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Universidade Federal do Rio de JaneiroMuseu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Êxodos e refúgios.Colombianos refúgiados no Sul e Sudeste do Brasil
Ángela Facundo Navia
Rio de Janeiro
2014
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QUARTA PARTE. O tempo: a integração ou o retorno da vida
8. Oitavo capítuloRitmos e tempos do refúgio
O exílio, como nos diz Said (2001), é uma “fratura incurável entre um ser humano e um
lugar natal, entre o eu e o verdadeiro lar” (op. cit., p. 46). Nessa parte da tese, gostaria de
abordar essa ruptura que configura o exílio na vida de algumas das pessoas com as que me
encontrei, assim como a diferença entre essa experiência existencial do exílio e a experiência
administrativa do refúgio (não menos configuradora de subjetividades) tal como tem sido
descrita ao longo do texto. Em segundo lugar, interessa-me reflexionar sobre o fato de que a
ruptura que é instauradora de um exílio – e que tem lhe servido de base moral à administraçãodo refúgio ao interpretá-la como a origem de um ‘fundado temor de perseguição’ – não
apenas é espacial, mas temporal.
O tempo que foi interrupto bruscamente, que nunca voltou ao ritmo que marcava a vida de
todos os dias e desabilitou o espaço para ser habitado pelo cotidiano, parece ser um dos
aspectos que alguns autores associam à figura contemporânea do refúgio e que podemos,
segundo Said (2001, p. 46), pensar como um dos marcadores do exílio. Esse “evento crítico”,
nos termos de Veena Das (1997, p. 6-8), atravessado por uma experiência de violência que
supera a capacidade da linguagem para significá-lo e enunciá-lo, é paradoxalmente exigido,
convertido em um requisito narrativo, pelos agentes que administram o refúgio no Brasil,
buscando em sua exposição controlada, em diversos formatos de entrevista e interação, um
passado de temor e um temor digno de refúgio. Ou seja, buscando na narração de um evento,
quase inenarrável, as “origens legítimas do medo” (GOOD, 2006, p. 98) que facilitam a
apresentação do refúgio como a prática de governo adequada sobre determinadas populações
em êxodos marcados por determinados sofrimentos.
Além dessa ruptura temporal, ou quiçá em parte por ela, o tempo será abordado nesta parte
como um elemento fundamental no governo dos refugiados e na recomposição de um mundo
possível no exílio. Interessa-me examinar essa dimensão em relação à proposta de Adriana
Vianna (2011, p. 8) que, inspirada em Veena Das, sugere analisar o “trabalho que se exerce
sobre e no tempo” como uma peça fundamental em alguns processos por meio dos quais são
construídas subjetividades e moralidades. A relevância de diferentes dimensões temporais
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ou ritmos (urgência, imediatismo, etapas escalonadas) na construção de uma “história
verdadeira de refúgio”, o tempo da espera para ser reconhecido, os prazos dados aos
reassentados para a integração e para o recorte dos benefícios financeiros, entre outros, são
elementos cruciais nos processos que performam aos refugiados.
Levando em conta as discussões que assinalam que o tempo é em si mesmo um “portador de
significado” e alertada pelos “usos opressivos” que este consente e facilita (FABIAN, 1983,
p. 2), gostaria de indagar algumas das consequências sociais da utilização do tempo como
categoria que permite a construção de determinadas imagens e interpretações no universo
institucional brasileiro do refúgio. Iconografias e exegeses que, por sua vez, servem de
material para tecer as relações entre sujeitos refugiados e diferentes agentes de Estado. Asdiversas leituras dos tempos dos sujeitos assim como dos países envolvidos no refúgio de
colombianos no Brasil colaboram na inscrição dos corpos e das histórias não apenas em
espaços sociais mas também em momentos de uma escala de progresso na carreira que
supostamente é seguida por todas as vidas. Essa inscrição também está marcada por uma
escala universalizante segundo a qual tanto os países quanto os sujeitos que os representam
na migração estariam em um momento civilizatório diferente daquele do país de acolhida.
Os usos do tempo servem para explicar a procedência dos refugiados “vindo” desdediferentes passados, mais ou menos bárbaros e violentos, assim como para justificar o difícil
trabalho civilizador do presente sobre um futuro que se presume como o da “integração
exitosa” na “sociedade brasileira”.
O tempo também se faz pressente com a ideia mesma da provisoriedade 128 presumida do
refúgio (SAYAD, 1991, p. 51) e de seus processos de solicitação. Provisoriedade que
termina por se prolongar e se eternizar como a condição que marca as membresias temporais
128 A respeito da migração, Sayad (1991) apontou uma não correspondência entre o direito e o fato. Se, emdireito, supõe-se que a migração é um estado provisório, sua característica, de fato, é que é uma situaçãodurável. Assim, para o autor, não se saberia se trata-se de um estado provisório que se quer prolongarindefinidamente ou se trata-se de um estado duradouro, mas que se quer que seja vivido com um intensosentimento de provisoriedade (op. cit., p. 51). Assinalando essa questão, Sayad proporá que se trata de uma“ilusão coletiva” de um estado que não é nem provisório, nem permanente. Nas palavras do autor: “Un étatque n’est admis tantôt comme provisoire, qu’a condition que ce «provisoire» puisse durer indéfiniment et,tantôt, comme définitif qu’a condition que ce «definitif» ne soit jamais énoncé comme tel” (Ibidem). Pensandonas inúmeras coincidências desses postulados com a lógica administrativa dos refugiados espontâneos,
podemos observar a existência de contradições similares segundo as quais o refúgio é uma situação provisóriaque tem de ser atualizada a cada determinado tempo e que pode ser rescindida quando seja presumido queexistem condições para que os refugiados apelem novamente à proteção de seu próprio país.
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e restritas que lhes são outorgadas na sociedade brasileira a esses sujeitos refugiados e a
muitos outros imigrantes. Em franco contraste com esse caráter provisório, ergue-se
discursivamente o caráter “perdurável” com o qual é construída e apresentada – na
linguagem do Acnur e do Conare – a “solução duradoura do reassentamento” (ACNUR,
2011a). Sem que essa durabilidade signifique uma membresia menos restrita, presume-se
que os reassentados não retornaram ao seu país, de modo que eles se tornam a matéria-prima
de futuros brasileiros, ora por sua própria transformação com o passar dos anos, ora por sua
descendência nascida em – e para – o território brasileiro.
Também me interessa, por meio dos aspectos supracitados e do acúmulo de trabalhos como
os de Giralda Seyferth (1993, 1997, 2000, 2011), interrogar a ideia mesma de integração queé apresentada pelos agentes de refúgio como o objetivo principal dos programas,
notadamente do reassentamento. Isso, levando em conta os diferentes tempos/ritmos que são
propostos, conteúdos e resultados da figura contemporânea do refúgio brasileiro, vista por
meio da recepção de nacionais colombianos. Por último, considero que existe uma sorte de
tempo mítico, que todos esses outros tempos, associados à figura salvadora do refúgio,
ajudam a construir. O relato do refúgio é inscrito pelos agentes da tríade em um tempo
brasileiro que inclui todos os tempos da migração. Tempo que é resumido e caracterizadocomo – tanto pelos agentes da tríade quanto pela sociedade civil ampla – por uma perene
constituição mestiça, uma sempiterna abertura vanguardista para a diferença cultural e uma
tradição pouco escrutada do Estado-nação brasileiro como um amável receptor de povos em
êxodo.
8.1. Demorando muito, recebendo pouco: o quanto sempre defasado com o quando
Pues el día xx de xxxxxx nos visitó el ACNUR de Brasilia, que es una visita alaño que hacen para todos. Y expusimos el caso, pero ellos dicen que los ojos delACNUR de aquí son los del CDDH, que cualquier inquietud se la digamos alCDDH. O sea, la misma vaina. Y un año de reasentamiento es corto, no queremosque nos mantengan toda la vida. El tiempo está bien, siempre y cuando ellosestudien bien el perfil, los trámites sean rápidos, lo guíen y lo orienten bien a uno.Y que las ayudas, especialmente en el estudio, sean oportunas. Pero lo único quehacen es dilatar todo, todo lo demoran, todo es un trámite y demasiada‘tramitología’. Haciendo tiempo para que se acabe el año y ya uno no tenga másderecho a nada […] Nosotros teníamos una fábrica pequeña con cuatro máquinasy el resto de lo necesario y allá [en Ecuador] nos dijeron que acá nos ayudabancon un micro emprendimiento que era muy bueno y que nos daban estudio a todospara quedar bien preparados y podernos defender. [Pero] mi estudio yo lo pago ypara el de mis hijos y mi esposo dieron para un par de pasajes y no más. Nos tocópagar el resto a nosotros. Lo peor es que así ¿uno cómo va a ahorrar? y antes deque se cumpla el año le mandan la carta de desalojo y están hasta amenazando con
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policía y todo. Usted sabe alquilar una casa cuánto cuesta. Hay que tener por lomedos 2500 ahorrado. (Reassentada)
Apesar das diferenças do que acontece ao chegar ao território brasileiro entre os solicitantes
espontâneos de refúgio e os reassentados, uma comum sensação de impotência e desespero
foi descrita pelas pessoas em ambas as situações. A descrição que as pessoas fazem pode ser
entendida como uma luta constante e desigual – que quase sempre se sente perdida – contra
a “gestão adversa do tempo” conforme a fórmula de Vianna (2011, p. 12). Gestão que se
acompanha do que eles denunciam como descuido e desinteresse por parte dos agentes que,
se supõe, deveriam velar pelo seu bem-estar. Para eles, é particularmente difícil essa
combinação da espera – como um tempo que passa sem que nada passe ou em que passa o
inapropriado – e a precariedade que eles experimentam. Precariedade que é, além disso,
continuamente enunciada pelos agentes e exibida nos lugares e nas coisas da administração
de refugiados (postos administrativos, moradias e mobiliário para o reassentamento,
albergues, etc.). Parece que, ao estabelecer um vínculo com o universo institucional do
refúgio, as pessoas se encontram, de repente, congeladas ou colocadas em câmera lenta em
um terreno pantanoso de dificuldades e carências.
Para abordar as expressões e as experiências da precariedade, baseio-me na proposta deJudith Butler. Para a autora, existiriam duas formas – às vezes, opostas – de entender a
precariedade129, ou mais exatamente duas formas de apreender uma vida, ou um conjunto de
vidas, como precárias (BUTLER, 2009, p. 14). Além de uma primeira precariedade, que
poderíamos entender como existencial na medida em que caracteriza a existência corporal
dos sujeitos expostos sempre a forças sociais, a autora define uma concepção mais
especificamente política da precariedade. Essa última, sempre vinculada com a primeira
precariedade exposta, estaria relacionada com a forma em que existem atribuiçõesdiferenciais de precariedade para determinados corpos (BUTLER, op. cit., p. 16). Nesse
caso, considero que os marcos por meio dos quais as vidas das pessoas são dotadas de valor
diferencial constroem diferentes tipos de reação diante delas. Ao mesmo tempo que a
precariedade existencial das pessoas aparece como motivadora de uma ação de salvação, as
relações com elas são construídas de modo que é reforçada a ideia de um humano precário
como uma condição que possibilita uma boa dose de indiferença sobre seu sofrimento.
129 Na tradução ao castelhano do livro Marcos de Guerra de Butler, é explicado que foi traduzido o neologismoinglês precarity por precaridad e precariousness por precariedad .
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Simultaneamente, as pessoas, ao identificar nesses marcos uma produção de precarizações,
reagem identificando-as, nomeando-as como intoleráveis e denunciando-as; tudo isso como
uma forma possível de impedir que esses marcos as afetem em um nível existencial no qual
suas vidas já não sejam mais reconhecidas como vidas.
O trabalho e a disputa sobre o tempo é fundamental nessa luta para preservar o valor das
vidas. Como foi explicado por Gladis na citação que inaugura este apartado, para ela, “ el
tiempo está bien”. O que está mal é sua gestão, e a lentidão com a qual os agentes fazem as
coisas, é o poder que limita suas ações e anula sua capacidade de se preparar para “se
defender ” sozinha no futuro. Para Gladis, os agentes estariam “haciendo tiempo para que se
acabe el año” e, assim, se cumpra o prazo previsto para o final dos benefícios oferecidos aosreassentados. Essa feitura inadequada do tempo, essa dilatação de trâmites cotidianos, que
acaba por se apoderar dos meses, foi uma queixa frequente das famílias reassentadas com as
quais falei, especialmente quando se referiram (ou se encontravam em) seus primeiros anos
de vida no Brasil.
Não apenas o tempo lhes pareceu “insuficiente”, mas a constante enunciação dos
administradores da falta e da carência fez dos primeiros meses uma etapa mais angustiosa,precipitando a sensação do final iminente dos benefícios e do prazo para a integração.
Segundo Sandra e Silvio, por exemplo, os agentes de reassentamento foram tão insistentes
sobre o caráter limitado dos recursos, em quantidade e tempo, que eles teriam chegado a
considerar a renúncia a alguns meses mais de benefícios financeiros, se isso significasse que
poderiam se desfazer dessas advertências contínuas que eles sentiam como sendo ameaças e
que terminavam desgastando a tranquilidade da família. Afinal, ao concluir o primeiro ano,
os agentes do programa lhes outorgaram mais um mês de apoio financeiro, mas a famíliadeveu assinar um documento “se comprometendo a não pedir mais”. Depois desse mês
“extra”, Silvio, que havia sofrido um acidente de trabalho, disse que, tendo em vista as novas
circunstâncias, ele havia tido de “ameaçar” a ONG “con hacer un escándalo mediático”. A
essa ameaça ele lhe atribui o fato de que o programa tenha aceito cobrir os gastos durante
seis meses mais.
Segundo alguns dos administradores, atuais e já retirados do programa de reassentamento,
essa constante repetição sobre os limites dos benefícios se fez necessária porque os primeiros
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grupos de pessoas reassentadas, apesar de terem sido informados, queixaram-se da falta de
clareza sobre os benefícios e a duração do apoio do programa. Além disso, porque, segundo
eles, as pessoas chegavam com muitas expectativas sobre a assistência que receberiam e
sobre a vida no Brasil, de modo que, com os primeiros grupos, foi preciso, em alguns casos,
renegociar com o Acnur novos prazos para a suspensão dos benefícios econômicos.
A decisão para evitar essas situações, que os agentes da tríade julgaram inconvenientes, foi
combinar a constante enunciação da falta (de recursos, de tempo, de pessoal) com a seleção
de pessoas com baixo perfil (referindo-se basicamente a seu nível educativo e a seu suposto
pertencimento de classe) de quem supunham que não teriam grandes expectativas sobre a
“nova vida no Brasil”. Também se incorporou um cálculo que antecipava um mal-estar nomomento final dos auxílios econômicos, de modo que usualmente se estabelece um tempo
possível de benefícios, mas se oferece um menor. Se, no momento de retirar a assistência, a
inconformidade das pessoas vira um mal-estar difícil de controlar, existe a possibilidade de
dar uns meses mais de cobertura econômica que já estavam contemplados como uma opção
desde o começo. Mais uma vez e, ainda com mais insistência, é repetido que esses benefícios
serão os últimos entregues e que são concedidos em virtude da avaliação da situação como
“extraordinária”.
Segundo as famílias que entrevistei, os limites da assistência são informados antes da
viagem, mas essa informação vira repetição explícita e constante quando as pessoas chegam
ao Brasil. Situação que contrasta com o momento da apresentação do programa em que os
candidatos a reassentamento são contatados no Equador. Mesmo que as pessoas soubessem
que o programa ia dar assistência por um tempo determinado, não se imaginavam que esse
tempo assistido seria marcado pela difícil gestão dos benefícios oferecidos, fazendo dele umtempo insuficiente. O primeiro contato dos agentes da Missão de Seleção e os candidatos a
reassentamento parece ser um momento de sedução. Embora sejam expostas algumas das
realidades sociais problemáticas do país, assim como os limites do reassentamento, o
objetivo também é, segundo os próprios agentes que participam dessas missões, convencer
as pessoas a aceitarem o reassentamento no Brasil.
Como visto na terceira parte da tese, a seleção de refugiados e reassentados implica um
esforço por individualizar as pessoas e suas histórias, outorgando aos detalhes de cada “caso”
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um lugar preponderante e um caráter de particularidade. Essa sensação de estar vivendo algo
especial, de estar sendo eleitos entre muitos outros para serem salvos, é reforçada com outros
atos de espetacularização que algumas das pessoas reassentadas, especialmente as crianças
e os jovens, relataram com entusiasmo. Por exemplo, foi motivo de exaltação nos relatos o
fato de terem sido levados pelo Acnur, escoltados até o aeroporto e de terem tomado um voo
(para muitos deles o primeiro da vida) e, além disso, de ser parte de uma operação de uma
agência internacional. Usando as palavras de um dos jovens: “ fue como en las películas”, já
que “nos dieron distintivos secretos del Acnur ”, referindo-se a um kit de desenho com o
logotipo do Acnur que é entregue às crianças dos casais reassentados com instruções de que
seja portado em um lugar visível de modo que possam ser reconhecidos pela equipe da ONG
que ira recebê-los no aeroporto130.
No entanto, essa espetacularização da seleção e da viagem que lhes outorga um lugar
especial contrasta com a sensação de abandono e desprezo de sua história que se instala
rapidamente quando começa a ser tecida a relação cotidiana com os administradores de seu
reassentamento. Também há um desencantamento com a sedução inicial por meio da qual
“o Brasil” lhes é apresentado como uma opção de reassentamento. Parte da estratégia de
sedução inclui a celeridade na tomada da decisão. Ou seja, que “o Brasil” oferece umdiferencial em comparação com os países clássicos do reassentamento na medida em que
não demora anos, mas apenas alguns meses para dar uma resposta aos candidatos (como
visto na segunda parte da tese). Mas a celeridade nessa primeira parte do processo vira
parcimônia quando da chegada ao Brasil, o que faz que tudo ande lentamente durante o
tempo em que as pessoas serão assistidas, ou também se transforma em uma proliferação de
trâmites que foram qualificados de inúteis e que ocupam e gastam o tempo que, segundo
elas, deveria ser dedicado ao “processo de integração”. Processo que é entendido, nesse caso, pelos próprios sujeitos reassentados, como sua preparação para “se defender sozinhos no
futuro”.
Apoiando a ideia dos agentes de reassentamento, segundo a qual a assistência financeira e a
cobertura do programa devem ser limitadas e esse caráter continuamente enunciado, está a
suposição de que é possível antecipar as emoções que predominarão nas pessoas durante
130 No caso das pessoas adultas que viajam sozinhas, o distintivo é uma mochila ou bolsa que leva impresso ologotipo do Acnur.
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cada uma das etapas do primeiro ano de vida no Brasil (ou do tempo de assistência do
programa). Segundo esse cálculo, o momento da chegada estaria marcado por uma relação
cordial e, ao contrário, o momento da finalização da assistência seria um período hostil
marcado pelas reclamações.
Ah! A chegada é uma maravilha, tem casa, mobília, tudo é bom, mas já no10° mês,no 11° mês, o 12°, é ódio total. (Coordenadora de ONG de reassentamento 1)
[...] um está na lua de mel e o outro na lua de fel. Os três meses primeiros são alua de mel, aí depois eles começam a ter consciência de outras coisas, dasdificuldades e até dos próprios traumas e o choque pós-traumático aparece muitomais depois do terceiro e quarto mês e tem o período em que eles começam a revertudo o drama do deslocamento, porque eles são muito apegados a isso, eles têmuma ligação demasiada com o conflito. (Coordenadora de ONG de reassentamento2)
A leitura das pessoas reassentadas, principalmente de algumas famílias, não coincide com
essa divisão de emoções associadas ao tempo do programa. Para uma das agentes citadas
(agente 2), o descontentamento que abrolha nas pessoas deriva da aparição do “trauma” pelo
“drama do deslocamento” que ela localiza no passado. Para as pessoas reassentadas que
entrevistei, esse descontentamento tem mais relação com o próprio processo de
reassentamento, e sua origem está claramente localizada no pressente, como uma etapa que
também está marcada pelo sofrimento, pela carência e pela reatualização de sua condição de
despossuídos, de desterrados. Considero que, para além do “evento crítico” que gerou o
primeiro êxodo e, entendidos como processos, os programas e as técnicas de sedentarização
e reassentamento são parte do deslocamento e conformam boa parte de suas características
dramáticas.
Podemos dizer que, mesmo que o Acnur e seus agentes considerem possível fragmentar os
tempos do êxodo segundo caracterizações jurídicas definidas para cada um (deslocamento,
refúgio, reassentamento, integração ou retorno, etc.), o tempo desses ciclos na vida das
pessoas não está fragmentado dessa maneira, nem apresenta esse comportamento sequencial
que fabricam os administradores dos programas. Idas e vindas, lembranças e esquecimentos,
reinterpretações dos acontecimentos violentos, tentativas exitosas ou frustradas de regressar
ao lugar natal e relações tensas ou cordiais com funcionários e agentes se integram de
maneira inesperada na história e na experiência de cada sujeito – coletivo ou individual –
cuja vida tem sido marcada pelo êxodo.
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Por outra parte, o momento da chegada está longe de ser o momento maravilhoso ou a lua
de mel da qual falaram as coordenadoras das ONGs. Pelo contrário, me foi descrito, com
muita indignação, o descobrimento da precariedade das casas e dos bairros onde o programa
os localizou, assim como o estado e o estilo dos móveis e eletrodomésticos que lhes foram
entregues e até a defasagem entre o tamanho das roupas que lhes foram oferecidas e o
tamanho dos seus corpos. Além disso, nas narrações sobre os primeiros dias se referiram
constantemente que se sentiram sós, deixados em hotéis sem contato com as funcionárias
das ONGs, com pouquíssimo dinheiro e sem poder se comunicar em português com
ninguém.
Na narração que as pessoas fizeram sobre essas misérias iniciais, a ira e a indignaçãoestiveram muito presentes, inclusive nos casos de pessoas que já levam vários anos morando
no Brasil, a narração foi marcada pela emoção, às vezes pelas lágrimas e, às vezes, pela
zombaria. Sandra e Silvio riam lembrando ao contar que, quando eles conseguiam que a
diretora da ONG da época fosse visitá-los ou quando chegava a “assistente social mais
odiosa”, eles tiravam as espumas e as mantas com as quais usualmente cobriam os buracos
e o mofo do sofá que lhes tinha sido entregue pelo programa. Desse jeito, as funcionárias se
viam obrigadas a se sentar “en esse sofá podrido” ou a tomar café em “los pocillos
despicados” que lhes tinham entregado como parte do aparelho de jantar.
Também Rodolfo lembrou com emoção que as primeiras noites foram de muito frio e não
estavam preparados para isso. Achando, como outros refugiados que encontrei, que o Brasil
era um país de clima quente – e sem informação diferente a respeito oferecida pelos membros
da missão de seleção – ele e sua família doaram as roupas de inverno para outras pessoas
que ficaram no Equador. Ao chegar à moradia que a ONG alugou para eles, encontraram oscolchões que seriam seus leitos estendidos no chão na entrada da casa, um pouco úmidos e
sem roupa de cama. Nas primeiras semanas, os quatro integrantes da família tiveram de
dormir todos juntos em um colchão só, cobertos com as poucas roupas que trouxeram do
Equador para combater o frio. A lembrança desses primeiros tempos, segundo me disseram,
ainda os afeta ao evocá-la mesmo que já passaram mais de sete anos desde esse momento.
Como eles, outras pessoas que chegaram reassentadas, expressaram essa relação difícil no
tempo de chegada. Além de ser um tempo encolhido pela invasão dos trâmites inúteis, é
também um tempo da humilhação por meio do descuido.
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Os solicitantes e refugiados espontâneos, por sua vez, se refeririam à primeira etapa de vida
no Brasil como um tempo marcado pelo poder dos agentes de refúgio para anular sua
capacidade de decisão autônoma sobre suas próprias ações cotidianas por meio da
eternização da espera, inclusive para os pequenos detalhes cotidianos como a entrega de
medicamentos, roupa, comida, a resposta a uma pergunta simples, a emissão de um
encaminhamento131, etc. A proposta de Vianna (2011) sobre as gestões do tempo é pertinente
para tentar dar conta das diferentes dimensões em que os tempos de espera foram referidos
pelas pessoas. Mesmo que poucas pessoas significaram moralmente a espera em termos de
construir uma luta público/política utilizando o tempo como sua matéria-prima, tal como o
descreve a autora em seu trabalho (VIANNA, 2011, p. 11), foi comum a referência àcorreção e à exemplaridade moral que faziam com que eles se submetessem a esses tempos
administrativos.
Submeter-se a essa gestão, vivida como um sofrimento, era para eles uma amostra de sua
condição de “bons cidadãos” e de “boas pessoas”. Pois, caso contrário, pouco lhes importaria
permanecer “ilegalmente” no Brasil132. Além disso, o tempo transcorrido em espera de um
reconhecimento confere ao refúgio um maior valor simbólico quando esse é enfimreconhecido.
[…] entonces yo de Brasil me voy, yo aquí no voy a esperar más, yo de aquí adiciembre, a Navidad, si no me dan a mí una respuesta positiva, si yo aquí mesiento castrado hasta diciembre, yo me voy de aquí a otro lugar donde pueda vivir,donde pueda trabajar y donde pueda desempeñarme útil a la sociedad. Porque yono soy un ladrón, yo no soy un delincuente. Si yo estuviera al margen de la ley nome importaría vivir en Ecuador, en Argentina, en Venezuela, no me importaríavivir en Paraguay, en Uruguay, sino que haría lo que normalmente hace la gente;que es: hacerle mal a la humanidad. Entonces como yo no soy de esas personas¿tengo derecho a qué? A esperar, a esperar, esperar, esperar y esperar. (JoséAlberto, solicitante de refúgio)
131 Na segunda parte da tese, foi analisado esse aspecto da administração de refugiados, apontando, conformeLugones (2012), que a espera nos corredores ou nas salas exteriores da Cáritas, constitui um modo efetivo degestão e um mecanismo de controle temporal que, recorrentemente, marca o tempo por meio das dinâmicasdesses agentes de Estado.132 Essa forma de significar o tempo dentro do contexto de trâmites administrativos que buscam umreconhecimento final também foi descrita por Sarah Mazouz na sua tese doutoral sobre as políticas dediscriminação e as práticas de naturalização na Francia durante os anos 2000 (MAZOUZ, 2010). Em palavrasda autora: «En d’autres termes, le mérite du postulant s’éprouve par le temps de la procédure qui permet ainsi
d’estimer sa motivation. La procédure devient, donc, une mise à l’épreuve où chaque étape peut jouer un rôledans la sélection ou l’élimination des candidats et dans l’appréciation qu’aura l’administration de leur volontéde devenir français et du mérite dont ils ont fait preuve pour pouvoir le devenir» (MAZOUZ, 2010, p. 256).
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Seguindo a proposta de Vianna (2011, p. 12), considero que algo dessa “gestão adversa do
tempo” afetou as pessoas de um modo difícil de significar e de reivindicar publicamente.
Essa espera minúscula do dia a dia, muitas vezes sem resposta, foi expressa mais como a
sensação de ser humilhados e constantemente localizados em um lugar social
subordinado133, ou como disse José Alberto, a sensação de se sentir “castrado”. Em outras
palavras, as pessoas expressaram, de uma parte, uma angústia existencial por não saberem o
que passaria com seu pedido, que, em palavras de Vianna, podemos pensar como “o que
acontece na vida quando (e enquanto) algo que é objeto de tanto esforço, dedicação e dor
pessoal é posto em suspenso” (VIANNA, 2011, p. 7-8). De outra parte, as pessoas
expressaram raiva e frustração engendradas nos conteúdos diários com os que foi preenchida
essa grande espera; engendrados nos momentos cotidianos de gritos, negativas, trâmitesinúteis, vazios de informação, de orientação e de assistência ou vividos em ausência total de
conhecimento sobre o estado de sua solicitação e de seu próprio “processo”.
A espera, nesse sentido, parece se advertir quando se manifesta em forma de ausência, seja
de informação, de atendimento, de documentos ou de modos de subsistência. Quando as
pessoas sabem como avança seu processo e o ritmo em que acontecem as etapas da
solicitação se adapta a suas necessidades de alimentação, de emprego, de renovação deprotocolos, de vagas escolares, etc., o tempo não se sente como um adversário, nem seu
transcurso como uma espera. Porém, se, em cada etapa de instalação, não tem o que lhes é
necessário para concluí-la exitosamente, a espera se manifesta como essa defasagem entre o
quando necessitam as coisas e quanto delas chegou ao momento adequado. Dessa forma, a
espera se faz insuportável e, como dizia Santiago: “ellos buscan desesperarlo a uno con
tanta esperadera, para que uno termine yéndose o renunciando al refugio”.
Se no reassentamento as esperas e a quantidade de trâmites do primeiro ano fazem que esse
ano se encolha e se faça mais curto do que o desejado, no caso dos solicitantes espontâneos,
passa o contrário. As esperas e a quantidade de trâmites dilatam os meses e os fazem quase
133 A esse respeito, é esclarecedor o argumento de Adriana Vianna quem apontou que: “O trabalho simbólicocrucial a ser feito a partir da espera implica, assim, em conseguir inseri-la em uma ordem significativamenteativa de tempo, ao localizá-la como parte da própria “luta”. Há, porém, algo da espera que parece nunca caber plenamente nessa ordenação, que lhe escapa por falar do rotineiro, do intangível e do não narrável nos termos
da “luta”. Seria aquilo que não é convertido em agência ativa, ficando marcado pela frustração e pela percepçãode estar sem forças e sem poder de reação, submerso por algo maior e, ao mesmo tempo, mais invisível”(VIANNA, 2011, p. 12).
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eternos. Essa situação dos solicitantes, segundo alguns funcionários do Conare, não afeta as
pessoas. A apresentação das leis brasileiras de refúgio e de sua exemplaridade servem, mais
uma vez, como explicação de por que a espera não seria um fator de prejuízo:
[...] Mas assim, as pessoas teoricamente não têm prejuízo de esperar até porquerenova o protocolo134 [...] Com o protocolo, pode tirar carteira de trabalho, tambémpode tirar o CPF, pode... Então é assim, ela não tem prejuízo, nada que ela nãoteria sendo refugiada. (Agente entrevistadora do Conare)
Apesar da afirmação das autoridades de refúgio e apesar do registrado na lei, os solicitantes
costumam ter muitos problemas para renovar seus protocolos, para conseguir e manter
empregos legalizados utilizando seus documentos provisórios, para obter carteiras de
motorista, revalidação de diplomas, entre outra série de documentos e trâmites que são
necessários quando se deseja permanecer em um novo país. A incerteza sobre a resposta
positiva ou negativa de sua solicitação faz que muitas pessoas não comecem o difícil
processo de alguns desses trâmites. Isso, no caso dos diplomas escolares, por exemplo,
significa o retraso ou abandono na culminação da formação e suas consequentes
desvantagens na vida social e profissional.
A incerteza sobre a possibilidade e as condições futuras da permanência manifesta-se
também, segundo o narrado pelas pessoas, em angústia, depressão e falta de entusiasmo para
empreender projetos que impliquem em esforços que poderiam perder-se em caso de uma
resposta negativa. O fato de não saber se é possível permanecer torna-se uma fonte de
incerteza tão difícil de sobrelevar como aquela que experimentaram em seus locais de origem
quando não sabiam se teriam que partir. Ou seja, quando também não sabiam se poderiam
ficar. A esse respeito, considero fundamental observar que usualmente a atenção sobre as
diversas formas de opressão que sofrem mundialmente os chamados “fluxos migratórios”,
sobretudo os mais precarizados, é colocada na impossibilidade de movimentação imposta àspessoas por meio dos campos de refugiados, os muros fronteiriços, os centros de detenção
para migrantes, as polícias de fronteira, etc. Porém, pouco se fala em seu oposto constitutivo
que é a impossibilidade de ficar. Ou seja, a obrigatoriedade imposta – muitas vezes, de
maneira violenta – de se movimentar, de ir e de abandonar o lugar habitual onde se mora,
134 Em 2013, o tempo de validade do protocolo foi estendido, passando de três para seis meses. Essa mudançafoi muito bem recebida tanto pelos refugiados e solicitantes quanto pelos agentes de refúgio. A mudança nãofoi exclusiva para os refugiados, mas beneficiou os estrangeiros de modo geral.
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inclusive quando esse tem se convertido em um país estrangeiro, em um campo de refugiados
ou numa zona de indeterminação.
Algumas pessoas se referiram à sua necessidade de vir ao Brasil, ou a seus obrigados
trânsitos internos na Colômbia, aludindo a esse processo como uma perda de liberdade. Por
exemplo, quando perguntei ao Miguel por que havia elegido o Brasil se também lhe haviam
oferecido reassentamento no Chile e na Argentina, ele respondeu que teve de sair da
Colômbia por causa do que ele pensava e de sua militância política, que eram como uma
condenação à prisão. “Si voy a ir preso por lo que pienso y por lo que hago, por lo menos
que la cárcel sea grande”, me disse. Também José Alberto, contando da perseguição que
sofreu na Colômbia, dizia:
Yo tenía que andar escondiéndome, yo no podía estar fijo en algún lugar, entoncesahí yo pierdo mi libertad. Ahí yo pierdo mi carácter y mi idoneidad profesional¿Para qué estudié 5 o 7 años, si eso a donde voy no vale de nada?
Por sua vez, Rocío, quando lhe perguntei onde moravam antes de ter que vir para o Brasil,
me disse: “la verdad en ningún lugar […] vivíamos cambiando todo el tiempo”. Viver sob a
ameaça de não ter um lugar para morar também contribui para que os anos que,
posteriormente se passam em um mesmo lugar, sejam significados como uma conquista,
inclusive quando eles são o resultado de processos de fixação provisórios, gestados em
práticas de governança de populações.
Quando essas primeiras etapas da vida no refúgio no Brasil foram superadas, notadamente
quando tem se conseguido um nível de estabilização socioeconômica e emocional, a
narração que as pessoas fizeram é a de uma travessia épica, com o consequente
engrandecimento dos esforços próprios, que fortalece a ideia do mérito e a recompensa.
Seguindo a proposta de Vianna (2011, p. 16), considero que é fundamental o tempo
transcorrido na construção mesma das verdades, nesse caso, no seu reconhecimento como
“verdadeiros refugiados”. Essa construção moral pode ser entendida, conforme a autora,
como “tecida no tempo, por meio da tenacidade demonstrada ao atravessar os longos anos”
(op. cit., p. 16).
Os agentes do refúgio, por sua vez, falam desses sujeitos “integrados”, estáveis, empregados,
bilíngues, etc., como uma amostra tanto do bom funcionamento dos programas, quanto do
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mérito daqueles que lutam pelo que querem (ver anexos 4 e 5). Muito amiúde também
exibem narrativamente – e às vezes com imagens – esses casos como amostra da
generosidade da sociedade brasileira e seu caráter acolhedor e respeitoso da diferença.
[...] eles [os colombianos] são muito empreendedores [...] é uma coisa que oschefes reconhecem muito, que eles são os mais esforçados, que uma coisadiferente no jeito de trabalhar. Como uma característica de muitos [...] Lembro dexxxxx, ele na Colômbia era um assessor de um deputado e ao começo ele nãoqueria aceitar de jeito nenhum trabalhar numa cooperativa catando lixo. Mas nãoé que agora ele é o chefe da cooperativa de catadores de lixo? E ele implementouuma política de salário. Mas foi que a comunidade recebeu ele muito bem, e aí eleficou sem jeito de falar não para esse trabalho. (Ex-agente de integração)
Os que persistem, os que se submetem, os que com tão pouco conseguem sobreviver e os
que sabem agradecer a generosidade da sociedade que os recebe vão integrando a categoriado refúgio e particularmente a do refúgio exitoso, que parece consistir tanto no esforço, no
sacrifício, na tenacidade e na gratidão dos refugiados quanto na solidariedade e na
generosidade das comunidades de acolhida, atuando como representantes de uma “sociedade
nacional brasileira”. Não entregar as coisas com facilidade, inclusive aquelas que, nas leis
do refúgio, aparecem como um direito, tem o efeito de fortalecer o sacrifício – com todas as
suas conotações cristãs – como a forma moralmente adequada de “refazer a vida”. Vida que
os agentes do refúgio presumem desfeita pela violência e estando na margem da ordem donacional.
Para esse efeito, também é muito efetiva a construção da precariedade e carência absoluta
com as quais se constrói a figura inicial dos solicitantes. A ideia inicial de seres
despossuídos, tanto quanto as dificuldades do processo aumentam o mérito desse grupo
exitoso, pois eles teriam “ feito uma vida a partir do nada”, segundo a fórmula usualmente
empregada pelos agentes. Nesse processo, o tempo atua tanto como uma prova que deve sersuperada para demonstrar que se é merecedor do refúgio quanto um elemento transformador
que paulatinamente vai tornando as pessoas em refugiados integrados, muitas vezes por meio
do esforço e da dificuldade.
8.2. As rupturas: um presente contingente
Como visto, a leitura da “integração” que realizam os agentes do refúgio e alguns refugiados,
como um processo linear que culmina em um estado final e irreversível, não é a mesma para
todas as pessoas com quem falei. Inclusive, para muitas delas que levam longo tempo
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morando no Brasil, e que durante anos têm conseguido manter a vida econômica, social e
emocional mais ou menos estável, a situação atual não é totalmente percebida como
definitiva. Os eventos violentos que os obrigaram a sair do país, tanto quanto o processo de
refúgio no Brasil e em outros países são uma potencialidade ameaçadora dessa suposta
estabilidade final de um transcurso que parece concluído aos olhos dos agentes brasileiros
do refúgio.
Segundo a análise feita por Grace Cho (2008, p. 14) da diáspora coreana para os Estados
Unidos – notadamente das “noivas de guerra” que foram as pioneiras dessa migração – ,
existe a possibilidade de que, em qualquer momento da vida, o passado surja e, de diversas
formas, interrogue sobre o que foi ou que se perdeu em um momento potencialmentetraumático, tanto na guerra quanto nos acontecimentos posteriores que levaram as pessoas a
se instalarem em outro país. Sobretudo, há algo do que se perdeu que somente se soube no
futuro, ou que se saberá no futuro caso acontecer algo que permita identificá-lo.
Nesse sentido, o refúgio é potencialmente um exílio, mas a ruptura que esse último implica
nunca se poderá terminar de conhecer. A perda se inscreve no futuro, de modo que aquilo
que se perdeu se decanta como uma perda específica no (ou do) futuro que não existiu. Essesdramas humanos vão se encontrar com marcos específicos de produção de precariedade no
exílio. Daí que seja tão difícil falar de um momento final quando se trata de vidas marcadas
pelo êxodo. Vidas inclusive marcadas com etiquetas de provisoriedade nos documentos que
idealmente selariam seu pacto de uma “nova cidadania”. Alguns dos laços quebrados
somente poderão ser identificados quando, com o que sobrou da vida como ela era no
passado e junto aos novos elementos, seja tentado tecer outros mundos possíveis. Ainda
seguindo a proposta de Cho (2008, p. 53), podemos observar o exílio como um encontro dostraumas do passado com os traumas do futuro, em que a dinâmica administrativa do refúgio
pode somar sofrimentos tanto a uns quanto a outros.
Depois de uma década de viver no Brasil e de ter chegado com redes pessoais que fizeram
relativamente mais fácil sua instalação, Victoria, por exemplo, ainda se pergunta qual será
seu lugar nesse mundo. Apesar do tempo que leva no Brasil, ela ainda não começou o
processo de naturalização ao qual tem direito segundo a lei. Essa situação obedece, em parte,
ao que ela considera que essa decisão seria uma ruptura emocional definitiva com a
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Colômbia. Porém, em grande medida, obedeceu também a que durante muitos anos foi mal
informada pelas agentes de Cáritas. Segundo ela me contou, na instituição, lhe disseram que,
caso ela pedisse a permanência – que é um passo prévio requerido para a naturalização – ,
perderia todos os benefícios como refugiada. Como, na época, seu esposo e três de suas
filhas estavam tomando cursos no Sesc e no Senac, ela não quis arriscar a gratuidade
oferecida por esses serviços para pessoas refugiadas e depois foi deixando o assunto meio
esquecido. Essa condição temporária de seus documentos tem colaborado com a sensação
de não ter conseguido construir um lugar definitivo para si no mundo.
Todos esses anos, trabalhando para manter economicamente a família, têm lhe deixado um
vazio pessoal que ela associa principalmente às tentativas frustradas de terminar sua carreiraprofissional ou fazer outra ainda com mais afinidade com seus gostos e interesses. Agora
que passou dos cinquenta anos, sem possibilidade de se aposentar – nem no Brasil, nem na
Colômbia – e ainda trabalhando para a subsistência, ela se pergunta por que não recebeu
apoio desde o começo do refúgio para culminar sua carreira. De fato, se pergunta por que
lhe colocaram tantos empecilhos para concluir sua formação e por que ainda hoje continua
sendo tão difícil fazê-lo. No balanço que Victoria realiza, seu ex-marido e três das suas
quatro filhas parecem estar cada vez menos refugiadas, cada vez com mais laços e lugarespara si no Brasil, enquanto seu próprio exílio não tem deixado de crescer e se faz mais
evidente quando os outros membros constroem projetos fora do espaço familiar.
Beatriz, outra mulher refugiada que, como o fez Victoria, manteve economicamente a
família durante quase uma década dando aulas de espanhol, também se queixa da falta de
apoio das ONGs encarregadas de administrar o refúgio. Segundo ela, quando os agentes se
referem à “educação”, na verdade, estão oferecendo “cursos” que, muitas vezes, nem sequer são profissionalizantes135. Agora, preocupada com a forma em que ela e seu marido passarão
a velhice, tem cogitado a possibilidade de voltar para Colômbia, mas seu marido não quer
regressar. Os filhos de Beatriz e Rafael casaram com parceiros brasileiros, tiveram filhos e,
135 Essas duas mulheres enfrentaram uma mudança na legislação dobre o ensino de idiomas nas escolas,colégios e institutos, segundo a qual devia se contratar somente professores com, no mínimo, nível degraduação. Elas ou não tinham se formado ou não conseguiram validar os diplomas de modo que os benefíciostrabalhistas que tinham em seus empregos formais não estavam mais garantidos. Victoria teve de redobrar a
quantidade de aulas privadas com a consequente instabilidade e deslocamento pela cidade e Beatriz teve deabrir mão de alguns de seus benefícios trabalhistas para conservar o emprego no instituto de idiomas ondetrabalha devendo se acolher a uma modalidade contratual diferente.
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segundo o relato dos pais, “ ya son más brasileros que colombianos”. Beatriz sabe que a
opção do regresso engendraria uma nova separação, dessa vez com os filhos e os netos que,
seguramente, permaneceriam no Brasil. Além disso, não tem certeza de que Rafael possa se
adaptar novamente à vida na Colômbia. Então, tem decidido, por enquanto, não insistir nesse
assunto.
Também Aurora, uma mulher refugiada muitos anos mais nova do que Victoria e Beatriz,
manifestou, nas nossas conversas, se sentir exausta pelo fato de ter de manter a família com
jornadas exaustivas de trabalho e sem a possibilidade de exercer sua profissão. Mesmo que
suas redes pessoais lhe tivessem ajudado a se empregar numa área afim a sua carreira, o
processo de provas para a revalidação de diplomas foi árduo e infrutífero. Para aurora, adificuldade de passar as provas deve-se ao fato de não ter tempo para estudar, já que da sua
renda depende a estabilidade econômica dela, de sua filha e de seu marido. Além de ter sido
o suporte econômico da vida no exílio, essas três mulheres assumiram também o suporte
doméstico, ampliando as jornadas de trabalho e os esforços cotidianos. Nos relatos de
Victoria, está muito presente a ideia de que “sim aproveitou” os benefícios de formação
oferecidos aos refugiados enquanto ela trabalhava sem descanso e “sin pensar en ella
misma”. Também me contou que Andrés, seu ex-marido, considerava que dar aulas deespanhol era um ofício menor e teria sido explícito que não iria “rebajarse a eso”. Contudo,
era ele que ficava a cargo da administração do salário que ela lhe entregava inteiro, tendo
que posteriormente lhe pedir para e consultá-lo sobre seus próprios gastos pessoais.
Anos mais tarde, quando ocorreu a separação conjugal, Andrés teve de começar a dar aulas
de espanhol em vista da frágil situação econômica na qual se encontrou naquele momento,
mas, quando eu falei com ele a esse respeito, ele manifestou que as aulas que ele dava eram“en realidad clases de filosofía, de religión, de política, de todo con la excusa del español ”.
Parece-me que essa recusa discursiva ao “descenso” e a obrigação de vivê-la na prática são
também formas de atualizar a ruptura com o espaço social que ele ocupava antes (ou que
imaginou que ocuparia agora) e que, em um contexto de êxodo, o fazem lembrar
constantemente que a origem dessa fratura tem as marcas da condição de ser estrangeiro e
da impossibilidade do regresso.
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Essa forma de controle e qualificação das atividades assumidas por alguns sujeitos, nesse
caso pelas mulheres, não é exclusiva do refúgio. Porém, uma parte da sensação de
indignidade – manifesta por Andrés e outras pessoas entrevistadas sobre alguns ofícios –
poder ser experimentada de uma maneira particular no contexto de êxodo136. Especialmente
quando se trata de movimentos que se dão contra a vontade e quando esses significam uma
perda de status pessoal e profissional, sendo simultaneamente movimentos para lugares com
melhor status que os lugares de origem.
Nesse caso, supõe-se que o Brasil ocuparia um lugar mais destacado na organização
hierarquizada das nações com relação à Colômbia, mas as pessoas estariam pior, embora
estando num “lugar melhor”. Alguns relatos de pessoas refugiadas falaram da dinâmicaexplícita de ocultação de sua “verdadeira situação” diante de parentes e amigos na Colômbia.
Foram comuns as frases como “ellos creen que esto es un paraíso, ella no sabe las
necesidades que estamos pasando ou no quiero que ellos vayan a saber y se preocupen”. A
ideia de viver em um lugar com prestígio relativo (sexta economia mundial, o gigante latino-
americano, etc.) e ajudar com o próprio silêncio a que essa imagem se propague, inclusive
entre parentes e amigos, remete a análise de Sayad (1991, p. 38) sobre a ocultação da
“verdadeira França”, a “França do exílio”, que o silêncio dos imigrantes argelinos ajudou aconstruir. Porém, também a análise de Fabiam (1983, p. 23) quando propôs que a
antropologia contribuiu na construção da diferença como distância, engendrando a negação
da simultaneidade para o “outro”, ou melhor, construindo o “outro” a partir da negação de
sua simultaneidade. Os “outros”, os imigrantes, os refugiados, os ilegais estão corpor almente
e como mão de obra presentes no território nacional, mas ocupam um espaço temporal, “um
tempo tipológico” (op. cit., p. 22) distante daquele Brasil “do progresso e da civilização”.
136 Dony Meertens que tem abordado o assunto laboral em contextos de desarraigo (MEERTENS, 2000; 2003),tem positivado essa característica de “adaptação feminina” no caso das famílias deslocadas internamente peloconflito na Colômbia. Segundo a autora, os homens, ao perder seu status de provedores, sentiriam maisintensamente a perda de dignidade das condições do emprego informal e argumenta então que as mulheresdeslocadas mostram mais flexibilidade e recursividade. Meertens (2003, p. 4) defende que “pese a la doble
jornada, la nostalgia y ese sentirse desplazada”. Essas mudanças podem significar a construção de maiorautonomia que lhes permitiria “hacer sostenible el cambio de roles entre hombres y mujeres como consecuenciadel desplazamiento”. Embora discrepe do otimismo de Meertens a respeito da mudança sustentável que, nas
relações de gênero, possam engendrar as mudanças nos roles entre homens e mulheres em contextos dedeslocamento, parece-me muito produtiva sua ideia de um sentimento maior de indignidade da parte doshomens, diante de alguns trabalhos.
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Nessas circunstâncias, há uma grande dificuldade para se pensar em si mesmos “saliendo
adelante” quando a sensação é de estarem atrasados no tempo em relação ao que tivessem
conseguido nos mesmos anos se não tivessem tido de abandonar seu lugar. Nesses casos,
parece que se impõe uma dificuldade maior para significar o êxodo. Este não logra ser
completamente representado como um romantizado exílio político, nem significado
plenamente com a ideia de um progresso econômico e social derivado da vida em um país
“mais desenvolvido”. Trânsito que, em outras circunstâncias, poder ia beneficiar com o
prestígio de uma mobilidade ascendente.
Há ordens diferentes de dominação envolvidas nessa encruzilhada. De uma parte, as
referidas desigualdades marcadas pelas relações de gênero e, de outra parte, a “condiçãomigrante” (SAYAD, 1991:61) que oferece aos “não nacionais” oriundos do “mundo
dominado” (SAYAD, op. cit., p. 270) os trabalhos menos qualificados ou aqueles que “os
nacionais” (ou alguns deles) não desejam realizar. Porpem, o que me interessa enfatizar aqui
é que, como detalharei mais adiante, supõe-se que o trabalho é uma das bases da integração,
como manifestado repetidamente pelos agentes:
[...] A gente acredita que a integração parte do trabalho. A pessoa trabalhando tem
menos tempo para pensar bobagem, menos tempo para ficar cultivando seustemores. Então, não é que a gente quer que as pessoas esqueçam sua vida, mas queaproveitem a chance de sair adiante, para não ficar mastigando aquela coisa. Então,nós trabalhamos sempre com o foco no trabalho. (Agente de integração)
Isso significaria então que Victoria, tanto como Aurora ou Beatriz, que não têm deixado de
trabalhar, deveriam se sentir mais “integradas” do que os seus maridos ou teriam tido mais
“chances de salir adelante”; mas isso não acontece exatamente desse jeito. Embora essas
tenham feito um aprendizado mais refinado do português e construído redes a partir de suas
atividades laborais, não parece que o fato de ter trabalhado intensamente desde o começo do
refúgio lhes permitiu construir mais facilmente uma sensação de estabilidade, de
permanência e de pertencimento maior. Pelo contrário, a intensidade e a desqualificação dos
trabalhos realizados são, para elas, a razão principal pela qual não tem tido tempo de
trabalhar o mundo para se construir um lugar próprio. Conf orme Said, “grande parte da vida
de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo
para governar” (SAID, 2001, p. 55), justamente o que essas mulheres não têm tido tempo de
fazer.
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Interessa-me apontar que as pretendidas receitas da integração exitosa dos refugiados estão
baseadas em indivíduos genéricos com os que dificilmente podem se compreender a
multiplicidade de experiências que engendram os exílios na vida dos sujeitos que eles
administram. Aliás, o tempo da integração, segundo os agentes, corresponderia a uma
fórmula linear e progressiva segundo a qual a suma dos anos avançaria, junto com os
sujeitos, para um estado irreversível de adianto e integração. Isso além da ideia de que as
famílias no refúgio são “famílias de refugiados”, entendidas como núcleos coesos e
indissolúveis cujos membros viveriam todos em um mesmo ritmo ou em um mesmo tempo.
As experiências narradas pelas pessoas são difíceis de unificar e têm tons e reflexões
diferentes, dependendo não só de fatores como a idade, o gênero, a geração, o pertencimentoétnico-racial, etc., mas também do momento de vida em que essas experiências são contadas
e de para quem e para que sejam narradas137. Esses relatos mostram formas muito diferentes
de entender as relações familiares, os arranjos com si mesmos na sua condição de
estrangeiros e parecem marcadas pelos tempos cujos movimentos descrevem muitas figuras
diferentes à linha reta. Muitas vezes, assemelhando-se mais com a desintegração do tempo
progressivo da que nos alertou Cho (2008, p. 50-51) ou a um momento que faz parte de “algo
muito maior” e cheio de meandros, como descrito por Vianna (2002, p. 116) para alguns dos“casos” de “menores” analisados na sua tese doutoral. Parece-me que um dos esforços para
tentar compreender esses exílios deveria se basear na proposta de Said (2001, p. 48-51) de
“mapear esses territórios de experiência” entendendo que o exílio é em si mesmo “um estado
de ser descontínuo”.
Considero que o exílio está sim, feito de perdas, de lugares sociais que não podem se
recuperar, de nostalgias e abandonos, do fato de sair sem querer fazê-lo, de deixar para trás
137 Para Pollak (1990), existe uma relação importante entre o tempo e a narração pela significância do momentoparticular em que uma pessoa decide contar suas vivências e articular narrativamente suas lembranças e o quelhe é possível dizer sem se destruir a si mesmo no processo. Nessa ralação, não apenas os esquecimentos e acapacidade de reconstruir uma experiência estão em jogo. O autor propõe levar em conta o porquê de as pessoasdecidirem contar e para quem se faz essa narração. Os casos descritos pelo autor, nos quais a percepção do fimiminente da existência ativa a necessidade de impedir a extinção da memória, são muito interessantes a esserespeito; particularmente levando em conta que os processos coletivos de memórias nacionais ou comunitáriastêm privilegiado determinados relatos e obliterado ou impedido outros, capturando essas experiências filtradaspara a fabricação de uma memória oficial. Processo que, no seu curso, impede que alguns indivíduos e algumas
experiências se articulem com um relato público, de onde se deriva a potencialidade desafiadora dos relatos eeclodem como necessidade íntima de comunicação com sua própria descendência, por exemplo, e não com ossistemas de “justiça” dos Estados.
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pessoas, projetos, objetos e formas de vida e de não poder voltar, ou não vislumbrar
claramente o momento do regresso. Porém, o espaço onde são inscritas essas rupturas marca
uma diferença importante na forma em que essas são significadas e tornam-se passíveis de
serem transformadas na figura administrativa, jurídica e populacional do refúgio.
Pérdidas sí. Perdimos mucho, perdimos familia y perdimos las referencias, losbarrios, los amigos, los lugares donde nos criamos, hasta las referencias bancarias,inmersos en una ciudad altamente hipócrita. Pérdida incluso de la trasmisión dealgunos valores que fueron muy importantes para nosotros como familia, comouna nación, como un pueblo. (Andrés, refugiado)
Andrés aponta, em um primeiro momento, a perda no plano íntimo e familiar, mas
rapidamente a leva até o lugar da “nação” e se coloca discursivamente como o “caso” que
ilustra a história de um povo. A história individual que se transforma na história de uma
nação se parece muito mais aos modelos de seleção de refugiados do que aquelas histórias
que são domesticidade só e que desconhecem, além desse espaço, os significados nacionais
da guerra. Nos processos de seleção de refugiados, são exigidos todos os detalhes subjetivos
e cotidianos da dor, mas são organizados e traduzidos utilizando os moldes de uma
racionalidade jurídico-administrativa que presume tempos lineais, causas e efeitos
claramente relacionados e um nexo que vincula o presente do sujeito com eventos –
assumidos como inscritos no passado – da história de guerra e conflito da nação.
Todavia, o que eu escutei das três mulheres anteriormente citadas, assim como de outras
pessoas com as quais conversei, foram relatos que significaram o exílio a partir de
experiências que não existem mais do que no seu mundo doméstico ou nas relações marcadas
pela cotidianidade. As referências da ruptura não estavam nos grandes acontecimentos
políticos do conflito, nem em exércitos genéricos nomeados como “forças da guerra”. As
causas da perseguição, às vezes, foram descritas como ciúmes de um “narco porque mi mujer
era bonita y él la queria”. A situação de uma região foi condensada no relato como a
necessidade de “meterse debajo de la cama, cantar canciones para distraer a las niñas y no
dejarlas ir al baño”, enquanto passava o bombardeio do avião fantasma138; outras vezes, foi
138 O avião fantasma faz referência às naves de guerra Douglas AC-47 Spooky (de uma série de aviõesdesenvolvidos pelo exército dos Estados Unidos durante a guerra de Vietnã) que o governo colombiano
adquiriu nos anos 1990 e que mudaram a dinâmica da guerra “contrainsurgente” e “antiterrorista” por suapossibilidade de ataque aéreo e de reforço às tropas terrestres, introduzindo a potencialidade do bombardeioinesperado dentro das comunidades que vivem nas regiões onde o avião atua.
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descrita como a impossibilidade de fazer uma festa na casa com a porta aberta e a música
em alto volume.
Tal como descrito por Cho (2008), há fantasmas de guerra que se instalam, não na praça
pública, mas na cozinha e no quintal traseiro da casa. Os sofrimentos das pessoas em êxodo
que elas não conseguem, não buscam ou não querem significar além do plano doméstico, e
que os agentes do refúgio também não traduzem para a linguagem jurídica do refúgio,
parecem condenados à inexistência pública e a serem tratados como insignificantes mesmo
dentro das relações com os próximos; assim como a integrar outras classificações que
obliteram as violências políticas e passam a ser vistas como estando nas margens do conflito
ou sendo seus efeitos colaterais. Novamente, conforme Cho, parece que algumas figuras – como a da noiva de guerra – “operates as a figure for the disappearance of geopolitical
violence into the realm of domestic” (2008, p. 14).
Esse jogo complexo entre o que aparece como pertencente ao universo público ou às relações
domésticas e íntimas talvez esteja na base da dificuldade que tive, e ainda tenho, para lhes
dar um lugar, na relação que estabeleci com as pessoas, a esses relatos que eu provoquei.
Tanto quanto a isso que se descolava das pessoas nos momentos das conversas ou que, aocontrário, ia se aferrando a suas existências a força de lhe dar corpo por meio da palavra e
um lugar nas suas lembranças coletivas. Esses momentos têm uma densidade muito especial,
não apenas por aquilo que possam revelar sobre a complexidade de um assunto que é objeto
de reflexão, mas também pela responsabilidade que envolve o exercício mesmo de provocar
lembranças e narrações. Minha responsabilidade sobre esse silêncio roto, sobre esse episódio
revelado e sobre o que isso possa acionar na vida das pessoas, ainda não encontrou um lugar,
em parte porque muitos desses diálogos continuam ativos. Na sua dissertação de mestradosobre a forma em que as pessoas vivem e narram o conflito armado no Medio Rio Caquetá,
Marco Tobón (2008, p. 134) propõe uma linda reflexão sobre a relação que as pessoas fazem
entre nomear e atrair, como uma forma em que a palavra seria capaz de reviver ou fazer
reaparecer aquilo que é nomeado. Por isso, as pessoas alertam sobre o cuidado que deve ser
tomado ao compartilhar a memória. O autor também inclui aos possíveis leitores nessa
relação que é estabelecida ao compartilhar as lembranças e as histórias. Ponto fundamental
de reflexão quando a minha intenção, ao recriar os diálogos compartilhados, é também a de
não somar sofrimentos nem ao passado, nem ao futuro das pessoas, ao aumentar o número
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de sujeitos que sabem dessas experiências, e nem quando eu mesma tentar lhes dar uma
coerência textual longe de seus locais de produção. Esse assunto de quando, onde e por que
é falada alguma coisa e o que acontece com essa reflexão na qual o sujeito se produz a si
mesmo – necessariamente com uma determinada distância – foram indagados por Poe Pollak
(1990, p. 203-204). O autor convida a entender os próprios limites do que o sujeito se
“confessa a si mesmo” e aquilo que pode transmitir ao exterior sem se destruir a ele próprio
nesse exercício.
Nas histórias de Victoria, Beatriz e Aurora, como nas de outras mulheres que entrevistei, há
outro elemento crucial para entender algumas das dinâmicas de seu próprio exílio. Nos três
casos, a perseguição que originou a fuga e o refúgio foram perseguições contra seus esposos,e elas não souberam na época, ou ainda desconhecem, todos os detalhes desses episódios.
Com alguns dos membros desses casais, conversei individualmente, mas com duas delas,
houve pelo menos um encontro conjunto. Nessas conversas coletivas, houve sempre um
momento em que os homens contaram detalhes dos fatos pelos quais fugiram, assim como
explicações sobre o porquê tinham sido ameaçados ou perseguidos, enquanto elas
ofereceram mais detalhes sobre os itinerários físicos e burocráticos e das tarefas que tiveram
de ser feitas para possibilitar a fuga ou a instalação em outro local. Em uma ocasião, comoutro casal – Rodolfo e Hilda – nossa conversa conjunta foi inclusive o momento em que,
depois de muitos anos, ela soube de alguns dos pormenores das ameaças que seu esposo
sofreu e de algumas experiências que ele tinha vivido no Equador, antes que ela e seus filhos
pudessem se reunir com ele novamente.
Assim como Hilda, muitas das mulheres entrevistadas começaram a viver um exílio de cuja
origem não tinham toda a informação, nem a certeza de todos os elementos que estavam em jogo. O refúgio como figura administrativa contempla essa situação e amplia a proteção aos
membros da família em primeiro grau de parentesco ou aliança com a pessoa perseguida.
Contudo, é assumido que toda a família sabe as causas do “fundado temor de perseguição”
e se realizam entrevistas individuais que servem para contrastar as versões oferecidas pelos
outros membros da família. A respeito, considero que a história de Victoria é a que melhor
ajuda a explicitar os limites desses exercícios narrativos exigidos no campo de governança
do refúgio, assim como a potencialidade de ruptura que pode engendrar essa relação
diferencial com a perseguição e com a informação que se tem sobre ela.
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Victoria veio ao Brasil de férias aceitando um presente de sua família materna. A viagem,
me contou, lhe foi oferecida para ela se distrair do difícil trânsito desses meses em que ela,
seu esposo e as filhas deles haviam tido que sair de casa e se hospedar em casa de parentes
em outra região do país. Até esse momento, ela considerava que essa situação era temporária,
que obedecia ao recrudescimento dos confrontos armados na região onde eles viviam e que,
uma vez que as circunstâncias melhorassem, ela e sua família poderiam regressar. Porém,
estando de férias no Brasil, faltando poucos dias para voltar para a Colômbia, o esposo dela
a chamou para lhe dizer que a situação não melhoraria e que, dificilmente, poderiam voltar
devido ao fato de que ele tinha recebido ameaças de morte, e essa tinha sido a razão para sair
da casa e da região. Na chamada, ele também lhe contou que havia recebido assessoria dealguns conhecidos que trabalhavam com o Acnur quem lhe sugeriram aproveitar a presença
de Victoria no Brasil para pedir refúgio.
A notícia foi devastadora e angustiante, não apenas por ter se inteirado das “verdadeiras
razões” que lhes levaram a sair de casa, mas porque, na Cáritas, lhe informaram que, se ela
começasse o processo de refúgio, já não poderia mais retornar à Colômbia. Apesar do
desassossego que isso significou, Victoria assumiu a tarefa de começar os trâmites dasolicitação de refúgio e de unificação familiar. Quando, na Cáritas, lhe informaram que ela
teria de ir para “contar sua história” e preencher alguns formulários com informação sobre
a perseguição que alegava, Victoria teve de chamar seu esposo e lhe pedir: “bueno, ahora
sí, cuénteme a ver qué fue lo que pasó, porque me están pidiendo que diga todo y yo no sé
nada”. Seu esposo lhe contou alguns elementos relacionados com as ameaças que tinha
recebido e lhe transmitiu as instruções recebidas pelos seus conhecidos do Acnur, para que
ela pudesse “decir las palabras claves para que la solicitud no fuera rechazada”. Assim, ofez e o reconhecimento, segundo ela, foi relativamente rápido apesar de que ela conhecia
somente, de maneira parcial, a história e apesar de algumas desconfianças das agentes que
lhe pediram para fornecer provas. Já o tempo da unificação familiar foi mais demorado e
desesperador, porque os custos da viagem de todos os membros da família que ficaram na
Colômbia (cinco pessoas) não foram pagos pelo Acnur, assim que eles mesmos tiveram que
ir programando cada viagem segundo o ritmo de obtenção dos recursos econômicos para
pagá-la.
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Esses meses foram tempos muito difíceis para Victoria, não somente pela distância de sua
família, mas pela certeza que foi se instalando com a passagem dos dias de que não voltaria
mais para sua casa, não teria como recuperar as coisas que ficaram, nem retomaria seus
projetos com as pessoas da comunidade com as que ela trabalhava. A sensação que Victoria
descreveu foi como se houvessem lhe interrompido o tempo e a etapa de vida que estava
construindo houvesse ficado inconclusa. A esse momento, não foi imposto um final, mas, ao
interrompê-lo, tornou-se eterno e continua aparecendo como o que poderia ter sido e não
aconteceu, como o que sempre estará para se fazer. Entretanto, a ruptura mais forte para
Victoria e a que ela me narrou com mais dificuldade não foi essa fratura com a vida de antes,
mas o divórcio de seu esposo alguns anos depois de sua chegada ao Brasil.
Em algum momento de nossas conversações, Victoria me disse que, quando “las cosas se
empezaron a poner muy feas”, quando “empezaron a aparecer muchos muertos”, ela chegou
a se imaginar que teriam que sair desse lugar. Mas, em seguida, me disse que aquilo que
nunca chegou a imaginar era que ela e seu esposo pudessem se divorciar. Se o refúgio era
algo que ela chegou a imaginar e pensar como uma possibilidade, a separação, ao contrário,
tentou me dizer, “era algo que no existía, algo que no…”. Algo que não conseguiu expressar
com palavras, pois, para ela, o que aconteceu não tinha nem forma, nem nome. Na descriçãode Victoria, várias dores juntaram-se naquele momento. A primeira de ter sido traída com
“uma brasileira”, apesar das advertências que recebeu de outras mulheres “latinas”
advertindo-lhe para cuidar de seu matrimônio porque “a las brasileras no les importa que
sean casados”. A segunda dor foi que seu esposo lhe fizesse reclamações de diversos tipos
que, segundo ele, justificavam em parte sua relação extraconjugal: que ela não se preocupava
por estar bem, que não se informava e não entendia da vida política nem da Colômbia, nem
do Brasil, que já não tinham a mesma vida sexual de antes, etc. Victoria sentiu essasreclamações como particularmente injustas, pois o tempo que ela dedicava a trabalhar e a
cuidar da casa era um tempo que lhe deixava extenuada, que perdia para seu cuidado, sua
beleza e seu prazer e, simultaneamente, era um tempo que ficava liberado para seu esposo
descansar, tomar cursos, ler livros e notícias e ter uma amante.
Talvez, a dor mais difícil de contornar engendrou-se quando a separação lhe permitiu pensar,
pela primeira vez, se ela e suas filhas realmente teriam de ter saído do país. Com novos dados
sobre os acontecimentos da vida de seu esposo na Colômbia, incluindo outras relações
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extraconjugais antes da viagem para o Brasil, Victoria começou a pensar nas outras
possibilidades, distintas do refúgio, que ela houvesse podido ter para se salvaguardar junto
com suas filhas na Colômbia. Sobretudo, começou a duvidar de que ter se refugiado junto
com seu esposo tivesse sido a decisão correta para sua vida e a vida de suas filhas, pois,
afinal, elas não tinham sido ameaçadas.
Até esse momento, Victoria havia sentido nostalgias e perdas, mas todas compensadas pelo
projeto conjugal e familiar que o refúgio conseguiu por a salvo e ao qual ela se dedicava por
completo. Quando esse projeto se fraturou, começou o exílio mais duro, o verdadeiro exílio.
Foi essa ruptura o marcador real do que o êxodo e a violência lhe haviam imprimido à sua
vida. Na época, ela pensou em ir para outro país com suas filhas, mas, quando averiguousobre as opções, soube que, apesar de sua sensação de não poder mais continuar com a vida
no Brasil, ela não seria considerada uma candidata para reassentamento. Não existiria,
segundo a lei, justificativas para tirá-la do país. Sem meios materiais para empreender uma
nova viagem por conta própria, terminou ficando e continuando a vida apesar do fracasso do
projeto conjugal. Hoje, anos depois da separação, fortalecida pela experiência de ter
superado esse momento crítico e motivada por uma incrível e contagiosa força vital que a
mantém ativa e sorridente, Victoria busca recompor outra das coisas que quebrou o exílio: arelação com a menor de suas filhas. Essa filha, apesar de ser a integrante da família que mais
tempo de sua vida tem morado no Brasil comparado com o tempo vivido na Colômbia,
também se sente ainda uma refugiada e reivindica esse lugar como o espaço que lhe permite
enunciar suas faltas e, em parte, explicá-las. Para ela, o exílio também está cheio de rupturas,
a pior delas com seus próprios pais e, por meio dela, com ela mesma. Ou com o que ela
considera que houvesse sido “ela mesma” se não tivessem tido de sair da Colômbia nas
circunstâncias que o fizeram.
Acredito que esse fragmento da história de Victoria que, com muitas imprecisões, tentei
reconstruir ilumina aspectos da vida das pessoas que não estão, nem estarão compreendidos
na lógica administrativa do refúgio, nem restaurados com o suposto pacto restituidor de
cidadania que é oferecido como salvação das vidas em risco. Inclusive, anos depois de terem
sido reconhecidos como refugiados, os sujeitos podem sentir a defasagem das etapas prévias.
O “como houvesse sido se...” é uma potencialidade sempre ameaçadora e o ponto de partida
de uma integração que nunca será completa e que desafia o pacto de gratidão que tenta se
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instaurar com a figura do refúgio. A qualquer momento, os sujeitos refugiados voltaram a
precisar dos agentes que são contratados, legitimados e exibidos como os encarregados de
dar suporte ao refúgio deles, mas os tempos de assistência terão expirado, terão sido
sobrepassadas as etapas de estabilização e integração e a responsabilidade sobre suas
próprias vidas lhes terão sido retornada aos sujeitos.
8.3. Quanto tempo passou: o tempo que demonstra e o tempo que transforma
[...] Entre menos tempo estiver naquela zona escura que é o primeiro país de asilo,melhor. Assim, a solução duradoura aqui é muito mais eficiente. (Coordenadorade ONG de reassentamento)
Como mencionado em diferentes momentos da tese, os agentes administradores dosprogramas de refúgio realizam uma valoração do tempo e dos ritmos em que se deslocam e
atuam os solicitantes de refúgio e os reassentados. Aqui, interessa-me salientar que existe a
ideia de que os movimentos dos solicitantes estão marcados pela urgência. Essa percepção,
que tem se transformado num critério de julgamento, está estreitamente relacionada com a
noção do “fundado temor de perseguição” em sua versão/percepção mais espetacularizada e
comumente midiatizada. Essa fórmula discursiva e normativa parece descrever uma cena
segundo a qual um evento, repentino e claramente ameaçador da existência, se desata sobre
as pessoas, sobre suas vidas ou sobre seus lugares de habitação. Evento que anularia nas
pessoas suas possibilidades de pensar, de calcular e de planejar os passos a seguir, assim
como de eleger o destino de seu movimento de saída; deixando somente a opção impulsiva
da fuga assumida, desde esse ponto de vista, como um movimento irracional. Parece, como
apontado por Malkki (1995, p. 110), que o repentino da fuga habilitaria a presunção da
suspensão do social.
A imagem da ameaça repentina e iminente da extinção física, que pode ser mais próxima aos
episódios de violência extrema, vividos por muitas pessoas na Colômbia, não corresponde,
porém, com a realidade da maioria dos solicitantes que chegam ao Brasil. Sobretudo, não
corresponde com a experiência imediatamente vivida pelas pessoas que chegam às cidades
onde estão os postos administrativos que marcarão sua entrada com o rótulo de “solicitantes”
e classificaram suas histórias baseando-se nos critérios burocráticos do refúgio139. Nenhuma
139 A respeito disso, é pertinente lembrar o caso citado na segunda parte da tese, sobre vários grupos decolombianos que, em 2007, foram maciçamente deslocados e que cruzaram a fronteira brasileira. Os eventosreconstruídos por Julia Moreira (MOREIRA, 2012, p. 238), a partir de documentos de arquivo do Acnur e do
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das pessoas que conheci durante a minha pesquisa de campo nessas cidades – sendo eles
solicitantes ou refugiados – moravam perto da fronteira colombo-brasileira antes de vir a
solicitar refúgio no Brasil. Isso permite supor que as pessoas deviam contar com um mínimo
de recursos e com um planejamento básico para realizar a viagem e para chegar até as cidades
que escolheram como destino ou que lhes foram sugeridas pela rede de ONGs que trabalham
como migrantes ou por outras pessoas.
As histórias que as pessoas contaram estiveram cheias desses detalhes de preparação da
viagem, de dúvidas sobre qual seria o melhor destino, dos critérios para a escolha final de
uma cidade, das preparações técnicas para empreender o caminho e dos imprevistos que,
algumas vezes, modificaram suas trajetórias e cronogramas. Todos esses pormenores foramespecialmente significativos nos relatos das pessoas que não contavam com recursos
econômicos para fazer o trajeto de avião e tiveram de fazê-lo de ônibus, ou quando já tinham
tentado morar em outros países da região antes de optar por vir até o Brasil. Para essas
pessoas, o percurso foi mais longo, com mais anedotas, com mais paisagens e com uma
maior exigência física e anímica para suportar as longas jornadas em rotas e ônibus, nem
sempre confortáveis, assim como os controles fronteiriços, amiúde hostis.
O caráter de imediato e de urgência com o que os agentes constroem a imagem genérica do
refugiado não contempla os ritmos de reflexivos e, quando menos, minimamente planejados
da viagem das pessoas que chegaram até as cidades brasileiras das que se ocupou esta
pesquisa. Assim como também não descreve nem contempla outros ritmos da perseguição o
caráter progressivo de algumas ameaças e o ambíguo poder do rumor em meio a contextos
de violência. Omite também as idas e vindas dos sujeitos que esperam que as coisas possam
ter melhorado, que regressam para ver se podem ficar, que vão e voltam medindo as forçascom aqueles que os expulsaram ou com aquilo que os levou a decidir sua saída do país.
Movimentos reflexivos de cálculo e desejo que as pessoas realizaram inclusive quando já
estavam no Brasil e quiseram esperar um tempo antes de ativar a solicitação de refúgio que
lhes submeteria a suas consequentes restrições de mobilidade.
Itamaraty, mostram que, apesar da forma em que essas pessoas foram expulsas, se assemelha muito mais comas imagens de perseguição repentina e ameaça iminente, a opção das autoridades brasileiras não foi a dereconhecer o refúgio, mas a de estimular o retorno deles ao território colombiano.
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A equação que põe em jogo o imediato e a urgência, no contexto da classificação e do
reconhecimento de refugiados, contribui a criar hierarquias sociais e morais que são
utilizadas pelas próprias pessoas para avaliar e julgar quem realmente mereceria, e quem
não, essa dádiva da proteção. Dito de outra maneira, essa fórmula joga com o cálculo que
tenta decifrar quem ia morrer iminentemente e quem não, ou quem talvez fosse morrer, mas
sem esse caráter do imediato marcando sua extinção. Essa pretendida correspondência
unívoca entre o medo, a fuga, o imediato e a irreflexibidade também termina criando
contradições nos critérios de interpretação da história das pessoas que pedem proteção. Nas
declarações dos agentes, exibe-se essa ideia da fuga irracional e instauradora de uma
precariedade total:
[...] E o refugiado em geral é aquela pessoa que tem... ele está desvalido, ele estáem uma situação de drama social tão grande, que ele não consegue empreenderuma viagem intercontinental para buscar proteção no Brasil. A Classificação maiscomum do refugiado é aquela de quem sai do país pela fronteira. Sai a pé, sai deveículos, mas sai num momento de desespero [...]. (Presidente do Conare em“Cenas do Brasil”, TVNBR, 12/17/2012)
Ao mesmo tempo, as funcionárias que entrevistam os sujeitos sugeriram que as etapas em
escalas do êxodo, em particular as etapas no próprio país, são uma prova de que as pessoas
tentaram se refugiar internamente. Essa leitura sugere que a proteção nacional prima sobrea proteção internacional e que os refugiados deveriam seguir essa ordem em seus
movimentos de fuga e busca de proteção. Aqueles que, em seus relatos, mostram esse tipo
de viagem em escalas podem ser mais bem avaliados, segundo me explicaram algumas
agentes. Essa leitura está cruzada de maneira implícita com a situação socioeconômica,
suposta ou declarada das pessoas. Quando os refugiados têm recursos econômicos para pagar
sua passagem e fazem uma viagem de uma cidade colombiana até uma cidade no Brasil, o
movimento direto parece evidente e livre de suspeita. Será catalogado como um movimento
esperável e explicável em razão da urgência que precisaria se pôr a salvo. Porém, quando a
pessoa é oriunda de uma área rural ou de uma periferia urbana e não tem recursos para a
viagem, se espera dela que procure outros lugares de refúgio (a seu alcance) antes de
empreender uma viagem internacional.
De qualquer forma, segundo os agentes, a rapidez com a qual as pessoas solicitam refúgio,
uma vez que tenham entrado ao território brasileiro, será um elemento que jogue a seu favor.
Do contrário, pode ser ativada a suspeita comum de que as pessoas “estão utilizando o
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refúgio para solucionar sua situação migratória”. Essa suspeita continua estando baseada
na premissa da perda de vontade que supostamente caracteriza as pessoas perseguidas e as
distingue daquelas migrantes econômicas desejosas de uma melhor condição de vida. Como
visto, conforme Good (2006, p. 96), a falta de vontade parece um requisito para ser um
refugiado genuíno e o imediato da solicitação avaliado pelos agentes como um elemento de
credibilidade140.
Sugiro pensar no que acontece quando o imediato e a urgência são assumidos como os ritmos
lógicos do medo e dos movimentos geográficos realizados para salvar a vida,
especificamente quando os agentes que avaliam as solicitações de refúgio e as candidaturas
a reassentamento assumem que a perseguição se manifesta sempre e exclusivamente nessesritmos. Perseguição mais urgência envolveriam, segundo essa lógica, a incapacidade de
reflexão e a perda da vontade dos sujeitos que aparecem de repente despossuídos de sua
razão e de seu desejo. Se a perseguição é instauradora também de uma perda dos direitos
civis e políticos que são entendidos comumente como sendo responsabilidade do seu próprio
Estado, a esse sujeito lhe restaria somente seu corpo. Sobrar-lhe-ia a vida que tenta salvar
como única possessão, entendida nesse sentido como a “vida nua” da que, de maneiras
diferentes, falaram Arendt (2007) e Agamben (1998)141
.
O refúgio, como ação humanitária, intervém caracteristicamente sobre essas vidas
entendidas como vidas “humanas”. Vidas que, por não terem mais atributos que sua
humanidade, colaboram com que a ação de agências como o Acnur seja descrita como
“humanitária, social e apolítica” (ACNUR, 2009:2). O que é paradoxal deste movimento,
que já tem sido analisado por vários autores (FASSIN, 2010; FASSIN; RECHTMAN, 2007;
140 Em palavras do autor: “The Handbook of the UN High Commissioner for Refugees specifies that theexaminer should ‘use all the means at his disposal to produce the necessary evidence in support of theapplication’. In particular, applicants should be given the benefit of the doubt if their account appears credible
– if, in other words, it is ‘coherent and plausible’, and does not ‘run counter to generally known facts’. Bycontrast, though IND’s manual does indeed mention the gathering of further evidence, Home Office proceduresseem designed to undermine credibility rather than verify it. For example, despite the traumatic pastexperiences of many refugees with officialdom, and the clandestine circumstances under which many havetravelled, staff are told to query their credibility if they have not applied for asylum ‘forthwith’ (GOOD, 2006,p. 94).141 Butler aponta que duas interpretações próximas, mesmo que com nuances, foram feitas por Arendt (2007)e Agambem (1998) a propósito do espolio dos sujeitos tanto dos direitos que garantiriam sua pertença a umEstado-nação (segundo a primeira) quanto os exercícios de poder que privariam aos sujeitos de sua existência
política lhes deixando somente sua existência em tato que espécie (para o segundo). Para uma reflexão críticasobre essas interpretações e sobre os limites dessa visão que assume a possibilidade de que exista um corpobiológico, para além das ordens que o atravessam e o constituem, pode-se consultar Butler e Spivak (2007).
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TERRY, 2002), é o potencial duplo que esse humano tabula rasa engendra. Em primeiro
lugar, essa humanidade desprovida de outros atributos aparece como um lugar de inscrição
das características de um novo sujeito. A partir disso, se dão as frequentes referências das
autoridades e agentes acerca do refúgio como “uma nova vida”, um “recomeçar de zero” ,
um “se fazer uma vida do nada”. Em segundo lugar, essa característica também aparece
como uma força potencialmente disruptiva da ordem social na qual se pretende “integrar”
ao refugiado. Isso porque um humano, puramente humano, sem possibilidade de reflexão e
sem vontade, pode ser entendido também como a matéria-prima de qualquer coisa, desejada
ou indesejada para os propósitos da integração. Talvez ali se encontre a fonte dos receios
que têm alguns SOS agentes sobre os refugiados que eles administram.
Porque o refugiado é assim, ele é um sobrevivente e se ele detectar fraqueza em ti,ele vai aproveitar isso; porque é assim, eles vão até o final porque tem quesobreviver de alguma forma, então você tem que saber como lidar com isso.(Coordenadora de ONG de reassentamento)
No fragmento citado, parece que a condição humana rasa, encarnada no evento violento que
atingiu o sujeito e naquilo que ele teve de fazer posteriormente para sobreviver, tivesse o
tornado simultaneamente em algo não humano. A respeito dessa presença ambígua e suspeita
de quem se livra da morte, Pollak sugeriu que os relatos sobre a sobrevivência – para o autor
dos campos de concentração nazistas – não apenas dão conta das formas de resistência à
violência e ao extermínio, como das “deformações impostas à pessoa ao longo do tempo”
nesses contextos (POLLAK, 1990, p. 220). Algo dessa proximidade com a morte e do que
foi negociado para sobreviver é a base desse caráter um pouco monstruoso do sujeito que,
segundo os agentes, o faria capaz de ir “até o final”, de sobrepassar os limites e de
“aproveitar a fraqueza” do outro para conservar sua própria vida. Se o refugiado somente
humano assusta por sua hiper-humanidade, o refugiado como sobrevivente assusta por ter
perdido um pouco dessa humanidade.
Mais uma vez, o tempo entra na equação tanto para explicar quanto para remediar esse
caráter monstruoso. O tempo, tanto da urgência no momento extremo de violência quanto
da luta pela sobrevivência posterior, vai transformando o sujeito nesse ser limítrofe entre a
humanidade e alguma outra coisa perigosa. Sobretudo, o tempo transcorrido em alguns
espaços é um tempo que não avança para um estado que progressivamente cure esse caráter,
mas que pode ser um tempo-espaço que o piore. Há lugares que os agentes enunciaram como
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sendo em si mesmos elementos-chave dessa transformação deformadora dos sujeitos. Desse
modo, explica-se a ideia da agente citada ao começo deste subtítulo, segundo a qual: “entre
menos tempo estiver [a pessoa] naquela zona escura que é o primeiro país de asilo,
melhor ”142.
Equador (ou o primeiro país de refúgio) pode ser entendido, com base nos postulados de
Fabian (1983, p. 143-144), como um espaço não coetâneo com relação ao “Brasil da
integração”. Essa temporização dos espaços, regida por uma espécie de cronopolítica, nega
a contemporaneidade dos “outros”, permitindo que os espaços de guerra e os de “crise
humanitária” (nesse caso, Colômbia e Equador), junto com seus habitantes, sejam
concebidos como objetos dos programas de refúgio. Aos agentes brasileiros da integraçãolhes corresponderia a tarefa de reconverter em humanos e sujeitos aos refugiados resgatados
desse tempo-espaço sombrio e desumanizante. Ação que eles apresentam como
particularmente imperiosa sobre aqueles que chegam por meio da “solução duradoura” do
reassentamento e de quem se considera que vão ficar no Brasil.
Agente de integração: Porque o problema é quando vai uma família e aí tenta,mas há falta de integração no local, e então fica muitos anos lá no Equador e aí fica o problema.
Coordenadora de ONG: É. Chega aqui depois de muito tempo de não ter umavida formal e isso prejudica, sim, o processo da integração. (Entrevista com equipede reassentamento).
A tarefa dos agentes seria aquela de trabalhar sobre o tempo da integração dos refugiados
para fazê-los novamente humanos e, especificamente, novamente cidadãos. As ações
empreendidas são um trabalho civilizador que reverte o tempo de ser somente sobrevivente,
chega até o momento de somente humanidade e, a partir dali, constrói um refugiado capaz
de se integrar a sociedade brasileira. Essa última apresentada como uma unidade homogênea.Arrancados do espaço que os torna em algo não humano, os refugiados serão instalados no
espaço que os tornará potenciais nacionais, sujeitos de direitos (restritos) e submersos na
ordem ordenadora do Estado-nação brasileiro contemporâneo.
142 Sonia Hamid (2012, p. 164) realizou uma excelente analise sobre esse mesmo aspecto, apontando que otempo que as pessoas passaram no campo de refugiados é percebido como um tempo que as transformou. Em
palavras da autora: “Em outra direção, Sheila também acionaria o longo período passado no campo comoum momento no qual os refugiados teriam perdido a “noção” de como se portar. Neste espaço/tempo liminar,
portanto, os refugiados teriam deixado não apenas seu status político, social e jurídico na “ordem nacional”,mas também as regras da convivência interpessoal, da boa conduta e da moral ou, em outros termos, sua própriacivilidade. Sua reinserção numa ‘ordem nacional’, assim, também exigia que os mesmos fossem civilizados”.
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crítica da que são alvo frequente, e à que eles também se somam enquanto detratores, é a do
assistencialismo. Somar-se à desqualificação de aquilo que é um elemento da crítica que
outros poderiam fazer contra a agência parece uma forma de se antecipar e evitar essas
críticas.
Apesar de os programas para refugiados serem basicamente assistenciais, os funcionários
insistem no caráter limitado dos benefícios e na forte ênfase de autogestão e independência
financeira colocada nos programas. Durante a pesquisa de campo, vários agentes se
referiram à cultura do assistencialismo143 fazendo alusão menos a uma relação das agências
com as pessoas que recebem benefícios financeiros ou apoios materiais e mais a um tipo de
costume adquirido pelos sujeitos, que faria deles tendentes à dependência econômica. Issocomo uma característica que, segundo os agentes, arruinaria as possibilidades das pessoas
voltarem a ter uma vida normal nos termos e ideais morais da integração.
Segundo essa lógica, os colombianos, particularmente os que não passaram muito tempo no
Equador e viveram sem serem assistidos, teriam sido menos desumanizados. Assim, em um
primeiro momento, os agentes adotam a imagem do refugiado como um ser carente e
desprovido de sua existência política. Mas, em seguida, na hora de avaliar as possibilidadesde integração, parecem adotar a ideia de que esse caráter somente humano não é aquele da
vida nua, mas aquele da preservação de boa parte das características da “vida formal” que
levava antes de ser refugiado, ou que continuo levando no percurso do êxodo. O humano,
143 Julia Bertino Moreira, na sua tese de doutorado (2012), cita também várias entrevistas com agentes derefúgio para quem está presente essa ideia da influência negativa da dependência econômica dos refugiadosnos processos de integração. A autora não problematiza os termos utilizados pelos agentes, nem questiona aideia mesma da autossuficiência dos refugiados como um ideal político, econômico ou moral. As citações
realizadas por Bertino Moreira reforçam a preocupação dos agentes sobre a assistência financeira. Segundo aprópria autora: “Corroborando o ponto colocado por Rovida (2009), segundo a entrevista realizada com Pereira(2009), os palestinos, por terem vivido décadas no campo jordaniano, sofriam de síndrome de dependência,em função da assistência recebida durante anos, o que representou um empecilho no processo de integração”(MOREIRA, 2012, p. 245) [grifos meus]. Na tese de doutorado em Ciências Sociais de Andrea María CalazansPacheco Pacífico (2008), a ideia da dependência dos refugiados também aparece e é apresentada claramentecomo um problema, inclusive como uma patologia com sintomas associados já identificados. Longe de proporuma crítica à patologização do comportamento dos sujeitos produzidos como refugiados ou de sua consequentedeslegitimação das inconformidades ou reclamações que esses possam fazer, a autora – apoiada no trabalho deLance Clark (1985) – fala em Síndrome de Dependência dos Refugiados (SDR) como sendo uma realidadecom a que, além disso, é preciso cortar e afirma que: “[…] ele está fisicamente protegido, mas falta-lheassistência psicológica suficiente (aconselhamento, encorajamento, apoio social, ser ouvido, enjagamento nasatividades de primeiros socorros, etc.), conduzindo-os à tal SDR, cujos principais sintomas são: sentimentos
de letargia e falta de vontade de viver; falta de iniciativa; aceitação das bengalas (apoios prontos); sem atençãoa sua autossuficiência e reclamações frequentes, especialmente com relação a falta de ajuda externa” (2008, p.40-41).
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nesse sentido – e neste momento particular do processo de refúgio – , parece ser entendido
pelos agentes como aquilo que não se tornou monstruoso (especialmente dependente) e que
pode ser reaproveitado nos moldes da integração.
As afirmações sobre as melhores possibilidades de integração desse tipo de colombianos que
se preservaram da desumanização foram usualmente baseadas na comparação do “caso
colombiano” com o “caso palestino”144. Alguns refugiados, e mesmo alguns ex-agentes dos
programas de refúgio, narraram episódios de violência e agressão contra funcionários das
ONGs parceiras do Acnur. Essas agressões realizadas por alguns colombianos envolviam
reclamações e inconformidades com a entrega ou a aprovação de benefícios financeiros ou
materiais. Contudo, a conclusão à que todos os agentes chegaram, inclusive aqueles quereconheceram que houve agressões ou foram agredidos, consistiu em que o programas de
reassentamento de colombianos têm sido um sucesso e que esses episódios foram detalhes
menores.
[...] Teve também alguns colombianos que me ameaçaram de morte, mas eusempre procurei sair calmo, quando entrava para uma discussão acalorada eucortava a conversa e dizia: “olha, a gente se calma e a gente volta e conversa etal”. Então, têm essas coisas, mas isso daí poderia ter sido um brasileiro a quemeu estivesse ajudando, não é por ser um colombiano ou por ser um refugiado [...].No caso de colombianos, foram três ou quatro casos [de ameaça ou agressão], nocaso dos palestinos foi pior. Até porque [...] aí também tem todo um traço culturaldo mecanismo deles de esgotamento psicológico da gente que é diferente. (Ex-coordenadora de ONG de reassentamento)
Na leitura que realizaram os agentes sobre esses episódios de agressões por parte dos
colombianos, os mesmos comportamentos poderiam ter vindo de de um brasileiro. Além
disso, segundo eles, essas reações não se explicam somente porque eles sejam refugiados.
Diferentemente, nas declarações e narrações sobre o reassentamento de palestinos primou
uma leitura de conflito, de muitos fracassos e de uma distância cultural infranqueável –
aumentada pelo tempo que levavam morando como refugiados assistidos – que foi exposta
como causa principal das dificuldades de integração.
144 O “caso palestino” se refere particularmente ao grupo de pessoas, majoritariamente de origem palestina quefoi trazido ao Brasil em 2007, por meio do programa de Reassentamento Solidário. O “caso colombiano” éuma forma de referir ao conjunto de pessoas, quase todas de nacionalidade colombiana, que chegaram em
diferentes momentos por meio do programa de Reassentamento Solidário. Algumas vezes, inclusive, “o casocolombiano” pode estar se referindo às famílias ou aos sujeitos que continuarão chegando por meio doprograma.
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[...] Então, o refugiado sempre chega numa situação difícil, precária... É muitoproblemático. Só que, com os colombianos, a gente tinha a proximidade da línguae alguma proximidade da cultura. E já com os palestinos era tudo diferente, tudo,tudo, tudo, diferente. A cultura muito diferente, o ambiente muito diferente, entãoisso dificultou muito. (Coordenadora de ONG de reassentamento)
Em outras entrevistas, uma com o pessoal de uma das ONGs e outra com um ex-agente de
integração do programa de reassentamento, essas dificuldades apareceram inclusive como
potenciais perturbadores dos próprios agentes e não somente da possibilidade de integração
dos refugiados. O processo de integração de grupos considerados tão diferentes é entendido
então como uma experiência potencialmente traumatizante também para os grupos
receptores. Ressalta-se, em ambos os casos, novamente, uma distância que incapacitava a
possibilidade de reconhecimento de uma comum humanidade como laço que facilitaria o
processo. Aliás, ainda reconhecendo diferenças na execução do programa de reassentamento
para cada um dos grupos comparados, inclusive a respeito dos montantes financeiros e do
interesse institucional do Acnur com cada um deles, essas dessemelhanças não entraram em
jogo em suas declarações como elementos explicativos com igual peso que aquele da
alteridade:
Entrevista 1
Agente de reassentamento: Então, com a vinda dos palestinos tivemos ainda, oueu tive, uma preocupação muito forte por manter a sanidade mental da equipe,porque estávamos ficando doidos aqui, porque o palestino, quando não gosta detua cara, ele cospe na tua cara, ele briga assim, grita, cospe, e se deixar ele faz maiscoisas. E como é que a gente ia suportar isso? Como a equipe se manter coesa?
Eu: E com os colombianos tiveram o mesmo tipo de problema?
Agente de reassentamento: Não, não, a gente nunca teve problema nenhum.
Entrevista 2
Eu: Nunca o programa deu problema com os colombianos?
Ex-agente de integração: Não, tinha problema, lógico que tinha problema. Agente discutia, brigava, não era tudo tão tranquilo. Cada seis meses eu tinha que irpara Brasília a negociar com o Acnur o que é que fica, o que é que não fica. Euacho que um pouco até por características minhas [...] eu puxava muito a sardinhapara meu lado para esse programa. Então, foi uma coisa assim, não foi feito naregra do Acnur. Foi um programa feito nas regras da Cáritas, então foi umprograma muito mais humano. E, com os palestinos, a verba vinha de outroslugares, de outros doadores o cinto era muito mais apertado, aqui era um programaque estava começando. O Acnur estava reabrindo o escritório no Brasil e eleprecisava mostrar resultados. E foi o começo. Depois, com os palestinos, a genteteve muito problema com tradutor, eu tinha tradutores que não traduziam as coisaspara mim porque tinham vergonha. Eu tive muito embate cultural. Ah! Que é fácil?
Ahã. Fala aí de relativismo, vai! Vai viver ele no dia a dia. É outro mundo, é outromundo, é outro mundo. Eu lembro que na entrevista que eu dei para [outrapesquisadora], eu estava muito, muito machucada ainda e eu perguntava para [ela]:
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Que tipo de seres humanos são eles? Porque eu não reconhecia a igualdade. Eusou de um jeito, e eles são de outro completamente diferente. Então, era uma coisaassim de outro mundo. E, com os colombianos, não tinha isso até pela facilidadeda língua.
Segundo os agentes do refúgio, a diferença cultural com os palestinos marca uma imensa
distância, apontando a dificuldade de integração por meio de todos os pressupostos
civilizatórios associados à ideia de tornar apto um grupo de pessoas para viver em uma
determinada sociedade. Além disso, somado à diferença cultural que é atribuída aos
palestinos em geral, os agentes agregam mais uma dificuldade a esse grupo em particular
que é chamado do “caso palestino”. Segundo eles, as pessoas desse grupo teriam o “ costume
do protesto” como um hábito adquirido durante o tempo que permaneceram assistidas no
campo de refugiados de Ruweished (Ver: HAMID, 2012).
[…] os palestinos que são sunitas foram para um campo na fronteira da Jordâniacom o Iraque, e eles ficaram presos dentro do campo, porque o exército da Jordâniapatrulhava, e eles só saíam do campo para ir para o hospital quando estavam muitodoentes. Então, eles tinham essa coisa muito de protestar; então daí quando oAcnur ia levar comida para eles, aí eles protestavam e eles já vêm de umaexperiência assim, da briga, e daí quando chegaram aqui foi complicado, porqueaté eles entenderem que se pode sentar e conversar [...]. (Agente dereassentamento)
Essa última frase da citação, “eles entenderem que se pode sentar e conversar ”, marca umtempo muito particular e ilustra parte desses pressupostos associados a certos espaços como
elementos transformadores. Esse fragmento enfatiza a demora que pode implicar o complexo
trabalho civilizador de “ fazer com que os palestinos entendam” os códigos “adequados” da
comunicação. A comparação sempre presente com esses “outros” permitiu que “os
colombianos” me fossem apresentados como uma alteridade não muito alterna. Uma
alteridade integrável, na medida em que requer menos esforço e menos tempo para ser
acondicionada aos moldes da nação brasileira. Foram, assim, apresentados como humanosmais parecidos com os formatos de cidadania pautada na autogestão própria do modelo
neoliberal a aos padrões culturais que os agentes qualificaram como próprios. A esses
representantes de uma alteridade integrável, segundo os agentes, lhes pode ser ensinado o
que faz falta para seu processo de integração como mais facilidade que a esses “outros” de
uma alteridade radical. Ou seja, com “os colombianos”, os processos de integração
entendidos como esforços de nacionalização de refugiados (SEYFETH, 2000, p. 47) têm a
potencialidade de serem mais rápidos e menos agressivos.
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Coordenadora de ONG: Olha, é um desenho de projeto bem diferente. A genteteve que fazer outra proposta, porque, no caso palestino, eles vivem emcomunidades quase tribais. Assim, é uma organização meio tribal. Então, a gentefoi procurar na própria comunidade aqui, local, lideranças políticas ou religiosasque nos ajudassem e nos apoiassem no reassentamento palestino que é bem
diferente da colombiana. A colombiana é dispersar, e o palestino foi realmenteinserir nas comunidades palestinas de migrantes já existentes. Nós fizemos entãoessa parceria com a comunidade e foram então definidas as cidades as quais nóspoderíamos mandar famílias palestinas que a comunidade local ia-nos ajudar, porcausa do idioma, da tradição. Porque a necessidade número um também era tertradutores, porque tudo era muito diferente.
Agente de reassentamento: E a questão da diferença cultural, que é muitodiferente porque várias meninas chegaram com véu e depois algumas largaramaqui, e outras ainda usam.
Outra das diferenças salientadas entre esses dois grupos antagonizados, no discurso dos
agentes e no universo institucional do refúgio brasileiro, é a relação que cada um deles teriacom a gratidão e as formas de sua expressão pública. Enquanto, como visto, os palestinos
são acusados de terem aprendido a protestar no campo e de serem “culturalmente” tendentes
às reclamações pouco educadas, os colombianos são apresentados como agradecidos e
distantes da queixa.
[...] Porque é difícil encontrar um refugiado colombiano que reclame da vida. Não!Ele vai reclamar claro, do fundado temor de perseguição, daquilo que o levou a...Daquele entorno que se coloca que é próprio do refugiado, e é normal. Mas aquela
outra reclamação que seria reclamação de... Sei lá! De está tudo ruim! Fica tudochato! Não. Um colombiano você não encontra não. É interessante, eu tenhoconversado com alguns colombianos que estão no Sul do país, no interior de SãoPaulo, que estão aqui em Goiás também, e nós observamos que eles estãocontentes [...] pese a todo o drama pessoal, da aquela história que os trouxe aqui.Então, não há reclamação por conta do fato de estar aqui. A reclamação é daquiloque os trouxe aqui. Que é uma reclamação normal. (Coordenador do Conare)
Considero pertinente interrogar essa apresentação “exitosa e agradecida” dos
“colombianos” que foi se mostrando como uma ideia compartilhada pela maioria dos agentes
brasileiros do refúgio. Eu mesma percebi, em muitas das conversas com as pessoas, umareiteração da gratidão e um reconhecimento constante dos benefícios de todas as “ ayudas
recibidas”. Foram poucos os casos das pessoas que reivindicaram e usaram a linguagem dos
direitos para descrever sua relação com os agentes e para reforçar, de passagem, o caráter
legal e não pessoal que esse vínculo teria. Também foram poucos a expressar que eles não
deviam gratidão aos funcionários por cumprir com as tarefas pelas quais recebiam um
salário. Ao contrário, a maioria das pessoas, apesar de todas as inconformidades que
expuseram, manifestaram suas queixas depois de ter repetido o agradecimento que sentiam
e de me explicar que não era por ingratidão que eles reclamavam.
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Inspirada em Scott (2000) considero que, como grupo subordinado, os reassentados puderam
me oferecer, em seus relatos, uma sorte de “discurso oculto” por meio do qual “crean y
defienden, a escondidas, un espacio social en el cual se puede expresar una disidencia
marginal al discurso oficial de las relaciones de poder” (SCOTT , 2000, p. 20). Com isso,
quero dizer que a expressão da moléstia não aconteceu da mesma maneira diante de mim
que diante dos agentes do reassentamento. Meu trabalho foi visto por muitas das pessoas
refugiadas, segundo elas me disseram, como uma forma de “contar su verdad sobre el
programa”. Inclusive, algumas apontaram que falar comigo era uma espécie de terapia que
lhes permitia tirar moléstias ou dores velhas. Tudo isso sem esperar um intercâmbio direto,
benefícios ou reparações evidentes a partir dessa narração, mas com a tranquilidade cada vezmaior – à medida que íamos ganhando confiança – de que sua narração não lhes traria
prejuízos.
As pessoas sabiam que a expressão da moléstia, quando feita diante dos agentes que exercem
poder sobre eles e suas vidas, poderia acarretar prejuízos, inconvenientes e desajustes na
relação estabelecida com eles ou no cumprimento da entrega de benefícios. Quase todas as
pessoas me recomendaram não dar seus nomes para que as pessoas das ONGs não soubessemo que elas tinham dito. A solicitação de reserva de seus nomes e de cuidado com a
informação por eles fornecida me foi feita inclusive pelas pessoas que já não recebem
assistência das ONGs. Considero que essas recomendações e esses sigilos, além de estarem
relacionados com o medo das possíveis represálias, estão relacionados com uma valoração
moral das pessoas sobre o dever ser das relações sociais nas quais a gratidão é um elemento
altamente estimado. Essa espécie de virtude seria, além disso, um facilitador das relações
com os agentes do refúgio, já que uma valoração moral compartilhada com eles lhes localizaem uma situação menos díspar em meio a essas relações hierarquizadas que estabelecem
distâncias.
A esse respeito, também é esclarecedora a proposta de Grace Cho (2008, p. 13) que apontou
que a gratidão e o silêncio foram elementos fundamentais para a construção da diáspora
coreana nos Estados Unidos como um caso bem-sucedido de migração. O silêncio sobre o
acontecido na guerra foi exigido desses migrantes coreanos, mas era ao mesmo tempo fácil
de obter, pois também as pessoas envolvidas se protegeram com esse mutismo, obtendo por
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meio dele um lugar não problemático para si mesmos no meio à diáspora. Sugiro que também
a construção dos “colombianos” como um grupo exitoso de refugiados passa pelo fato de
guardar silêncio, de não protestar e de selar um pacto de gratidão com as comunidades de
acolhida. Nesse pacto, “os fantasmas” da guerra e determinados sofrimentos inenarráveis do
êxodo não devem contaminar o presente da integração e da salvação que lhes oferece o
refúgio. Domesticar os fantasmas, deixá-los no quintal e tornar público somente aquilo que
socialmente possa ser significado como uma dor digna de luto e reparação faz parte
fundamental desse silêncio agradecido da integração.
Levando em conta a proposta de Mauss contemplada no ensaio sobre a dádiva (MAUSS,
2002), considero também que, por meio da manifestação da gratidão, é possível manter ativoo circuito de obrigações materiais e morais que é criado entre doadores e receptores desse
bem precioso de refúgio que está em jogo, particularmente do refúgio que deveria culminar
em uma situação exitosa de integração. Vale lembrar que, no caso dos reassentados, as ONGs
e suas funcionárias continuam sendo, durante muito tempo, a principal referência de contato
e as encarregadas de assessorá-los nos processos burocráticos de renovação de documentos,
validação de diplomas, etc. Essas ONGs e essas pessoas continuam sendo básicas durante
longos períodos inclusive depois de finalizada a etapa de assistência financeira.
Assim, considero necessário levar em conta o vocabulário e as formas que são utilizadas no
universo institucional brasileiro do refúgio para falar tanto dos grupos de pessoas refugiadas
quanto de sua própria gestão. O vocabulário utilizado para avaliar o êxito da integração
mistura o registro da caridade cristã (ajuda, o valor moral da recepção, as virtudes do
sacrifício e da gratidão) com o registro do empreendedorismo neoliberal das democracias
modernas (autonomia, autogestão, independência, capacidade de adaptação) – vocabulárioe práticas nas quais alguns sujeitos se movimentam com maior facilidade e têm mais
treinamento do que outros. Para a integração, ao mesmo tempo que o sujeito deve ser ativo
e tomar as rédeas de seu processo de reconstrução vital, lhe é exigido também que aceite
aquilo que lhe é oferecido e, em virtude de sua situação precária, agradeça a salvação nos
termos e nas condições em que ela vier. Tudo isso sem se queixar demasiado e especialmente
sem se queixar coletiva e publicamente.
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9. Nono capítuloA integração e as fronteiras do Estado-nação
Diferentes planos da categoria tempo têm sido propostos nessa última parte da tese até agora.
Na presente seção, interessa-me discutir “a integração” como outro processo que é em si
mesmo construído como atributo do tempo, não apenas porque o tempo qualifica e associa
valores aos sujeitos, como visto, mas também porque, no trabalho do tempo (processos,
esperas, fixações, urgências), decantam-se as ações do Estado que nos permitem ter uma
porta de entrada para entender os processos que o vão formando. Além desses planos
elencados, ficará mais claro, nas páginas a seguir, a “integração” como processo também é
uma forma de administração de Estado que pode ser entendida como um processo de longo
prazo, uma sorte de tradição administrativa.
A integração é o objetivo declarado de boa parte dos programas contemporâneos de refúgio
coordenados mundialmente pelo Acnur. Portanto, a integração também tem se tornado uma
forma de avaliação e de ação sobre a vida dos sujeitos que chegam ao Brasil por meio desses
programas. Sob o rótulo de “integração local”, o Acnur e suas ONGs parceiras se referem a
uma das três “soluções duradouras” que oferece essa agência mundial para o “problema dos
refugiados”, sendo o “retorno” e o “reassentamento” as outras duas propostas. Segundo os
documentos do Acnur, a integração seria a opção mais adequada, quando o retorno ao país
de origem não é viável:
En ocasiones, el retorno al país de origen no es una alternativa viable, en cuyo casoa los refugiados se les puede permitir permanecer indefinidamente en el país dondehan encontrado condiciones de seguridad. En estas situaciones, se estimula a losrefugiados a que se integren en las comunidades locales y, con el tiempo, puedanllegar a obtener la residencia permanente o la ciudadanía, en cuyo caso dejaríande ser refugiados. (ACNUR, 2006, p. 77)145
145 No mesmo documento do Acnur (2006) e em várias de suas publicações web, são oferecidos detalhes decomo é concebida a “integração local” e quais são os objetivos que deveriam guiar esse processo: “Laintegración local es un proceso gradual que tiene lugar en tres ámbitos: Legal: a los refugiados se les otorgaprogresivamente un más amplio rango de derechos, similares a aquellos disfrutados por los ciudadanos, quelleva eventualmente a obtener la residencia permanente y, quizás, la ciudadanía. Económico: los refugiadosgradualmente se vuelven menos dependientes de la asistencia del país de asilo o de la asistencia humanitaria,y son cada vez más autosuficientes, de manera que pueden ayudarse a ellos mismos y contribuir a la economíalocal. Social y cultural: la interacción entre los refugiados y la comunidad local les permite a los primerosparticipar en la vida social de su nuevo país, sin temor a la discriminación o la hostilidad. Incluso cuando laintegración local no se persigue como una solución duradera, promover la autosuficiencia entre los refugiados
puede ayudar a alcanzar las otras dos soluciones duraderas” (Fonte: UNHCR ACNUR: Agência da ONU paraRefugiados. Integración local: uma nueva vida em um país generoso. Disponível em: <www.acnur.org/t3/que-hace/soluciones-duraderas/integracion-local>. Acesso em: 5 fev. 2014.)
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A princípio, a integração é mostrada como uma solução e, nesse sentido, seria algo pronto,
algo já elaborado. Contudo, em seguida, é proposta também como um objetivo, como uma
ação a ser realizada, de modo que, como mencionado no fragmento anteriormente citado “se
estimula a los refugiados a que se integren” e são despregadas estratégias tendentes a
conseguir esse propósito. Daí que, na tese, tenha considerado pertinente indagar as relações,
as práticas, as técnicas e os pressupostos que orientam as ações dos agentes que atuam como
guias e administradores desse processo de integração de refugiados nas comunidades locais.
Entretanto, considero também relevante encarar a integração como uma noção que contém
várias hipóteses nem sempre homogêneas e nem todas surgidas exclusivamente da prática e
perícia do Acnur. Como visto na primeira parte da tese, no desenvolvimento recente daspolíticas de refúgio no Brasil, podem ser encontradas tanto continuidades quanto rupturas.
Já foram mencionadas as importantes transformações nos modelos de governo desde finais
dos anos 1980 e a relação de boa parte delas com os chamados processos de
redemocratização (Ver TEIXEIRA; SOUZA LIMA, 2010, p. 62). Igualmente, as
transformações também tinham relação com a tendência, quase planetária, à implementação
de práticas políticas baseadas em critérios de participação e modelos neoliberais de
autogestão. Além disso, também é importante levar em conta uma sorte de homogeneizaçãoglobal de critérios técnicos, noções de intervenção e práticas de gestão dos refugiados a partir
da legitimada presença e assistência técnica do Acnur em muitos dos países receptores de
populações em êxodo.
Há outros aspectos contidos e expressados nessa noção de integração que podem ser
entendidos, mas que, como rupturas, como continuidades de várias etapas prévias da história
brasileira de administração e gestão de grupos migrantes ou refugiados. Proponho entenderque os pressupostos da pretendida integração têm relação não apenas com os relativamente
recentes formatos técnicos do Acnur mas também com as diferentes formas que tem cobrado
a preocupação história sobre a presença de populações estrangeiras em território considerado
brasileiro e sua relação com a sociedade nacional.
A respeito do mencionado assunto, Giralda Seyferth tem apontado em diferentes momentos
que, por meio da ideia de assimilação, ou de sua homóloga antropológica da aculturação, a
integração dos migrantes e seus descendentes na sociedade nacional foram uma preocupação
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presente desde meados do século XIX em diferentes setores da sociedade brasileira
(SEYFERTH, 2000, p. 45). Os trabalhos da autora têm iluminado também a relação entre os
processos migratórios – em particular aqueles que foram promovidos pelos governos – e os
critérios raciais e culturais com os quais os ideais da importação de estrangeiros foram
guiados, assim como sua relação intrínseca com a construção de um determinado modelo de
nação146.
Variados momentos e desenvolvimentos da relação com os povos estrangeiros – e com a
diferença referencial que sua presença significou para uma sociedade nacional brasileira
pretensamente unificada – podem ajudar a descrever as coincidências e continuidades de
outras épocas com a forma contemporânea dos processos de integração de refugiados.Particularmente, parece-me relevante e coincidente a ideia, ainda pressente, de que há povos
com maior possibilidade de “abrasileiramento” 147 do que outros (SEYFERTH, 2000, 46;
1997, p. 96). No entanto, também são interessantes as coincidências com a preferência
histórica pelos processos migratórios que permitam escolher os estrangeiros mais desejáveis
(segundo os propósitos de cada momento histórico), assim como o temor expresso de que os
estrangeiros formem “guetos” segundo o discurso dos agentes do refúgio contemporâneo.
Notadamente, esse último aspecto pode nos remeter ao debate, durante o Estado Novo arespeito da inconveniência de permitir a formação de “quistos” no corpo da nação, como
mostrado de maneira crítica por Seyferth (1997, p. 95). A “dispersão territorial” como
estratégia de integração (abordada na segunda parte da tese) aponta para esse objetivo e
ilustra o temor, ainda pressente, de uma alteridade enquistada no corpo nacional.
Se a presença de estrangeiros pôde interrogar, de diversas maneiras, a constituição e as
características da nação brasileira, não tem sido somente pela diferença e o contraste culturalentre nacionais e estrangeiros. A respeito disso, é pertinente levar em conta a proposta de
146 Seyferth tem abordado algumas das relações fundamentais para pensar os pressupostos raciais que estiveramna base da formulação das primeiras políticas migratórias brasileiras a partir da segunda metade do século XIX.A autora propõe uma leitura que mostra, por exemplo, como, para esse momento, a abolição da escravatura ea migração eram dois temas que se discutiam juntos (SEYFERTH, 1995, p. 179). A autora também traça, comagudeza, outros tipos diferentes de conexões (às vezes, inclusive, antagônicas) que tiveram entre si a migração,o desenvolvimento econômico nacional e a assimilação. Além de analisar as formas em que esses assuntosafetavam ou se valiam dos pressupostos da mestiçagem como critério central da interpretação da históriabrasileira a inícios do século XX (SEYFERTH, 2000, p. 46).
147 Giralda Seyferth utiliza, em diversos textos e de maneira analítica, o termo “abrasileiramento”, explicandoque, como termo nativo, expressa a ideia de que a assimilação dos estrangeiros foi pensada, desde finais doséculo XIX, como um processo unidirecional de nacionalização de “alienígenas” (SEYFERTH, 2000, p. 46).
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trabalhos como o de Mazouz (2010) que também sugerem que a questão das discriminações
raciais associadas à imigração pode iluminar a existência de fronteiras interiores – na
sociedade francesa no caso de seu estudo. Essas fronteiras interiores questionariam a
igualdade de direitos dos cidadãos e não apenas dos estrangeiros (MAZOUS, 2010, p. 8).
Também nos tra balhos de Seyferth, o lugar da integração e os encarregados de “assimilar”
esses estrangeiros nos remetem a interrogantes sobre a suposta completude da mestiçagem
e a também imaginada unidade da sociedade nacional brasileira.
As relações propostas nos trabalhos citados nos interrogam sobre quais seriam os lugares, os
grupos, as comunidades locais e os espaços sociais nos que devem e podem entrar esses
estrangeiros que pretendem se integrar à nação148. Se a ênfase do assunto da recepção eadministração de populações, pensadas e produzidas como refugiadas, havia nos remetido
até agora para a questão das fronteiras externas do Estado-nação brasileiro, o assunto da
integração nos remete necessariamente às fronteiras internas desse lugar imaginado como
uma unidade nacional.
9.1. Uma solução duradoura, um esforço pedagógico cotidiano
A princípio, a integração me foi explicada pelos agentes brasileiros do refúgio com o mesmovocabulário e definição que estão contidos nos documentos do Acnur. Isto é, como “ uma
das três soluções duradouras para o problema dos refugiados”. Porém, a integração também
remeteu ao objetivo primordial dos programas para refugiados, em particular o
Reassentamento Solidário. Isso porque, como visto, enquanto o refúgio por elegibilidade (ou
espontâneo) se constrói jurídica e simbolicamente como um estado provisório, o
148
Esse assunto pode se remeter ao paradoxo exposto por Seyferth a respeito da ideologia do branqueamentoque supunha que os grupos que deveriam ser branqueados por meio da migração eram, simultaneamente, osencarregados de “abrasileirar” a esses estrangeiros. Em palavras da autora: “A exclusão dos alemães, que, noImpério, foram considerados os imigrantes ideais para o sistema de colonização com pequenas propriedades,ocorreu porque nossos teóricos do branqueamento incorreram num paradoxo [...]: conceberam a “formação(étnica) brasileira” desde a época colonial como resultado de um amplo processo de caldeamento de raçasconsideradas inferiores, bárbaras e selvagens (negros e índios), ou brancos produzidos por mestiçagem(portugueses); os imigrantes europeus serviriam, entre muitas outras coisas, para branquear essa populaçãomestiça que, mesmo concebida como inferior em raça e cultura, tinha a missão de abrasileirá-los. Dito emoutras palavras, o ideário do branqueamento afirmava a inferioridade irremediável de grande parte dapopulação nacional (negros, índios e mestiços de todos os matizes), mas imaginava que esta mesma populaçãopoderia transformar em brasileiros/latinos todos aqueles brancos “superiores” encarregados de fazê-la“desaparecer” fenotipicamente” (SEYFERTH, 1995, p. 181). No caso do refúgio contemporâneo que me
ocupa, as comunidades locais onde se pretende integrar aos refugiados (especialmente aos reassentados), namaioria das vezes, são elas mesmas o objeto da intervenção de políticas de governo que procuram construirideais de população, de família, de núcleos produtivos, etc.
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reassentamento, ao contrário, é pensado como duradouro e, muito amiúde, apresentado como
definitivo.
No caso dos postos administrativos, que gerem os assuntos dos refugiados espontâneos,
existem pautas para a recepção das pessoas que suas funcionárias chamam, em alguns casos,
de “programas” e em outros de “serviços”. Esses me foram apresentados na Cáritas como
sendo fundamentalmente quatro: proteção, assistência, integração e saúde mental. Segundo
a descrição das funcionárias, esses “serviços” são a forma de organizar e apresentar o
atendimento que oferecem as ONGs como representantes da sociedade civil, mas
especialmente como organizações que trabalham conveniadas com o governo e com o
Acnur. Com “proteção”, as funcionárias aludem ao atendimento jurídico que inclui aativação do processo de solicitação de refúgio, a gestão da documentação e a assessoria para
recorrer, caso a resposta do Conare seja negativa. Com “assistência”, referiram à
administração e entrega de apoios materiais e financeiros e, com “saúde mental”, ao
atendimento psicológico ou psiquiátrico e urgência. Já “integração” foi sempre um termo
mais ambíguo, porém, quando mencionado, as funcionárias se referiram basicamente aos
cursos de português oferecidos aos refugiados, aos cursos básicos ou técnicos de formação,
à tramitação dos documentos trabalhistas e escolares e à ajuda para conseguir empregos.
Esses mesmos elementos elencados foram salientados pelos outros agentes da tríade do
refúgio. De maneira geral, em seus discursos, podem ser identificados três aspectos básicos
reiteradamente mencionados ao falarem em integração ou ao serem interrogados sobre o
assunto. São eles: trabalho, língua e escola; essa última mais orientada para as crianças.
Desses três elementos, o trabalho é aquele que primeiro apareceu e que, de forma mais clara,
foi enunciado como um escopo-chave na integração dos refugiados. De fato, várias vezes,ao perguntar aos agentes sobre o tema da integração, a resposta esteve relacionada com o
trabalho sem que sentissem a necessidade de explicitar o vínculo nos dois assuntos e sem
que considerassem pertinente aclarar o tipo de relação estabelecida nesse momento entre
eles.
Eu: No que diz respeito ao processo de integração dos colombianos, há problemasde...?
Agente de Posto Adminstrativo: Não, como todos os outros, eles também sedispõem a fazer qualquer trabalho, ficam muito preocupados em querer conseguiro refúgio no Brasil, e eles fazem o trabalho... Segundo qual é a formação dele, a
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habilidade dele, a gente tenta encaixar ele. Mas, não podendo, eles aceitam otrabalho que aparecer. [...] Eles se sujeitam, se sujeitam, não, mas eles aceitamqualquer tipo de trabalho. O maior número de empregos que a gente tem aqui é deauxiliar de empresa, construção civil, eles não têm problema, eles aceitam, dianteda dificuldade deles para se integrar, eles aceitam. As coisas vão melhorando
conforme eles vão se integrando [...]. (Agente da Cáritas)
O trabalho, como forma de integração, foi quase sempre referido à necessidade de que os
sujeitos refugiados tornaram-se rapidamente autossuficientes para assim exorcizar os
fantasmas da dependência e do assistencialismo. Com maior nitidez, inclusive que, no
refúgio espontâneo, o assunto da capacidade laboral dos refugiados apareceu no programa
de Reassentamento Solidário. Os agentes que integram a Missão de Seleção e, em geral, os
agentes da tríade foram explícitos em que o perfil do reassentado ideal é o de um sujeito com
idade e capacidade laboral, viajando em companhia do seu núcleo familiar com filhospequenos. Esses últimos, preferentemente, em idade escolar para não obstaculizar as
possibilidades de empregar-se de seus pães.
Além da reiterada necessidade de independência financeira, as referências ao trabalho como
base da integração permitem identificar outros aspectos que lhe são associados. Em primeiro
lugar, permite notar que esses agentes consideram que o lugar genérico da integração para
os refugiados e aquele dos setores laborais e sociais mais baixos da economia nacional, comseu consequente identificação sociocultural como setores populares. Assim, apesar dos
grandes esforços para distinguir refugiados de migrantes econômicos, para ambos os grupos,
são destinados os trabalhos menos remunerados e, em especial, aqueles que não representem
um potencial perigo para os setores e grêmios profissionais que desfrutam de prestígio social
e econômico no nível nacional.
A questão do estudo é uma coisa que para nós dificulta porque a gente não manda
nas corporações: engenheiro é engenheiro, médico é médico e quanto menos vierde fora, para eles, muito melhor, e não existe essa solidariedade de quererreconhecer o título. E o cara de mão de obra, assim da área de serviço, se dá muitobem. Porque são muito trabalhadores, muito trabalhadores, colombianos nasempresas se destacam, causam até um ciúme positivo dos colegas brasileiros queestão aqui há 15 anos fazendo a mesma coisa, muito acomodados. Já nós tivemosmais de um caso em que nós tivemos que intervir frente à empresa e até pedir ao
próprio refugiado para baixar a bola, ir devagar: “tu é bom, mas dá um tempo, as pessoas vão te massacrar aqui”. Então, ele teve que dar uma abaixada no ritmodele para não... Porque a empresa estava tendo problema, era grande e nuncatinham tido esse problema, uma empresa grande, uma multinacional e falaram:“senhora, nós nunca tivemos esse problema de alguém trabalhar mais e os outrosnão gostarem”. Então, o rapaz teve que fazer isso, mas mesmo assim acho que
passou dois anos ali, e hoje ele é empresário, ele abriu seu próprio negócio, ele éimportador e exportador. Então, ele agora está muito bem, mas cara é umaprendizado para todo mundo. Então, é assim, são muito trabalhadores, eles têm
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muitas ganas de trabalhar e então se dão muito bem. (Coordenadora de ONG dereassentamento)
O segundo aspecto que expõe essa reiterada referência ao poder integrador do trabalho é a
ideia de que ele é em si mesmo uma atividade dignificante e com um grande poder
pedagógico e moralizante. Entrar na “vida formal” da sociedade brasileira necessitaria do
aperfeiçoamento de determinadas características que somente se adquiririam por meio de
atividades e relações muito específicas com os outros, com o dinheiro, com uma determinada
racionalidade de gestão de seus próprios recursos e tempos, etc. Os agentes da tríade
costumam dizer que os refugiados desfrutam dos “mesmos direitos que têm os nacionais”,
mas esquecem de complementar que são os mesmos direitos dos nacionais pobres e que se
referem basicamente (e de forma ideal) aos direitos laborais e aos serviços gratuitos de saúde
e educação. Outras formas de cidadania, não subsumidas no âmbito produtivo e financeiro,
nem sequer aparecem nas narrativas dos agentes.
As estratégias para a integração privilegiam então a educação básica e o emprego como
promotores de uma cidadania muito específica que tem também espaços bem delimitados
para seu exercício. Não apareceu, nos discursos dos agentes, por exemplo, uma preocupação
por desenvolver práticas pedagógicas para fomentar a participação política ou oconhecimento dos direitos diferenciados das populações refugiadas. Porém, apareceram
estratégias para formar hábitos financeiros nos sujeitos. Para as famílias de reassentados que
viveram muito tempo assistidas e para aquelas que nunca tiveram contato com o sistema
financeiro, foi criado um programa de microcrédito que oferecia o financiamento de
pequenas empresas familiares149.
Segundo me contou uma ex-funcionária do programa, para os primeiros grupos dereassentados colombianos, o dinheiro foi entregue com juros mínimos e, muitas vezes,
quando comprovado que as pessoas “cumpriam com as obrigações de pagamento”, boa parte
da dívida era perdoada. Tudo isso sem que os refugiados soubessem do funcionamento real
149 Algumas das primeiras famílias que chagaram ao Brasil pelo programa de reassentamento disseram terrecebido crédito, mas os agentes que atualmente trabalham nas ONGs encarregadas do programa, não sereferiram ao assunto. Porém, várias das famílias recentemente chegadas me contaram que, no Equador, quandoentrevistadas pela “missão de seleção”, lhes foi oferecida a possibilidade de um crédito com baixos juros, para
que eles pudessem montar pequenos empreendimentos familiares. Algumas famílias estavam chateadas nomomento de nossas entrevistas, porque não tinham recebido o crédito oferecido e algumas afirmaram que eramentira que o programa continuasse prestando esse tipo de benefícios.
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do sistema de crédito, para que o exercício funcionasse como uma encenação da “vida
formal” que lhes fosse educando para o futuro:
Ex-agente de reassentamento: [um refugiado] pegou empréstimo no Banco deRio Grande do Sul, era um acordo com o Acnur e com um banco de créditosolidário que era para esses aportes de microcrédito. Eu acho que se chamaCredisol. Isso era, os refugiados não sabiam, mas o Acnur fazia um aporte proCredisol e, com os projetos, ele apoiava algumas iniciativas. Mas era um aportedo Acnur, mas quem aparecia era o Credisol, os refugiados não sabiam que odinheiro era do Acnur, eles sabian que era do banco.
Eu: E por que isso?
Ex-agente de reassentamento: Porque para ter uma responsabilidade com ocrédito porque alguns empreendimentos que foram diretamente feitos com oAcnur nunca foram devolvidos, então aqui era nada de juros, muito, muito pouco,
eram juros solidários mesmo, assim de verdade, eram de 2% no contrato inteiro decinco anos. Era uma coisa assim bem simbólica, mas que tinha um compromissoque gerava boleto, que tinha que pagar no banco, saía um contrato e tudo mais.Porque era um jeito também que o Acnur enxergava de educá-los para o créditoporque, no Brasil, é muito complicado abrir empresa, trabalhar com crédito, abrirconta em banco. Que era muito diferente do que eles tinham vivido na Colômbiae principalmente vivido nos últimos anos no Equador onde a informalidade émuito maior.
Esse sistema de crédito era oferecido preferencialmente a famílias que, por meio da escola
dos filhos, os vínculos com organizações sociais e igrejas de bairro e dos compromissos
laborais dos adultos, estiveram sedentarizados e cada vez com mais redes geradoras deobrigações sociais, entre elas a do pagamento das dívidas. Dessa maneira, dito sistema de
crédito apareceu como uma dupla função. Em primeiro lugar, esperava-se que o crédito
oferecido pudesse ajudar efetivamente no desenvolvimento de pequenos negócios que
oferecessem ingressos estáveis à família e, portanto, independência financeira uma vez que
finalizasse a assistência financeira do programa. Em segundo lugar, esperava-se que
funcionasse como uma pedagogia de educação no sistema financeiro e creditício e como
uma forma para criar alguns hábitos nos refugiados. Esse sistema como pedagogia daintegração é ilustrativo da constante articulação entre práticas cotidianas, preocupações
populacionais e valores morais nos processos de reassentamento.
Tal pedagogia de crédito é assim destinada aos chamados “núcleos familiares”. Presume-se
que as pessoas que integram cada família vão estabelecendo determinado tipo de relações na
medida em que passa o tempo e que essas relações – baseadas em um esquema bastante
convencional de gênero e geração – seriam estabelecidas de maneira diferencial por cada umde seus membros nos espaços sociais destinados a cada um deles (trabalho, escola, bairro,
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igreja, casa, etc.). Elementos esses, que interconectados, ajudariam no processo grupal de
adaptação ao novo lugar de vida. Nesse caso, a família nuclear, como configuração relacional
específica, aparece como o lócus privilegiado para o desenvolvimento de algumas
pedagogias da integração.
Ao mesmo tempo, conforme Hamid (2012), no processo de formação e de educação dos
refugiados, é utilizado o que a autora descreve como uma sorte de pedagogia familiar que
compreende o ensino do crédito, recompensas pelos bons comportamentos, firmeza
acompanhada da proteção dos mais vulneráveis, etc., como preparando os filhos para a vida
em um formato específico de sociedade (HAMID, 2012, p. 195). Nesse modelo familiar para
a educação, os funcionários e as funcionárias que trabalham diretamente com os sujeitosinteragem de maneira diferenciada com eles. Uma das coordenadoras de uma ONG de
reassentamento dizia que, às vezes, tem de ser mãe, às vezes irmã, e às vezes amiga dos
refugiados, dependendo do momento da relação e, geralmente, da negociação que esteja em
jogo com as pessoas.
[...] Nós não podemos entrar no problema deles, nós temos que manter-nos forapara poder ajudar, um pouco saber qual o limite que a gente estabelece. Se seramiga, ser mãe, irmã e ser quem dá o dinheiro. Porque nós somos quem passamos
o dinheiro para eles, mas também somos quem cobra deles; então, nós somos mãe,madrasta, irmã, todos os papéis possíveis aqui a gente cumpre e assim vai duranteanos para acompanhar essa pessoa até ela estar bem ali [...]. (Coordenadora deONG de reassentamento)
A mesma funcionária apontava que os homens das famílias reassentadas vivem de maneira
mais intensa a crise de perder seu lugar de provedores, querendo conseguir, “com a
reclamação constante”, o dinheiro que não conseguem oferecer por meio de sua força de
trabalho. Essa situação fazia necessário, segundo ela, ter mais firmeza no processo de
assistência para não criar pessoas dependentes e ir educando-as para a autonomia. Segundo
essa leitura, seria mais fácil o trato com as mulheres que, afinal, já estariam acostumadas a
ocupar uma posição subordinada e receptiva em matéria financeira e educativa. Não é em
vão que são, geralmente, as mulheres e as crianças as pessoas que os agentes apresentam em
cada família como os sujeitos mais integrados e integráveis no processo de reassentamento,
sempre que contidas nesse marco da família nuclear.
O assunto do poder integrador do trabalho também apareceu varias vezes se referindo aos“colombianos” com a ideia de que esse grupo de refugiados se caracterizaria por ser muito
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trabalhador. Porém, essa fórmula tão reiterada durante a minha pesquisa de campo não
proveio somente dos agentes do refúgio mas também de vários solicitantes ou refugiados
colombianos. Eles a mencionavam como uma forma de exaltar simultaneamente seu
processo de vida em território brasileiro e uma espécie de característica colombiana que
sentiam como motivo de orgulho nacional. Alguns solicitantes chegaram inclusive a se
comparar com outros grupos nacionais (continentais, pela generalização) com os quais
conviviam nos albergues, utilizando formas que aludiam a seu próprio comportamento como
meritório e ao dos “africanos” como preguiçoso.
Algumas vezes, a fórmula adquiriu a expressão ainda mais abertamente racista ao se referir
a outros grupos de migrantes, com os quais compartilhavam espaços administrativos e demoradia, como “os negros zânganos”, enquanto eles próprios se exaltavam como
trabalhadores. Tudo isso, geralmente, sem mencionar nem a cor da pele, nem o
pertencimento étnico-racial, próprios ou genéricos dos “colombianos”, como se não
existissem tais marcadores. A exceção a esse uso de uma denominação antagônica entre
colombianos e negros ou colombianos e africanos foi quando os próprios solicitantes
colombianos se reconheceram como negros ou como afrocolombianos.
Voltarei sobre essas categorias mais adiante. Por enquanto, gostaria de salientar que esse
discurso genérico dos colombianos transformou-se em um discurso particular do “eu”
quando as pessoas entrevistadas quiseram explicar e singularizar essa suposta
disponibilidade para qualquer trabalho. Reassentados, solicitantes e refugiados espontâneos
contaram, com indignação, as propostas que receberam para se empregar em cooperativas
de reciclagem de resíduos sólidos ou em trabalhos com precárias condições laborais, tipos
de empregos que foram as opções comumente oferecidas pelas ONGs. Tendo ou não aceitoesses empregos, a ideia de que eles tiveram de fazer grandes sacrifícios esteve muito presente
e serviu para engrandecer sua história pessoal e a fazer mais meritória. É precisamente essa
valoração do mérito, da disposição para “salir adelante” e o desejo de integração a que
muitos sujeitos compartilham com os agentes do refúgio e a que permite criar ideias de
proximidade de valores, cercania cultural e facilidade de acomodação às “práticas
nacionalizantes” (SEYFERTH, 1995, 2000) que estão na base da noção de integração de
refugiados.
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9.2. Como quais brasileiros?
Uma visão dissidente dessas leituras comuns sobre o mérito e o esforço apareceu nas
conversas com Álvaro e Edna, um casal inter-racial que chegou como solicitante de refúgio
junto com a irmã de Edna, seus filhos e seus sobrinhos. Para Edna, a necessidade de trabalhar
não tinha nada a ver com mostrar suas qualidades e estabelecer um lugar moral a partir de
sua capacidade de sacrifício. Explicou-me que, se eles aceitaram, no começo, empregos, que
sabiam que eram mal remunerados, foi para tratar de sair de uma situação de extrema
precariedade. Mas, com clareza, se manifestou criticamente sobre a ideia de que seria
necessário aguentar e tolerar maus tratos e más condições laborais em nome das dificuldades.
Essa visão dissidente da norma do sacrifício engendrou juízos contra eles no albergue
católico onde se hospedaram ao chegar. Segundo me contou Edna, foram criticados tanto
pelas funcionárias do lugar quanto por outros dos hóspedes do albergue. Em um diálogo
conjunto que tivemos, eles apontaram, com nitidez, as conexões que viam entre os espaços
da migração e as formas de racismos históricos que se projetam tanto para os nacionais
quanto para os estrangeiros:
Álvaro: Ah! pero yo conseguí un trabajo antes del que tengo ahora [tono de burla].Fue un día de hambre y no me pagaron.
Edna: No sabes cómo a mí me dolió que él se quedara todo el día aguantandohambre, todo el día como hasta las nueve de la noche. ¡Y trabajando y no lepagaron!
Álvaro: Ni me pagaron, ni me quiso llevar a la Casa del Migrante, sino que medejó por ahí y me tocó llegar andando.
Yo: ¿Quién hizo eso?
Álvaro: Un brasilero, yo no sé.
Edna: Es que a la Casa del Migrante van muchas personas por esclavos, van a
buscar migrantes para que les sirvan de esclavos.
Álvaro: Yo llegué a las 8 de la noche a La Casa del Migrante, llorando y entoncesallá me dieron de la comida que les había quedado. Y yo que me había ido contentoporque de pronto me iban a dar alguito para poder comprarle algo bueno de comera Edna que estaba embarazada.
Edna: Es que además allá en la Casa del Migrante les daba rabia porque nosotroscomprábamos un pollo, porque yo decía: No señor, yo ya estoy trabajando comopara seguir comiendo arroz crudo. Y entonces ellas nos miraban como así raro.
Décadas atrás, o albergue – lugar conhecido na cidade pela tríade do refúgio, pela sociedade
civil ampla e pelas redes que empregam migrantes – era uma casa para receber migrantes
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nacionais, majoritariamente provenientes do Nordeste, que viajavam para o Sul do país em
procura de oportunidades laborais. Contudo, recentemente, o albergue focou nas migrações
internacionais, mudando, nos últimos anos, as proporções de hóspedes segundo a
procedência, passando de uma maioria latino-americana para uma maioria angolana,
congolesa e mais recentemente haitiana. Não é de estranhar que Edna junte suas experiências
prévias de experimentar o racismo com as características de sua estadia no albergue para
poder afirmar que esse lugar é um depósito de escravos.
Os eventos que Edna descreveu ajudam a entender melhor a proposta de Butler e Spivak
(2007) que foi exposta na primeira parte da tese. Ou seja, o refúgio (e os refugiados) são
representados como desprovidos de ordem, como estando num estado metafísico deabandono caracterizado pela ausência de poder estatal. Porém, se oblitera com essa
representação o fato de que a existência do refúgio (e dos refugiados) implica a existência
de um conjunto de poderes que produzem e mantêm a situação de destituição (BUTLER;
SPIVAK, 2007, p. 8) e que, de fato, produzem e preparam determinados sujeitos para seu
despojo. As ordens e os poderes que cruzam os sujeitos, que os constroem e os diferenciam,
habilitando espaços e formas de estar no mundo para cada um, continuam estando presentes.
Esses são importantes mediadores das relações sociais e políticas que constituem o refúgio,inclusive quando os embandeirados das ações humanitárias tentam convencer de que sua
atuação é sobre uma humanidade genérica, despossuída de ordem e na margem do poder
ordenador da nação e do Estado.
Também Santiago, um solicitante afro-colombiano que conheci em São Paulo, identificou
essa presença ambígua de sua situação de ser solicitante e de ser um homem racializado 150.
Como solicitante de refúgio, quer dizer estrangeiro, supõe-se que ele é um anônimo, um“outro” diferente aos nacionais e, nessa medida, alguém que ainda não se conhece. Mas a
150 Da vastíssima literatura sobre a questão das raças e dos racismos, gostaria de tomar, de uma recente tese dedoutorado, algumas ideias que me permitirão acompanhar a descrição das experiências de discriminação (eoutro tipo de violências de ordem racista) das pessoas que conheci durante a pesquisa. Procuro aderir aqui àspropostas de Mazouz (2010), que sugere a categoria racialização para dar conta desse tipo de experiências. Aracialização não é um simples processo de categorização, mas uma categoria de poder racializante. Segundo aautora, essa categoria se referiria, ao mesmo tempo, a um processo que coloca os sujeitos em diferentes lugaresde alteridade e uma categoria analítica que permitiria pensar a discriminação e outras formas de violênciabaseadas em ideias de raça, sempre em termos de processo, de contexto e de produção de alteridades
(MAZOUZ, 2010, p. 13). Em outras palavras, a racialização como categoria analítica permitiria explicitar deque maneira a sociedade produz o racial, examinando os processos sociais que produzem relações de podersob uma modalidade racial (MAZOUZ, op. cit., p. 15).
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estadia legal no país, sem possibilidades de solicitar uma carteira de trabalho e sem dinheiro.
Além disso, Santiago viajou com pouca roupa e não veio preparado para a temporada
invernal que, durante esses dias atingiu a cidade, tendo de usar roupas doadas e nem sempre
correspondentes com seu estilo ou tamanho. Além disso, ele estava sofrendo de pele seca
por causa do clima, ele sentia aumentada sua incapacidade de reverter esteticamente os
estigmas que ele sabia que podiam afetá-lo e torná-lo mais vulnerável nesse contexto da
cidade que encontrou na sua chegada. As várias camadas de significação que foram se
superpondo em sua vida e o tecido particular dos múltiplos fios de relações e eventos que
marcaram sua entrada à sociedade nacional também são eloquentes a respeito dos lugares
possíveis, tanto sociais quanto geográficos, que lhe são destinados aos refugiados,
previamente produzidos como seres carentes e vulneráveis.
Se a ideia da integração é conseguir que os estrangeiros possam viver como os brasileiros,
as experiências e as reflexões de Edna e de Santiago permitem perguntar: como quais
brasileiros? Além disso, quais seriam os limites desse suposto pertencimento nacional. A
esse respeito, outra experiência – que citarei em extenso – ilustra também as negociações de
lugares, pertencimentos e alteridades que estão em jogo em cada experiência de êxodo, em
seu encontro com essas fronteiras internas da(s) sociedade(s) da integração.
Rocío: […] Yo estudio en un colegio de gente rica y siempre me sentía muy mal(ahora ya no) porque yo no era como ellos y yo no entendía por qué no podríaser… No entendía por qué no les podía pedir ayuda a ellos si ellos tenían plata.Porque mis papás me educaron así: no pida, sino que si le piden usted va a dar yeso. Y yo no entendía entonces por qué ellos no me podían ayudar, por qué ellosno podían ser mis amigos y desde siempre esa cosa muy materialista ¿no? ysiempre así, y era bullying y todas esas cosas.
Yo: pero ¿el bullying era porque tú eras colombiana o porque eras refugiada?
Rocío: porque yo era colombiana, porque yo era pobre, porque todo, por todo.Yo: ¿ellos saben que tú eres refugiada?
Rocío: si.
Yo: ¿y eso ha sido también un problema?
Rocío: Claro porque Ay! uno es refugiado y entonces piensan que uno es traficantede cocaína y que mata no sé cuántos en el monte y siempre así... “¿ah deColombia? Y cómo no saben nada de Colombia, como ellos no saben nada de lasituación, entonces piensan que uno está haciendo drama, haciéndose de pobrecito.Eso, y también mucha exclusión. Y yo al comienzo tampoco entendía porque no
sabía nada y uno les decía pero es que oiga que hay problemas y [ellos]: "nada quever, Ay! deje de ser, que usted era chiquita".
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Yo: ¿Tú has estado en ese colegio todo el tiempo?
Rocío: Si, si. Cuando llegué con 4 años estuve en ese colegio en otra unidad queera donde mi prima estudiaba, allá en la aldea de la sierra. Después estuve como 3años en un colegio público allá en la república [se refiere al barrio de SP] y ese sí
era chévere.
Yo: ¿te gustaba más?
Rocío: Claro la gente era mucho más... pues había unos que eran bandidos de lacalle, así: se robaban los juguetes, los lápices. Pero era mucho más familiar, peroobviamente que no aprendí nada allá. No aprendí nada, nada, mi mamá me enseñóa leer, el resto era, nada. Ahí después entré al colegio, al de acá y ahí después yano me salí.
Yo: ¿cuál ha sido la época más difícil, cuando estabas pequeña o ahora que yaestás más grande?
Rocío: Es que son cosas diferentes, yo creo que cuando era pequeña yo no entendíay sufría y: "mami ¿por qué yo no puedo tener?". Y yo no entendía y yo vi que meestaba volviendo una persona igual a ellos, toda capitalista. Ahí hubo un momento,yo creo que fue hace unos dos años que yo dije, que yo vi que comenzaba comoque a matar partes de mi misma para ser igual a ellos. Y de verdad: un suicidiomental, una cosa así, a dejar de ser yo y a asumir... Yo dije, yo pensé: ¿a quiénestoy ayudando? No estoy haciendo esto por mí, sino por ellos. No es una cosa porel bien de la comunidad o algo así, no estoy haciendo eso por nadie. Estoy[haciéndolo] porque ellos creen que es así, entonces me voy a volver así también.Y desde ahí cambié totalmente asumí digamos la cosa de ser refugiada y ya no meimporta, me pongo la ropa que quiero, hago lo que quiero, pero obviamente esmuy difícil y la gente no entiende. Mi propia coordinadora me decía: ah, es queusted es una revoltada sin causa, no sé qué. Y eso me da mucha rabia, yo odio a
esa señora. Es que mi mamá le pidió descuento para la universidad […] y ella [ledijo]: "Ay, pero que su hija estudie aquí ya es un privilegio". Pero es por ley quelos hijos de los profesores tienen que estudiar en el colegio, eso es una ley, estánobligados, no es un privilegio. Y eso perdura para mi, ellos son preconceituosos
contra negros, contra indios, contra todo […]
Yo: ¿tú no quieres pedir la residencia?
Rocío: No, o bueno, residencia si pero yo no quiero ser brasilera. Yo sé que eso...yo tengo preconceito contra los burgueses, porque eso es... porque fue una cosacomo que de chiquita siempre me intentaron como que acabar, entonces yo tengomucho preconceito. Yo veo una persona que la identifico como burguesa, la gentecomo se visten así y tal y el pelo y yo ya me da, no rabia, sino que me da... ya
tengo el concepto de que esa persona es ignorante, de que no sabe nada de la vida,de que va a decir cosas idiotas porque es preconceituosa. Y yo sé que eso es malo,pero son costumbres desde chiquita y que necesito quitar.
Yo: pero tú crees que pedir la nacionalidad brasilera...
Rocío: Pues no sé, es que por exactamente eso, yo conozco brasileros súperchéveres y todo. Pero me da una cosa de como que ser brasilera. Y yo cuandopienso en brasileros pienso en gente egoísta, sucia, en el sentido de tener una almasucia, individualista, entonces no me... y yo digo: y mis papás siempre hablan tanbien de los colombianos. Que son mucho más, que les importa mucho más lacomunidad y a veces a mi me da mucha tristeza de no ser así. Porque yo realmentetengo unas cosas de brasilera, que a pesar de que tuviera mi familia aquí, pues
obviamente todos los días en el colegio, en la calle veía actitudes completamente
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diferentes a lo que ellos me decían. Entonces para mí… es algo que me da muchopesar.
Yo: ¿tú te sientes colombiana también?
Rocío: Si. Yo intento.
Yo: ¿y entonces lo más difícil para ti de haber llegado a Brasil ha sido esa relacióncon las personas del colegio?
Rocío: Si, era mucho preconceito y ahora todavía es jartísimo y yo aguantarmetodavía todos los días esa gente diciendo que los negros tienen que morirse... esracismo, es horrible […] y siempre así, la gente a destruirte, a hacerte pensar queeres menos. Ay! que favelada que no sé qué. Y yo: ¿cuál favelada? y si fuera favelada ¿qué?
Para as autoridades do refúgio, a integração é um processo que paulatinamente vai
transformando os refugiados em nacionais, mas a experiência que narra Rocío vai à
contramão. Para ela, a luta para encontrar um lugar próprio dentro da sociedade brasileira –
ou dentro do fragmento de sociedade – na qual lhe correspondeu se integrar, é um esforço
continuo de não tornar-se como esses nacionais. A obrigação de se integrar exitosamente no
espaço que a ela lhe correspondeu era uma obrigação que Rocío sentia como sendo “un
suicidio mental”, como “estar matando partes de mi misma” para ser como aqueles. Na
negociação consigo mesma e com esses “outros” referenciais, mobiliza a carga simbólica
associada a sua nacionalidade de origem e a seu pertencimento de classe para, diferenciando-
se de “esos burgueses”, sentir -se mais tranquila sabendo que é um pouco brasileira, que tenta
ser um pouco colombiana e que não sabe o que será depois.
Por seu posicionamento crítico contra as posturas políticas desse grupo de referência – a
quem Rocío identifica como burgueses e racistas – , essa é uma identidade que ela recusa
adotar. Porém, esse dilema do pertencimento diferenciado não foi exclusivamente narrado
por ela. Outras histórias se referiram a essa sensação de querer um lugar social no novoambiente, mas de não se entregar a algumas das formas oferecidas por esses locais. Com
princípios menos louváveis que a luta antirracismo de Rocío, também aludiram a esforços
realizados para se diferenciar dos brasileiros do segmento de sociedade em que lhes
corresponderia se integrar, segundo as autoridades de refúgio e segundo as condições
materiais e simbólicas disponíveis. Por exemplo, José Alberto reiterava que ele dava
“esmola” aos brasileiros da rua como uma forma de lhe agradecer a “la sociedad brasilera
por haberme recebido”, mas concomitantemente tornava-se uma forma de marcar umadiferença com os moradores de rua, a quem os refugiados, que chegam em uma situação
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econômica precária, terminavam por se aproximar, já que os albergues, comedores
comunitários, os bairros e as ruas são os mesmos para uns e para outros.
Outras tentativas de diferenciação foram a criação das já mencionadas categorias de
classificação entre migrantes. Rótulos como “africanos”, “palestinos”, “latinos”,
“colombianos” ou “haitianos” foram, muitas vezes, compartilhados com os funcionários da
rede de atendimento a refugiados e migrantes. Frequentemente a origem nacional, e por
vezes continental, foi utilizada para se referir às pessoas, especialmente quando havia um
grupo, oriundo do mesmo país, solicitando serviços da rede de atendimento. Essa forma de
nomeação se relaciona com o fato de que o atendimento aos migrantes e refugiados seja
baseado na ordem nacional das coisas. Ou seja, o tratamento dispensado aos nacionais deum determinado país depende muito da relação que o governo brasileiro tiver com o outro
governo ou das decisões e posturas diplomáticas adotadas em função de sua política exterior.
Desse modo, é muito frequente que haja distinções no tipo de vistos outorgados,
financiamentos diferenciados e origens distintas dos recursos para apoiar aos migrantes ou
solicitantes, necessidade de maior ou menor atenção sobre um grupo a depender do impacto
midiático e diplomático de seu tratamento, etc.
Essas diferenças, que parecem ser simplesmente indicadores de origem e categorias
administrativas, costumam se transformar rapidamente em categorias sociais e morais, nos
espaços de gestão de refugiados e migrantes. Alguns dos solicitantes colombianos que
entrevistei sentiram a necessidade de se diferenciar não apenas dos brasileiros com
identidades deterioradas mas também desses outros estrangeiros que, muitas vezes, estavam
em uma situação de maior alteridade e desigualdade. Alteridade que os solicitantes
colombianos mediram não só em relação aos agentes de refúgio ou à sociedade de acolhidacomo também com relação a si mesmos. Dessa forma, muitas vezes, esse movimento os
aproximou mais dos administradores do que dos “africanos” ou “haitianos”, voltando a se
juntar discursivamente com esses últimos somente quando enfatizavam sua situação de
precariedades compartilhadas ou no momento de reclamar pelos serviços e o atendimento
recebido.
Apesar dessas experiências das pessoas que devem negociar constantemente um lugar social
por meio da identificação, atualização e criação de fronteiras internas da sociedade, esses
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limites poucas vezes apareceram explicitamente no discurso dos agentes da tríade. Ao
contrário, como visto, a maioria deles aludiram continuamente à sociedade brasileira como
um todo homogêneo, miscigenado e acolhedor. Aliás, essa sociedade seria oriunda da
migração, razão pela qual teria uma disposição histórica para a recepção e a integração.
Avôs e patriarcas migrantes foram evocados amiúde pelos agentes do refúgio – tanto os da
tríade quanto os da sociedade civil ampliada – para explicar o ânimo respeitoso de “todas as
diferenças” que caracterizariam a nação. Essa conformação, segundo os agentes, permitiria
que os refugiados não fossem discriminados em função da cor da pele, do gênero, da
orientação sexual, da religião ou do pensamento político, como o ilustram alguns fragmentos
a seguir (e outros que foram analisados na primeira parte da tese) em que inclusive sãopositivadas experiências que bem poderiam ser lidas como experiências discriminatórias.
Agente de integração local 1: [...] E aí também porque, como as nossascomunidades do interior, que são comunidades muito acolhedoras, e aqui porenquanto o diferente não é motivo de discriminação ou de xenofobia. O diferenteé acolhido como algo a ser... até com curiosidade. Então, as pessoas não estãosendo discriminadas porque falam espanhol ou porque são colombianas ou seja láo que for. Pelo contrário, elas são muito bem acolhidas, encaminhadas; as criançasna escola são motivo de atenção de tudo mundo, as outras crianças vêm, queremsaber que é que faz, que é que não faz. Então, é muito positivo.
Eu: E no caso das cidades pequenas que vocês estava falando não tem tidodiscriminação?
Agente de integração local 1: Não, porque os alemães adoram um garotinho bembronzeado, bem bronzeado, bem moreno, pele de índio e tal.
Agente de integração local 2: Mas não, o grupo de afros é pequeno, até porque amaioria não é afro que vem para cá, chegam alguns, mas não é a maioria.
Agente de integração local 1: O que acontece é que essas famílias são maisnumerosas, eles eram seis ou sete, pessoas com muitos filhos e tal. E com umadessas famílias foi feito o fast track, que é quando o Conare faz reunião extra e
toma a decisão em 72 horas ou uma coisa assim. Então, veio para nós umainformação, um perfil assim: olha, são assim ou assado, nós recebemos, demos aresposta positiva e aí, em alguns dias, as pessoas chegaram. Só que no perfil nãoveio foto, não veio nada. E nós preparamos toda a acolhida para essa família numacidade absolutamente alemã, num bairro absolutamente alemão e essa família eraafro, né? Enquanto nós recebemos as pessoas no aeroporto, a gente não sabia queeles eram afros, mas também isso não foi motivo para nada, pelo contrário, né?Eles meio que acharam: “como que somos só nós que não somos brancos aqui” Eeu disse é. Mas foram bem recebidos, lá na igreja deles principalmente, porqueeles são evangélicos, e lá na igreja eles foram super bem recebidos. Lá na escola(porque eram três meninas muito bonitas) fizeram o maior sucesso, tanto que eraum desfile de rapazes, de muchachos, querendo namorar e o pai desesperado: “Queé que agora eu faço?”. Então é assim, eles são muito bem acolhidos em todo
sentido: social, religioso, de trabalho também. Essa família terminou voltando, foiembora porque deixou um filho lá, um dos filhos estava desaparecido lá e a tia queia cuidar do assunto lá apareceu com a criança, então eles estavam muito... e foram
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embora. Mas eles não tiveram problema nenhum, aqui que é uma cidade superalemã. Então, não temos assim histórico de uma discriminação por raça ou porsexo, ou por colombiano, ou por negro.
Poucas vezes, só alguns agentes de refúgio reconheceram que poderiam se apresentardificuldades no processo da integração, derivadas de possíveis discriminações ou
preconceitos. Contudo, esse reconhecimento não confrontou o relato da sociedade brasileira
como sempre receptiva aos estrangeiros e historicamente acolhedora. Para citar um exemplo
só em que essa contradição apareceu – entre os vários eventos que acompanhe durante a
pesquisa – , gostaria de rememorar uma das jornadas de um ciclo de palestras organizado por
uma universidade em parceria com a prefeitura de São Paulo. Muitos dos convidados e
organizadores foram agentes que trabalham em diferentes setores da chamada “sociedadecivil” (incluindo a universidade) em prol da causa migrante; alguns deles reputados por
serem militantes críticos e ativos em favor dos direitos desses grupos.
Nessa ocasião, todos os convidados evocaram seu próprio passado migrante (ascendentes
europeus em todos os casos) e fizeram um percurso pela história da nação brasileira nos
momentos de recepção de fluxos migratórios importantes. O percurso incluiu japoneses,
alemães, italianos, portugueses, argentinos, uruguaios, angolanos e bolivianos até chegar aos
haitianos, que todos localizaram como a migração mais recente. Também houve, entre os
palestrantes, um acordo sobre a desdenhável criminalização da migração que agravada pela
crise europeia, estaria fazendo com que o velho continente se mostrasse abertamente racista
e xenófobo.
Foi preciso esperar até a intervenção da plateia para começar a escutar outros aspectos –
claramente menos positivos – dessa sociedade à que estavam se referindo os palestrantes.
Isso aconteceu quando uma estudante afro-brasileira criticou a visão positivada da migração
e, lembrando o recente assassinato de Zulmira152, interrogou os palestrantes sobre o caráter
racista da sociedade brasileira. Nesse momento, também de comum acordo e se
152 Zulmira de Souza Borges Cardoso é uma estudante angolana que foi assassinada no dia 23 de maio de 2012,na cidade de São Paulo, depois que elas e o grupo de amigos que lhe acompanhava foram agredidos cominsultos racistas. O incidente, em que foram também feridos três dos acompanhantes de Zulmira, provocouprotestos por parte da comunidade angolana, particularmente dos estudantes organizados que enfatizavam aexistência do racismo e da discriminação contra eles. A partir do assassinato de Zulmira, também se
mobilizaram vários setores da sociedade civil brasileira que apoiaram as denúncias realizadas pelos estudantesangolanos e exigiram um pronunciamento por parte das autoridades locais de São Paulo e do governo angolano,que devia, segundo eles, cobrar explicações e ações do governo brasileiro.
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complementando os uns aos outros, vários aspectos negativos foram elencados. Em minhas
notas de campo, registrei alguns desses aspectos listados que apresento a continuação sem
identificar o expositor de cada um:
Es necesario aprender de los errores europeos y no cerrarse a la migración, haydiferentes niveles de acogida, sabemos que es un mito que en Brasil no existaprejuicio, ¿de qué habría que proteger a la nación?, en la experiencia visual yacomienza la discriminación, la discriminación no tiene que ser ostentosa ellatambién pasa por pequeñas cosas como no validar los diplomas de los extranjeros,no hay ningún país que no sea racista eso es una mistificación.
Essa forma um pouco enlouquecedora de afirmar uma coisa e seu contrário sem que apareça
a necessidade de resolver a contradição estiveram presentes em muitos outros dos espaços
institucionais do refúgio que frequentei. Repentinamente, chegou-se a reconhecer ou aenunciar a existência de discriminações, preconceitos e atos racistas de um modo geral ou
afetando particularmente aos refugiados. Contudo, essas práticas apareceram como
espectros que não desencaixaram nem desestabilizaram esse discurso que fala de uma nação
idealizada e das políticas de acolhida para refugiados como sendo ações exemplares. Como
um último exemplo, considero ilustrativo comparar dois fragmentos de uma mesma
entrevista com a mesma funcionária, na qual aconteceu esse movimento contraditório
descrito.
Fragmento 1[...] Pelo Brasil ser um país acolhedor, em relação as suas diversidades, de terquestões de homossexuais, o país o aceita. Então eles entendem que o Brasil é umpaís acolhedor, aceita bem as diferenças e, por isso, pelo geral, eles escolhem oBrasil [...] O Brasil acolhe bem aos refugiados, aos estrangeiros, aqui não temproblema de diversidade, de ter racismo, não é? Até tem, mas não é como nospaíses de, de... então por isso eles escolhem o Brasil, por ser acolhedor.
Fragmento 2[...] também alguns alunos que se interessam fazem pesquisas para o juízo. Porquê? As nossas advogadas também fazem pesquisa, só que é assim, elas têm todoum trabalho de fazer essas pesquisas, e isso auxilia bastante. De repente, elas atéfalam para a professora: “Olha estou precisando que você pesquise para mim talregião do Congo que tá acontecendo tal situação”. E os alunos fazem. Então issonos ajuda bastante, envolve a academia, os alunos também abrem um pouco:“Poxa, refúgio, nossa, é isso o que acontece, poxa, é uma população que precisade apoio, nossa é tão complexo assim, pô, tem uma lei, pô, o governo faz isso”.Quando as pessoas chegam, o Brasil não é um país que acolhe, que têm recebidomuitos refugiados: 4500, não chegam nem a 5000 no Brasil, é pouco. Mas sãopessoas que estão vindo e que a gente tem que acolher. E pelo menos para cadaum da sua família desses alunos que viram só na televisão: “Olha, um bombardeioaí”, ai então: “Olha você sabia que essas pessoas podem vir para cá, tem umainstituição que faz esse trabalho”. “Nossa, é? Ah! Então eles não estão fugindo,não estavam matando?” Não, eles estavam fugindo para não ser mortos. Então,
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minimamente, a coisa já começa a abrir um pouquinho, e as pessoas começam aperder um pouco o preconceito, então esse é algo de nosso trabalho. [grifos meus]
Se, em algum momento, os agentes do universo institucional do refúgio chegaram a
reconhecer discriminações, preconceitos ou algum tipo de tratamento desfavorável contra os
refugiados, os responsáveis dessas ações sempre foram apontados do lado de fora dessa rede
institucional de atendimento. A apresentação da rede ampla de recepção de refugiados como
um espaço livre de racismo e discriminações baseou-se na ideia da igualdade de tratamento
para todos os refugiados. O atendimento caso a caso, em que as profissionais buscavam
identificar as situações de maior vulnerabilidade para a entrega de benefícios materiais,
também foi descrito como tendentes a melhorar as condições de quem estivesse em uma
situação de maior desigualdade econômica e social.
Outros critérios – tanto técnicos como morais – entraram em jogo nas relações entre
funcionárias e refugiados. O Acnur, como premissa técnica, recomenda entregar apoios
financeiros somente a aqueles sujeitos que tenham chance de serem aceitos como refugiados.
Em muitos casos, essa orientação significou que alguns solicitantes, de quem as advogadas
não pensavam que correspondessem com os critérios para o refúgio, não receberam apoios
financeiros apesar de se encontrar em uma situação de maior dificuldade econômica queoutros solicitantes para quem foram aprovados os apoios. A metodologia de ação caso a caso
também criou descontentamentos nas pessoas administradas quem não tinham claro qual era
o critério da entrega diferenciada de bens ou da celeridade de alguns processos em
detrimento dos outros. Isso não apenas nos escritórios da Cáritas, mas também em albergues
– em especial em A Casa do Migrante – onde a distribuição de vagas era sempre disputada
e motivo de inconformidade por ser o albergue mais apreciado em segurança, higiene e
tratamento dispensado, quando comparado com os albergues da prefeitura.
[En el albergue] Estuvimos dos meses y no sé por qué nos dijeron que nosfuéramos, cuando hay gente que lleva un año y no tienen hijos, y no tienen menoresde edad. A nosotros nos tocaba irnos. Según el señor Emanuel [funcionario delalbergue] las personas que moran allí tienen tres meses, pero hay gente que llevaahí un año y hay gente que no trabaja. Y hay gente que no merece estar ahí, no lodigo porque yo haya salido, hay gente que no merece estar ahí. Pero el padre nosha dado cosas tan bonitas que es darme un techo, darme comida, alimentación,sentirme bien con mi familia; que yo no soy capaz ni de reprocharle a xxxxxxxporque nos dijo que teníamos que desocupar. Alguien me dijo: "A ustedes no lospueden sacar, primero tienen menores de edad, segundo son una familia, tercerotodos están trabajando". Pero prefieren tener vagos, prefieren tener viciosos.Porque yo sé quien mete droga ahí, quien mete vicio y quien roba, porque robantambién, porque a mí me robaron mis zapatillas, a mi mujer le robaron otro par de
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zapatillas y nadie me solucionó nada. Pero yo no puedo hacer nada porque es máslo que me ha dado el padre que lo que me han quitado. Y nos sacaron sacados:"Tienen plazo hasta el 15 para que se vayan". Ahí me fui para Cáritas y les dije¿Qué hago? Necesito que me manden para otra parte porque somos 5, somos 6.Cáritas me dijo, bueno Cáritas no sino Amanda [asistente social] me dijo que si
nosotros alugavamos (sic) un lugar que Cáritas nos podía de pronto ayudar con undinero, nos dijo así y de ahí ella no ha vuelto a hablar con nosotros. ¿Por qué? Puesporque como que la reprimieron, la regañaron y no la he vuelto a ver. Una negritahaitiana me dijo: “Yo llevo 6 meses y Cáritas me da a mi 900 reales cada mes ¿Por qué a ella le dan cada mes? Otra persona me dijo: A mí me dan 1.000 reales.Entonces eso me motivó a ir a pedir allá, yo no sabía. Fui a hablar con Marcela[assistente social] y me dijo: "Vamos a ver, vamos a llevar eso a coordinación aver si le aprueban" Y yo le dije: ¿y por qué a la haitiana si le ayudan? (Solicitantede refúgio)153
Se essa disparidade engendrou ressentimento entre alguns solicitantes, para outros a moléstia
foi paradoxalmente a igualdade com a que se sentiram tratados. Esse tratamentoindiferenciado resultava contrário às suas próprias intenções de distinção, que já foram
referidos.
[…] También lo que pasa es que la Cáritas está acostumbrada a tratar con africanosy quieren venir a tratarlo a uno igual. Los africanos hablan como peleando y poreso a ellos los tratan muy duro y ya varias veces ha habido incidentes de fuerzacon ellos. Yo me acuerdo de todas las veces que me tocó ir a esperar allá y cómome trataron y me da mucha rabia. Yo siempre fui muy educada como para que mevinieran a tratar de esa manera. (Entrevista con refugiada)
Muitos dos solicitantes colombianos se encontravam em meio a uma contradição
desencadeada por sua situação de estrangeiros, pois as condições do êxodo os equipararam
a grupos nacionais, raciais e sociais ao respeito dos quais eles tinham construído noções de
distância e alteridade. Concomitantemente, no mundo institucional encarregado de sua
integração, defende-se e promove-se um discurso de igualdade genérica como um valor não
apenas próprio da nação, mas exigido daqueles que desejam integrar. Não foi raro então
escutar declarações que afirmavam que a vida no Brasil lhes tinha ensinado o caráter
democrático e inter-racial para o estabelecimento de relações, ao mesmo tempo que antigos
e novos preconceitos, classismos e racismos desbordavam a tentativa de correção política
com a que se ecoavam esses discursos.
[…] lo del albergue fue bueno porque aprendí convivencia, a respetar a losnegritos, uno con esa rabia, pero uno tiene que ponerse a que uno es igual queellos: emigrante. Seas negro, seas blanco, seas amarillo, todos somos lo mismo:estamos de caridad. No jodas a los demás, no molestes a los demás, no te metas
153 Com contadas exceções, doravante não identificarei as pessoas citadas nem sequer com os nomes fictíciosusados ao longo do texto, com o intuito de não pessoalizar as referências com expressões que possam serofensivas para outros dos sujeitos envolvidos na pesquisa.
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con los demás, respeta. A mí a veces me provocaba coger a un negrito, cogerlo delcuello y le decía ¡respeta!: "Você respeta y yo respeto. Si no me respeta le digo aEmanuel o le digo al Padre”. Pero ¿qué pasa?: Ahora yo voy y mira la alegríacuando yo voy: [me dicen] "¿Qué hubo Colombia?" Todos los saludos para mí.Pensar que una vez los miraba yo de otra manera, ahora los miro como si fueran
mis propios ojos. No importa la nacionalidad, somos emigrantes, ellos tienenproblemas, yo también tengo problemas. Entonces así como yo los miraba a ellos,como ellos me miraban, yo no quiero que me miren en Cáritas. Porque en Cáritaslo miran a uno todos por igual, ovejas, rebaños, háganse para allá, lo tratan feo auno. ¿Por qué no sale una psicóloga a atenderme, por qué no sale una persona queme diga cuál es su problema, durmió bien, comió bien? Algo bonito, pero no. Alláes: "no, no, no, no, no, 3° feira, 4° feira, 5° feira, no, no, no, no". No es Cáritas sino la “oficina no”. Eso es degradante, no quiere decir que nos tengan pesar, quenos tengan lástima, pero si les pagan para que atiendan enfermos pues que atiendanenfermos. Si les dan asco los enfermos entonces no trabajen con enfermos.
Em diferentes momentos, e segundo os elementos que estivessem em jogo, muitos dos
solicitantes, refugiados e migrantes com quem falei posicionaram-se em espaços diferentes
dentro desse mundo institucional e administrativo do refúgio. Esse posicionamento
transcendeu os limites dessa institucionalidade circunscrita e interagiu com outros grupos e
atores presentes nos lugares – geográficos e sociais – aonde chegaram. Enquanto em alguns
casos, a coincidência de interesses lhes fez se sentir mais próximos dos migrantes ou
refugiados; em outros momentos, a proximidade se estabeleceu com os agentes do refúgio.
Como visto na segunda parte da tese, conforme Vianna (2002, p. 42), muitas das soluções
administrativas tornam-se efetivas graças à existência de interesses mútuos entre
administradores e administrados. Em diferentes níveis de autoridade, refugiados/solicitantes
e agentes de refúgio agiram de maneira conjunta para cumprir com propósitos, objetivos e
ideais que lhe servem de base moral ao exercício da governança do refúgio. O vínculo de
algumas pessoas com os agentes da administração de refugiados transcendeu a agência sobre
seu próprio processo de refúgio e se estendeu para o de outros. Algumas pessoas ao serem
avaliadas como casos exitosos de integração viraram referentes locais para os novosreassentados ou refugiados. Para elas, foram colocadas tarefas (sempre controladas e
submetidas à autoridade administrativa) de agentes locais de integração. Assim, eram elas
quem deviam acompanhar as pessoas a realizar processos de documentação, orientá-las nos
lugares de acolhida, auxiliá-las como tradutores, etc.
Esse vínculo chegou a ser enunciado, algumas vezes, pelos agentes de refúgio como uma
relação de amizade, sugerindo que as pessoas tinham avançado um nível, passando deadministradas ao nível de sócias e coadjuvantes nesse processo de integração dos outros.
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Essa ascensão no status funcionou, no meu critério, como uma espécie de reconhecimento
da condição coetânea de determinados sujeitos, conforme Fabian (1983, p. 17). Se, além
disso, assumimos que o processo de integração é, conforme Seyferth (2000, p. 46-47), um
conjunto de práticas nacionalizantes, podemos observar que esses sujeitos – localizados no
mesmo tempo e espaço dos administradores – estavam, enfim, concebidos como sujeitos
capazes de ajudar no processo civilizador dos outros, em condição de quase nacionais, com
a capacidade que outorga a maioridade e o pertencimento a um tempo civilizado. Esses
outros, pelo contrário, chegariam e estariam em uma distância temporal, cultural – e, às
vezes, também geográfica – que requereria ainda ser muito intervinda.
Várias das características de estadia de Lucas em A Casa do Migrante podem ser eloquentesa respeito dessa aliança civilizadora entre administradores e administrados. Lucas chegou a
São Paulo em um contexto de migração forçada, aliciado por falsos empregadores de uma
suposta agência de publicidade. Ele foi recebido no albergue enquanto conseguia solucionar
sua situação migratória e terminar os processos administrativos que seu caso tinha gerado
nos escritórios da Polícia Federal. Lucas chegou em datas próximas da chegada de outros
colombianos com quem eu também conversei. Porém, quando eu fiz contato com o pessoal
da instituição, Lucas já ocupava um espaço bem diferenciado a respeito do lugar ocupadopelos outros conterrâneos. Embora continuasse dormindo no quarto compartilhado que lhe
adjudicaram ao chegar, gozava de alguns privilégios que os outros não tinham. Podia se
banhar de manhã e não apenas de tarde, comia com os funcionários e não com os outros
hóspedes, não tinha de abandonar a casa às 7h da manhã, podendo permanecer o dia todo no
albergue. Além disso, tinha acesso a internet e telefone no escritório da administração graças
a que foi informalmente contratado para assessorar a administradora na renovação da
imagem institucional do lugar.
A profissão e os conhecimentos de Lucas em desenho e informática foram parte da
explicação que deram os agentes para esse tratamento diferenciado. Contudo, nenhum dos
outros hóspedes colombianos que entrevistei foi empregado nessas condições na instituição
ou beneficiado pelos serviços profissionais que pudesse oferecer. A explicação de Lucas,
por sua vez, incluiu outros elementos que ilustram melhor a complexidade de relações e
interpretações que estavam em jogo nesse tratamento que o diferenciava dos outros
migrantes e o aproximava de alguns dos funcionários:
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Mariana [administradora da casa] se dio cuenta quien era yo. Ella me ayudó muchodesde el comienzo. Yo siempre fui súper bien, tuve de todo y no me faltó nada.Yo estudié comunicación social en la xxxxxx [universidad privada en Colombia]y tú sabes que allá sólo hay gente bonita. Todos somos súper bonitos, súper plays
y ahora tengo que vivir en un albergue con este tipo de personas. Pero yo me lotomo como un aprendizaje. Mira que cuando yo llegué vuelto mierda, acá de uname acogieron y Mariana me mandó para psicóloga y todo. Y acá, yo he podido vercómo son las cosas, las historias de las personas, yo los escucho llorar de noche,entonces yo también he aprendido estando con ellos.
Na experiência de Lucas no albergue, que ele assumiu como um aprendizado, há uma
expressão de surpresa pelo fato precisamente de ter aprendido alguma coisa, pois, segundo
ele, “a essas pessoas é preciso lhes ensinar tudo”. Ele não esperava que pessoas desprovidas
dos que ele considera “os códigos básicos da vida em sociedade” pudessem lhe fornecer
conhecimentos e reflexões para sua vida. Em uma ocasião, me contou surpreso que “um dos
africanos não sabia o que era um desodorante”. Segundo seu relato, quando desesperado
pelo odor do seu companheiro de quarto lhe perguntou por que não usava desodorante,
descobriu que o homem interpelado não conhecia o produto. Lucas ficou muito contente de
ter podido lhe ensinar “uma coisa tão básica” e de ter lhe presenteado com seu próprio
desodorante. As conversas com Lucas foram especialmente valiosas para minha pesquisa de
campo, já que ele me contava sobre alguns dos diálogos que tinha com os funcionários da
casa, particularmente com a administradora, mas o fazia com outros critérios de censura
diferentes daqueles dos próprios funcionários. Entretanto, em várias ocasiões, ele sentiu a
necessidade de me explicar que nem ele, nem os empregados do albergue eram racistas e
que não era por isso que determinados juízos eram emitidos sobre os hóspedes da instituição.
Muitas vezes, me disse, por exemplo: “Yo no soy racista para nada, así sean negros,
blancos, amarillos, rojos, etc. Pero todos sabemos que esos negros tienen sus mañas”. Em
uma ocasião, se referia notadamente ao debate que se gerou no albergue por conta da chegada
de uma família com mulheres adolescentes. Ele, como alguns outros dos refugiados
colombianos, consideravam que a sexualidade dos “negros” era uma ameaça, achando-a
potencialmente descontrolada e, por isso, perigosa. Contudo, Lucas, depois de lançar a
crítica, me explicou que parte do seu aprendizado sobre a diferença, graças a sua relação
com os funcionários da casa, consistia em que agora ele sabia que esse comportamento não
era mal-intencionado: “si no que es la cultura de ellos y también porque como la religión de
ellos los reprime tanto entonces cuando ellos llegan a Brasil son como niños o adolescentes
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explorando su sexualidad. Porque llegaron a un país en que el sexo se vende como
empanadas”. Esclarecimentos esses bem-intencionados que amiúde escutei dos agentes de
refúgio e que Lucas encontrou pertinentes e adequados como explicação. Essa infantilização
dos homens “negros” somada à enunciação da uma diferencia cultural radical me parece
constituir outras formas de negar a simultaneidade dos sujeitos, conforme Fabian (1983),
neste caso, não apenas em termos civilizatórios, mas também em estádios de
desenvolvimento da vida pessoal.
A outra crítica que Lucas me disse compartilhar com os administradores tinha a ver com
aquilo que ele qualificava de “ pereza y suciedad de las personas”, que segundo ele “quieren
todo listo, no lavan ni un plato y quieren que todo se los den”. Esse juízo sobre ocomportamento remete a críticas já mencionadas sobre a predisposição à dependência, à falta
de desejo de se integrar e à preferência por viver assistidos. Aspectos que, como visto, os
agentes da tríade consideram elementos deformadores das pessoas que terminam
atrapalhando o processo de integração.
A última critica, compartilhada por Lucas e por vários agentes dessa rede ampla de
atendimento, focava na dinâmica que as pessoas tinham para o uso do dinheiro. Um dossacerdotes em uma paróquia de outra cidade me disse, um dia, que ele havia decidido deixar
de ajudar uma família de refugiados quando percebeu que haviam gastado o dinheiro em um
equipo de som. Esse mesmo juízo levou a Lucas a considerações semelhantes: ele achava
absurdo que, na situação em que viviam os hóspedes da casa, eles investissem dinheiro em
computadores, telefones celulares, sapatos caros, vontades alimentícias ou, ainda pior “esas
negras que se gastan 150 reales para que las peinen”.
As explicações que ofereceu Lucas, assim como suas opiniões, foram diretas, em grande
parte, porque foram expressas em contextos descontraídos de conversas e entrevistas
informais. Por isso, não pretendo dizer que essas representem nem seu ponto de vista mais
elaborado sobre as relações sociais e raciais em um contexto migratório, nem que elas
possam ser assumidas como a exposição do pensamento velado dos agentes. Se estou
evocando-as no texto, é porque considero que noções desse tipo circulam, são utilizadas e
consideradas como explicações válidas entre muitas das pessoas – administradoras ou
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administradas – no universo do refúgio e nos arredores com os quais esse se comunica, nas
cidades onde realizei a pesquisa.
Como um último exemplo dessas relações, é também interessante que Beatriz e Rafael, um
casal que me foi apresentado como um caso exitoso de reassentamento, contaram a história
de outra família que decidiu regressar à Colômbia. Nas primeiras explicações que me
ofereceram sobre as razões do retorno, eles apontaram algumas falhas do programa e da
ONG que o administrava. Segundo eles, as funcionárias do programa tinham deixado essa
família muito sozinha em uma cidade com moradores muito fechados e sem possibilidades
reais de emprego. Porém, quando a história da família continuou sendo apresentada, Beatriz
concluiu que, em grande parte, era culpa das pessoas reassentadas. A afirmação estavabaseada no que ela considerava uma falta de iniciativa, preguiça e, de maneira geral, um
comportamento que ela resumiu na frase: “es que ellos no se ayudan, complementando ya
la tienen difícil por ser negros y además no se arreglan para mejorar la apariencia y se la
pasan quejándose”. No final da história, apesar das enunciadas falhas do progr ama, a
explicação da falta de integração e do fracasso desse reassentamento familiar recaiu nos
sujeitos; novamente, de maneira coincidente com as explicações que oferecem as
autoridades brasileiras do refúgio e os agentes encarregados de administrar os refugiados.
Gostaria de salientar, dessa longa descrição de relações, que a integração é sempre
apresentada como um processo positivo. Como tal, parece que somente os aspectos
louváveis de uma sociedade e de seus representantes entraram no jogo nesses processos de
nacionalização que buscam transformar estrangeiros em cidadãos. Pelo contrário, considero
que os casos e as histórias que foram apresentados como “casos exitosos” de integração
mostram que esse processo também compreende aspectos negativos, tanto das sociedadesde acolhida e das de procedência quanto dos segmentos sociais aos quais se pretende acessar
e daqueles dos que se quer sair. Alguns dos aprendizados que as pessoas realizam em seus
processos vitais, embora sejam socialmente condenáveis, podem lhes resultar úteis nos
processos de integração que, muitas vezes, parece mais uma luta que uma entrada acolhedora
e restituidora. Uma visão romantizada e sempre positivada da integração pode contribuir a
reforçar as distâncias entre as imagens idealizadas produzidas nos processos de formação de
Estado e as complexas e difíceis condições da maioria das pessoas cujas vidas têm sido
marcadas pelo êxodo.
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9.3. O tempo da descendência, o tempo da integração
Retornando de maneira mais direta ao assunto dos ritmos e dos tempos, gostaria de focar
novamente no programa de Reassentamento Solidário, para refletir sobre a relação do tempo
com os outros dois elementos da integração que foram apontados constantemente pelos
agentes do refúgio: língua e escola. A diferença do trabalho cuja importância estava sempre
referida aos adultos, à língua e, em maior medida, à escola estiveram mais relacionados com
o processo de integração das crianças.
O assunto da competência linguística apareceu de diferentes maneiras, segundo os contextos
nos quais eu perguntei por ele ou dos outros elementos com os quais estivesse relacionadoem um momento específico. Em muitas ocasiões, a proximidade do espanhol com o
português foi utilizada como um elemento facilitador da comunicação e, portanto, da
integração nas comunidades locais. Outras vezes, ao contrário, as dificuldades das pessoas
para concluir exitosamente trâmites e processos foram atribuídas à dificuldade que esses
sujeitos teriam de compreender adequadamente as instruções dadas em português. Apesar
dessa oscilação constante, a ideia recorrente é que, se for avaliada a experiência de outros
grupos nacionais que falam “línguas muito diferentes do português”, os colombianos teriamuma imensa vantagem comparativa.
Por sua vez, as famílias reassentadas, notadamente os adultos desses grupos familiares ou as
pessoas que chegaram sozinhas, falaram da diferencia idiomática como uma barreira difícil
de superar nos primeiros meses de vida no Brasil. No caso das famílias, me foram geralmente
narradas diferenças na velocidade e a capacidade de aprendizado entre seus membros. No
entanto, em todos os casos escutei reclamações sobre a insuficiência de sessões, intensidadee duração das aulas de português oferecidas pelo programa. As pessoas que estavam
interessadas em concluir seus estudos universitários ou em arrumar empregos melhor
remunerados tiveram de pagar aulas extras para conseguir um aperfeiçoamento da língua e
superar o nível básico de interação cotidiana. Também uma sorte de prestígio associado a
um bom desempenho linguístico esteve presente. Muitas pessoas se empenharam em me
contar sobre seus esforços para falar português adequadamente e várias me perguntaram
minha opinião sobre seu desempenho linguístico. Houve alguns poucos casos, todos em
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pessoas adultas, em que o aprendizado da língua foi muito difícil e um motivo permanente
de angústia.
Para os agentes do refúgio, o nível de português básico que aprendem os refugiados nos
cursos oferecidos é suficiente para se desenvolver em seus empregos – também básicos – e
esperam que, com o passar do tempo, o aprendizado das crianças – que é notoriamente mais
rápido e de “melhor qualidade” – vá empurrando o nível idiomático dos adultos. Ou seja, o
aprendizado linguístico das crianças marcaria, segundo essa lógica, boa parte do aspecto
linguístico da integração da família como um todo. Contudo, essa expectativa de que as
crianças se tornem multiplicadoras de integração não foi enunciada somente a respeito do
português. A escolarização, em geral, também foi apresentada como uma importanteestratégia de integração. Os agentes explicaram que é uma norma brasileira que as crianças
estudem e que, graças à interação com outras crianças, os menores refugiados iriam se
integrando muito mais rápido à sociedade. Essa visão geracional do processo de refúgio
permite encará-lo como um processo que se estende no tempo, em um longo prazo para
conseguir sua completitude. Nesse sentido, as unidades familiares da gestão inicial, vistas
como núcleos coesos, aparecem desde esta perspectiva como passíveis de serem fracionadas.
Conforme de Swaan (1992), a educação elementar supõe uma iniciação nos “códigos de
comunicação nacional”. Isto é, supõe uma formação em “la lengua estándar, la
alfabetización, la aritmética, la historia del país y la geografía nacional” (DE SWAAN, 199,
p. 18). Esses aspectos da escolarização e seu peso na construção de ideais de nação também
foram apontados em alguns dos trabalhos de Seyferth (2000, p. 47, 1997, p. 111), quem,
apoiada nos postulados de Hobsbawm sobre os nacionalismos, identificou a importância
atribuída à educação na configuração de uma consciência nacional nos processos deassimilação durante as campanhas de nacionalização empreendidas no Estado Novo.
Língua e escola, como aspectos fundamentais da integração e como elementos especialmente
direcionados às crianças, oferecem uma leitura geracional para a integração, já que a
capacidade real desse processo não estaria nas mãos dos adultos, mas de seus filhos. A
preferência por núcleos familiares com filhos pequenos, em idade escolar, alimenta esse
formato de integração que está necessariamente irrigado pela ideia do tempo. O tempo do
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crescimento, da formação e da descendência dessas crianças reassentadas é simultaneamente
o tempo da integração completa.
Uma funcionária do programa de reassentamento afirmou em uma conversa que: “los
colombianos con el tiempo se vuelven brasileros, aunque sigan comiendo arepa”. No
entanto, havia sempre algo de dúvida sobre suas verdadeiras “lealdades políticas sobre o país
adotivo” – utilizando a fórmula de Seyferth (2000, p. 47), e amiúde foi expressa a
possibilidade de que as pessoas regressassem a seu lugar de origem ou não se sentiram tão
integrados como os seus filhos. Diferentemente, dessas crianças se presume que vão se
tornando cada vez mais brasileiros e perdendo paulatinamente sua “essência” colombiana.
A mesma funcionária supracitada me disse em outro momento:
[...] Essa mulher, porque agora já é toda uma mulher, chegou de 14 anos e agoraestá com 20 anos. Bem-sucedida, dona do marido dela, empregada,brasileiríssima. Fala muito bem, ela faz speaker no aeroporto onde trabalha, Ela!Em português! É lindo! É lindo!
A beleza que a funcionária encontrou nessa transformação que levou uma criança
reassentada a se tornar uma “mulher brasileiríssima”, segundo me disse, obedecia ao fato de
ela ter feito parte dessa transformação. Como agente de integração lhe parecia que todos os
esforços realizados tinham valido a pena e as histórias dessas integrações eram uma amostra
de que o programa de reassentamento funcionava. Agregando, ao finalizar nossa conversa,
que as crianças que já viraram pais, “esses então, já não voltam ou só voltam durante as
férias”. Essas apreciações, como as de outros agentes, salientam que, só com o tempo, é
possível saber com certeza se os esforços integradores foram realmente bem-sucedidos.
A noção de integração, como processo e como objetivo do programa de reassentamento, está
firmemente baseada na ideia de que há uma “essência” da “brasilidade” que vá se adquirindo
aos poucos. Aliás, a absorção dessa essência seria mais efetiva na infância, assumida como
um dos momentos mais maleáveis dos sujeitos que poderiam facilmente se tornar na matéria-
prima de futuros brasileiros. Igualmente, supõe-se que o tempo, como elemento crucial do
processo de integração, faria que essa essência se afiançasse e se expandisse para os outros
membros da família. Desse modo, embora os pais não se sintam completamente parte da
nova comunidade que os acolhe, os filhos mais brasileiros que colombianos e os netos
nascidos no Brasil, terminariam por integrá-los ao território e à nação.
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À habitual fórmula de sangue/solo, o processo de reassentamento parece estar agregando a
relação terra/tempo. Ou seja, sedentarizar-se, aceitando os pressupostos dessa fixação, e
permanecer na terra até que o processo da integração se complete – quer dizer, até chegar o
tempo da descendência por e para o território brasileiro – seriam os requisitos para poder
reclamar o pertencimento total à nação. Os reassentados que ainda não sabem qual será seu
lugar encontram-se ainda ativos nesse jogo do provisório e do permanente que atua sobre a
possibilidade da terra e do pertencimento.
9.4. Uma morte lenta e algumas formas de subverter a mensagem da salvação
Às vezes o exílio é melhor do que ficar para trás ou não sair, mas somente às vezes.(Eward Said)
Durante uma de minhas primeiras temporadas da pesquisa de campo no Rio Grande do Sul,
algumas pessoas com as quais falei chamaram minha atenção sobre o acontecido com uma
família colombiana que, pouco tempo antes, tinha regressado ao seu país. As diferentes
reconstruções da história que escutei ofereceram informações e detalhes um pouco diferentes
entre si, dependendo da proximidade que os narradores tiveram com essa família e da forma
direta ou indireta em que se relacionaram com essa história. Contudo, as versões coincidiramem que o casal e seus filhos decidiram regressar à Colômbia apesar de considerar que lá
ainda poderiam correr risco de morte. Porém, nem todas as pessoas que conheceram a
história me contaram sobre elas, alguns agentes de refúgio não a mencionaram em nossos
encontros, apesar de minhas perguntas sobre os casos de reassentados que abdicavam do
programa. Os silêncios e as omissões já têm sido tratados ao longo da tese, interessa-me aqui
focar nesse novo movimento que empreenderam os membros da família citada nessa história.
Movimento que a maioria das pessoas, que me falaram a respeito, se referiram com o termoretorno.
O retorno da família, segundo as narrações, foi um processo difícil. Parte das dificuldades
consistiu precisamente em que eles desejavam um retorno (ou repatriação voluntária), e não
um simples regresso. Esse movimento que as pessoas estavam tentando fazer apelava à
gestão do Acnur na medida em que foi essa agência supranacional a que promoveu e foi
intermediária de seu reassentamento no Brasil. Esse retorno ou repatriação é um movimento
definido como voluntário que o Acnur descreve e classifica com suas ONGs parceiras,
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dentro dos parâmetros estabelecidos para administrar os movimentos e as pessoas
classificados e produzidos dentro do universo institucional do refúgio.
El propósito de la protección internacional no es, sin embargo, que los refugiadossigan siendo refugiados por siempre, sino garantizar que se restaure la pertenenciadel individuo a la comunidad y se restablezca la protección nacional, ya sea en supatria o mediante la integración en otros lugares. La repatriación voluntaria sueleconsiderarse como la solución más deseable a largo plazo por los propiosrefugiados y la comunidad internacional. La acción humanitaria del ACNUR en labúsqueda de soluciones duraderas a los problemas de los refugiados está orientada,ante todo, a permitir que un refugiado ejerza su derecho a retornar con seguridady dignidad. (ACNUR, 1996, p. 4)
No caso da família citada, o retorno solicitado não foi aceito. Sem a aprovação de sua
solicitação, também não contaram com assessoria, acompanhamento e financiamento dessa
agência para regressar à Colômbia, como era seu desejo. Apesar de os documentos do Acnur
falarem em retorno ou (repatriação voluntária) como a solução mais desejada para “o
problema dos refugiados”, neste caso, a negativa foi categórica. O argumento, oferecido às
pessoas que queriam voltar, para justificar essa negativa foi que a situação de perigo não
tinha cessado e que o Acnur não promoveria transferências de pessoas que colocaram em
risco a segurança delas. Segundo um conterrâneo que lhes ajudou a sobreviver durante os
últimos meses que a família passou no Brasil, a decisão negativa se manteve inclusive
quando as pessoas solicitaram ser enviadas a uma cidade diferente de seu lugar de origem,
onde elas consideravam que estariam a salvo. O fato de que os agentes do Acnur se
outorguem a autoridade de avaliar e decidir a conveniências ou não de um possível retorno,
lembra a proposta de Souza Lima (1995; 2012) sobre o poder tutelar, não apenas pela fixação
e pela proibição dos movimentos não consentidos pela agência, mas pela consequente
incapacitação que os constrói como sujeitos que não poderiam ponderar por si mesmos o
risco e tomar a decisão de assumi-lo.
A família, ainda assim, manteve sua decisão de regressar e, para poder fazê-lo, teve de
renunciar à proteção do Acnur e à assistência da ONG administradora do programa de
Reassentamento Solidário. Estando em uma situação de muita precariedade, com bastante
preocupação sobre seu futuro e com problemas de saúde, apelaram à solidariedade de alguns
conhecidos, notadamente colombianos organizados em grupos sociais e políticos. Também
acudiram a uma paróquia da Igreja Scalabriniana e ao cônsul honorário da Colômbia em
Porto Alegre. Segundo os relatos do cônsul, de um dos colombianos vinculado a um grupo
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político e de um sacerdote da igreja citada, foi preciso organizar uma espécie de campanha
de arrecadação de fundos para pagar as passagens e alguns dos gastos da viagem da família.
Essa medida, porém, teve um caráter extraordinário e foi produto da decisão autônoma de
seus organizadores, pois nenhum dos participantes – incluindo o cônsul – atuou de acordo
com um protocolo de assistência a refugiados ou algo similar. De fato, o cônsul disse ter
agido mais por dever ético do que profissional, já que não existem orientações do governo
nacional da Colômbia a respeito de casos como o descrito.
Vários elementos dessa história foram tomando força à medida que eu avançava na minha
pesquisa de campo. Quando fui, aos poucos, conhecendo os detalhes de funcionamento da
administração dos refugiados e de seus movimentos geográficos, a história descrita iareaparecendo obstinadamente em minha memória. Particularmente, quando me encontrava
com outras situações similares de refugiados e, sobretudo, de reassentados, querendo sair do
país, ou obter um passaporte de viagem, ou regressar de férias ou de visita à Colômbia ou
voltar definitivamente para morar lá. As proibições, os receios, as permissões provisórias e
parciais, as autorizações para uns e negativas para outros – sempre explicadas em função de
sua própria integridade o segurança – foram se mostrando claramente como uma forma de
controle sobre os movimentos das pessoas.
Nesse sentido, o controle dos movimentos também me remeteu à definição foucaultiana de
poder, já que se trata da posta em andamento de determinado tipo de relações que
condicionam e limitam as ações dos outros (FOUCAULT, 1998, p. 15). Não se trata somente
de repressão e dominação por meio da força, de fato, apela-se à proteção e ao cuidado como
motor da relação que permite a fixação das pessoas produzidas como refugiadas. Para que
essa relação seja possível, como visto, necessita-se da comunidade de interesses entre osorganismos reguladores dessas vidas e desses trânsitos e as pessoas que os realizam.
Novamente, estamos diante de formatos de governança que incluem a participação ativa dos
sujeitos e não diante de movimentos de poder meramente repressivo.
Outro exemplo dessa história que foi se decantando com o tempo, foi a mistura de registros
e categorias que ela expressa. As pessoas que conheceram os membros dessa família
coincidiram ao afirmar que sobre eles não havia dúvida a respeito de sua “verdadeira
necessidade de proteção”. Ou seja, enquanto sobre outras famílias de reassentados se dizia
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que eram, na realidade, migrantes econômicos que tinham conseguido driblar os filtros de
seleção, sobre essa família havia consenso em que se tratava de um grupo perseguido pela
guerrilha que havia tido, além disso, um de seus membros sequestrado. Porém, as razões
pelas quais esse grupo de pessoas tentou ativar o retorno eram de caráter econômico. Desse
modo, enquanto um movimento (aquele que os trouxe ao Brasil) foi justificado o tempo todo
em função de sua condição de refugiados – isto é, de não serem, migrantes econômicos –
seu retorno, solicitado em função da precariedade econômica na que se encontravam, foi
negado pelas mesmas razões. O Acnur somente autorizaria movimentos de proteção
baseados em um “fundado temor de perseguição” ou que sejam realizados para um reorno
seguro. Assim, as causas econômicas não estariam entre as origens legítimas do medo
(GOOD, 2006, p. 98) e, nesse caso, também não configuraram um sofrimento digno deretorno.
Essa história transformou-se em um exemplo das formas de controle e tentativas de fixação
das pessoas, não como uma consequência lógica dos movimentos esperáveis dos refugiados,
mas como o resultado de esforços constantes para governar e administrar essas populações
em êxodo. Não é em vão que o maior controle é exercido sobre as pessoas reassentadas, cujo
programa reitor é apresentado como exitoso e tem se consolidado como a bandeira do Brasilpara expor suas leis e práticas de refúgio no plano internacional. Não é de se estranhar então
que a informação sobre os retornados me fosse negada em uma das ONGs administradoras
– afirmando que esses casos não existiam – e apresentada, de maneira parcial na outra,
afirmando a insignificância desses casos e mostrando-os como sempre motivados por
desejos e contingências dos reassentados, e nunca por falhas do programa.
Já sobre os refugiados espontâneos, a explicação sobre seu regresso e sua renuncia à“proteção do Acnur” foi explicada como uma amostra de que as pessoas podiam regressar a
seu país à vontade, ativando, mais uma vez, a suspeita sobre seu fundado temor de
perseguição. Também me foi explicada, de uma maneira positivada, afirmando que nem as
ONGs administradoras, nem o Acnur podem obrigar as pessoas a permanecerem contra sua
vontade, que a decisão do regresso dos refugiados espontâneos é autônoma e que a única
coisa que os agentes podem fazer é lhes aconselhar quando, segundo suas “pesquisas
objetivas”, o retorno a uma região que considerem perigosa. Ainda assim, o retorno
voluntário, quando não conta com a aprovação do Acnur, exige a renúncia à proteção dessa
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agência, mediante a firma de documentos com os que a eximiria de responsabilidades. Isso
significa também que as pessoas não contaram com apoio financeiro, nem assistência
nenhuma para a viagem (ou as viagens) de regresso e que se perderam chances de voltar a
ser aceito como refugiado no futuro.
Um dos conterrâneos que narrou parte da história da família que decidiu voltar, comparou
esses documentos que livram de responsabilidades ao Acnur, com documentos similares que
devem ser firmados em hospitais quando o paciente recusa um tratamento sugerido pelos
profissionais médicos ou quando, contrário às indicações dos especialistas, solicita a saída
do centro hospitalar. A comparação proposta me pareceu muito apropriada, já que, em ambos
os casos, trata-se de um desafio à prática profissional e ao controle dos corpos que elaimplica. Em ambos os casos, os profissionais decidem não assistir, nem ajudar na decisão
tomada pelo sujeito, mas solicitam ser eximidos das consequências dessa decisão. Em
palavras de meu interlocutor: “Te devuelven la vida, te devuelven la responsabilidad sobre
tu vida y te dicen: ‘Vea a ver usted qué hace con ella’”.
Se o meu interlocutor se expressou dessa maneira e se tinha refletido a respeito, não foi
apenas por ter estado próximo e ter sido solidário com a família que quis regressar. Elemesmo, em sua primeira experiência como refugiado, tinha decidido voltar para Colômbia
apesar de saber que lá ele ainda corria risco de ser assassinado. Essa primeira experiência de
refúgio foi insuportável para ele, sentia que tinha deixado tudo pendente, que não tinha
conseguido se despedir e que tinha aberto uma fenda imensa entre ele e aquilo que ele
considerava sua própria vida. Em outras palavras, sentia que sua vida tinha ficado na
Colômbia e que necessitava de seu regresso para continuá-la. Necessitava reativar a vida e,
para isso, teve de contradizer as agências que tinham intermediado na sua saída comorefugiado do país e que tinham lhe “ premiado con el país con el que sueña cualquier líder
de derechos humanos” enviando-o para Europa. Essa rejeição da dádiva do refúgio,
aumentada pelo oferecimento de um país com prestígio, lhe significou a solidão do regresso
e a responsabilidade sobre seu próprio futuro, sem ajudas para diminuir os perigos que ainda
ameaçavam sua vida.
[…] Y yo reflexionando esas cosas, yo decidí volverme. Cuando yo llegué a
Colombia, nadie me quería dar trabajo. Cuando yo regresé fue diferente de cuandoyo me fui, cuando yo me fui, hasta la silla del avión me acompañaron los de
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Brigadas Internacionales de Paz y ahí estuvieron hasta que el avión saliera. Perocuando yo regresé, yo regresé solo y nadie me quería ver, porque yo decidí noquedarme. O sea, yo contradije todos los programas de protección que hay […]
A decisão de voltar, de regressar, de ir um tempo para ver como estão as coisas, foifrequentemente evocada por outras pessoas com as quais falei. Muitas razões diferentes me
foram expostas como motor desses movimentos ou desejos. Algumas coincidiam com as
razões expressadas por Francisco, ou seja, com a necessidade de ressarcir a ausência que
implicava sua presença em outro país, conforme Sayad (1991, p. 111) ou de conjurar a
imensa tristeza de ter sido arrancado do lugar e as relações que configuravam a vida,
conforme Said (2001, p. 51-54). Contudo, também houve muitas outras razões expressas
para realizar esses movimentos provisórios ou definitivos até a terra natal: vontadesalimentícias, desejo de participar em comemorações familiares (em uma sorte de nostalgia
calendarizada), aspiração de passar as férias em casa, necessidade existencial de que os filhos
conheçam a família que ficou, doença ou morte de parentes, ansiedade de saber se o perigo
tinha desaparecido, necessidade de confrontar as lembranças, etc.
Quando as pessoas refugiadas que viajaram quiseram concretizar suas viagens temporárias,
todas essas motivações tiveram de ser convertidas em uma carta com uma justificativa
apropriada, pedindo a autorização da viagem e, em alguns casos, a emissão do passaporte do
Acnur para os refugiados. Tudo isso para poder fazer o percurso sem o perigo de perder a
condição de refugiados e seus documentos no Brasil. Algumas pessoas, porém, haviam
realizado esses movimentos de ida e volta sem ativar as permissões exigidas e assumindo a
carga emocional do medo de serem descobertos e o perigo de perderem o status de refugiados
com suas possíveis consequências na situação de regularidade migratória.
A decisão do retoro apareceu também, de maneira reiterada nas declarações das pessoas, não
como um desejo de vida, mas como uma opção de morte, que, em qualquer caso, parecia
preferível a o refúgio. Ou melhor, a o que seu êxodo administrado significou para eles, a
essa configuração especial de precariedade, angústia e humilhações que, para muitos,
transformou-se na experiência e na realidade chamada refúgio:
[…] Yo no sé para qué Colombia tiene esos tratados con países que tratan mal asu gente. Si yo hubiera sabido lo que me esperaba, yo hubiera preferido la muere
ahí, porque es más cruel que lo maten a uno a poquiticos con humillaciones y noque le den unos tiros allá […]. (Edna)
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Edna fez essa afirmação depois de me contar, com detalhes, as dificuldades e os maus tratos
que tiveram de suportar durante a viagem. A sensação de desassossego se fez especialmente
dura em São Paulo, pois o resto do tempo, durante a viagem, ela e sua família acreditavam
que as precariedades obedeciam a que eles estavam atravessando lugares periféricos da
geografia brasileira, locais pequenos e pobres, segundo sua explicação. Ao chegar a São
Paulo, onde eles acreditavam que as coisas seriam diferentes, deram-se conta que as
dificuldades experimentadas no caminho não se esvaeceriam, mas virariam constantes,
seriam a marca de sua situação de refugiados. O descobrimento de que a carência e a
humilhação seriam a norma e o tratamento “desumano” – segundo suas palavras – a fórmula
do atendimento a devastou animicamente. A irmã de Edna me contou que, durante as
primeiras semanas em São Paulo, Edna chorava todos os dias, inclusive quando iacaminhando pela rua. Ver a sua irmã grávida, com fome, chorando em uma rua de uma
cidade desconhecida e hostil, também a arrasava e então caminhava e chorava junto com ela.
Quando Edna e sua família falaram que teria sido preferível ser assassinados na Colômbia a
condenados a uma morte lenta no Brasil, já haviam passado 11 meses desde sua chegada a
São Paulo. Considero que essa frase expressa, claro, o que é lido em suas palavras, ou seja,
o perigo da morte e a morte mesma são, às vezes, preferíveis às características da vida comorefugiados e a determinados sofrimentos a ela associados. Mas acredito que a frase, além de
aludir a essa sensação forte de desamparo e sofrimento pior que a morte, também encerra
um potencial desafiador das premissas sobre as quais são construídos e difundidos os
programas de refúgio. Dizer que tivesse preferido a morte ao refúgio é uma rejeição da
mensagem de salvação, da ideia de restauração e da suposta bondade que, segundo os agentes
do refúgio, são a base desse bem precioso. Em outras palavras, considero que Edna e sua
família estão muito felizes de estarem vivos; assim me deixaram saber com suas palavras,com sua forma alegre de me receber e de estar no mundo e com seu interesse porque eu
conhecesse sua história. Não é uma recusa à vida o que configura o cerne dessa expressão,
é uma rejeição à imagem humanitária que produz a tríade do refúgio, tanto do Estado
brasileiro quanto do Acnur, usando como matéria-prima seus sofrimentos. É, me parece,
uma disputa (ainda que desigual) pelo poder de produzir imagens sobre a nação, sobre o
Estado e sobre os princípios que os guiam. É também uma denúncia do tempo –
particularmente da lentidão – como um elemento de castigo e de sofrimento por meio do
qual se constroem refugiados.
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Não é surpreendente assim que não somente Edna tenha lançado esse desafio. Melhor uma
morte rápida a uma agonia lenta, foi a fórmula que escutei também de outras pessoas,
solicitantes ou refugiadas:
Pero lo que me da esa decepción es que si salimos de Colombia porque somosvíctimas de la violencia, yo creo que no deberíamos de llamarnos ni emigrantes,ni asilados, ni refugiados, sino condenados y condenadas a morir lentamenteporque una persona difícilmente sale del hueco donde yo estoy, difícilmente saledel abismo donde yo estoy porque lo más seguro que esa persona tome es elcamino del mal […] Yo considero que si queremos ayudar a alguien, saquémoslodel abismo en donde se encuentra pero aquí no te sacan del abismo, aquí te dan unpedazo de pan y una bolsa con agua y vive con eso: o sea que tu muerte va a sermás lenta, te condenan a morir lentamente […]. (José Alberto, solicitante derefúgio)
Das imagens de bombardeios e guerras, de mulheres e crianças sofrentes sem contexto, o
Acnur-Brasil (grande produtor de imagens do refúgio brasileiro) pula para imagens de
pessoas felizes e integradas, com negócios próprios e esperança no futuro. Os tempos e os
processos que se infiltram entre as duas etapas não aparecem nessas imagens. Também não
aparecem os filtros que transformam uma guerra de mais de 50 anos (que continua causando
morte, destruição, deslocamento e medo) na imagem exitosa de umas poucas famílias
“integráveis”. É por isso que considero desafiador a rejeição das pessoas dessa mensagemde salvação, de esquecimento, de gratidão e de silêncio. Essa resistência a entrar nos moldes,
essa obstinação de encontrar outras formas, outras explicações, de contar sua própria versão
da historia (apesar de não saber se vai servir para alguma coisa tudo isso que me contaram),
de não sucumbir ao convite da vida nova, lembra-nos de que o movimento de êxodo não é
uma linha reta, que não termina com a integração, que não se submete à razão da ordem
nacional e que não se reduz à reparação da razão de estado.
Rocío: Ellos tal vez piensan que yo no entiendo las cosas, que yo no estudié, peroyo me dedico mucho porque yo digo: después de todo lo que mi familia pasó, detodo lo que pasamos, ¿yo voy a dejar que ya, que fuera en vano? No, no puede serasí, no vamos a ser unos más que sufrieron y ahora ¡ah la vida nueva y ya ¡No! Nohay vida nueva no es recomienzo, es continuar. Y yo creo que hay que luchar yque hay que... uno no puede simplemente dejar que ya que fue y ya.
Yo: ¿si tú pidieras la residencia, eso te daría una historia diferente a la del refugio?
Rocío: Yo creo que no. Porque para mí yo siempre voy a ser refugiada, no por elnombre sino por lo que es. Porque ser residente no va a cambiar que vineescapándome. Va a ser siempre así, yo creo que no va a haber una cosa de
recomienzo y eso, no es olvidar, es asumir. No simplemente: Ay! no ya, mi vidava a ser nueva, eso no existe.
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O exílio das pessoas que encontrei ao longo da pesquisa de campo se compôs de perdas e
rupturas – umas menos voluntarias que outras – e do começo de uma existência descontínua.
No entanto, como me mostrou Rocío, a experiência administrativa que os transformou em
solicitantes, refugiados ou reassentados não foi um recomeçar, mas uma continuação – ainda
que fragmentada – de alguns dos aspectos da vida tal como ela era antes, de algumas das
ordens de poder que compunham suas existências e da experiência de desterro que marcou
seus movimentos. As renegociações que, como refugiados, tiveram de fazer dessas formas e
ordens de poder não deveriam fazer que acreditássemos que se se recomece do zero e se
chega a uma nova vida. Não é salvação, mas administração o que está em jogo com a figura
contemporânea do refúgio.