvidos no suporte ccional.

    J em cenrios privados, segundo Clark, as pessoas falam consigo mesmas sem a inteno de que os outros reconheam o enunciado como um turno de fala. Um dos exemplos apresentados quando se xinga um outro motorista por ter ultrapassado pela direita, mesmo sabendo que ele no pode ouvir. Mesmo nos cenrios privados, o falar consigo mesmo, no deixa de ser dialgico. Quando digo um improprio contra algum que no pode me ouvir, ainda assim me dirijo a esta exata pessoa, ou ao conjunto de todas as pessoas, que naqueles termos, possam representar o meu interlocutor surdo.

    Todos os demais cenrios so, em nossa opinio, subtipos dos cenrios pessoais mais bsicos, j que envolvem, em maior ou menor grau, uma atividade verbal de interao face a face. Os cenrios no-pessoais, por exemplo, no podem prescindir uma audincia interlocutora, ainda que relativamente se realizem sem a interao verbal freqente entre falantes e ouvintes.

    3. Mtodos de Investigao em Lingstica Interacional

    Princpios de Anlise Etnometodolgica da conversao

    A Anlise da Conversao preocupa-se particularmente com os recursos lingsticos. Isto no signica fazer uma descrio geral de uma gramtica, mas dos processos usados pelos falantes para construir o sentido, assegurar a compreenso mtua e tornar possveis as atividades de linguagem ordinrias.

    A organizao da conversao pode ser descrita como uma realizao coletiva, interna e metdica dos participantes. A organizao dos recursos lingsticos coordenada com a prpria organizao da conversao, que se estrutura a partir de

  • 276

    elementos como os turnos de fala, os tpicos discursivos, o sistema de participao dos falantes, e regras de simetria e assimetria, os papis sociais de falantes e ouvintes, dentre outros.

    Segundo Marcuschi (1986, p.), a Anlise da Conversao teve seu incio na dcada de 60 a partir da Etnometodologia e Antropologia Cognitiva e seu estudo era eminentemente organizacional, pois se ocupava da descrio das estruturas da conversao e seus mecanismos organizadores. A partir de J.J. Gumperz (1982) e da Sociolingstica Interacional, tendeu observao de aspectos como a especicao dos conhecimentos lingsticos, paralingsticos e socioculturais que devem ser partilhados para que a interao seja bem sucedida. Esta perspectiva ultrapassa a anlise de meras estruturas e atinge os processos cooperativos presentes na atividade conversacional: o problema passa da organizao para a interpretao (grifo do autor).

    A conversa, sob esta perspectiva, organizada de modo que haja negociao entre os participantes, ou seja, para que realmente ocorra interao. Os diversos assuntos abordados pelos falantes so denominados, segundo a anlise etnometodolgica, tpicos. Numa situao de interao os tpicos podem continuar, mudar ou simplesmente chegar ao m, pela negociao dos falantes. Para falar sobre os tpicos, os participantes organizam a conversao em turnos que constituem a oportunidade que cada um tem de dar sua contribuio para a conversao, a vez que cada falante tem de se expressar sobre dado tpico. Os turnos geralmente no so distribudos automaticamente aos falantes. Um interlocutor pode, em dado momento, querer tomar a palavra de quem est falando e, para isso, sobrepe sua voz at que o outro ceda. Este procedimento denominado assalto ao turno. Em interaes simtricas, todos os participantes tm direitos iguais ao uso dos turnos; isto se verica em conversaes informais entre amigos ou familiares. J em interaes consideradas assimtricas, como entrevistas de emprego, consultas mdicas, e at em sala de aula, um dos integrantes da conversao possui os domnio sobre os turnos e os distribui a seu critrio. Para Drew e Heritage (1992) as interaes assimtricas so tpicas dos ambientes institucionais e as relaes entre prossionais e leigos se do em termos de pares adjacentes, ou seja, os prossionais determinam os tpicos e controlam os turnos atravs de perguntas, as quais os leigos somente respondem, mas no opinam sobre tpico, nem fazem assalto aos turnos. Desse modo, a conversa iniciada, mantida e concluda pela vontade de apenas um dos interlocutores.

    organizao seqencial da falaa)

    Galembeck (2003) 1 aponta como principal caracterstica da conversao o fato de que os interlocutores alternam-se nos papis de falante e ouvinte. O turno conversacional seria ento a participao de cada um dos interlocutores, ou seja, o exerccio da fala, que ocorre quando um interlocutor passa de ouvinte a falante.

    O turno de fala constitui a organizao de base da conversao e da interao em geral. Ele permite saber como os participantes realizam de forma local e conjunta a coordenao de suas condutas conversacionais. Essa coordenao a condio fundamental das atividades socialmente organizadas (Cf. CLARK, 1992, 1996).

    A m de procederem tomada, transio e manuteno da fala, os interlocutores investigam o desenvolvimento do turno para identicar ou produzir, de 1 GALEMBECK, P. T (2003). O Turno Conversacional. In: Preti, D. (Orgs). Anlise de Textos Orais. So Paulo: Humanitas, FFLCH/USP, pp 65 92.

  • 277

    modo reconhecvel, os pontos em que um turno termina e o outro comea. A tarefa de reconhecimento da nalizao de um turno revela uma multiplicidade de dimenses sintticas, pragmticas, prosdicas, mas tambm gestuais, visuais e motrizes.

    Os turnos tm funo essencialmente interacional. Os interlocutores acompanham o desenvolvimento do tpico conversacional atravs da insero de elementos fticos (mostrando o funcionamento do canal comunicativo), como os marcadores conversacionais: uhn, uhn, n? certo?; ou das tentativas de transio e tomada da fala. Nesses momentos, os falantes identicam momentos no turno do outro em que a colaborao do interlocutor solicitada e assumem a vez na conversao. Muito freqentes tambm so os assaltos ao turno um falante invade a fala do seu interlocutor e toma a posse do turno.

    As regras que regulam a organizao dos turnos de fala so geralmente utilizadas, sem que os falantes necessariamente as mencionem: elas remetem a um saber tcito, que se espera que o falante adquira na prtica de interao. O carter ordenado da conversa se torna observvel por sua manifesta obedincia aos princpios organizacionais, mas tambm quando as expectativas normativas so violadas e pelas tcnicas disponveis para reparar as violaes e restabelecer a ordem.

    Um falante pode entender como inacabados os enunciados do outro falante e ler as hesitaes que marcam o nal do segmento do interlocutor como manifestando uma busca de palavras ou mesmo um pedido de ajuda. Mesmo que haja a impresso de que a conversao se desenrola de forma catica, ela possui, no obstante, carter ordenado, que manifestado no fato de que h a passagem da fala de um falante ao outro, e que esta passagem se realiza de forma metdica, segundo um mecanismo sistematicamente organizado (Cf. KOCH, 1992).

    conversao tpicab)

    O tpico da conversao apresentado como o assunto sobre o qual se fala no evento comunicativo. Pode-se dizer que a anlise da conversao desenvolve uma abordagem do tpico articulado em torno das trs propriedades seguintes (MONDADA, 2003, p.2):

    O tpico uma categoria dos falantes ou seja, trata-se de um elemento pelo qual os falantes se orientam durante a atividade interacional, dando ateno no somente aos propsitos da interao, mas tambm aos processos e aos recursos que tornam possvel assegurar a continuidade, a coerncia e o desenvolvimento dos temas da conversao.

    O tpico uma realizao da interao ele surge de uma maneira dinmica na interao, podendo ser estabilizado ou transformado por ela. Assume formas e contornos especcos, de acordo com a organizao seqencial da interao. Alm de ser um fenmeno dinmico, o tpico no surge de um s falante, nem de processos enunciativos ou cognitivos individuais, mas denido coletivamente pelos participantes na interao. Fvero (2003) arma que ele uma atividade construda cooperativamente, isto , h uma dependncia pelo menos parcial de objetivos entre os interlocutores.

    O tpico congurado pelos processos elaborados durante a interao

  • 278

    o tpico construdo nas atividades interacionais dos falantes, que exploram, de maneira situada, recursos lingsticos variados relativos organizao seqencial da interao.

    Fvero (2003, p.47) atribui ao Tpico (em sua terminologia, tpico discursivo) duas propriedades: centrao e organicidade. A centrao dene-se como falar-se acerca de alguma coisa, implicando a utilizao de referentes explcitos ou inferveis, ou seja, as marcas no texto para se remeter a algo que j foi dito ou algo que, embora no tenha sido dito, seja do conhecimento dos interlocutores. Essa prioriedade norteia o tpico de tal forma que, a cada nova centrao possvel falar-se em um novo tpico.

    A propriedade da organicidade refere-se relao de interdependncia que um tpico denominado supertpico (ST) tem como seus tpicos co-constituintes (T) e seus subtpicos (SbT). Esses conceitos se organizam em uma estrutura denominada Quadro Tpico, abaixo ilustrada (FVERO, 2003, p.55):

  • 279

    O processo de segmentao do tpico, seus limites de contedo, feito atravs de marcas conversacionais que apontam para a continuidade ou a descontinuidade de um tpico em andamento. Essas marcas podem ser: facultativas que tm a funo especializada de alterar ou manter o tpico em andamento; e multifuncionais marcas que tm funo genrica, no determinada, podendo ora mudar ora manter a continuidade do tpico.

    Fvero enfatiza que a conversao no um enleiramento aleatrio de enunciados, ao contrrio, ela altamente estruturada e passvel de uma anlise formal. Assim, o tpico coerente com a natureza dinmica e estruturada do uxo conversacional.

    estrutura de participao e ordenao dos turnos de falac)

    De acordo com Goffman (1974, p. 565), os interlocutores de uma interao face a face so do tipo raticados e no-raticados.

    Raticados

    Grupo de ouvintes presentes na interao a quem um falante est efetivamente dirigindo a palavra. Isto pode ocorrer de modo geral o falante dirige-se a todos os participantes ou focalizadamente quando o falante se dirige a indivduos especcos.

    No-raticadosSo os que, em um dado momento da conversao, o falante no lhes dirige a palavra.

    Mesmo entre os ouvintes raticados h aqueles que so endereados e no-endereados. Numa conversao entre pares o interlocutor necessariamente endereado. Mas em se tratando de conversa entre mais de duas pessoas, caso muito freqente no dia-a-dia, ocorrero momentos em que apenas um deles ser endereado, enquanto os outros, apesar de raticados sero no-endereados (GOFFMAN, 1979, p. 78). A raticao de interlocutores pode se dar atravs de pistas no-verbais do falante, como o ajuste do corpo e da cabea na direo do ouvinte focalizado ou a freqncia e durao com que os falantes olham para os interlocutores raticados. Estes, muito provavelmente, sero os prximos falantes. Pode haver tambm a escolha de participantes raticados atravs de pistas verbais, como os encadeamentos dos pares adjacentes, dos mecanismos de categorizao do grupo social (SACKS, 1972), e ainda pela identicao dos interlocutores raticados atravs de seus nomes.

    Alm da distino entre participantes raticados e no-raticados, Goffman (1979, 1998, p. 77) considera que mesmo que no sejam participantes ociais de uma conversao, as pessoas podem ouvir por acaso, ou faz-lo propositadamente, resultando em uma intromisso. Tal ocorre porque mesmo os participantes raticados podem no estar prestando ateno e algum pode estar escutando mesmo sem ser um participante raticado. Goffman classica estes ouvintes em participantes eventuais ou circunstantes que, dependendo da forma como exploram a oportunidade de acesso conversao, subdividem-se em ouvintes por acaso (circunstanciais) e no autorizados.

    Fundamentado nesta base terica, Clark (1996, p. 14) apresenta uma estrutura global de participao nas atividades conjuntas que envolvem participantes e no-participantes. Semelhantemente a Goffman, ele classica os participantes raticados

  • 280

    como o conjunto que envolve tanto o(s) falante(s) como os ouvintes endereados. Tambm so raticados os participantes que esto envolvidos no presente momento da conversao, mas que no so correntemente endereados. A estes, Clark denomina de participantes secundrios (side participants). Todos os outros ouvintes que esto fora desta trade so circunstantes (ou overhearers). Os circunstantes no tm direitos ou responsabilidades na atividade em curso e podem fazer parte da audincia por acaso (bystanders), devido proximidade fsica no intencional com a atividade conjunta em curso, ou aproveitar-se da situao de forma sub-reptcia, intencionalmente, sem o conhecimento dos participantes. Clark denomina estes ltimos de eavesdroppers ns os chamaremos, nos termos de Goffman, de audincia no autorizada, ou intrometidos.

    Estrutura de participao (Adaptado de CLARK, 1996, p. 14):

    No pensamento de Philips (1976), com os ouvintes ocorre o mesmo tipo de comportamento em relao aos seus interlocutores (falantes): podem ser raticados e no-raticados. Em sala de aula, por exemplo, os alunos para os quais os professores se dirigem de forma focalizada, tambm olham para eles com maior freqncia e durao. O sujeito focalizado demonstra maior nmero de pistas no verbais, consideradas sinais de ouvinte um ndice que indica ao professor que ele est sendo ouvido, e por isso, raticado. Ocorre, tambm, que alguns alunos, quando no so focalizados, podem apresentar comportamento idntico ao daqueles focalizados. Tal comportamento indica que o professor est sendo raticado e, portanto, pode selecionar tais alunos como interlocutores focalizados. Estes bons ouvintes assumem um comportamento emptico com relao ao professor, j que este, na falta de raticao dos alunos diretamente focalizados, selecionar aqueles que estiverem prestando ateno a m de evitar falar sozinho (Cf. PHILIPS, 1976, 1998, p. 22).

    alinhamento dos participantesd)

    Gumperz (1982) destaca o carter interativo da comunicao, por apont-la como uma atividade social, onde os esforos coordenados de dois ou mais indivduos so exigidos. Desse modo, a comunicao s atingida, quando os movimentos de um interlocutor provocam respostas por parte de outro, e isto com base em um inter-relacionamento entre um processo inicial de inferncia global e as inferncias locais geradas pelas trocas conversacionais subseqentes.

  • 281

    Este julgamento inicial feito atravs do enquadramento da interao num modelo global. O indivduo apresenta, inicialmente, uma srie de expectativas acerca do que est se passando no contexto comunicativo antes de fazer qualquer inferncia sobre o sentido do que est ocorrendo. A esse conjunto de expectativas d-se o nome de Frame, ou enquadramento, ou ainda, moldura.

    Frame (freime) ou Enquadre

    O conceito de Frame foi utilizado por Goffman (1972) para designar o quadro do qual os participantes de uma interao face a face fazem parte em uma atividade de fala. As interpretaes de sentido dos enunciados so feitas com base no que ocorre ao tempo da interao, e esta denida como um quadro ou esquema identicvel e familiar aos participantes.

    Juntamente noo de frames, Gumperz aponta a teoria do alinhamento, ou footing, com o interesse de denir o papel ou a postura adotada pelos participantes da interao. O alinhamento ocorre toda vez que h uma mudana no enquadramento da situao vivida pelo falante. O indivduo que tem um papel social no trabalho, outro ou outros em casa, como marido, pai, lho, etc., outro com os amigos, est constantemente submetido ao alinhamento e tomada de uma nova postura, cada vez que muda o enquadramento de sua interao com outros falantes da comunicao. Assim, ele assume uma postura no trabalho, outras em casa e outras no clube, com os amigos, de acordo como os vrios enquadramentos possveis nos processos interacionais.

    Footing (futin) ou Alinhamento

    Footing diz respeito ao alinhamento, a postura, a posio, a projeo de um participante em relao ao outro, a si mesmo e ao discurso em construo. A projeo pode ser mantida atravs de uma faixa de comportamento, comumente vinculada linguagem a marcadores paralingsticos, como segmentos prosdicos. (Cf. GOFFMAN, 1979, 1998, p. 74-5).

    De acordo com Goffman (1979, 1988, p. 89), o desenho da estrutura de participao e formato de produo que fornece a base estrutural para a anlise de mudana de footing. O autor (p. 75) introduziu o termo footing como outra forma de falar sobre uma mudana em nossos enquadres de eventos, uma mudana no alinhamento que adotamos para ns mesmos e para os outros presentes expressa na maneira de lidarmos com a produo ou recepo de um enunciado.

  • 282

  • 283

    UNIDADE III

    FUNCIONALISMO

    J tivemos um primeiro contato com a Sociolingstica e com a Lingstica Interacional, que so reas de pesquisa anadas com o funcionalismo. Esta unidade 3 tambm dedicada ao funcionalismo, mas agora tentaremos esboar uma viso de conjunto dos diversos tipos de estudo que se abrigam sob essa denominao, e um pouco como surgiram.

    1. A funo estabelece a forma

    Vimos na Unidade 1 que h vrias maneiras de compreender o que formalismo, algumas mais gerais e outras mais especcas. O que se conhece hoje como funcionalismo em Lingstica principalmente um conjunto de reaes s caractersticas mais fortes do formalismo em especial do tipo de formalismo praticado pelos gerativistas e que se desenvolveu com mais vigor a partir dos anos 1980. Mas, assim como o formalismo, o funcionalismo tem muitas nuances.

    Se considerarmos o funcionalismo de maneira ampla como zemos inicialmente com o formalismo, na Unidade 1 ou seja, como a postura de estudar a linguagem associada s situaes de comunicao, e de acreditar que a forma da linguagem resulta do uso, o funcionalismo tem uma longa histria. Podemos pensar, por exemplo, na antiguidade e importncia dos estudos de retrica, e nas teorias dos pensadores do romantismo acerca das lnguas. Vejamos o que diz Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), por exemplo, em seu Ensaio sobre a origem das lnguas, de 1781:

    As lnguas formam-se naturalmente segundo as necessidades dos homens; elas transformam-se e se alteram segundo as transformaes dessas mesmas necessidades. (ROUSSEAU 1781 [1998]: 188)

    Essa passagem de Rousseau no destoa de textos dos atuais funcionalistas: a lngua transforma-se pelo uso, e tambm pelas atividades das pessoas que a falam.

    Lembremos ainda que os lingistas histrico-comparatistas do nal do sculo XIX davam nfase mudana, transformao das lnguas, e isso era muitas vezes acompanhado de hipteses acerca da cultura dos povos antigos (por exemplo, as especulaes acerca da cultura do povo que teria falado o indo-europeu), do contato entre as culturas (para explicar os emprstimos), e da psicologia dos falantes. Scott DeLancey, numa conferncia sobre funcionalismo que voc encontra (em ingls) em , arma que o funcionalismo moderno uma volta concepo dos lingistas do nal do sculo XIX. Autores da poca, como Whitney, von der Gabelentz, Hermann Paul, e outros, entendiam que a estrutura lingstica deveria ser explicada em termos funcionais, cognitivos e psicolgicos. A linguagem, para muitos lingistas do nal do sculo XIX, era um produto da histria, e isso de certa maneira retomado pelos funcionalistas atuais.

    UNIDADE III

    FUNCIONALISMO

  • 284

    Vamos acompanhar aqui a diviso tradicional entre o funcionalimo europeu e o norte-americano, porque ela, apesar de simplicar um pouco a situao das pesquisas, pode ser til para vermos a variedade de abordagens funcionalistas.

    2. O funcionalismo europeu

    Na Unidade 1 mencionamos, sem detalhar, que o funcionalismo tambm est ligado ao desenvolvimento de escolas saussureanas. Isso parece conitar com a idia de que a postura de Saussure difundida no Curso de lingstica geral seria formalista. Entretanto, bom ter em mente que o Curso bastante complexo, por um lado, e por outro que muitas armaes esto ali apenas esboadas, o que permitiu desenvolvimentos diversos e coexistncia com outras direes de pesquisa. O funcionalismo se fez mais pre