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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-graduação em Antropologia Social Êxodos e refúgios. Colombianos refúgiados no Sul e Sudeste do Brasil Ángela Facundo Navia Rio de Janeiro 2014

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Universidade Federal do Rio de JaneiroMuseu Nacional

Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Êxodos e refúgios.Colombianos refúgiados no Sul e Sudeste do Brasil

Ángela Facundo Navia

Rio de Janeiro

2014

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QUARTA PARTE. O tempo: a integração ou o retorno da vida

8. Oitavo capítuloRitmos e tempos do refúgio

O exílio, como nos diz Said (2001), é uma “fratura incurável entre um ser humano e um

lugar natal, entre o eu e o verdadeiro lar” (op. cit., p. 46). Nessa parte da tese, gostaria de

abordar essa ruptura que configura o exílio na vida de algumas das pessoas com as que me

encontrei, assim como a diferença entre essa experiência existencial do exílio e a experiência

administrativa do refúgio (não menos configuradora de subjetividades) tal como tem sido

descrita ao longo do texto. Em segundo lugar, interessa-me reflexionar sobre o fato de que a

ruptura que é instauradora de um exílio – e que tem lhe servido de base moral à administraçãodo refúgio ao interpretá-la como a origem de um ‘fundado temor de perseguição’ – não

apenas é espacial, mas temporal.

O tempo que foi interrupto bruscamente, que nunca voltou ao ritmo que marcava a vida de

todos os dias e desabilitou o espaço para ser habitado pelo cotidiano, parece ser um dos

aspectos que alguns autores associam à figura contemporânea do refúgio e que podemos,

segundo Said (2001, p. 46), pensar como um dos marcadores do exílio. Esse “evento crítico”,

nos termos de Veena Das (1997, p. 6-8), atravessado por uma experiência de violência que

supera a capacidade da linguagem para significá-lo e enunciá-lo, é paradoxalmente exigido,

convertido em um requisito narrativo, pelos agentes que administram o refúgio no Brasil,

buscando em sua exposição controlada, em diversos formatos de entrevista e interação, um

passado de temor e um temor digno de refúgio. Ou seja, buscando na narração de um evento,

quase inenarrável, as “origens legítimas do medo” (GOOD, 2006, p. 98) que facilitam a

apresentação do refúgio como a prática de governo adequada sobre determinadas populações

em êxodos marcados por determinados sofrimentos.

Além dessa ruptura temporal, ou quiçá em parte por ela, o tempo será abordado nesta parte

como um elemento fundamental no governo dos refugiados e na recomposição de um mundo

possível no exílio. Interessa-me examinar essa dimensão em relação à proposta de Adriana

Vianna (2011, p. 8) que, inspirada em Veena Das, sugere analisar o “trabalho que se exerce

sobre e no tempo” como uma peça fundamental em alguns processos por meio dos quais são

construídas subjetividades e moralidades. A relevância de diferentes dimensões temporais

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ou ritmos (urgência, imediatismo, etapas escalonadas) na construção de uma “história

verdadeira de refúgio”, o tempo da espera para ser reconhecido, os prazos dados aos

reassentados para a integração e para o recorte dos benefícios financeiros, entre outros, são

elementos cruciais nos processos que performam aos refugiados.

Levando em conta as discussões que assinalam que o tempo é em si mesmo um “portador de

significado” e alertada pelos “usos opressivos” que este consente e facilita (FABIAN, 1983,

p. 2), gostaria de indagar algumas das consequências sociais da utilização do tempo como

categoria que permite a construção de determinadas imagens e interpretações no universo

institucional brasileiro do refúgio. Iconografias e exegeses que, por sua vez, servem de

material para tecer as relações entre sujeitos refugiados e diferentes agentes de Estado. Asdiversas leituras dos tempos dos sujeitos assim como dos países envolvidos no refúgio de

colombianos no Brasil colaboram na inscrição dos corpos e das histórias não apenas em

espaços sociais mas também em momentos de uma escala de progresso na carreira que

supostamente é seguida por todas as vidas. Essa inscrição também está marcada por uma

escala universalizante segundo a qual tanto os países quanto os sujeitos que os representam

na migração estariam em um momento civilizatório diferente daquele do país de acolhida.

Os usos do tempo servem para explicar a procedência dos refugiados “vindo” desdediferentes passados, mais ou menos bárbaros e violentos, assim como para justificar o difícil

trabalho civilizador do presente sobre um futuro que se presume como o da “integração

exitosa” na “sociedade brasileira”.

O tempo também se faz pressente com a ideia mesma da provisoriedade 128 presumida do

refúgio (SAYAD, 1991, p. 51) e de seus processos de solicitação. Provisoriedade que

termina por se prolongar e se eternizar como a condição que marca as membresias temporais

128 A respeito da migração, Sayad (1991) apontou uma não correspondência entre o direito e o fato. Se, emdireito, supõe-se que a migração é um estado provisório, sua característica, de fato, é que é uma situaçãodurável. Assim, para o autor, não se saberia se trata-se de um estado provisório que se quer prolongarindefinidamente ou se trata-se de um estado duradouro, mas que se quer que seja vivido com um intensosentimento de provisoriedade (op. cit., p. 51). Assinalando essa questão, Sayad proporá que se trata de uma“ilusão coletiva” de um estado que não é nem provisório, nem permanente. Nas palavras do autor: “Un étatque n’est admis tantôt comme provisoire, qu’a condition que ce «provisoire» puisse durer indéfiniment et,tantôt, comme définitif qu’a condition que ce «definitif» ne soit jamais énoncé comme tel” (Ibidem). Pensandonas inúmeras coincidências desses postulados com a lógica administrativa dos refugiados espontâneos,

podemos observar a existência de contradições similares segundo as quais o refúgio é uma situação provisóriaque tem de ser atualizada a cada determinado tempo e que pode ser rescindida quando seja presumido queexistem condições para que os refugiados apelem novamente à proteção de seu próprio país.

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e restritas que lhes são outorgadas na sociedade brasileira a esses sujeitos refugiados e a

muitos outros imigrantes. Em franco contraste com esse caráter provisório, ergue-se

discursivamente o caráter “perdurável” com o qual é construída e apresentada –  na

linguagem do Acnur e do Conare  – a “solução duradoura do reassentamento” (ACNUR,

2011a). Sem que essa durabilidade signifique uma membresia menos restrita, presume-se

que os reassentados não retornaram ao seu país, de modo que eles se tornam a matéria-prima

de futuros brasileiros, ora por sua própria transformação com o passar dos anos, ora por sua

descendência nascida em – e para – o território brasileiro.

Também me interessa, por meio dos aspectos supracitados e do acúmulo de trabalhos como

os de Giralda Seyferth (1993, 1997, 2000, 2011), interrogar a ideia mesma de integração queé apresentada pelos agentes de refúgio como o objetivo principal dos programas,

notadamente do reassentamento. Isso, levando em conta os diferentes tempos/ritmos que são

propostos, conteúdos e resultados da figura contemporânea do refúgio brasileiro, vista por

meio da recepção de nacionais colombianos. Por último, considero que existe uma sorte de

tempo mítico, que todos esses outros tempos, associados à figura salvadora do refúgio,

ajudam a construir. O relato do refúgio é inscrito pelos agentes da tríade em um tempo

brasileiro que inclui todos os tempos da migração. Tempo que é resumido e caracterizadocomo  – tanto pelos agentes da tríade quanto pela sociedade civil ampla  – por uma perene

constituição mestiça, uma sempiterna abertura vanguardista para a diferença cultural e uma

tradição pouco escrutada do Estado-nação brasileiro como um amável receptor de povos em

êxodo.

8.1. Demorando muito, recebendo pouco: o quanto sempre defasado com o quando

Pues el día xx de xxxxxx nos visitó el ACNUR de Brasilia, que es una visita alaño que hacen para todos. Y expusimos el caso, pero ellos dicen que los ojos delACNUR de aquí son los del CDDH, que cualquier inquietud se la digamos alCDDH. O sea, la misma vaina. Y un año de reasentamiento es corto, no queremosque nos mantengan toda la vida. El tiempo está bien, siempre y cuando ellosestudien bien el perfil, los trámites sean rápidos, lo guíen y lo orienten bien a uno.Y que las ayudas, especialmente en el estudio, sean oportunas. Pero lo único quehacen es dilatar todo, todo lo demoran, todo es un trámite y demasiada‘tramitología’. Haciendo tiempo para que se acabe el año y ya uno no tenga másderecho a nada […] Nosotros teníamos una fábrica pequeña con cuatro máquinasy el resto de lo necesario y allá [en Ecuador] nos dijeron que acá nos ayudabancon un micro emprendimiento que era muy bueno y que nos daban estudio a todospara quedar bien preparados y podernos defender. [Pero] mi estudio yo lo pago ypara el de mis hijos y mi esposo dieron para un par de pasajes y no más. Nos tocópagar el resto a nosotros. Lo peor es que así ¿uno cómo va a ahorrar? y antes deque se cumpla el año le mandan la carta de desalojo y están hasta amenazando con

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policía y todo. Usted sabe alquilar una casa cuánto cuesta. Hay que tener por lomedos 2500 ahorrado. (Reassentada)

Apesar das diferenças do que acontece ao chegar ao território brasileiro entre os solicitantes

espontâneos de refúgio e os reassentados, uma comum sensação de impotência e desespero

foi descrita pelas pessoas em ambas as situações. A descrição que as pessoas fazem pode ser

entendida como uma luta constante e desigual – que quase sempre se sente perdida – contra

a “gestão adversa do tempo” conforme a fórmula de Vianna (2011, p. 12). Gestão que se

acompanha do que eles denunciam como descuido e desinteresse por parte dos agentes que,

se supõe, deveriam velar pelo seu bem-estar. Para eles, é particularmente difícil essa

combinação da espera – como um tempo que passa sem que nada passe ou em que passa o

inapropriado  – e a precariedade que eles experimentam. Precariedade que é, além disso,

continuamente enunciada pelos agentes e exibida nos lugares e nas coisas da administração

de refugiados (postos administrativos, moradias e mobiliário para o reassentamento,

albergues, etc.). Parece que, ao estabelecer um vínculo com o universo institucional do

refúgio, as pessoas se encontram, de repente, congeladas ou colocadas em câmera lenta em

um terreno pantanoso de dificuldades e carências.

Para abordar as expressões e as experiências da precariedade, baseio-me na proposta deJudith Butler. Para a autora, existiriam duas formas  – às vezes, opostas  – de entender a

precariedade129, ou mais exatamente duas formas de apreender uma vida, ou um conjunto de

vidas, como precárias (BUTLER, 2009, p. 14). Além de uma primeira precariedade, que

poderíamos entender como existencial na medida em que caracteriza a existência corporal

dos sujeitos expostos sempre a forças sociais, a autora define uma concepção mais

especificamente política da precariedade. Essa última, sempre vinculada com a primeira

precariedade exposta, estaria relacionada com a forma em que existem atribuiçõesdiferenciais de precariedade para determinados corpos (BUTLER, op. cit., p. 16). Nesse

caso, considero que os marcos por meio dos quais as vidas das pessoas são dotadas de valor

diferencial constroem diferentes tipos de reação diante delas. Ao mesmo tempo que a

precariedade existencial das pessoas aparece como motivadora de uma ação de salvação, as

relações com elas são construídas de modo que é reforçada a ideia de um humano precário

como uma condição que possibilita uma boa dose de indiferença sobre seu sofrimento.

129 Na tradução ao castelhano do livro Marcos de Guerra de Butler, é explicado que foi traduzido o neologismoinglês precarity por precaridad e precariousness por precariedad .

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Simultaneamente, as pessoas, ao identificar nesses marcos uma produção de precarizações,

reagem identificando-as, nomeando-as como intoleráveis e denunciando-as; tudo isso como

uma forma possível de impedir que esses marcos as afetem em um nível existencial no qual

suas vidas já não sejam mais reconhecidas como vidas.

O trabalho e a disputa sobre o tempo é fundamental nessa luta para preservar o valor das

vidas. Como foi explicado por Gladis na citação que inaugura este apartado, para ela, “ el

tiempo está bien”. O que está mal é sua gestão, e a lentidão com a qual os agentes fazem as

coisas, é o poder que limita suas ações e anula sua capacidade de se preparar para “se

defender ” sozinha no futuro. Para Gladis, os agentes estariam “haciendo tiempo para que se

acabe el año” e, assim, se cumpra o prazo previsto para o final dos benefícios oferecidos aosreassentados. Essa feitura inadequada do tempo, essa dilatação de trâmites cotidianos, que

acaba por se apoderar dos meses, foi uma queixa frequente das famílias reassentadas com as

quais falei, especialmente quando se referiram (ou se encontravam em) seus primeiros anos

de vida no Brasil.

 Não apenas o tempo lhes pareceu “insuficiente”, mas a constante enunciação dos

administradores da falta e da carência fez dos primeiros meses uma etapa mais angustiosa,precipitando a sensação do final iminente dos benefícios e do prazo para a integração.

Segundo Sandra e Silvio, por exemplo, os agentes de reassentamento foram tão insistentes

sobre o caráter limitado dos recursos, em quantidade e tempo, que eles teriam chegado a

considerar a renúncia a alguns meses mais de benefícios financeiros, se isso significasse que

poderiam se desfazer dessas advertências contínuas que eles sentiam como sendo ameaças e

que terminavam desgastando a tranquilidade da família. Afinal, ao concluir o primeiro ano,

os agentes do programa lhes outorgaram mais um mês de apoio financeiro, mas a famíliadeveu assinar um documento “se comprometendo a não pedir mais”. Depois desse mês

“extra”, Silvio, que havia sofrido um acidente de trabalho, disse que, tendo em vista as novas

circunstâncias, ele havia tido de “ameaçar” a ONG “con hacer un escándalo mediático”. A

essa ameaça ele lhe atribui o fato de que o programa tenha aceito cobrir os gastos durante

seis meses mais.

Segundo alguns dos administradores, atuais e já retirados do programa de reassentamento,

essa constante repetição sobre os limites dos benefícios se fez necessária porque os primeiros

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grupos de pessoas reassentadas, apesar de terem sido informados, queixaram-se da falta de

clareza sobre os benefícios e a duração do apoio do programa. Além disso, porque, segundo

eles, as pessoas chegavam com muitas expectativas sobre a assistência que receberiam e

sobre a vida no Brasil, de modo que, com os primeiros grupos, foi preciso, em alguns casos,

renegociar com o Acnur novos prazos para a suspensão dos benefícios econômicos.

A decisão para evitar essas situações, que os agentes da tríade julgaram inconvenientes, foi

combinar a constante enunciação da falta (de recursos, de tempo, de pessoal) com a seleção

de pessoas com baixo perfil (referindo-se basicamente a seu nível educativo e a seu suposto

pertencimento de classe) de quem supunham que não teriam grandes expectativas sobre a

“nova vida no Brasil”. Também se incorporou um cálculo que antecipava um mal-estar nomomento final dos auxílios econômicos, de modo que usualmente se estabelece um tempo

possível de benefícios, mas se oferece um menor. Se, no momento de retirar a assistência, a

inconformidade das pessoas vira um mal-estar difícil de controlar, existe a possibilidade de

dar uns meses mais de cobertura econômica que já estavam contemplados como uma opção

desde o começo. Mais uma vez e, ainda com mais insistência, é repetido que esses benefícios

serão os últimos entregues e que são concedidos em virtude da avaliação da situação como

“extraordinária”.

Segundo as famílias que entrevistei, os limites da assistência são informados antes da

viagem, mas essa informação vira repetição explícita e constante quando as pessoas chegam

ao Brasil. Situação que contrasta com o momento da apresentação do programa em que os

candidatos a reassentamento são contatados no Equador. Mesmo que as pessoas soubessem

que o programa ia dar assistência por um tempo determinado, não se imaginavam que esse

tempo assistido seria marcado pela difícil gestão dos benefícios oferecidos, fazendo dele umtempo insuficiente. O primeiro contato dos agentes da Missão de Seleção e os candidatos a

reassentamento parece ser um momento de sedução. Embora sejam expostas algumas das

realidades sociais problemáticas do país, assim como os limites do reassentamento, o

objetivo também é, segundo os próprios agentes que participam dessas missões, convencer

as pessoas a aceitarem o reassentamento no Brasil.

Como visto na terceira parte da tese, a seleção de refugiados e reassentados implica um

esforço por individualizar as pessoas e suas histórias, outorgando aos detalhes de cada “caso”

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um lugar preponderante e um caráter de particularidade. Essa sensação de estar vivendo algo

especial, de estar sendo eleitos entre muitos outros para serem salvos, é reforçada com outros

atos de espetacularização que algumas das pessoas reassentadas, especialmente as crianças

e os jovens, relataram com entusiasmo. Por exemplo, foi motivo de exaltação nos relatos o

fato de terem sido levados pelo Acnur, escoltados até o aeroporto e de terem tomado um voo

(para muitos deles o primeiro da vida) e, além disso, de ser parte de uma operação de uma

agência internacional. Usando as palavras de um dos jovens: “ fue como en las películas”, já

que “nos dieron distintivos secretos del Acnur ”, referindo-se a um kit de desenho com o

logotipo do Acnur que é entregue às crianças dos casais reassentados com instruções de que

seja portado em um lugar visível de modo que possam ser reconhecidos pela equipe da ONG

que ira recebê-los no aeroporto130.

No entanto, essa espetacularização da seleção e da viagem que lhes outorga um lugar

especial contrasta com a sensação de abandono e desprezo de sua história que se instala

rapidamente quando começa a ser tecida a relação cotidiana com os administradores de seu

reassentamento. Também há um desencantamento com a sedução inicial por meio da qual

“o Brasil” lhes é apresentado como uma opção de reassentamento. Parte da estratégia de

sedução inclui a celeridade na tomada da decisão. Ou seja, que “o Brasil” oferece umdiferencial em comparação com os países clássicos do reassentamento na medida em que

não demora anos, mas apenas alguns meses para dar uma resposta aos candidatos (como

visto na segunda parte da tese). Mas a celeridade nessa primeira parte do processo vira

parcimônia quando da chegada ao Brasil, o que faz que tudo ande lentamente durante o

tempo em que as pessoas serão assistidas, ou também se transforma em uma proliferação de

trâmites que foram qualificados de inúteis e que ocupam e gastam o tempo que, segundo

elas, deveria ser dedicado ao “processo de integração”. Processo que é entendido, nesse caso, pelos próprios sujeitos reassentados, como sua preparação para “se defender sozinhos no

 futuro”.

Apoiando a ideia dos agentes de reassentamento, segundo a qual a assistência financeira e a

cobertura do programa devem ser limitadas e esse caráter continuamente enunciado, está a

suposição de que é possível antecipar as emoções que predominarão nas pessoas durante

130 No caso das pessoas adultas que viajam sozinhas, o distintivo é uma mochila ou bolsa que leva impresso ologotipo do Acnur.

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cada uma das etapas do primeiro ano de vida no Brasil (ou do tempo de assistência do

programa). Segundo esse cálculo, o momento da chegada estaria marcado por uma relação

cordial e, ao contrário, o momento da finalização da assistência seria um período hostil

marcado pelas reclamações.

Ah! A chegada é uma maravilha, tem casa, mobília, tudo é bom, mas já no10° mês,no 11° mês, o 12°, é ódio total. (Coordenadora de ONG de reassentamento 1)

[...] um está na lua de mel e o outro na lua de fel. Os três meses primeiros são alua de mel, aí depois eles começam a ter consciência de outras coisas, dasdificuldades e até dos próprios traumas e o choque pós-traumático aparece muitomais depois do terceiro e quarto mês e tem o período em que eles começam a revertudo o drama do deslocamento, porque eles são muito apegados a isso, eles têmuma ligação demasiada com o conflito. (Coordenadora de ONG de reassentamento2)

A leitura das pessoas reassentadas, principalmente de algumas famílias, não coincide com

essa divisão de emoções associadas ao tempo do programa. Para uma das agentes citadas

(agente 2), o descontentamento que abrolha nas pessoas deriva da aparição do “trauma” pelo

“drama do deslocamento” que ela localiza no passado. Para as pessoas reassentadas que

entrevistei, esse descontentamento tem mais relação com o próprio processo de

reassentamento, e sua origem está claramente localizada no pressente, como uma etapa que

também está marcada pelo sofrimento, pela carência e pela reatualização de sua condição de

despossuídos, de desterrados. Considero que, para além do “evento crítico” que gerou o

primeiro êxodo e, entendidos como processos, os programas e as técnicas de sedentarização

e reassentamento são parte do deslocamento e conformam boa parte de suas características

dramáticas.

Podemos dizer que, mesmo que o Acnur e seus agentes considerem possível fragmentar os

tempos do êxodo segundo caracterizações jurídicas definidas para cada um (deslocamento,

refúgio, reassentamento, integração ou retorno, etc.), o tempo desses ciclos na vida das

pessoas não está fragmentado dessa maneira, nem apresenta esse comportamento sequencial

que fabricam os administradores dos programas. Idas e vindas, lembranças e esquecimentos,

reinterpretações dos acontecimentos violentos, tentativas exitosas ou frustradas de regressar

ao lugar natal e relações tensas ou cordiais com funcionários e agentes se integram de

maneira inesperada na história e na experiência de cada sujeito  – coletivo ou individual  – 

cuja vida tem sido marcada pelo êxodo.

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Por outra parte, o momento da chegada está longe de ser o momento maravilhoso ou a lua

de mel da qual falaram as coordenadoras das ONGs. Pelo contrário, me foi descrito, com

muita indignação, o descobrimento da precariedade das casas e dos bairros onde o programa

os localizou, assim como o estado e o estilo dos móveis e eletrodomésticos que lhes foram

entregues e até a defasagem entre o tamanho das roupas que lhes foram oferecidas e o

tamanho dos seus corpos. Além disso, nas narrações sobre os primeiros dias se referiram

constantemente que se sentiram sós, deixados em hotéis sem contato com as funcionárias

das ONGs, com pouquíssimo dinheiro e sem poder se comunicar em português com

ninguém.

Na narração que as pessoas fizeram sobre essas misérias iniciais, a ira e a indignaçãoestiveram muito presentes, inclusive nos casos de pessoas que já levam vários anos morando

no Brasil, a narração foi marcada pela emoção, às vezes pelas lágrimas e, às vezes, pela

zombaria. Sandra e Silvio riam lembrando ao contar que, quando eles conseguiam que a

diretora da ONG da época fosse visitá-los ou quando chegava a “assistente social mais

odiosa”, eles tiravam as espumas e as mantas com as quais usualmente cobriam os buracos

e o mofo do sofá que lhes tinha sido entregue pelo programa. Desse jeito, as funcionárias se

viam obrigadas a se sentar “en esse sofá podrido” ou a tomar café em “los pocillos

despicados” que lhes tinham entregado como parte do aparelho de jantar.

Também Rodolfo lembrou com emoção que as primeiras noites foram de muito frio e não

estavam preparados para isso. Achando, como outros refugiados que encontrei, que o Brasil

era um país de clima quente – e sem informação diferente a respeito oferecida pelos membros

da missão de seleção – ele e sua família doaram as roupas de inverno para outras pessoas

que ficaram no Equador. Ao chegar à moradia que a ONG alugou para eles, encontraram oscolchões que seriam seus leitos estendidos no chão na entrada da casa, um pouco úmidos e

sem roupa de cama. Nas primeiras semanas, os quatro integrantes da família tiveram de

dormir todos juntos em um colchão só, cobertos com as poucas roupas que trouxeram do

Equador para combater o frio. A lembrança desses primeiros tempos, segundo me disseram,

ainda os afeta ao evocá-la mesmo que já passaram mais de sete anos desde esse momento.

Como eles, outras pessoas que chegaram reassentadas, expressaram essa relação difícil no

tempo de chegada. Além de ser um tempo encolhido pela invasão dos trâmites inúteis, é

também um tempo da humilhação por meio do descuido.

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Os solicitantes e refugiados espontâneos, por sua vez, se refeririam à primeira etapa de vida

no Brasil como um tempo marcado pelo poder dos agentes de refúgio para anular sua

capacidade de decisão autônoma sobre suas próprias ações cotidianas por meio da

eternização da espera, inclusive para os pequenos detalhes cotidianos como a entrega de

medicamentos, roupa, comida, a resposta a uma pergunta simples, a emissão de um

encaminhamento131, etc. A proposta de Vianna (2011) sobre as gestões do tempo é pertinente

para tentar dar conta das diferentes dimensões em que os tempos de espera foram referidos

pelas pessoas. Mesmo que poucas pessoas significaram moralmente a espera em termos de

construir uma luta público/política utilizando o tempo como sua matéria-prima, tal como o

descreve a autora em seu trabalho (VIANNA, 2011, p. 11), foi comum a referência àcorreção e à exemplaridade moral que faziam com que eles se submetessem a esses tempos

administrativos.

Submeter-se a essa gestão, vivida como um sofrimento, era para eles uma amostra de sua

condição de “bons cidadãos” e de “boas pessoas”. Pois, caso contrário, pouco lhes importaria

 permanecer “ilegalmente” no Brasil132. Além disso, o tempo transcorrido em espera de um

reconhecimento confere ao refúgio um maior valor simbólico quando esse é enfimreconhecido.

[…] entonces yo de Brasil me voy, yo aquí no voy a esperar más, yo de aquí adiciembre, a Navidad, si no me dan a mí una respuesta positiva, si yo aquí mesiento castrado hasta diciembre, yo me voy de aquí a otro lugar donde pueda vivir,donde pueda trabajar y donde pueda desempeñarme útil a la sociedad. Porque yono soy un ladrón, yo no soy un delincuente. Si yo estuviera al margen de la ley nome importaría vivir en Ecuador, en Argentina, en Venezuela, no me importaríavivir en Paraguay, en Uruguay, sino que haría lo que normalmente hace la gente;que es: hacerle mal a la humanidad. Entonces como yo no soy de esas personas¿tengo derecho a qué? A esperar, a esperar, esperar, esperar y esperar. (JoséAlberto, solicitante de refúgio)

131 Na segunda parte da tese, foi analisado esse aspecto da administração de refugiados, apontando, conformeLugones (2012), que a espera nos corredores ou nas salas exteriores da Cáritas, constitui um modo efetivo degestão e um mecanismo de controle temporal que, recorrentemente, marca o tempo por meio das dinâmicasdesses agentes de Estado.132 Essa forma de significar o tempo dentro do contexto de trâmites administrativos que buscam umreconhecimento final também foi descrita por Sarah Mazouz na sua tese doutoral sobre as políticas dediscriminação e as práticas de naturalização na Francia durante os anos 2000 (MAZOUZ, 2010). Em palavrasda autora: «En d’autres termes, le mérite du postulant s’éprouve par le temps de la procédure qui permet ainsi

d’estimer sa motivation. La procédure devient, donc, une mise à l’épreuve où chaque étape peut jouer un rôledans la sélection ou l’élimination des candidats et dans l’appréciation qu’aura l’administration de leur volontéde devenir français et du mérite dont ils ont fait preuve pour pouvoir le devenir» (MAZOUZ, 2010, p. 256).

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Seguindo a proposta de Vianna (2011, p. 12), considero que algo dessa “gestão adversa do

tempo” afetou as pessoas de um modo difícil de significar e de reivindicar publicamente.

Essa espera minúscula do dia a dia, muitas vezes sem resposta, foi expressa mais como a

sensação de ser humilhados e constantemente localizados em um lugar social

subordinado133, ou como disse José Alberto, a sensação de se sentir “castrado”. Em outras

palavras, as pessoas expressaram, de uma parte, uma angústia existencial por não saberem o

que passaria com seu pedido, que, em palavras de Vianna, podemos pensar como “o que

acontece na vida quando (e enquanto) algo que é objeto de tanto esforço, dedicação e dor

 pessoal é posto em suspenso” (VIANNA, 2011, p. 7-8). De outra parte, as pessoas

expressaram raiva e frustração engendradas nos conteúdos diários com os que foi preenchida

essa grande espera; engendrados nos momentos cotidianos de gritos, negativas, trâmitesinúteis, vazios de informação, de orientação e de assistência ou vividos em ausência total de

conhecimento sobre o estado de sua solicitação e de seu próprio “processo”.

A espera, nesse sentido, parece se advertir quando se manifesta em forma de ausência, seja

de informação, de atendimento, de documentos ou de modos de subsistência. Quando as

pessoas sabem como avança seu processo e o ritmo em que acontecem as etapas da

solicitação se adapta a suas necessidades de alimentação, de emprego, de renovação deprotocolos, de vagas escolares, etc., o tempo não se sente como um adversário, nem seu

transcurso como uma espera. Porém, se, em cada etapa de instalação, não tem o que lhes é

necessário para concluí-la exitosamente, a espera se manifesta como essa defasagem entre o

quando necessitam as coisas e quanto delas chegou ao momento adequado. Dessa forma, a

espera se faz insuportável e, como dizia Santiago: “ellos buscan desesperarlo a uno con

tanta esperadera, para que uno termine yéndose o renunciando al refugio”.

Se no reassentamento as esperas e a quantidade de trâmites do primeiro ano fazem que esse

ano se encolha e se faça mais curto do que o desejado, no caso dos solicitantes espontâneos,

passa o contrário. As esperas e a quantidade de trâmites dilatam os meses e os fazem quase

133 A esse respeito, é esclarecedor o argumento de Adriana Vianna quem apontou que: “O trabalho simbólicocrucial a ser feito a partir da espera implica, assim, em conseguir inseri-la em uma ordem significativamenteativa de tempo, ao localizá-la como parte da própria “luta”. Há, porém, algo da espera que parece nunca caber plenamente nessa ordenação, que lhe escapa por falar do rotineiro, do intangível e do não narrável nos termos

da “luta”. Seria aquilo que não é convertido em agência ativa, ficando marcado pela frustração e pela percepçãode estar sem forças e sem poder de reação, submerso por algo maior e, ao mesmo tempo, mais invisível”(VIANNA, 2011, p. 12).

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eternos. Essa situação dos solicitantes, segundo alguns funcionários do Conare, não afeta as

pessoas. A apresentação das leis brasileiras de refúgio e de sua exemplaridade servem, mais

uma vez, como explicação de por que a espera não seria um fator de prejuízo:

[...] Mas assim, as pessoas teoricamente não têm prejuízo de esperar até porquerenova o protocolo134 [...] Com o protocolo, pode tirar carteira de trabalho, tambémpode tirar o CPF, pode... Então é assim, ela não tem prejuízo, nada que ela nãoteria sendo refugiada. (Agente entrevistadora do Conare)

Apesar da afirmação das autoridades de refúgio e apesar do registrado na lei, os solicitantes

costumam ter muitos problemas para renovar seus protocolos, para conseguir e manter

empregos legalizados utilizando seus documentos provisórios, para obter carteiras de

motorista, revalidação de diplomas, entre outra série de documentos e trâmites que são

necessários quando se deseja permanecer em um novo país. A incerteza sobre a resposta

positiva ou negativa de sua solicitação faz que muitas pessoas não comecem o difícil

processo de alguns desses trâmites. Isso, no caso dos diplomas escolares, por exemplo,

significa o retraso ou abandono na culminação da formação e suas consequentes

desvantagens na vida social e profissional.

A incerteza sobre a possibilidade e as condições futuras da permanência manifesta-se

também, segundo o narrado pelas pessoas, em angústia, depressão e falta de entusiasmo para

empreender projetos que impliquem em esforços que poderiam perder-se em caso de uma

resposta negativa. O fato de não saber se é possível permanecer torna-se uma fonte de

incerteza tão difícil de sobrelevar como aquela que experimentaram em seus locais de origem

quando não sabiam se teriam que partir. Ou seja, quando também não sabiam se poderiam

ficar. A esse respeito, considero fundamental observar que usualmente a atenção sobre as

diversas formas de opressão que sofrem mundialmente os chamados “fluxos migratórios”,

sobretudo os mais precarizados, é colocada na impossibilidade de movimentação imposta àspessoas por meio dos campos de refugiados, os muros fronteiriços, os centros de detenção

para migrantes, as polícias de fronteira, etc. Porém, pouco se fala em seu oposto constitutivo

que é a impossibilidade de ficar. Ou seja, a obrigatoriedade imposta  –  muitas vezes, de

maneira violenta – de se movimentar, de ir e de abandonar o lugar habitual onde se mora,

134 Em 2013, o tempo de validade do protocolo foi estendido, passando de três para seis meses. Essa mudançafoi muito bem recebida tanto pelos refugiados e solicitantes quanto pelos agentes de refúgio. A mudança nãofoi exclusiva para os refugiados, mas beneficiou os estrangeiros de modo geral.

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inclusive quando esse tem se convertido em um país estrangeiro, em um campo de refugiados

ou numa zona de indeterminação.

Algumas pessoas se referiram à sua necessidade de vir ao Brasil, ou a seus obrigados

trânsitos internos na Colômbia, aludindo a esse processo como uma perda de liberdade. Por

exemplo, quando perguntei ao Miguel por que havia elegido o Brasil se também lhe haviam

oferecido reassentamento no Chile e na Argentina, ele respondeu que teve de sair da

Colômbia por causa do que ele pensava e de sua militância política, que eram como uma

condenação à prisão. “Si voy a ir preso por lo que pienso y por lo que hago, por lo menos

que la cárcel sea grande”, me disse. Também José Alberto, contando da perseguição que

sofreu na Colômbia, dizia:

Yo tenía que andar escondiéndome, yo no podía estar fijo en algún lugar, entoncesahí yo pierdo mi libertad. Ahí yo pierdo mi carácter y mi idoneidad profesional¿Para qué estudié 5 o 7 años, si eso a donde voy no vale de nada?

Por sua vez, Rocío, quando lhe perguntei onde moravam antes de ter que vir para o Brasil,

me disse: “la verdad en ningún lugar […] vivíamos cambiando todo el tiempo”. Viver sob a

ameaça de não ter um lugar para morar também contribui para que os anos que,

posteriormente se passam em um mesmo lugar, sejam significados como uma conquista,

inclusive quando eles são o resultado de processos de fixação provisórios, gestados em

práticas de governança de populações.

Quando essas primeiras etapas da vida no refúgio no Brasil foram superadas, notadamente

quando tem se conseguido um nível de estabilização socioeconômica e emocional, a

narração que as pessoas fizeram é a de uma travessia épica, com o consequente

engrandecimento dos esforços próprios, que fortalece a ideia do mérito e a recompensa.

Seguindo a proposta de Vianna (2011, p. 16), considero que é fundamental o tempo

transcorrido na construção mesma das verdades, nesse caso, no seu reconhecimento como

“verdadeiros refugiados”. Essa construção moral pode ser entendida, conforme a autora,

como “tecida no tempo, por meio da tenacidade demonstrada ao atravessar os longos anos”

(op. cit., p. 16).

Os agentes do refúgio, por sua vez, falam desses sujeitos “integrados”, estáveis, empregados,

bilíngues, etc., como uma amostra tanto do bom funcionamento dos programas, quanto do

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mérito daqueles que lutam pelo que querem (ver anexos 4 e 5). Muito amiúde também

exibem narrativamente  –  e às vezes com imagens  –  esses casos como amostra da

generosidade da sociedade brasileira e seu caráter acolhedor e respeitoso da diferença.

[...] eles [os colombianos] são muito empreendedores [...] é uma coisa que oschefes reconhecem muito, que eles são os mais esforçados, que uma coisadiferente no jeito de trabalhar. Como uma característica de muitos [...] Lembro dexxxxx, ele na Colômbia era um assessor de um deputado e ao começo ele nãoqueria aceitar de jeito nenhum trabalhar numa cooperativa catando lixo. Mas nãoé que agora ele é o chefe da cooperativa de catadores de lixo? E ele implementouuma política de salário. Mas foi que a comunidade recebeu ele muito bem, e aí eleficou sem jeito de falar não para esse trabalho. (Ex-agente de integração)

Os que persistem, os que se submetem, os que com tão pouco conseguem sobreviver e os

que sabem agradecer a generosidade da sociedade que os recebe vão integrando a categoriado refúgio e particularmente a do refúgio exitoso, que parece consistir tanto no esforço, no

sacrifício, na tenacidade e na gratidão dos refugiados quanto na solidariedade e na

generosidade das comunidades de acolhida, atuando como representantes de uma “sociedade

nacional brasileira”. Não entregar as coisas com facilidade, inclusive aquelas que, nas leis

do refúgio, aparecem como um direito, tem o efeito de fortalecer o sacrifício – com todas as

suas conotações cristãs – como a forma moralmente adequada de “refazer a vida”. Vida que

os agentes do refúgio presumem desfeita pela violência e estando na margem da ordem donacional.

Para esse efeito, também é muito efetiva a construção da precariedade e carência absoluta

com as quais se constrói a figura inicial dos solicitantes. A ideia inicial de seres

despossuídos, tanto quanto as dificuldades do processo aumentam o mérito desse grupo

exitoso, pois eles teriam “ feito uma vida a partir do nada”, segundo a fórmula usualmente

empregada pelos agentes. Nesse processo, o tempo atua tanto como uma prova que deve sersuperada para demonstrar que se é merecedor do refúgio quanto um elemento transformador

que paulatinamente vai tornando as pessoas em refugiados integrados, muitas vezes por meio

do esforço e da dificuldade.

8.2. As rupturas: um presente contingente

Como visto, a leitura da “integração” que realizam os agentes do refúgio e alguns refugiados,

como um processo linear que culmina em um estado final e irreversível, não é a mesma para

todas as pessoas com quem falei. Inclusive, para muitas delas que levam longo tempo

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morando no Brasil, e que durante anos têm conseguido manter a vida econômica, social e

emocional mais ou menos estável, a situação atual não é totalmente percebida como

definitiva. Os eventos violentos que os obrigaram a sair do país, tanto quanto o processo de

refúgio no Brasil e em outros países são uma potencialidade ameaçadora dessa suposta

estabilidade final de um transcurso que parece concluído aos olhos dos agentes brasileiros

do refúgio.

Segundo a análise feita por Grace Cho (2008, p. 14) da diáspora coreana para os Estados

Unidos  – notadamente das “noivas de guerra” que foram as pioneiras dessa migração – ,

existe a possibilidade de que, em qualquer momento da vida, o passado surja e, de diversas

formas, interrogue sobre o que foi ou que se perdeu em um momento potencialmentetraumático, tanto na guerra quanto nos acontecimentos posteriores que levaram as pessoas a

se instalarem em outro país. Sobretudo, há algo do que se perdeu que somente se soube no

futuro, ou que se saberá no futuro caso acontecer algo que permita identificá-lo.

Nesse sentido, o refúgio é potencialmente um exílio, mas a ruptura que esse último implica

nunca se poderá terminar de conhecer. A perda se inscreve no futuro, de modo que aquilo

que se perdeu se decanta como uma perda específica no (ou do) futuro que não existiu. Essesdramas humanos vão se encontrar com marcos específicos de produção de precariedade no

exílio. Daí que seja tão difícil falar de um momento final quando se trata de vidas marcadas

pelo êxodo. Vidas inclusive marcadas com etiquetas de provisoriedade nos documentos que

idealmente selariam seu pacto de uma “nova cidadania”. Alguns dos laços quebrados

somente poderão ser identificados quando, com o que sobrou da vida como ela era no

passado e junto aos novos elementos, seja tentado tecer outros mundos possíveis. Ainda

seguindo a proposta de Cho (2008, p. 53), podemos observar o exílio como um encontro dostraumas do passado com os traumas do futuro, em que a dinâmica administrativa do refúgio

pode somar sofrimentos tanto a uns quanto a outros.

Depois de uma década de viver no Brasil e de ter chegado com redes pessoais que fizeram

relativamente mais fácil sua instalação, Victoria, por exemplo, ainda se pergunta qual será

seu lugar nesse mundo. Apesar do tempo que leva no Brasil, ela ainda não começou o

processo de naturalização ao qual tem direito segundo a lei. Essa situação obedece, em parte,

ao que ela considera que essa decisão seria uma ruptura emocional definitiva com a

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Colômbia. Porém, em grande medida, obedeceu também a que durante muitos anos foi mal

informada pelas agentes de Cáritas. Segundo ela me contou, na instituição, lhe disseram que,

caso ela pedisse a permanência  – que é um passo prévio requerido para a naturalização  – ,

perderia todos os benefícios como refugiada. Como, na época, seu esposo e três de suas

filhas estavam tomando cursos no Sesc e no Senac, ela não quis arriscar a gratuidade

oferecida por esses serviços para pessoas refugiadas e depois foi deixando o assunto meio

esquecido. Essa condição temporária de seus documentos tem colaborado com a sensação

de não ter conseguido construir um lugar definitivo para si no mundo.

Todos esses anos, trabalhando para manter economicamente a família, têm lhe deixado um

vazio pessoal que ela associa principalmente às tentativas frustradas de terminar sua carreiraprofissional ou fazer outra ainda com mais afinidade com seus gostos e interesses. Agora

que passou dos cinquenta anos, sem possibilidade de se aposentar  – nem no Brasil, nem na

Colômbia – e ainda trabalhando para a subsistência, ela se pergunta por que não recebeu

apoio desde o começo do refúgio para culminar sua carreira. De fato, se pergunta por que

lhe colocaram tantos empecilhos para concluir sua formação e por que ainda hoje continua

sendo tão difícil fazê-lo. No balanço que Victoria realiza, seu ex-marido e três das suas

quatro filhas parecem estar cada vez menos refugiadas, cada vez com mais laços e lugarespara si no Brasil, enquanto seu próprio exílio não tem deixado de crescer e se faz mais

evidente quando os outros membros constroem projetos fora do espaço familiar.

Beatriz, outra mulher refugiada que, como o fez Victoria, manteve economicamente a

família durante quase uma década dando aulas de espanhol, também se queixa da falta de

apoio das ONGs encarregadas de administrar o refúgio. Segundo ela, quando os agentes se

referem à “educação”, na verdade, estão oferecendo “cursos” que, muitas vezes, nem sequer são profissionalizantes135. Agora, preocupada com a forma em que ela e seu marido passarão

a velhice, tem cogitado a possibilidade de voltar para Colômbia, mas seu marido não quer

regressar. Os filhos de Beatriz e Rafael casaram com parceiros brasileiros, tiveram filhos e,

135 Essas duas mulheres enfrentaram uma mudança na legislação dobre o ensino de idiomas nas escolas,colégios e institutos, segundo a qual devia se contratar somente professores com, no mínimo, nível degraduação. Elas ou não tinham se formado ou não conseguiram validar os diplomas de modo que os benefíciostrabalhistas que tinham em seus empregos formais não estavam mais garantidos. Victoria teve de redobrar a

quantidade de aulas privadas com a consequente instabilidade e deslocamento pela cidade e Beatriz teve deabrir mão de alguns de seus benefícios trabalhistas para conservar o emprego no instituto de idiomas ondetrabalha devendo se acolher a uma modalidade contratual diferente.

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segundo o relato dos pais, “ ya son más brasileros que colombianos”. Beatriz sabe que a

opção do regresso engendraria uma nova separação, dessa vez com os filhos e os netos que,

seguramente, permaneceriam no Brasil. Além disso, não tem certeza de que Rafael possa se

adaptar novamente à vida na Colômbia. Então, tem decidido, por enquanto, não insistir nesse

assunto.

Também Aurora, uma mulher refugiada muitos anos mais nova do que Victoria e Beatriz,

manifestou, nas nossas conversas, se sentir exausta pelo fato de ter de manter a família com

 jornadas exaustivas de trabalho e sem a possibilidade de exercer sua profissão. Mesmo que

suas redes pessoais lhe tivessem ajudado a se empregar numa área afim a sua carreira, o

processo de provas para a revalidação de diplomas foi árduo e infrutífero. Para aurora, adificuldade de passar as provas deve-se ao fato de não ter tempo para estudar, já que da sua

renda depende a estabilidade econômica dela, de sua filha e de seu marido. Além de ter sido

o suporte econômico da vida no exílio, essas três mulheres assumiram também o suporte

doméstico, ampliando as jornadas de trabalho e os esforços cotidianos. Nos relatos de

Victoria, está muito presente a ideia de que “sim aproveitou” os benefícios de formação

oferecidos aos refugiados enquanto ela trabalhava sem descanso e “sin pensar en ella

misma”. Também me contou que Andrés, seu ex-marido, considerava que dar aulas deespanhol era um ofício menor e teria sido explícito que não iria “rebajarse a eso”. Contudo,

era ele que ficava a cargo da administração do salário que ela lhe entregava inteiro, tendo

que posteriormente lhe pedir para e consultá-lo sobre seus próprios gastos pessoais.

Anos mais tarde, quando ocorreu a separação conjugal, Andrés teve de começar a dar aulas

de espanhol em vista da frágil situação econômica na qual se encontrou naquele momento,

mas, quando eu falei com ele a esse respeito, ele manifestou que as aulas que ele dava eram“en realidad clases de filosofía, de religión, de política, de todo con la excusa del español ”.

Parece-me que essa recusa discursiva ao “descenso” e a obrigação de vivê-la na prática são

também formas de atualizar a ruptura com o espaço social que ele ocupava antes (ou que

imaginou que ocuparia agora) e que, em um contexto de êxodo, o fazem lembrar

constantemente que a origem dessa fratura tem as marcas da condição de ser estrangeiro e

da impossibilidade do regresso.

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Essa forma de controle e qualificação das atividades assumidas por alguns sujeitos, nesse

caso pelas mulheres, não é exclusiva do refúgio. Porém, uma parte da sensação de

indignidade  – manifesta por Andrés e outras pessoas entrevistadas sobre alguns ofícios  – 

poder ser experimentada de uma maneira particular no contexto de êxodo136. Especialmente

quando se trata de movimentos que se dão contra a vontade e quando esses significam uma

perda de status pessoal e profissional, sendo simultaneamente movimentos para lugares com

melhor status que os lugares de origem.

Nesse caso, supõe-se que o Brasil ocuparia um lugar mais destacado na organização

hierarquizada das nações com relação à Colômbia, mas as pessoas estariam pior, embora

estando num “lugar melhor”. Alguns relatos de pessoas refugiadas falaram da dinâmicaexplícita de ocultação de sua “verdadeira situação” diante de parentes e amigos na Colômbia.

Foram comuns as frases como “ellos creen que esto es un paraíso, ella no sabe las

necesidades que estamos pasando ou no quiero que ellos vayan a saber y se preocupen”. A

ideia de viver em um lugar com prestígio relativo (sexta economia mundial, o gigante latino-

americano, etc.) e ajudar com o próprio silêncio a que essa imagem se propague, inclusive

entre parentes e amigos, remete a análise de Sayad (1991, p. 38) sobre a ocultação da

“verdadeira França”, a “França do exílio”, que o silêncio dos imigrantes argelinos ajudou aconstruir. Porém, também a análise de Fabiam (1983, p. 23) quando propôs que a

antropologia contribuiu na construção da diferença como distância, engendrando a negação

da simultaneidade para o “outro”, ou melhor, construindo o “outro” a partir da negação de

sua simultaneidade. Os “outros”, os imigrantes, os refugiados, os ilegais estão corpor almente

e como mão de obra presentes no território nacional, mas ocupam um espaço temporal, “um

tempo tipológico” (op. cit., p. 22) distante daquele Brasil “do progresso e da civilização”.

136 Dony Meertens que tem abordado o assunto laboral em contextos de desarraigo (MEERTENS, 2000; 2003),tem positivado essa característica de “adaptação feminina” no caso das famílias deslocadas internamente peloconflito na Colômbia. Segundo a autora, os homens, ao perder seu status de provedores, sentiriam maisintensamente a perda de dignidade das condições do emprego informal e argumenta então que as mulheresdeslocadas mostram mais flexibilidade e recursividade. Meertens (2003, p. 4) defende que “pese a la doble

 jornada, la nostalgia y ese sentirse desplazada”. Essas mudanças podem significar a construção de maiorautonomia que lhes permitiria “hacer sostenible el cambio de roles entre hombres y mujeres como consecuenciadel desplazamiento”. Embora discrepe do otimismo de Meertens a respeito da mudança sustentável que, nas

relações de gênero, possam engendrar as mudanças nos roles entre homens e mulheres em contextos dedeslocamento, parece-me muito produtiva sua ideia de um sentimento maior de indignidade da parte doshomens, diante de alguns trabalhos.

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Nessas circunstâncias, há uma grande dificuldade para se pensar em si mesmos “saliendo

adelante” quando a sensação é de estarem atrasados no tempo em relação ao que tivessem

conseguido nos mesmos anos se não tivessem tido de abandonar seu lugar. Nesses casos,

parece que se impõe uma dificuldade maior para significar o êxodo. Este não logra ser

completamente representado como um romantizado exílio político, nem significado

plenamente com a ideia de um progresso econômico e social derivado da vida em um país

“mais desenvolvido”. Trânsito que, em outras circunstâncias, poder ia beneficiar com o

prestígio de uma mobilidade ascendente.

Há ordens diferentes de dominação envolvidas nessa encruzilhada. De uma parte, as

referidas desigualdades marcadas pelas relações de gênero e, de outra parte, a “condiçãomigrante” (SAYAD, 1991:61) que oferece aos “não nacionais” oriundos do “mundo

dominado” (SAYAD, op. cit., p. 270) os trabalhos menos qualificados ou aqueles que “os

nacionais” (ou alguns deles) não desejam realizar. Porpem, o que me interessa enfatizar aqui

é que, como detalharei mais adiante, supõe-se que o trabalho é uma das bases da integração,

como manifestado repetidamente pelos agentes:

[...] A gente acredita que a integração parte do trabalho. A pessoa trabalhando tem

menos tempo para pensar bobagem, menos tempo para ficar cultivando seustemores. Então, não é que a gente quer que as pessoas esqueçam sua vida, mas queaproveitem a chance de sair adiante, para não ficar mastigando aquela coisa. Então,nós trabalhamos sempre com o foco no trabalho. (Agente de integração)

Isso significaria então que Victoria, tanto como Aurora ou Beatriz, que não têm deixado de

trabalhar, deveriam se sentir mais “integradas” do que os seus maridos ou teriam tido mais

“chances de salir adelante”; mas isso não acontece exatamente desse jeito. Embora essas

tenham feito um aprendizado mais refinado do português e construído redes a partir de suas

atividades laborais, não parece que o fato de ter trabalhado intensamente desde o começo do

refúgio lhes permitiu construir mais facilmente uma sensação de estabilidade, de

permanência e de pertencimento maior. Pelo contrário, a intensidade e a desqualificação dos

trabalhos realizados são, para elas, a razão principal pela qual não tem tido tempo de

trabalhar o mundo para se construir um lugar próprio. Conf orme Said, “grande parte da vida

de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo

 para governar” (SAID, 2001, p. 55), justamente o que essas mulheres não têm tido tempo de

fazer.

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Interessa-me apontar que as pretendidas receitas da integração exitosa dos refugiados estão

baseadas em indivíduos genéricos com os que dificilmente podem se compreender a

multiplicidade de experiências que engendram os exílios na vida dos sujeitos que eles

administram. Aliás, o tempo da integração, segundo os agentes, corresponderia a uma

fórmula linear e progressiva segundo a qual a suma dos anos avançaria, junto com os

sujeitos, para um estado irreversível de adianto e integração. Isso além da ideia de que as

famílias no refúgio são “famílias de refugiados”, entendidas como núcleos coesos e

indissolúveis cujos membros viveriam todos em um mesmo ritmo ou em um mesmo tempo.

As experiências narradas pelas pessoas são difíceis de unificar e têm tons e reflexões

diferentes, dependendo não só de fatores como a idade, o gênero, a geração, o pertencimentoétnico-racial, etc., mas também do momento de vida em que essas experiências são contadas

e de para quem e para que sejam narradas137. Esses relatos mostram formas muito diferentes

de entender as relações familiares, os arranjos com si mesmos na sua condição de

estrangeiros e parecem marcadas pelos tempos cujos movimentos descrevem muitas figuras

diferentes à linha reta. Muitas vezes, assemelhando-se mais com a desintegração do tempo

progressivo da que nos alertou Cho (2008, p. 50-51) ou a um momento que faz parte de “algo

muito maior” e cheio de meandros, como descrito por Vianna (2002, p. 116) para alguns dos“casos” de “menores” analisados na sua tese doutoral. Parece-me que um dos esforços para

tentar compreender esses exílios deveria se basear na proposta de Said (2001, p. 48-51) de

“mapear esses territórios de experiência” entendendo que o exílio é em si mesmo “um estado

de ser descontínuo”.

Considero que o exílio está sim, feito de perdas, de lugares sociais que não podem se

recuperar, de nostalgias e abandonos, do fato de sair sem querer fazê-lo, de deixar para trás

137 Para Pollak (1990), existe uma relação importante entre o tempo e a narração pela significância do momentoparticular em que uma pessoa decide contar suas vivências e articular narrativamente suas lembranças e o quelhe é possível dizer sem se destruir a si mesmo no processo. Nessa ralação, não apenas os esquecimentos e acapacidade de reconstruir uma experiência estão em jogo. O autor propõe levar em conta o porquê de as pessoasdecidirem contar e para quem se faz essa narração. Os casos descritos pelo autor, nos quais a percepção do fimiminente da existência ativa a necessidade de impedir a extinção da memória, são muito interessantes a esserespeito; particularmente levando em conta que os processos coletivos de memórias nacionais ou comunitáriastêm privilegiado determinados relatos e obliterado ou impedido outros, capturando essas experiências filtradaspara a fabricação de uma memória oficial. Processo que, no seu curso, impede que alguns indivíduos e algumas

experiências se articulem com um relato público, de onde se deriva a potencialidade desafiadora dos relatos eeclodem como necessidade íntima de comunicação com sua própria descendência, por exemplo, e não com ossistemas de “justiça” dos Estados.

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pessoas, projetos, objetos e formas de vida e de não poder voltar, ou não vislumbrar

claramente o momento do regresso. Porém, o espaço onde são inscritas essas rupturas marca

uma diferença importante na forma em que essas são significadas e tornam-se passíveis de

serem transformadas na figura administrativa, jurídica e populacional do refúgio.

Pérdidas sí. Perdimos mucho, perdimos familia y perdimos las referencias, losbarrios, los amigos, los lugares donde nos criamos, hasta las referencias bancarias,inmersos en una ciudad altamente hipócrita. Pérdida incluso de la trasmisión dealgunos valores que fueron muy importantes para nosotros como familia, comouna nación, como un pueblo. (Andrés, refugiado)

Andrés aponta, em um primeiro momento, a perda no plano íntimo e familiar, mas

rapidamente a leva até o lugar da “nação” e se coloca discursivamente como o “caso” que

ilustra a história de um povo. A história individual que se transforma na história de uma

nação se parece muito mais aos modelos de seleção de refugiados do que aquelas histórias

que são domesticidade só e que desconhecem, além desse espaço, os significados nacionais

da guerra. Nos processos de seleção de refugiados, são exigidos todos os detalhes subjetivos

e cotidianos da dor, mas são organizados e traduzidos utilizando os moldes de uma

racionalidade jurídico-administrativa que presume tempos lineais, causas e efeitos

claramente relacionados e um nexo que vincula o presente do sujeito com eventos  – 

assumidos como inscritos no passado – da história de guerra e conflito da nação.

Todavia, o que eu escutei das três mulheres anteriormente citadas, assim como de outras

pessoas com as quais conversei, foram relatos que significaram o exílio a partir de

experiências que não existem mais do que no seu mundo doméstico ou nas relações marcadas

pela cotidianidade. As referências da ruptura não estavam nos grandes acontecimentos

 políticos do conflito, nem em exércitos genéricos nomeados como “forças da guerra”. As

causas da perseguição, às vezes, foram descritas como ciúmes de um “narco porque mi mujer 

era bonita y él la queria”. A situação de uma região foi condensada no relato como a

necessidade de “meterse debajo de la cama, cantar canciones para distraer a las niñas y no

dejarlas ir al baño”, enquanto passava o bombardeio do avião fantasma138; outras vezes, foi

138 O avião fantasma faz referência às naves de guerra Douglas AC-47 Spooky (de uma série de aviõesdesenvolvidos pelo exército dos Estados Unidos durante a guerra de Vietnã) que o governo colombiano

adquiriu nos anos 1990 e que mudaram a dinâmica da guerra “contrainsurgente” e “antiterrorista” por suapossibilidade de ataque aéreo e de reforço às tropas terrestres, introduzindo a potencialidade do bombardeioinesperado dentro das comunidades que vivem nas regiões onde o avião atua.

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descrita como a impossibilidade de fazer uma festa na casa com a porta aberta e a música

em alto volume.

Tal como descrito por Cho (2008), há fantasmas de guerra que se instalam, não na praça

pública, mas na cozinha e no quintal traseiro da casa. Os sofrimentos das pessoas em êxodo

que elas não conseguem, não buscam ou não querem significar além do plano doméstico, e

que os agentes do refúgio também não traduzem para a linguagem jurídica do refúgio,

parecem condenados à inexistência pública e a serem tratados como insignificantes mesmo

dentro das relações com os próximos; assim como a integrar outras classificações que

obliteram as violências políticas e passam a ser vistas como estando nas margens do conflito

ou sendo seus efeitos colaterais. Novamente, conforme Cho, parece que algumas figuras  – como a da noiva de guerra  – “operates as a figure for the disappearance of geopolitical

violence into the realm of domestic” (2008, p. 14).

Esse jogo complexo entre o que aparece como pertencente ao universo público ou às relações

domésticas e íntimas talvez esteja na base da dificuldade que tive, e ainda tenho, para lhes

dar um lugar, na relação que estabeleci com as pessoas, a esses relatos que eu provoquei.

Tanto quanto a isso que se descolava das pessoas nos momentos das conversas ou que, aocontrário, ia se aferrando a suas existências a força de lhe dar corpo por meio da palavra e

um lugar nas suas lembranças coletivas. Esses momentos têm uma densidade muito especial,

não apenas por aquilo que possam revelar sobre a complexidade de um assunto que é objeto

de reflexão, mas também pela responsabilidade que envolve o exercício mesmo de provocar

lembranças e narrações. Minha responsabilidade sobre esse silêncio roto, sobre esse episódio

revelado e sobre o que isso possa acionar na vida das pessoas, ainda não encontrou um lugar,

em parte porque muitos desses diálogos continuam ativos. Na sua dissertação de mestradosobre a forma em que as pessoas vivem e narram o conflito armado no Medio Rio Caquetá,

Marco Tobón (2008, p. 134) propõe uma linda reflexão sobre a relação que as pessoas fazem

entre nomear e atrair, como uma forma em que a palavra seria capaz de reviver ou fazer

reaparecer aquilo que é nomeado. Por isso, as pessoas alertam sobre o cuidado que deve ser

tomado ao compartilhar a memória. O autor também inclui aos possíveis leitores nessa

relação que é estabelecida ao compartilhar as lembranças e as histórias. Ponto fundamental

de reflexão quando a minha intenção, ao recriar os diálogos compartilhados, é também a de

não somar sofrimentos nem ao passado, nem ao futuro das pessoas, ao aumentar o número

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de sujeitos que sabem dessas experiências, e nem quando eu mesma tentar lhes dar uma

coerência textual longe de seus locais de produção. Esse assunto de quando, onde e por que

é falada alguma coisa e o que acontece com essa reflexão na qual o sujeito se produz a si

mesmo – necessariamente com uma determinada distância – foram indagados por Poe Pollak

(1990, p. 203-204). O autor convida a entender os próprios limites do que o sujeito se

“confessa a si mesmo” e aquilo que pode transmitir ao exterior sem se destruir a ele próprio

nesse exercício.

Nas histórias de Victoria, Beatriz e Aurora, como nas de outras mulheres que entrevistei, há

outro elemento crucial para entender algumas das dinâmicas de seu próprio exílio. Nos três

casos, a perseguição que originou a fuga e o refúgio foram perseguições contra seus esposos,e elas não souberam na época, ou ainda desconhecem, todos os detalhes desses episódios.

Com alguns dos membros desses casais, conversei individualmente, mas com duas delas,

houve pelo menos um encontro conjunto. Nessas conversas coletivas, houve sempre um

momento em que os homens contaram detalhes dos fatos pelos quais fugiram, assim como

explicações sobre o porquê tinham sido ameaçados ou perseguidos, enquanto elas

ofereceram mais detalhes sobre os itinerários físicos e burocráticos e das tarefas que tiveram

de ser feitas para possibilitar a fuga ou a instalação em outro local. Em uma ocasião, comoutro casal – Rodolfo e Hilda – nossa conversa conjunta foi inclusive o momento em que,

depois de muitos anos, ela soube de alguns dos pormenores das ameaças que seu esposo

sofreu e de algumas experiências que ele tinha vivido no Equador, antes que ela e seus filhos

pudessem se reunir com ele novamente.

Assim como Hilda, muitas das mulheres entrevistadas começaram a viver um exílio de cuja

origem não tinham toda a informação, nem a certeza de todos os elementos que estavam em jogo. O refúgio como figura administrativa contempla essa situação e amplia a proteção aos

membros da família em primeiro grau de parentesco ou aliança com a pessoa perseguida.

Contudo, é assumido que toda a família sabe as causas do “fundado temor de perseguição”

e se realizam entrevistas individuais que servem para contrastar as versões oferecidas pelos

outros membros da família. A respeito, considero que a história de Victoria é a que melhor

ajuda a explicitar os limites desses exercícios narrativos exigidos no campo de governança

do refúgio, assim como a potencialidade de ruptura que pode engendrar essa relação

diferencial com a perseguição e com a informação que se tem sobre ela.

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Victoria veio ao Brasil de férias aceitando um presente de sua família materna. A viagem,

me contou, lhe foi oferecida para ela se distrair do difícil trânsito desses meses em que ela,

seu esposo e as filhas deles haviam tido que sair de casa e se hospedar em casa de parentes

em outra região do país. Até esse momento, ela considerava que essa situação era temporária,

que obedecia ao recrudescimento dos confrontos armados na região onde eles viviam e que,

uma vez que as circunstâncias melhorassem, ela e sua família poderiam regressar. Porém,

estando de férias no Brasil, faltando poucos dias para voltar para a Colômbia, o esposo dela

a chamou para lhe dizer que a situação não melhoraria e que, dificilmente, poderiam voltar

devido ao fato de que ele tinha recebido ameaças de morte, e essa tinha sido a razão para sair

da casa e da região. Na chamada, ele também lhe contou que havia recebido assessoria dealguns conhecidos que trabalhavam com o Acnur quem lhe sugeriram aproveitar a presença

de Victoria no Brasil para pedir refúgio.

A notícia foi devastadora e angustiante, não apenas por ter se inteirado das “verdadeiras

razões” que lhes levaram a sair de casa, mas porque, na Cáritas, lhe informaram que, se ela

começasse o processo de refúgio, já não poderia mais retornar à Colômbia. Apesar do

desassossego que isso significou, Victoria assumiu a tarefa de começar os trâmites dasolicitação de refúgio e de unificação familiar. Quando, na Cáritas, lhe informaram que ela

teria de ir para “contar sua história” e preencher alguns formulários com informação sobre

a perseguição que alegava, Victoria teve de chamar seu esposo e lhe pedir: “bueno, ahora

sí, cuénteme a ver qué fue lo que pasó, porque me están pidiendo que diga todo y yo no sé 

nada”. Seu esposo lhe contou alguns elementos relacionados com as ameaças que tinha

recebido e lhe transmitiu as instruções recebidas pelos seus conhecidos do Acnur, para que

ela pudesse “decir las palabras claves para que la solicitud no fuera rechazada”. Assim, ofez e o reconhecimento, segundo ela, foi relativamente rápido apesar de que ela conhecia

somente, de maneira parcial, a história e apesar de algumas desconfianças das agentes que

lhe pediram para fornecer provas. Já o tempo da unificação familiar foi mais demorado e

desesperador, porque os custos da viagem de todos os membros da família que ficaram na

Colômbia (cinco pessoas) não foram pagos pelo Acnur, assim que eles mesmos tiveram que

ir programando cada viagem segundo o ritmo de obtenção dos recursos econômicos para

pagá-la.

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Esses meses foram tempos muito difíceis para Victoria, não somente pela distância de sua

família, mas pela certeza que foi se instalando com a passagem dos dias de que não voltaria

mais para sua casa, não teria como recuperar as coisas que ficaram, nem retomaria seus

projetos com as pessoas da comunidade com as que ela trabalhava. A sensação que Victoria

descreveu foi como se houvessem lhe interrompido o tempo e a etapa de vida que estava

construindo houvesse ficado inconclusa. A esse momento, não foi imposto um final, mas, ao

interrompê-lo, tornou-se eterno e continua aparecendo como o que poderia ter sido e não

aconteceu, como o que sempre estará para se fazer. Entretanto, a ruptura mais forte para

Victoria e a que ela me narrou com mais dificuldade não foi essa fratura com a vida de antes,

mas o divórcio de seu esposo alguns anos depois de sua chegada ao Brasil.

Em algum momento de nossas conversações, Victoria me disse que, quando “las cosas se

empezaron a poner muy feas”, quando “empezaron a aparecer muchos muertos”, ela chegou

a se imaginar que teriam que sair desse lugar. Mas, em seguida, me disse que aquilo que

nunca chegou a imaginar era que ela e seu esposo pudessem se divorciar. Se o refúgio era

algo que ela chegou a imaginar e pensar como uma possibilidade, a separação, ao contrário,

tentou me dizer, “era algo que no existía, algo que no…”. Algo que não conseguiu expressar 

com palavras, pois, para ela, o que aconteceu não tinha nem forma, nem nome. Na descriçãode Victoria, várias dores juntaram-se naquele momento. A primeira de ter sido traída com

“uma brasileira”, apesar das advertências que recebeu de outras mulheres “latinas”

advertindo-lhe para cuidar de seu matrimônio porque “a las brasileras no les importa que

sean casados”. A segunda dor foi que seu esposo lhe fizesse reclamações de diversos tipos

que, segundo ele, justificavam em parte sua relação extraconjugal: que ela não se preocupava

por estar bem, que não se informava e não entendia da vida política nem da Colômbia, nem

do Brasil, que já não tinham a mesma vida sexual de antes, etc. Victoria sentiu essasreclamações como particularmente injustas, pois o tempo que ela dedicava a trabalhar e a

cuidar da casa era um tempo que lhe deixava extenuada, que perdia para seu cuidado, sua

beleza e seu prazer e, simultaneamente, era um tempo que ficava liberado para seu esposo

descansar, tomar cursos, ler livros e notícias e ter uma amante.

Talvez, a dor mais difícil de contornar engendrou-se quando a separação lhe permitiu pensar,

pela primeira vez, se ela e suas filhas realmente teriam de ter saído do país. Com novos dados

sobre os acontecimentos da vida de seu esposo na Colômbia, incluindo outras relações

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extraconjugais antes da viagem para o Brasil, Victoria começou a pensar nas outras

possibilidades, distintas do refúgio, que ela houvesse podido ter para se salvaguardar junto

com suas filhas na Colômbia. Sobretudo, começou a duvidar de que ter se refugiado junto

com seu esposo tivesse sido a decisão correta para sua vida e a vida de suas filhas, pois,

afinal, elas não tinham sido ameaçadas.

Até esse momento, Victoria havia sentido nostalgias e perdas, mas todas compensadas pelo

projeto conjugal e familiar que o refúgio conseguiu por a salvo e ao qual ela se dedicava por

completo. Quando esse projeto se fraturou, começou o exílio mais duro, o verdadeiro exílio.

Foi essa ruptura o marcador real do que o êxodo e a violência lhe haviam imprimido à sua

vida. Na época, ela pensou em ir para outro país com suas filhas, mas, quando averiguousobre as opções, soube que, apesar de sua sensação de não poder mais continuar com a vida

no Brasil, ela não seria considerada uma candidata para reassentamento. Não existiria,

segundo a lei, justificativas para tirá-la do país. Sem meios materiais para empreender uma

nova viagem por conta própria, terminou ficando e continuando a vida apesar do fracasso do

projeto conjugal. Hoje, anos depois da separação, fortalecida pela experiência de ter

superado esse momento crítico e motivada por uma incrível e contagiosa força vital que a

mantém ativa e sorridente, Victoria busca recompor outra das coisas que quebrou o exílio: arelação com a menor de suas filhas. Essa filha, apesar de ser a integrante da família que mais

tempo de sua vida tem morado no Brasil comparado com o tempo vivido na Colômbia,

também se sente ainda uma refugiada e reivindica esse lugar como o espaço que lhe permite

enunciar suas faltas e, em parte, explicá-las. Para ela, o exílio também está cheio de rupturas,

a pior delas com seus próprios pais e, por meio dela, com ela mesma. Ou com o que ela

considera que houvesse sido “ela mesma” se não tivessem tido de sair da Colômbia nas

circunstâncias que o fizeram.

Acredito que esse fragmento da história de Victoria que, com muitas imprecisões, tentei

reconstruir ilumina aspectos da vida das pessoas que não estão, nem estarão compreendidos

na lógica administrativa do refúgio, nem restaurados com o suposto pacto restituidor de

cidadania que é oferecido como salvação das vidas em risco. Inclusive, anos depois de terem

sido reconhecidos como refugiados, os sujeitos podem sentir a defasagem das etapas prévias.

O “como houvesse sido se...” é uma potencialidade sempre ameaçadora e o ponto de partida

de uma integração que nunca será completa e que desafia o pacto de gratidão que tenta se

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instaurar com a figura do refúgio. A qualquer momento, os sujeitos refugiados voltaram a

precisar dos agentes que são contratados, legitimados e exibidos como os encarregados de

dar suporte ao refúgio deles, mas os tempos de assistência terão expirado, terão sido

sobrepassadas as etapas de estabilização e integração e a responsabilidade sobre suas

próprias vidas lhes terão sido retornada aos sujeitos.

8.3. Quanto tempo passou: o tempo que demonstra e o tempo que transforma

[...] Entre menos tempo estiver naquela zona escura que é o primeiro país de asilo,melhor. Assim, a solução duradoura aqui é muito mais eficiente. (Coordenadorade ONG de reassentamento)

Como mencionado em diferentes momentos da tese, os agentes administradores dosprogramas de refúgio realizam uma valoração do tempo e dos ritmos em que se deslocam e

atuam os solicitantes de refúgio e os reassentados. Aqui, interessa-me salientar que existe a

ideia de que os movimentos dos solicitantes estão marcados pela urgência. Essa percepção,

que tem se transformado num critério de julgamento, está estreitamente relacionada com a

noção do “fundado temor de perseguição” em sua versão/percepção mais espetacularizada e

comumente midiatizada. Essa fórmula discursiva e normativa parece descrever uma cena

segundo a qual um evento, repentino e claramente ameaçador da existência, se desata sobre

as pessoas, sobre suas vidas ou sobre seus lugares de habitação. Evento que anularia nas

pessoas suas possibilidades de pensar, de calcular e de planejar os passos a seguir, assim

como de eleger o destino de seu movimento de saída; deixando somente a opção impulsiva

da fuga assumida, desde esse ponto de vista, como um movimento irracional. Parece, como

apontado por Malkki (1995, p. 110), que o repentino da fuga habilitaria a presunção da

suspensão do social.

A imagem da ameaça repentina e iminente da extinção física, que pode ser mais próxima aos

episódios de violência extrema, vividos por muitas pessoas na Colômbia, não corresponde,

porém, com a realidade da maioria dos solicitantes que chegam ao Brasil. Sobretudo, não

corresponde com a experiência imediatamente vivida pelas pessoas que chegam às cidades

onde estão os postos administrativos que marcarão sua entrada com o rótulo de “solicitantes”

e classificaram suas histórias baseando-se nos critérios burocráticos do refúgio139. Nenhuma

139 A respeito disso, é pertinente lembrar o caso citado na segunda parte da tese, sobre vários grupos decolombianos que, em 2007, foram maciçamente deslocados e que cruzaram a fronteira brasileira. Os eventosreconstruídos por Julia Moreira (MOREIRA, 2012, p. 238), a partir de documentos de arquivo do Acnur e do

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das pessoas que conheci durante a minha pesquisa de campo nessas cidades  – sendo eles

solicitantes ou refugiados  – moravam perto da fronteira colombo-brasileira antes de vir a

solicitar refúgio no Brasil. Isso permite supor que as pessoas deviam contar com um mínimo

de recursos e com um planejamento básico para realizar a viagem e para chegar até as cidades

que escolheram como destino ou que lhes foram sugeridas pela rede de ONGs que trabalham

como migrantes ou por outras pessoas.

As histórias que as pessoas contaram estiveram cheias desses detalhes de preparação da

viagem, de dúvidas sobre qual seria o melhor destino, dos critérios para a escolha final de

uma cidade, das preparações técnicas para empreender o caminho e dos imprevistos que,

algumas vezes, modificaram suas trajetórias e cronogramas. Todos esses pormenores foramespecialmente significativos nos relatos das pessoas que não contavam com recursos

econômicos para fazer o trajeto de avião e tiveram de fazê-lo de ônibus, ou quando já tinham

tentado morar em outros países da região antes de optar por vir até o Brasil. Para essas

pessoas, o percurso foi mais longo, com mais anedotas, com mais paisagens e com uma

maior exigência física e anímica para suportar as longas jornadas em rotas e ônibus, nem

sempre confortáveis, assim como os controles fronteiriços, amiúde hostis.

O caráter de imediato e de urgência com o que os agentes constroem a imagem genérica do

refugiado não contempla os ritmos de reflexivos e, quando menos, minimamente planejados

da viagem das pessoas que chegaram até as cidades brasileiras das que se ocupou esta

pesquisa. Assim como também não descreve nem contempla outros ritmos da perseguição o

caráter progressivo de algumas ameaças e o ambíguo poder do rumor em meio a contextos

de violência. Omite também as idas e vindas dos sujeitos que esperam que as coisas possam

ter melhorado, que regressam para ver se podem ficar, que vão e voltam medindo as forçascom aqueles que os expulsaram ou com aquilo que os levou a decidir sua saída do país.

Movimentos reflexivos de cálculo e desejo que as pessoas realizaram inclusive quando já

estavam no Brasil e quiseram esperar um tempo antes de ativar a solicitação de refúgio que

lhes submeteria a suas consequentes restrições de mobilidade.

Itamaraty, mostram que, apesar da forma em que essas pessoas foram expulsas, se assemelha muito mais comas imagens de perseguição repentina e ameaça iminente, a opção das autoridades brasileiras não foi a dereconhecer o refúgio, mas a de estimular o retorno deles ao território colombiano.

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A equação que põe em jogo o imediato e a urgência, no contexto da classificação e do

reconhecimento de refugiados, contribui a criar hierarquias sociais e morais que são

utilizadas pelas próprias pessoas para avaliar e julgar quem realmente mereceria, e quem

não, essa dádiva da proteção. Dito de outra maneira, essa fórmula joga com o cálculo que

tenta decifrar quem ia morrer iminentemente e quem não, ou quem talvez fosse morrer, mas

sem esse caráter do imediato marcando sua extinção. Essa pretendida correspondência

unívoca entre o medo, a fuga, o imediato e a irreflexibidade também termina criando

contradições nos critérios de interpretação da história das pessoas que pedem proteção. Nas

declarações dos agentes, exibe-se essa ideia da fuga irracional e instauradora de uma

precariedade total:

[...] E o refugiado em geral é aquela pessoa que tem... ele está desvalido, ele estáem uma situação de drama social tão grande, que ele não consegue empreenderuma viagem intercontinental para buscar proteção no Brasil. A Classificação maiscomum do refugiado é aquela de quem sai do país pela fronteira. Sai a pé, sai deveículos, mas sai num momento de desespero [...]. (Presidente do Conare em“Cenas do Brasil”, TVNBR, 12/17/2012)

Ao mesmo tempo, as funcionárias que entrevistam os sujeitos sugeriram que as etapas em

escalas do êxodo, em particular as etapas no próprio país, são uma prova de que as pessoas

tentaram se refugiar internamente. Essa leitura sugere que a proteção nacional prima sobrea proteção internacional e que os refugiados deveriam seguir essa ordem em seus

movimentos de fuga e busca de proteção. Aqueles que, em seus relatos, mostram esse tipo

de viagem em escalas podem ser mais bem avaliados, segundo me explicaram algumas

agentes. Essa leitura está cruzada de maneira implícita com a situação socioeconômica,

suposta ou declarada das pessoas. Quando os refugiados têm recursos econômicos para pagar

sua passagem e fazem uma viagem de uma cidade colombiana até uma cidade no Brasil, o

movimento direto parece evidente e livre de suspeita. Será catalogado como um movimento

esperável e explicável em razão da urgência que precisaria se pôr a salvo. Porém, quando a

pessoa é oriunda de uma área rural ou de uma periferia urbana e não tem recursos para a

viagem, se espera dela que procure outros lugares de refúgio (a seu alcance) antes de

empreender uma viagem internacional.

De qualquer forma, segundo os agentes, a rapidez com a qual as pessoas solicitam refúgio,

uma vez que tenham entrado ao território brasileiro, será um elemento que jogue a seu favor.

Do contrário, pode ser ativada a suspeita comum de que as pessoas “estão utilizando o

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refúgio para solucionar sua situação migratória”. Essa suspeita continua estando baseada

na premissa da perda de vontade que supostamente caracteriza as pessoas perseguidas e as

distingue daquelas migrantes econômicas desejosas de uma melhor condição de vida. Como

visto, conforme Good (2006, p. 96), a falta de vontade parece um requisito para ser um

refugiado genuíno e o imediato da solicitação avaliado pelos agentes como um elemento de

credibilidade140.

Sugiro pensar no que acontece quando o imediato e a urgência são assumidos como os ritmos

lógicos do medo e dos movimentos geográficos realizados para salvar a vida,

especificamente quando os agentes que avaliam as solicitações de refúgio e as candidaturas

a reassentamento assumem que a perseguição se manifesta sempre e exclusivamente nessesritmos. Perseguição mais urgência envolveriam, segundo essa lógica, a incapacidade de

reflexão e a perda da vontade dos sujeitos que aparecem de repente despossuídos de sua

razão e de seu desejo. Se a perseguição é instauradora também de uma perda dos direitos

civis e políticos que são entendidos comumente como sendo responsabilidade do seu próprio

Estado, a esse sujeito lhe restaria somente seu corpo. Sobrar-lhe-ia a vida que tenta salvar

como única possessão, entendida nesse sentido como a “vida nua” da que, de maneiras

diferentes, falaram Arendt (2007) e Agamben (1998)141

.

O refúgio, como ação humanitária, intervém caracteristicamente sobre essas vidas

entendidas como vidas “humanas”. Vidas que, por não terem mais atributos que sua

humanidade, colaboram com que a ação de agências como o Acnur seja descrita como

“humanitária, social e apolítica” (ACNUR, 2009:2). O que é paradoxal deste movimento,

que já tem sido analisado por vários autores (FASSIN, 2010; FASSIN; RECHTMAN, 2007;

140 Em palavras do autor: “The Handbook of the UN High Commissioner for Refugees specifies that theexaminer should ‘use all the means at his disposal to produce the necessary evidence in support of theapplication’. In particular, applicants should be given the benefit of the doubt if their account appears credible

 – if, in other words, it is ‘coherent and plausible’, and does not ‘run counter to generally known facts’. Bycontrast, though IND’s manual does indeed mention the gathering of further evidence, Home Office proceduresseem designed to undermine credibility rather than verify it. For example, despite the traumatic pastexperiences of many refugees with officialdom, and the clandestine circumstances under which many havetravelled, staff are told to query their credibility if they have not applied for asylum ‘forthwith’ (GOOD, 2006,p. 94).141 Butler aponta que duas interpretações próximas, mesmo que com nuances, foram feitas por Arendt (2007)e Agambem (1998) a propósito do espolio dos sujeitos tanto dos direitos que garantiriam sua pertença a umEstado-nação (segundo a primeira) quanto os exercícios de poder que privariam aos sujeitos de sua existência

política lhes deixando somente sua existência em tato que espécie (para o segundo). Para uma reflexão críticasobre essas interpretações e sobre os limites dessa visão que assume a possibilidade de que exista um corpobiológico, para além das ordens que o atravessam e o constituem, pode-se consultar Butler e Spivak (2007).

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TERRY, 2002), é o potencial duplo que esse humano tabula rasa engendra. Em primeiro

lugar, essa humanidade desprovida de outros atributos aparece como um lugar de inscrição

das características de um novo sujeito. A partir disso, se dão as frequentes referências das

autoridades e agentes acerca do refúgio como “uma nova vida”, um “recomeçar de zero” ,

um “se fazer uma vida do nada”. Em segundo lugar, essa característica também aparece

como uma força potencialmente disruptiva da ordem social na qual se pretende “integrar”

ao refugiado. Isso porque um humano, puramente humano, sem possibilidade de reflexão e

sem vontade, pode ser entendido também como a matéria-prima de qualquer coisa, desejada

ou indesejada para os propósitos da integração. Talvez ali se encontre a fonte dos receios

que têm alguns SOS agentes sobre os refugiados que eles administram.

Porque o refugiado é assim, ele é um sobrevivente e se ele detectar fraqueza em ti,ele vai aproveitar isso; porque é assim, eles vão até o final porque tem quesobreviver de alguma forma, então você tem que saber como lidar com isso.(Coordenadora de ONG de reassentamento)

No fragmento citado, parece que a condição humana rasa, encarnada no evento violento que

atingiu o sujeito e naquilo que ele teve de fazer posteriormente para sobreviver, tivesse o

tornado simultaneamente em algo não humano. A respeito dessa presença ambígua e suspeita

de quem se livra da morte, Pollak sugeriu que os relatos sobre a sobrevivência – para o autor

dos campos de concentração nazistas  – não apenas dão conta das formas de resistência à

violência e ao extermínio, como das “deformações impostas à pessoa ao longo do tempo”

nesses contextos (POLLAK, 1990, p. 220). Algo dessa proximidade com a morte e do que

foi negociado para sobreviver é a base desse caráter um pouco monstruoso do sujeito que,

segundo os agentes, o faria capaz de ir “até o final”, de sobrepassar os limites e de

“aproveitar a fraqueza” do outro para conservar sua própria vida. Se o refugiado somente

humano assusta por sua hiper-humanidade, o refugiado como sobrevivente assusta por ter

perdido um pouco dessa humanidade.

Mais uma vez, o tempo entra na equação tanto para explicar quanto para remediar esse

caráter monstruoso. O tempo, tanto da urgência no momento extremo de violência quanto

da luta pela sobrevivência posterior, vai transformando o sujeito nesse ser limítrofe entre a

humanidade e alguma outra coisa perigosa. Sobretudo, o tempo transcorrido em alguns

espaços é um tempo que não avança para um estado que progressivamente cure esse caráter,

mas que pode ser um tempo-espaço que o piore. Há lugares que os agentes enunciaram como

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sendo em si mesmos elementos-chave dessa transformação deformadora dos sujeitos. Desse

modo, explica-se a ideia da agente citada ao começo deste subtítulo, segundo a qual: “entre

menos tempo estiver  [a pessoa] naquela zona escura que é o primeiro país de asilo,

melhor ”142.

Equador (ou o primeiro país de refúgio) pode ser entendido, com base nos postulados de

Fabian (1983, p. 143-144), como um espaço não coetâneo com relação ao “Brasil da

integração”. Essa temporização dos espaços, regida por uma espécie de cronopolítica, nega

a contemporaneidade dos “outros”, permitindo que os espaços de guerra e os de “crise

humanitária” (nesse caso, Colômbia e Equador), junto com seus habitantes, sejam

concebidos como objetos dos programas de refúgio. Aos agentes brasileiros da integraçãolhes corresponderia a tarefa de reconverter em humanos e sujeitos aos refugiados resgatados

desse tempo-espaço sombrio e desumanizante. Ação que eles apresentam como

particularmente imperiosa sobre aqueles que chegam por meio da “solução duradoura” do

reassentamento e de quem se considera que vão ficar no Brasil.

Agente de integração: Porque o problema é quando vai uma família e aí tenta,mas há falta de integração no local, e então fica muitos anos lá no Equador e aí fica o problema.

Coordenadora de ONG: É. Chega aqui depois de muito tempo de não ter umavida formal e isso prejudica, sim, o processo da integração. (Entrevista com equipede reassentamento).

A tarefa dos agentes seria aquela de trabalhar sobre o tempo da integração dos refugiados

para fazê-los novamente humanos e, especificamente, novamente cidadãos. As ações

empreendidas são um trabalho civilizador que reverte o tempo de ser somente sobrevivente,

chega até o momento de somente humanidade e, a partir dali, constrói um refugiado capaz

de se integrar a sociedade brasileira. Essa última apresentada como uma unidade homogênea.Arrancados do espaço que os torna em algo não humano, os refugiados serão instalados no

espaço que os tornará potenciais nacionais, sujeitos de direitos (restritos) e submersos na

ordem ordenadora do Estado-nação brasileiro contemporâneo.

142 Sonia Hamid (2012, p. 164) realizou uma excelente analise sobre esse mesmo aspecto, apontando que otempo que as pessoas passaram no campo de refugiados é percebido como um tempo que as transformou. Em

 palavras da autora: “Em outra direção, Sheila também acionaria o longo período passado no campo comoum momento no qual os refugiados teriam perdido a “noção” de como se portar. Neste espaço/tempo liminar,

portanto, os refugiados teriam deixado não apenas seu status político, social e jurídico na “ordem nacional”,mas também as regras da convivência interpessoal, da boa conduta e da moral ou, em outros termos, sua própriacivilidade. Sua reinserção numa ‘ordem nacional’, assim, também exigia que os mesmos fossem civilizados”.

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crítica da que são alvo frequente, e à que eles também se somam enquanto detratores, é a do

assistencialismo. Somar-se à desqualificação de aquilo que é um elemento da crítica que

outros poderiam fazer contra a agência parece uma forma de se antecipar e evitar essas

críticas.

Apesar de os programas para refugiados serem basicamente assistenciais, os funcionários

insistem no caráter limitado dos benefícios e na forte ênfase de autogestão e independência

financeira colocada nos programas. Durante a pesquisa de campo, vários agentes se

referiram à cultura do assistencialismo143 fazendo alusão menos a uma relação das agências

com as pessoas que recebem benefícios financeiros ou apoios materiais e mais a um tipo de

costume adquirido pelos sujeitos, que faria deles tendentes à dependência econômica. Issocomo uma característica que, segundo os agentes, arruinaria as possibilidades das pessoas

voltarem a ter uma vida normal nos termos e ideais morais da integração.

Segundo essa lógica, os colombianos, particularmente os que não passaram muito tempo no

Equador e viveram sem serem assistidos, teriam sido menos desumanizados. Assim, em um

primeiro momento, os agentes adotam a imagem do refugiado como um ser carente e

desprovido de sua existência política. Mas, em seguida, na hora de avaliar as possibilidadesde integração, parecem adotar a ideia de que esse caráter somente humano não é aquele da

vida nua, mas aquele da preservação de boa parte das características da “vida formal” que

levava antes de ser refugiado, ou que continuo levando no percurso do êxodo. O humano,

143 Julia Bertino Moreira, na sua tese de doutorado (2012), cita também várias entrevistas com agentes derefúgio para quem está presente essa ideia da influência negativa da dependência econômica dos refugiadosnos processos de integração. A autora não problematiza os termos utilizados pelos agentes, nem questiona aideia mesma da autossuficiência dos refugiados como um ideal político, econômico ou moral. As citações

realizadas por Bertino Moreira reforçam a preocupação dos agentes sobre a assistência financeira. Segundo aprópria autora: “Corroborando o ponto colocado por Rovida (2009), segundo a entrevista realizada com Pereira(2009), os palestinos, por terem vivido décadas no campo jordaniano, sofriam de síndrome de dependência,em função da assistência recebida durante anos, o que representou um empecilho no processo de integração”(MOREIRA, 2012, p. 245) [grifos meus]. Na tese de doutorado em Ciências Sociais de Andrea María CalazansPacheco Pacífico (2008), a ideia da dependência dos refugiados também aparece e é apresentada claramentecomo um problema, inclusive como uma patologia com sintomas associados já identificados. Longe de proporuma crítica à patologização do comportamento dos sujeitos produzidos como refugiados ou de sua consequentedeslegitimação das inconformidades ou reclamações que esses possam fazer, a autora – apoiada no trabalho deLance Clark (1985)  – fala em Síndrome de Dependência dos Refugiados (SDR) como sendo uma realidadecom a que, além disso, é preciso cortar e afirma que: “[…] ele está fisicamente protegido, mas falta-lheassistência psicológica suficiente (aconselhamento, encorajamento, apoio social, ser ouvido, enjagamento nasatividades de primeiros socorros, etc.), conduzindo-os à tal SDR, cujos principais sintomas são: sentimentos

de letargia e falta de vontade de viver; falta de iniciativa; aceitação das bengalas (apoios prontos); sem atençãoa sua autossuficiência e reclamações frequentes, especialmente com relação a falta de ajuda externa” (2008, p.40-41).

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nesse sentido – e neste momento particular do processo de refúgio  – , parece ser entendido

pelos agentes como aquilo que não se tornou monstruoso (especialmente dependente) e que

pode ser reaproveitado nos moldes da integração.

As afirmações sobre as melhores possibilidades de integração desse tipo de colombianos que

se preservaram da desumanização foram usualmente baseadas na comparação do “caso

colombiano” com o “caso palestino”144. Alguns refugiados, e mesmo alguns ex-agentes dos

programas de refúgio, narraram episódios de violência e agressão contra funcionários das

ONGs parceiras do Acnur. Essas agressões realizadas por alguns colombianos envolviam

reclamações e inconformidades com a entrega ou a aprovação de benefícios financeiros ou

materiais. Contudo, a conclusão à que todos os agentes chegaram, inclusive aqueles quereconheceram que houve agressões ou foram agredidos, consistiu em que o programas de

reassentamento de colombianos têm sido um sucesso e que esses episódios foram detalhes

menores.

[...] Teve também alguns colombianos que me ameaçaram de morte, mas eusempre procurei sair calmo, quando entrava para uma discussão acalorada eucortava a conversa e dizia: “olha, a gente se calma e a gente volta e conversa etal”. Então, têm essas coisas, mas isso daí poderia ter sido um brasileiro a quemeu estivesse ajudando, não é por ser um colombiano ou por ser um refugiado [...].No caso de colombianos, foram três ou quatro casos [de ameaça ou agressão], nocaso dos palestinos foi pior. Até porque [...] aí também tem todo um traço culturaldo mecanismo deles de esgotamento psicológico da gente que é diferente. (Ex-coordenadora de ONG de reassentamento)

Na leitura que realizaram os agentes sobre esses episódios de agressões por parte dos

colombianos, os mesmos comportamentos poderiam ter vindo de de um brasileiro. Além

disso, segundo eles, essas reações não se explicam somente porque eles sejam refugiados.

Diferentemente, nas declarações e narrações sobre o reassentamento de palestinos primou

uma leitura de conflito, de muitos fracassos e de uma distância cultural infranqueável  – 

aumentada pelo tempo que levavam morando como refugiados assistidos  – que foi exposta

como causa principal das dificuldades de integração.

144 O “caso palestino” se refere particularmente ao grupo de pessoas, majoritariamente de origem palestina quefoi trazido ao Brasil em 2007, por meio do programa de Reassentamento Solidário. O “caso colombiano” éuma forma de referir ao conjunto de pessoas, quase todas de nacionalidade colombiana, que chegaram em

diferentes momentos por meio do programa de Reassentamento Solidário. Algumas vezes, inclusive, “o casocolombiano” pode estar se referindo às famílias ou aos sujeitos que continuarão chegando por meio doprograma.

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[...] Então, o refugiado sempre chega numa situação difícil, precária... É muitoproblemático. Só que, com os colombianos, a gente tinha a proximidade da línguae alguma proximidade da cultura. E já com os palestinos era tudo diferente, tudo,tudo, tudo, diferente. A cultura muito diferente, o ambiente muito diferente, entãoisso dificultou muito. (Coordenadora de ONG de reassentamento)

Em outras entrevistas, uma com o pessoal de uma das ONGs e outra com um ex-agente de

integração do programa de reassentamento, essas dificuldades apareceram inclusive como

potenciais perturbadores dos próprios agentes e não somente da possibilidade de integração

dos refugiados. O processo de integração de grupos considerados tão diferentes é entendido

então como uma experiência potencialmente traumatizante também para os grupos

receptores. Ressalta-se, em ambos os casos, novamente, uma distância que incapacitava a

possibilidade de reconhecimento de uma comum humanidade como laço que facilitaria o

processo. Aliás, ainda reconhecendo diferenças na execução do programa de reassentamento

para cada um dos grupos comparados, inclusive a respeito dos montantes financeiros e do

interesse institucional do Acnur com cada um deles, essas dessemelhanças não entraram em

 jogo em suas declarações como elementos explicativos com igual peso que aquele da

alteridade:

Entrevista 1

Agente de reassentamento: Então, com a vinda dos palestinos tivemos ainda, oueu tive, uma preocupação muito forte por manter a sanidade mental da equipe,porque estávamos ficando doidos aqui, porque o palestino, quando não gosta detua cara, ele cospe na tua cara, ele briga assim, grita, cospe, e se deixar ele faz maiscoisas. E como é que a gente ia suportar isso? Como a equipe se manter coesa?

Eu: E com os colombianos tiveram o mesmo tipo de problema?

Agente de reassentamento: Não, não, a gente nunca teve problema nenhum.

Entrevista 2

Eu: Nunca o programa deu problema com os colombianos?

Ex-agente de integração: Não, tinha problema, lógico que tinha problema. Agente discutia, brigava, não era tudo tão tranquilo. Cada seis meses eu tinha que irpara Brasília a negociar com o Acnur o que é que fica, o que é que não fica. Euacho que um pouco até por características minhas [...] eu puxava muito a sardinhapara meu lado para esse programa. Então, foi uma coisa assim, não foi feito naregra do Acnur. Foi um programa feito nas regras da Cáritas, então foi umprograma muito mais humano. E, com os palestinos, a verba vinha de outroslugares, de outros doadores o cinto era muito mais apertado, aqui era um programaque estava começando. O Acnur estava reabrindo o escritório no Brasil e eleprecisava mostrar resultados. E foi o começo. Depois, com os palestinos, a genteteve muito problema com tradutor, eu tinha tradutores que não traduziam as coisaspara mim porque tinham vergonha. Eu tive muito embate cultural. Ah! Que é fácil?

Ahã. Fala aí de relativismo, vai! Vai viver ele no dia a dia. É outro mundo, é outromundo, é outro mundo. Eu lembro que na entrevista que eu dei para [outrapesquisadora], eu estava muito, muito machucada ainda e eu perguntava para [ela]:

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Que tipo de seres humanos são eles? Porque eu não reconhecia a igualdade. Eusou de um jeito, e eles são de outro completamente diferente. Então, era uma coisaassim de outro mundo. E, com os colombianos, não tinha isso até pela facilidadeda língua.

Segundo os agentes do refúgio, a diferença cultural com os palestinos marca uma imensa

distância, apontando a dificuldade de integração por meio de todos os pressupostos

civilizatórios associados à ideia de tornar apto um grupo de pessoas para viver em uma

determinada sociedade. Além disso, somado à diferença cultural que é atribuída aos

palestinos em geral, os agentes agregam mais uma dificuldade a esse grupo em particular

que é chamado do “caso palestino”. Segundo eles, as pessoas desse grupo teriam o “ costume

do protesto” como um hábito adquirido durante o tempo que permaneceram assistidas no

campo de refugiados de Ruweished (Ver: HAMID, 2012).

[…] os palestinos que são sunitas foram para um campo na fronteira da Jordâniacom o Iraque, e eles ficaram presos dentro do campo, porque o exército da Jordâniapatrulhava, e eles só saíam do campo para ir para o hospital quando estavam muitodoentes. Então, eles tinham essa coisa muito de protestar; então daí quando oAcnur ia levar comida para eles, aí eles protestavam e eles já vêm de umaexperiência assim, da briga, e daí quando chegaram aqui foi complicado, porqueaté eles entenderem que se pode sentar e conversar [...]. (Agente dereassentamento)

Essa última frase da citação, “eles entenderem que se pode sentar e conversar ”, marca umtempo muito particular e ilustra parte desses pressupostos associados a certos espaços como

elementos transformadores. Esse fragmento enfatiza a demora que pode implicar o complexo

trabalho civilizador de “ fazer com que os palestinos entendam” os códigos “adequados” da

comunicação. A comparação sempre presente com esses “outros” permitiu que “os

colombianos” me fossem apresentados como uma alteridade não muito alterna. Uma

alteridade integrável, na medida em que requer menos esforço e menos tempo para ser

acondicionada aos moldes da nação brasileira. Foram, assim, apresentados como humanosmais parecidos com os formatos de cidadania pautada na autogestão própria do modelo

neoliberal a aos padrões culturais que os agentes qualificaram como próprios. A esses

representantes de uma alteridade integrável, segundo os agentes, lhes pode ser ensinado o

que faz falta para seu processo de integração como mais facilidade que a esses “outros” de

uma alteridade radical. Ou seja, com “os colombianos”, os processos de integração

entendidos como esforços de nacionalização de refugiados (SEYFETH, 2000, p. 47) têm a

potencialidade de serem mais rápidos e menos agressivos.

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Coordenadora de ONG: Olha, é um desenho de projeto bem diferente. A genteteve que fazer outra proposta, porque, no caso palestino, eles vivem emcomunidades quase tribais. Assim, é uma organização meio tribal. Então, a gentefoi procurar na própria comunidade aqui, local, lideranças políticas ou religiosasque nos ajudassem e nos apoiassem no reassentamento palestino que é bem

diferente da colombiana. A colombiana é dispersar, e o palestino foi realmenteinserir nas comunidades palestinas de migrantes já existentes. Nós fizemos entãoessa parceria com a comunidade e foram então definidas as cidades as quais nóspoderíamos mandar famílias palestinas que a comunidade local ia-nos ajudar, porcausa do idioma, da tradição. Porque a necessidade número um também era tertradutores, porque tudo era muito diferente.

Agente de reassentamento: E a questão da diferença cultural, que é muitodiferente porque várias meninas chegaram com véu e depois algumas largaramaqui, e outras ainda usam.

Outra das diferenças salientadas entre esses dois grupos antagonizados, no discurso dos

agentes e no universo institucional do refúgio brasileiro, é a relação que cada um deles teriacom a gratidão e as formas de sua expressão pública. Enquanto, como visto, os palestinos

são acusados de terem aprendido a protestar no campo e de serem “culturalmente” tendentes

às reclamações pouco educadas, os colombianos são apresentados como agradecidos e

distantes da queixa.

[...] Porque é difícil encontrar um refugiado colombiano que reclame da vida. Não!Ele vai reclamar claro, do fundado temor de perseguição, daquilo que o levou a...Daquele entorno que se coloca que é próprio do refugiado, e é normal. Mas aquela

outra reclamação que seria reclamação de... Sei lá! De está tudo ruim! Fica tudochato! Não. Um colombiano você não encontra não. É interessante, eu tenhoconversado com alguns colombianos que estão no Sul do país, no interior de SãoPaulo, que estão aqui em Goiás também, e nós observamos que eles estãocontentes [...] pese a todo o drama pessoal, da aquela história que os trouxe aqui.Então, não há reclamação por conta do fato de estar aqui. A reclamação é daquiloque os trouxe aqui. Que é uma reclamação normal. (Coordenador do Conare)

Considero pertinente interrogar essa apresentação “exitosa e agradecida” dos

“colombianos” que foi se mostrando como uma ideia compartilhada pela maioria dos agentes

brasileiros do refúgio. Eu mesma percebi, em muitas das conversas com as pessoas, umareiteração da gratidão e um reconhecimento constante dos benefícios de todas as “ ayudas

recibidas”. Foram poucos os casos das pessoas que reivindicaram e usaram a linguagem dos

direitos para descrever sua relação com os agentes e para reforçar, de passagem, o caráter

legal e não pessoal que esse vínculo teria. Também foram poucos a expressar que eles não

deviam gratidão aos funcionários por cumprir com as tarefas pelas quais recebiam um

salário. Ao contrário, a maioria das pessoas, apesar de todas as inconformidades que

expuseram, manifestaram suas queixas depois de ter repetido o agradecimento que sentiam

e de me explicar que não era por ingratidão que eles reclamavam.

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Inspirada em Scott (2000) considero que, como grupo subordinado, os reassentados puderam

me oferecer, em seus relatos, uma sorte de “discurso oculto” por meio do qual “crean y

defienden, a escondidas, un espacio social en el cual se puede expresar una disidencia

marginal al discurso oficial de las relaciones de poder” (SCOTT , 2000, p. 20). Com isso,

quero dizer que a expressão da moléstia não aconteceu da mesma maneira diante de mim

que diante dos agentes do reassentamento. Meu trabalho foi visto por muitas das pessoas

refugiadas, segundo elas me disseram, como uma forma de “contar su verdad sobre el

 programa”. Inclusive, algumas apontaram que falar comigo era uma espécie de terapia que

lhes permitia tirar moléstias ou dores velhas. Tudo isso sem esperar um intercâmbio direto,

benefícios ou reparações evidentes a partir dessa narração, mas com a tranquilidade cada vezmaior  –  à medida que íamos ganhando confiança  –  de que sua narração não lhes traria

prejuízos.

As pessoas sabiam que a expressão da moléstia, quando feita diante dos agentes que exercem

poder sobre eles e suas vidas, poderia acarretar prejuízos, inconvenientes e desajustes na

relação estabelecida com eles ou no cumprimento da entrega de benefícios. Quase todas as

pessoas me recomendaram não dar seus nomes para que as pessoas das ONGs não soubessemo que elas tinham dito. A solicitação de reserva de seus nomes e de cuidado com a

informação por eles fornecida me foi feita inclusive pelas pessoas que já não recebem

assistência das ONGs. Considero que essas recomendações e esses sigilos, além de estarem

relacionados com o medo das possíveis represálias, estão relacionados com uma valoração

moral das pessoas sobre o dever ser das relações sociais nas quais a gratidão é um elemento

altamente estimado. Essa espécie de virtude seria, além disso, um facilitador das relações

com os agentes do refúgio, já que uma valoração moral compartilhada com eles lhes localizaem uma situação menos díspar em meio a essas relações hierarquizadas que estabelecem

distâncias.

A esse respeito, também é esclarecedora a proposta de Grace Cho (2008, p. 13) que apontou

que a gratidão e o silêncio foram elementos fundamentais para a construção da diáspora

coreana nos Estados Unidos como um caso bem-sucedido de migração. O silêncio sobre o

acontecido na guerra foi exigido desses migrantes coreanos, mas era ao mesmo tempo fácil

de obter, pois também as pessoas envolvidas se protegeram com esse mutismo, obtendo por

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meio dele um lugar não problemático para si mesmos no meio à diáspora. Sugiro que também

a construção dos “colombianos” como um grupo exitoso de refugiados passa pelo fato de

guardar silêncio, de não protestar e de selar um pacto de gratidão com as comunidades de

acolhida. Nesse pacto, “os fantasmas” da guerra e determinados sofrimentos inenarráveis do

êxodo não devem contaminar o presente da integração e da salvação que lhes oferece o

refúgio. Domesticar os fantasmas, deixá-los no quintal e tornar público somente aquilo que

socialmente possa ser significado como uma dor digna de luto e reparação faz parte

fundamental desse silêncio agradecido da integração.

Levando em conta a proposta de Mauss contemplada no ensaio sobre a dádiva (MAUSS,

2002), considero também que, por meio da manifestação da gratidão, é possível manter ativoo circuito de obrigações materiais e morais que é criado entre doadores e receptores desse

bem precioso de refúgio que está em jogo, particularmente do refúgio que deveria culminar

em uma situação exitosa de integração. Vale lembrar que, no caso dos reassentados, as ONGs

e suas funcionárias continuam sendo, durante muito tempo, a principal referência de contato

e as encarregadas de assessorá-los nos processos burocráticos de renovação de documentos,

validação de diplomas, etc. Essas ONGs e essas pessoas continuam sendo básicas durante

longos períodos inclusive depois de finalizada a etapa de assistência financeira.

Assim, considero necessário levar em conta o vocabulário e as formas que são utilizadas no

universo institucional brasileiro do refúgio para falar tanto dos grupos de pessoas refugiadas

quanto de sua própria gestão. O vocabulário utilizado para avaliar o êxito da integração

mistura o registro da caridade cristã (ajuda, o valor moral da recepção, as virtudes do

sacrifício e da gratidão) com o registro do empreendedorismo neoliberal das democracias

modernas (autonomia, autogestão, independência, capacidade de adaptação) – vocabulárioe práticas nas quais alguns sujeitos se movimentam com maior facilidade e têm mais

treinamento do que outros. Para a integração, ao mesmo tempo que o sujeito deve ser ativo

e tomar as rédeas de seu processo de reconstrução vital, lhe é exigido também que aceite

aquilo que lhe é oferecido e, em virtude de sua situação precária, agradeça a salvação nos

termos e nas condições em que ela vier. Tudo isso sem se queixar demasiado e especialmente

sem se queixar coletiva e publicamente.

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9. Nono capítuloA integração e as fronteiras do Estado-nação

Diferentes planos da categoria tempo têm sido propostos nessa última parte da tese até agora.

Na presente seção, interessa-me discutir “a integração” como outro processo que é em si

mesmo construído como atributo do tempo, não apenas porque o tempo qualifica e associa

valores aos sujeitos, como visto, mas também porque, no trabalho do tempo (processos,

esperas, fixações, urgências), decantam-se as ações do Estado que nos permitem ter uma

porta de entrada para entender os processos que o vão formando. Além desses planos

elencados, ficará mais claro, nas páginas a seguir, a “integração” como processo também é

uma forma de administração de Estado que pode ser entendida como um processo de longo

prazo, uma sorte de tradição administrativa.

A integração é o objetivo declarado de boa parte dos programas contemporâneos de refúgio

coordenados mundialmente pelo Acnur. Portanto, a integração também tem se tornado uma

forma de avaliação e de ação sobre a vida dos sujeitos que chegam ao Brasil por meio desses

 programas. Sob o rótulo de “integração local”, o Acnur e suas ONGs parceiras se referem a

uma das três “soluções duradouras” que oferece essa agência mundial para o “problema dos

refugiados”, sendo o “retorno” e o “reassentamento” as outras duas propostas. Segundo os

documentos do Acnur, a integração seria a opção mais adequada, quando o retorno ao país

de origem não é viável:

En ocasiones, el retorno al país de origen no es una alternativa viable, en cuyo casoa los refugiados se les puede permitir permanecer indefinidamente en el país dondehan encontrado condiciones de seguridad. En estas situaciones, se estimula a losrefugiados a que se integren en las comunidades locales y, con el tiempo, puedanllegar a obtener la residencia permanente o la ciudadanía, en cuyo caso dejaríande ser refugiados. (ACNUR, 2006, p. 77)145

145 No mesmo documento do Acnur (2006) e em várias de suas publicações web, são oferecidos detalhes decomo é concebida a “integração local” e quais são os objetivos que deveriam guiar esse processo: “Laintegración local es un proceso gradual que tiene lugar en tres ámbitos: Legal: a los refugiados se les otorgaprogresivamente un más amplio rango de derechos, similares a aquellos disfrutados por los ciudadanos, quelleva eventualmente a obtener la residencia permanente y, quizás, la ciudadanía. Económico: los refugiadosgradualmente se vuelven menos dependientes de la asistencia del país de asilo o de la asistencia humanitaria,y son cada vez más autosuficientes, de manera que pueden ayudarse a ellos mismos y contribuir a la economíalocal. Social y cultural: la interacción entre los refugiados y la comunidad local les permite a los primerosparticipar en la vida social de su nuevo país, sin temor a la discriminación o la hostilidad. Incluso cuando laintegración local no se persigue como una solución duradera, promover la autosuficiencia entre los refugiados

puede ayudar a alcanzar las otras dos soluciones duraderas” (Fonte: UNHCR ACNUR: Agência da ONU paraRefugiados. Integración local: uma nueva vida em um país generoso. Disponível em: <www.acnur.org/t3/que-hace/soluciones-duraderas/integracion-local>. Acesso em: 5 fev. 2014.)

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A princípio, a integração é mostrada como uma solução e, nesse sentido, seria algo pronto,

algo já elaborado. Contudo, em seguida, é proposta também como um objetivo, como uma

ação a ser realizada, de modo que, como mencionado no fragmento anteriormente citado “se

estimula a los refugiados a que se integren” e são despregadas estratégias tendentes a

conseguir esse propósito. Daí que, na tese, tenha considerado pertinente indagar as relações,

as práticas, as técnicas e os pressupostos que orientam as ações dos agentes que atuam como

guias e administradores desse processo de integração de refugiados nas comunidades locais.

Entretanto, considero também relevante encarar a integração como uma noção que contém

várias hipóteses nem sempre homogêneas e nem todas surgidas exclusivamente da prática e

perícia do Acnur. Como visto na primeira parte da tese, no desenvolvimento recente daspolíticas de refúgio no Brasil, podem ser encontradas tanto continuidades quanto rupturas.

Já foram mencionadas as importantes transformações nos modelos de governo desde finais

dos anos 1980 e a relação de boa parte delas com os chamados processos de

redemocratização (Ver TEIXEIRA; SOUZA LIMA, 2010, p. 62). Igualmente, as

transformações também tinham relação com a tendência, quase planetária, à implementação

de práticas políticas baseadas em critérios de participação e modelos neoliberais de

autogestão. Além disso, também é importante levar em conta uma sorte de homogeneizaçãoglobal de critérios técnicos, noções de intervenção e práticas de gestão dos refugiados a partir

da legitimada presença e assistência técnica do Acnur em muitos dos países receptores de

populações em êxodo.

Há outros aspectos contidos e expressados nessa noção de integração que podem ser

entendidos, mas que, como rupturas, como continuidades de várias etapas prévias da história

brasileira de administração e gestão de grupos migrantes ou refugiados. Proponho entenderque os pressupostos da pretendida integração têm relação não apenas com os relativamente

recentes formatos técnicos do Acnur mas também com as diferentes formas que tem cobrado

a preocupação história sobre a presença de populações estrangeiras em território considerado

brasileiro e sua relação com a sociedade nacional.

A respeito do mencionado assunto, Giralda Seyferth tem apontado em diferentes momentos

que, por meio da ideia de assimilação, ou de sua homóloga antropológica da aculturação, a

integração dos migrantes e seus descendentes na sociedade nacional foram uma preocupação

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presente desde meados do século XIX em diferentes setores da sociedade brasileira

(SEYFERTH, 2000, p. 45). Os trabalhos da autora têm iluminado também a relação entre os

processos migratórios – em particular aqueles que foram promovidos pelos governos  – e os

critérios raciais e culturais com os quais os ideais da importação de estrangeiros foram

guiados, assim como sua relação intrínseca com a construção de um determinado modelo de

nação146.

Variados momentos e desenvolvimentos da relação com os povos estrangeiros  – e com a

diferença referencial que sua presença significou para uma sociedade nacional brasileira

pretensamente unificada  – podem ajudar a descrever as coincidências e continuidades de

outras épocas com a forma contemporânea dos processos de integração de refugiados.Particularmente, parece-me relevante e coincidente a ideia, ainda pressente, de que há povos

com maior possibilidade de “abrasileiramento” 147 do que outros (SEYFERTH, 2000, 46;

1997, p. 96). No entanto, também são interessantes as coincidências com a preferência

histórica pelos processos migratórios que permitam escolher os estrangeiros mais desejáveis

(segundo os propósitos de cada momento histórico), assim como o temor expresso de que os

estrangeiros formem “guetos” segundo o discurso dos agentes do refúgio contemporâneo.

Notadamente, esse último aspecto pode nos remeter ao debate, durante o Estado Novo arespeito da inconveniência de permitir a formação de “quistos” no corpo da nação, como

mostrado de maneira crítica por Seyferth (1997, p. 95). A “dispersão territorial” como

estratégia de integração (abordada na segunda parte da tese) aponta para esse objetivo e

ilustra o temor, ainda pressente, de uma alteridade enquistada no corpo nacional.

Se a presença de estrangeiros pôde interrogar, de diversas maneiras, a constituição e as

características da nação brasileira, não tem sido somente pela diferença e o contraste culturalentre nacionais e estrangeiros. A respeito disso, é pertinente levar em conta a proposta de

146 Seyferth tem abordado algumas das relações fundamentais para pensar os pressupostos raciais que estiveramna base da formulação das primeiras políticas migratórias brasileiras a partir da segunda metade do século XIX.A autora propõe uma leitura que mostra, por exemplo, como, para esse momento, a abolição da escravatura ea migração eram dois temas que se discutiam juntos (SEYFERTH, 1995, p. 179). A autora também traça, comagudeza, outros tipos diferentes de conexões (às vezes, inclusive, antagônicas) que tiveram entre si a migração,o desenvolvimento econômico nacional e a assimilação. Além de analisar as formas em que esses assuntosafetavam ou se valiam dos pressupostos da mestiçagem como critério central da interpretação da históriabrasileira a inícios do século XX (SEYFERTH, 2000, p. 46).

147 Giralda Seyferth utiliza, em diversos textos e de maneira analítica, o termo “abrasileiramento”, explicandoque, como termo nativo, expressa a ideia de que a assimilação dos estrangeiros foi pensada, desde finais doséculo XIX, como um processo unidirecional de nacionalização de “alienígenas” (SEYFERTH, 2000, p. 46).

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trabalhos como o de Mazouz (2010) que também sugerem que a questão das discriminações

raciais associadas à imigração pode iluminar a existência de fronteiras interiores  –  na

sociedade francesa no caso de seu estudo. Essas fronteiras interiores questionariam a

igualdade de direitos dos cidadãos e não apenas dos estrangeiros (MAZOUS, 2010, p. 8).

Também nos tra balhos de Seyferth, o lugar da integração e os encarregados de “assimilar”

esses estrangeiros nos remetem a interrogantes sobre a suposta completude da mestiçagem

e a também imaginada unidade da sociedade nacional brasileira.

As relações propostas nos trabalhos citados nos interrogam sobre quais seriam os lugares, os

grupos, as comunidades locais e os espaços sociais nos que devem e podem entrar esses

estrangeiros que pretendem se integrar à nação148. Se a ênfase do assunto da recepção eadministração de populações, pensadas e produzidas como refugiadas, havia nos remetido

até agora para a questão das fronteiras externas do Estado-nação brasileiro, o assunto da

integração nos remete necessariamente às fronteiras internas desse lugar imaginado como

uma unidade nacional.

9.1. Uma solução duradoura, um esforço pedagógico cotidiano

A princípio, a integração me foi explicada pelos agentes brasileiros do refúgio com o mesmovocabulário e definição que estão contidos nos documentos do Acnur. Isto é, como “ uma

das três soluções duradouras para o problema dos refugiados”. Porém, a integração também

remeteu ao objetivo primordial dos programas para refugiados, em particular o

Reassentamento Solidário. Isso porque, como visto, enquanto o refúgio por elegibilidade (ou

espontâneo) se constrói jurídica e simbolicamente como um estado provisório, o

148

Esse assunto pode se remeter ao paradoxo exposto por Seyferth a respeito da ideologia do branqueamentoque supunha que os grupos que deveriam ser branqueados por meio da migração eram, simultaneamente, osencarregados de “abrasileirar” a esses estrangeiros. Em palavras da autora: “A exclusão dos alemães, que, noImpério, foram considerados os imigrantes ideais para o sistema de colonização com pequenas propriedades,ocorreu porque nossos teóricos do branqueamento incorreram num paradoxo [...]: conceberam a “formação(étnica) brasileira” desde a época colonial como resultado de um amplo processo de caldeamento de raçasconsideradas inferiores, bárbaras e selvagens (negros e índios), ou brancos produzidos por mestiçagem(portugueses); os imigrantes europeus serviriam, entre muitas outras coisas, para branquear essa populaçãomestiça que, mesmo concebida como inferior em raça e cultura, tinha a missão de abrasileirá-los. Dito emoutras palavras, o ideário do branqueamento afirmava a inferioridade irremediável de grande parte dapopulação nacional (negros, índios e mestiços de todos os matizes), mas imaginava que esta mesma populaçãopoderia transformar em brasileiros/latinos todos aqueles brancos “superiores” encarregados de fazê-la“desaparecer” fenotipicamente” (SEYFERTH, 1995, p. 181). No caso do refúgio contemporâneo que me

ocupa, as comunidades locais onde se pretende integrar aos refugiados (especialmente aos reassentados), namaioria das vezes, são elas mesmas o objeto da intervenção de políticas de governo que procuram construirideais de população, de família, de núcleos produtivos, etc.

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reassentamento, ao contrário, é pensado como duradouro e, muito amiúde, apresentado como

definitivo.

No caso dos  postos administrativos, que gerem os assuntos dos refugiados espontâneos,

existem pautas para a recepção das pessoas que suas funcionárias chamam, em alguns casos,

de “programas” e em outros de “serviços”. Esses me foram apresentados na Cáritas como

sendo fundamentalmente quatro: proteção, assistência, integração e saúde mental. Segundo

a descrição das funcionárias, esses “serviços” são a forma de organizar e apresentar o

atendimento que oferecem as ONGs como representantes da sociedade civil, mas

especialmente como organizações que trabalham conveniadas com o governo e com o

Acnur. Com “proteção”, as funcionárias aludem ao atendimento jurídico que inclui aativação do processo de solicitação de refúgio, a gestão da documentação e a assessoria para

recorrer, caso a resposta do Conare seja negativa. Com “assistência”, referiram à

administração e entrega de apoios materiais e financeiros e, com “saúde mental”, ao

atendimento psicológico ou psiquiátrico e urgência. Já “integração” foi sempre um termo

mais ambíguo, porém, quando mencionado, as funcionárias se referiram basicamente aos

cursos de português oferecidos aos refugiados, aos cursos básicos ou técnicos de formação,

à tramitação dos documentos trabalhistas e escolares e à ajuda para conseguir empregos.

Esses mesmos elementos elencados foram salientados pelos outros agentes da tríade do

refúgio. De maneira geral, em seus discursos, podem ser identificados três aspectos básicos

reiteradamente mencionados ao falarem em integração ou ao serem interrogados sobre o

assunto. São eles: trabalho, língua e escola; essa última mais orientada para as crianças.

Desses três elementos, o trabalho é aquele que primeiro apareceu e que, de forma mais clara,

foi enunciado como um escopo-chave na integração dos refugiados. De fato, várias vezes,ao perguntar aos agentes sobre o tema da integração, a resposta esteve relacionada com o

trabalho sem que sentissem a necessidade de explicitar o vínculo nos dois assuntos e sem

que considerassem pertinente aclarar o tipo de relação estabelecida nesse momento entre

eles.

Eu: No que diz respeito ao processo de integração dos colombianos, há problemasde...?

Agente de Posto Adminstrativo: Não, como todos os outros, eles também sedispõem a fazer qualquer trabalho, ficam muito preocupados em querer conseguiro refúgio no Brasil, e eles fazem o trabalho... Segundo qual é a formação dele, a

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habilidade dele, a gente tenta encaixar ele. Mas, não podendo, eles aceitam otrabalho que aparecer. [...] Eles se sujeitam, se sujeitam, não, mas eles aceitamqualquer tipo de trabalho. O maior número de empregos que a gente tem aqui é deauxiliar de empresa, construção civil, eles não têm problema, eles aceitam, dianteda dificuldade deles para se integrar, eles aceitam. As coisas vão melhorando

conforme eles vão se integrando [...]. (Agente da Cáritas)

O trabalho, como forma de integração, foi quase sempre referido à necessidade de que os

sujeitos refugiados tornaram-se rapidamente autossuficientes para assim exorcizar os

fantasmas da dependência e do assistencialismo. Com maior nitidez, inclusive que, no

refúgio espontâneo, o assunto da capacidade laboral dos refugiados apareceu no programa

de Reassentamento Solidário. Os agentes que integram a Missão de Seleção e, em geral, os

agentes da tríade foram explícitos em que o perfil do reassentado ideal é o de um sujeito com

idade e capacidade laboral, viajando em companhia do seu núcleo familiar com filhospequenos. Esses últimos, preferentemente, em idade escolar para não obstaculizar as

possibilidades de empregar-se de seus pães.

Além da reiterada necessidade de independência financeira, as referências ao trabalho como

base da integração permitem identificar outros aspectos que lhe são associados. Em primeiro

lugar, permite notar que esses agentes consideram que o lugar genérico da integração para

os refugiados e aquele dos setores laborais e sociais mais baixos da economia nacional, comseu consequente identificação sociocultural como setores populares. Assim, apesar dos

grandes esforços para distinguir refugiados de migrantes econômicos, para ambos os grupos,

são destinados os trabalhos menos remunerados e, em especial, aqueles que não representem

um potencial perigo para os setores e grêmios profissionais que desfrutam de prestígio social

e econômico no nível nacional.

A questão do estudo é uma coisa que para nós dificulta porque a gente não manda

nas corporações: engenheiro é engenheiro, médico é médico e quanto menos vierde fora, para eles, muito melhor, e não existe essa solidariedade de quererreconhecer o título. E o cara de mão de obra, assim da área de serviço, se dá muitobem. Porque são muito trabalhadores, muito trabalhadores, colombianos nasempresas se destacam, causam até um ciúme positivo dos colegas brasileiros queestão aqui há 15 anos fazendo a mesma coisa, muito acomodados. Já nós tivemosmais de um caso em que nós tivemos que intervir frente à empresa e até pedir ao

 próprio refugiado para baixar a bola, ir devagar: “tu é bom, mas dá um tempo, as pessoas vão te massacrar aqui”. Então, ele teve que dar uma abaixada no ritmodele para não... Porque a empresa estava tendo problema, era grande e nuncatinham tido esse problema, uma empresa grande, uma multinacional e falaram:“senhora, nós nunca tivemos esse problema de alguém trabalhar mais e os outrosnão gostarem”. Então, o rapaz teve que fazer isso, mas mesmo assim acho que

passou dois anos ali, e hoje ele é empresário, ele abriu seu próprio negócio, ele éimportador e exportador. Então, ele agora está muito bem, mas cara é umaprendizado para todo mundo. Então, é assim, são muito trabalhadores, eles têm

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muitas ganas de trabalhar e então se dão muito bem. (Coordenadora de ONG dereassentamento)

O segundo aspecto que expõe essa reiterada referência ao poder integrador do trabalho é a

ideia de que ele é em si mesmo uma atividade dignificante e com um grande poder

 pedagógico e moralizante. Entrar na “vida formal” da sociedade brasileira necessitaria do

aperfeiçoamento de determinadas características que somente se adquiririam por meio de

atividades e relações muito específicas com os outros, com o dinheiro, com uma determinada

racionalidade de gestão de seus próprios recursos e tempos, etc. Os agentes da tríade

costumam dizer que os refugiados desfrutam dos “mesmos direitos que têm os nacionais”,

mas esquecem de complementar que são os mesmos direitos dos nacionais pobres e que se

referem basicamente (e de forma ideal) aos direitos laborais e aos serviços gratuitos de saúde

e educação. Outras formas de cidadania, não subsumidas no âmbito produtivo e financeiro,

nem sequer aparecem nas narrativas dos agentes.

As estratégias para a integração privilegiam então a educação básica e o emprego como

promotores de uma cidadania muito específica que tem também espaços bem delimitados

para seu exercício. Não apareceu, nos discursos dos agentes, por exemplo, uma preocupação

por desenvolver práticas pedagógicas para fomentar a participação política ou oconhecimento dos direitos diferenciados das populações refugiadas. Porém, apareceram

estratégias para formar hábitos financeiros nos sujeitos. Para as famílias de reassentados que

viveram muito tempo assistidas e para aquelas que nunca tiveram contato com o sistema

financeiro, foi criado um programa de microcrédito que oferecia o financiamento de

pequenas empresas familiares149.

Segundo me contou uma ex-funcionária do programa, para os primeiros grupos dereassentados colombianos, o dinheiro foi entregue com juros mínimos e, muitas vezes,

quando comprovado que as pessoas “cumpriam com as obrigações de pagamento”, boa parte

da dívida era perdoada. Tudo isso sem que os refugiados soubessem do funcionamento real

149 Algumas das primeiras famílias que chagaram ao Brasil pelo programa de reassentamento disseram terrecebido crédito, mas os agentes que atualmente trabalham nas ONGs encarregadas do programa, não sereferiram ao assunto. Porém, várias das famílias recentemente chegadas me contaram que, no Equador, quandoentrevistadas pela “missão de seleção”, lhes foi oferecida a possibilidade de um crédito com baixos juros, para

que eles pudessem montar pequenos empreendimentos familiares. Algumas famílias estavam chateadas nomomento de nossas entrevistas, porque não tinham recebido o crédito oferecido e algumas afirmaram que eramentira que o programa continuasse prestando esse tipo de benefícios.

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do sistema de crédito, para que o exercício funcionasse como uma encenação da “vida

 formal” que lhes fosse educando para o futuro:

Ex-agente de reassentamento: [um refugiado] pegou empréstimo no Banco deRio Grande do Sul, era um acordo com o Acnur e com um banco de créditosolidário que era para esses aportes de microcrédito. Eu acho que se chamaCredisol. Isso era, os refugiados não sabiam, mas o Acnur fazia um aporte proCredisol e, com os projetos, ele apoiava algumas iniciativas. Mas era um aportedo Acnur, mas quem aparecia era o Credisol, os refugiados não sabiam que odinheiro era do Acnur, eles sabian que era do banco.

Eu: E por que isso?

Ex-agente de reassentamento: Porque para ter uma responsabilidade com ocrédito porque alguns empreendimentos que foram diretamente feitos com oAcnur nunca foram devolvidos, então aqui era nada de juros, muito, muito pouco,

eram juros solidários mesmo, assim de verdade, eram de 2% no contrato inteiro decinco anos. Era uma coisa assim bem simbólica, mas que tinha um compromissoque gerava boleto, que tinha que pagar no banco, saía um contrato e tudo mais.Porque era um jeito também que o Acnur enxergava de educá-los para o créditoporque, no Brasil, é muito complicado abrir empresa, trabalhar com crédito, abrirconta em banco. Que era muito diferente do que eles tinham vivido na Colômbiae principalmente vivido nos últimos anos no Equador onde a informalidade émuito maior.

Esse sistema de crédito era oferecido preferencialmente a famílias que, por meio da escola

dos filhos, os vínculos com organizações sociais e igrejas de bairro e dos compromissos

laborais dos adultos, estiveram sedentarizados e cada vez com mais redes geradoras deobrigações sociais, entre elas a do pagamento das dívidas. Dessa maneira, dito sistema de

crédito apareceu como uma dupla função. Em primeiro lugar, esperava-se que o crédito

oferecido pudesse ajudar efetivamente no desenvolvimento de pequenos negócios que

oferecessem ingressos estáveis à família e, portanto, independência financeira uma vez que

finalizasse a assistência financeira do programa. Em segundo lugar, esperava-se que

funcionasse como uma pedagogia de educação no sistema financeiro e creditício e como

uma forma para criar alguns hábitos nos refugiados. Esse sistema como pedagogia daintegração é ilustrativo da constante articulação entre práticas cotidianas, preocupações

populacionais e valores morais nos processos de reassentamento.

Tal pedagogia de crédito é assim destinada aos chamados “núcleos familiares”. Presume-se

que as pessoas que integram cada família vão estabelecendo determinado tipo de relações na

medida em que passa o tempo e que essas relações  – baseadas em um esquema bastante

convencional de gênero e geração – seriam estabelecidas de maneira diferencial por cada umde seus membros nos espaços sociais destinados a cada um deles (trabalho, escola, bairro,

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igreja, casa, etc.). Elementos esses, que interconectados, ajudariam no processo grupal de

adaptação ao novo lugar de vida. Nesse caso, a família nuclear, como configuração relacional

específica, aparece como o lócus privilegiado para o desenvolvimento de algumas

pedagogias da integração.

Ao mesmo tempo, conforme Hamid (2012), no processo de formação e de educação dos

refugiados, é utilizado o que a autora descreve como uma sorte de pedagogia familiar que

compreende o ensino do crédito, recompensas pelos bons comportamentos, firmeza

acompanhada da proteção dos mais vulneráveis, etc., como preparando os filhos para a vida

em um formato específico de sociedade (HAMID, 2012, p. 195). Nesse modelo familiar para

a educação, os funcionários e as funcionárias que trabalham diretamente com os sujeitosinteragem de maneira diferenciada com eles. Uma das coordenadoras de uma ONG de

reassentamento dizia que, às vezes, tem de ser mãe, às vezes irmã, e às vezes amiga dos

refugiados, dependendo do momento da relação e, geralmente, da negociação que esteja em

 jogo com as pessoas.

[...] Nós não podemos entrar no problema deles, nós temos que manter-nos forapara poder ajudar, um pouco saber qual o limite que a gente estabelece. Se seramiga, ser mãe, irmã e ser quem dá o dinheiro. Porque nós somos quem passamos

o dinheiro para eles, mas também somos quem cobra deles; então, nós somos mãe,madrasta, irmã, todos os papéis possíveis aqui a gente cumpre e assim vai duranteanos para acompanhar essa pessoa até ela estar bem ali [...]. (Coordenadora deONG de reassentamento)

A mesma funcionária apontava que os homens das famílias reassentadas vivem de maneira

mais intensa a crise de perder seu lugar de provedores, querendo conseguir, “com a

reclamação constante”, o dinheiro que não conseguem oferecer por meio de sua força de

trabalho. Essa situação fazia necessário, segundo ela, ter mais firmeza no processo de

assistência para não criar pessoas dependentes e ir educando-as para a autonomia. Segundo

essa leitura, seria mais fácil o trato com as mulheres que, afinal, já estariam acostumadas a

ocupar uma posição subordinada e receptiva em matéria financeira e educativa. Não é em

vão que são, geralmente, as mulheres e as crianças as pessoas que os agentes apresentam em

cada família como os sujeitos mais integrados e integráveis no processo de reassentamento,

sempre que contidas nesse marco da família nuclear.

O assunto do poder integrador do trabalho também apareceu varias vezes se referindo aos“colombianos” com a ideia de que esse grupo de refugiados se caracterizaria por ser muito

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trabalhador. Porém, essa fórmula tão reiterada durante a minha pesquisa de campo não

proveio somente dos agentes do refúgio mas também de vários solicitantes ou refugiados

colombianos. Eles a mencionavam como uma forma de exaltar simultaneamente seu

processo de vida em território brasileiro e uma espécie de característica colombiana que

sentiam como motivo de orgulho nacional. Alguns solicitantes chegaram inclusive a se

comparar com outros grupos nacionais (continentais, pela generalização) com os quais

conviviam nos albergues, utilizando formas que aludiam a seu próprio comportamento como

meritório e ao dos “africanos” como preguiçoso.

Algumas vezes, a fórmula adquiriu a expressão ainda mais abertamente racista ao se referir

a outros grupos de migrantes, com os quais compartilhavam espaços administrativos e demoradia, como “os negros zânganos”, enquanto eles próprios se exaltavam como

trabalhadores. Tudo isso, geralmente, sem mencionar nem a cor da pele, nem o

pertencimento étnico-racial, próprios ou genéricos dos “colombianos”, como se não

existissem tais marcadores. A exceção a esse uso de uma denominação antagônica entre

colombianos e negros ou colombianos e africanos foi quando os próprios solicitantes

colombianos se reconheceram como negros ou como afrocolombianos.

Voltarei sobre essas categorias mais adiante. Por enquanto, gostaria de salientar que esse

discurso genérico dos colombianos transformou-se em um discurso particular do “eu”

quando as pessoas entrevistadas quiseram explicar e singularizar essa suposta

disponibilidade para qualquer trabalho. Reassentados, solicitantes e refugiados espontâneos

contaram, com indignação, as propostas que receberam para se empregar em cooperativas

de reciclagem de resíduos sólidos ou em trabalhos com precárias condições laborais, tipos

de empregos que foram as opções comumente oferecidas pelas ONGs. Tendo ou não aceitoesses empregos, a ideia de que eles tiveram de fazer grandes sacrifícios esteve muito presente

e serviu para engrandecer sua história pessoal e a fazer mais meritória. É precisamente essa

valoração do mérito, da disposição para “salir adelante” e o desejo de integração a que

muitos sujeitos compartilham com os agentes do refúgio e a que permite criar ideias de

proximidade de valores, cercania cultural e facilidade de acomodação às “práticas

nacionalizantes” (SEYFERTH, 1995, 2000) que estão na base da noção de integração de

refugiados.

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9.2. Como quais brasileiros?

Uma visão dissidente dessas leituras comuns sobre o mérito e o esforço apareceu nas

conversas com Álvaro e Edna, um casal inter-racial que chegou como solicitante de refúgio

 junto com a irmã de Edna, seus filhos e seus sobrinhos. Para Edna, a necessidade de trabalhar

não tinha nada a ver com mostrar suas qualidades e estabelecer um lugar moral a partir de

sua capacidade de sacrifício. Explicou-me que, se eles aceitaram, no começo, empregos, que

sabiam que eram mal remunerados, foi para tratar de sair de uma situação de extrema

precariedade. Mas, com clareza, se manifestou criticamente sobre a ideia de que seria

necessário aguentar e tolerar maus tratos e más condições laborais em nome das dificuldades.

Essa visão dissidente da norma do sacrifício engendrou juízos contra eles no albergue

católico onde se hospedaram ao chegar. Segundo me contou Edna, foram criticados tanto

pelas funcionárias do lugar quanto por outros dos hóspedes do albergue. Em um diálogo

conjunto que tivemos, eles apontaram, com nitidez, as conexões que viam entre os espaços

da migração e as formas de racismos históricos que se projetam tanto para os nacionais

quanto para os estrangeiros:

Álvaro: Ah! pero yo conseguí un trabajo antes del que tengo ahora [tono de burla].Fue un día de hambre y no me pagaron.

Edna: No sabes cómo a mí me dolió que él se quedara todo el día aguantandohambre, todo el día como hasta las nueve de la noche. ¡Y trabajando y no lepagaron!

Álvaro: Ni me pagaron, ni me quiso llevar a la Casa del Migrante, sino que medejó por ahí y me tocó llegar andando.

Yo: ¿Quién hizo eso?

Álvaro: Un brasilero, yo no sé.

Edna: Es que a la Casa del Migrante van muchas personas por esclavos, van a

buscar migrantes para que les sirvan de esclavos.

Álvaro: Yo llegué a las 8 de la noche a La Casa del Migrante, llorando y entoncesallá me dieron de la comida que les había quedado. Y yo que me había ido contentoporque de pronto me iban a dar alguito para poder comprarle algo bueno de comera Edna que estaba embarazada.

Edna: Es que además allá en la Casa del Migrante les daba rabia porque nosotroscomprábamos un pollo, porque yo decía: No señor, yo ya estoy trabajando comopara seguir comiendo arroz crudo. Y entonces ellas nos miraban como así raro.

Décadas atrás, o albergue – lugar conhecido na cidade pela tríade do refúgio, pela sociedade

civil ampla e pelas redes que empregam migrantes  – era uma casa para receber migrantes

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nacionais, majoritariamente provenientes do Nordeste, que viajavam para o Sul do país em

procura de oportunidades laborais. Contudo, recentemente, o albergue focou nas migrações

internacionais, mudando, nos últimos anos, as proporções de hóspedes segundo a

procedência, passando de uma maioria latino-americana para uma maioria angolana,

congolesa e mais recentemente haitiana. Não é de estranhar que Edna junte suas experiências

prévias de experimentar o racismo com as características de sua estadia no albergue para

poder afirmar que esse lugar é um depósito de escravos.

Os eventos que Edna descreveu ajudam a entender melhor a proposta de Butler e Spivak

(2007) que foi exposta na primeira parte da tese. Ou seja, o refúgio (e os refugiados) são

representados como desprovidos de ordem, como estando num estado metafísico deabandono caracterizado pela ausência de poder estatal. Porém, se oblitera com essa

representação o fato de que a existência do refúgio (e dos refugiados) implica a existência

de um conjunto de poderes que produzem e mantêm a situação de destituição (BUTLER;

SPIVAK, 2007, p. 8) e que, de fato, produzem e preparam determinados sujeitos para seu

despojo. As ordens e os poderes que cruzam os sujeitos, que os constroem e os diferenciam,

habilitando espaços e formas de estar no mundo para cada um, continuam estando presentes.

Esses são importantes mediadores das relações sociais e políticas que constituem o refúgio,inclusive quando os embandeirados das ações humanitárias tentam convencer de que sua

atuação é sobre uma humanidade genérica, despossuída de ordem e na margem do poder

ordenador da nação e do Estado.

Também Santiago, um solicitante afro-colombiano que conheci em São Paulo, identificou

essa presença ambígua de sua situação de ser solicitante e de ser um homem racializado 150.

Como solicitante de refúgio, quer dizer estrangeiro, supõe-se que ele é um anônimo, um“outro” diferente aos nacionais e, nessa medida, alguém que ainda não se conhece. Mas a

150 Da vastíssima literatura sobre a questão das raças e dos racismos, gostaria de tomar, de uma recente tese dedoutorado, algumas ideias que me permitirão acompanhar a descrição das experiências de discriminação (eoutro tipo de violências de ordem racista) das pessoas que conheci durante a pesquisa. Procuro aderir aqui àspropostas de Mazouz (2010), que sugere a categoria racialização para dar conta desse tipo de experiências. Aracialização não é um simples processo de categorização, mas uma categoria de poder racializante. Segundo aautora, essa categoria se referiria, ao mesmo tempo, a um processo que coloca os sujeitos em diferentes lugaresde alteridade e uma categoria analítica que permitiria pensar a discriminação e outras formas de violênciabaseadas em ideias de raça, sempre em termos de processo, de contexto e de produção de alteridades

(MAZOUZ, 2010, p. 13). Em outras palavras, a racialização como categoria analítica permitiria explicitar deque maneira a sociedade produz o racial, examinando os processos sociais que produzem relações de podersob uma modalidade racial (MAZOUZ, op. cit., p. 15).

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estadia legal no país, sem possibilidades de solicitar uma carteira de trabalho e sem dinheiro.

Além disso, Santiago viajou com pouca roupa e não veio preparado para a temporada

invernal que, durante esses dias atingiu a cidade, tendo de usar roupas doadas e nem sempre

correspondentes com seu estilo ou tamanho. Além disso, ele estava sofrendo de pele seca

por causa do clima, ele sentia aumentada sua incapacidade de reverter esteticamente os

estigmas que ele sabia que podiam afetá-lo e torná-lo mais vulnerável nesse contexto da

cidade que encontrou na sua chegada. As várias camadas de significação que foram se

superpondo em sua vida e o tecido particular dos múltiplos fios de relações e eventos que

marcaram sua entrada à sociedade nacional também são eloquentes a respeito dos lugares

possíveis, tanto sociais quanto geográficos, que lhe são destinados aos refugiados,

previamente produzidos como seres carentes e vulneráveis.

Se a ideia da integração é conseguir que os estrangeiros possam viver como os brasileiros,

as experiências e as reflexões de Edna e de Santiago permitem perguntar: como quais

brasileiros? Além disso, quais seriam os limites desse suposto pertencimento nacional. A

esse respeito, outra experiência – que citarei em extenso – ilustra também as negociações de

lugares, pertencimentos e alteridades que estão em jogo em cada experiência de êxodo, em

seu encontro com essas fronteiras internas da(s) sociedade(s) da integração.

Rocío: […] Yo estudio en un colegio de gente rica y siempre me sentía muy mal(ahora ya no) porque yo no era como ellos y yo no entendía por qué no podríaser… No entendía por qué no les podía pedir ayuda a ellos si ellos tenían plata.Porque mis papás me educaron así: no pida, sino que si le piden usted va a dar yeso. Y yo no entendía entonces por qué ellos no me podían ayudar, por qué ellosno podían ser mis amigos y desde siempre esa cosa muy materialista ¿no? ysiempre así, y era bullying y todas esas cosas.

Yo: pero ¿el bullying era porque tú eras colombiana o porque eras refugiada?

Rocío: porque yo era colombiana, porque yo era pobre, porque todo, por todo.Yo: ¿ellos saben que tú eres refugiada?

Rocío: si.

Yo: ¿y eso ha sido también un problema?

Rocío: Claro porque Ay! uno es refugiado y entonces piensan que uno es traficantede cocaína y que mata no sé cuántos en el monte y siempre así... “¿ah deColombia? Y cómo no saben nada de Colombia, como ellos no saben nada de lasituación, entonces piensan que uno está haciendo drama, haciéndose de pobrecito.Eso, y también mucha exclusión. Y yo al comienzo tampoco entendía porque no

sabía nada y uno les decía pero es que oiga que hay problemas y [ellos]: "nada quever, Ay! deje de ser, que usted era chiquita".

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Yo: ¿Tú has estado en ese colegio todo el tiempo?

Rocío: Si, si. Cuando llegué con 4 años estuve en ese colegio en otra unidad queera donde mi prima estudiaba, allá en la aldea de la sierra. Después estuve como 3años en un colegio público allá en la república [se refiere al barrio de SP] y ese sí 

era chévere.

Yo: ¿te gustaba más?

Rocío: Claro la gente era mucho más... pues había unos que eran bandidos de lacalle, así: se robaban los juguetes, los lápices. Pero era mucho más familiar, peroobviamente que no aprendí nada allá. No aprendí nada, nada, mi mamá me enseñóa leer, el resto era, nada. Ahí después entré al colegio, al de acá y ahí después yano me salí.

Yo: ¿cuál ha sido la época más difícil, cuando estabas pequeña o ahora que yaestás más grande?

Rocío: Es que son cosas diferentes, yo creo que cuando era pequeña yo no entendíay sufría y: "mami ¿por qué yo no puedo tener?". Y yo no entendía y yo vi que meestaba volviendo una persona igual a ellos, toda capitalista. Ahí hubo un momento,yo creo que fue hace unos dos años que yo dije, que yo vi que comenzaba comoque a matar partes de mi misma para ser igual a ellos. Y de verdad: un suicidiomental, una cosa así, a dejar de ser yo y a asumir... Yo dije, yo pensé: ¿a quiénestoy ayudando? No estoy haciendo esto por mí, sino por ellos. No es una cosa porel bien de la comunidad o algo así, no estoy haciendo eso por nadie. Estoy[haciéndolo] porque ellos creen que es así, entonces me voy a volver así también.Y desde ahí cambié totalmente asumí digamos la cosa de ser refugiada y ya no meimporta, me pongo la ropa que quiero, hago lo que quiero, pero obviamente esmuy difícil y la gente no entiende. Mi propia coordinadora me decía: ah, es queusted es una revoltada sin causa, no sé qué. Y eso me da mucha rabia, yo odio a

esa señora. Es que mi mamá le pidió descuento para la universidad […] y ella [ledijo]: "Ay, pero que su hija estudie aquí ya es un privilegio". Pero es por ley quelos hijos de los profesores tienen que estudiar en el colegio, eso es una ley, estánobligados, no es un privilegio. Y eso perdura para mi, ellos son preconceituosos

contra negros, contra indios, contra todo […]

Yo: ¿tú no quieres pedir la residencia?

Rocío: No, o bueno, residencia si pero yo no quiero ser brasilera. Yo sé que eso...yo tengo preconceito contra los burgueses, porque eso es... porque fue una cosacomo que de chiquita siempre me intentaron como que acabar, entonces yo tengomucho preconceito. Yo veo una persona que la identifico como burguesa, la gentecomo se visten así y tal y el pelo y yo ya me da, no rabia, sino que me da... ya

tengo el concepto de que esa persona es ignorante, de que no sabe nada de la vida,de que va a decir cosas idiotas porque es preconceituosa. Y yo sé que eso es malo,pero son costumbres desde chiquita y que necesito quitar.

Yo: pero tú crees que pedir la nacionalidad brasilera...

Rocío: Pues no sé, es que por exactamente eso, yo conozco brasileros súperchéveres y todo. Pero me da una cosa de como que ser brasilera. Y yo cuandopienso en brasileros pienso en gente egoísta, sucia, en el sentido de tener una almasucia, individualista, entonces no me... y yo digo: y mis papás siempre hablan tanbien de los colombianos. Que son mucho más, que les importa mucho más lacomunidad y a veces a mi me da mucha tristeza de no ser así. Porque yo realmentetengo unas cosas de brasilera, que a pesar de que tuviera mi familia aquí, pues

obviamente todos los días en el colegio, en la calle veía actitudes completamente

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diferentes a lo que ellos me decían. Entonces para mí… es algo que me da muchopesar.

Yo: ¿tú te sientes colombiana también?

Rocío: Si. Yo intento.

Yo: ¿y entonces lo más difícil para ti de haber llegado a Brasil ha sido esa relacióncon las personas del colegio?

Rocío: Si, era mucho  preconceito y ahora todavía es jartísimo y yo aguantarmetodavía todos los días esa gente diciendo que los negros tienen que morirse... esracismo, es horrible […] y siempre así, la gente a destruirte, a hacerte pensar queeres menos. Ay! que  favelada que no sé qué. Y yo: ¿cuál  favelada? y si fuera favelada ¿qué?

Para as autoridades do refúgio, a integração é um processo que paulatinamente vai

transformando os refugiados em nacionais, mas a experiência que narra Rocío vai à

contramão. Para ela, a luta para encontrar um lugar próprio dentro da sociedade brasileira  – 

ou dentro do fragmento de sociedade  – na qual lhe correspondeu se integrar, é um esforço

continuo de não tornar-se como esses nacionais. A obrigação de se integrar exitosamente no

espaço que a ela lhe correspondeu era uma obrigação que Rocío sentia como sendo “un

suicidio mental”, como “estar matando partes de mi misma” para ser como aqueles. Na

negociação consigo mesma e com esses “outros” referenciais, mobiliza a carga simbólica

associada a sua nacionalidade de origem e a seu pertencimento de classe para, diferenciando-

se de “esos burgueses”, sentir -se mais tranquila sabendo que é um pouco brasileira, que tenta

ser um pouco colombiana e que não sabe o que será depois.

Por seu posicionamento crítico contra as posturas políticas desse grupo de referência  – a

quem Rocío identifica como burgueses e racistas  – , essa é uma identidade que ela recusa

adotar. Porém, esse dilema do pertencimento diferenciado não foi exclusivamente narrado

por ela. Outras histórias se referiram a essa sensação de querer um lugar social no novoambiente, mas de não se entregar a algumas das formas oferecidas por esses locais. Com

princípios menos louváveis que a luta antirracismo de Rocío, também aludiram a esforços

realizados para se diferenciar dos brasileiros do segmento de sociedade em que lhes

corresponderia se integrar, segundo as autoridades de refúgio e segundo as condições

materiais e simbólicas disponíveis. Por exemplo, José Alberto reiterava que ele dava

“esmola” aos brasileiros da rua como uma forma de lhe agradecer a “la sociedad brasilera

 por haberme recebido”, mas concomitantemente tornava-se uma forma de marcar umadiferença com os moradores de rua, a quem os refugiados, que chegam em uma situação

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econômica precária, terminavam por se aproximar, já que os albergues, comedores

comunitários, os bairros e as ruas são os mesmos para uns e para outros.

Outras tentativas de diferenciação foram a criação das já mencionadas categorias de

classificação entre migrantes. Rótulos como “africanos”, “palestinos”, “latinos”,

“colombianos” ou “haitianos” foram, muitas vezes, compartilhados com os funcionários da

rede de atendimento a refugiados e migrantes. Frequentemente a origem nacional, e por

vezes continental, foi utilizada para se referir às pessoas, especialmente quando havia um

grupo, oriundo do mesmo país, solicitando serviços da rede de atendimento. Essa forma de

nomeação se relaciona com o fato de que o atendimento aos migrantes e refugiados seja

baseado na ordem nacional das coisas. Ou seja, o tratamento dispensado aos nacionais deum determinado país depende muito da relação que o governo brasileiro tiver com o outro

governo ou das decisões e posturas diplomáticas adotadas em função de sua política exterior.

Desse modo, é muito frequente que haja distinções no tipo de vistos outorgados,

financiamentos diferenciados e origens distintas dos recursos para apoiar aos migrantes ou

solicitantes, necessidade de maior ou menor atenção sobre um grupo a depender do impacto

midiático e diplomático de seu tratamento, etc.

Essas diferenças, que parecem ser simplesmente indicadores de origem e categorias

administrativas, costumam se transformar rapidamente em categorias sociais e morais, nos

espaços de gestão de refugiados e migrantes. Alguns dos solicitantes colombianos que

entrevistei sentiram a necessidade de se diferenciar não apenas dos brasileiros com

identidades deterioradas mas também desses outros estrangeiros que, muitas vezes, estavam

em uma situação de maior alteridade e desigualdade. Alteridade que os solicitantes

colombianos mediram não só em relação aos agentes de refúgio ou à sociedade de acolhidacomo também com relação a si mesmos. Dessa forma, muitas vezes, esse movimento os

aproximou mais dos administradores do que dos “africanos” ou “haitianos”, voltando a se

 juntar discursivamente com esses últimos somente quando enfatizavam sua situação de

precariedades compartilhadas ou no momento de reclamar pelos serviços e o atendimento

recebido.

Apesar dessas experiências das pessoas que devem negociar constantemente um lugar social

por meio da identificação, atualização e criação de fronteiras internas da sociedade, esses

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limites poucas vezes apareceram explicitamente no discurso dos agentes da tríade. Ao

contrário, como visto, a maioria deles aludiram continuamente à sociedade brasileira como

um todo homogêneo, miscigenado e acolhedor. Aliás, essa sociedade seria oriunda da

migração, razão pela qual teria uma disposição histórica para a recepção e a integração.

Avôs e patriarcas migrantes foram evocados amiúde pelos agentes do refúgio  – tanto os da

tríade quanto os da sociedade civil ampliada – para explicar o ânimo respeitoso de “todas as

diferenças” que caracterizariam a nação. Essa conformação, segundo os agentes, permitiria

que os refugiados não fossem discriminados em função da cor da pele, do gênero, da

orientação sexual, da religião ou do pensamento político, como o ilustram alguns fragmentos

a seguir (e outros que foram analisados na primeira parte da tese) em que inclusive sãopositivadas experiências que bem poderiam ser lidas como experiências discriminatórias.

Agente de integração local 1: [...] E aí também porque, como as nossascomunidades do interior, que são comunidades muito acolhedoras, e aqui porenquanto o diferente não é motivo de discriminação ou de xenofobia. O diferenteé acolhido como algo a ser... até com curiosidade. Então, as pessoas não estãosendo discriminadas porque falam espanhol ou porque são colombianas ou seja láo que for. Pelo contrário, elas são muito bem acolhidas, encaminhadas; as criançasna escola são motivo de atenção de tudo mundo, as outras crianças vêm, queremsaber que é que faz, que é que não faz. Então, é muito positivo.

Eu: E no caso das cidades pequenas que vocês estava falando não tem tidodiscriminação?

Agente de integração local 1: Não, porque os alemães adoram um garotinho bembronzeado, bem bronzeado, bem moreno, pele de índio e tal.

Agente de integração local 2: Mas não, o grupo de afros é pequeno, até porque amaioria não é afro que vem para cá, chegam alguns, mas não é a maioria.

Agente de integração local 1: O que acontece é que essas famílias são maisnumerosas, eles eram seis ou sete, pessoas com muitos filhos e tal. E com umadessas famílias foi feito o  fast track, que é quando o Conare faz reunião extra e

toma a decisão em 72 horas ou uma coisa assim. Então, veio para nós umainformação, um perfil assim: olha, são assim ou assado, nós recebemos, demos aresposta positiva e aí, em alguns dias, as pessoas chegaram. Só que no perfil nãoveio foto, não veio nada. E nós preparamos toda a acolhida para essa família numacidade absolutamente alemã, num bairro absolutamente alemão e essa família eraafro, né? Enquanto nós recebemos as pessoas no aeroporto, a gente não sabia queeles eram afros, mas também isso não foi motivo para nada, pelo contrário, né?Eles meio que acharam: “como que somos só nós que não somos brancos aqui” Eeu disse é. Mas foram bem recebidos, lá na igreja deles principalmente, porqueeles são evangélicos, e lá na igreja eles foram super bem recebidos. Lá na escola(porque eram três meninas muito bonitas) fizeram o maior sucesso, tanto que eraum desfile de rapazes, de muchachos, querendo namorar e o pai desesperado: “Queé que agora eu faço?”. Então é assim, eles são muito bem acolhidos em todo

sentido: social, religioso, de trabalho também. Essa família terminou voltando, foiembora porque deixou um filho lá, um dos filhos estava desaparecido lá e a tia queia cuidar do assunto lá apareceu com a criança, então eles estavam muito... e foram

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embora. Mas eles não tiveram problema nenhum, aqui que é uma cidade superalemã. Então, não temos assim histórico de uma discriminação por raça ou porsexo, ou por colombiano, ou por negro.

Poucas vezes, só alguns agentes de refúgio reconheceram que poderiam se apresentardificuldades no processo da integração, derivadas de possíveis discriminações ou

preconceitos. Contudo, esse reconhecimento não confrontou o relato da sociedade brasileira

como sempre receptiva aos estrangeiros e historicamente acolhedora. Para citar um exemplo

só em que essa contradição apareceu  – entre os vários eventos que acompanhe durante a

pesquisa – , gostaria de rememorar uma das jornadas de um ciclo de palestras organizado por

uma universidade em parceria com a prefeitura de São Paulo. Muitos dos convidados e

organizadores foram agentes que trabalham em diferentes setores da chamada “sociedadecivil” (incluindo a universidade) em prol da causa migrante; alguns deles reputados por 

serem militantes críticos e ativos em favor dos direitos desses grupos.

Nessa ocasião, todos os convidados evocaram seu próprio passado migrante (ascendentes

europeus em todos os casos) e fizeram um percurso pela história da nação brasileira nos

momentos de recepção de fluxos migratórios importantes. O percurso incluiu japoneses,

alemães, italianos, portugueses, argentinos, uruguaios, angolanos e bolivianos até chegar aos

haitianos, que todos localizaram como a migração mais recente. Também houve, entre os

palestrantes, um acordo sobre a desdenhável criminalização da migração que agravada pela

crise europeia, estaria fazendo com que o velho continente se mostrasse abertamente racista

e xenófobo.

Foi preciso esperar até a intervenção da plateia para começar a escutar outros aspectos  – 

claramente menos positivos  – dessa sociedade à que estavam se referindo os palestrantes.

Isso aconteceu quando uma estudante afro-brasileira criticou a visão positivada da migração

e, lembrando o recente assassinato de Zulmira152, interrogou os palestrantes sobre o caráter

racista da sociedade brasileira. Nesse momento, também de comum acordo e se

152 Zulmira de Souza Borges Cardoso é uma estudante angolana que foi assassinada no dia 23 de maio de 2012,na cidade de São Paulo, depois que elas e o grupo de amigos que lhe acompanhava foram agredidos cominsultos racistas. O incidente, em que foram também feridos três dos acompanhantes de Zulmira, provocouprotestos por parte da comunidade angolana, particularmente dos estudantes organizados que enfatizavam aexistência do racismo e da discriminação contra eles. A partir do assassinato de Zulmira, também se

mobilizaram vários setores da sociedade civil brasileira que apoiaram as denúncias realizadas pelos estudantesangolanos e exigiram um pronunciamento por parte das autoridades locais de São Paulo e do governo angolano,que devia, segundo eles, cobrar explicações e ações do governo brasileiro.

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complementando os uns aos outros, vários aspectos negativos foram elencados. Em minhas

notas de campo, registrei alguns desses aspectos listados que apresento a continuação sem

identificar o expositor de cada um:

Es necesario aprender de los errores europeos y no cerrarse a la migración, haydiferentes niveles de acogida, sabemos que es un mito que en Brasil no existaprejuicio, ¿de qué habría que proteger a la nación?, en la experiencia visual yacomienza la discriminación, la discriminación no tiene que ser ostentosa ellatambién pasa por pequeñas cosas como no validar los diplomas de los extranjeros,no hay ningún país que no sea racista eso es una mistificación.

Essa forma um pouco enlouquecedora de afirmar uma coisa e seu contrário sem que apareça

a necessidade de resolver a contradição estiveram presentes em muitos outros dos espaços

institucionais do refúgio que frequentei. Repentinamente, chegou-se a reconhecer ou aenunciar a existência de discriminações, preconceitos e atos racistas de um modo geral ou

afetando particularmente aos refugiados. Contudo, essas práticas apareceram como

espectros que não desencaixaram nem desestabilizaram esse discurso que fala de uma nação

idealizada e das políticas de acolhida para refugiados como sendo ações exemplares. Como

um último exemplo, considero ilustrativo comparar dois fragmentos de uma mesma

entrevista com a mesma funcionária, na qual aconteceu esse movimento contraditório

descrito.

Fragmento 1[...] Pelo Brasil ser um país acolhedor, em relação as suas diversidades, de terquestões de homossexuais, o país o aceita. Então eles entendem que o Brasil é umpaís acolhedor, aceita bem as diferenças e, por isso, pelo geral, eles escolhem oBrasil [...] O Brasil acolhe bem aos refugiados, aos estrangeiros, aqui não temproblema de diversidade, de ter racismo, não é? Até tem, mas não é como nospaíses de, de... então por isso eles escolhem o Brasil, por ser acolhedor.

Fragmento 2[...] também alguns alunos que se interessam fazem pesquisas para o juízo. Porquê? As nossas advogadas também fazem pesquisa, só que é assim, elas têm todoum trabalho de fazer essas pesquisas, e isso auxilia bastante. De repente, elas atéfalam para a professora: “Olha estou precisando que você pesquise para mim talregião do Congo que tá acontecendo tal situação”. E os alunos fazem. Então issonos ajuda bastante, envolve a academia, os alunos também abrem um pouco:“Poxa, refúgio, nossa, é isso o que acontece, poxa, é uma população que precisade apoio, nossa é tão complexo assim, pô, tem uma lei, pô, o governo faz isso”.Quando as pessoas chegam, o Brasil não é um país que acolhe, que têm recebidomuitos refugiados: 4500, não chegam nem a 5000 no Brasil, é pouco. Mas sãopessoas que estão vindo e que a gente tem que acolher. E pelo menos para cadaum da sua família desses alunos que viram só na televisão: “Olha, um bombardeioaí”, ai então: “Olha você sabia que essas pessoas podem vir para cá, tem umainstituição que faz esse trabalho”. “Nossa, é? Ah! Então eles não estão fugindo,não estavam matando?” Não, eles estavam fugindo para não ser mortos. Então,

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minimamente, a coisa já começa a abrir um pouquinho, e as pessoas começam aperder um pouco o preconceito, então esse é algo de nosso trabalho. [grifos meus]

Se, em algum momento, os agentes do universo institucional do refúgio chegaram a

reconhecer discriminações, preconceitos ou algum tipo de tratamento desfavorável contra os

refugiados, os responsáveis dessas ações sempre foram apontados do lado de fora dessa rede

institucional de atendimento. A apresentação da rede ampla de recepção de refugiados como

um espaço livre de racismo e discriminações baseou-se na ideia da igualdade de tratamento

para todos os refugiados. O atendimento caso a caso, em que as profissionais buscavam

identificar as situações de maior vulnerabilidade para a entrega de benefícios materiais,

também foi descrito como tendentes a melhorar as condições de quem estivesse em uma

situação de maior desigualdade econômica e social.

Outros critérios  –  tanto técnicos como morais  –  entraram em jogo nas relações entre

funcionárias e refugiados. O Acnur, como premissa técnica, recomenda entregar apoios

financeiros somente a aqueles sujeitos que tenham chance de serem aceitos como refugiados.

Em muitos casos, essa orientação significou que alguns solicitantes, de quem as advogadas

não pensavam que correspondessem com os critérios para o refúgio, não receberam apoios

financeiros apesar de se encontrar em uma situação de maior dificuldade econômica queoutros solicitantes para quem foram aprovados os apoios. A metodologia de ação caso a caso

também criou descontentamentos nas pessoas administradas quem não tinham claro qual era

o critério da entrega diferenciada de bens ou da celeridade de alguns processos em

detrimento dos outros. Isso não apenas nos escritórios da Cáritas, mas também em albergues

 – em especial em A Casa do Migrante – onde a distribuição de vagas era sempre disputada

e motivo de inconformidade por ser o albergue mais apreciado em segurança, higiene e

tratamento dispensado, quando comparado com os albergues da prefeitura.

[En el albergue] Estuvimos dos meses y no sé por qué nos dijeron que nosfuéramos, cuando hay gente que lleva un año y no tienen hijos, y no tienen menoresde edad. A nosotros nos tocaba irnos. Según el señor Emanuel [funcionario delalbergue] las personas que moran allí tienen tres meses, pero hay gente que llevaahí un año y hay gente que no trabaja. Y hay gente que no merece estar ahí, no lodigo porque yo haya salido, hay gente que no merece estar ahí. Pero el padre nosha dado cosas tan bonitas que es darme un techo, darme comida, alimentación,sentirme bien con mi familia; que yo no soy capaz ni de reprocharle a xxxxxxxporque nos dijo que teníamos que desocupar. Alguien me dijo: "A ustedes no lospueden sacar, primero tienen menores de edad, segundo son una familia, tercerotodos están trabajando". Pero prefieren tener vagos, prefieren tener viciosos.Porque yo sé quien mete droga ahí, quien mete vicio y quien roba, porque robantambién, porque a mí me robaron mis zapatillas, a mi mujer le robaron otro par de

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zapatillas y nadie me solucionó nada. Pero yo no puedo hacer nada porque es máslo que me ha dado el padre que lo que me han quitado. Y nos sacaron sacados:"Tienen plazo hasta el 15 para que se vayan". Ahí me fui para Cáritas y les dije¿Qué hago? Necesito que me manden para otra parte porque somos 5, somos 6.Cáritas me dijo, bueno Cáritas no sino Amanda [asistente social] me dijo que si

nosotros alugavamos (sic) un lugar que Cáritas nos podía de pronto ayudar con undinero, nos dijo así y de ahí ella no ha vuelto a hablar con nosotros. ¿Por qué? Puesporque como que la reprimieron, la regañaron y no la he vuelto a ver. Una negritahaitiana me dijo: “Yo llevo 6 meses y Cáritas me da a mi 900 reales cada mes ¿Por qué a ella le dan cada mes? Otra persona me dijo: A mí me dan 1.000 reales.Entonces eso me motivó a ir a pedir allá, yo no sabía. Fui a hablar con Marcela[assistente social] y me dijo: "Vamos a ver, vamos a llevar eso a coordinación aver si le aprueban" Y yo le dije: ¿y por qué a la haitiana si le ayudan? (Solicitantede refúgio)153

Se essa disparidade engendrou ressentimento entre alguns solicitantes, para outros a moléstia

foi paradoxalmente a igualdade com a que se sentiram tratados. Esse tratamentoindiferenciado resultava contrário às suas próprias intenções de distinção, que já foram

referidos.

[…] También lo que pasa es que la Cáritas está acostumbrada a tratar con africanosy quieren venir a tratarlo a uno igual. Los africanos hablan como peleando y poreso a ellos los tratan muy duro y ya varias veces ha habido incidentes de fuerzacon ellos. Yo me acuerdo de todas las veces que me tocó ir a esperar allá y cómome trataron y me da mucha rabia. Yo siempre fui muy educada como para que mevinieran a tratar de esa manera. (Entrevista con refugiada)

Muitos dos solicitantes colombianos se encontravam em meio a uma contradição

desencadeada por sua situação de estrangeiros, pois as condições do êxodo os equipararam

a grupos nacionais, raciais e sociais ao respeito dos quais eles tinham construído noções de

distância e alteridade. Concomitantemente, no mundo institucional encarregado de sua

integração, defende-se e promove-se um discurso de igualdade genérica como um valor não

apenas próprio da nação, mas exigido daqueles que desejam integrar. Não foi raro então

escutar declarações que afirmavam que a vida no Brasil lhes tinha ensinado o caráter

democrático e inter-racial para o estabelecimento de relações, ao mesmo tempo que antigos

e novos preconceitos, classismos e racismos desbordavam a tentativa de correção política

com a que se ecoavam esses discursos.

[…] lo del albergue fue bueno porque aprendí convivencia, a respetar a losnegritos, uno con esa rabia, pero uno tiene que ponerse a que uno es igual queellos: emigrante. Seas negro, seas blanco, seas amarillo, todos somos lo mismo:estamos de caridad. No jodas a los demás, no molestes a los demás, no te metas

153 Com contadas exceções, doravante não identificarei as pessoas citadas nem sequer com os nomes fictíciosusados ao longo do texto, com o intuito de não pessoalizar as referências com expressões que possam serofensivas para outros dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

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con los demás, respeta. A mí a veces me provocaba coger a un negrito, cogerlo delcuello y le decía ¡respeta!: "Você respeta y yo respeto. Si no me respeta le digo aEmanuel o le digo al Padre”. Pero ¿qué pasa?: Ahora yo voy y mira la alegríacuando yo voy: [me dicen] "¿Qué hubo Colombia?" Todos los saludos para mí.Pensar que una vez los miraba yo de otra manera, ahora los miro como si fueran

mis propios ojos. No importa la nacionalidad, somos emigrantes, ellos tienenproblemas, yo también tengo problemas. Entonces así como yo los miraba a ellos,como ellos me miraban, yo no quiero que me miren en Cáritas. Porque en Cáritaslo miran a uno todos por igual, ovejas, rebaños, háganse para allá, lo tratan feo auno. ¿Por qué no sale una psicóloga a atenderme, por qué no sale una persona queme diga cuál es su problema, durmió bien, comió bien? Algo bonito, pero no. Alláes: "no, no, no, no, no, 3° feira, 4° feira, 5° feira, no, no, no, no". No es Cáritas sino la “oficina no”. Eso es degradante, no quiere decir que nos tengan pesar, quenos tengan lástima, pero si les pagan para que atiendan enfermos pues que atiendanenfermos. Si les dan asco los enfermos entonces no trabajen con enfermos.

Em diferentes momentos, e segundo os elementos que estivessem em jogo, muitos dos

solicitantes, refugiados e migrantes com quem falei posicionaram-se em espaços diferentes

dentro desse mundo institucional e administrativo do refúgio. Esse posicionamento

transcendeu os limites dessa institucionalidade circunscrita e interagiu com outros grupos e

atores presentes nos lugares – geográficos e sociais – aonde chegaram. Enquanto em alguns

casos, a coincidência de interesses lhes fez se sentir mais próximos dos migrantes ou

refugiados; em outros momentos, a proximidade se estabeleceu com os agentes do refúgio.

Como visto na segunda parte da tese, conforme Vianna (2002, p. 42), muitas das soluções

administrativas tornam-se efetivas graças à existência de interesses mútuos entre

administradores e administrados. Em diferentes níveis de autoridade, refugiados/solicitantes

e agentes de refúgio agiram de maneira conjunta para cumprir com propósitos, objetivos e

ideais que lhe servem de base moral ao exercício da governança do refúgio. O vínculo de

algumas pessoas com os agentes da administração de refugiados transcendeu a agência sobre

seu próprio processo de refúgio e se estendeu para o de outros. Algumas pessoas ao serem

avaliadas como casos exitosos de integração viraram referentes locais para os novosreassentados ou refugiados. Para elas, foram colocadas tarefas (sempre controladas e

submetidas à autoridade administrativa) de agentes locais de integração. Assim, eram elas

quem deviam acompanhar as pessoas a realizar processos de documentação, orientá-las nos

lugares de acolhida, auxiliá-las como tradutores, etc.

Esse vínculo chegou a ser enunciado, algumas vezes, pelos agentes de refúgio como uma

relação de amizade, sugerindo que as pessoas tinham avançado um nível, passando deadministradas ao nível de sócias e coadjuvantes nesse processo de integração dos outros.

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Essa ascensão no status funcionou, no meu critério, como uma espécie de reconhecimento

da condição coetânea de determinados sujeitos, conforme Fabian (1983, p. 17). Se, além

disso, assumimos que o processo de integração é, conforme Seyferth (2000, p. 46-47), um

conjunto de práticas nacionalizantes, podemos observar que esses sujeitos  – localizados no

mesmo tempo e espaço dos administradores  – estavam, enfim, concebidos como sujeitos

capazes de ajudar no processo civilizador dos outros, em condição de quase nacionais, com

a capacidade que outorga a maioridade e o pertencimento a um tempo civilizado. Esses

outros, pelo contrário, chegariam e estariam em uma distância temporal, cultural  – e, às

vezes, também geográfica – que requereria ainda ser muito intervinda.

Várias das características de estadia de Lucas em A Casa do Migrante podem ser eloquentesa respeito dessa aliança civilizadora entre administradores e administrados. Lucas chegou a

São Paulo em um contexto de migração forçada, aliciado por falsos empregadores de uma

suposta agência de publicidade. Ele foi recebido no albergue enquanto conseguia solucionar

sua situação migratória e terminar os processos administrativos que seu caso tinha gerado

nos escritórios da Polícia Federal. Lucas chegou em datas próximas da chegada de outros

colombianos com quem eu também conversei. Porém, quando eu fiz contato com o pessoal

da instituição, Lucas já ocupava um espaço bem diferenciado a respeito do lugar ocupadopelos outros conterrâneos. Embora continuasse dormindo no quarto compartilhado que lhe

adjudicaram ao chegar, gozava de alguns privilégios que os outros não tinham. Podia se

banhar de manhã e não apenas de tarde, comia com os funcionários e não com os outros

hóspedes, não tinha de abandonar a casa às 7h da manhã, podendo permanecer o dia todo no

albergue. Além disso, tinha acesso a internet e telefone no escritório da administração graças

a que foi informalmente contratado para assessorar a administradora na renovação da

imagem institucional do lugar.

A profissão e os conhecimentos de Lucas em desenho e informática foram parte da

explicação que deram os agentes para esse tratamento diferenciado. Contudo, nenhum dos

outros hóspedes colombianos que entrevistei foi empregado nessas condições na instituição

ou beneficiado pelos serviços profissionais que pudesse oferecer. A explicação de Lucas,

por sua vez, incluiu outros elementos que ilustram melhor a complexidade de relações e

interpretações que estavam em jogo nesse tratamento que o diferenciava dos outros

migrantes e o aproximava de alguns dos funcionários:

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Mariana [administradora da casa] se dio cuenta quien era yo. Ella me ayudó muchodesde el comienzo. Yo siempre fui súper bien, tuve de todo y no me faltó nada.Yo estudié comunicación social en la xxxxxx [universidad privada en Colombia]y tú sabes que allá sólo hay gente bonita. Todos somos súper bonitos, súper plays

y ahora tengo que vivir en un albergue con este tipo de personas. Pero yo me lotomo como un aprendizaje. Mira que cuando yo llegué vuelto mierda, acá de uname acogieron y Mariana me mandó para psicóloga y todo. Y acá, yo he podido vercómo son las cosas, las historias de las personas, yo los escucho llorar de noche,entonces yo también he aprendido estando con ellos.

Na experiência de Lucas no albergue, que ele assumiu como um aprendizado, há uma

expressão de surpresa pelo fato precisamente de ter aprendido alguma coisa, pois, segundo

ele, “a essas pessoas é preciso lhes ensinar tudo”. Ele não esperava que pessoas desprovidas

dos que ele considera “os códigos básicos da vida em sociedade” pudessem lhe fornecer 

conhecimentos e reflexões para sua vida. Em uma ocasião, me contou surpreso que “um dos

africanos não sabia o que era um desodorante”. Segundo seu relato, quando desesperado

pelo odor do seu companheiro de quarto lhe perguntou por que não usava desodorante,

descobriu que o homem interpelado não conhecia o produto. Lucas ficou muito contente de

ter podido lhe ensinar “uma coisa tão básica” e de ter lhe presenteado com seu próprio

desodorante. As conversas com Lucas foram especialmente valiosas para minha pesquisa de

campo, já que ele me contava sobre alguns dos diálogos que tinha com os funcionários da

casa, particularmente com a administradora, mas o fazia com outros critérios de censura

diferentes daqueles dos próprios funcionários. Entretanto, em várias ocasiões, ele sentiu a

necessidade de me explicar que nem ele, nem os empregados do albergue eram racistas e

que não era por isso que determinados juízos eram emitidos sobre os hóspedes da instituição.

Muitas vezes, me disse, por exemplo: “Yo no soy racista para nada, así sean negros,

blancos, amarillos, rojos, etc. Pero todos sabemos que esos negros tienen sus mañas”. Em

uma ocasião, se referia notadamente ao debate que se gerou no albergue por conta da chegada

de uma família com mulheres adolescentes. Ele, como alguns outros dos refugiados

colombianos, consideravam que a sexualidade dos “negros” era uma ameaça, achando-a

potencialmente descontrolada e, por isso, perigosa. Contudo, Lucas, depois de lançar a

crítica, me explicou que parte do seu aprendizado sobre a diferença, graças a sua relação

com os funcionários da casa, consistia em que agora ele sabia que esse comportamento não

era mal-intencionado: “si no que es la cultura de ellos y también porque como la religión de

ellos los reprime tanto entonces cuando ellos llegan a Brasil son como niños o adolescentes

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explorando su sexualidad. Porque llegaron a un país en que el sexo se vende como

empanadas”. Esclarecimentos esses bem-intencionados que amiúde escutei dos agentes de

refúgio e que Lucas encontrou pertinentes e adequados como explicação. Essa infantilização

dos homens “negros” somada à enunciação da uma diferencia cultural radical me parece

constituir outras formas de negar a simultaneidade dos sujeitos, conforme Fabian (1983),

neste caso, não apenas em termos civilizatórios, mas também em estádios de

desenvolvimento da vida pessoal.

A outra crítica que Lucas me disse compartilhar com os administradores tinha a ver com

aquilo que ele qualificava de “ pereza y suciedad de las personas”, que segundo ele “quieren

todo listo, no lavan ni un plato y quieren que todo se los den”. Esse juízo sobre ocomportamento remete a críticas já mencionadas sobre a predisposição à dependência, à falta

de desejo de se integrar e à preferência por viver assistidos. Aspectos que, como visto, os

agentes da tríade consideram elementos deformadores das pessoas que terminam

atrapalhando o processo de integração.

A última critica, compartilhada por Lucas e por vários agentes dessa rede ampla de

atendimento, focava na dinâmica que as pessoas tinham para o uso do dinheiro. Um dossacerdotes em uma paróquia de outra cidade me disse, um dia, que ele havia decidido deixar

de ajudar uma família de refugiados quando percebeu que haviam gastado o dinheiro em um

equipo de som. Esse mesmo juízo levou a Lucas a considerações semelhantes: ele achava

absurdo que, na situação em que viviam os hóspedes da casa, eles investissem dinheiro em

computadores, telefones celulares, sapatos caros, vontades alimentícias ou, ainda pior “esas

negras que se gastan 150 reales para que las peinen”.

As explicações que ofereceu Lucas, assim como suas opiniões, foram diretas, em grande

parte, porque foram expressas em contextos descontraídos de conversas e entrevistas

informais. Por isso, não pretendo dizer que essas representem nem seu ponto de vista mais

elaborado sobre as relações sociais e raciais em um contexto migratório, nem que elas

possam ser assumidas como a exposição do pensamento velado dos agentes. Se estou

evocando-as no texto, é porque considero que noções desse tipo circulam, são utilizadas e

consideradas como explicações válidas entre muitas das pessoas  –  administradoras ou

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administradas – no universo do refúgio e nos arredores com os quais esse se comunica, nas

cidades onde realizei a pesquisa.

Como um último exemplo dessas relações, é também interessante que Beatriz e Rafael, um

casal que me foi apresentado como um caso exitoso de reassentamento, contaram a história

de outra família que decidiu regressar à Colômbia. Nas primeiras explicações que me

ofereceram sobre as razões do retorno, eles apontaram algumas falhas do programa e da

ONG que o administrava. Segundo eles, as funcionárias do programa tinham deixado essa

família muito sozinha em uma cidade com moradores muito fechados e sem possibilidades

reais de emprego. Porém, quando a história da família continuou sendo apresentada, Beatriz

concluiu que, em grande parte, era culpa das pessoas reassentadas. A afirmação estavabaseada no que ela considerava uma falta de iniciativa, preguiça e, de maneira geral, um

comportamento que ela resumiu na frase: “es que ellos no se ayudan, complementando ya

la tienen difícil por ser negros y además no se arreglan para mejorar la apariencia y se la

 pasan quejándose”. No final da história, apesar das enunciadas falhas do progr ama, a

explicação da falta de integração e do fracasso desse reassentamento familiar recaiu nos

sujeitos; novamente, de maneira coincidente com as explicações que oferecem as

autoridades brasileiras do refúgio e os agentes encarregados de administrar os refugiados.

Gostaria de salientar, dessa longa descrição de relações, que a integração é sempre

apresentada como um processo positivo. Como tal, parece que somente os aspectos

louváveis de uma sociedade e de seus representantes entraram no jogo nesses processos de

nacionalização que buscam transformar estrangeiros em cidadãos. Pelo contrário, considero

que os casos e as histórias que foram apresentados como “casos exitosos” de integração

mostram que esse processo também compreende aspectos negativos, tanto das sociedadesde acolhida e das de procedência quanto dos segmentos sociais aos quais se pretende acessar

e daqueles dos que se quer sair. Alguns dos aprendizados que as pessoas realizam em seus

processos vitais, embora sejam socialmente condenáveis, podem lhes resultar úteis nos

processos de integração que, muitas vezes, parece mais uma luta que uma entrada acolhedora

e restituidora. Uma visão romantizada e sempre positivada da integração pode contribuir a

reforçar as distâncias entre as imagens idealizadas produzidas nos processos de formação de

Estado e as complexas e difíceis condições da maioria das pessoas cujas vidas têm sido

marcadas pelo êxodo.

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9.3. O tempo da descendência, o tempo da integração

Retornando de maneira mais direta ao assunto dos ritmos e dos tempos, gostaria de focar

novamente no programa de Reassentamento Solidário, para refletir sobre a relação do tempo

com os outros dois elementos da integração que foram apontados constantemente pelos

agentes do refúgio: língua e escola. A diferença do trabalho cuja importância estava sempre

referida aos adultos, à língua e, em maior medida, à escola estiveram mais relacionados com

o processo de integração das crianças.

O assunto da competência linguística apareceu de diferentes maneiras, segundo os contextos

nos quais eu perguntei por ele ou dos outros elementos com os quais estivesse relacionadoem um momento específico. Em muitas ocasiões, a proximidade do espanhol com o

português foi utilizada como um elemento facilitador da comunicação e, portanto, da

integração nas comunidades locais. Outras vezes, ao contrário, as dificuldades das pessoas

para concluir exitosamente trâmites e processos foram atribuídas à dificuldade que esses

sujeitos teriam de compreender adequadamente as instruções dadas em português. Apesar

dessa oscilação constante, a ideia recorrente é que, se for avaliada a experiência de outros

grupos nacionais que falam “línguas muito diferentes do português”, os colombianos teriamuma imensa vantagem comparativa.

Por sua vez, as famílias reassentadas, notadamente os adultos desses grupos familiares ou as

pessoas que chegaram sozinhas, falaram da diferencia idiomática como uma barreira difícil

de superar nos primeiros meses de vida no Brasil. No caso das famílias, me foram geralmente

narradas diferenças na velocidade e a capacidade de aprendizado entre seus membros. No

entanto, em todos os casos escutei reclamações sobre a insuficiência de sessões, intensidadee duração das aulas de português oferecidas pelo programa. As pessoas que estavam

interessadas em concluir seus estudos universitários ou em arrumar empregos melhor

remunerados tiveram de pagar aulas extras para conseguir um aperfeiçoamento da língua e

superar o nível básico de interação cotidiana. Também uma sorte de prestígio associado a

um bom desempenho linguístico esteve presente. Muitas pessoas se empenharam em me

contar sobre seus esforços para falar português adequadamente e várias me perguntaram

minha opinião sobre seu desempenho linguístico. Houve alguns poucos casos, todos em

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pessoas adultas, em que o aprendizado da língua foi muito difícil e um motivo permanente

de angústia.

Para os agentes do refúgio, o nível de português básico que aprendem os refugiados nos

cursos oferecidos é suficiente para se desenvolver em seus empregos – também básicos – e

esperam que, com o passar do tempo, o aprendizado das crianças – que é notoriamente mais

rápido e de “melhor qualidade” – vá empurrando o nível idiomático dos adultos. Ou seja, o

aprendizado linguístico das crianças marcaria, segundo essa lógica, boa parte do aspecto

linguístico da integração da família como um todo. Contudo, essa expectativa de que as

crianças se tornem multiplicadoras de integração não foi enunciada somente a respeito do

português. A escolarização, em geral, também foi apresentada como uma importanteestratégia de integração. Os agentes explicaram que é uma norma brasileira que as crianças

estudem e que, graças à interação com outras crianças, os menores refugiados iriam se

integrando muito mais rápido à sociedade. Essa visão geracional do processo de refúgio

permite encará-lo como um processo que se estende no tempo, em um longo prazo para

conseguir sua completitude. Nesse sentido, as unidades familiares da gestão inicial, vistas

como núcleos coesos, aparecem desde esta perspectiva como passíveis de serem fracionadas.

Conforme de Swaan (1992), a educação elementar supõe uma iniciação nos “códigos de

comunicação nacional”. Isto é, supõe uma formação em “la lengua estándar, la

alfabetización, la aritmética, la historia del país y la geografía nacional” (DE SWAAN, 199,

p. 18). Esses aspectos da escolarização e seu peso na construção de ideais de nação também

foram apontados em alguns dos trabalhos de Seyferth (2000, p. 47, 1997, p. 111), quem,

apoiada nos postulados de Hobsbawm sobre os nacionalismos, identificou a importância

atribuída à educação na configuração de uma consciência nacional nos processos deassimilação durante as campanhas de nacionalização empreendidas no Estado Novo.

Língua e escola, como aspectos fundamentais da integração e como elementos especialmente

direcionados às crianças, oferecem uma leitura geracional para a integração, já que a

capacidade real desse processo não estaria nas mãos dos adultos, mas de seus filhos. A

preferência por núcleos familiares com filhos pequenos, em idade escolar, alimenta esse

formato de integração que está necessariamente irrigado pela ideia do tempo. O tempo do

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crescimento, da formação e da descendência dessas crianças reassentadas é simultaneamente

o tempo da integração completa.

Uma funcionária do programa de reassentamento afirmou em uma conversa que: “los

colombianos con el tiempo se vuelven brasileros, aunque sigan comiendo arepa”. No

entanto, havia sempre algo de dúvida sobre suas verdadeiras “lealdades políticas sobre o país

adotivo” –  utilizando a fórmula de Seyferth (2000, p. 47), e amiúde foi expressa a

possibilidade de que as pessoas regressassem a seu lugar de origem ou não se sentiram tão

integrados como os seus filhos. Diferentemente, dessas crianças se presume que vão se

tornando cada vez mais brasileiros e perdendo paulatinamente sua “essência” colombiana.

A mesma funcionária supracitada me disse em outro momento:

[...] Essa mulher, porque agora já é toda uma mulher, chegou de 14 anos e agoraestá com 20 anos. Bem-sucedida, dona do marido dela, empregada,brasileiríssima. Fala muito bem, ela faz speaker no aeroporto onde trabalha, Ela!Em português! É lindo! É lindo!

A beleza que a funcionária encontrou nessa transformação que levou uma criança

reassentada a se tornar uma “mulher brasileiríssima”, segundo me disse, obedecia ao fato de

ela ter feito parte dessa transformação. Como agente de integração lhe parecia que todos os

esforços realizados tinham valido a pena e as histórias dessas integrações eram uma amostra

de que o programa de reassentamento funcionava. Agregando, ao finalizar nossa conversa,

que as crianças que já viraram pais, “esses então, já não voltam ou só voltam durante as

 férias”. Essas apreciações, como as de outros agentes, salientam que, só com o tempo, é

possível saber com certeza se os esforços integradores foram realmente bem-sucedidos.

A noção de integração, como processo e como objetivo do programa de reassentamento, está

firmemente baseada na ideia de que há uma “essência” da “brasilidade” que vá se adquirindo

aos poucos. Aliás, a absorção dessa essência seria mais efetiva na infância, assumida como

um dos momentos mais maleáveis dos sujeitos que poderiam facilmente se tornar na matéria-

prima de futuros brasileiros. Igualmente, supõe-se que o tempo, como elemento crucial do

processo de integração, faria que essa essência se afiançasse e se expandisse para os outros

membros da família. Desse modo, embora os pais não se sintam completamente parte da

nova comunidade que os acolhe, os filhos mais brasileiros que colombianos e os netos

nascidos no Brasil, terminariam por integrá-los ao território e à nação.

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À habitual fórmula de sangue/solo, o processo de reassentamento parece estar agregando a

relação terra/tempo. Ou seja, sedentarizar-se, aceitando os pressupostos dessa fixação, e

permanecer na terra até que o processo da integração se complete  – quer dizer, até chegar o

tempo da descendência por e para o território brasileiro  – seriam os requisitos para poder

reclamar o pertencimento total à nação. Os reassentados que ainda não sabem qual será seu

lugar encontram-se ainda ativos nesse jogo do provisório e do permanente que atua sobre a

possibilidade da terra e do pertencimento.

9.4. Uma morte lenta e algumas formas de subverter a mensagem da salvação

Às vezes o exílio é melhor do que ficar para trás ou não sair, mas somente às vezes.(Eward Said)

Durante uma de minhas primeiras temporadas da pesquisa de campo no Rio Grande do Sul,

algumas pessoas com as quais falei chamaram minha atenção sobre o acontecido com uma

família colombiana que, pouco tempo antes, tinha regressado ao seu país. As diferentes

reconstruções da história que escutei ofereceram informações e detalhes um pouco diferentes

entre si, dependendo da proximidade que os narradores tiveram com essa família e da forma

direta ou indireta em que se relacionaram com essa história. Contudo, as versões coincidiramem que o casal e seus filhos decidiram regressar à Colômbia apesar de considerar que lá

ainda poderiam correr risco de morte. Porém, nem todas as pessoas que conheceram a

história me contaram sobre elas, alguns agentes de refúgio não a mencionaram em nossos

encontros, apesar de minhas perguntas sobre os casos de reassentados que abdicavam do

programa. Os silêncios e as omissões já têm sido tratados ao longo da tese, interessa-me aqui

focar nesse novo movimento que empreenderam os membros da família citada nessa história.

Movimento que a maioria das pessoas, que me falaram a respeito, se referiram com o termoretorno.

O retorno da família, segundo as narrações, foi um processo difícil. Parte das dificuldades

consistiu precisamente em que eles desejavam um retorno (ou repatriação voluntária), e não

um simples regresso. Esse movimento que as pessoas estavam tentando fazer apelava à

gestão do Acnur na medida em que foi essa agência supranacional a que promoveu e foi

intermediária de seu reassentamento no Brasil. Esse retorno ou repatriação é um movimento

definido como voluntário que o Acnur descreve e classifica com suas ONGs parceiras,

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dentro dos parâmetros estabelecidos para administrar os movimentos e as pessoas

classificados e produzidos dentro do universo institucional do refúgio.

El propósito de la protección internacional no es, sin embargo, que los refugiadossigan siendo refugiados por siempre, sino garantizar que se restaure la pertenenciadel individuo a la comunidad y se restablezca la protección nacional, ya sea en supatria o mediante la integración en otros lugares. La repatriación voluntaria sueleconsiderarse como la solución más deseable a largo plazo por los propiosrefugiados y la comunidad internacional. La acción humanitaria del ACNUR en labúsqueda de soluciones duraderas a los problemas de los refugiados está orientada,ante todo, a permitir que un refugiado ejerza su derecho a retornar con seguridady dignidad. (ACNUR, 1996, p. 4)

No caso da família citada, o retorno solicitado não foi aceito. Sem a aprovação de sua

solicitação, também não contaram com assessoria, acompanhamento e financiamento dessa

agência para regressar à Colômbia, como era seu desejo. Apesar de os documentos do Acnur

falarem em retorno ou (repatriação voluntária) como a solução mais desejada para “o

 problema dos refugiados”, neste caso, a negativa foi categórica. O argumento, oferecido às

pessoas que queriam voltar, para justificar essa negativa foi que a situação de perigo não

tinha cessado e que o Acnur não promoveria transferências de pessoas que colocaram em

risco a segurança delas. Segundo um conterrâneo que lhes ajudou a sobreviver durante os

últimos meses que a família passou no Brasil, a decisão negativa se manteve inclusive

quando as pessoas solicitaram ser enviadas a uma cidade diferente de seu lugar de origem,

onde elas consideravam que estariam a salvo. O fato de que os agentes do Acnur se

outorguem a autoridade de avaliar e decidir a conveniências ou não de um possível retorno,

lembra a proposta de Souza Lima (1995; 2012) sobre o poder tutelar, não apenas pela fixação

e pela proibição dos movimentos não consentidos pela agência, mas pela consequente

incapacitação que os constrói como sujeitos que não poderiam ponderar por si mesmos o

risco e tomar a decisão de assumi-lo.

A família, ainda assim, manteve sua decisão de regressar e, para poder fazê-lo, teve de

renunciar à proteção do Acnur e à assistência da ONG administradora do programa de

Reassentamento Solidário. Estando em uma situação de muita precariedade, com bastante

preocupação sobre seu futuro e com problemas de saúde, apelaram à solidariedade de alguns

conhecidos, notadamente colombianos organizados em grupos sociais e políticos. Também

acudiram a uma paróquia da Igreja Scalabriniana e ao cônsul honorário da Colômbia em

Porto Alegre. Segundo os relatos do cônsul, de um dos colombianos vinculado a um grupo

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político e de um sacerdote da igreja citada, foi preciso organizar uma espécie de campanha

de arrecadação de fundos para pagar as passagens e alguns dos gastos da viagem da família.

Essa medida, porém, teve um caráter extraordinário e foi produto da decisão autônoma de

seus organizadores, pois nenhum dos participantes  – incluindo o cônsul – atuou de acordo

com um protocolo de assistência a refugiados ou algo similar. De fato, o cônsul disse ter

agido mais por dever ético do que profissional, já que não existem orientações do governo

nacional da Colômbia a respeito de casos como o descrito.

Vários elementos dessa história foram tomando força à medida que eu avançava na minha

pesquisa de campo. Quando fui, aos poucos, conhecendo os detalhes de funcionamento da

administração dos refugiados e de seus movimentos geográficos, a história descrita iareaparecendo obstinadamente em minha memória. Particularmente, quando me encontrava

com outras situações similares de refugiados e, sobretudo, de reassentados, querendo sair do

país, ou obter um passaporte de viagem, ou regressar de férias ou de visita à Colômbia ou

voltar definitivamente para morar lá. As proibições, os receios, as permissões provisórias e

parciais, as autorizações para uns e negativas para outros – sempre explicadas em função de

sua própria integridade o segurança – foram se mostrando claramente como uma forma de

controle sobre os movimentos das pessoas.

Nesse sentido, o controle dos movimentos também me remeteu à definição foucaultiana de

poder, já que se trata da posta em andamento de determinado tipo de relações que

condicionam e limitam as ações dos outros (FOUCAULT, 1998, p. 15). Não se trata somente

de repressão e dominação por meio da força, de fato, apela-se à proteção e ao cuidado como

motor da relação que permite a fixação das pessoas produzidas como refugiadas. Para que

essa relação seja possível, como visto, necessita-se da comunidade de interesses entre osorganismos reguladores dessas vidas e desses trânsitos e as pessoas que os realizam.

Novamente, estamos diante de formatos de governança que incluem a participação ativa dos

sujeitos e não diante de movimentos de poder meramente repressivo.

Outro exemplo dessa história que foi se decantando com o tempo, foi a mistura de registros

e categorias que ela expressa. As pessoas que conheceram os membros dessa família

coincidiram ao afirmar que sobre eles não havia dúvida a respeito de sua “verdadeira

necessidade de proteção”. Ou seja, enquanto sobre outras famílias de reassentados se dizia

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que eram, na realidade, migrantes econômicos que tinham conseguido driblar os filtros de

seleção, sobre essa família havia consenso em que se tratava de um grupo perseguido pela

guerrilha que havia tido, além disso, um de seus membros sequestrado. Porém, as razões

pelas quais esse grupo de pessoas tentou ativar o retorno eram de caráter econômico. Desse

modo, enquanto um movimento (aquele que os trouxe ao Brasil) foi justificado o tempo todo

em função de sua condição de refugiados  – isto é, de não serem, migrantes econômicos  – 

seu retorno, solicitado em função da precariedade econômica na que se encontravam, foi

negado pelas mesmas razões. O Acnur somente autorizaria movimentos de proteção

 baseados em um “fundado temor de perseguição” ou que sejam realizados para um reorno

seguro. Assim, as causas econômicas não estariam entre as origens legítimas do medo

(GOOD, 2006, p. 98) e, nesse caso, também não configuraram um sofrimento digno deretorno.

Essa história transformou-se em um exemplo das formas de controle e tentativas de fixação

das pessoas, não como uma consequência lógica dos movimentos esperáveis dos refugiados,

mas como o resultado de esforços constantes para governar e administrar essas populações

em êxodo. Não é em vão que o maior controle é exercido sobre as pessoas reassentadas, cujo

programa reitor é apresentado como exitoso e tem se consolidado como a bandeira do Brasilpara expor suas leis e práticas de refúgio no plano internacional. Não é de se estranhar então

que a informação sobre os retornados me fosse negada em uma das ONGs administradoras

 –  afirmando que esses casos não existiam  –  e apresentada, de maneira parcial na outra,

afirmando a insignificância desses casos e mostrando-os como sempre motivados por

desejos e contingências dos reassentados, e nunca por falhas do programa.

Já sobre os refugiados espontâneos, a explicação sobre seu regresso e sua renuncia à“proteção do Acnur” foi explicada como uma amostra de que as pessoas podiam regressar a

seu país à vontade, ativando, mais uma vez, a suspeita sobre seu fundado temor de

perseguição. Também me foi explicada, de uma maneira positivada, afirmando que nem as

ONGs administradoras, nem o Acnur podem obrigar as pessoas a permanecerem contra sua

vontade, que a decisão do regresso dos refugiados espontâneos é autônoma e que a única

coisa que os agentes podem fazer é lhes aconselhar quando, segundo suas “pesquisas

objetivas”, o retorno a uma região que considerem perigosa. Ainda assim, o retorno

voluntário, quando não conta com a aprovação do Acnur, exige a renúncia à proteção dessa

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agência, mediante a firma de documentos com os que a eximiria de responsabilidades. Isso

significa também que as pessoas não contaram com apoio financeiro, nem assistência

nenhuma para a viagem (ou as viagens) de regresso e que se perderam chances de voltar a

ser aceito como refugiado no futuro.

Um dos conterrâneos que narrou parte da história da família que decidiu voltar, comparou

esses documentos que livram de responsabilidades ao Acnur, com documentos similares que

devem ser firmados em hospitais quando o paciente recusa um tratamento sugerido pelos

profissionais médicos ou quando, contrário às indicações dos especialistas, solicita a saída

do centro hospitalar. A comparação proposta me pareceu muito apropriada, já que, em ambos

os casos, trata-se de um desafio à prática profissional e ao controle dos corpos que elaimplica. Em ambos os casos, os profissionais decidem não assistir, nem ajudar na decisão

tomada pelo sujeito, mas solicitam ser eximidos das consequências dessa decisão. Em

 palavras de meu interlocutor: “Te devuelven la vida, te devuelven la responsabilidad sobre

tu vida y te dicen: ‘Vea a ver usted qué hace con ella’”.

Se o meu interlocutor se expressou dessa maneira e se tinha refletido a respeito, não foi

apenas por ter estado próximo e ter sido solidário com a família que quis regressar. Elemesmo, em sua primeira experiência como refugiado, tinha decidido voltar para Colômbia

apesar de saber que lá ele ainda corria risco de ser assassinado. Essa primeira experiência de

refúgio foi insuportável para ele, sentia que tinha deixado tudo pendente, que não tinha

conseguido se despedir e que tinha aberto uma fenda imensa entre ele e aquilo que ele

considerava sua própria vida. Em outras palavras, sentia que sua vida tinha ficado na

Colômbia e que necessitava de seu regresso para continuá-la. Necessitava reativar a vida e,

para isso, teve de contradizer as agências que tinham intermediado na sua saída comorefugiado do país e que tinham lhe “ premiado con el país con el que sueña cualquier líder 

de derechos humanos” enviando-o para Europa. Essa rejeição da dádiva do refúgio,

aumentada pelo oferecimento de um país com prestígio, lhe significou a solidão do regresso

e a responsabilidade sobre seu próprio futuro, sem ajudas para diminuir os perigos que ainda

ameaçavam sua vida.

[…] Y yo reflexionando esas cosas, yo decidí volverme. Cuando yo llegué a

Colombia, nadie me quería dar trabajo. Cuando yo regresé fue diferente de cuandoyo me fui, cuando yo me fui, hasta la silla del avión me acompañaron los de

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Brigadas Internacionales de Paz y ahí estuvieron hasta que el avión saliera. Perocuando yo regresé, yo regresé solo y nadie me quería ver, porque yo decidí noquedarme. O sea, yo contradije todos los programas de protección que hay […]

A decisão de voltar, de regressar, de ir um tempo para ver como estão as coisas, foifrequentemente evocada por outras pessoas com as quais falei. Muitas razões diferentes me

foram expostas como motor desses movimentos ou desejos. Algumas coincidiam com as

razões expressadas por Francisco, ou seja, com a necessidade de ressarcir a ausência que

implicava sua presença em outro país, conforme Sayad (1991, p. 111) ou de conjurar a

imensa tristeza de ter sido arrancado do lugar e as relações que configuravam a vida,

conforme Said (2001, p. 51-54). Contudo, também houve muitas outras razões expressas

para realizar esses movimentos provisórios ou definitivos até a terra natal: vontadesalimentícias, desejo de participar em comemorações familiares (em uma sorte de nostalgia

calendarizada), aspiração de passar as férias em casa, necessidade existencial de que os filhos

conheçam a família que ficou, doença ou morte de parentes, ansiedade de saber se o perigo

tinha desaparecido, necessidade de confrontar as lembranças, etc.

Quando as pessoas refugiadas que viajaram quiseram concretizar suas viagens temporárias,

todas essas motivações tiveram de ser convertidas em uma carta com uma justificativa

apropriada, pedindo a autorização da viagem e, em alguns casos, a emissão do passaporte do

Acnur para os refugiados. Tudo isso para poder fazer o percurso sem o perigo de perder a

condição de refugiados e seus documentos no Brasil. Algumas pessoas, porém, haviam

realizado esses movimentos de ida e volta sem ativar as permissões exigidas e assumindo a

carga emocional do medo de serem descobertos e o perigo de perderem o status de refugiados

com suas possíveis consequências na situação de regularidade migratória.

A decisão do retoro apareceu também, de maneira reiterada nas declarações das pessoas, não

como um desejo de vida, mas como uma opção de morte, que, em qualquer caso, parecia

preferível a o refúgio. Ou melhor, a o que seu êxodo administrado significou para eles, a

essa configuração especial de precariedade, angústia e humilhações que, para muitos,

transformou-se na experiência e na realidade chamada refúgio:

[…] Yo no sé para qué Colombia tiene esos tratados con países que tratan mal asu gente. Si yo hubiera sabido lo que me esperaba, yo hubiera preferido la muere

ahí, porque es más cruel que lo maten a uno a poquiticos con humillaciones y noque le den unos tiros allá […]. (Edna)

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Edna fez essa afirmação depois de me contar, com detalhes, as dificuldades e os maus tratos

que tiveram de suportar durante a viagem. A sensação de desassossego se fez especialmente

dura em São Paulo, pois o resto do tempo, durante a viagem, ela e sua família acreditavam

que as precariedades obedeciam a que eles estavam atravessando lugares periféricos da

geografia brasileira, locais pequenos e pobres, segundo sua explicação. Ao chegar a São

Paulo, onde eles acreditavam que as coisas seriam diferentes, deram-se conta que as

dificuldades experimentadas no caminho não se esvaeceriam, mas virariam constantes,

seriam a marca de sua situação de refugiados. O descobrimento de que a carência e a

humilhação seriam a norma e o tratamento “desumano” – segundo suas palavras – a fórmula

do atendimento a devastou animicamente. A irmã de Edna me contou que, durante as

primeiras semanas em São Paulo, Edna chorava todos os dias, inclusive quando iacaminhando pela rua. Ver a sua irmã grávida, com fome, chorando em uma rua de uma

cidade desconhecida e hostil, também a arrasava e então caminhava e chorava junto com ela.

Quando Edna e sua família falaram que teria sido preferível ser assassinados na Colômbia a

condenados a uma morte lenta no Brasil, já haviam passado 11 meses desde sua chegada a

São Paulo. Considero que essa frase expressa, claro, o que é lido em suas palavras, ou seja,

o perigo da morte e a morte mesma são, às vezes, preferíveis às características da vida comorefugiados e a determinados sofrimentos a ela associados. Mas acredito que a frase, além de

aludir a essa sensação forte de desamparo e sofrimento pior que a morte, também encerra

um potencial desafiador das premissas sobre as quais são construídos e difundidos os

programas de refúgio. Dizer que tivesse preferido a morte ao refúgio é uma rejeição da

mensagem de salvação, da ideia de restauração e da suposta bondade que, segundo os agentes

do refúgio, são a base desse bem precioso. Em outras palavras, considero que Edna e sua

família estão muito felizes de estarem vivos; assim me deixaram saber com suas palavras,com sua forma alegre de me receber e de estar no mundo e com seu interesse porque eu

conhecesse sua história. Não é uma recusa à vida o que configura o cerne dessa expressão,

é uma rejeição à imagem humanitária que produz a tríade do refúgio, tanto do Estado

brasileiro quanto do Acnur, usando como matéria-prima seus sofrimentos. É, me parece,

uma disputa (ainda que desigual) pelo poder de produzir imagens sobre a nação, sobre o

Estado e sobre os princípios que os guiam. É também uma denúncia do tempo  – 

particularmente da lentidão  – como um elemento de castigo e de sofrimento por meio do

qual se constroem refugiados.

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Não é surpreendente assim que não somente Edna tenha lançado esse desafio. Melhor uma

morte rápida a uma agonia lenta, foi a fórmula que escutei também de outras pessoas,

solicitantes ou refugiadas:

Pero lo que me da esa decepción es que si salimos de Colombia porque somosvíctimas de la violencia, yo creo que no deberíamos de llamarnos ni emigrantes,ni asilados, ni refugiados, sino condenados y condenadas a morir lentamenteporque una persona difícilmente sale del hueco donde yo estoy, difícilmente saledel abismo donde yo estoy porque lo más seguro que esa persona tome es elcamino del mal […] Yo considero que si queremos ayudar a alguien, saquémoslodel abismo en donde se encuentra pero aquí no te sacan del abismo, aquí te dan unpedazo de pan y una bolsa con agua y vive con eso: o sea que tu muerte va a sermás lenta, te condenan a morir lentamente […]. (José Alberto, solicitante derefúgio)

Das imagens de bombardeios e guerras, de mulheres e crianças sofrentes sem contexto, o

Acnur-Brasil (grande produtor de imagens do refúgio brasileiro) pula para imagens de

pessoas felizes e integradas, com negócios próprios e esperança no futuro. Os tempos e os

processos que se infiltram entre as duas etapas não aparecem nessas imagens. Também não

aparecem os filtros que transformam uma guerra de mais de 50 anos (que continua causando

morte, destruição, deslocamento e medo) na imagem exitosa de umas poucas famílias

“integráveis”. É por isso que considero desafiador a rejeição das pessoas dessa mensagemde salvação, de esquecimento, de gratidão e de silêncio. Essa resistência a entrar nos moldes,

essa obstinação de encontrar outras formas, outras explicações, de contar sua própria versão

da historia (apesar de não saber se vai servir para alguma coisa tudo isso que me contaram),

de não sucumbir ao convite da vida nova, lembra-nos de que o movimento de êxodo não é

uma linha reta, que não termina com a integração, que não se submete à razão da ordem

nacional e que não se reduz à reparação da razão de estado.

Rocío: Ellos tal vez piensan que yo no entiendo las cosas, que yo no estudié, peroyo me dedico mucho porque yo digo: después de todo lo que mi familia pasó, detodo lo que pasamos, ¿yo voy a dejar que ya, que fuera en vano? No, no puede serasí, no vamos a ser unos más que sufrieron y ahora ¡ah la vida nueva y ya ¡No! Nohay vida nueva no es recomienzo, es continuar. Y yo creo que hay que luchar yque hay que... uno no puede simplemente dejar que ya que fue y ya.

Yo: ¿si tú pidieras la residencia, eso te daría una historia diferente a la del refugio?

Rocío: Yo creo que no. Porque para mí yo siempre voy a ser refugiada, no por elnombre sino por lo que es. Porque ser residente no va a cambiar que vineescapándome. Va a ser siempre así, yo creo que no va a haber una cosa de

recomienzo y eso, no es olvidar, es asumir. No simplemente: Ay! no ya, mi vidava a ser nueva, eso no existe.

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8/16/2019 Facundo, Angela

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O exílio das pessoas que encontrei ao longo da pesquisa de campo se compôs de perdas e

rupturas – umas menos voluntarias que outras – e do começo de uma existência descontínua.

No entanto, como me mostrou Rocío, a experiência administrativa que os transformou em

solicitantes, refugiados ou reassentados não foi um recomeçar, mas uma continuação – ainda

que fragmentada  – de alguns dos aspectos da vida tal como ela era antes, de algumas das

ordens de poder que compunham suas existências e da experiência de desterro que marcou

seus movimentos. As renegociações que, como refugiados, tiveram de fazer dessas formas e

ordens de poder não deveriam fazer que acreditássemos que se se recomece do zero e se

chega a uma nova vida. Não é salvação, mas administração o que está em jogo com a figura

contemporânea do refúgio.