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Marcio Antonio Lauria de Moraes Monteiro
A TESE DA CONTINUIDADE E O MARXISMO:
Anlise da historiografia da Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky
Rio de Janeiro
2013
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A TESE DA CONTINUIDADE E O MARXISMO:
Anlise da historiografia da Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky
Marcio Antonio Lauria de Moraes Monteiro
Instituto de Histria / CFCH
Bacharelado em Histria
Nome do orientador: Demian Bezerra de Melo
Titulao: Doutor (UFF)
Rio de Janeiro
2013
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A TESE DA CONTINUIDADE E O MARXISMO:
Anlise da historiografia da Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky
Marcio Antonio Lauria de Moraes Monteiro
Monografia submetida ao corpo docente do Instituto de Histria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do
grau de Bacharel.
Aprovada por:
_________________________
Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo
(Orientador)
_________________________
Prof. Dr. Felipe Abranches Demier
(Departamento de Direito da UniFOA)
_________________________
Prof. Dr. Tatiana Silva Poggi de Figueiredo
(Departamento de Histria da UFF)
Rio de Janeiro
2013
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Monteiro, Marcio Antonio Lauria de Moraes.
A tese da continuidade e o marxismo: Anlise da historiografia da
Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky / Marcio
Antonio Lauria de Moraes Monteiro. Rio de Janeiro, 2013.
vii; 68 p.:
Monografia (Bacharel em Histria) Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Histria, 2013.
Orientador: Demian Bezerra de Melo.
1. Revoluo Russa. 2. Historiografia. 3. Marxismo. 4.
Histria Monografias. I. Melo, Demian Bezerra de (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Histria. III. A
tese da continuidade e o marxismo: Anlise da historiografia da
Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky.
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RESUMO
Monteiro, Marcio Lauria. Historiografia da Revoluo Russa; A tese da
continuidade versusas contribuies de Leon Trotsky. Orientador: Demian Bezerra de
Melo. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS / Departamento de Histria; 2013. Monografia
(Bacharelado em Histria).
O objetivo do presente trabalho analisar criticamente alguns momentos centrais do
debate historiogrfico acerca da Revoluo Russa e da Unio Sovitica, focando a
chamada tese da continuidade tanto em sua verso sovietloga dos anos 1940-50,
quanto em sua nova e recente forma, sintonizada com o revisionismo neoliberal e com
as elaboraes de Franois Furet. Analisaremos tambm as contribuies do movimento
revisionista dos anos 1960-70, que se ops a verso inicial de tal tese, bem como as
contribuies do marxismo, em especial de Leon Trotsky, para se pensar a Revoluo
Russa.
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ABSTRACT
Monteiro, Marcio Lauria. Historiografia da Revoluo Russa; A tese da
continuidade versusas contribuies de Leon Trotsky. Orientador: Demian Bezerra de
Melo. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS / Departamento de Histria; 2013. Monografia
(Bacharelado em Histria).
The goal of the present work is to critically analyze some of the central moments of the
historiographical debate about the Russian Revolution and the Soviet Union, focusing
the so-called continuity thesis both in its sovietological version of the 1940-50s, and
in its new and recent form, aligned with the neoliberal revisionism and the elaborations
of Franois Furet. We will also analyze the contributions of the revisionist movement of
the 1960-70s, which opposed to the initial form of such thesis, and the contributions of
Marxism, especially those of Leon Trotsky, for thinking the Russian Revolution.
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SUMRIO
INTRODUO, 01
CAPTULO 1 - A TESE DA CONTINUIDADEONTEM E HOJE, 04
1.1. A riqueza e a i!er"i#i$a%&' a" (ri)eira" (r'u%*e"+ 04
1.,. O $'"e"' "'!ie/0'' e a re"('"a re!i"i'i"a+ 07
1.2. A0u)a" a" $'ri3ui%*e" re!i"i'i"a"+ 16
1.2.1. Se(4e C'4e+ 16
1.2.,. Mar$ 5err'+ 18
2.2.2. M'"4e Le6i+ 20
1.7. O re'r' a e"e a $'iuiae e a i#0u8$ia e
5ra%'i" 5ure+ 23
1.7. 5ra%'i" 5ure e ' re!i"i'i")' e'0i3era0+ 24
1.7.,. A '!a e"e a $'iuiae+ 28
CAPTULO , - O MAR9ISMO COMO ALTERNATI:A+ 41
,.1. Para a0;) ' re!i"i'i")'< a e$e""iae e u)a
4i"'ri'ra#ia )ar=i"a+ 41
,.,. A 0ua e Lei $'ra a 3ur'$ra$ia< #'e e (re$eee"
aa0>i$'"+ 46
,.2. Le' Tr'"?@ e ' Sa0ii")' equa' rea%&'
er)i'riaaB+ 51
CONCLUSO+ 63
ILIORA5IA+ 64
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INTRODUO
It is often said that the germ of all Stalinism was in
Bolshevism at its beginning. Well, I have no objection. Only,Bolshevism also contained many other germs, a mass of othergerms, and those who lived through the enthusiasm of the firstyears of the first victorious socialist revolution ought not toforget it. To judge the living man by the death germs which theautopsy reveals in the corpse and which he may have carriedin him since his birth is that very sensible? Victor Serge, From Lenin to Stalin, 1937.
A Revoluo Russa e a existncia da Unio Sovitica so indiscutivelmente temas
centrais para a histria do sculo xx. No toa, o conhecido historiador britnico EricHobsbawm chegou mesmo a utilizar a dissoluo da URSS enquanto marco do trmino de
tal sculo1.Do desfecho da Primeira Guerra Mundial situao internacional caracterizada
como Guerra Fria, passando pelo papel cumprido pela Unio Sovitica na Segunda Guerra
Mundial e sua influncia (direta e indireta) em uma srie de processos polticos ao longo dos
seus mais de setenta anos de existncia, este foi claramente um dos fenmenos polticos mais
importantes do sculo passado seno o mais importante.
Assim sendo, compreensvel que as anlises que suscitou no campo das ditasCincias Sociais a Histria inclusa tenham sido marcadas por ferrenhas disputas e
apaixonados debates. O objetivo do presente trabalho tratar de alguns aspectos dessas
repercusses intelectuais, atravs do resgate de alguns momentos centrais do debate
historiogrfico acerca da Revoluo Russa e da Unio Sovitica e da anlise de determinada
produo mais recente. A esta anlise historiogrfica, acrescentamos tambm a apresentao
de contribuies tericas e analticas produzidas por fora dos meios acadmicos e
frequentemente ignorada por eles, a despeito de sua considervel sofisticao e capacidadeexplicativa.
Por mais diversificada que seja essa produo historiogrfica acerca da Revoluo
Russa, ela atravessada por um debate em especfico, que marcou tal campo de forma
profunda nas dcadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial. A base para esse
debate partiu da necessidade de compreenso das origens do regime stalinista e seu foco
reside na questo da existncia ou no de uma continuidade fundamental entre este e os
primeiros anos da revoluo. Ou, em outras palavras, se ele seria um desenvolvimento lgico
1Cf. Hobsbawm, E. Era dos extremos: o breve sculo XX - 1914-1991 [1994]. Traduzido por Marcos Santarrita.2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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destes anos iniciais. Posto dessa forma, tal debate tambm abarca a questo do Stalinismo ser
ou no uma continuidade do Bolchevismo.
No foi por acaso que o debate sobre as origens do regime stalinista assumiu
contornos que colocavam em seu centro a existncia ou no de uma continuidade. Essa forma
especfica surgiu por volta dos anos 1940, principalmente no meio acadmico dos Estados
Unidos, distanciando-se dos debates ento vigentes acerca da Revoluo Russa e das questes
por eles suscitadas. Na dcada seguinte, a problemtica da(s) continuidade(s) j havia
atingindo posio hegemnica entre acadmicos norte-americanos e ganhado adeptos em
outros pases, produzindo-se um verdadeiro consenso a favor de uma tese que advogava a
existncia de continuidades fundamentais entre o projeto Bolchevique e o Stalinismo, entre
Outubro de 1917 e a ditadura dos gulags, dos Processos de Moscou e de tantas outrasatrocidades. Essa interpretao portanto, era fundamentalmente marcada por uma hostilidade
ao seu objeto de estudo.
Essa mudana de foco da produo acadmica acerca da Revoluo Russa e da Unio
Sovitica se deu justamente, e no toa, durante o perodo no qual a chamada Guerra Fria
se faz mais intensa no sentido de uma disputa de projetos societrios, levando as produes
historiogrficas de carter acadmico predominantes a ressoarem uma condenao poltica do
projeto revolucionrio bolchevique e daqueles que nele se inspiraram ao longo do sculo xx.Tendo atingido uma posio hegemnica nos anos 1950, tal consenso s se dissipou
algumas dcadas depois, com o advento de estudos baseados em paradigmas diferentes
daqueles que o sustentavam. Para tal, foi necessria uma verdadeira batalha de posies por
parte dos adeptos das diversificadas perspectivas auto-proclamadas revisionistas, que se
apresentaram enquanto alternativa e, aos poucos, angariaram aceitao nos meios acadmicos.
dessa tese da continuidade que trataremos no presente trabalho. Tanto na forma
que assumiu em sua gnese, com a criao do campo batizado de sovietologia
2
e ancorado noparadigma do totalitarismo, quanto em sua reapario mais recente, sob uma nova roupagem
paradigmtica e fazendo uso de caminhos analticos distintos daqueles dos sovietlogos.
2Nas palavras do historiador revisionista norte-americano Stephen Cohen, a sovietologia uma deselegante,porm til, palavra para designar o estudo profissional acerca da Unio Sovitica (Cf. Cohen, S.Rethinking thesoviet experience Politics and History since 1917. Oxford: Oxford University Press, 1985, p. 3.). Entretanto,esse termo est intrinsecamente associada a um ramo em especfico da historiografia, com seus paradigmas
particulares e com uma forte filiao poltica que a marcou profundamente. Portanto, rejeitamos o sentido maisgeral que Cohen a atribui e a utilizaremos no presente trabalho para designar uma historiografia em especfico,da qual trataremos no Captulo 1 e que foi a responsvel por produzir a tese da continuidade em sua verso quepoderamos chamar de clssica (em contraposio quela mais atual que analisaremos mais adiante).
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Assim como a gnese da tese da continuidade se deu em um contexto extremamente
politizado, atendendo a necessidades de certos grupos sociais de elaborarem uma narrativa
condenatria da Revoluo Russa, a tentativa recente de elaborao de uma nova verso de tal
tese tambm se d na esteira de uma conjuntura de grande polarizao poltica: os anos de
ascenso e triunfo doprojeto neoliberal. Ligando-se ao que se pode chamar de revisionismo
neoliberale, nos marcos dos novos paradigmas do ps-modernismo e do relativismo cultural,
tal tentativa se constitui enquanto um renovado ataque experincia revolucionria russa.
Como contraposio a esta tese, resgataremos em nossa anlise as diferentes
contribuies produzidas pela historiografia revisionista dos anos 1960 e 1970, baseadas no
difuso campo da Histria Social e que, com o tempo, suplantaram o consenso originalmente
produzido pelos sovietlogos dentro da historiografia e das Cincias Sociais em geral.Esse processo de mudana historiogrfica que culminou na vitria dos revisionistas
teve incio em meados dos anos 1960 e se consolidou ao longo das duas dcadas seguintes,
beneficiando grandemente da abertura parcial e gradual dos famosos arquivos soviticos.
Apesar da mudana de paradigmas pelas quais passou a historiografia ao fim do sculo xx,
principalmente com o advento do chamado giro lingustico e da ascenso de vertentes
epistemolgicas ps-modernas3, encaramos que algumas das contribuies fundamentais
desses estudos revisionistas ancorados na Histria Social se mantm atuais e retm suaimportncia para uma reflexo crtica. Especialmente ante o referido retorno ainda que por
vias diferentes da velha tese da continuidade, nos marcos do novo revisionismo neoliberal.
Dessa forma, encaramos ser importante o resgate das contribuies dos primeiros
revisionistas, que se contrapuseram ao consenso sovietlogo, principalmente no que tange
suas crticas aos antigos defensores dessa tese.
Mas iremos mais alm do que um simples panorama de diferentes vertentes
historiogrficas conflitantes. Conforme nossa anlise destas balizada pela adeso aomarxismo, e, consequentemente, possui carter crtico, tambm resgataremos anlises
originadas no campo epistemolgico ao qual nos filiamos. Apesar de no ter obtido at hoje
um peso expressivo dentro da historiografia acerca da Revoluo Russa e da Unio Sovitica,
estudiosos que se pautam por uma compreenso marxista da realidade foram capazes, a nosso
ver, de produzir snteses de grande sofisticao.
Mais especificamente, apresentaremos uma sntese das contribuies intelectuais de
Leon Trotsky, cujas anlises acerca da Unio Sovitica e do fenmeno stalinista (elaboradas
3Cf. Segrillo, . A historiografia da revoluo russa: antigas e novas abordagens. Projeto Histria, v. 41,dezembro de 2010, pp. 83-85.
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em torno de conceitos como reao termidoriana e Estado operrio degenerado)
constituem uma poderosa contraposio a tese da continuidade seja em sua forma
sovietloga ou em sua verso ressurreta.
Portanto, mais do que um balano historiogrfico, nosso trabalho constitui uma anlise
crtica de partes da produo historiogrfica pregressa e recente e, acima de tudo, uma tomada
de posio em favor de determinadas anlises marxistas e, consequentemente, da necessidade
de uma batalha em seu favor nos meios acadmicos e intelectuais.
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CAPTULO 1
A TESE DA CONTINUIDADEONTEM E HOJE
Um breve panorama das produes anteriores ao surgimento da sovietologia e do
quase que concomitante predomnio da tese da continuidade que o acompanhou suficiente
para demonstrar a historicidade dos contornos assumidos pelos estudos sovietlogos. Bem
como para se ter noo de que uma srie de outras questes permeava os escritos produzidos
sobre a Revoluo Russa antes da consolidao do regime stalinista e da centralidade que
assumiu o debate sobre suas origens e possveis ligaes diretas com o projeto revolucionrio
original dos Bolcheviques.
1.1. A riqueza e a diversifica das !ri"eiras !rdu#es
Um farto e diversificado material foi produzido logo aps a revoluo, principalmente
de cunho autobiogrfico e jornalstico, e que tendia a tomar posies claras quanto aos
eventos que relatava. Tal material teve como autores figuras polticas proeminentes, como
opositores que se exilaram na Europa e agentes do processo revolucionrio, bem como
jornalistas que se encontravam em solo russo. Alguns exemplos de tais obras podem ser
encontrados em balanos historiogrficos, como o realizado pelo historiador ngelo Segrillo,
Historiografia da Revoluo Russa: antigas e novas abordagens4.
Entre as produes de cunho autobiogrfico destacou-se, por exemplo, a escrita por
Aleksandr Kerensky, Primeiro Ministro derrubado junto com o Governo Provisrio pela
Revoluo de Outubro, e que relata os eventos a partir do ponto de vista de uma experincia
que teria sido bruscamente abortada, possuindo um ttulo que toda uma sntese: A
Catstrofe (The Catastrophe, 1927).
J entre os materiais de carter jornalstico, um dos mais difundidos sem dvidas o
relato do jornalista norte-americano John Reed, Os dez dias que abalaram o mundo (Ten
Days that Shook the World, 1919). Alm de ter angariado grande popularidade no mundo
anglo-saxo, tal livro foi recebido com bons olhos pelo regime sovitico, que o reeditou vrias
vezes e at mesmo financiou uma adaptao cinematogrfica5. Baseando-se em suas
4Cf. Cf. Segrillo, . Op. cit., p. 65.5O renomado filme realizado por Sergei Eisenstein e Grigori Aleksandrov, Outubro (Oktyabr', 1927).
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observaes realizadas no principal palco dos eventos revolucionrios, Petrogrado, o livro de
Reed conta ainda com o contato prximo que este pode ter com figuras de destaque dos
principais agrupamentos envolvidos nas disputas polticas de ento e se configura enquanto
um relato entusiasmado de um defensor da revoluo.
Outro jornalista que atingiu considervel destaque por seus relatos in loco foi o
correspondente do peridico britnico The Guardian, Morgan Philips Price. Price teve
opinies mais ambguas do que as de Reed acerca da revoluo, tendo mudado seu juzo sobre
ela alguns vezes enquanto escrevia seus relatos e anlises. Estes foram produzidos
principalmente a partir de observaes realizadas nas provncias, proporcionando assim um
ponto de vista alternativo ao de outros correspondentes alocados nos centros urbanos de maior
peso. Na abertura de uma coletnea de escritos seus, organizada por sua filha em 1998, EricHobsbawm se referiu a tal material como um importante suplemento Histria da Revoluo
Russa e um corretivo til para a reao ps-sovitica contra ela6.
Ao mesmo tempo em que esse tipo de material era produzido, desde a Rssia alguns
historiadores de formao realizaram pesquisas, ainda no calor dos acontecimentos, acerca do
evento que vivenciavam. Entre estes se destacou Mikhail Pokrovsky, ligado ao Partido
Bolchevique. Mas ele esteve longe de ser o nico, inclusive porque o prprio partido investiu
na promoo de espaos de difuso, como peridicos cientficos, para a produo ento emcurso de uma Histria do Tempo Presente avant la lettre, como apropriadamente a nomeou
Segrillo7.
Mas no foram apenas os historiadores de formao que produziram obras at hoje
valorizadas por sua rigorosidade e capacidade analtica. Podemos citar aqui o exemplo de
Leon Trotsky, membro do Partido Bolchevique diretamente envolvido nos eventos
revolucionrios de 1917 e que publicou uma Histria da Revoluo Russa em trs volumes,
na qual buscou aliar o relato da revoluo a uma compreenso das especificidades histricas eestruturais por detrs do desenvolvimento russo (Istoriya Russkoi Revolyutsii, 1930). Nessa
vertente tambm se encontram as diversas obras de Victor Serge, entre as quais se destacou
O ano um da revoluo russa (Lan 1 de la rvolution russe, 1930).
Alm desses tipos de materiais, impossvel no mencionar os diversos escritos
propriamente polticos que trataram de defender ou criticar o processo revolucionrio, como
os incisivos A revoluo russa - Uma avaliao crtica, de Rosa Luxemburgo (Die russische
6Hobsbawm, E. Foreword. In: PRICE, M.Dispatches from the Revolution:Russia 1916-1918(Ed. TaniaRose). Durham: Duke University Press Books, 1997, p. xii.7Segrillo, . Op. cit., p. 66.
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Revolution - Eine kritische Wrdigung, 1918), A ditadura do proletariado, de Karl Kaustsky
(Die Diktatur des Proletariats, 1918) e a resposta de Lenin a este, A ditadura do proletariado
e o renegado Kautsky (Proletarskaya revolyutsiya i renegat Kautsky, 1918).
Pode-se vislumbrar, portanto, a riqueza que permeou a nascente produo
(historiogrfica ou no) acerca da Revoluo Russa e daquilo que viria a ser a Unio
Sovitica. Percebe-se que, nesse primeiro momento, foi marcante a atuao de agentes
variados e a produo de tipos diferentes de materiais que iam de relatos jornalsticos e de
materiais que hoje seriam encarados como peas de memria produes realizadas por
historiadores de formao, passando por anlises de flego escritas por personagens
diretamente envolvidos nos eventos por eles analisados.
Quanto sua temtica, esse verdadeiro boomde escritos que se seguiram a 1917 tinhacomo tema principal o processo revolucionrio propriamente dito. Essas obras buscavam
analis-lo a partir de perspectivas e recortes variados e almejavam, a um s tempo, tecer uma
narrativa factual aliada a anlises do que teria causado e possibilitado as Revolues de
Fevereiro e de Outubro. E, no raro, assumiam claras posies de condenao ou defesa
desses processos e de seus principais agentes polticos.
de se considerar, portanto, que houve uma significativa perda quando essa riqueza
presente na produo dos anos 1920 e 1930 deu lugar, nas dcadas seguintes, ao que oStephen Cohen nomeou de consenso acadmico, ao fazer um balano historiogrfico de
grande importncia para a compreenso dos contornos que a sovietologia assumiu aps a
Segunda Guerra Mundial, no auge da Guerra Fria. Foi nesse momento que o estudo da
Revoluo de Outubro e da formao social por ela gerada ganhou maior espao na academia
e foi batizado de sovietologia, passando a predominar nos estudos produzidos a questo a
qual aludimos anteriormente, acerca da existncia ou no de uma continuidade fundamental.
1.$. O c%se%s svie&'() e a res!s&a revisi%is&a
No balano em questo, presente no que se pode considerar enquanto uma obra-sntese
da produo historiogrfica de Cohen, Rethinking the Soviet Experience Politics & History
Since 1917(1985), tal historiador traa aquelas que encara serem as principais caractersticas
desse consenso, cuja base epistemolgica seria o paradigma totalitarianista. Tal paradigma,
cuja origem indigna remonta ao seio do movimento fascista italiano e que foi popularizado
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enquanto categoria analtica por Hannah Arendt8, pautou a maior parte da produo
acadmica acerca da Unio Sovitica entre o final dcada de 1940 e o comeo dos anos 1960,
quando comeou a perder fora, tendo sido em grande parte abandonado no incio dos anos
19709.
Em oposio ao consenso sovietlogo, tomou forma em meados da dcada de 1960
um campo um tanto quanto difuso, mas unido por algumas linhas gerais em comum, que ficou
conhecido como revisionista. Cohen no s se reivindica como parte deste10, como
Rethinking the Soviet Experience muitas vezes tida como uma obra de referncia para se
compreender tal vertente e a sua adversria sovietloga (ou totalitarianista, uma vez que
Cohen enxerga a sovietologia como um campo de estudos, e no uma escola
historiogrfica11).Na avaliao de tal historiador, um dos debates que mais marcaram a sovietologia era
a avaliao da relao entre Bolchevismo e Stalinismo12pois, da resposta a essa questo, teria
resultado uma srie de desdobramentos ao nvel da interpretao dos fatos ocorridos entre os
primeiros anos de vida do Partido Bolchevique e o regime que se consolidou nos anos 193013.
Frente ao desafio analtico apresentado por essa questo, os sovietlogos, aplicando o
paradigma totalitarianista, se distanciaram consideravelmente da sofisticao e multiplicidade
de interpretaes presentes nos estudos desenvolvidos nas dcadas de 1930 e 1940, tendoeliminado de seu prprio objeto tudo de diverso e problemtico14. Ao encarar que os ricos
eventos dos anos 1920 constituram to somente uma ante-sala do Stalinismo, ou um
Stalinismo ainda no totalmente desenvolvido/implementado, essa vertente historiogrfica
estabeleceu a suposta existncia de uma continuidade ininterrupta (an unbroken continuity) na
histria da Unio Sovitica e no processo da Revoluo de Outubro como sendo um dos
principais pilares do consenso por ela gerado no meio acadmico15.
Essa tese da continuidade da qual estamos tratando, alicerou de forma quase quemanualesca os trabalhos produzidos sob o paradigma totalitarianista, gerando assim uma
8O uso original do termo remete s crticas do liberal italiano Giovanni Amendola ao movimento liderado porBenito Mussolini. Os fascistas italianos, entretanto, o adotaram rapidamente enquanto sntese de sua propostapoltica. Mais tarde, Arendt o recuperou e o transformou em categoria analtica, em The Origins ofTotalitarianism(1951), que logo se tornou uma referncia padro para os sovietlogos.9Cf. Cohen, S. Op. cit., pp. 3 e 27)10 Cf.Id., ibid.,Preface.11Quanto a essa questo, cf. nota 2.12
Id., ibid.,p. 38.13Id., ibid.,p. 53.14Id., ibid.,p. 7.15Id., ibid.,pp. 43-44.
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narrativa comum aos seus adeptos. Em dada ocasio, o historiador marxista Kevin Murphy
sintetizou essa narrativa-padro da seguinte forma:
[] These accounts typically began by holding up Lenin's What Is to Be Done? asan embryonic dictatorial blueprint, fully developed well before the Revolution. Fromhere it was but a short step to the assertion that a conspiratorial minority had seizedpower in 1917 thought a coup dtat, monopolized the state for its own purposes,and created the totalitarian party-state. Through iron discipline and brutal terror, theBolsheviks subsequently prevailed in the civil war of 1918-1921, but the exhaustedvictors were forced to retreat temporarily during the New Economic Policy (NEP,192l-1928). Driven by ideological zealotry, the thesis concludes, the totalitarianmachine then proceeded to pulverize society. State-imposed collectivization, forcedrapid industrialization, and mass terror are thus viewed as organic elements in aninevitable process driven by the Bolsheviks' inner totalitarian logic.16
Analisando a tese da continuidade estabelecida pelos sovietlogos, Cohen os acusou
de serem orientados por um determinismo monocausal, uma vez que reduziam os eventos
da histria sovitica a consequncias diretas das aes e desejos das lideranas do Partido
Bolchevique, imputando, assim, um carter de inevitabilidade Histria17. Por detrs desse
determinismo, residiria um mtodo analtico que avaliava o passado nos termos do presente,
os antecedentes nos termos dos resultados18, possuindo assim carter verdadeiramente
teleolgico.
Alm disso, os sovietlogos entendiam a formao social sovitica, em todos os seusaspectos, como um monlito do ponto de vista poltico e cultural. Consequentemente, estes
no viam prejuzo em centrar suas anlises nos chamados estudos de regime (em
contraposio a estudos sociais), tendo por objeto principal a poltica formal da alta cpula
do Partido Bolchevique e do Estado, que era utilizada para interpretar a histria sovitica
como um todo19.
Tais caractersticas marcaram as anlises sovietlogas com uma perspectiva
consideravelmente ahistrica, a partir da qual seus adeptos se tornaram incapazes de integrar aelas as diversas mudanas que marcaram o Partido Bolchevique e o regime sovitico ao longo
das primeiras dcadas da nova formao social inaugurada pela revoluo20. Em sntese, para
16Murphy, K.Revolution and Counterrevolution: Class Struggle in a Moscow Metal Factory. Oxford: BerghahnBooks, 2005, p. 2. Essa sntese muito semelhante a que o prprio Cohen havia feito em sua obra aqui tratada(Cohen, S. Op. cit., pp. 5-6). Demos preferncia citao de Murphy por ser ela consideravelmente mais curta,sem apresentar perdas para a nossa exposio.17
Cf. Cohen, S. Op. cit.,pp. 43-44.18Id., ibid.,p. 52.19Cf.Id., ibid.,pp. 23-24.20Cf.Id., ibid.,p. 23.
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mais uma vez recorrermos s palavras de Cohen, preconceitos cegos, rtulos, imagens,
metforas e teleologia assumiram o lugar de explicaes reais21.
Ao comentar sobre esse paradigma totalitarianista que balizava os estudos
sovietlogos e que, anteriormente, fora muito utilizado para se analisar os fenmenos fascistas
(o nazismo alemo em especial)22, o historiador portugus Manuel Loff resumiu a questo de
seus significados conceitual e social da seguinte forma:
[...] a teoria do totalitarismo propunha uma explicao da mudana socialradical e da mobilizao social das massas nas sociedades contemporneascomo fenmenos necessariamente explicveis pela manipulao deliberada,calculada, arquitectada por grupos polticos que se autodescrevem comovanguardas.
Esta creio ter sido a maior vitria intelectual dos neoliberais dos anos 50, herdadapelos seus correligionrios do ltimo quarto do sculo XX: ler os processos demudana sociopoltica impulsionados pela participao das massas como jogos demanipulao de verdadeiros profissionais da subverso poltica, lanando, assim, asuspeita sobre a espontaneidade, a representatividade real de toda a mobilizaosociopoltica. Lida a realidade desta forma, as nicas formas de mudana social noartificiais, designemo-las assim, seriam produto de longos processos de mudana,suficientemente longos para resultarem de complicados processos de negociaoentre sectores das elites polticas e sociais, uns mais conservadores, outros maisreformistas, cujos produtos finais seriam, portanto, sempre consensuados com osgrupos dominantes no momento em que tais processos teriam o seu incio. [...]23
Assim, mais do que um mero paradigma problemtico do ponto de vista metodolgico
e terico, a compreenso da realidade social centrada na categoria de totalitarismo estava
diretamente vinculada a certa viso apologtica da poltica, que colocava as democracias
burguesas ditas ocidentais como o patamar mais elevado e correto do fazer poltico,
contrapondo-se a projetos de transformao centrados na autonomia e agncia das grandes
massas. Mais adiante, ao tratarmos das tentativas recentes de restabelecer uma tese da
continuidade na historiografia da Revoluo Russa e da Unio Sovitica, tomaremos tal
discusso de forma mais aprofundada.
Por hora, cabe questionarmos como foi possvel, frente a todos esses elementos
problemticos que constituam as anlises sovietlogas, que suas concluses tenham se
21Id., ibid.,p. 6.22Para uma detalhada crtica de sua aplicao no caso dos estudos do fascismo/nazismo, cf. Paxton, R.Anatomiado Fascismo. Traduzido por Patrcia Zimbres e Paula Zimbres. So Paulo: Paz e Terra, 2007, pp. 345-350, paraquem A imagem totalitria pode evocar de forma poderosa os sonhos e as aspiraes dos ditadores, mas, naverdade, prejudica o exame da questo de importncia mais vital, ou seja, com que eficincia os regimes
fascistas conseguiram se encaixar nas sociedades, em parte submissas e em parte recalcitrantes, governadas poreles. (Id., ibid.,p. 350).23Loff, M. Depois da Revoluo?...Revisionismo histrico e anatemizao daRevoluo.Histria & Luta deClasses,n. 12, setembro de 2011, pp. 8-9. Grifo do original.
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estabelecido por mais de duas dcadas enquanto o consenso historiogrfico do perodo. Para
tal, necessrio situ-la na conjuntura poltica da poca e no seu local de origem, os Estados
Unidos.
O paradigma totalitarianista e tese da continuidade, que combinados traavam um
perfil absolutamente negativo da Unio Sovitica e do comunismo em geral s puderam se
tornar hegemnicos entre os estudos acadmicos graas possibilidade de sua
instrumentalizao poltica, uma vez que serviam de sustentculo poltica externa dos
governos norte-americanos que operaram segundo a lgica da Guerra Fria, bem como do
discurso oficial anticomunista. Estes elementos conjunturais eram iconicamente expressos na
ao de instituies como o Comit de Atividades Antiamericanas (rgo da House of
Representatives, uma das duas cmaras do Parlamento norte-americano) e em toda a histeria eperseguies pblicas promovidos por polticos como o senador Joseph McCarthy ao longo
da dcada de 1950.
Frente a esse contexto, a sovietologia tornou-se um campo de estudos extremamente
importante para o stablishment norte-americano, que a alimentou com generosas verbas. Os
sovietlogos obtiveram grandes financiamentos para suas pesquisas junto ao governo e a
diversas corporaes capitalistas nas dcadas de 1950 e 1960, dentre elas as Fundaes Ford e
Rockfeller24
. Comentando acerca desse contexto mais geral que abarcava a sovietologia etambm outras reas, o historiador Josep Fontana afirmou que
[...] Nunca houve uma associao to ntima entre os historiadores e o poder como aque se estabeleceu nestes anos. Historiadores acadmicos de prestgio trabalharampara o governo alguns em cargos importantes como Schlesinger, Kennan ouRostow , primeiro na OSS [Office of Strategic Services], depois na CIA [CentralInteligence Agency], no Departamento de Estado ou em instituies controladas porestes.25
Aos historiadores cabia, agora, no apenas defender os valores sociais estabelecidos,
funo que tradicionalmente haviam realizado, mas tambm abrir a sociedade norte-americana ao novo papel de protagonista no cenrio mundial que o pas,tradicionalmente isolacionista, havia assumido. [...]26
Concomitante promoo e ao financiamento de estudos marcadamente anti-
soviticos, aqueles acadmicos que assumiam posies crticas e dissidentes frente ao
consenso estabelecido (e imposto) corriam o risco de perseguies diretas ou indiretas, que
24Cf.Id., ibid.,pp. 3-4, 10 e 16.25Fontana, J. As guerras da histria. In:A histria dos homens. Bauru: Edusc, 2004, pp. 347-348.26Id., ibid.,p. 349.
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podiam ir desde a excluso de redes de favoritismo acadmico at a demisso em momentos
de caa s bruxas, chegando priso em casos extremos27.
Assim, essa interferncia no campo de estudos por parte de foras sociais
objetivamente interessadas em uma oposio (e mesmo na destruio da) Unio Sovitica
imprimiu sovietologia um forte matiz anticomunista. Dessa forma, Cohen encara que a
sovietologia foi levada produo de estudos cujo objetivo eram gerar explicaes para o
comunismo ser algo necessariamente mal (evil) ou demonstraes de que tal maldade
permeava todo e qualquer momento da histria sovitica28. Nesse sentido, o historiador
ngelo Segrillo, em seu j citado balano historiogrfico, denominou tal vertente de
estudiosos como cold warriors29 nomenclatura mais do que adequada para se referir a
verdadeiros combatentes da Guerra Fria a servio da poltica do governo norte-americano, taiscomo os historiadores Richard Pipes e Robert Conquest (talvez os mais conhecidos
sovietlogos, cujos cargos em rgos governamentais foram um complemento central de
suas carreiras acadmicas).
Mas, apesar da hegemonia angariada pela escola totalitarianista nos meios acadmicos
norte-americanos e da difuso que seus membros mais proeminentes obtiveram fora do pas,
influenciando profundamente os estudos historiogrficos da poca, alguns estudiosos
dissidentes conseguiram se destacar sem compartilhar desse consenso made in USA. Foi ocaso, por exemplo, do historiador polons erradicado na Inglaterra, Isaac Deustcher.
Deutscher conseguiu uma visibilidade considervel com sua primeira obra, uma biografia de
Stalin (Stalin: A political biography, 1949), aps a qual continuou a produzir materiais sobre
a Unio Sovitica como sua conhecida biografia de Trotsky em trs volumes, publicados
entre 1954 e 1963. Vale ressaltar que Deutscher no s no compartilhava dos pontos que
unificavam os totalitarianistas, como era um marxista declarado, baseando-se, portanto em
paradigmas extremamente diferentes daqueles dominantes no meio acadmico de ento.Outro historiador que obteve grande destaque no campo da sovietologia sem fazer
parte da escola totalitarianista foi o britnico E. H. Carr, autor de uma monumental Histria
da Revoluo Russa em quatorze volumes, amplamente citada at hoje (A History of Soviet
Russia, 1950-1978).
Obviamente no foi um acaso que estes historiadores, bem como alguns outros que
poderamos aqui incluir, tenham se formado e produzidoforados Estados Unidos. Entretanto,
27Cf.Id., ibid.,p. 18.28Cf.Id., ibid.,p. 14.29Segrillo, . Op. cit., pp. 73-74.
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se nessa poca havia no dito ocidente escasso espao para produes historiogrficas
sofisticadas, a situao dentro da Unio Sovitica no era muito diferente daquela nos EUA
exceto por uma inverso de paradigmas. Tal qual ocorrera no ocidente, uma produo
inicialmente rica e diversificada acabou por dar lugar a um consenso baseado em anlises
rasas e explicaes simplificadoras, cujo maior smbolo era o manual oficial do regime, a
Histria do Partido Comunista de Toda a Unio (bolchevique) - Breve Curso (Kratkii Kurs,
1938).
Conforme apontou o j mencionado Kevin Murphy, a produo acadmica sovitica
da poca em questo pode ser considerada enquanto o reverso da moeda da escola
totalitarianista:
[...] The depiction of the steady and heroic march of the Soviet people from 1917toward Communism under the leadership of the party was an inverted image of theOriginal Sin version put forward by Western academic. Soviet scholars advancedlinear accounts purged of contingency, in which alternative political strategies andpossibilities were trivialized or completely ignored, and which depicted ordinarySoviet citizens as passive followers of the dictates of an unerring party.30
***
Mas o domnio da escola totalitarianista, apesar de prolongado, no passou inclume
s mudanas conjunturais ocorridas em fins da dcada de 1950. Conforme aponta Cohen, a
mudana nas relaes diplomticas entre o governo norte-americano e a Unio Sovitica ps-
Stalin (por vezes nomeada de dtente), bem como os conflitos que marcaram o chamado
Bloco Socialista (a ruptura sino-sovitica e os diversos conflitos no Leste Europeu,
marcadamente a Revoluo Hngara de 1956), abalaram consideravelmente as certezas
tecidas pelo consenso acadmico sovietlogo31. A esses elementos conjunturais podemos
ainda adicionar o enorme abalo gerado no prprio movimento comunista internacional por
conta do XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica, com a revelao dochamado Relatrio Khrushchev (1956).
Em sntese, durante um mesmo perodo de tempo relativamente curto, vieram tona
para os observadores externos (ao menos queles dispostos a enxergar) a diversidade de
projetos presentes no interior do que antes era considerado um monlito, enquanto o governo
norte-americano alterava para tons menos hostis as suas relaes diplomticas com aquilo que
a propaganda oficial at ento veiculava como a verdadeira encarnao do mal.
30Murphy, K. Op. cit., p. 2.31Cf. Cohen, S. Op. cit., p. 28.
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Assim, no s a conjuntura poltica passou por uma mudana considervel, como uma
grande quantidade de possveis novas fontes surgiu para aqueles dispostos a confrontarem as
anlises at ento hegemnicas. Nas palavras de Cohen, realidades multicoloridas [...]
colidiram cada vez mais com os esteretipos cinzas da sovietologia32.
No momento em que ocorriam essas mudanas responsveis pela alterao da
conjuntura da Guerra Fria, uma nova gerao de acadmicos iniciou seus trabalhos
historiogrficos, operando assim sob um contexto bem diferente daquele de seus antecessores
totalitarianistas. Esse contexto foi marcado, segundo Cohen, acima de tudo por uma maior
liberdade em relao s restries impostas pela Guerra Fria e tambm pela oportunidade de
participao em programas de intercmbio que permitiam a ida Unio Sovitica, criados em
195833.Dessa leva de novos acadmicos que surgiu a escola revisionista, que se
caracterizou fundamentalmente pela empreitada de desconstruo do consenso previamente
dominante e pela sua substituio por estudos mais sofisticados e diversificados. Foi nesse
novo momento historiogrfico que destacaram historiadores como Moshe Lewin, Ronald
Suny, Marc Ferro, Alexander Rabinowitch e o prprio Stephen Cohen, dentro tantos outros.
A principal marca de seus escritos, em contraposio escola totalitarianista, foi a
valorizao de uma histria vista de baixo, alicerada em pesquisas arquivsticas34
.Pesquisas estes guiadas por uma compreenso no determinista, que por vezes se mostrou
capaz de apreciar o devido lugar na Histria das possibilidades no realizadas, e que levava
em conta a existncia de mltiplas causalidades.
Paralelamente, tambm na Unio Sovitica, o consenso predominante encontrou
resistncias sob o novo clima de relativa distenso da perseguio e apertado controle
poltico, dando espao para estudos que fugiam quilo at ento imposto pelos manuais35.
nesse contexto que iniciaram suas respectivas produes historiogrficas alguns dos autoresmais tarde valorizados pelos revisionistas ocidentais, como o amplamente citado Roy
Medvedev.
A nosso ver, a principal contribuio do esforo revisionista foi ter refutado, desde
pesquisas empiricamente aliceradas, os principais pilares da escola totalitarianista, que se
baseava largamente em especulaes escoradas na dificuldade de acesso aos arquivos
oficiais produzidos pelo Estado sovitico. A falta de acesso fontes primrias ligadas a
32
Id. Ibid., p. 29.33Id. Ibid., p. 29.34Cf. Segrillo, . Op. cit., p. 75.35Id. Ibid., pp. 86-87.
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assuntos demogrficos, econmicos, culturais e mesmo a questes do dia a dia (como atas de
reunies dos mais variados tipos de organismos coletivos, por exemplo) e ainda dos variados
rgos de segurana e inteligncia do governo, criou uma enorme margem para todo tipo de
abstraes. Margem essa que foi largamente aproveitada pelos sovietlogos e adeptos do
consenso totalitarianista em geral, que buscaram preencher as lacunas existentes com seu
paradigma simplificador e extremamente apriorstico.
Na contramo dessa abordagem, os revisionistas contestaram a viso da formao
social sovitica enquanto monlito, fundamental ao conceito de totalitarismo, bem como a
tese da continuidade, segundo a qual o regime stalinista seria o fim lgico do projeto
bolchevique. A partir de seus estudos, os historiadores revisionistas apresentaram ao meio
acadmico interpretaes alternativas e mais sofisticadas para se pensar o Stalinismoenquanto um fenmeno histrico, fruto de condies muito mais diversas do que pressupunha
o determinismo monocausal predominante nos estudos sovietlogos.
No lugar da narrativa padro segundo a qual uma linha reta partia da publicao de
Que Fazer? e chegava aos gulags, fazendo um pequeno desvio de percurso durante o
perodo na NEP, esses trabalhos trouxeram tona a questo das alternativas histricas. Dessa
forma, buscaram entender as diferentes causalidades por trs do surgimento do Stalinismo,
incluindo a quais outros projetos teriam fracassado ante a sua vitria. Seus trabalhos tambmincluram a tentativa de compreenso das especificidades de cada um dos momentos que
marcaram a Rssia revolucionria antes da dcada de trinta, buscando analisar a tomada do
poder, o comunismo de guerra e a NEP a partir de suas prprias especificidades, ao invs de
tentar encaix-los em uma narrativa teleolgica onde todo e qualquer evento fazia parte de um
plano que teria no regime stalinista sua concretizao final.
Nesse sentido, as produes revisionistas, apesar de sua multiplicidade de concluses
e linhas de anlise, tenderam a chegar a alguns pontos de convergncia, criando assim seuprprio consenso, contraposto quele da sovietologia. Esses pontos foram sobretudo o
reconhecimento de uma diferena fundamental entre Bolchevismo e Stalinismo, bem como
entre os primeiros momentos da nascente formao social sovitica e o regime que se
consolidou em meados da dcada de 1930 a refutao, portanto, da tese da continuidade.
Outros pontos importantes dessa convergncia entre os revisionistas incluam a
refutao da Revoluo Russa como sendo to somente um golpe de Estado orquestrado por
uma minoria de fanticos, como costumavam defender os totalitarianistas, e a suposio (por
vezes no to embasada em anlises de fontes) de que, no lugar de uma represso brutal,
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haveria um considervel apoio popular ao regime Stalinista36 a refutao, portanto, da
caracterizao da formao social sovitica enquanto um monlito totalitrio.
Apesar dessas concluses terem sido comuns a muitos estudos revisionistas, elas
partiam de anlises diferentes, por vezes excludentes entre si. Acreditamos que tais anlises
contm muitas contribuies importantes, mas nem por isso as reivindicamos integralmente.
Ao contrrio, apresentaremos mais adiante aquilo que acreditamos ser a alternativa terica
que, complementada com as contribuies produzidas no meio acadmico a partir da segunda
metade do sculo xx, se torna um avanado instrumento de anlise da histria sovitica.
Vamos, ento, a alguns exemplos dessas anlises revisionistas, bastante inovadoras em seu
tempo.
1.*. A()u"as das c%&ri+ui#es revisi%is&as
1.*.1. ,&e!-e% C-e%
Stephen Cohen, que utilizamos aqui como referncia para resumir os debates
acadmicos do ps-guerra, atuou principalmente no sentido de resgatar algumas das
alternativas histricas suprimidas pela vitria do Stalinismo. Seu trabalho se deuparticularmente no sentido de restaurar a importncia de Nikolai Bukharin enquanto terico
de destaque dentro do Partido Bolchevique e durante os primeiros momentos da histria
sovitica. Das suas pesquisas acerca de Bukharin, Cohen concluiu que existem diferenas
fundamentais entre Bolchevismo e Stalinismo. Sua caracterizao do Stalinismo enquanto
fenmeno poltico estabelece como sua principal marca distintiva o excesso e o
extremismo, que teriam se mantido enquanto sua prpria essncia independemente das
diversas mudanas pelas quais ele passou
37
.Em relao ao Partido Bolchevique e ao regime sovitico, Cohen aponta para uma
considervel mudana ocorrida em suas estruturas, em concordncia com as consideraes
que j haviam sido realizadas pelo historiador revisionista Robert Tucker. Estas teriam
passado de um sistema de ditadura partidria caracterizada por uma poltica de liderana
oligrquica dentro do partido governante, para uma ditadura pessoal38.
36No que concerne essa suposio em particular, estudos mais recentes vieram a contest-la a partir de pesquisas
arquivsticas. Exemplo disso a obra do j citado historiador marxista, Kevin Murphy,Revolution andCounterrevolution: Class Struggle in A Moscow Metal Factory.37Cf. Cohen, S. Op. cit.p. 48.38Id., ibid., p. 54.
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A interpretao de Cohen do Stalinismo enquanto uma descontinuidade em relao ao
Bolchevismo se baseia em uma anlise que encaramos bastante problemtica, e para a qual
apresentaremos uma alternativa mais adiante, ao tratarmos da contribuies do marxismo.
Resumidamente, este encara que a coletivizao forada da terra, realizada entre 1928 e 1929
e costumeiramente chamada pelos revisionistas de uma revoluo pelo topo (revolution
from above), teria sido o ponto de virada a partir do qual se consolidou a ruptura definitiva do
Stalinismo em relao ao Bolchevismo: Esses anos de revoluo pelo topo foram,
historicamente e programaticamente, o perodo de nascena do Stalinismo. A partir dessa
primeira grande descontinuidade outras iriam se seguir39.
Mas essa descontinuidade no se daria tanto pelos mtodos utilizados, e sim pelo
programa. Para Cohen, a ruptura com o projeto da NEP seria a marca maior dadescontinuidade, uma vez que o programa defendido por Lenin seria aquele de um
capitalismo de Estado que evoluiria gradualmente para o socialismo40. Dessa forma, Cohen
encara que as teses de Bukharin seriam as que melhor representavam a continuidade do
Bolchevismo, indicando inclusive que todas as outras propostas, como aquelas de Trotsky e
Evgeny Preobrazhensky, se colocavam nos marcos da continuidade da NEP41.
Alm da incompreenso acerca do programa econmico original da Oposio de
Esquerda (um dos grupos que compuseram a Oposio Unificada em 1926), formulado porTrotsky, Preobrazhensky e outros quadros bolcheviques, essa anlise de Cohen demonstra
certo desconhecimento acerca da evoluo do pensamento de Lenin.
Se, por um lado, verdade que, por volta de 1918, Lenin tentou formular um conceito
de capitalismo de Estado com o intuito de dar conta de explicar como se daria a transio da
Unio Sovitica para o socialismo na conjuntura de isolamento internacional e baixo
desenvolvimento das foras produtivas na qual ela se encontrou ao fim da guerra civil, por
outro, esse conceito foi posteriormente abandonado, por volta de 1920
42
.No nossa inteno adentrar aqui no complexo debate acerca dos diferentes projetos
defendidos pelos quadros do Partido Bolchevique durante os primeiros anos da nova
formao social sovitica este pode ser facilmente encontrado em diversas obras. O que
buscamos ressaltar foi que, apesar de suas limitaes e equvocos, Cohen foi capaz de
elaborar uma anlise alternativa monocausalidade determinista que sustentava a narrativa-
39Id., ibid., p. 62.40
Cf.Id., ibid., p. 58.41Cf.Id., ibid., pp. 60-62.42Cf. Moshe, L.Lenins Last Struggle[1967]. Traduo de A. M. Sheridan Smith. 4 ed. Ann Arbor: TheUniversity of Michigan Press, 2008, pp. 26-28.
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padro produzida pela escola totalitarista acerca da histria sovitica e agentes importantes
como o Partido Bolchevique em geral e suas lideranas em particular. Vejamos, ento,
algumas outras contribuies.
1.*.$. arc /err
Entre os revisionistas cujos trabalhos obtiveram maior visibilidade consta o francs
Marc Ferro, cuja obra de maior destaque foi A Revoluo de 1917, publicada em dois
volumes (La Rvolution de 1917, 1967). Os estudos realizados por Ferro acerca da Revoluo
Russa e da Unio Sovitica so um bom exemplo de uma perspectiva de histria vista de
baixo. A partir deles, tal historiador contraps tese da continuidade o reconhecimento dedois momentos qualitativamente diferentes na histria sovitica: um primeiro, marcado pela
ampla participao popular, e um segundo, no qual esta teria dado lugar ao domnio de uma
burocracia governante.
Em uma sntese produzida em 1980, Dos soviets burocracia, Ferro detalha os
diferentes organismos de poder criados pelas massas russas no calor de suas lutas polticas e
que eram, em grande parte, inspirados na experincia prvia de 1905. Ferro chamou a ateno
para a existncia de uma srie de outros organismos para alm dos conhecidos soviets (osConselhos de Deputados), como os Comits de Bairro, os Comits de Greve, as diversas
variantes de milcias operrias e, principalmente, os Comits de Fbrica. Organizaes essas
que, ao atingirem expressividade, acabaram por gerar uma situao de duplo poder, uma
vez que acabaram por se tornar fontes paralelas de poder poltico muitas vezes contrapostas
s decises do Governo Provisrio43.
A partir do estudo de alguns desses organismos, Ferro ressaltou a espontaneidade que
por vezes se fez presente em seu surgimento, o que contradiz a interpretao cannicapresente no consenso acadmico das dcadas anteriores, segundo a qual a revoluo teria sido
sobretudo obra de uma minoria maquiavlica sem respaldo das massas.44
Porm, se Ferro se afasta do consenso totalitarista ao reconhecer o papel das massas,
em especial da classe proletria enquanto sujeito histrico dotado de conscincia e iniciativa
43Cf. Ferro, M.Dos soviets a burocracia [1980]. Traduzido por Cludio Nascimento. Porto Alegre: CentroEcumnico de Evangelizao, Capacitao e Assessoria, 1988, PP. 13-21.44O principal historiador revisionista a contrapor tal tese sovietloga a partir de uma densa pesquisa arquivstica
foi Alexander Rabinowitch, em sua obra Prelude to Revolution The Petrograd Bolsheviks and the July 1917Uprising (1968). Recentemente, tal historiador atualizou suas anlises em uma obra de flego. Cf. Rabinowitch,A. The Bolsheviks Come to Power. The Revolution of 1917 in Petrograd.Chicago: Haymarket Books, London:Pluto Press, 2004.
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prprias, ele se aproxima daquele em sua avaliao no que diz respeito ao papel do Partido
Bolchevique no processo de burocratizao do regime revolucionrio.
Em sua anlise vista de baixo, Ferro busca contrapor a atuao dos sindicatos e
tambm dos partidos em geral a essa espontaneidade das massas, estabelecendo entre esses
agentes uma dicotomia direta45. Se essa contraposio demonstradamente vlida para
organizaes como o agrupamento Menchevique, em relao a outras ela contradiz alguns dos
dados citados pela prprio historiador nomeadamente, em relao ao Partido Bolchevique.
Apesar das algumas generalizaes e amlgamas que Ferro produz em relao aos partidos,
falando deles em geral por diversas vezes, este reconhece que os Bolcheviques
simpatizavam com os diversos comits criados pelos trabalhadores46.
Na realidade, entretanto, estes expressavam mais do que uma mera simpatia pelosrgos de dualidade de poder, como o demonstra o peso da presena de delegados
bolcheviques na composio de alguns dos congressos nacionais e regionais desses comits,
bem como documentos citados pelo prprio Ferro, em que lideranas bolcheviques, como
Grigori Zinoviev, defendiam abertamente o controle operrio das empresas por parte dos
comits de fbrica e sindicatos47.
Sem resolver essa contradio entre sua anlise e os dados que apresenta, Ferro busca
demonstrar o suposto papel dos Bolcheviques enquanto os responsveis diretos pelaburocratizao. De proponentes e defensores diretos da dualidade do poder48, estes teriam
passado a seus maiores inimigos: quando, desde outubro, os soviets de deputados e os
sindicatos foram dominados pelos bolcheviques, os prprios bolcheviques se voltaram contra
as instituies populares autnomas49. Para Ferro isso teria ocorrido porque o surgimento e
a extenso de um poder popular autnomo punha em causa a autoridade das instituies tipo
partido e sindicato50.
A partir dessa oposio, Ferro defende que teria se desenvolvido um duplo processo deburocratizao, ocorrido tanto pelo alto, quanto por baixo. Entretanto, os dados por ele
apresentados mais uma vez contradizem as suas concluses, apesar de apontarem para uma
45Cf.Id., ibid., pp.19 e 20.46Cf.Id., ibid., p. 21.47Cf.Id., ibid., p. 21.48Expressa na famosa consigna toda poder aos soviets, lanada por Lenin em suas Teses de Abrilde 1917 eaprovadas pelo Partido em uma Conferncia Extraordinria realizada no mesmo ano. Cf. Getzler, I. Outubro de
1917: O debate marxista sobre a revoluo na Rssia. In: HOBSBAWM, Eric (org.).Histria do Marxismo.So Paulo: Paz e Terra, v. 5, 1985, p. 37.49Ferro, M. Op. cit., p. 25.50Id., ibid., p. 24. Grifo do original.
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tendnciade aumento da dependncia das massas nas organizaes partidrias51e de prticas
diferentes de burocracias espontneas derivadas da queda na participao popular por conta
da guerra civil52.
Essa tendncia, entretanto, no implica em um desaguamento direto no regime
stalinista das dcadas posteriores revoluo, mas sim um fator que deve ser analisado em
sua especificidade em conjunto com as alternativas e contratendncias que a eles se
apresentaram na poca. Em grande parte, podemos encarar que os embaraos contra-factuais
que marcam essa anlise de Ferro so frutos de um suporte terico inadequado, que parte do
princpio da oposio entre partidos/sindicatos e organizaes autnomas/espontneas ou
semiespontneas.
Esse tipo de posio tpico de uma corrente poltica em especfico, o chamadocomunismo de esquerda(ou de conselhos)53. A proximidade de Ferro com essa vertente se
faz ainda mais clara na sua avaliao da burocracia emergente, apressadamente classificada
como uma nova classe, cujas caractersticas centrais seriam uma nova fonte de renda,
atividade indita na sociedade, solidariedade funcional com o partido bolchevique e a ruptura
com as atividades de suas classes de origem54. Caractersticas essas que permitem a distino
de um grupo social especfico, mas no necessariamente de uma classe social, ao menos no
no sentido marxista do conceito. Mais adiante abordaremos a insuficincia terica por detrsdessas caracterizaes, ao tratarmos daquilo que encaramos ser a melhor alternativa terica
produzida para analisar a formao social sovitica.
*.*.*. s-e Le0i%
Por ltimo, no podemos deixar de mencionar as contribuies de Moshe Lewin, um
dos primeiros revisionistas a se destacarem. Lewin foi um exilado polons que, antes deiniciar sua carreira de historiador na Frana, havia passado pela Unio Sovitica, onde
trabalhara em uma fazenda coletiva, em uma metalrgica e onde servira no Exrcito
51Id., ibid., pp. 25-26.52Id., ibid., p. 26-27.53Representantes destacados dessa tendncia poltica e terica que, vale ressaltar, um tanto quanto variada so Herman Gorter e Anton Pannekoek nos Pases Baixos, Karl Korsh na Alemanha e Amadeo Bordiga na Itlia.Uma representao brasileira pode ser encontrada nas produes de Maurcio Tragtenberg, comoReflexessobre o socialismo, 1986). Boa parte das crticas de Ferro aos sindicatos podem ser entendidas tambm como
inspiradas nas posies da Oposio Operria, frao formada no seio do Partido Bolchevique em meados de1920 e liderada por figuras como Alexandra Kollontai e Alexander Chlyapnikov com as quais o autordemonstra clara simpatia ao longo de seu artigo aqui analisado.54Id., ibid., p. 28-29.
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Sovitico. Influenciado por suas experincias passadas, Lewin estudou as relaes entre o
campesinato e o regime sovitico (La Paysannerie et le Pouvoir Sovietique, 1966).
Nos estudos seguintes, seu foco passou a residir principalmente nos projetos e no
pensamento de figuras proeminentes do regime sovitico, bem como em suas estruturas
polticas e econmicas. Em uma de suas obras de grande destaque, A ltima batalha de
Lenin (Le Dernier Combat de Lenin, 1967), Lewin realizou uma pioneira anlise dos ltimos
anos de vida do principal lder sovitico antes de Stalin, utilizando-se largamente do material
presente em suas Obras Completas (especificamente sua 5 edio) e tambm de material
ento recentemente liberado para o pblico, como o Dirio das Secretrias e uma coleo de
memrias de uma das principais secretrias de Lenin55.
Atravs da anlise que realizou a partir de tais materiais, fartamente cotejada por umprofundo conhecimento factual acumulado atravs de suas pesquisas anteriores, Lewin
demonstrou as relaes tensas que existiam entre Lenin e os demais lderes do Partido
Bolchevique (ento j chamado de Comunista) durante seus ltimos anos de vida,
particularmente Stalin. Ao analis-las, Lewin destacou trs momentos especficos em que essa
tenso assumiu um carter de conflito aberto.
O primeiro foi o debate no Politburo (Bureau Poltico, principal rgo dirigente o
Partido Comunista aps a revoluo) acerca do abandono ou no do monoplio do comrcioexterior. Disputa na qual Lenin se aliou a Trotsky contra a maioria do Politburo, que era
favorvel ao abandono, e que perdurou de fins de 1921 at meados de 1922, com a vitria
final da posio destes dois.
O segundo foi o caso da agresso fsica que sofreu um dirigente do Partido Comunista
da Gergia, Ordzhonikidze, por parte de um enviado do PC russo. Esse caso foi
consideravelmente acobertado por Stalin e seus aliados prximos, que, nas palavras do
prprio Lenin, trataram o ocorrido com conivncia
56
, levando-o a promover umainvestigao clandestina em fins de 1922 e meados de 1923, na qual contou mais uma vez
com a colaborao prxima de Trotsky57.
Por ltimo, o terceiro caso foi uma contenda pessoal entre Lenin e Stalin, gerada por
conta deste ltimo ter supostamente ofendido a esposa de Lenin e militante do Partido,
55Cf. Lewin, M. Op. cit., Preface.56Lenin, V. ltimos escritos e Dirio das secretrias (Ed. Por Henrique Canary). So Paulo: Editora Jos Luis eRosa Sundermann, 2012, p. 127.57
Clandestina pois Lenin estava sob ordens estritas de seus mdicos para que no se envolvesse em nenhumtipo de atividade poltica, por conta de um derrame que sofrera aps um atentado no qual um militante doagrupamento Socialistas Revolucionrios (SR) o feriu com um tiro. Essas ordens haviam sido acatadas ereforadas pelo Politburo do PC, mas Lenin as infringiu por mais de uma vez.
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Nadezhda Krupskaia frente ao que Lenin exigiu uma imediata retratao por parte daquele,
ameaando romper relaes em uma carta de maro de 192358.
Para alm de analisar esses conflitos entre Lenin e os demais dirigentes do Partido
Comunista, que teriam marcado o que Lewin caracterizou como o eclipse [de sua] cabea
suprema59, este tambm demonstrou a intensa preocupao que marcaram os ltimos anos de
atividade de tal dirigente em relao aos rumos que o Estado sovitico vinha tomando. Um
dos temas que predominaram em seus ltimos escritos o que, em suas prprias palavras,
Lenin nomeava de questo burocrtica, isto , a progressiva substituio das massas pelo
Partido e, por sua vez, a substituio deste pelos estratos administrativos internos e estatais.
Essa preocupao, bem como as medidas que Lenin buscou para reverter tal
fenmeno, demonstram de forma clara que no existia uma linha direta de continuidade entreseus planos e seu pensamento e aqueles de Stalin, que viria a se tornar o smbolo mor da
culminao de tal processo de domnio da burocracia sobre as massas soviticas e sobre o
prprio Partido Bolchevique.
Conforma conclui Lewin, o tipo de regime que se consolidou na dcada de 1930 no
s no fazia parte dos planos estratgicos dos Bolcheviques, como foi fruto de uma srie de
elementos muito mais diversos do que supunha o consenso sovietlogo e sua defesa de uma
continuidade ininterrupta entre 1917 (ou mesmo 1903) e o regime stalinista. Contra essaperspectiva, Lewin ressaltou a importncia da necessidade de uma perspectiva histrica para a
devida compreenso das origens desse regime:
[...] Leninist doctrine did not originally envisage a monolithic state, nor even astrictly monolithic party; the dictatorship of the Party overthe proletariat was neverpart of Lenins plans, it was the completely unforeseen culmination of a series ofunforeseen circumstances. [] it is no true that the concentration of power thatreached its apogee with Stalinist regime was the result of ideas and splits of 1903-1904. It is in the history of a later period, in the events that followed the Russianrevolution and the way in which they molded theory, that its origin is to be found.60
Para tal historiador, o regime stalinista que se consolidou por volta da dcada de 1930
seria fruto do enfraquecimento paulatino da sociedade civil que havia florescido dentro dos
limites estreitos do czarismo e se desenvolvido com os primeiros anos do regime sovitico.
Esse enfraquecimento, em grande parte engendrado pelos considerveis desgastes que a
guerra civil produzira na vida do pais, teria levado a uma concentrao de tarefas cada vez
maior na esfera do Estado. Essa concentrao, por sua vez, teria se expandido como fruto da
58Id. Ibid., p. 125.59Lewin, M. Op. cit., p. 35.60Id., ibid., p. 17. Grifo nosso.
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coletivizao e da industrializao foradas da Era Stalin, que atuaram como catalisadores
para uma sequncia de crises que retroalimentaram as tendncias concentracionista,
culminando no que Lewin chamou de Estado-Leviat61.
Ademais, os estudos de Lewin acerca do pensamento de Lenin tambm o levaram a
contestar a suposio totalitarista de que o Partido Bolchevique seria um monlito composto
de fanticos na base e de manipuladores ditatoriais no topo. Ao contrrio, demonstrou que at
mesmo uma figura proeminente como Lenin necessitava travar duras batalhas internas para
fazer valerem suas posies, sendo este muito mais um lder do que um ditador62.
Por suas contribuies, acreditamos que sua perspectiva de como produzir um trabalho
histrico constitui ainda hoje um referencial crtico central para qualquer um interessado em
realizar pesquisas de qualidade, seja sobre a Revoluo Russa ou qualquer outro objeto:
[...] Os estudos histricos podem contribuir para restabelecer o equilbrio e oferecerinterpretaes mais satisfatrias, recorrendo aos truques do ofcio: narrar odesenvolvimento dos eventos, mas tambm apontando suas tendncias; tratar asideologias, mas sem isol-las das instituies e das estruturas sociais; estudar aspersonalidades mais destacas, mas sem esquecer, alm da rede de seus subordinadosdiretos, tambm as grandes massas, mesmo que alguns lderes as tenhamconsiderado com desprezo; examinar os Estados enquanto elementos importantes desistemas sociais que se modificam com eles e neles.63
1.. O re&r% da &ese da c%&i%uidade e a i%f(u2%cia de /ra%is /ure&
Apesar de todo o esforo realizado pelos revisionistas para remover a tese da
continuidade do seio da historiografia da Revoluo Russa e da Unio Sovitica, esta retornou
recentemente a tal campo de estudos sob nova roupagem, levemente distinta daquela dos
sovietlogos e reivindicando-se crtica em relao a tal vertente. Mesmo este retorno se
constituindo at o momento enquanto uma tendncia marginal dentro do campo da
historiografia ps-Muro de Berlim, como ngelo Segrillo apropriadamente nomeou o atual
momento historiogrfico64, encaramos ser relevante travarmos um debate com a mesma.
Acreditamos que um retorno historiografia dos consensos forjados pela literatura
cold warrior ao longo das dcadas de 1950 e 1960, ainda que sob nova roupagem, seria
extremamente danoso, pois levaria a um novo empobrecimento intelectual do mesmo, com a
61Cf.Id.. Para uma conceituao do stalinismo. In: Hobsbawm, E. (org.)Histria do Marxismo, cit,.v. 7,
1986, pp. 221-222.62Id. Lenins Last Struggle, cit., p. 41-42.63Id.Para uma conceituao do stalinismo, cit.pp. 206-207.64Segrillo, . Op. cit., p. 78.
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retomada de explicaes deterministas e teleolgicas. Ademais, uma vez que os mesmos j
foram largamente contestados a partir de insumos factuais, de difcil justificao a
relevncia cientfica de buscar ressuscit-los dentro deste campo historiogrfico.
No obstante essas consideraes, os proponentes da nova tese da continuidade, apesar
de condenarem formalmente o paradigma totalitarianista, reproduzem muitos de seus
aspectos. Ao mesmo tempo, os mesclam com outro referencial, uma vez que se inspiram nas
anlises realizadas por Franois Furet acerca da Revoluo Francesa de 1789 contendo
estas o principal paradigma que orienta a nova forma da velha tese. Pode-se afirmar que os
pesquisadores com elas identificados buscam transpor para o campo da sovietologia alguns
dos principais pressupostos tericos formulados por Furet, mesmo que isso leve muitas vezes
a anlises contrafactuais e muito distantes do campo da Histria Social com o qual buscamcerta proximidade em termos de credenciais historiogrficas.
1.. /ra%is /ure& e revisi%is" %e(i+era(
A partir de meados da dcada de 1960 at o final da dcada de 1980, Furet produziu
diversos estudos acerca da Revoluo Francesa, tendo chegado ao Bicentenrio da
Revoluo (1989) como um dos historiadores recentes de maior visibilidade neste campo orei do bicentenrio, como por vezes foi chamado pela mdia francesa. Sua produo dessa
poca foi marcada centralmente pela tentativa de estabelecer uma alternativa analtica s
interpretaes historiogrficas que ele nomeou de jacobino-marxistas (representada por
historiadores como Albert Soboul e Georges Lefebvre)65. Tentativa esta que confluiu junto a
outros esforos na criao de uma reviso historiogrfica que tinha como principal referncia
a tentativa de Alfred Cobban, nos anos 1950, de questionar o carter de revoluo burguesa
de 1789.A sntese da proposta historiogrfica de Furet foi publicada na forma de uma
coletnea, na obra Pensando a Revoluo Francesa (Penser la Rvolucion franaise, 1978).
Tal obra se tornou bastante popular, principalmente pela visibilidade conferida pela mdia a
seu autor. Entretanto, segundo a avaliao crtica de Eric Hobsbawm, a empreitada de Furet
no teria fornecido dados novos historiografia da Revoluo Francesa. Ela teria se resumido
a reinterpretao de dados provenientes de trabalhos produzidos por historiadores que no
compartilhavam de sua empreitada, principalmente pesquisadores norte-americanos e
65Cf. Correa, P.Histria, Poltica e Revoluo em Eric Hobsbawm e Franois Furet. So Paulo, 2006.Dissertao (Mestrado em Histria Social) Departamento de Histria, Universidade de So Paulo, pp. 50-63.
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ingleses66. Para Hobsbawm, o esforo empreendido por Furet sequer teria como objeto real a
Revoluo de 1789, mas sim as grandes generalidades historiogrficas e polticas que podem
ser lidas nela67.
Dessa forma, ao retomar autores como Alexis de Tocqueville, Franois Guizot e
Augustin Cochin, Furet teria se apropriado de seus escritos de uma forma extremamente
seletiva, visando elaborar uma narrativa histrica que levasse condenao da experincia
revolucionria, constituindo assim uma denncia poltica mais do que um trabalho
historiogrfico srio68.
Colocando essa empreitada em seu devido contexto, Hobsbawm encara
corretamente, a nosso ver que tal operao de reviso historiogrfica ocorreu, sobretudo,
sob o signo da condenao da Revoluo Russa e dos movimentos correlatos que elainfluenciou nas dcadas posteriores69. No contexto acadmico e intelectual francs mais
especificamente, no qual Furet se encontrava, a mesma teria ligao menos com uma ameaa
poltica revolucionria que se colocasse no horizonte prximo e a qual essa empreitada
buscasse responder no campo das idias, e mais com as prprias paixes dos intelectuais
nela envolvidos, que teriam buscado em seu esforo de reviso estabelecer um ajuste de
contas com seu passado marxista. Isso porque, em tal contexto, haviam se fundido na luta
antifascista os ideais Iluministas e Republicanos, originando uma identidade poltica radicalde esquerda que remontava herana de 1789 herana essa que tais intelectuais buscavam
combater, aps t-la substitudo por um liberalismo anticomunista70.
Em suma, ao rejeitarem a revoluo enquanto um paradigma poltico da
transformao, bem como enquanto uma categoria analtica para processos histricos, tais
intelectuais, dos quais Furet foi sem dvidas o mais destacado, se voltaram para a Revoluo
Francesa, a revoluo por excelncia, e buscaram descontra-la. Em sua empreitada, chegaram
inevitavelmente na descontrao tambm da Revoluo Russa. Assim, nas palavras deHobsbawm, a reviso liberal da histria revolucionria francesa inteiramente dirigida, via
1789, para 191771. Dessa forma, comparaes entre ambas abundaram nos escritos de Furet e
de seus companheiros revisionistas, em uma tentativa de usar a experincia da Revoluo
66Cf. Hobsbawm, E. Ecos da Marselhesa[1990]. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 106.67Cf.Id. Ibid. p. 107.68
Cf.Id. Ibid. pp. 110-111.69Cf.Id. Ibid. p. 110.70Cf.Id. Ibid. pp. 112-13.71Cf.Id. Ibid. p. 110.
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Francesa como um argumento contra as revolues comunistas modernas e, inversamente,
avaliar criticamente Robespierre luz de Stalin ou Mao72.
Mas essa empreitada no foi exclusiva de Furet ou do meio intelectual francs. Ela se
insere em um movimento historiogrfico mais amplo, comumente nomeado de
revisionismo termo que aqui j assume um significado distinto daquele utilizado pelos
historiadores sociais da Revoluo Russa anteriormente mencionados, e que carrega um forte
senso de crtica negativa. Em um balano historiogrfico nomeado Reviso e revisionismo
historiogrfico: os embates sobre o passado e as disputas polticas contemporneas, o
historiador Demian de Melo buscou estabelecer os traos centrais deste e mapear seus
principais representantes.
Conforme aponta Melo, em um mesmo momento histrico, marcado pelascontrarrevolues no Leste Europeu e pela queda do Muro de Berlim portanto, pela
ascenso do projeto neoliberal , diferentes historiadores buscaram reinterpretar eventos
marcantes do passado de seus respectivos pases, compartilhando entre si um mesmo carter
apologtico e o referencial no pensamento neoliberal do fim do sculo XX 73. Foi a partir
dos embates que travaram com outros historiadores que receberam a nomenclatura de
revisionistas, enquanto uma sntese dessas acusaes.
Mas nem sempre essas empreitadas individuais so vistas como parte de ummovimentohistoriogrficoque v alm das especificidades de cada pas, conforme o estamos
encarando a partir das anlise de Melo. Segundo o mesmo, a abordagem de Furet, que
podemos estender em traos gerais aos demais revisionistas por ele analisados e que
justifica essa forma de encar-los enquanto expresses diversificadas de um mesmo
fenmeno,
[...] relacionou-se de forma mais ampla por uma (normativa) concepo do fazerpoltica na modernidade que busca, entre outras coisas, substituir o tema darevoluo pelo tema da democracia, separando um do outro e transformando oprimeiro numa maldio e o segundo na chave da teleologia liberal no futurodesejvel e nico possvel.74
Esses outros revisionistas que compartilhariam de tal abordagem presentes na
produo de Furet seriam principalmente o alemo Ernst Nolte e seus aliados na reviso
historiogrfica acerca do Nazismo, que desencadeou a polmica que ficou conhecida como
72
Cf.Id. Ibid. p. 111.73Melo, D. de. Reviso e revisionismo historiogrfico: os embates sobre o passado e as disputas polticascontemporneas.Marx e o Marxismo, v. 1, n. 1, jul/dez de 2013, p. 53.74Id. ibid., p. 53.
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Historikerstreit (a querela dos historiadores), bem como o italiano Renzo de Felice, com
sua reviso acerca do Fascismo. Mas tambm se incluem na lista outros nomes menos
famosos, ligados a empreitadas revisionistas semelhantes em Portugal (acerca do regime de
Salazar) e na Espanha (acerca do regime de Franco), chegando ainda ao meio acadmico
brasileiro e incluindo historiadores que buscam reinterpretar, a partir de tal base, as principais
questes acerca do golpe de 1964 e da ditadura empresarial-militar por ele estabelecido 75.
Mas, para alm de suas motivaes polticas e de seu sentido mais geral, no que
especificamente consistiu o revisionismo de Furet, cuja influncia acreditamos estar no bojo
da nova tese da continuidade? Como apontamos, destaca-se em seus escritos a influncia
(seletiva) das anlises de Tocqueville e de Cochin, a partir dos quais Furet assentou sua
compreenso da Revoluo Francesa no uso do par conceitual continuidade-ruptura.Apesar de ser aparentemente antittico, esse par foi utilizado por Furet em um sentido
de complementaridade dialtica e apresentado enquanto o substituto mais apropriado para o
conceito de revoluo burguesa, que engendra o entendimento da Revoluo Francesa
enquanto uma radical mudana social, correspondente s necessidades objetivas da classe
capitalista76.
A partir de Tocqueville, Furet criticou duramente essa noo da revoluo enquanto
uma ruptura radical do tecido histrico, defendendo que aquela s pode ser devidamentecompreendida pelo vis da continuidade: toda a conceitualizao da histria revolucionria
comea pela critica da idia de Revoluo tal como ela foi vivida pelos seus atores e
veiculada pelos seus herdeiros: ou seja, como uma transformao radical e como a origem de
um tempo novo77.
Essa continuidade se daria pela suposio da revoluo ter sido fundamentalmente
uma aceleraode processos que j se faziam presentes sob a monarquia e que teriam sido
plenamente realizados com o advento da Repblica entre os quais se destacariam,sobretudo, o desenvolvimento capitalista a partir do campo78e a constituio de um modelo
de poder administrativo centralizado (o chamado Estado moderno)79.
75Id. ibid., passim.76Cf. Furet, F. Pensar a revoluo francesa. Traduo de Rui Fernandes de Carvalho. Lisboa: Edies 70, 1983,p. 38. Ao conceito de revoluo enquanto transformao da ordem scio-econmica, Furet contrape a definiode um espao histrico que separa um poder de outro poder, e em que uma ideia da ao humana sobre a
histria se substitui instituda (Id., ibid., p. 45).77Id., ibid.,p. 30.78Cf.Id., ibid., p. 24.79Cf.Id., ibid., p. 32.
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Nas palavras do prprio Tocqueville, citadas por Furet, a Revoluo resolveu
repentinamente, por um esforo convulsivo e doloroso, sem transio, sem precaues, sem
deferncias, o que ter-se-ia realizado sozinho, pouco a pouco, com o tempo80. Dessa forma, a
revoluo seria na realidade o desabrochar do nosso passado. Longe de constituir uma
ruptura, ela s pode compreender na e pela continuidade histrica. Cumpre esta continuidade
nos fatos, embora aparea como uma ruptura nas conscincias81.
Frente a essa interpretao, a revoluo enquanto ruptura reduzida a to somente
uma iluso da transformao uma ideologia da ruptura radical com o passado, criada
pelos atores revolucionrios e posteriormente reproduzida pelos historiadores com eles
identificados de uma forma ou de outra82.
Mas a influncia de Tocqueville sobre Furet no foi soberana. A partir dessacompreenso da ruptura enquanto um fenmeno restrito ao mbito das mentalidades, presente
em germe na anlise de Tocqueville, Furet buscou as reflexes de Cochin. Para este, a
principal caracterstica da Revoluo Francesa seria uma descontinuidade poltica e
cultural, na qual se afiguraria o advento da ideologia democrtica83.
Assim, a reviso historiogrfica de Furet estava assentada no princpio da
continuidade, negando Revoluo Francesa um carter de revoluo social e, portanto, de
ruptura radical. Ao mesmo tempo, esse princpio era complementado com a concesso deque de fato teria ocorrido uma mudana qualitativa, mas que esta se limitava ao campo das
mentalidades. Essa concesso, entretanto, equivalia a afirmar que a ruptura revolucionria
no havia passado de uma construo, no tendo se dado na esfera do real.
Conforme sintetizou a historiadora Priscilla Correa, a partir da dialtica do poder do
imaginrio, privilegiou-se, portanto, o aspectopolticoe culturaldessa Revoluo84. J para
o anteriormente citado Josep Fontana, que compartilha de uma avaliao crtica semelhante
de Hobsbawm, em termos gerais, o objetivo essencial [do revisionismo liberal] era negar arevoluo em si como fenmeno com consequncias de transformao social [...] e apresent-
la como a origem de todas as aberraes polticas do sculo XX, especialmente da revoluo
sovitica e do triunfo do bolchevismo85.
1..$. A %va &ese da c%&i%uidade
80ApudCorrea, P. Op. cit., p. 201, nota 145. Grifo nosso.81Furet, F. Op. cit., p. 31.82
Id., ibid.,p. 34. Cf. tambmId., ibid., pp. 31 e 45.83Id., ibid., p. 49.84Correa, P. Op. cit., p. 203. Grifo nosso.85Fontana, J. Op. cit., p. 358.
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Vejamos ento como se expressa a influncia de Furet e do revisionismo neoliberal
(somada a aspectos do velho consenso sovietlogo) entre aqueles que buscam atualmente
estabelecer uma nova tese da continuidade no campo da historiografia da Revoluo Russa e
da Unio Sovitica. Tomamos aqui enquanto exemplos dessa tendncia alguns dos
pesquisadores que participaram da organizao da obra coletiva O sculo dos comunismos
(Le Sicle des Communismes, 2000, seguido de uma edio aumentada de 2004)
principalmente Bruno Groppo e Claudio Ingerflom, ambos vinculados a grupos de pesquisa
pertencentes ao Centre Nationale de Recherche Scientifiquefrancs (CNRS rgo estatal de
fomento pesquisa das mais diversas reas) e a instituies universitrias francesas86.
O conjunto dos organizadores deLe Sicle...alegam que tal obra constitui um esforode superao do quadro historiogrfico francs, muito marcado pela obra coletiva organizada
por Stphane Courtois, O livro negro do comunismo (Le livre noir du communisme, 1997)
e, por mais que possa parecer contraditrio, pelo ensaio de Franois Furet, O passado de uma
iluso (Le passe dune illusion Essai surlide communiste au xxesicle, 1995). Para eles, a
historiografia influenciada por essas duas obras teria imprimido s produes historiogrficas
francesas uma abordagem marcadamente simplista, muito prxima daquela da sovietologia87.
Eles se propuseram, ento, a contrapor a essa historiografia uma abordagemmultifacetada do fenmeno sovitico em particular e das diversas experincias comunistas do
sculo xx em geral. Para tal, buscam reunir contribuies aliceradas na Histria Social e em
outras reas do saber acadmico, produzindo uma obra diversificada, que chega at a incluir
entre seus materiais um artigo do pensador marxista franco-brasileiro Michael Lwy
tambm membro pesquisador do CNRS.
Bernard Pudal, por exemplo, ao comentar sobre o projeto do livro durante uma
entrevista realizada em 2008, afirmou que a empreitada partiu de uma rejeio interpretaototalitarianista/sovietloga, responsvel por simplificar a interpretao das formaes sociais
86Groppo diretor de pesquisa do CNRS, onde atua no Centre dhistoire sociale du XXe sicle, sendo tambmligado Universidade de Paris I, onde exerce funes docentes e atua como pesquisador no Centre de RecherchedHistoire des Mouvements Sociaux et du Syndicalism. Ele mais conhecido nomeio acadmico brasileiro porsuas elaboraes no que diz respeito ao tema memria, sendo membro do comit cientfico dos Cahiers
Amrique latine Histoire et Mmoire. Ingerflom tambm diretor de pesquisa do CNRS, onde atua no Centred'tudes des mondes russes, caucasiens et centre-europen, sendo tambm membro do comit de redao da
Revue des tudes slaves.87Conforme mostraremos adiante, os herdeiros de Furet no campo da historiografia da Revoluo Russa noreivindicam sua prpria anlise do tema, encarando que esta se distancia da que havia feito durante as dcadas de1970 e 1980 acerca da Revoluo Francesa.
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supostamente comunistas e dos grupos que se colocavam sob a bandeira vermelha da foice e
do martelo. Na ocasio, Pudal afirmou que
Le sicle des communismes analisado a partir do campo dos especialistas docomunismo. Ns estvamos confrontados com o sucesso de duas obras Le passdune illusion, de Franois Furet, e Le livre noir du communisme, de StphaneCourtois. Esses dois livros reivindicavam no somente uma interpretaototalitria do comunismo, mas tambm repudiavam todas as aquisies da histriasocial. A reduo da histria do comunismo a uma essncia (as representaesqualificadas como ilusrias no trabalho de Furet e a criminalidade, em Courtois) nonos convinha. O plural do ttulo do nosso livro tem como objetivo colocar emdvida essas simplificaes, sem subestimar as empreitadas de homogeneizaodo mundo comunista sob a frula sovitica e as organizaes especficas (EscolaLeninista Internacional, a Internacional Comunista logo aps o Kominform, ascomisses de gerentes, as pesquisas biogrficas internas ao mundo comunista, etc.).
Ns, ento, reunimos pesquisadores (franceses e estrangeiros) bastante diferentes,mas que tinham em comum o fato de no se reconhecerem nas interpretaes deFuret e de Courtois. [...]88
Dessa forma, Le sicle reuniu contribuies de diversos especialistas advindos de
variadas reas dos estudos sociais, como historiadores, antroplogos, socilogos e politlogos
sendo a sua maioria pesquisadores franceses (ou alocados na Frana) e vinculados com o
CNRS. Para apresentar tais contribuies de forma coerente, os organizadores de Le Sicle o
dividiram em partes temticas, tendo sido cada uma delas coordenada por um pesquisador
diferente.
Abrangendo temas que vo da Unio Sovitica a Partidos Comunistas de diferentes
pases, alm de outras formaes sociais, como a China, foi inevitvel que Le sicle tenha se
constitudo enquanto uma obra heterognea, o que significa que nem todos os pesquisadores
nela reunidos compartilham das anlises inspiradas na produo de Furet acerca de Revoluo
Francesa. A obra inclui, por exemplo, algumas contribuies de pesquisadores norte-
americanos identificados com a escola revisionista e que em nada se aproximam dessa
inspirao, como o caso de Lynne Viola e Lewis Sigelbaum.
Pudal e outros organizadores deLe sicle podem rejeitar o paradigma totalitarianista e
alguns dos consensos historiogrficos produzidos pela sovietologia e presentes na
historiografia francesa, mas a parte da obra que trata da Unio Sovitica em especfico mostra
que tal rejeio no foi comum a todos organizadores e pesquisadores convidados a
publicarem contribuies.
88Pudal, B. Da militncia ao estudo do militantismo: a trajetria de um politlogo [2008]. Entrevistaconcedida a K. Tomizaki. Traduo de Daniela Ferreira. Pro-Posies, Campinas, v. 20, n. 2 (59), maio/agosto2009, p. 129-138.
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O mesmo vlido para a suposta rejeio a Franois Furet, uma vez que tal autor
largamente citado como referncia positiva no quarto captulo da obra, Da Rssia Unio
Sovitica, organizado por Ingerflom. Este e parte dos pesquisadores por ele reunidos nesse
captulo deLe sicle, ao contrrio do que afirma Pudal, realizam uma transposio ao campo
da historiografia da Revoluo Russa e da Unio Sovitica de alguns aspectos centrais que
pautaram os trabalhos de