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NUESTRA AMÉRICA NO SÉCULO XXI AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE Francisco Uribam Xavier de Holanda (Organizador)

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NUESTRA AMÉRICA NO SÉCULO XXI

AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE

Francisco Uribam Xavier de Holanda (Organizador)

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NUESTRA AMÉRICA NO SÉCULO XXI

AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE

Francisco Uribam Xavier de Holanda (Organizador)

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ESPAÇO PARA FICHA CATALOGRÁFICA

©2012 Copyright dos autores

Universidade Federal dO Cear á - UFC

ReitorProf. Jesualdo Pereira FariasVice-ReitorProf. Henry Campos

Obra publicada através de projeto da Coordenadoria de Comunicação Social e Marketing InstitucionalCoordenador: Paulo MamedeRevisão: Maria das Dores de Oliveira Filgueira e Sílvia Marta Costa. Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Yuri Leonardo

ISBN978-85-7282-493-4

Tiragem1000 exemplares

CTP e impressãoExpressão Gráfica

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NUESTRA AMÉRICA NO SÉCULO XXI

AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE

Fortaleza 2012

Francisco Uribam Xavier de Holanda (Organizador)

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Estos tiempos no son para acostarse con el pañuelo a la cabeza, sino con las

armas de almohoda, como los varones de Juan de Castellanos: las armas del juicio,

que vencen a las otras. Trincheras de ideas valen más que trincheras de piedra.

José Marti – Nuestra América – 1891

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SUMÁRIO1113

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AUTORES POR ORDEM ALFAbÉTICA

APRESENTAÇãO

CIVILIZAÇãO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTEAlba Maria Pinho de Carvalho

ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO?Fernando Marcelo de la Cuadra

NUESTRA AMÉRICA: REFLEXÕES SObRE O FENÔMENO DO POPULISMO LATINO-AMERICANOJoão Paulo Saraiva Leão Viana

DEMOCRACIA, DIREITOS E AÇãO CIDADã NA TRANSIÇãO bRASILEIRA PARA O SÉCULO XXIFrancisco Uribam Xavier de Holanda

RESISTÊNCIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE CRISEAdelita Neto Carleial

A CONTEMPORANEIDADE DO PENSAMENTO DE CELSO FURTADO PARA A EMANCIPAÇãO DA AMÉRICA LATINAEduardo Girão Santiago

A COLONIALIDADE DA NAÇãO CEARÁ: TESTEMUNHOS DE UMA IDENTIDADE NEGADAPedro Vítor Gadelha Mendes

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AUTORES POR ORDEM ALFAbÉTICAadelita neto Carleial Mestra em Sociologia pela Universidade Autônoma do México, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professora do Curso de Ciências Sociais da UECE e membro da Rede de Pesquisadores Universitários sobre a América Latina (Rupal).

alba Maria Pinho de Carvalho Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará com pós-doutorado pelo CEAS da Universidade de Coimbra, professora do Departamento de Ciências Sociais da UFC e coordenadora da Rupal. eduardo Girão santiago Economista e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC e membro da Rupal. Fernando Marcelo de la Cuadra Sociólogo chileno, doutor em Sociologia pela Universidade Federal Rural Fluminense e membro da Rupal. Francisco Uribam Xavier de Holanda Licenciado em Filosofia Política, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC, tutor do PET-UFC de Ciências Sociais e Membro da Rupal.

João Paulo saraiva leão viana Mestre em Relações Internacionais para a América do Sul pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos (CEBELA – RJ), professor da Faculdade de Rondônia (FARO) e da União das Escolas Superiores de Rondônia (UNIRON). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

Pedro vítor Gadelha Mendes Graduado em Ciências Sociais pela UFC e membro da Rupal.

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APRESENTAÇãO

Hispanoamérica no encontrará su unidad em La orden burguês. Este orden nos divide, forzosamente, em pequeños nacionalismos.

A Norteamérica sajona Le toca caronar y cerrar la civilización capitalista. El provenir de la América Latina es socialista.

JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

Entre os anos de 2009 e 2011 comemoramos o bicentenário da independência política de vários países na América Latina. Em 1809, Bolívia e Equador; em 1810, Argentina, Chile, México e Venezuela; em 1811, El Salvador, Paraguai e Uruguai fizeram parte de uma onda políti-ca de movimentos emancipatórios. Todavia, o Haiti foi o primeiro país da América a proclamar a sua independência (1804) e em um contexto radicalmente diferente do resto do continente, pois enquanto uma elite criolla conduziu a independência na América Latina, no Haiti foram os negros que se tornaram sujeitos de sua própria história. Os povos do Hai-ti, na época, uma população de 300 mil habitantes, apenas 12 mil eram livres, brancos e mulatos. A repressão contra os negros no poder foi tão perversa que até hoje o Haiti é um flagelo a céu aberto e sem perspectiva a médio prazo.

O movimento de emancipação política na América Latina, em torno de suas contradições e idiossincrasias, foi conduzido por uma elite criolla influenciada por um projeto político de república iluminista do século XVIII, em particular pela adoção do modelo de estado-nação eu-ropeu que até hoje sufoca seus povos originários.

A luta por independência foi para acabar com o colonialismo político espanhol que impedia o crescimento econômico e a autonomia política e cultural do continente. Todavia, a implantação de um sistema administra-tivo de Estado centralizado, dominado por caudilhos e populistas, fazendo par com um modelo de desenvolvimento agrário-exportador, contribuiu para impedir o desenvolvimento de um mercado interno forte, a formação de uma classe média e a integração entre os países do continente.

Se há 200 anos a luta foi pela emancipação do jugo político colo-nial, no século XXI o desafio é a superação do processo de colonialida-

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de do poder, pois a colonialidade do poder implica na invisibilidade dos não europeus: povos originários, negros, mestiços. Trata-se de uma visão de mundo eurocêntrica que combina um padrão de poder e um modelo epistemológico de validação de conhecimento que opera ideologicamen-te na sedimentação de modelos de dominação.

O processo de construção da descolonialidade passa pela constru-ção e sedimentação de novos imaginários e valores sobre o socialismo para o século XXI, imaginários e valores que superem as visões de mun-do do neoliberalismo e do socialismo dos séculos XIX e XX. O novo mo-mento de luta pela transformação social se expressa em novas formas de fazer política, na incorporação de novos sujeitos políticos, na defesa de direitos humanos difusos e pela necessidade de confecção de uma con-cepção de sociedade onde as relações de poder, o modelo de desenvol-vimento e de relação dos homens com a natureza reflitam o respeito ao planeta como forma de vida que é patrimônio universal da humanidade.

Em nossa epocalidade, os que não perderam a esperança capitu-lando no comodismo da ideia do fim da história têm como desafio con-tribuir para que as novas formas de fazer política em curso na América Latina se transformem em movimentos emancipatórios, ou seja, contri-buir para transformar movimento social em movimento revolucionário. Os trabalhos aqui produzidos pelos membros da Rede de Pesquisado-res Universitários sobre a América Latina – RUPAL – são uma semente plantada numa conjuntura de esperança que aflora em Nuestra América.

A Profª. Alba Carvalho interpela, em seu artigo, a realidade da crise estrutural do capitalismo desenhada na primeira década do século XXI na tentativa de decifrar os desafios para o nosso tempo. Para Alba, vive-mos um momento que “exige avaliar a novidade que a América Latina coloca para o mundo com a chamada virada à esquerda, com a perspec-tiva de refundação pluricultural e multisocietal de estados multinacio-nais e comunitários”. Fernando de la Cuadra põe em questionamento se o poder americano está em decadência, dialogando com argumentos que sustentam o fim da hegemonia estadunidense e com os que relativizam sua decadência. Uma de suas conclusões é que, pelos menos, “a prepoten-te autoconfiança das elites norte-americanas não irá sucumbir tão cedo.”

João Paulo Viana aborda o fenômeno do populismo na América Latina pontuando que a crise do modelo liberal nos anos de 1920 e o co-lapso das velhas oligarquias rurais criaram as condições para a emergên-cia de governos populistas que conduziram a construção de um estado forte, nacionalista e intervencionista. Todavia, ele faz um levantamento

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dos fundamentos teóricos do populismo nas obras de Haya de la Torres, Gino Germani, Torcuato Di Tella e Francisco Weffort. Uribam Xavier, diante da consolidação de um modelo liberal moderno de Estado, abre uma reflexão sobre os desafios de uma gestão pública solidária e estende seu olhar sobre as ações cidadãs (a responsabilidade social das empresas, o Terceiro Setor e a economia solidária) desenvolvidas no Brasil durante a transição do século XX para o XXI.

O artigo “Resistências dos movimentos sociais na América Latina em tempos de crise”, de Adelita Carleial, discute a relação entre a crise estrutural do capitalismo, e os movimentos sociais do início do século XXI, mostrando as tentativas de superação da dependência pelos países latino-americanos, além de evidenciar o arranjo de forças entre países da América Latina no enfrentamento do poderio estadunidense.

O Prof. Eduardo Girão traça um perfil da ação política transforma-dora do economista cepalino Celso Furtado, destacando sua influência teórica e prática nas lutas emancipatórias da América Latina e ressaltando que o governo Lula foi caudatário do pensamento furtadiano. Pedro Vi-tor, recém-formado em Ciências Sociais, partindo das influências de auto-res comprometidos com a descolonialidade dos saberes, faz uma reflexão sobre o racismo embutido na construção de uma nação Ceará. Afirma que o racismo como instituição colonial no Brasil adquiriu novos padrões de distinção em relação ao colonialismo anglo-saxão e especula que especifi-cidades o Ceará apresenta dentro dessa estrutura racista brasileira.

Ao finalizar essa breve apresentação, gostaria de agradecer a tod@s colaborador@s que aceitaram o desafio de produzir um livro no espaço menor do que um mês. Em especial, os agradecimentos, meu e de todos da Rupal, ao Paulo Mamede, nosso Paulinho, que nos provocou a publi-car o livro, dando todo o apoio e incorporando nosso seminário: “Dispu-ta de Hegemonia em Nuestra América no Século XXI” na programação do IV Festival de Cultura da UFC. É isso, boa leitura.

Fortaleza, janeiro de 2012

Uribam XavierOrganizador do Livro

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CIVILIZAÇãO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

À guisa de Introdução: o presente em foco

Após mais de duas décadas de mundialização do capital, as desigual-dades, polarizações e assimetrias marcam o cenário contemporâneo. Nes-te início do século XXI – tempos de crises e transição – somos confronta-dos com questões da modernidade para as quais as respostas modernas são absolutamente insuficientes, como a questão da igualdade, da equidade, da justiça, da liberdade e da paz (SANTOS, 2000b, 2006a)1. Assim, o pre-sente interpela-nos a decifrá-lo, a circunscrever desafios analíticos do nos-so tempo. Exige pensar o momento que vivemos na civilização do capital, demarcando novas formas de domínio e novas expressões de resistência e luta. Demanda o desvendar do cenário contemporâneo de liquidez e flui-dez, circunscrevendo o horizonte de transformações a emergir, no esforço de recompor nexos e mediações históricas. Impõe discutir o colonialismo em tempos contemporâneos, enfocando as suas expressões a permear a sociabilidade, a cultura, as mentalidades e subjetividades, nos espaços pú-blicos e privados. Faz-se necessário e, mesmo, imprescindível, desvendar o atual contexto de crises, as mudanças em curso e as tendências emergentes. Põe em discussão a utopia democrática, na sua potencialidade e nos seus limites, no âmbito do sistema do capital. Requer delinear a Questão Social em suas manifestações peculiares no presente, sobremodo, as vulnerabi-lizações, desmontes e tensões que atingem o mundo do trabalho. Coloca

1. Boaventura de Sousa Santos, na radicalidade de sua crítica à modernidade ocidental, sustenta a tese de que, no final do século XX/início do século XXI, estamos a viver um tempo de transição. O seu argumento é que as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas e a modernidade já não consegue cumprí-las, verificando-se a obsolescência do seu paradigma sociocultural. Avalia que o paradigma da modernidade deixa de poder renovar-se e entra em crise final, só continuando ainda como paradigma dominante pela inércia his-tórica (SANTOS, 2000a). Afirma, então, que a nossa situação presente, que, à superfície, aparece como um pe-ríodo de crise, quando analisada em nível mais profundo, é um período de transição paradigmática (id.ibid.). E afirma: “entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma […] ou conjunto de paradigmas de que, por enquanto, não conhecemos senão as vibrações ascendentes ”…(SANTOS, 2000a, p.16)

alba Maria Pinho de Carvalho

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em pauta as formas de regulação social que, hoje, se gestam entre Estado/sociedade/mercado. Implica desmistificar o “neointervencionismo do Es-tado” na contemporaneidade, demarcando as expressões históricas do que vem sendo proclamado como “regresso do Estado”. Impõe configurar de-lineamentos básicos das políticas públicas nesse cenário de esgotamento da hegemonia não liberal e da emergência de disputa hegemônica. Exige avaliar a novidade que a América Latina coloca para o mundo com a cha-mada “virada à esquerda”, com a perspectiva de refundação pluricultural e multissocietal de Estados multinacionais e comunitários. Delineia, como dilema do nosso tempo, o paradoxo de pensar e discutir Políticas Públicas no sentido de assegurar bem-estar, em tempos de mal-estar, nos circuitos contemporâneos de instabilidade, incerteza e riscos. Implica compreender como e com que intensidade a pressão política dos movimentos sociais, em suas lutas, perpassa o Estado, no sentido de redefinição das políticas pú-blicas, na afirmação e no reconhecimento de direitos para maiorias expro-priadas da humanidade, no âmbito de processos de exclusão, de opressão e discriminação. Impõe, como exigência histórica, analisar as potencialida-des do público e das Políticas Públicas para enfrentamento das desigualda-des no âmbito dessa civilização do capital.

Em verdade, é essa uma agenda contemporânea de investigações e debates a ser coletivamente trabalhada, em diferentes espaços acadêmi-cos e políticos. Nesta perspectiva, aqui circunscrevo, como recorte analí-tico deste artigo, adentrar em configurações contemporâneas da civiliza-ção do capital2, tendo como referência histórica a crise que marca o nosso tempo. A rigor, hoje – no início da segunda década deste jovem século XXI – a crise contemporânea do sistema do capital circunscreve um de-safio histórico, a provocar, como questão vital, seu desvendamento, qual esfinge de Édipo. Ao avaliar o cenário contemporâneo, István Mészáros (2009) sublinha que, pela primeira vez na História, o capitalismo con-fronta-se globalmente com seus próprios problemas, que não podem ser adiados por muito mais tempo nem, tampouco, transferidos para o plano militar a fim de serem explorados como guerra generalizada. Logo, uma questão decisiva na análise da civilização do capital no tempo presente é configurar a natureza da crise global em desenvolvimento, circunscre-

2. Considero que, na contemporaneidade, o capitalismo mundializado, mais que um modo de produção, constitui um regime civilizacional a estender a lógica do capital aos diferentes domínios da vida social, mesmo a aqueles que, outrora, dificilmente seriam concebidos como capitalistas: religião, relações afe-tivas, concepção do tempo livre, avaliação do mérito científico e avaliação moral dos comportamentos. De fato, a revolução da informática e da comunicação, combinada com a tendência do capitalismo para ampliar a lei do valor a mais e mais dimensões da vida social, permite circunscrever a civilização contem-porânea do capital, a encarnar um padrão de dominação social abstrata, sutil, indefinida, polifacetada e profundamente penetrante que perpassa a economia, a política, a cultura, reconfigurando subjetividades (SANTOS & MENESES, 2009).

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vendo seu sentido global, estrutural e sistêmico, sua marca agudamente destrutiva (ANTUNES, 2009).

Assim, o meu foco de discussão é o tempo presente, circunscri-to nas três últimas décadas do final do século XX e no início do século XXI, em sua primeira década e no limiar da segunda. Em um exercício da Sociologia das Ausências e das Emergências (SANTOS, 2006b), bus-co demarcar “sinais dos tempos”, sublinhando fenômenos e tendências, a apontarem vias de reflexão e debate.

Parafraseando Boaventura de Sousa Santos (2008a; 2009b), o meu esforço é no sentido de apontar “questões fortes”, sem a pretensão de ter “respostas fortes” que só são construídas no trabalho investigativo coletivo e no processo de discussão sempre em aberto.

A civilização do capital no tempo presente: contexto de liquidez, descartabilidades e riscos

Vivemos, hoje, um momento de expansão do capital que parece não ter limites e controles, a acirrar contradições, antagonismos e desigualdades. Sob a égide das forças cibernético-informacionais, no cenário da “sociedade do espetáculo”, o capital promove transformações no seu padrão de acumu-lação e nas suas formas de valorização, nos marcos da “mundialização com dominância financeira” (CHESNAIS, 2003). A expansão sem limites da ri-queza abstrata, em suas “ficções numéricas”, nos processos da acumulação rentista – dinheiro a fazer render mais dinheiro – precisamente, D – D , nas formulações marxianas (MARX, 1983) – chega a extremos, consubstancian-do a incontrolável dominação do “fetichismo do dinheiro”, em um processo de mistificação que marca “o espírito dos tempos contemporâneos” (BEN-JAMIN, 2004). Marx, em meados do século XIX, previu que essa forma de acumulação teria peso crescente e à medida que passasse a predominar – como é o caso neste nosso jovem século XXI – a instabilidade e a insegurança seriam cada vez maiores (BENJAMIN, 2008). De fato, o padrão rentista de acumulação levado à sua forma extrema, nos circuitos da “financeirização da economia”, expressa-se, na crise econômico-financeira que irrompe no ce-nário mundial em 2008, constituindo “um momento decisivo deste século XXI, no qual tudo que parecia sólido se liquefaz, encontrando-se o capitalis-mo em forte processo de liquefação” (ANTUNES, 2009, p.11).

Esta crise global – epifenômeno da crise estrutural do capital – atin-ge a Humanidade, comprometendo as condições de vida e de trabalho de parte considerável da população em todo o mundo, afetando, de forma drástica, os mercados de trabalho, no rastro de forte desaceleração econô-mica. A rigor, é um agravante da vulnerabilidade e precarização do mundo

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do trabalho, permeado por desmontes, flexibilizações, tensões, neste mo-mento contemporâneo do capitalismo3.

A civilização contemporânea do capital, no contexto da Tecnociên-cia, submetida à lógica ilimitada do sistema do capital, acirra e torna mais visível a contradição fundamental, assinalada por Marx, nos “Grundrisse” (1971): a crescente substituição do trabalho vivo de homens e mulheres – trabalho humano direto – pelo trabalho morto, objetivado nas máqui-nas. Hoje, as chamadas “máquinas inteligentes” mostram-se imprescindí-veis aos processos de acumulação capitalista, intensificando a subsunção do trabalhador ao capital. Com a mediação da ciência e da tecnologia, o capital prescinde da presença física e do próprio “saber” e “fazer” do traba-lhador, implicando no desemprego estrutural, na exploração intensiva do trabalho, em meio a processos de precarização. É a dinâmica expansionista ilimitada do capital que bem se materializa como “contradição em proces-so” (MARX, 1971). Assim, como marca, por excelência, do capitalismo no tempo presente, gesta-se um crescente contingente de “trabalhadores su-pérfluos”, tentando equilibrar-se no “fio da navalha” das exclusões e inclu-sões precárias (CARVALHO & GUERRA, 2008). É o que Zigmunt Bau-man (2005) define como “produção do refugo humano”: seres humanos refugados como produto inevitável da nossa sociedade.

O sistema do capital, em sua lógica de expansão incontrolável e predatória, que ignora as necessidades humanas, revela, com indiferença, sua incapacidade de incluir esse “refugo humano”, essa “população sobran-te”, gerando uma “coletividade de despojados”. Avalia István Mészáros:

o sistema de controle do metabolismo social atingiu um estágio em que lhe é necessário expulsar centenas de milhões de indivíduos do proces-so de reprodução social (do próprio processo de trabalho). Um sistema de reprodução não pode se autocondenar mais enfaticamente do que quando atinge o ponto em que as pessoas se tornam supérfluas ao seu modo de funcionamento. Esta não é uma projeção para o futuro […] é a gritante realidade mundial e o rumo, negativo e do qual não se escapa do avanço do capitalismo (MÉSZÁROS, 1997, p. 152).

3. De fato, nesse novo momento do capitalismo mundializado, nas quatro últimas décadas, verifica-se uma vulnerabilização do trabalho, decorrente da atual forma sociometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2002), constituindo-se um “novo e precário mundo do trabalho”, nos circuitos de um complexo de reestruturação produtiva, a encarnar a ofensiva do capital na produção, debilitando a classe trabalhadora no aspecto objetivo e subjetivo (ALVES, 2000).

Em verdade, é esta uma das grandes tragédias do nosso tempo: refu-go humano/excedente populacional/população sobrante…É a saga de mi-lhões de migrantes, desempregados, classificados como vagabundos, em uma sociedade na qual os seres humanos são considerados párias, dignos

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apenas de serem vistos como lixo (BAUMAN, 2010). Ao centrar o olhar nessa tragédia contemporânea, propugna Zigmunt Bauman que a socieda-de “só pode ser elevada ao plano da comunidade se efetivamente proteger seus membros contra os horrores da miséria e da indignidade, isto é, contra o terror de ser excluído [e] de ser condenado à redundância social` e decla-rado refugo humano ” (2010, p.14).

Neste contexto contemporâneo da civilização do capital, a “pedra de toque” são as novas formas de dominação social a assumir configu-rações peculiares: são formas de dominação cada vez mais abstratas, impessoais, perversamente sutis, mas objetivamente generalizantes a difundir-se na civilização do capital, adentrando em domínios não consi-derados como capitalistas. É um padrão de dominação abstrata, poliface-tada que se apresenta indefinida, não permitindo perceber quem domina e quem é dominado. Em verdade, é um metabolismo social, regido pela lógica da mercantilização sem limites, com a universalização da lei do valor, submetendo, mais e mais, dimensões da vida coletiva – culturais, espirituais e simbólicas – e da natureza ao predomínio do valor de troca. Tal metabolismo social faz sentir seu peso, seu poder, seu domínio como uma forma estrutural que se mostra como alheia aos indivíduos e a todos aprisiona (CARVALHO, 2009a; 2009b). Este padrão de dominação so-cial abstrata, sutil, indefinida, do sistema do capital, articula-se, na con-temporaneidade, com as formas de opressão, de discriminação, de exclu-são, de expropriação da humanidade no âmbito do racismo, do sexismo, da religião, a encarnar um neocolonialismo. É a hibridização das novas formas de domínio do capital com as formas da opressão da colonialida-de do poder, a impor modos de vida, formas de sociabilidade, permeados por riscos e inseguranças (CARVALHO, 2009b).

Em verdade, nos circuitos contraditórios do sistema do capital na atualidade, a instabilidade e a fluidez afirmam-se como marcos do tem-po presente que Zigmunt Bauman (2001; 2004), em sua crítica radical, circunscreve como “Modernidade Líquida”4: nova fase da modernida-de a encarnar uma visão individualizada e privatizada nos percursos da chamada “globalização”, na qual a radical privatização dos destinos humanos segue aceleradamente a radical desregulamentação da indús-

4. Zigmunt Bauman, ao longo das duas últimas décadas – decáda 90 do século XX e primeira década do século XXI – vem construindo uma radical crítica à modernidade, desvendando as marcas e riscos dos tempos contem-porâneos, traduzindo a vida em livros. De fato, desenvolve uma ampla e fecunda produção, buscando, para além das fronteiras disciplinares, compreender o que considera “esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem surgindo ao nosso redor” (BAUMAN, 2004, p. 12). Para desvendar esta sociedade, trabalha a metáfora da “liquidez cunhando a expressão ´modernidade líquida em oposição ao momento histórico anterior que, então, denomina de ´modernidade sólida”. E explicita que o espírito moderno caracteriza-se pela liquefação, como bem definiram os autores do “Manifesto Comunista” ao sustentarem que “tudo que é sólido desmancha no ar”. No entanto, na fase da “modernidade sólida”, o derretimento dos sólidos era no sentido de limpar a área para

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tria e das finanças. É um novo momento da civilização do capital que se caracteriza por extraordinária mobilidade e desregulamentação, volati-bilidade, descentralização e desenraizamento, com a liquefação dos pa-drões de dependência e interação. É uma fase radicalmente temporária, sem perspectiva de permanência e de processos de longa duração (BAU-MAN, 2004). É a era histórica do presente, marcada pelo derretimento dos elos que entrelaçam as escolhas individuais e os projetos de ação co-letiva ou, mais precisamente, pelo derretimento dos padrões de comu-nicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individual-mente e as ações políticas de coletividades humanas (BAUMAN, 2001). A rigor, esta “modernidade líquida” é perpassada de riscos de natureza distinta a que todos estão expostos, mas que não são visíveis e não po-dem ser tocados e sentidos. São riscos difusos e globais que ameaçam a humanidade, com profunda capacidade de mudanças na condição da vida humana (BAUMAN, 2004).

Em verdade, o “fardo do nosso tempo histórico” – aqui, resgatando a bela metáfora de István Mészáros (2007) – bem revela-se nas inseguranças, instabilidades, crises, desproteção social, violências que marcam o cenário desta civilização do capital no presente. A tendência destrutiva do capital acentua-se e agrava-se no âmbito dos processos de mundialização de cunho neoliberal, não poupando nada nem ninguém. Acirra desigualdades, produz a destruição das pessoas, submetendo-as à tirania do tempo do capital que ignora as necessidades humanas (id.idib.). No seu padrão predatório de ex-pansão, compromete a vida, a cultura, o bem-estar. Investe contra a natureza, gestando uma crise climática mundial com manifestações realmente brutais. Institui a “cultura do descartável” como um modo de ser do nosso tempo. A rigor, constitui-se uma “sociedade da descartabilidade” em que instituições, comunidades, identidades – socialmente construídas – tornam-se cada vez mais precárias e fugazes, dando lugar a “identidades líquidas”, “identidades fluídas” (BAUMAN, 2010). Tem-se profundas mudanças na cultura e nas formas de sociabilidade a viabilizar a expansão sem limites do “capitalismo líquido” que tem entre “suas principais características a passagem de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores, como o mar-cante e dramático acréscimo de uma transmutação, sob a forma de uma raça de devedores ” (ROVIROSA-MADRAZO, 2010, p.15)5.

novos e aperfeiçoados sólidos. Já nos tempos contemporâneos, o derretimento dos sólidos adquiriu novo sentido: a fluidez permanente, o desenraizamento, com a liquefação dos padrões de referência e de interação. A pretensão de Bauman nessa crítica radical da contemporaneidade é ampliar os horizontes cognitivos dos indivíduos, em um “diálogo sem fim” com a condição humana, na perspectiva de mostrar que o mundo pode ser diferente e melhor do que é. Bauman, ao longo de sua trajetória como sociólogo e filósofo, circunscreve um pensamento emanci-patório, no sentido de uma sociedade que teste, permanentemente, sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria causou (BAUMAN, 2004). E, assim, propugna “o socialismo como uma faca afiada prensada contra as flagrantes injustiças da sociedade” (id.ibid.).

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Este fardo histórico de inseguranças e instabilidades atinge, de modo peculiar, as juventudes em todo o mundo. Na Europa, juventudes a consti-tuir uma nova geração de excluídos, filhos de classe média e de trabalhado-res precarizados, com sérias dificuldades de integração à sociedade: taxas elevadíssimas de desemprego jovem; excesso de qualificação para exercício de trabalhos precários; reformas educacionais emperradas. São juventudes marcadas pelo pessimismo, pela falta de confiança no sistema político, com uma grande insatisfação a explodir em revoltas juvenis bem contemporâne-as, caracterizadas pela espontaneidade e articulação via circuitos virtuais e telemóveis. Especificamente no Brasil é gritante o drama das juventudes, com os elevados índices de “mortalidade juvenil” que dizima jovens pobres, sobremodo jovens negros, que perambulam nas “periferias da vida”.

Assim, a civilização contemporânea do capital encarna um dilema que nos interpela qual Esfinge de Édipo: “que mundo social é esse que vem se perfilando nas dobras das mutações em curso nas últimas décadas? Com quais parâmetros põe em perspectiva e sob perspectiva crítica os novos orde-namentos sociais urdidos nessa virada dos tempos?” (TELLES, 2007, p.195).

A contra-hegemonia em curso no século XXI: a América Latina como referência histórica

Neste contexto de expansão ilimitada e destrutiva do capital que gesta uma ordem mais injusta, mais instável e mais violenta, nos marcos da cha-mada “globalização neoliberal”, emergem movimentos de resistência e lutas, constituem-se experiências emancipatórias, com diferentes formatos e perfis que assumem a construção de “um outro mundo possível”, gestando alternati-vas. É a tessitura de uma “outra globalização”, “globalização alternativa a partir de baixo”, “globalização contra-hegemônica” (SANTOS, 2002; 2006b). Nesta perspectiva de uma contra-hegemonia, Boaventura de Sousa Santos (2009a) demarca a existência de um contramovimento que denomina de “cosmopo-litismo subalterno”, emergente nas quatro últimas décadas6. Sustenta Santos:

5. “Le Monde Diplomatique” – edição brasileira de novembro de 2010 – em editorial de Sílvio Caccia-Bava – ao circunscrever a realidade brasileira do tempo presente, demarca como característica o aumento vertigi-noso do consumo, a refletir não só ganhos de renda, mas também um crescente endividamento pessoal que já chega hoje em torno de um quarto dos ganhos mensais, conforme dados do Banco Central. É o risco do superendividamento dos cidadãos/cidadãs consumidores brasileiros.

6. Boaventura de Sousa Santos, em meados da 1ª década do século XXI, avançando na sua crítica ao pensamento mo-derno ocidental, configura-o como “um pensamento abissal”, com um sistema de distinções visíveis e invisíveis. Incide

“O cosmopolitismo subalterno” manifesta-se através das iniciativas e movimentos que constituem a globalização contra-hegemônica. Consiste num vasto conjunto de redes, inciativas, organizações e

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sua crítica nas distinções invisíveis, estabelecidas através de linhas que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. Sublinha, então, ser esta uma divisão tão radical que o “outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, tornando-se inexistente e é, mesmo, produzido como inexistente. Em sua discussão crítica sustenta que, nos últimos sessenta anos, as linhas globais sofreram dois abalos tectô-nicos: o primeiro teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de independência das antigas colônias; o segundo tem vindo a decorrer desde os anos de 1970 e 1980. No âmbito desse segundo abalo tectônico, destaca um contramo-vimento, a gestar um “pensamento pós-abissal”, a que Boaventura Santos deu o nome de “cosmopolitismo subalterno”.

E esclarece Santos que “o cosmopolitismo subalterno contém uma promessa real apesar de o seu caráter ser de movimento claramente em-brionário” (id.ibid).

No final da década de 90, anos 2000, a América Latina desponta, então, como uma referência na construção desta contra-hegemonia nos marcos do cosmopolitismo subalterno, com a emergência de um amplo e pujante movimento social em novas bases sociais e organizativas. Irrompe um vigoroso movimento indígena e camponês e diversos movimentos ur-banos populares, desenvolvendo lutas que se constituem marcos históricos nessa onda emancipatória que se espraia pelo continente latino-americano.

Nos anos 2000, a América Latina surpreendeu o mundo com seus movimentos sociais populares radicais no Equador, na Bolívia, na Argen-tina, na Venezuela, no México e no Brasil, ao contestar o modelo de ajuste neoliberal que reinou, de forma dominante, por mais de uma década e que, então, revelava sinais de esgotamento e debacle. Assim, esses novos movi-mentos sociais, a encarnar novas expressões de antagonismo na civilização do capital (MODONESI, 2009), gestam a chamada “virada à esquerda” no continente latino-americano, com a eleição de governos progressistas a for-mar um bloco heterogêneo, incluindo governos de esquerda7. Em verdade, a América Latina vive uma nova época, adentrando numa fase histórica de polarização entre a ofensiva do capital e a radicalização das forças progres-sistas, com destaque para o movimento indígena (SANTOS, 2008c). É a construção de uma contrahegemonia, instaurando uma disputa hegemô-

7. Cabe aqui resgatar a concepção de esquerda circunscrita, com lucidez e perspicácia, por Boaventura de Sousa Santos: “Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquen-ta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que

movimentos que lutam contra a exclusão econômica, social, polí-tica e cultural gerada pela mais recente incarnação do capitalismo global, conhecida como globalização neoliberal […] Atendendo a que a exclusão social é sempre produto de relações de poder desi-guais, estas iniciativas, movimentos e lutas são animados por um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão, o qual implica a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos e, como tal, se baseia, simultaneamente, no princípio da igualdade e no princípio do reconhecimento da dife-rença (SANTOS, 2009a, p.42).

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nica, configurada, com mais nitidez, na Bolívia, no Equador e na Venezue-la. A rigor, a América Latina vive uma nova etapa de luta emancipatória: da resistência ao modelo neoliberal da década de 1990 à fase de construção de alternativas e da disputa por uma nova hegemonia, na articulação en-tre Movimentos Sociais e Governos de Esquerda (CARVALHO, 2009a; 2010b). É a encarnação de uma das teses centrais de Boaventura de Sousa Santos (2000; 2004; 2006a), de que a reinvenção da emancipação passa, fundamentalmente, pelo Sul8.

Noam Chomski – uma mais maiores expressões do pensamento crítico nos EEUU9 – ao final da primeira década dos anos 2000, mais precisamente em 2009, declarou, de forma contundente: “América La-tina é hoje o lugar mais estimulante do mundo” (2009, p.1). Chomski, então, em 2009, considera o continente latino-americano uma das úni-cas regiões do mundo onde há uma resistência real ao poder do Impé-rio, encarnado na hegemonia dos EEUU. Nessa avaliação do potencial emancipatório das experiências latino-americanas, sublinha a integração que emerge e busca consolidar-se na América Latina, a constituir pré--requisito para a independência, nos marcos da superação da dominância capitalista colonialista norte-americana.

O mundo contemporâneo na crise: para onde apontam os movimentos da História?

Ao final da primeira década do século XXI, o sistema do capital mostra, de forma espetacular a partir do “coração do Império”, as suas

ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade ” (SANTOS, 2009c).

8. No pensamento emancipatório de Boaventura de Sousa Santos, o “Sul” é entendido não como mero conceito geográfico, mas como categorização sociopolítica relativa aos países, segmentos e grupos sociais que sofrem processos de exclusão, de opressão e discriminação, decorrentes da hibridização das formas de domínio do capital e da colonialidade de poder. Dentre esses, destacam-se, nas tessituras do “Sul”, países e grupos sociais latino-americanos que vivenciaram e vivenciam as violências da hibridização capitalismo/colonialismo e, hoje, assumem projetos emancipatórios. Igualmente, fazem parte do Sul os países e povos árabes que, no início de 2011, encarnam a “revolução árabe”, como expressão dos processos revolucioná-rios no século XXI.

9. Noam Chomski é reconhecido internacionalmente como um dos maiores intelectuais vivos da esquerda, tendo publicado centenas de artigos e livros que abordam temas como mídia, movimentos sociais, política e economia global. De fato, é uma das personalidades mais conhecidas da política da esquerda americana, definindo-se como um “socialista libertário”. Adquiriu grande importância e notoriedade a partir da década de 1960 com o artigo “A responsabilidade dos intelectuais”, publicado em 1969 no livro “O poder americano e os novos mandarins” (Record, 2006), uma compilação de artigos críticos à política externa dos Estados Unidos. Noam define-se politicamente na tradição do anarquismo, identificando-se especialmente com a corrente do Anarcossindicalismo. Sua obra mais recente, de 2011, traduzida para o português, tem como título “Notas sobre o Anarquismo”, publicada pela Hedra.

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contradições e graves limites nos circuitos da crise mundial de 2008, a evidenciar o caráter etéreo da riqueza capitalista (MARQUES, 2009). Inegavelmente, a crise, sempre em aprofundamento, consubstancia uma “importante lição da História” que precisa ser compreendida e devidamente avaliada. Impõe-se, assim, como desafio do nosso tem-po histórico, o desvendamento dos significados dessa crise do capital, adentrando no seu sentido, a circunscrever seu caráter agudamente destrutivo (ANTUNES, 2009).

Em verdade, está em curso uma crise profunda do próprio sistema do capital em sua totalidade, uma crise de caráter sistêmico e de ampli-tude global, afetando o conjunto da humanidade. Nesta perspectiva, a análise de István Mészáros, quando da eclosão da crise em 2008, é cate-górica e definidora:

Agora estamos falando de crise estrutural do sistema que se estende por toda parte e viola nossa relação com a natureza minando as condi-ções fundamentais de sobrevivência humana […] A crise atual é pro-funda […] essa não é apenas a maior crise da história humana, mas a maior crise em todos os sentidos (MÉSZÁROS, 2009, p.130-133).

A rigor, essa crise estrutural do capital em tempos contemporâne-os é a encarnação da crise do valor, gestada nos circuitos da lógica ilimi-tada e incontrolável do capital. Logo, as raízes de tal crise encontram-se fincadas no atual estágio de desenvolvimento da civilização do capital, com novas formas de valorização e de acumulação capitalistas, produzin-do novas formas de dominação cada vez mais abstratas, sutis e poliface-tadas, a espraiar-se em toda a vida social (CARVALHO, 2010a).

É fato inconteste que estamos diante de uma crise civilizacional a expressar a própria insustentabilidade do modo de funcionamento do sistema do capital, fundado na sua expansão predatória e sem limites. As-sim, esta crise civilizacional manifesta-se em uma combinação de crises que se entrecruzam nos tempos contemporâneos: ambiental, climática, financeira, energética, alimentar, crise do trabalho, crise social, crise hu-manitária. Afirmam-se como encarnações emblemáticas desse contexto de crises: desemprego estrutural, com a expulsão do próprio processo de trabalho de centena de milhões de trabalhadores/trabalhadoras que se tornam supérfluos ao modo de funcionamento do capital; destruição ecológica, com o uso indiscriminado dos recursos naturais e a privati-zação de bens comuns: água, ar, biodiversidade; consumo exacerbado como definidor de um modo de ser; descartabilidades, instabilidades e riscos. São manifestações que colocam em xeque a própria civilização do capital, abalando seus fundamentos (CARVALHO, 2010a).

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Em entrevista em junho de 2011, Mészáros reafirma a exigência de estarmos atentos e vigilantes para a natureza estrutural da crise, sublinhan-do a necessidade de lidar com tal crise o mais rápido possível. Esclarece ele:

…o que devemos encarar não é a crise cíclica tradicional do capita-lismo, que vai e vem em intervalos regulares, mas algo radicalmente diferente. É a crise estrutural global do sistema do capital em sua integralidade, que não pode ser conceituada nos termos habituais da “longa onda descendente” (downturn), seguida da confortadora “longa onda ascendente” (upturn), dentro de um período de mais ou menos cinco décadas. Há muito tempo essa caracterização perdeu credibilidade e não há nenhum sinal da fictícia “longa onda ascen-dente”. A razão pela qual é importante reposicionar nossa atenção nessa direção é porque uma crise estutural requer remédios estru-turais radicais para sua solução. O que está em jogo é muito grande porque nossa crise estrutural está se tornando mais profunda, em vez de diminuir. A crise financeira global a que fomos submetidos nos últimos anos é um aspecto importante disso, mas só um aspec-to. Não há lugar para a autocomplacência quando trilhões de dó-lares jogados fora mal puderam arranhar a superfície do problema real (MÉSZÁROS, 2011b, p. 3).

É fato inconteste que esta crise estrutural do capital, que marca o tempo presente de “modernidade cada vez mais líquida”, não tem solu-ções nos circuitos incontroláveis e predatórios de expansão do capital. O neokeynesianismo do Estado, nos marcos do “estatismo privatizado” (ANTUNES, 2009), com bilhões de dólares injetados no sistema ban-cário global para “salvar o sistema”, mostra-se ineficaz e incapaz para en-frentar ou mesmo contornar a crise que se agrava e se complexifica. Ava-lia Mészáros esse cenário contemporâneo de desdobramentos da crise estrutural do início da segunda década do século XXI:

Na Europa três países estão obviamente falidos – Grécia, Irlanda e Portugal –, enquanto vários outros, incluindo economias maiores como a Itália e o Reino Unido, não estão muito longe disso. É verdade que “Estados soberanos” podem intervir para se proteger, por meio do agravamento de seu próprio endividamento. Mas também há um limite para isso, e ir além pode gerar problemas ainda piores. A dura verdade é que agora nós ultrapassamos as mais otimistas recomenda-ções keynesianas: em vários países o volume de dívida insustentável chegou aos trilhões de dólares (MÉSZÁROS, 2011b, p.2).

Slavoj Žižek (2011), em instigante e provocativa obra de contun-dente crítica ao contexto da civilização do capital neste início do século

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10. Trata-se da obra de Slavoj Žižek intitulada “Primeiro como tragédia, depois como farsa”, publicada em português pela Boitempo em 2011.

XXI10, sustenta que o sistema do capital, a encarnar a “utopia democrá-tico-liberal”, morreu duas vezes: como “tragédia” no dia 11 de setembro, com o ataque às Torres Gêmeas, a demarcar o colapso da utopia política: como “farsa” no desenrolar da crise mundial a configurar o fim da utopia econômica. Assim avalia Žižek:

…entramos num novo período em que a crise, ou melhor, um tipo de estado de emergência econômica, que necessita de todos os tipos de medidas de austeridade (corte de benefícios, redução dos serviços gratuitos de saúde e educação, empregos cada vez mais temporários etc.), é permanente e está em constante transformação, tornando--se simplesmente um modo de viver. Além disso, as crises ocorrem hoje nos dois extremos da vida econômica, e não mais no núcleo do processo produtivo: ecologia (exterioridade natural) e pura especu-lação financeira. Por isso, é muito importante evitar a solução simples dada pelo senso comum: “Temos de nos livrar dos especuladores, pôr ordem nisso tudo, e a produção continuará”. A lição do capitalismo aqui é que as especulações “irreais” são o real; se as esmagarmos, a realidade da produção sofrerá (ŽIŽEk, 2011, p. 7).

A dramática crise financeira que experimentamos nos últimos três anos é apenas um aspecto da trifurcada destrutibilidade do sistema do capi-tal: (1) na esfera militar, com as intermináveis guerras do capital desde o começo do impedimento monopolista nas décadas finais do século dezenove, e suas mais devastadoras armas de destruição em massa nos últimos sessenta anos; (2) a intensificação, através do óbvio impacto des-trutivo do capital na ecologia, afetando diretamente e já colocando em risco o fundamento natural elementar da própria existência humana, e (3) no domínio da produção material e do desperdício cada vez maior, devido ao avanço da “produção destrutiva”, em lugar da outrora louvada “destruição criativa” ou “produtiva” (MÉSZÁROS, 2011a, p.12-13).

Mészáros (2001, a) bem circunscreve os graves problemas sistêmi-cos da crise estrutural em desenvolvimento que não podem ser solucio-nados no âmbito do sistema sociometabólico do capital. Avalia ele:

Nesta perspectiva é preciso superar vãs ilusões, difundidas por es-tratégias do sistema do capital, de solução desta crise estrutural e global. E Mészáros interpela-nos: “Mas a última coisa de que hoje precisamos é continuar a ´dar nós nos ventos , quando temos de enfrentar a gravidade da crise estrutural do capital, a qual exige a instituição de uma mudança

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sistêmica radical” (2009, p.28).Em conferências no Brasil, em junho de 2011, Mészáros reafirma

esta convicção da impossibilidade de saída para a crise em curso no in-terior do próprio sistema do capital, ao enunciar como título de sua fala “Crise estrutural necessita de mudança estrutural”. E, declara no âmbito da sua análise: “o ponto que eu desejo enfatizar é que a crise que temos de enfrentar é uma crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcan-çar uma solução sustentável” (MÉSZÁROS, 2011a).

Neste contexto de crise estrutural e impasses impõe-se a questão “o que fazer?”, a exigir o reexame das respostas institucionais tradicio-nais. Assim, “grupos cada vez maiores de trabalhadores se veem diante do desafio inevitável de reavaliar tanto as formas de tomada de decisão com que se acostumaram no passado quanto as respostas a ela” (MÉSZÁ-ROS, 2011b, p. 3). Em distintos espaços desta civilização do capital em crise, em meio ao cenário hostil de destituição de condições de vida e de violação de direitos, a comprometer a humanidade de amplos segmen-tos populacionais, emergem manifestações populares a ocupar espaços públicos como “sinais dos tempos”. Boaventura de Sousa Santos, em sua avaliação desses perturbadores sinais dos tempos contemporâneos, usa uma metáfora, deveras reveladora, ao afirmar:

Está a ser gerado nas sociedades um combustível altamente inflamá-vel que flui nos subterrâneos da vida coletiva sem que se dê conta. Esse combustível é constituído pela mistura de quatro componentes: a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e coletiva, a prática do racismo em nome da tolerância, o sequestro da democracia por elites privilegia-das e a consequente transformação da política em administração do roubo “legal dos cidadãos” (SANTOS, 2011b).

Em um olhar panorâmico sobre a cena do mundo em crise, nesta segunda década do século XXI – qual um fotógrafo face a uma cena ple-na de imagens e cores, a exigir a construção de um ângulo para retratá-la em seu instante – vislumbram-se diferentes mobilizações, resistências e lutas, afirmando sujeitos coletivos, em distintos espaços do planeta, com expressões peculiares e inovadoras. É uma diversidade na unidade do “fazer político contemporâneo”.

As juventudes recolocam-se na cena contemporânea como sujeitos políticos a tensionar com o sistema do capital em sua expansão incontro-lável a destituir condições de vida e trabalho nos marcos do neoliberalis-mo. Boaventura de Sousa Santos (2011) assim circunscreve esses movi-mentos juvenis de protestos no contexto da Europa em crise:

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Os protestos ocorrem em vários países europeus […] Todos eles têm em comum o fato de ser pacíficos (houve alguns casos de violência que os próprios movimentos denunciaram) e de adotar como senha a luta por uma democracia real ou verdadeira. Esses dois traços os separam dos protestos de jovens europeus em períodos anteriores, que se carac-terizaram por ser violentos ou que tiveram como ordem a destruição da democracia (sobretudo na Alemanha, no período anterior ao sur-gimento do nazismo). Em termos de seus objetivos, são protestos mais defensivos e, nisso, se distinguem também do movimento estudantil de 1968 […] apesar da retórica mais radical, os jovens de hoje se mani-festam para defender a proteção social e os horizontes de vida pessoal e coletiva, que tiveram a geração anterior. O Maio de 68 era regulado por expectativas ascendentes, enquanto os protestos de hoje são regulados por expectativas descendentes (SANTOS, 2011, p.1).

Em Portugal, na Espanha e na Grécia jovens assumem movimentos de protestos, gritando estarem “fartos de falta de empregos, corrupção e desesperança”. Ocupam e acampam em praças, utilizando Redes Sociais para mobilizar, convocar e articular-se. Esses jovens desempregados de-finem-se como geração “ni-ni”: ni estuda, ni trabaja. São jovens que cursa-ram faculdades, falam três idiomas, portam diplomas de mestrados e dou-torados e estão imersos no desemprego e/ou na precarização do trabalho. São jovens europeus com a melhor formação na história de seus países a vivenciarem um dos piores cenários de emprego. São os “indignados eu-ropeus a unir-se” em tempos de crise, inseguranças e desproteção… Em suas palavras de ordem, em seus gritos de protesto, denunciam as contra-dições e paradoxos gestados pelo modo de funcionamento do sistema do capital no presente a se revelar estruturalmente insustentável!...

No Chile, os jovens estudantes universitários – atualizando a herança política dos estudantes secundaristas no movimento de 2006 denominado “revolução dos pinguins” – mobilizam-se na luta contra o neoliberalismo a materializar-se, de forma predatória, nos processos de privatização da universidade, a gestar uma “coletividade de jovens endi-vidados” que tiveram de recorrer a um sistema de crédito bancário para custear seus cursos universitários, pagando caro pelo acesso à “mercado-ria educação”. Assim, no cenário desta segunda década do século XXI, o movimento estudantil chileno afirma-se como uma experiência de luta política de ampla dimensão e visibilidade, com mobilizações que atraves-sam o país: paralisação de universidades e colégios, envolvendo os ensi-nos médio, fundamental e superior. É um movimento a encarnar expres-sivo potencial emancipatório no confronto com o sistema do capital, em sua expansão incontrolável, a impor a lógica da mercantilização a invadir todos os domínios da vida social. De fato, o movimento estudantil chi-

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leno do século XXI, em suas diversas formas de expressão, está a colocar em questão o modelo chileno de ajuste estrutural que, na ditadura de Au-gusto Pinochet (1973-1990), emerge na América Latina como um “ver-dadeiro laboratório” do projeto neoliberal. No confronto com o neolibe-ralismo, o movimento estudantil chileno tem uma proposta política que, a partir do seu móvel de luta da educação pública e de qualidade, coloca em pauta demandas estruturais: reforma tributária; renacionalização do cobre; assembleia constituinte; reforma política, dentre outras questões que se publicizam nas manifestações que tomam o Chile.

Em verdade, o movimento dos jovens universitários transforma-se em uma convocatória para a cidadania, fazendo-se expressar o sentimen-to comum de que o neoliberalismo nada pode oferecer ao povo chileno. Tem o apoio de mais de 70% da população chilena e adesão de diferen-tes categorias de trabalhadores, fazendo brotar greves e paralisações em todo o país: greve dos mineiros de cobre e dos bancários, paralisação dos taxistas e greve geral, promovida pela CUT do Chile, no mês de agosto.

Como expressão do fazer político contemporâneo, o movimento afirma-se como amplo e heterogêneo, com muitas formas de manifesta-ção da indignação e de protesto, articulando ações mais radicais e ações mais lúdicas, capazes de envolver, cada vez mais, jovens e outros segmen-tos sociais. Nas suas mobilizações, o Movimento Estudantil Chileno (re)constrói a aliança histórica de estudantes e trabalhadores, afirmando a solidariedade como forma de luta. O seu horizonte político são reais mudanças estruturais, não aceitando concessões do governo de medidas pontuais, na linha de “pequenas reformas”. O movimento radicaliza a in-dignação e a luta na civilização do capital em crise!...

Neste jovem século XXI, o confronto com o sistema do capital está na agenda pública. Reatualiza-se a luta pela democracia como forma de organizar a vida social, afirmando a “democracia real” como exigência histórica, bem circunscrita no grito que ecoa nas praças cheias de gente: “outra democracia é possível!”. Vive-se, de novo, a paixão que se expressa no “entusiasmo” a apontar para o “novo fazer político” que parece supe-rar a “velha política”. Eduardo Galeano, ao perambular entre as milhares de pessoas que se aglutinavam no protesto na “Puerta del Sol”, afirma, em entrevista de maio de 2011:

Me parece uma experiência estupenda. A verdade é que foi muito emocionante, para mim, estar entre essas pessoas quando cheguei a Madrid e recuperar esta energia, este entusiasmo. Esta vitamina “E” de entusiasmo, que às vezes parecia perdida neste mundo que nos convida ao desânimo. Então acho que é uma experiência estu-penda, e segue sendo, e a palavra entusiasmo é uma palavra linda, de origem grega, que significa “ter os deuses aqui dentro”.

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Este cenário de lutas contemporâneas interpela o exercício do pen-sar crítico como desafio do nosso tempo… “Para onde apontam os movi-mentos da História neste início do século XXI?” – Eis uma questão que nos instiga a desvendar o presente!...

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Apresentação

Cumpriu-se já uma década desde que o mundo ficou impactado ante o ataque das Torres Gêmeas do World Trade Center no coração de Manhat-tan e do Prédio do Pentágono, em Washington. Milhares de análises têm surgido desde então para tentar compreender esses acontecimentos. Numa manhã qualquer, num instante breve e interminável, dois dos maiores sím-bolos do poderio econômico e militar americano são alvejados e destru-ídos ante os olhos incrédulos da humanidade, que assistiu estupefata aos ataques a um país que até então parecia intocável e indestrutível.

Além disso, durante 2008 se deflagrou a crise financeira provoca-da pela bolha imobiliária e as hipotecas podres, e que se estendeu rapida-mente desde o centro financeiro dos Estados Unidos até o resto do mundo, transformando-se – salvo contadas exceções – numa crise econômica glo-bal. Desde Wall Street a crise passou para as economias centrais e depois se alastrou como um câncer para o resto do planeta. Destruiu empregos, aumentou a pobreza e as doenças, exacerbou as tensões e os antagonismos sociais, criou ceticismo acerca da eficácia da governabilidade democráti-ca, levou à experimentação política, complicou os esforços para lidar mul-tilateralmente com os problemas globais, e alimentou os conflitos civis e internacionais. Pelo seu alcance, os impactos da crise não só colocam em risco a economia norte-americana, mas o conjunto de alicerces sobre os quais se sustenta a economia mundial. Nas palavras de Alain Touraine: “Este risco de destruição do mundo pela busca ilimitada do lucro é mais do que o sintoma de uma crise, já que ele pode ser mortal para a sociedade, e primeiramente para o neoliberalismo, que destruiu a ‘sociedade industrial’, suprimindo todos seus atores e reduzindo esta sociedade ao reino do mer-cado.” (Touraine, 2011, p. 27).

Por sua vez, a chamada ‘guerra preventiva’ – impulsionada pelos Es-tados Unidos contra Afeganistão e Iraque – com trágica sequela de mortes de inocentes e população civil, não somente vem acumulando enormes custos e déficits econômicos sobre a nação do Norte, mas, sobretudo, tem

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gerado consequências nefastas sobre a moral, a confiança e, especialmente, a autoestima do povo norte-americano.

Somados estes e outros fenômenos que colocam em questão a exis-tência de uma única “hiperpotência” dirimindo os destinos do mundo, um conjunto de interrogantes continua gerando polêmicas e incertezas. Por exemplo, o que parecia um “simples” ato terrorista tem adquirido pro-fundas conotações e complexos desdobramentos. Os atentados do 11 de setembro representam efetivamente o início da queda da hegemonia es-tadunidense no mundo? As ações empreendidas pelo gigante do Norte a partir dessa data representam as últimas farpas mortais de um animal em extinção ou significam a retomada do poder americano em escala global? Estamos em presença de um choque de civilizações, onde os Estados Uni-dos encarnam o pior que existe na civilização ocidental e no capitalismo?

Por outra parte, os Estados Unidos continuam a ser a principal po-tência militar do planeta, seu impugnado dólar ainda cumpre a função de ser a moeda mundial de reserva e, pese ao endividamento, seu vasto mer-cado de consumidores continua sendo um grande atrativo para a maioria dos países exportadores. Portanto, não existe unanimidade com relação ao declínio desta potência. A extensa bibliografia e as reflexões de diversos especialistas e intelectuais apontam para as mais diversas conclusões.

O presente artigo tentará apontar para alguns desses posicionamen-tos. Especificamente, no primeiro item abordaremos os argumentos daque-les que sustentam o fim da hegemonia estadunidense e na segunda seção, as teses daqueles que relativizam dita decadência. No item final, elaboraremos algumas conclusões a respeito, ainda que elas não sejam peremptórias. Esta-mos cientes que um tratamento apurado delas poderia se transformar numa agenda de pesquisa de bastante fôlego, precisamente como aquela empreen-dida pela maioria dos autores citados neste estudo.

O declínio da hegemonia dos Estados Unidos

A hegemonia “americana”, que se expandiu e consolidou a partir do fim da Segunda Guerra, está sendo contestada há, pelo menos, uma década antes de se consumarem os atentados do dia 11 de setembro. O historiador britânico Eric Hobsbawn (1999) afirma que já no período que marca o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se encontravam em fase de crise econômica e nem mesmo a hegemonia militar podia ser financiada pelo próprio país. De fato, existem inúmeros antecedentes que demonstram que quando os Estados Unidos se lançaram em 1991 no “empreendimento” conhecido como a “Guerra do Golfo”, grande parte dos recursos para financiar a invasão foi aportada pelos outros

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países participantes da arremetida, especialmente Alemanha e Japão.Para Immanuel Wallerstein, a decadência do “Império” America-

no vem se produzindo lenta e inexoravelmente desde os acontecimentos de maio de 1968, declínio que se tem acelerado a um ritmo vertiginoso nos últimos anos, sendo que os atentados do dia 11 de setembro sina-lizam uma inflexão que marca o começo do colapso definitivo. Ainda mais, depois da incursão anglo-americana no Iraque, ficou comprovado que, com todo seu poderio militar, as forças invasoras não conseguem submeter essa relativamente pequena nação do Oriente Médio. Segun-do Wallerstein (2005), os Estados Unidos passaram a impor os 95% de sua vontade ao mundo, entre 1945 e 1970, a uma situação de impotência que se manifestou na chegada ao poder dos neo-conservadores (neocons) com George W. Bush, em 2001. Para o autor isso foi uma amostra da de-bilidade e não – como geralmente se pensa – da fortaleza do Hegemon americano. Para os neocons somente a força militar poderia reverter a decadência de uma potência que já não é temida. Pensava-se que com Barack Obama esse panorama poderia mudar. Mas à luz das ações pro-duzidas durante sua administração, se pode conjeturar que a estratégia militar segue primando por sobre as vias da negociação para resolver os conflitos surgidos em diversos cantos do planeta. As promessas de Oba-ma de acabar com o campo de prisioneiros de Guantánamo, diminuir o contingente de tropas no Afeganistão e Iraque, ajudar o povo Palestino a ter uma pátria soberana ou construir uma política efetiva de relações multilaterais configuram hoje vagas e cinzentas lembranças de um dis-curso de campanha bem elaborado.

Por sua vez, para Arrighi, Hopkins e Wallerstein (1999), as princi-pais causas dessa decadência do poderio americano podem se situar em torno de três fatores que confluíram entre fins dos anos 1960 e começo dos anos 1970, a saber: a concorrência econômica de Japão e Europa; a descolonização e a rejeição do Terceiro Mundo à ordem bipolar USA--URSS; e a emergência de uma nova geração de movimentos antissistê-micos a partir das rebeliões de maio de 1968.

No primeiro caso, o poderio econômico, durante muitos anos in-contestado, dos Estados Unidos depois da vitória na II Guerra Mundial tem cedido espaço cada vez mais proeminente à Europa (a rigor os paí-ses da União Europeia) e Japão. No entanto, Wallerstein enfatiza que a ordem dos três blocos não perdurará por muito tempo e que a tendência pode ser que os Estados Unidos procurem uma aliança com os países do Sudeste Asiático, em especial, China e Japão. Já a Europa deverá aproxi-mar-se da Rússia, considerando seus vínculos históricos. Inclusive, nessa nova configuração mundial poderiam ter um papel relevante os países do Mercosul, com o Brasil liderando esse processo.

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Desta maneira, para o sociólogo estadunidense, o próprio eixo do poder americano será inexoravelmente substituído por nações e blocos que estão em processo de consolidação como poder global, partindo pe-los países “emergentes” caracterizados como os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)1. Em qualquer hipótese, os Estados Unidos deverão compartir seu poder com outras nações ou Blocos.

Também se pode fazer a leitura de que a invasão ao Afeganistão e depois ao Iraque responde à necessidade de fortalecer seu poderio atra-vés de ações repressivas contra todo e qualquer país que ousa contestar sua hegemonia. Nas palavras de um cientista político, isto representaria um indicador evidente de que os EUA estão em queda, pois “historica-mente esse tipo de atitude sempre foi assumido pelas potências em declí-nio econômico, político e militar” (Mendes Antas, 2003, p. 15).

Se concebermos a hegemonia na sua acepção gramsciana, ou seja, como uma dimensão que possui um forte caráter ético-político capaz de mobilizar o resto da população ou nações em torno de um projeto legitimado de dominação, tal parece que os Estados Unidos não conse-guem nem sequer impor um substrato moral que oriente o comporta-mento de seus próprios cidadãos e ainda mais a relação desse povo com o resto do mundo.2 Nesta leitura a hegemonia americana atual parece sustentada fundamentalmente no uso da força e de algumas modali-dades de penetração ideológica (em especial com uso da mídia), mas não constitui um projeto que gere o consentimento necessário para se impor em escala global.3

Neste ponto, parece relevante também a substituição do padrão dólar pelo sistema do dólar flexível. Efetivamente, tal e como tem sido argumentado por diversos historiadores e cientistas sociais, uma clara expressão de dominação de uma cidade-Estado ou logo Estado-eco-nomia-nacional por sobre o resto dos Estados ou “territórios” consiste na imposição, após o triunfo numa guerra ou conquista, de sua moeda (moeda-estatal ou soberana) que se transforma no padrão dominante dos intercâmbios comerciais e financeiros em nível internacional. Nes-

1. Para alguns especialistas o “S” deveria ser na realidade da Coreia do Sul.

2. Sintomático desta crise é um diagnostico feito por um estudioso desse país que num artigo titulado Um povo sem decência afirma que “Desprovida de valores, a sociedade americana perdeu o respeito pelo outro e se tornou insensível aos problemas dos demais países do Globo” (Servin, 2008). Por sua parte, Mike Davis em “O futuro da decadência e queda dos Estados Unidos” ou Alison Raphael no artigo “O declínio do sonho america-no” apontam, respectivamente, para uma crise moral acrescentada pela hipócrita “inocência” estadunidense perante as agressões do resto do mundo ou por uma crise do sistema de proteção social americano que deixa cada vez mais famílias na mais absoluta exclusão e indigência.

3. Estudos recentes indicam que os USA são cada vez mais rejeitados pelo conjunto dos povoso do planeta, fa-tor que inclusive tem sido tratado como tema da maior importância pelas Agências Americanas de Segurança Nacional. Ver, de Janette Habel, “Washington perdió a América Latina?”, em sítio Rebelión.org.

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te sentido, Fiori salienta que a formação do capital e a imposição de uma determinada moeda se produzem a partir das lutas de conquista e de poder, que permite estimular os mecanismos de troca à sombra dos poderes vitoriosos que exercem sua soberania sobre o resto (Fiori, 2007b, p. 25).

Nessa linha argumental, o império da moeda estabelece um marco do projeto hegemônico dos Estados Unidos no pós-guerra, como antes foi da Inglaterra, pois devemos concordar com que a “administração da moeda possui um papel decisivo, tanto na competição inter-capitalista como na luta por poder e hegemonias internacionais” (Fiori, 2001a, p.21).

Tanto assim que uma das características apontadas para conside-rar a supremacia americana é o poder exercido pela sua moeda na década de 1970, hoje pode ser claramente questionada pelo declínio constante da fortaleza do dólar nos mercados das transações internacionais, mas também com algumas subidas conjunturais. Nesse sentido, caberia nos interrogar a respeito de se este rápido descenso ou subida do dólar são produtos de sucessivas crises conjunturais ou se elas bem expressam uma tendência estrutural de longo prazo. Pode-se dizer que estamos ante aquilo que Antonio Gramsci diferenciava entre o que é permanente e o que é “ocasional”, entre o que é “orgânico” e o que é contingente. Para ele é fundamental estabelecer esta distinção na hora de efetuar uma análise da realidade social e ter claro o que é essencial na estrutura e o que só está lá por circunstância.4

A nosso entender haveria que vislumbrar que os problemas da economia americana efetivamente se alastram já por um período relati-vamente longo, sendo a crise da “bolha imobiliária” e a desvalorização do dólar uma espécie de síntese de um problema endêmico presente nessa economia. Inclusive a própria Guerra do Iraque que tem sido analisada com relação ao controle sobre os recursos petrolíferos da re-gião do Golfo Pérsico pode também ser “justificada” – segundo alguns analistas – como uma tentativa dos Estados Unidos para recuperarem o poder da sua moeda.5 Uma afirmação a favor desta suposição até po-deria (com risco de descontextualização) ser extraída do mesmo Fiori quando salienta que “(...) o poder dentro do sistema capitalista ora as-

4. “(...) no estudo de uma estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente permanen-tes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de movimentos orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance histórico.” Gramsci, Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 36.

5. Para estes especialistas, a decisão das Nações Unidas de utilizar o Euro como moeda oficial para definir os intercâmbios do “Programa Petróleo por alimentos” – executado para combater a crise humanitária registrada com o boicote do pós-guerra do Golfo – representou um duro golpe para a pretensão dos Estados Unidos em manter a regulação do comércio mundial a partir do dólar.

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sume a forma mais abstrata do dinheiro, ora assume a forma mais dura e visível das armas...” (Fiori, 1999b, p. 63).

Acompanhando o argumento de Arrighi, Hopkins e Wallerstein, um segundo fator de perda de hegemonia americana pode ser pensado a partir da descolonização e a rejeição da ordem bipolar e da “Guerra Fria” que assolou o mundo durante o pós-guerra. Os movimentos pela libertação do chamado Terceiro Mundo, especialmente na África e Ásia, tentaram se constituir em projetos nacionais com relativa ou total auto-nomia com relação à distribuição geopolítica do mundo, empreendida por ambos os polos de poder. Desta maneira, “as superpotências contri-buíram para a liquidação dos impérios coloniais, uma vez que ambas, ainda que por razões diferentes, apoiaram o processo de descolonização. Os Estados Unidos viam na descolonização uma forma de consolidar sua supremacia sobre o bloco capitalista, expandindo sua influência econô-mica aos mercados afro-asiáticos, até então sob controle das antigas me-trópoles coloniais. A URSS via na descolonização um meio de estender sua influência política a esses países. No contexto global da Guerra Fria, cada uma das superpotências procurava atrair os novos países para sua respectiva esfera de influência” (Canedo, 1986, p. 42).

Cientes desta pretensa dominação neocolonial, as lutas de liber-tação e descolonização dos povos da África e Ásia representaram não somente os anseios de independência das metrópoles coloniais – num mundo onde já não era mais possível manter colônias6 –, mas também um questionamento da legitimidade da “ordem mundial” imposta pe-las superpotências em disputa. A Guerra do Vietnã constitui o episódio culminante destas lutas pela independência total dos povos do Terceiro Mundo, uma vez que significou o desfecho trágico da falsa defesa dos valores democráticos que os Estados Unidos gabavam-se de encarnar.

Finalmente, de acordo com Arrighi, Hopkins e Wallerstein (1999), um terceiro fator de crise hegemônica foram os acontecimentos de maio de 1968 que deram início a um processo de contestação da ordem capi-talista, liderada pelo país do Norte. Nesse texto, os autores supracitados afirmam que o que aconteceu nesse ano somente pode ser comparável com os memoráveis levantamentos de 1848, superando ainda em impor-tância momentos tidos como marcos dentro da história dos movimen-tos sociopolíticos e de mudanças revolucionarias, tais como a Revolução Francesa e a Revolução Russa.

Assim foi como a revolta de 1968 minou a capacidade do Norte de

6. No caso dos protetorados a situação não é tão clara, pois precisamente Alemanha, Japão ou Coreia repre-sentaram uma forma de protetorado militar, com apoio econômico (Plano Marshall) e ligações preferenciais com a economia norte-americana.

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vigiar e intervir nos países “subordinados” do sul, produzindo mudanças importantes nos diversos grupos de status (etários, de gênero, minorias étnicas) que bem se localizam nos “espaços ocultos da vida cotidiana”, possuem uma nova disposição a revelar-se contra a ordem estabelecida.

Desde outra perspectiva, também se contesta o papel dominante dos Estados Unidos a partir do argumento de que o processo de globalização em curso, acelerado desde fins dos anos 1980, representa a diminuição do peso dos estados nacionais. Para esses autores (chamados de Hiperglobali-zadores), a globalização é um processo que superou as fronteiras nacionais, por meio dos fluxos reais de comércio e produção e dos fluxos vertiginosos de capitais. Para kenichi Ohmae a globalização nos impele a um mundo sem fronteiras, um mundo em que as forças do mercado são mais pode-rosas que os Estados Nacionais (Ohmae, 1999). 7 Pelo mesmo, o caráter interdependente, integrado, multipolar do planeta, acaba comprometendo a presença de um núcleo central dominante ou hegemon.

Por sua vez, Antonio Negri e Michael Hardt (2001) estabelecem no seu polêmico livro “Império”, que estamos vivendo uma época de “impé-rio sem imperialismo”, quer dizer, uma época em que as grandes empre-sas transnacionais têm superado efetivamente a jurisdição e a autoridade dos estados nacionais, os quais são afastados das funções que lhes eram características, tanto no campo das tarefas propriamente administrati-vas e políticas, como em outros níveis e domínios da vida social. Estas faculdades “conquistadas” pelos Estados nacionais teriam migrado para outras esferas da sociedade, principalmente para aqueles mecanismos de mando do nível global das grandes empresas transnacionais, que por esse mesmo caráter centrífugo, não estariam necessariamente atreladas a nenhum país ou não teriam uma base estritamente nacional. Para os au-tores, um indicador da decomposição dos Estados Nacionais é a enorme fragmentação e dispersão de suas agências centrais, numa extensa varie-dade de novas agências, grupos e corporações entre os que sobressaem os bancos, os centros de planejamento, os organismos multilaterais e outras entidades que procuram legitimar-se num nível transnacional de poder. Assim, tais entes supranacionais restariam à capacidade de um Estado dominante e “imperialista” para fundar sua dominação no resto das na-ções, destacando-se toda uma série de “corpos jurídico-econômicos”, tais como a OMC, o Banco Mundial ou o FMI (Negri e Hardt, 2001).

Em suma, estamos diante da consagração de uma esfera supranacio-nal que acaba por sepultar o protagonismo dos Estados nacionais, o qual não é simplesmente o resultado de uma posição ideológica que se poderia

7. Não é por acaso que o texto mais expressivo dessa tese de Ohmae se chama justamente “O fim do Esta-do-Nação”

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reverter mediante um ato de vontade política, mas sim um processo de ca-ráter estrutural e, portanto, irreversível. O Império se impõe finalmente por sobre o imperialismo, neste caso, aquele de cunho norte-americano.

Ponderando a crise do hegemon

Já com outro enfoque interpretativo Maria da Conceição Tavares, Luiz Gonzaga Belluzzo, José Luis Fiori, Carlos Medeiros, Franklin Ser-rano e um grupo de intelectuais vêm desenvolvendo a tese de que a hege-monia estadunidense não experimenta essa tal decadência.8 Sustentando seu argumento nas dimensões monetária e militar, Tavares e Belluzzo consideram que o poder americano foi capaz de contornar a crise de 1970 através de uma política de afirmação do dólar como moeda forte e da re-composição da liderança militar. Isso era impensável dado o contexto no qual se encontravam os Estados Unidos no início dos anos 1970: “a rup-tura do padrão dólar, a derrota no Vietnã e as crises do petróleo balança-ram os pilares do poder americano. A maioria dos analistas continuou a proclamar a derrota definitiva da hegemonia americana, mesmo depois de 1985, quando a crise já tinha sido superada e os EUA avançavam na direção de um poder global” (Tavares e Belluzzo, 2004, p. 130).

Com o governo de Ronald Reagan a “diplomacia do dólar forte” permitiu que tal moeda se constituísse no metal de reserva e de deno-minação das transações comerciais e financeiras, o qual – segundo estes autores – promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. Assim, a união do poder político-militar e do capital financeiro deu aos Estados Unidos um fôlego e uma dimensão global que não existia até esse momento. Nas palavras de Fiori:

Desde o fim do padrão-dólar e da Guerra Fria (...) o mundo nunca es-teve entregue de forma mais incontestável ao arbítrio de uma só po-tência hegemônica que estivesse tão radicalmente orientada pelo seu commitment liberal, e pelo objetivo de construir e sustentar uma ordem internacional baseada em conjunto de regimes e instituições regionais e globais consagradas pela aceitação coletiva, no campo do desarma-mento como no do comércio e dos investimentos (Fiori, 2001a, p. 12).

8. Esse conjunto de autores há um tempo vem se dedicando a uma agenda de pesquisa orientada em torno de consolidar uma discussão conceitual e interpretação de dinâmica e transformações experimentadas recentemente pelo sistema mundial e seu concomitante impacto sobre as instituições marco do regime internacional capitalista.

Esta tese se apóia na noção de que tanto na esfera monetária como no âmbito militar os Estados Unidos saíram fortalecidos na medida em

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que – como já foi apontado – conseguiram superar com certo sucesso a crise dos anos 1970. Esta situação viu-se robustecida ainda mais depois da “queda do muro” e o fim do socialismo real. A rigor, com o colapso do bloco comunista e o desmembramento da União Soviética, os Esta-dos Unidos acabaram se transformando na única força militar de alcance planetário. As potências econômicas que secundavam aos EUA na época (ou seja, Alemanha e Japão) não tinham exércitos de envergadura como resultado dos acordos posteriores à II Guerra Mundial. Por sua parte, a China não tinha uma presença marcante no cenário mundial e a Europa tampouco tinha desenvolvido nenhum projeto militar, a não ser seu atre-lamento na defesa continental no marco da Guerra Fria, constituindo para isso a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Ambos os fenômenos (o controle monetário e o poderio militar) per-mitem, portanto, o surgimento de uma “gigantesca” concentração de poder econômico, militar e financeiro por parte dos Estados Unidos nas últimas duas décadas do século XX, que gera por sua vez as condições privilegiadas para construir nos anos 1980, uma nova “narrativa” que aparece como parte da própria dinâmica do desenvolvimento capitalista: a globalização.

Na realidade, para os autores citados, a globalização representa uma estratégia de expansão econômica, política, militar e ideológica das grandes potências mundiais e, especialmente, do poder americano que assume a liderança do processo. Tratando de compendiar esse esforço intelectual, Fiori escreveria mais tarde:

(...) a [nossa] convicção [é] de que a globalização não foi obra ex-clusiva dos mercados ou do progresso tecnológico, envolvendo mudanças nas coalizões de poder das grandes potências e o renas-cimento da crença ideológica liberal (...) que galvanizou o poder do mundo anglo-saxão e viabilizou a retomada da hegemonia norte--americana (Fiori, 2001a, p. 16).

Em síntese, esta “globalização americana” expõe evidentemente a dimensão prática expressiva do Poder e da Riqueza Americanos, fun-dados na relação entre hegemonia monetária, crescimento econômico e expansão territorial. Desta forma, concluem Tavares e Belluzzo, na épo-ca atual encontra-se “configurada uma nova anatomia da geoeconomia capitalista. O cérebro é o poder de contenção e de controle geopolítico da superpotência hegemônica e o coração da economia mundial continua sendo sua gigantesca economia continental” (Tavares e Belluzzo, op. cit., p. 137).

Em outro âmbito, esses autores levantam uma discrepância signi-ficativa com Arrighi, Hopkins e Wallerstein. Este desencontro situa-se

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em torno da própria tese de Hegemonia. Tal como salientam eles, a di-vergência com Arrighi e seus colegas não é conjuntural, é teórica e ela faz relação com a hipótese que sustenta que no “sistema mundial moderno” sempre vão existir potências hegemônicas sucessivas as quais permiti-ram a manutenção da ordem política e o bom funcionamento da econo-mia internacional. Dentro dessa perspectiva o “líder” surge como uma espécie de resposta funcional ao problema de ingovernabilidade de um sistema que é intrinsecamente anárquico, pois ele é formado por Estados nacionais soberanos e em permanente disputa. Em síntese, esta visão sa-lienta as contribuições positivas do hegemon para a governança global do sistema. Pelo mesmo, segundo seus detratores, ela não consegue dar con-ta do movimento contínuo de competição e expansão dos Estados e eco-nomias nacionais que já conquistaram a condição de grandes potências que fazem parte do núcleo central de todo o sistema. Por esta razão, tais Estados continuam competindo entre si, mesmo nos períodos em que se percebe uma alta tranquilidade sistêmica.

Em outras palavras, o sistema mundial moderno funcionaria como uma sorte de onda em permanente expansão a partir de sua própria di-nâmica contraditória e em constante crise. O ponto fraco da hipótese da decadência do poder hegemônico americano não reside tanto na análise dos fatos da conjuntura internacional, quanto no modelo explicativo. O suposto de que o sistema mundial moderno requer a existência de po-tências hegemônicas se revezando para manter a ordem política e o bom funcionamento da economia, implica que necessariamente deve existir um líder ou hegemon capaz de imprimir-lhe estabilidade e governabilida-de (governança global) ao sistema.

Diferentemente, para Fiori não existiria esse tal hegemon compe-tente para organizar o sistema a partir de sua liderança. O sistema está num movimento expansivo contínuo que se encontra permeado pela competição e luta pelo poder entre os Estados e as economias nacionais que já conquistaram seu locus de “grandes nações” e que precisam dessa competição constante e até da possibilidade da guerra para se autorepro-duzir como potências. Desde a perspectiva do poder global, o sistema mundial é uma maquina de acumulação de poder e riqueza e seu mo-tor é a competição e a guerra entre seus Estados e economias nacionais. Nesse sistema mundial não existem países satisfeitos, todos estão sem-pre se propondo aumentar seu poder e sua riqueza. Este sistema mundial pode-se representar como um universo em ampliação que se encontra impelido pela luta das grandes potências para conquistar o poder global. Por isso mesmo estão criando, sempre e simultaneamente, ordem e de-sordem, paz e guerra.

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Ou seja, uma conceituação a respeito do chamado “Poder Glo-bal” mais que referir-se a uma instância ou entidade mundial em par-ticular (como Estados Unidos), ela procura expressar uma modalidade para analisar o funcionamento e as tendências de longo prazo do sistema mundial que se formou a partir da expansão de alguns estados europeus durante o século XVI. Esse tipo de análise privilegia o movimento e as contradições que movimentam esse sistema, impedindo sua estabiliza-ção e qualquer forma de governança global estável e em paz perpétua, noção esta que ficou consagrada na sintética formulação de Norbert Elias “o que não sobe, desce”.

Por último, a tese do fim do Estado Nacional também é contestada por Fiori em vários textos, partindo de um argumento muito simples. Na hora atual em que se discute a morte do Estado, é precisamente o momento em que temos maior número de nações constituindo-se como tais. Segundo ele, o poder do Estado nação segue organizando-se em tor-no de um território de caráter eminentemente nacional, razão pela qual fica difícil “anunciar a morte dos Estados na hora exata em que eles se multiplicam e intensificam a sua competição, e onde (...) apesar da retóri-ca globalista, a luta pela democratização das sociedades e pela conquista da cidadania, segue se dando no espaço de poder dos Estados nacionais.” (Fiori, 2007a, p. 119).

Em resumo, para Fiori não existe nenhum elemento de peso que faça supor que estamos diante de uma crise ou declínio do poder americano e sim, pelo contrário, nos encontraríamos numa etapa em que os Estados Unidos seguirão competindo pela sua posição privilegiada dentro da es-trutura de poder global. E tal como afirma no Prefácio de seu livro “O Po-der Global”:

O que ordena e estabiliza esse sistema, por mais doloroso que seja re-conhecê-lo, não são os hegemons, mas a existência de ‘eixos conflitivos crônicos’ e a possibilidade permanente da guerra. O sistema não acu-mula poder e riqueza sem a competição das nações e não se estabiliza sem as guerras (Fiori, 2007b, p. 28).

Está cada vez mais claro que o centro nevrálgico de nova competição geopolítica mundial envolverá pelo menos duas potências – Estados Unidos e China – que são cada vez mais complementares do ponto de vista econômico e financeiro... (Fiori, 2007b, p. 39)

Com efeito, a economia chinesa, que vem experimentando um cres-cimento econômico constante nos últimos anos – com uma média de apro-ximadamente 10% – já se encontra instalada no segundo lugar com um

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Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 6,05 trilhões. E as previsões dos es-pecialistas do Fundo Monetário Internacional é que ela se torne a primeira economia mundial em 2016.

Considerações finais

Um permanente dilema entre os filósofos e cientistas sociais é o de conciliar a realidade tal e como ela é ou aparenta ser (perspectiva positiva) e a realidade como nós queremos que se comporte (perspectiva normati-va). Acredito que no debate a respeito do declínio do império americano, muitos dos especialistas que escreveram e escrevem sobre o tema têm se visto fortemente tentados a interpretar a situação atual da hegemonia ame-ricana com os “sentimentos” de quem deseja efetivamente que se produza a decadência do gigante do Norte. Mas este sentimento tampouco é recente. Já durante os anos 1980 o historiador inglês Paul kennedy (1987) tinha vislumbrado a decadência do poder dos Estados Unidos, ainda que com a ressalva de que esse seria apenas um “declínio relativo”, pois – segundo este especialista – ainda com inúmeros percalços no seu caminho e o po-derio emergente da China, os Estados Unidos continuarão a ser o país mais poderoso no cenário internacional.

No início deste século, Immanuel Wallerstein (2005) radicaliza o argumento de kennedy afirmando que a decadência do poder americano é evidente e que o problema não estaria tanto em discutir a veracidade da tese, senão principalmente sopesar o impacto que terá o desabamento dessa potência sobre o resto do planeta. Nas palavras deste pensador crítico: “O verdadeiro dilema não é se Estados Unidos estão em decadência como po-tencia hegemônica, mas se poderá encontrar um modo de cair com elegân-cia, com o menor dano para o mundo e para o próprio país” (Wallerstein, op. cit., p. 39). Já para Noam Chomsky (2011), falar da decadência dos Esta-dos Unidos constituiu-se num lugar comum amplamente difundido. E essa crença é precisamente mais trágica considerando que esse descenso seria, em grande medida, autoinfligido. Entre outros fatores, o financiamento das campanhas por parte das grandes corporações e agências de investimento estaria levando ao enterramento da democracia: “Ao triturar os restos da democracia política, as instituições financeiras estão criando as bases para fazer avançar ainda mais este processo letal” (Chomsky, 2011, p. 4).

Contestando a teoria do declínio americano, o próprio George Bush, pai, fazia um otimista e enérgico discurso por ocasião da convenção republicana em agosto de 1988 na qual respondeu simultaneamente a Paul kennedy e ao seu concorrente democrata, Michael Dukakis:

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Por sua parte, o ensaísta Charles krauthammer anunciava no início dos anos 1990 – pouco depois da queda do muro – a chegada de um mo-mento unipolar no sistema de relações internacionais, um momento em que os Estados Unidos consolidariam sua hegemonia incontestável sobre o conjunto das nações do orbe. No entanto, uma dimensão significativa para propugnar esta hegemonia foi sustentada no uso da força e da intervenção militar nos preceitos mais beligerantes assumidos pelos assessores da Casa Branca desde os tempos da Doutrina Monroe (1823) e seu pressuposto do “Destino Manifesto”.

Efetivamente, a história do “imperialismo americano” está cheia de agressões e justificativas truculentas. Um inventário rápido da ingerência e intervenção dos Estados Unidos em nome da liberdade e a democracia nos farão percorrer praticamente todos os cantos do planeta:

Esta eleição se resume ao seguinte. A visão que o meu adversário tem do mundo é a de um lento e extenso declínio para o nosso país, de uma queda inevitável induzida por forças históricas impessoais. Mas a Amé-rica não está em declínio. A América é uma nação em ascensão. Eu vejo a América como líder entre as nações, uma nação única, por causa do papel especial que ela exerce no mundo. Este século foi chamado de ‘século americano’ porque durante este período nós fomos a força do-minante, para o bem do mundo. Nós salvamos a Europa, encontramos a vacina para a pólio, desbravamos a lua e iluminamos o mundo com a nossa cultura. Agora, nós estamos no limiar de um novo século. Eu digo que este também será um século americano.

Desde a intervenção nas lutas sociais travadas na Grécia em 1944-49 até a intervenção em curso na Venezuela e no Iraque em 2002, são nu-merosos os casos de pressões, exigências, bloqueios, desestabilizações, intervenções armadas diretas ou mercenárias e destruições de gover-nos e regimes políticos alternativos ensaiados ou vigentes no mundo. Em todos os casos, a mensagem dos porta-vozes ou ideólogos das elites governantes e classes dominantes das nações européias e de outras re-giões sintetiza-se nos seguintes termos: a Grécia foi salva para o Oci-dente, assim como Guatemala em 1954, o Irã em 1953, a Indonésia em 1965, o Brasil em 1964, o Chile em 1973, a Nicarágua em 1989, a Vene-zuela e o Iraque em 2002. (Ianni, 2003, p. 25-26).

A esta relação podemos agregar a invasão de Granada, Panamá ou Afeganistão e a recente “contribuição” da OTAN – liderada pelos Estados Unidos – para a derrubada do regime Líbio.

Sintomático desta convicção de destino manifesto é o trecho a se-guir: um conhecido jornalista de The New York Times entrevistava um membro do gabinete de George W. Bush. Escreveu:

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Diz-me que os tipos como nós pertencemos a isso que chamamos ‘gen-te que se apóia na realidade’, quer dizer, os que acreditam que as solu-ções se alcançam através de um estudo judicioso da realidade percep-tível. Eu assenti e comentei algo sobre os princípios da Ilustração e do Empirismo. Ele me interrompeu: ‘O mundo já não funciona assim. So-mos um Império e, quando atuamos, criamos nossa própria realidade. Enquanto vocês estudam essa realidade — tão judiciosamente como desejem —, nós atuamos outra vez e criamos outras realidades que vo-cês têm que voltar a estudar; assim é como se passam as coisas. Somos os atores históricos e vocês, todos vocês, somente podem estudar o que nós fazemos’ (Piris, 2008).

Por estas e outras inúmeras considerações, é difícil ficar indiferente ante as atividades realizadas pela Nação “predestinada”. O rigor científico, no entanto, nos alerta a respeito de nossos desejos de ver o colapso final do poder americano. Ainda assim, temos que reconhecer que desde uma perspectiva braudeliana, dos longos ciclos históricos, o momento final da hegemonia estadunidense está ainda muito longe de sua hora fatal. Se bem é certo, existem alguns visos de decadência na sua capacidade de convoca-tória e apelo moral assim como nos frequentes surtos de crise em sua eco-nomia, os Estados Unidos ainda irão competir por um lócus privilegiado dentro da constelação das nações mais poderosas, inclusive, compartindo em determinada etapa deste processo seu poder até agora incontestado com a China ou com a própria Rússia. Porém, o mais provável é que neste Universo em expansão os Estados Unidos ainda continuarão competindo – e por um bom tempo – por manter incólume e, porque não, aumentar sua quota na estrutura do Poder Global. Pelo mesmo, acreditamos que a decidida e até prepotente autoconfiança das elites norte-americanas não irá sucumbir tão cedo às turbulências da navegação mundial.

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NUESTRA AMÉRICA: REFLEXÕES SObRE O FENÔMENO DO POPULISMO LATINO-AMERICANOJoão Paulo saraiva leão viana

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“O populista, portanto, é o adversário, o concorrente, o desafeto. O populista é o Outro. Trata-se de uma questão eminentemente política

e, muito possivelmente, político partidária, que poderia ser anunciada da seguinte maneira: o meu partido, a minha proposta política, não são

populistas, mas o teu candidato, o teu partido, a tua proposta política, estes, sim, são populistas. Populista é sempre o Outro, nunca o Mesmo”.

JORGE FERREIRA

Introdução

O populismo consiste num dos mais controversos e polêmicos fe-nômenos da cultura política. A variedade e multiplicidade de tendências políticas, abrigadas sob esta designação, revelam a extrema dificuldade em compreender e empreender o uso do vocábulo. “Enquanto doutrina o mo-vimento possui um caráter elusivo e protéico: brota em todas as partes, mas em formas diversas e contraditórias” (GELLNER & IONESCU, 1969, p. 7).

Num contexto de transição da velha estrutura econômica agrária para uma moderna sociedade industrial, orientada pelo modelo econômi-co de capitalismo dependente, aliado ao crescimento das cidades e organi-zação da nova classe operária, o populismo, ou nacional-popular2, encon-

1. Agradeço a Uribam Xavier pelo gentil convite à publicação deste trabalho. No último momento, o texto be-neficiou-se dos valiosos comentários de Paulo Curi Neto e Vinícius Raduan Miguel, a quem sou extremamente grato. Ressalto, porém, que os equívocos e lacunas aqui presentes são de minha inteira responsabilidade.

2. Na América Latina, o populismo é frequentemente denominado como nacional-popular.

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trou espaço para sua emergência e consolidação. Ao passo que em outras regiões os “politólogos perguntavam se o termo era aplicável a um movimen-to, uma ideologia, um governo ou uma forma de Estado, na América Latina o populismo estava em todos os lados” (PRUD’HOMME, 2001, p. 43).

A crise do modelo liberal nos anos 1920 e o colapso das oligarquias rurais na América Latina foram alguns dos principais fatores que influen-ciaram a emergência de governos preocupados com a construção de um modelo de Estado forte, nacionalista, antiliberal, intervencionista, capaz de liderar o processo de inclusão das massas, permitindo o acesso a direitos políticos e sociais, sob a liderança de um governante personalista e caris-mático. Dentre os principais líderes populistas latino-americanos pode-mos citar Getúlio Vargas no Brasil, Juan Perón na Argentina, Haya de la Torre no Peru, Lázaro Cárdenas no México, Paz Estenssoro e Hernan Siles Suazo na Bolívia, Ibañez no Chile, Velasco Ibarra no Equador, entre outros (CAPELATO, 2010).

No presente texto, analiso, com base em discussão teórica, as expe-riências varguista e peronista. Frequentemente acusados de manipular as massas, varguismo e peronismo são considerados modelos clássicos do po-pulismo latino-americano, obtendo, desse modo, cadeira cativa na análise do fenômeno no continente.

Nesse sentido, a reflexão tem início com a apresentação do ideário populista latino-americano, que possui suas origens na obra de Haya de la Torre e no aprismo. Posteriormente, nos trabalhos dos sociólogos Gino Germani, Torcuato Di Tella e Francisco Weffort, o populismo clássico será alvo de intensa análise. O objetivo é apresentar ao debate político subsídios para a compreensão da complexa relação entre a liderança populista e a massa trabalhadora na América Latina.

Enfoque teórico do populismo latino-americano

Na América Latina, até os dias atuais, a caracterização dos regimes populistas tem sido objeto de polêmica e controvérsia. Diversos estudiosos das Ciências Sociais latino-americanas preocuparam-se em formular aná-lises acerca do populismo, em busca de compreender as transformações sociais que ocorriam na sociedade da época.

Entre as principais correntes, podemos citar Gino Germani (1966; 1973) e Torcuato di Tella (1973) que buscaram analisar o populismo a par-tir do tema da modernização, compreendendo-o como típico das socieda-des subdesenvolvidas em processo de transição. Sob forte influência desses autores, o professor de Ciência Política da USP Francisco Weffort (1980) compreendeu o fenômeno populista como peculiar à crise de hegemonia

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originária do estágio de desenvolvimento capitalista frente à crise do mo-delo agroexportador e do Estado oligárquico.

No caso argentino, Germani (1966; 1973) observou, a partir da dé-cada de quarenta, a intensidade de mobilização das classes camponesas rumo à cidade, incentivadas pela emergente industrialização e o fracasso dos governos na resolução dos problemas do campo. A rapidez no proces-so de mudança estrutural e a migração urbana foram acompanhadas pelo processo de mobilidade social, ao passo que contribuiu diretamente para o aumento da participação política. Entretanto, o incremento na organiza-ção política das classes trabalhadoras não garantiu a racionalidade e cons-ciência crítica da massa.

Para Germani (1966; 1973), na passagem da sociedade oligárquica para a moderna sociedade industrial, a democracia limitada foi substituída por um modelo de participação ampliada. Numa conjuntura marcada pela fragilidade das instituições políticas, o populismo constituía-se na expres-são da mobilização das massas sob o comando de uma liderança carismáti-ca e demagógica. A conotação negativa do populismo evidenciava-se, ainda mais, pelos laços autoritários que sustentavam a relação do líder populista com o povo. Nesse sentido, o populismo é visto como um movimento de caráter autoritário, diferentemente, no entanto, dos regimes fascistas euro-peus (GERMANI, 1966; 1973).

Em sua análise do processo de modernização, Di Tella (1973) levou em conta a incorporação das massas ao mercado, observando que o desen-volvimento dos meios de comunicação e a ampliação do acesso aos bens de consumo contribuiriam para o alcance do progresso. Como observa ele, o populismo se caracterizava como um movimento político dotado de apoio do operariado urbano e rural, além de grupos que não pertenciam à classe trabalhadora, mas se colocavam contrariamente à manutenção do status quo. Entretanto, o repentino aumento das classes urbanas atropelou a ex-periência organizativa do incipiente proletariado, contribuindo para mani-pulação do chefe político (DI TELLA, 1973).

Weffort (1980) argumenta que a migração do campo às grandes cidades deu origem a novas demandas, como a busca por um emprego, o acesso ao consumo e a conquista dos direitos políticos e sociais. Além dis-so, a organização da nova classe operária ocorreu de maneira diversa do operariado europeu. Desprovido de consciência de classe, o proletariado urbano nascente não possuía suficiente grau de organização e independên-cia capaz de garantir autonomia frente ao Estado (DI TELLA, 1973; GER-MANI, 1966; 1973; WEFFORT, 1980).

Assim, a fragilidade do movimento operário seria alvo fácil para o lí-der carismático populista que exerceria uma espécie de intermediação entre os interesses da massa e o Estado. Conforme Weffort (1980, p. 62), “o po-

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pulismo foi um modo determinado e concreto de manipulação das classes populares, mas foi também um modo de expressão de suas insatisfações”.

Do ponto de vista ideológico, o populismo emerge em oposição às ideias liberais e socialistas vigentes à época. Não obstante causar estranhe-za às ideologias tradicionais, observado como “equívoco histórico”, resul-tado da “inexperiência democrática” ou “inexperiência de classe”, o movi-mento absorvia, no caso do Peronismo e do Varguismo, tanto elementos do liberalismo, quanto do socialismo (WEFFORT & QUIJANO, 1973).

Nessa linha de raciocínio, observa-se como ideário do populismo latino-americano o forte discurso nacionalista, a luta contra a oligarquia, a tentativa de construção de uma burguesia urbana, o incentivo ao desenvol-vimento da indústria nacional, por intermédio do modelo de substituição de importações, a garantia de direitos políticos e sociais ao proletariado ur-bano emergente e, consequentemente, a expansão do movimento sindical.

Contudo, é comum a classificação dos regimes populistas como do-tados de um discurso retrógrado, atrasado e incongruente. A incorporação das massas à arena política, aliada a um processo lento de industrialização, seria observada como terreno fértil para a consolidação da demagogia e, consequentemente, a manipulação do povo por líderes populistas, que ba-seado no personalismo do caudilho, de caráter salvacionista, consolidar--se-ia, no lugar do sindicato, como o verdadeiro agente de organização po-lítica (GERMANI, 1971; HENNESSY, 1969).

Todavia, vale ressaltar que ao dar início a um processo de conquista e ampliação dos direitos políticos e sociais, assim como, ainda que de ma-neira efêmera, ao crescimento econômico, e a inclusão das massas à socie-dade de consumo, o populismo logrou alcançar o apoio de diversos setores da intelectualidade no continente.

Nesse contexto, era observado não como algo pejorativo, mas como um momento de ruptura entre a antiga sociedade tradicional e a moderna sociedade nascente, dotada de elementos de modernização social e polí-tica. Além disso, o populismo foi observado como um movimento tran-sitório, em meio ao período de transição entre a sociedade oligárquica e a construção da moderna sociedade democrática (DI TELLA, 1973; GER-MANI, 1966; 1973; WEFFORT, 1980).

Assim, na América Latina o populismo surge como alternativa ao co-lapso da dominação oligárquica, dotado de certo grau de autoritarismo num contexto de desagregação dos sistemas partidários, incorporando politica-mente os setores populares, por intermédio do desenvolvimento industrial e massificação da proletarização. Por outro lado, as diversas experiências po-pulistas no continente situam-se num intervalo amplo de tempo, que vai dos anos 1920 à década de 70, dando origem às mais distintas interpretações.

Sobre o caso latino-americano, Capelato (2010, p. 133-134) analisa que

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“a ampla lista de líderes, movimentos e governos definidos como populistas, ou a divisão do populismo por tempos distintos, permite constatar como é proble-mática a aplicação do conceito para situações históricas bem diversas”.

Em que pese a complexidade desse argumento, no que se refere às origens do pensamento populista na América Latina, do ponto de vista intelectual, encontraremos em Haya de la Torre (1976) a base para a sua compreensão teórica. Embora não tenha alcançado o poder, o pensamento desse eminente teórico e político peruano do século XX insere-se como elemento de vanguarda para a análise do ideário clássico do populismo.

As bases teóricas do populismo latino-americano: o aprismo

A Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), fundada em 1924, representa um marco na formação do populismo latino-americano. De caráter anti-imperialista e antioligárquico, o APRA caracteriza-se como o primeiro partido de massas da América Latina. Sua fundação, sob a lide-rança de Haya de La Torre, teve como objetivo a conclamação dos povos latino-americanos a se unirem, numa frente única, contra o imperialismo capitalista e as oligarquias rurais do continente.

Em meados dos anos 1920, o aprismo observava no imperialismo es-tadunidense um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento das socieda-des latino-americanas. Nesse sentido, a unidade política da Indo-américa3

era vista por Haya de la Torre como fator primordial na luta contra a domi-nação e expansão do capital estrangeiro na região. Conforme Haya de La Torre (1976), diferentemente da Europa, onde representava o ápice da do-minação capitalista, na Indo-américa o imperialismo consistia na primeira etapa do capitalismo. Dessa forma, caracterizava-se como um empecilho à criação de um Estado forte e, consequentemente, à ascensão de uma bur-guesia nacional, capaz de liderar o progresso.

Na ótica aprista, a dominação oligárquica, fundada no latifúndio e na exploração do camponês indígena, consistia, ao lado do imperia-lismo, no principal fundamento de espoliação dos povos latino-ame-ricanos. Haya de La Torre observava a concentração da propriedade rural pelas elites tradicionais como uma barreira ao desenvolvimento. Como assinala o intelectual peruano, “a nacionalização da terra e da indústria e a organização de nossa economia sobre as bases socialistas de produção é nossa única alternativa. Do outro lado está o caminho da colonização política e da brutal escravidão econômica” (HAYA DE LA

3. Haya de la Torre denominava como Indo-américa toda a região da América Latina. Em suas obras, a expres-são serve para designar a América indígena, cujas populações originárias eram formadas por índios das mais diversas etnias.

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4. Conforme Mariategui (1975, p. 22-23) o gamonalismo não serve para designar somente os latifundiários, os gamo-nales. Consiste, sobretudo, num fenômeno que compreende um vasto número de profissionais que desempenham a atividade de exploração ao indígena. Nesse sentido, argumenta o autor “O ‘gamonalismo’ invalida inevitavelmente toda a lei ou medida de proteção ao indígena. O fazendeiro, o latifundiário, é um senhor feudal. [....]. O trabalho gratuito é proibido por lei e, no entanto, o trabalho gratuito, e mesmo o trabalho forçado, sobrevivem no latifúndio” (p. 23). Dando continuidade ao seu raciocínio, completa ele: “o juiz, o sub-prefeito, o delegado, o professor, o fiscal de rendas, estão enfeudados à grande propriedade. A lei não pode prevalecer contra os gamonales” (p. 23).

TORRE, 1976, p. 115).Em linha análoga, um dos mais renomados pensadores marxistas

latino-americanos, José Carlos Mariategui (1975, p. 15) ao analisar a eco-nomia agrária e os traços feudais do latifúndio peruano nas primeiras dé-cadas do século XX, afirmava:

A classe latifundiária não conseguiu se transformar numa burguesia capitalista, dona da economia nacional. A mineração, o comércio e os transportes encontram-se nas mãos do capital estrangeiro. Os latifun-diários contentaram-se com servi-lhes de intermediários na produção de algodão e açúcar. Este sistema econômico conservou, na agricultu-ra, uma organização semifeudal, que se constituiu no mais pesado las-tro do desenvolvimento do país.

As práticas de dominação e exploração ao camponês se repetiam em maior ou menor grau pela América Latina da dominação oligárquica. Nos países andinos, o pongueaje boliviano e o gamonalismo4 peruano per-duraram durante a primeira metade do século XX, submetendo os povos indígenas originários a um regime de semiescravidão no campo. Apesar do forte incremento da mineração, o Peru das décadas de 1920 e 1930 era um país de caráter predominantemente agrário.

Sob essa perspectiva, o APRA consolidou-se como “uma organização política na luta contra o imperialismo e na luta contra as classes governan-tes latino-americanas, que são auxiliares e cúmplices daquele” (HAYA DE LA TORRE, 1976, p. 117). A tese central do partido, marcada pela ideia de construção de uma frente única que reunisse todos os trabalhadores latino--americanos, operários, camponeses, intelectuais, estudantes, o diferenciava, na sua essência, de um partido de classe, como evocavam os comunistas.

O embate com os comunistas da época marcou os primórdios de exis-tência do APRA. Em que pesem as posições apristas, à esquerda do espectro político, qualquer aliança ou incorporação ao comunismo foi combatida e rechaçada radicalmente por Haya de la Torre, sob a alegação de que o par-tido era “um movimento autônomo latino-americano, sem nenhuma inter-venção e influência estrangeira” (HAYA DE LA TORRE, 1976, p. 122). A definição do movimento aprista como nacionalista e anti-imperialista indo--americano descartava a adesão e submissão à III Internacional.

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Haya de la Torre (1976) argumentou incansavelmente que as ca-racterísticas peculiares da realidade latino-americana e suas diferenças com a sociedade europeia impediam qualquer possibilidade do partido em aderir ao comunismo, tendo em vista o domínio claro do Partido Co-munista Soviético sobre as demais siglas comunistas pelo mundo e a in-capacidade da III Internacional em compreender e resolver os problemas da Indo-américa.

Ademais, o APRA não consistia num partido de uma única classe. Sob a tese de que os países latino-americanos não haviam se industriali-zado, e de que a economia dos povos baseava-se, sobretudo, na agricultu-ra e mineração, defender a existência de um partido de classe proletária única era estar fadado ao fracasso. A própria história demonstrava que os partidos comunistas na América Latina haviam logrado pouco êxito, devido ao caráter agrário, semifeudal, da região. Apenas nos países in-dustrializados haveria possibilidade de ascensão do comunismo. Nesse caso, desprovida de um proletariado urbano industrial, a América Latina não dava espaço ao comunismo (HAYA DE LA TORRE, 1976).

No I Congresso Anti-Imperialista Mundial, realizado em Bruxe-las em 1927, enfrentando forte pressão do comunismo, sob a alegação de que os partidos comunistas já executavam as propostas defendidas pelo APRA, o aprismo, representado por Haya de la Torre, manteve suas po-sições ideológicas e negou-se a aderir à Liga Anti-Imperialista Mundial, argumentando que o movimento estaria a serviço do Partido Comunista de Moscou. De La Torre analisou o congresso como definidor das posi-ções teóricas do APRA. Conforme ele, “Bruxelas definiu, pois, a linha teórica aprista e plantou bem claramente nossas diferenças com o comu-nismo” (HAYA DE LA TORRE, 1976, p. 126).

Nesse contexto, o aprismo consolidou-se como um movimento genuinamente latino-americano. Sua investida contra o imperialismo, rejeição às receitas do comunismo europeu para resolução dos problemas latino-americanos, além, principalmente, do caráter de aglutinação de interesses das diversas classes sociais, incluindo trabalhadores da classe média, operários, camponeses, indígenas, oprimidos pelo imperialismo, e pelas oligarquias rurais, confirmavam as distinções claras entre o apris-mo e o comunismo.

Como mencionado anteriormente, a união das classes, abaixo a liderança de um partido único, era observada como necessária devido a um conjunto de características estruturais presentes na sociedade indo--americana. No tocante à relação entre o imperialismo e as classes mé-dias, Haya de la Torre (1976) compreendia que o monopólio imposto pelo imperialismo representava interesses antagônicos ao que denomi-namos de classe média. Por sua característica destrutiva, o movimento

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imperialista provocaria a estagnação e a destruição econômica de setores como o pequeno empresariado capitalista, o pequeno industrial, peque-nos produtores agrícolas, mineiros etc.

Não obstante ser a primeira classe social afetada diretamente pela dominação imperialista, a classe média teria um papel fundamental na luta contra o imperialismo. “Há muita gente inteligente e culta nessas classes, capaz de descobrir e desdenhar, com justiça, tão ingênua táti-ca” (HAYA DE LA TORRE, 1976, p. 152). Observando que nos países agrários a intelectualidade, em sua maioria pertencente à classe média, tem ocupado um papel fundamental de liderança das massas, Haya de la Torre (1976, p. 154) afirma que “nos países da Indoamérica, as funções dos intelectuais5 têm sido e são definitivas para a luta anti-imperialista”. Dessa forma, apontava ele a união entre as classes trabalhadoras e a inte-lectualidade como essencial para a vitória contra o imperialismo.

Em seu pensamento, Haya de La Torre (1976) assume a ausência, na América Latina, de uma classe social forte e homogênea para liderar o processo político. Contudo, compreende que mesmo com distinções claras entre o operariado, camponeses e a classe média, esses setores pos-suíam interesses contrários à dominação oligárquica, sendo, dessa for-ma, possível a construção de um modelo nacional-popular. Sobre a base política do partido, conforme Hennessy (1969, p. 59), o apoio recebido pelo APRA tem origens no “sindicalismo organizado dos trabalhadores mestiços das plantações de algodão e açúcar, e nas classes média e média inferior das cidades do litoral marítimo, sendo mínima entre os indíge-nas que habitam a serra”.

A ocupação americana no Canal do Panamá foi duramente criti-cada por Haya de La Torre. Como anti-imperialista e, consequentemen-te, crítico ferrenho da expansão do poderio estadunidense, classificava a permanência americana no governo do Panamá como uma afronta à soberania dos povos latino-americanos. A internacionalização do Canal do Panamá era vista por Haya de La Torre (1976) como pressuposto fun-damental para a conquista da unidade política latino-americana.

A liderança política de Haya de La Torre foi construída a partir da relação do líder que assume o papel de vinculação entre o partido e as massas, uma espécie de mediador. O ethos do líder populista expressava--se na retidão moral, eminência intelectual, dotado de um ar mítico, o chefe político era visto como o Messias, evidenciado na ideia de que “so-mente o APRA salvará o Peru”. Essa visão exerceu profunda influência no imaginário popular do povo peruano. O partido, por sua vez, estaria

5. Como argumentam MARTUCCELLI & SVAMPA (1999, p. 220), a forte crença no papel de liderança da intelectualidade distinguia o aprismo de outras experiências nacional-populares na América Latina, marca-das por forte sentimento anti-intelectualidade, como, por exemplo, o peronismo.

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subordinado ao líder populista (MARTUCCELLI & SVAMPA, 1999). Segundo Haya de la Torre (1976, p.107-108) é possível elencar um

conjunto de pontos gerais que caracterizam o programa do APRA:

1) Ação contra o imperialismo Ianque.2) Pela unidade política da América Latina.3) Pela nacionalização das terras e indústrias.4) Pela internacionalização do canal do Panamá.5) Pela solidariedade entre todos os povos e classes oprimidas do mundo.

O pensamento aprista e suas características centrais, como o nacio-nalismo aliado ao anti-imperialismo, o industrialismo, a união policlas-sista, a rejeição ao comunismo, e a relação entre chefe político, partido e as massas, constituem-se, em sua essência, a base teórica do populismo latino-americano. Apesar de não ter alcançado êxito nas disputas à presi-dência peruana, sob a liderança de Haya, o APRA consolidou-se como o primeiro partido de massas latino-americano, além disso, logrou durante décadas um terço do eleitorado do país, demonstrando forte influência sobre a sociedade peruana.

O populismo clássico latino-americano

Ao longo dos anos o conceito de populismo foi alvo de um con-siderável esvaziamento, devido, sobretudo, ao seu uso indiscriminado. Contudo, apesar das peculiaridades de cada regime, além das diferenças substanciais relativas ao tipo de liderança exercida, evidenciou-se con-sensual entre os estudiosos do fenômeno classificar o varguismo e o pero-nismo como representantes do populismo clássico latino-americano.

Tendo em vista as complexas relações peculiares a cada país, é pos-sível denominar um conjunto de características comuns ao modelo bra-sileiro e argentino, onde o populismo foi observado por Weffort (1980) como um fenômeno “por cima”, devido, sobretudo, à relação de poder exercida entre o líder carismático personalista, responsável pela interme-diação dos anseios populares entre as massas e o Estado.

Diante da impossibilidade de reforma do Estado liberal-oligárqui-co, como observou Ernesto Laclau (2006, p. 5), “nos anos trinta e quaren-ta, assistimos à emergência de rupturas populistas mais radicais, como o peronismo na Argentina, o varguismo no Brasil e o MNR na Bolívia”. Nesse sentido, torna-se necessário empreender uma breve análise acerca das peculiaridades históricas, do ponto de vista socioeconômico e cultu-ral da dominação oligárquica no Brasil e na Argentina, e a relação entre

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as classes trabalhadoras emergentes e o regime populista, a fim de ex-plicitar as características gerais do clássico populismo latino-americano.

O varguismo no Brasil

O período de 1930 a 19646 é frequentemente denominando na política brasileira como populista (WEFFORT, 1980; IANNI, 1973; DULCI, 1986). Nessa perspectiva, como ponto de partida o estudo do populismo brasileiro remete à Revolução de 19307, que põe fim ao do-mínio oligárquico iniciado com a queda do Império e a Proclamação da República, em 1889.

Como observa Ângela de Castro Gomes (2010, p. 19), “não impor-ta qual seja a escolha realizada; escrever sobre o populismo no Brasil será sempre um risco”. Ainda que seja uma característica comum a outros paí-ses, no Brasil o fenômeno como categoria analítica já foi alvo de inúmeras polêmicas e controvérsias, chegando ao descrédito. Como denominar po-pulista Vargas, Jango, Jânio, Juscelino, Ademar de Barros, Brizola, Miguel Arraes, Maluf, Collor, e até mesmo Lula, políticos de ideologias e práticas por vezes antagônicas? Esta breve análise se deterá apenas no varguismo, tido como expressão típica do populismo latino-americano.

Sob inspiração norte-americana, o Estado Oligárquico formalizado com a Constituição de 1891 consagrou a forma republicana de governo, o presidencialismo, a separação dos poderes, o federalismo e o bicameralismo. A base de apoio do presidente estava na mão dos governadores, que sob a união dos partidos republicanos regionais garantiam apoio à eleição presi-dencial. Era a política dos governadores, ou política do café com leite, deno-minada assim devido à hegemonia das oligarquias paulistas e mineiras.

A descentralização política da 1ª República fortaleceu as oligarquias tradicionais que, dotadas de certa autonomia, consolidaram-se nas estru-turas de poder. Diferentemente do Estado monárquico unitário, a primeira experiência republicana brasileira, ao adotar o modelo federalista, possibi-litou a ascensão de grupos tradicionais regionais. Num contexto político, econômico e social de forte base agrária, aliado à concentração da terra e enorme restrição dos direitos políticos, as oligarquias rurais empreen-deram o domínio da política nacional. No plano local, o poder estava nas

6. Conforme Maria Helena Capelato (2010), a busca por um marco cronológico no estudo do populismo bra-sileiro tem causado polêmica entre diversos autores. Há estudiosos que classificam como populista o período de 1930-1964; outros apontam a partir de 1945-1964, enquanto uma parcela considera apenas o segundo governo Vargas, de 1951-1954. Nesta breve exposição, ainda que adote o período de 1930-1964, me limitarei aos distintos momentos que Vargas esteve à frente do poder, dando ênfase às relações entre o Estado e as classes populares durante os anos de 1930-1945 e 1951-1954.

7. Para mais detalhes sobre a Revolução de 1930, ver FAUSTO, 2009.

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mãos dos coronéis.Em 1929, durante a presidência de Washington Luís, uma dissi-

dência entre os grupos dominantes mudaria consideravelmente os ru-mos do País. A insistência do presidente em apoiar seu correligionário, o paulista Júlio Prestes, do Partido Republicano Paulista (PRP), acarretou a união de mineiros e gaúchos. Nesse contexto, a Aliança Liberal enca-beçada pela oposição lançou as candidaturas de Getúlio Vargas, gover-nador do Rio Grande do Sul e ex-ministro de Washington Luís, e João Pessoa, mandatário da Paraíba, à presidência e vice-presidência, respec-tivamente (FAUSTO, 2009).

Sob o lema “representação e justiça”, o programa da Aliança Liberal visava assegurar o apoio da classe média, tendo como bandeira a defesa das liberdades individuais, anistia aos tenentes do movimento tenen-tista de 1922, uma reforma política que pregasse a “verdade eleitoral”, além do combate às oligarquias cafeeiras. Não obstante, a campanha presidencial de 1929 foi acompanhada pelo advento da crise mundial, que afetou diretamente a economia brasileira baseada no café e levou à falência grande parte dos produtores, tendo em vista a queda brusca da cotação do produto.

Ainda que diante de sérias acusações de fraude, o paulista Júlio Prestes vence a eleição, que não foi aceita por grupos da Aliança Liberal. O estopim da crise é o assassinato de João Pessoa, em 1930, por seu ad-versário político João Dantas. O acontecimento foi utilizado pelos opo-sitores do regime como forma de articular o movimento revolucionário, que em outubro se estendeu por Minas Gerais, Rio Grande do Sul e pelo Nordeste. Com a tomada do poder nessas regiões do País, os revolucio-nários prepararam-se para atacar São Paulo, quando uma junta militar depõe o presidente. Diante de forte pressão popular, os militares cedem e entregam o poder a Getúlio Vargas e aos revolucionários.

Desse modo, ao promover a ruptura com a antiga sociedade tra-dicional oligárquica, a Revolução de 1930 introduziu um novo modelo de Estado. Durante seu governo, Vargas promoveu a inserção dos cam-poneses à cidade, os incorporando ao modelo industrial urbano por intermédio de um processo incipiente de proletarização das massas. Nesse sentido, a Revolução de 1930 abriu o caminho para a transição de democracia limitada para uma democracia de participação extensa (GERMANI, 1973).

É nesse contexto de transição da velha ordem oligárquica para a moderna sociedade industrial que o populismo encontrará terreno fér-til para seu surgimento. A chegada de Vargas ao poder é acompanhada pela concessão dos direitos políticos às mulheres, adoção do voto pro-porcional e do sufrágio universal, criação da Justiça Eleitoral e do Códi-

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go Eleitoral. Embora o movimento revolucionário tenha evocado ideais democráticos, a partir de 1937, com o início da ditadura do Estado Novo, o governo tomou rumo diferente daquele proposto em 1930.

A partir daí, o que se viu foi a instalação da ditadura, com o fecha-mento do Congresso, combate aos movimentos comunistas e integralis-tas, proibição dos partidos políticos e censura prévia. Nesse período, o regime era constantemente comparado ao nazifascismo e Vargas acusa-do de ligações com o Eixo. Em que pesem as semelhanças entre ambos, o governo Vargas acabou por apoiar a Tríplice Aliança, afastando-se de Hitler e Mussolini.

De fato, a relação entre o Estado e a sociedade se deu sob o au-toritarismo de 1930, “que se acentuou em 1935 e se impôs como uma ditadura em 1937, influenciada sob o fascismo europeu. As liberdades de-mocráticas foram suprimidas e o movimento operário duramente repri-mido” (FERREIRA, 2010, p. 82-83). As transformações decorrentes da urbanização e industrialização reduziram a influência dos grupos rurais, ao passo que o Estado controlou o nascente movimento operário.

Diante dessa conjuntura, a ditadura Vargas privilegiou a represen-tação política por intermédio das organizações corporativas, que sob a tutela do Estado exerceram função de representação dos interesses clas-sistas. Não obstante o endurecimento do regime, com a perseguição a anarquistas, comunistas, socialistas e liberais, os trabalhadores apoiaram Vargas, dando-lhe apoio suficiente para, inclusive, retornar ao poder “nos braços do povo”, em 1950.

Conforme Ferreira (2010), é comum entre os teóricos do populismo brasileiro a ideia de que durante o primeiro governo Vargas o operariado trocou os direitos políticos pelos benefícios de uma legislação trabalhista8, privilegiando, assim, a conquista de direitos sociais. Nesse sentido, a ine-xistência de um operariado organizado, dotado de consciência de classe, foi fator decisivo para a manipulação das massas. O que explicaria a grati-dão e o reconhecimento dos trabalhadores ao líder populista.

Nessa linha de raciocínio, Weffort9 (1980, p. 70), um dos maiores teóricos do populismo brasileiro, analisava a relação entre o chefe po-

8. O Estado brasileiro concedeu uma série de direitos sociais aos trabalhadores no ano de 1943, ocasião da promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), tida à época como uma revolução nas conquistas do operariado e um dos maiores legados da era Vargas.

9. Weffort (1980) na obra O Populismo na Política Brasileira apresenta certa ambiguidade ao abordar a rela-ção entre o Estado e as classes sociais. Em determinados momentos é visível a tensão entre as relações de interlocução e manipulação. Por vezes, o autor aponta para o perigo de visões elitistas predominantes entre os liberais que acusavam a manipulação das massas pelo Estado. Nesse sentido, cita Weffort (1980, p. 62) “O populismo foi um modo determinado e concreto da manipulação das massas, mas a manipulação nunca foi absoluta”. Completa ele: “se o fosse, estaríamos obrigados a aceitar a visão liberal elitista que, em última instância, vê no populismo uma espécie de aberração da história alimentada pela emocionalidade das massas e pela falta de princípio dos líderes”. Contudo, a tese predominante em seu pensamento é a de que o poder do líder político carismático é exercido de cima para baixo, confirmando tal manipulação.

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10. Movimento “nós queremos Getúlio”, encabeçado, em 1945, por setores importantes da sociedade civil, demonstrando forte apoio popular a Vargas.

lítico e as massas:

O chefe do Estado passará a atuar como árbitro dentro de uma si-tuação de compromisso que, inicialmente formada pelos interesses dominantes, deverá contar agora com um novo parceiro – as massas populares urbanas – e a representação das massas nesse jogo estará controlada pelo próprio chefe do Estado. Nas funções de árbitro, ele passa a decidir em nome dos interesses de todo o povo e isto sig-nifica dizer que ele tende, embora essa tendência não possa efetivar--se sempre, a optar por aquelas alternativas que despertam maior resistência ou maior apoio popular.

Se baseados na tradição européia de luta das classes, entendemos como participação política ativa aquela que implica uma consciência comum dos interesses de classe e na capacidade de auto-representação política, caberia concluir que todas as classes sociais brasileiras foram politicamente passivas nos decênios posteriores à revolução de 1930 (WEFFORT, 1980, p. 71).

Nesse contexto, Weffort (1980) argumenta dar-se o nascimento do fantasma popular manipulado por Vargas por quase duas décadas. Por intermédio dos mecanismos de manipulação o líder populista caris-mático poderia responder a todo tipo de pressão sem subordinar-se aos diversos grupos. Ademais, a raiz da manipulação pode ser encontrada na própria debilidade organizativa das massas, carente de um interesse de classe comum, capaz de dotá-la de autonomia frente ao Estado. Nessas condições, as formas de pressão ocorriam sempre de maneira individual:

Não obstante a influência exercida pelo Estado durante o período de 1930 a 1945, a partir de 1942 com a ênfase do projeto trabalhista na agenda política do Estado Novo, Vargas logrou êxito em sua estratégia, angariando a adesão da massa trabalhadora ao seu projeto político. No ano de 1945, o queremismo10 causaria espanto em boa parte da elite li-beral, posicionando-se pela permanência de Vargas na presidência. Ain-da que o vanguardismo do movimento queremista não tenha alcançado êxito, demonstrava o apoio popular a Vargas, que, em 1950, voltaria à presidência, agora pela via democrática.

Embora o conceito de populismo já existisse, no período de 1945 a 1964 era pouco usual. Além disso, até fins dos anos 1950 e início dos anos 1960, o conceito era tido como algo elogioso, sendo utilizado para

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denominar políticos “populares”. De fato, analisa Weffort (1980), o na-cionalismo, presente com maior ênfase desde o início dos anos 1950, “en-goliu” o populismo, que praticamente havia desaparecido nesse período. Contudo, como observa Ferreira (2010), a afirmativa de Weffort carece de comprovação empírica, pois o termo populismo sequer existia na po-lítica brasileira antes de 1945.

Em meio a baixos índices de participação eleitoral, devido princi-palmente à proibição da cidadania ao analfabeto, o período democráti-co iniciado em 1945 é liderado por uma coalizão entre o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). A união dos dois partidos, sob forte influência conservadora, possibilita a vitória de Vargas nas eleições presidenciais de 1950, que retornaria “nos braços do povo”. Do lado oposto, a UDN, maior partido da oposição, “combina contraditoriamente uma retórica jurídica liberal com sucessivos chama-dos a intervenção das forças armadas para proteger a democracia amea-çada pelos populistas” (TRINDADE, 2001, p. 285).

O advento do nacionalismo11, com maior intensidade depois de 1950, ressoaria de forma expressiva na sociedade brasileira até o golpe militar de 1964. Devido às conquistas dos direitos sociais pela massa trabalhadora, com ênfase na legislação trabalhista de 1943, reforçando a relação entre a instituição presidencial e o operariado humilde (DUL-CI, 1986), além da modernização do Estado brasileiro, já bem diferente daquele de 1930, o varguismo se transformaria num mito da classe traba-lhadora brasileira.

Diante da insatisfação da elite liberal conservadora liderada pela UDN e de uma série de acusações contra o governo, sentindo-se pres-sionado, o presidente se suicida em 24 de agosto de 1954. Sua carta-tes-tamento é um dos mais importantes documentos do trabalhismo brasi-leiro. Apesar das terríveis atrocidades cometidas durante a ditadura do Estado Novo, Vargas consolidar-se-ia no imaginário popular como o “pai dos pobres”.

Em suma, Weffort (1980) explica a relação de manipulação das massas como o resultado do caráter débil da organização política da clas-se trabalhadora e a satisfação de algumas demandas da sociedade pelo Estado. O sociólogo aponta para o esquema de aliança policlassista po-pulista como esmagador da autonomia das massas.

Como observam Ferreira (2010) e Gomes (2010), devido à con-solidação de tal pensamento e à inexistência de trabalhos com trânsito acadêmico, até o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o populismo

11. No decorrer dos anos 1950, a ideologia nacionalista propagou-se pelo Brasil. A campanha “O Petróleo é nosso”, a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional e a Vale do Rio Doce representavam o símbolo do nacional-desenvolvimentismo.

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12. Octavio Ianni, ao lado de Weffort, é considerado um dos maiores teóricos do populismo brasileiro.

seria visto no Brasil como política de massas, estilo de governo orientado para a manipulação e tutela do Estado sobre a sociedade.

Em que pese o predomínio do pensamento da sociologia paulista, particularmente nas obras de Weffort (1980) e Ianni12 (1973), no início dos anos 1980 as teses centrais sobre o populismo brasileiro começariam a dar sinais de falência. A crítica remeteria aos anos 1930, buscando compreen-der novamente a questão da manipulação. Ora, indagavam os insatisfeitos com o quadro, seriam todos os homens e mulheres inocentes ao extremo, deixando-se manipular pelos apelos demagógicos de um líder carismático?

Nesse sentido, esses trabalhos levantaram dúvidas sobre a fragili-dade do argumento de manipulação das massas. Ângela de Castro Go-mes (1994), na obra A invenção do trabalhismo, apresenta um novo olhar para a relação das massas com o Estado, atribuindo à classe trabalhadora “durante todos os tempos um papel de sujeito que realiza escolhas segun-do o horizonte de um campo de possibilidades” (GOMES, 2010, p. 46).

As novas abordagens não se contentavam em classificar o operaria-do como agente passivo da relação política. Pelo contrário, ao considera-rem a classe trabalhadora como sujeito ativo, admitiam a constante inter-locução com o Estado. Entretanto, a tese predominante invoca a relação de “cima para baixo” (WEFFORT, 1980) do populismo varguista, preco-nizando demasiadamente a manipulação do líder sobre as massas. Esta visão, aliada à profunda imprecisão no uso do conceito, tem levantado sérias dúvidas quanto à consistência do populismo na política brasileira.

O peronismo na Argentina

O peronismo, ao lado do varguismo, consiste num dos mais comple-xos fenômenos da cultura política sul-americana do século XX. No pen-samento político, é freqüentemente citado como um modelo do clássico populismo, que emerge no subcontinente num período de ruptura entre a velha ordem rural oligárquica, baseada na tradição, e a construção da moderna sociedade industrial e urbana. Em que pese o perigo das com-parações com o varguismo, para Weffort (1980), o peronismo é também visto como um modelo de populismo “pelo alto”.

O ano de 1930 é marcado pela desagregação do sistema partidário argentino e o retorno oligárquico ao poder via golpe de Estado. Contudo, desde a década de 1880, uma série de acontecimentos acarretaria profun-das transformações na sociedade argentina. O início de uma nova era, caracterizada pelo aumento da migração, urbanização, alfabetização e

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conseqüentemente, expansão econômica, por meio do desenvolvimento industrial, representou, ainda que posteriormente, a passagem para uma democracia com participação ampliada (GERMANI, 1966; 1973).

Nessa época, com a intensificação e modernização das relações sociais, a insatisfação da nova classe média em relação às oligarquias do-minantes evidenciava-se na fundação da União Cívica Radical (UCR). O novo partido político, nascido na classe média, de caráter modernizan-te, defensor do federalismo, tinha como principal ponto programático a concessão do sufrágio universal, tendo em vista a superação do modelo de democracia com participação limitada inerente ao período oligárqui-co. Em meio a essa perspectiva, o partido representava a canalização de aspirações dos setores políticos das massas recentemente mobilizadas (GALLO & SIGAL, 1965).

Embora a fundação da UCR remonte aos anos 80 do século XIX, o partido conquistaria o poder apenas nas eleições de 1916, após a pro-mulgação da Lei Sáenz Peña de 1912 e a concessão do sufrágio universal e secreto. A medida ampliou a cidadania à massa de indivíduos, até então, alijada das decisões políticas. Em que pese seu caráter representativo, o domínio oligárquico havia reprimido duramente as lutas pela universa-lização dos direitos políticos. Nesse sentido, conforme o argumento de Germani (1966, p. 224-225) “não há dúvida que esta data - 1916 - pode ser tomada para demarcar o começo da democracia representativa com participação ampliada e o fim da democracia limitada na Argentina”.

A UCR logrou êxito nos pleitos de 1916, 1922 e 1928, sob as presi-dências de Hipólito Irigoyen e Marcelo Avelar. Não obstante proclamar a defesa da classe média, opondo-se ao “antigo regime”, os radicais não al-cançaram êxito na promoção da mudança social, fracassando, sobretudo, na resolução dos conflitos ligados à questão agrária (GERMANI, 1966). Numa conjuntura de instabilidade, agravada pela crise econômica de 1929, o governo mostrou-se débil diante das pressões da oligarquia. As-sim, posteriormente, no mês de “setembro de 1930, o radicalismo argen-tino pagou um alto preço por sua ascensão ao governo em uma sociedade abaixo a hegemonia oligárquica que não pôde e nem estava interessado em transformar” (WEFFORT & QUIJANO, 1973, p. 77).

Nesse contexto, os anos 1930 na Argentina, conhecidos como “déca-da infame”, têm início por meio de um golpe encabeçado por militares liga-dos ao setor oligárquico. A volta da oligarquia ao poder é acompanhada pelo retorno da fraude eleitoral. A denominada Concordância, aliança dos par-tidos de apoio ao regime, governou privilegiando as elites rurais detentoras do latifúndio, retardando, de fato, o incipiente processo de industrialização.

Em meio a essa conjuntura de esfacelamento do sistema partidá-rio, corrupção eleitoral, repressão ao movimento sindical e recorrentes

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manifestações de descontentamento das massas recém-mobilizadas, se-tores militares insatisfeitos com os rumos do governo fundam o “Grupo de Oficiales Unidos” (GOU). Perón, ex-adido militar na Itália na segun-da metade da década de 30, é um dos líderes do movimento, que, em 1943 por intermédio de um golpe militar, derruba o governo oligárquico, pondo fim ao regime civil que se perpetuou no poder durante mais de uma década por intermédio da fraude eleitoral.

Ademais, o advento do golpe de 1943 encerrou o ciclo de domi-nação conservadora, fundando um novo regime político na Argentina. Perón, então vice-presidente, assume também os cargos de Ministro da Defesa e Secretário do Trabalho e Previdência. Em discurso, proferido em 1943, sobre a criação da Secretaria de Trabalho e Previdência, argu-mentava Perón:

Com a criação da Secretaria de Trabalho e Previdência se inicia uma nova era da política social argentina (...) [Sua criação é] o pri-meiro ato efetivo do governo revolucionário, ajustado às necessida-des internas e as orientações universais da justiça social... (e) que passará a exercer a direção central e supervisora de toda a ativida-de que desenvolve o Estado em favor do melhoramento material e moral da classe trabalhadora, praticando o mais perfeito controle sobre a legislação especial vigente e preparando o desenvolvimento de uma política social (FLIER, 2005, p. 9).

Frequentemente comparado ao fascismo, principalmente pela li-derança carismática e oposição às ideias liberais da época, o fato de Perón ter sido adido militar na Itália, além de pertencer ao GOU, simpatizante do eixo, contribuiu bastante para que a imagem fascista fosse associa-da de forma recorrente ao peronismo. Contudo, a base de apoio popu-la sustentada em setores do operariado e nas populações rurais recém--incorporadas aos centros urbanos industriais, divergia em sua essência da mobilização pequeno-burguesa, alicerce do fascismo (BARBÉ apud BOBBIO & MATTEUCCI & PASQUINO, 2004). Apesar de ter sido um dos líderes do movimento golpista, Perón é eleito presidente em 1946, pelo Partido Justicialista, via eleições diretas.

De fato, o peronismo, enquanto regime político, emerge a partir de um intento revolucionário liderado por militares. O regime peronista é observado por Germani (1966) como mais um paradoxo na história ar-gentina, pois representou a ascensão de um movimento de cunho fascis-ta, dotado de caráter totalitário. Entretanto, como argumenta o próprio autor, possuía traços distintos do modelo europeu, apoiando-se no con-sentimento da maioria, que exercia os direitos políticos pela primeira vez depois de 16 anos.

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Nessa linha de raciocínio, Germani (1973) analisa que embora tenha manipulado as classes populares, o peronismo concedeu um grau efetivo de participação política, ainda que tenha abdicado de importan-tes reformas sociais, limitando-se a realizá-las da maneira em que eram aceitas pelos grupos poderosos da sociedade. “A originalidade dos regi-mes nacional-populares na América do Sul reside concretamente desta participação” (GERMANI, 1973, p. 32).

Ainda que a concessão dos direitos políticos e o incipiente proces-so de urbanização, industrialização, migração interna tenha acarretado a mobilização política das massas, na Argentina, a transformação dos anti-gos camponeses em uma nova classe operária industrial ocorreu de ma-neira diversa do modelo europeu. A incorporação rápida das massas à ci-dade foi insuficiente para desenvolver a consciência de classe necessária à independência do movimento operário, numa clara ausência dos canais institucionais clássicos (GERMANI, 1966; 1973; DI TELLA, 1973).

Assim, o líder carismático é visto como o manipulador das massas, que num contexto de fragilidade institucional é dominada pelo político populista. Sobre a relação entre o peronismo e as classes populares assi-nala Germani (1966, p. 231):

O regime peronista, típico movimento “nacional-popular”, por sua origem e o caráter de seus líderes, pela circunstâncias de seu surgimento, estava fadado a representar apenas um Ersazt de par-ticipação política para as classes populares. Sua queda, ainda que resultado de uma conjunção de forças muito distintas, só foi pos-sível por suas limitações intrísecas. E a principal destas é que, para defender-se, o peronismo devia transformar essa participação ilu-sória numa intervenção real: devia, em outras palavras, mudar de natureza, tornar-se realmente uma expressão das classes populares. Isto era impossível e teve que cair frente ao incessante ataque de grupos com origens e orientações muito distintas.

Na ótica de Germani (1966; 1973), embora tenha alcançado um alto grau de mobilização das massas, processo iniciado, inclusive, em 1916 com eleições livres e o sufrágio universal, o peronismo não produziu a integração dessas. Sob este argumento, reside uma das questões mais polêmicas da Argentina na segunda metade do século XX, tendo em vista a incapacidade do regime em lograr êxito na consolidação da democracia. Nesse sentido, a integração das massas à democracia depende, sobretudo, do acesso a todos ao progresso técnico, bem como da difusão de uma cultura política que possibilite a efetivação da justiça distributiva, além da adesão consciente de todos os cidadãos à vida política (GERMANI, 1966).

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A partir de 1943, com a chegada de Perón à Secretaria de Traba-lho e Previdência, é registrado um crescimento significativo do núme-ro de trabalhadores sindicalizados. Esse aumento torna-se mais visível com sua ascensão à presidência, visto que entre 1946 e 1951, o número de sindicalizados aumentou, subindo de 520.000 para 2.334.000. Ade-mais, sob uma onda de crescimento econômico favorável, o salário dos trabalhadores sofreu reajuste superior a 50% no período de 1946 a 1949 (CAPELATO, 2010).

O estímulo ao processo de organização sindical, aliado à conces-são de uma série de garantias trabalhistas, e à efetivação de políticas de bem-estar social, foi primordial para garantir a adesão dos trabalhadores ao peronismo. Estudos demonstram que medidas adotadas por Perón no período em que esteve à frente da Secretaria do Trabalho e Previdência “vinham ao encontro das reivindicações de grande parte do setor ope-rário, que via no sindicalismo a solução para os problemas de classe” (MURMIS & PORTANIERO apud CAPELATO, p. 148, p. 2010).

Sob essa perspectiva, tal pensamento contrasta a visão do “popu-lismo clássico”, que analisou a relação entre o peronismo e as classes traba-lhadoras a partir de um caráter débil do operariado urbano recém-mobi-lizado, desprovido de uma cultura de organização de classe, tornando-se, assim, alvo fácil para a manipulação das massas pelo líder carismático.

Ainda que a rápida mobilização das massas tenha contribuído di-retamente para o incremento de uma classe trabalhadora com pouca ca-pacidade organizativa de classe, torna-se imprescindível levar em conta os ganhos sociais e políticos do operariado a partir da chegada de Perón à Secretaria do Trabalho e Previdência e posteriormente à Presidência da Argentina. Conforme Laclau (2006), “a intervenção de Perón, fundada na expansão do rol dos sindicatos, quebrou a coluna vertebral do velho sistema clientelista” (LACLAU, 2006, p. 3).

Não obstante a relação de dominação do sindicato pelo Estado, a classe trabalhadora observava a instituição sindical como organização capaz de canalizar as demandas do operariado, embora tivesse perdido relativo grau de autonomia frente ao governo. O caráter policlassista é observado na definição do peronismo como “a expressão de uma base social determinada, composta pela classe trabalhadora (com demandas provenientes da primeira etapa de crescimento gerado pela substituição de importações) e uma elite, um setor do empresariado nacional” (REY-NA, 2007, p. 5).

Entre os pontos ideológicos fundamentais do peronismo enume-ram-se a busca pela Justiça Social, fundada não na luta de classes, mas na união policlassista e na melhoria de vida dos trabalhadores. Ademais, a conquista da independência econômica em oposição ao monopólio es-

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trangeiro e a posição de neutralidade em relação às grandes potências da Guerra Fria constituíram-se a base política do regime.

Assim, as raízes do ideário peronista podem ser encontradas na teoria da “Nação em Armas” fundada no militarismo alemão do século XIX, e concebida pelo peronismo como doutrina da Segurança Nacio-nal. Nesta perspectiva, a industrialização foi priorizada, tendo em vista o aparelhamento das forças armadas, além de uma política de melhoria salarial em detrimento da luta de classes. Sob este aspecto, o Estado exer-ceria a mediação do conflito entre capital e trabalho (BARBÉ apud BOB-BIO & MATTEUCCI & PASQUINO, 2004).

Em meados dos anos 1950, diante do início da crise econômica, o regime peronista via-se enfraquecido perante a classe trabalhadora. Nessa época, Perón também enfrentaria problemas com a igreja, que tinha apoia-do anteriormente seu governo. Diversas tentativas de greves foram repri-midas pelo governo peronista, já que exprimiam o descontentamento do operariado com os rumos da política governamental. Ademais, os insuces-sos da reforma agrária e, consequentemente, o fortalecimento dos grandes proprietários de terra, era outro fator de enfraquecimento do peronismo.

Em meio a essa conjuntura, em setembro de 1955 os militares derrubam o governo. Perón sai para o exílio e o sindicalismo torna-se a principal forma de representação do peronismo. Como consequência, um racha entre seus seguidores dividiu o movimento entre esquerda e direita e contribuiu para a formação de diversos grupos, desde reformistas, di-reitistas, até guerrilheiros.

No ano de 1973, após quase duas décadas sob o domínio de regimes militares, com a exceção de dois governos civis, ambos derrubados pelo exército, e a proibição expressa de candidatos peronistas nas listas partidá-rias, Perón retorna à Argentina, sendo eleito presidente com aproximada-mente 60% dos votos. Pouco depois, em 1974, sua morte abriria caminho para a presidência de Maria Estela Martinez, sua terceira esposa, que go-vernaria até 1976, quando seria derrubada por novo golpe militar.

Há mais de meio século, o peronismo consiste num dos principais atores da política argentina, ocupando até os dias atuais posição de rele-vância frente à sociedade portenha. Sua força pode ser expressa pelo fato de que o Partido Justicialista “conservou seu peso eleitoral mesmo de-pois da queda de Perón e, nas ocasiões em que lhe foi possível concorrer, nunca obteve menos de um terço dos sufrágios do eleitorado argentino” (BARBÉ apud BOBBIO; MATEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 924).

Em que pesem as complexas relações entre o peronismo e as massas populares, estudos posteriores demonstraram a necessidade de um novo olhar nas relações entre Perón e a classe trabalhadora. De fato, grande parte do operariado apoiou o peronismo devido, sobretudo, à satisfação

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de suas necessidades no plano material e subjetivo (JAMES apud CA-PELATO, 2010). Entretanto, as teses sobre o clássico populismo latino--americano tendem a minimizar tal fato, reduzindo a mera relação dema-gógica e manipulação “pelo alto”.

Considerações finais

De fato, reside sobre a relação entre os regimes varguista, peronis-ta e a classe trabalhadora uma questão extremamente importante para o debate do populismo latino-americano, em particular o brasileiro e o argentino: a manipulação das massas pelo líder. Sob a perspectiva dos estudos clássicos sobre o fenômeno populista na América Latina, a rela-ção de manipulação das massas seria compreendida a partir da debilida-de política e social da classe trabalhadora (GERMANI, 1966; 1973; DI TELLA, 1973; WEFFORT, 1980).

Embora admitam, em certo sentido, a satisfação de algumas de-mandas, observando no populismo um momento de transição entre a antiga sociedade rural oligárquica, e a construção democrática na mo-derna sociedade industrial e urbana, esses autores defenderam a ideia de manipulação das massas pelo líder carismático populista. De fato, em meio a uma realidade institucional débil, distinta das modernas socieda-des democráticas, a denominação populista, principalmente na América Latina, é frequentemente utilizada com excessiva carga pejorativa, como regimes autoritários, demagógicos, até mesmo democráticos, e os popu-listas classificados como grandes enganadores do povo.

Como afirmado anteriormente, as teses clássicas sobre o varguis-mo e o peronismo começaram a dar sinais claros de esgotamento já nos anos 1980, quando uma nova literatura surge na Ciência Política con-testando o argumento central da manipulação das massas pelo líder. De certo, o apoio popular logrado por Vargas e Perón muito tem a ver com as conquistas da classe trabalhadora naquele período. Imaginar a massa entregando-se “cegamente” ao líder carismático e personalista, dotado de retórica capaz de envolvê-la, é desprezar a capacidade de ação e reação do próprio ser humano.

Encontra-se aí, talvez, a maior fragilidade teórica das análises clás-sicas sobre o populismo latino-americano. Elas desprezam as conquistas sociais alcançadas durante os regimes varguista e peronista, reduzindo o apoio popular desses governos à mera relação de manipulação.

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DEMOCRACIA, DIREITOS E AÇãO CIDADã NA TRANSIÇãO bRASILEIRA PARA O SÉCULO XXIFrancisco Uribam Xavier de Holanda

No mundo moderno, no modelo de sociedade consolidado, a con-cepção liberal tornou-se a grande referência na orientação da organização política e econômica das nações. Para pensadores liberais como Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville e Stuart Mill, a única forma de democra-cia compatível com o Estado liberal – isto é, com o Estado que reconhece e garante direitos fundamentais como liberdade de pensamento, religião, imprensa e reunião – é a democracia representativa ou parlamentar.

Na concepção liberal, a participação é definida como a liberdade dos indivíduos de exprimirem sua opinião, com o objetivo de influir na política do país. Compreende ainda o direito do cidadão de eleger repre-sentantes para o parlamento e de ser eleito para cargos públicos.

A liberdade, difundida como princípio tanto pelo liberalismo como pelo neoliberalismo (Holanda, 2001), tem como fulcro a garantia de condições formais necessárias ao exercício da liberdade pessoal e à livre movimentação dos mercados. Assim, o liberalismo se coloca contra toda escolha coletiva que interfira nos interesses privados dos indivíduos. A liberdade pessoal tem prioridade não porque se encontre entre as con-dições de democracia, mas porque o liberalismo defende o valor de se estar livre (liberdade negativa) de interferências. Logo, nem o liberalis-mo e nem o neoliberalismo têm compromisso com a igualdade material.

Na modernidade, é a democracia que surge reivindicando a igual-dade, a coesão social e o bem-estar. Sua promessa é fazer com que as es-colhas políticas possam refletir a vontade da maioria. Logo, ela cria con-flitos com o liberalismo, pois a tomada de decisões pela regra da maioria legitima o sacrifício da liberdade individual e do mercado, sacrifício a que o liberalismo e o neoliberalismo se opõem por princípio.

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DEMOCRACIA, DIREITOS E AÇÃO CIDADÃ NA TRANSIÇÃO BRASILEIRA PARA O SÉCULO XXI

O desenvolvimento da cidadania na modernidade segue o padrão de transformação social do capitalismo que, orientado pelos valores do livre mercado, gera relações de desigualdade e conflitos sociais. As re-lações de desigualdades e conflitos sociais restringem a participação da maioria dos indivíduos na riqueza econômica e rivalizam com um con-junto de ações sociais que são canalizadas para a garantia de direitos ci-vis, políticos e econômicos.

Em 1950, o sociólogo inglês Thomas Humphrey Marshall classifi-cou as ações pela garantia de direitos em três fases. A primeira fase, ocor-rida no século XVIII, foi o da conquista dos Direitos Civis. A segunda, no século XIX, foi a conquista dos Direitos Políticos. E a terceira, no sé-culo XX, com a conquista dos Direitos Sociais e Econômicos. Cada fase corresponde a um momento do processo de organização da economia capitalista.

CidadaniaGeraÇÃO dOs direiTOs seGUndO MarsHall - 1950

*Esquema estruturado pelo autor.

sÉCUlO TiPO de direiTO O QUe sÃOinsTiTUiÇÕes QUe

Os eFeTivaMeTaPas dO

CaPiTalisMO

Xviii direitos Civis• liberdade de ir e vir;• liberdade de imprensa;liberdade de pensamento e fé; • à propriedade; • de concluir contratos válidos; • e direito à justiça

• Direitos necessários à liberdade individual

• Tribunais de justiça

Capitalismo Mercantilista

XiX direitos Políticos e econômicos• de votar e ser votado; • de reunião e associação

• Direitos de participar no exercício do poder

• Parlamentos, partidos políticos, associações classistas e governo local

Capitalismo de livre mercado ou concorrencial

XX direitos sociais • educação;• saúde; • seguridade social; • lazer; • bem-estar econômico

• Direitos que garantem um mínimo necessário à ma-nutenção física do indivíduo e à participação na renda social

instituições públicas e as políticas públicas: • escola; • postos de saúde; • equipamentos de lazer; • programas sociais; • leis e instituições trabalhistas

Capitalismo monopolista

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Francisco Uribam Xavier De Holanda

Ao analisarmos o esquema apresentado por Marshall e confron-tarmos com a realidade dos países africanos, asiáticos e latino-ameri-canos, poderemos constatar que a existência formal desses direitos não significa a sua efetivação. Os povos dos países pobres não participam de parte desses direitos. Aqui no Brasil, país rico com a maior concentração de riquezas e renda do mundo, muitos desses direitos ainda não foram efetivados, embora estejam previstos na Constituição de 1988.

As transições de regimes autoritários para uma situação de cons-trução da democracia, bem como a simbólica queda do Muro de Berlim, vêm demonstrando que não há uma relação necessária entre consolida-ção da democracia política e justiça social. Na América Latina, mais do que em outro lugar, podemos perceber que precisamos de uma definição mais ampla de democracia. A realidade latino-americana nos coloca al-gumas indagações: é possível transformar as conquistas da democracia política numa espécie de “democracia econômica?” Se a lógica da libe-ralização econômica, ou seja, as demandas do mercado aceleraram o processo de desigualdade social, a luta pelos direitos humanos seria um caminho para a justiça social? Que mecanismos sociais poderiam demo-cratizar o mercado?

Na América Latina, a transição democrática aconteceu em con-comitância com a imposição de um ajuste estrutural fundamentado em argumentos técnicos neoliberais que foram apresentados como solução para a crise do modelo nacional-desenvolvimentista. A consequência do ajuste estrutural foi o aumento da pobreza e a criação de contrastes so-ciais extremos que se constituíram como empecilhos para o desenvolvi-mento econômico e para a consolidação do processo democrático. Nesse processo, a reforma econômica se impôs como absoluta em detrimento da equidade social (desconcentração de renda, terra e poder).

Para Peter Grupp, na América Latina a democracia ainda é uma fachada. Existe um fosso entre o país legal e o país real que permite a presença do lobby, da corrupção e dos interesses privados de curto prazo sobre a legislação política e econômica. Para ele, um dos desafios postos para os latinos é a alteração da cultura política, pois:

a cultura política tradicional é avessa a soluções de compromisso, é patriarcal e parece uma corte dominada por conspirações; concen-tra poder, cria arbitrariedade, favorece a dependência e impede a iniciativa. Uma cultura política moderna deveria incentivar o con-senso e ser séria, transparente, igualitária e participativa; deveria levar a divisão e controle do poder, criar segurança jurídica, pro-mover a liberdade e recompensar a iniciativa (GRUPP, 1993, p. 4).

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DEMOCRACIA, DIREITOS E AÇÃO CIDADÃ NA TRANSIÇÃO BRASILEIRA PARA O SÉCULO XXI

1. Shumpeteriano diz respeito a Joseph Alois Schumpeter, economista austríaco (1883-1950). Ele escreveu, entre outras obras, “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, publicado, no Brasil, pela Zahar Editores, em 1984.

2. Ethos significa cultura, ética, uma maneira de ser e de estar no mundo. Ethos republicano é uma forma de se fazer política respeitando a coisa pública e as regras democráticas.

A democracia em voga na América Latina é schumpeteriana1, ou seja, é um conjunto de procedimentos minimalistas, sem nenhum va-lor substantivo, que garante o funcionamento de arranjos institucionais que permitem que indivíduos organizados em partidos possam disputar, por meio do voto, o poder de decidir pela maioria. Assim, a maioria tem igualdade formal de voto, mas não tem poder de influenciar e determinar o voto dos parlamentares e dos governantes. Além do mais, são parcos e ineficientes os instrumentos de intervenção no poder por parte da po-pulação: referendo, plebiscito e iniciativa popular são peças decorativas, quase esquecidas por falta de operacionalidade e de credibilidade.

Nos atuais regimes representativos, o desenvolvimento da demo-cracia figura-se em duas direções: uma é o alargamento gradual do di-reito de voto, por exemplo, o voto facultativo para maiores de 16 anos no Brasil; e a outra é pela multiplicação dos órgãos de representação, por exemplo, os conselhos municipais como os de saúde, e a implementação do orçamento participativo.

Na construção de uma nova cultura política, a democracia deli-berativa se propõe a ser um instrumento de valorização da autonomia dos indivíduos, ou seja, a ser um instrumento à disposição das pessoas na determinação dos rumos da vida privada e pública através da dispo-nibilização do maior número possível de instrumentos institucionais de deliberação pública. O cidadão pode delegar muitas das decisões a políti-cos, instituições e a outras autoridades. Para isso é preciso que ele esteja preparado e tenha os mecanismos legais para manter sob controle aque-les a quem ele delega algum tipo de poder, responsabilidade ou missão.

Para a democracia deliberativa, a incapacidade de fazer com que os representantes prestem contas (accountability) das decisões que tomam em nome de qualquer coletivo, ou a recusa desses representantes de se sujeitarem à prestação de contas, viola o direito de autonomia dos cida-dãos e inviabiliza a consolidação de um ethos republicano2.

A consolidação de uma cultura cívica de prestação de contas, como principal instrumento do fazer político, numa sociedade onde são poucos os que têm tempo para militância política, juntamente com a participação direta (em conselhos, instituições, associações, orçamento participativo etc.) são os principais pilares da democracia deliberativa. “Aqueles que agem em nosso nome devem nos prestar contas, e nós de-vemos sujeitá-los a isso”. Eis o princípio político da democracia delibera-tiva. Mesmo que um cidadão não participe ativamente da vida política, a

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ele devem ser garantidos os instrumentos legais, para obrigar aqueles que têm representação a prestarem conta das decisões que tomam em nome da coletividade.

A democracia deliberativa parte do pressuposto de que não é a par-ticipação direta nas decisões a forma mais eficaz de garantir a autonomia dos indivíduos, mas sim a responsabilização de todos os que tomam de-cisões perante todos os que não as tomam. Reformas institucionais que fortalecem a prestação de contas públicas e as capacidades deliberativas dos cidadãos, transformando reciprocidade e confiança em capital social, ajudam no processo de coexistência da democracia com a justiça social.

Segundo Franz Hinkelammert (2005), estamos vivendo, neste atual marco da estratégia de globalização, uma tendência de eliminação das chamadas distorções do mercado. Trata-se de uma estratégia, conduzida pelas empresas transnacionais, que considera “distorções do mercado” todas as intervenções na economia que tenham como objetivo satisfazer as necessidades humanas. Assim, são consideradas como distorções as leis trabalhistas (carteira assinada, indenização por justa causa, licença- maternidade remunerada, seguro-desemprego, proteção ao trabalho in-fantil) e as políticas de direitos universais de saúde e educação, as quais, para serem universais, têm que ser públicas e gratuitas. Também são consideradas distorções as políticas de pleno emprego, proteção ao meio ambiente e de autonomia cultural. No Brasil, a proposta do novo código florestal, do relator Aldo Rabelo (PCdoB – SP), e a chamada economia criativa, da qual Ministério da Cultura faz apologia, seguem essa lógica.

Esta estratégia das corporações transnacionais constitui uma luta contra os direitos humanos cujo reconhecimento foi fruto da vitória de mobilizações sociais acontecidas desde o século XIX. A estratégia da glo-balização do capital, segundo Hinkelammert, vem causando uma cres-cente exclusão e marginalização de grande parte da população em todos os países do planeta. Por isso, a meta de libertação emergente para os po-vos deve ser traduzida na luta pela efetivação dos direitos já conquistados e a conquista de novos direitos.

A luta pelos direitos humanos no século XXI se diferencia da luta pelos direitos econômicos e sociais do século XIX. Os movimentos no século XIX tinham uma postura de negação da institucionalidade (mer-cado e Estado), principalmente os movimentos de orientação socialista. Hoje, pelo contrário, trata-se de penetrar e redefinir a institucionalidade em função dos direitos humanos.

Para introduzir os direitos humanos no interior da instituciona-lidade tem que se reformular o Estado de Direito. Até o século XIX, o Estado era olhado do ponto de vista econômico, agora devemos ver o econômico do ponto de vista dos direitos humanos. Portanto, não há

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como garantir o respeito aos direitos humanos sem uma transformação econômica. E para que isso se efetive é preciso que a defesa dos direitos humanos faça parte do novo Estado de Direito.

Vivendo numa crescente crise de integração econômica, social e cultural, os países pobres podem encontrar na luta pela garantia e am-pliação dos direitos humanos um espaço político onde possam expressar democraticamente a construção de novos conceitos que ajudem no pro-cesso de luta para reverter as fortes tendências de desestruturação social.

Os desafios de uma gestão solidária

O desenvolvimento da economia capitalista revolucionou a Ciência e a Tecnologia. A busca de um processo produtivo mais eficiente e com-petitivo fez com que o capital investisse muito em pesquisas para possi-bilitar a criação de novas necessidades e respostas.

No mundo contemporâneo, temos conhecimento e tecnologia para produção de alimentos em escala superior à capacidade de consumo da população do planeta; dispomos de equipamentos e meios necessá-rios, na área de saúde, para tratar a maioria das mazelas que afligem os pobres. Mas por que será que a maioria da população do planeta não tem acesso à alimentação e à saúde?

As pessoas não têm acesso a tais bens porque todo conhecimento e toda tecnologia são apropriados de forma privada e colocados a serviço da acumulação de riquezas de grupos econômicos, que não se comovem com a necessidade de pessoas que não podem pagar para ter acesso aos bens simbólicos e materiais necessários às suas sobrevivências.

A meta dos grandes grupos transnacionais é a conquista de novos mercados. O capital defende o livre mercado como mecanismo para sua migração global. Alguns consultores econômicos já falaram na transfor-mação do planeta num “shopping center global” ou numa “aldeia global”. Todavia, o capital não migra para onde apenas existam necessidades humanas a serem satisfeitas, pois ele não tem compromisso com o bem--estar do homem. O capital migra para onde há possibilidade de acúmulo de mais capital.

Para aumentar seus lucros, o capital investe em tecnologias a se-rem aplicadas no processo produtivo, gerando o desemprego estrutural. Para os que ficam no emprego, o mercado exige trabalho qualificado e oferece condições precárias de trabalho, baixa remuneração, e promove ataque aos direitos trabalhistas (reforma trabalhista) e enfraquecimento das organizações dos trabalhadores (reforma sindical).

Como a estratégia de internacionalização da economia ou globa-

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lização é responsável pelo aprofundamento do processo de exclusão so-cial, a sociedade civil vem rivalizando-se com esses mecanismos através de ações orientadas por outros valores e pela crença de que a construção de um outro mundo é possível. No campo da administração pública, os especialistas defendem a necessidade de uma gestão pública solidária.

Uma gestão pública solidária se caracteriza por ser um instrumento político, técnico e econômico a serviço dos cidadãos na disputa contra as desigualdades sociais, culturais e políticas, e contra as discriminações étni-cas, sexuais e regionais. É aquela que se abre para construção de formas de-mocráticas de desenvolvimento de processos produtivos sustentáveis, de bem-estar material e de formas de governar com respeito à coisa pública.

Uma gestão solidária é aquela que, no campo político, implementa a participação dos cidadãos na gestão da coisa pública e no campo social implementa ações de inclusão dos interesses da maioria. Do ponto de vista ambiental, programa ações de ajuda humanitária, preservação do planeta e garante o direito das gerações futuras a um mundo saudável. Uma gestão solidária cumpre e ajuda a sociedade na efetivação das leis constitucionais, consolidando assim um Estado de Direito efetivo. Nesse sentido, vejamos o que a sociedade civil vem fazendo e pode fazer para consolidar a efetiva-ção do Estado de Direito:

1º – A Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE (ONGs filiadas à Associação Brasileira de ONGs – ABONG e com atuação nos Estados do RJ, ES, PE, PA, MT e BA), mantém uma campanha nacional (“O Brasil Tem Fome de Direitos”) para o cumprimento imediato do Artigo 6º da Constituição Federal que diz o seguinte: “São direitos so-ciais a educação, a saúde, a proteção à maternidade e à infância, a assistên-cia aos desamparados, na forma desta constituição”.

2º – No Piauí, há mais de oito anos, a Força Tarefa Popular, e, há menos tempo, na Bahia, o movimento “Quem Não Deve Não Teme” estão mobilizados para garantir a efetivação do Artigo 31, parágrafo 3º, da Cons-tituição Federal, que diz o seguinte: “As contas dos municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei”. Esse é um movimento em que qualquer cidadão pode se engajar para pressionar sua prefeitura a disponibilizar anualmente as con-tas para exame e apreciação da população. Instituições governamentais e não governamentais podem capacitar as pessoas para que possam analisar tecnicamente as contas públicas do seu município.

3º – Em Fortaleza, a Lei Orgânica do Município garante à população o direito de apresentar projeto de lei e de veto à execução de uma Lei que seja contrária ao interesse público. Trata-se dos artigos 54, 55 e 56. O Artigo 55

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diz o seguinte: “a iniciativa popular de projeto de lei será exercida mediante a subscrição de, no mínimo, cinco por cento do eleitorado do município, da cidade, ou bairro, conforme o interesse ou a abrangência da proposta”.

Uma gestão pública solidária mantém uma rede eficiente de servi-ços básicos (escola, saúde, qualificação profissional, ocupação e renda) voltados para solidificação de processos de inclusão social. Para que es-sas ideias se transformem em respostas possíveis e efetivas, Jordi Borja (1997, p. 85) cita três condições:

Para uma gestão pública solidária, a transformação das necessidades em direito é vista como um processo de revisão e redefinição dos espaços de cidadania. Assim, uma gestão pública solidária é aquela que rivaliza com os valores e os interesses da estratégia de mundialização do capital.

Se do ponto de vista do ordenamento estatal, a gestão pública so-lidária é uma forma de resposta local ao processo de globalização, no âmbito da sociedade, várias experiências vêm se consolidando. Trata--se de ações polêmicas envolvendo uma pluralidade de agentes sociais e concepções políticas múltiplas. Estamos, pois, fazendo referência a três experiências de ações cívicas desenvolvidas pela sociedade civil: o movi-mento de responsabilidade social das empresas, as ações do terceiro setor e a economia solidária.

Ações cívicas tercendo o desenvolvimento

A responsabilidade social empresarial A partir dos anos de 1990, ganhou corpo no Brasil o Movimento

de Responsabilidade Social Empresarial. As instituições com mais vi-sibilidade e credibilidade com a questão da responsabilidade social das empresas são o Instituto Ethos Empresa e Responsabilidade Social e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae.

Para o Instituto Ethos e para o Sebrae (2003), o movimento pela Responsabilidade Social nas Empresas é decorrente de três revoluções atuais que ocorreram no momento em que o limite do uso dos recursos

a necessidade de encontrar respostas integradas e não-setoriais para os problemas de emprego, educação, cultura, moradia, transportes etc; estabelecimento de compromissos público-privados entre as necessidades do crescimento econômico e as do meio ambiente: e a configuração de mecanismos que estimulem a participação po-lítica, facilitem a relação entre administradores e administrados e promovam a organização de grupos sociais.

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naturais era imposto pela natureza:

– a revolução tecnológica (satélites, telecomunicações), que elimi-nou distâncias e multiplicou a troca de informações via televisão, jornais, rádio, telefone e internet;

– a revolução educacional, que é consequência do número cada vez maior de pessoas que frequentam escolas e querem mais informações;

– a revolução cívica, que é representada por milhões de pessoas, organizadas em todo o mundo, reunidas em associações e organizações não governamentais (ONGs), defendendo seus direitos e seus interesses, como a promoção social e a proteção ambiental.

Há uma percepção dos defensores da ideologia da Responsabilida-de Social das Empresas de que a competitividade empresarial não pode mais ser realizada apenas com a prática do menor preço dos produtos e serviços, nem apenas com a melhoria da qualidade dos produtos com-binada com uma boa política de recursos humanos. A palavra de ordem para garantir a competitividade passou a ser comunidade. A responsabi-lidade social passou a ser um fator de competitividade. Dizem o Instituto Ethos e o Sebrae (2003): “a responsabilidade social está, portanto, intima-mente ligada à imagem que as empresas querem ter perante o mercado”.

Para conquistar novos consumidores ou clientes, a ideologia da Responsabilidade Social das Empresas recomenda que os negócios se-jam baseados em princípios socialmente responsáveis, ou seja, que se fa-briquem produtos ou preste serviços que não degrade o meio ambiente, promova a inclusão social e participe do desenvolvimento da comunida-de na qual a empresa está inserida.

O retorno dessas iniciativas é o reconhecimento social (imagem da empresa) através da conquista de mais clientes e o respeito por parte da sociedade; melhoria das condições de competição no mercado; o acesso a créditos e financiamentos públicos; melhoria do ambiente de trabalho e comprometimento dos funcionários; diminuição dos riscos de moralida-de econômica dos novos negócios, tornando-se um agente de mudanças que contribui para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.

O Instituto Ethos adota sete indicadores para o acompanhamen-to e monitoramento das práticas de responsabilidade social: 1.º) Adote valores e trabalhe com transparência; 2.º) Valorize empresas e colabora-dores; 3.º) Faça sempre mais pelo meio ambiente; 4.º) Envolva parceiros e consumidores; 5.º) Proteja clientes e consumidores; 6.º) Promova sua comunidade; e 7.º) Comprometa-se com o bem comum.

Segundo o Instituto Ethos e o Sebrae (2003):

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É também na busca de tornar a economia mais competitiva que a União Europeia estimula o conceito de Responsabilidade Social das Empresas. Um comunicado da Comissão Europeia de 2 de julho de 2002 (www.europa.eu.int) afirma que a principal função de uma empresa con-siste em criar valor, gerando lucros para seus proprietários e acionistas e bem-estar para a sociedade. Todavia, o sucesso dos empreendimentos depende da importância dada à responsabilidade social das empresas, pois as grandes empresas se aperceberam do seguinte:

– a globalização dificultou a organização das empresas, porque a expansão das suas atividades no estrangeiro induziu novas responsabili-dades à escala global, em especial nos países em desenvolvimento;

– a imagem, a reputação e, consequentemente, o sucesso das em-presas dependem do seu empenho em favor dos consumidores;

– a fim de melhor identificar os fatores de risco e sucesso de uma empresa, as instituições financeiras exigem informações que transcen-dem os habituais relatórios financeiros;

– o desenvolvimento de práticas que tenham em conta considera-ções ambientais e sociais contribui para a modernização das atividades das empresas e, por conseguinte, para a sua competitividade a longo prazo.

Para a Comissão Europeia, a responsabilidade social das empresas é “a integração voluntária de preocupações sociais e ambientais e sua in-teração com outras partes interessadas”.

Para os países membros da União Europeia, as principais razões que contribuem para o obstáculo ao desenvolvimento da responsabilida-de social das empresas em larga escala são:

– Conhecimentos insuficientes sobre a relação entre a responsabi-lidade social e o desempenho econômico das empresas;

– conhecimentos insuficientes por parte dos consumidores e dos investidores sobre o conceito de responsabilidade social das empresas;

– ausência de consenso sobre o conceito de responsabilidade so-cial das empresas na formação universitária;

As empresas que já estão engajadas socialmente trabalham por meio de estruturas organizativas variadas e, cada uma a seu modo, conduz projetos diversos que trazem resultados interessantes à co-munidade. Algumas empresas trabalham com sucesso por meio de fundações privadas, associações culturais e artísticas, organizações não-governamentais e outras entidades afins.

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– falta de recursos para ações de promoção da responsabilidade social das pequenas e médias empresas;

– ausência de instrumentos para descrever e gerir as atividades de responsabilidade social das empresas;

– ausência de estratégia coerente dos poderes públicos nesse domínio.

A ideologia de responsabilidade social das empresas vem receben-do um conjunto de críticas, principalmente nos países onde existe uma organização forte da sociedade civil. Uma onda de críticas se dirige aos seus princípios e fundamentos. Para os críticos, a ideologia da responsa-bilidade social das empresas é uma estratégia empresarial para tornar as empresas mais competitivas e lucrativas. A responsabilidade social utili-za as desigualdades sociais, causadas pelo sistema capitalista, como um instrumento de promoção da imagem das empresas. Trata-se de uma vi-são utilitarista: numa sociedade em que se vive do espetáculo, a imagem é o negócio que faz da injustiça social um meio para tornar as empresas mais competitivas e mais lucrativas.

É com a competitividade e com o lucro que a ideologia da respon-sabilidade social das empresas têm compromisso. A busca do lucro gera cada vez mais a competitividade, produzindo a acumulação de riquezas e de renda para os capitalistas, e ocasionando mais pobreza e miséria para os já empobrecidos. As mesmas empresas que financiam reformas traba-lhistas e previdenciárias, para negar direitos aos trabalhadores, mantêm instituições de “responsabilidade social” para promover a “inclusão so-cial”. A responsabilidade social das empresas é um simulacro, um marke-ting social para agregar valor aos produtos e serviços das empresas.

A segunda onda de críticas é de ordem prática, trata-se da atitude de certas empresas que deixam de recolher impostos, que deveriam ser aplicados em investimentos sociais como direitos de todos, para aplicá--los em fundações e instituições filantrópicas cujo objetivo é criar uma imagem de compromisso social da empresa sem que ela gaste nenhum centavo de seu bolso. É uma prática que colabora com a crise fiscal do Estado e promove ações localizadas, paliativas e de caridade, como se tratasse de uma verdadeira ação de inclusão social. Tais práticas foram classificadas pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, como sendo uma prática de “pilantropia”.

Na “pilantropia”, a ideologia da responsabilidade social das em-presas age como um homem que, ao saber que seu vizinho vai ao ban-co receber o salário, faz um plano para assaltá-lo usando um disfarce. Depois de cometer o crime, o ladrão faz uma volta no quarteirão e en-contra sua vítima triste andando desnorteada. Então, como se fosse um bom vizinho, ele se faz de comovido com a situação, oferece um vale

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transporte e conforto afetivo para a vítima. Ao chegar em casa, a vítima conta para sua família e vizinhança o que aconteceu e diz que se não fosse o vizinho ela ainda teria voltado para casa a pé. O ladrão, que se apropriou do salário do vizinho, passou a gozar de uma boa imagem por parte da vítima e dos outros vizinhos, passou a ser considerado um homem de atitude solidária.

o governo está começando a desaparecer da vida das comunidades, seu papel é cada vez menos importante, está passado a delegar ver-bas e programas... E a responsabilidade da vida cívica passará a ser cada vez mais do terceiro setor, do setor não governamental.

A Ação do Terceiro SetorAtualmente é muito comum se ouvir falar em Terceiro Setor, mas

muita gente confunde Terceiro Setor com sociedade civil. Bem, mas o que é mesmo esse tal de Terceiro Setor? Terceiro setor é um termo inven-tado por economistas nos Estados Unidos, trata-se de um termo difuso e confuso que tenta agrupar numa mesma denominação ações de dife-rentes organizações da sociedade (religiosas, comunitárias, fundações, filantrópicas, ONGs) que se constituem legalmente como instituições privadas de interesse público e sem fins lucrativos.

Para os economistas norte-americanos o que motivou o surgimen-to do Terceiro Setor foi a hegemonia da economia liberal de mercado, de-pois do colapso do socialismo real; a crise fiscal do Estado, que o deixou incapacitado para garantir políticas de bem-estar social, e, por último, a necessidade de ações voltadas para o enfrentamento do processo acele-rado de exclusão social provocado pela mundialização da economia, en-frentamento que o Estado não tem mais como realizar sozinho e precisa de parceiros no mercado e na sociedade civil. Para um dos teóricos e de-fensores do Terceiro Setor, Jeremy Rifkin (1997, p. 20):

O Terceiro Setor, na realidade, vem se constituindo numa teoria de desenvolvimento de ações compensatórias que transfere para as empre-sas – como é o caso da ideologia de responsabilidade social das empresas – e para entidades sem fins lucrativos a responsabilidade de amenizar os efeitos da concentração de renda (miséria, pobreza, violência, destruição do meio ambiente, desregulamentação dos direitos trabalhistas e sociais) produzidos pelo mercado.

A estratégia de desregulamentação dos direitos (reforma previden-ciária e trabalhista), orientada para o mercado, combinada com o enfraque-cimento dos sindicatos (reforma sindical), significa redução de encargos,

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desvalorização da remuneração do trabalho e aumento da competitivida-de empresarial. Significa para a sociedade a precarização da rede básica de proteção social, desigualdade e crescimento dos níveis de pobreza. Para os teóricos do Terceiro Setor, existe um mercado, fruto dessa estratégia, atra-ente para iniciativas cidadãs, que gera emprego e engajamento voluntário voltados para a solidificação de uma cultura solidária.

Como Terceiro Setor é um termo difuso e confuso, muitas vezes se pega a parte pelo todo, empregando-o como sinônimo de sociedade civil. Ao tratar a sociedade civil como se fosse a mesma coisa que Tercei-ro Setor, acaba escondendo conflitos, diferenças e disputas materiais e simbólicas que ocorrem dentro da sociedade e na relação da sociedade civil com o Estado e o mercado.

No Brasil, a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, conhecida como Lei das OSCIPs, e a Lei nº 9.609, de 18 de fevereiro de 1998, conhecida como Lei do Voluntariado, são os mecanismos legais do Terceiro Setor. Todavia, em nosso País, o termo Terceiro Setor não é aceito por atores sociais que lutam ou apóiam a reforma agrária, que lutam por orçamen-to participativo, que promovem a formação política para construção de espaços públicos e de direitos sociais. Não é aceito pelos vários atores so-ciais que organizam o Fórum Social Mundial, acreditando que um novo mundo é possível. Não é aceito pelos que participam de várias redes de economia solidária. Também não é aceito pela Associação Brasileira de ONGs, que tem como objetivo representar e promover o intercâmbio en-tre ONGs empenhadas no fortalecimento da cidadania, na expansão dos direitos fundamentais e na consolidação da democracia.

Para os que utilizam o termo Terceiro Setor como a nova socie-dade civil, o Estado, como um espaço público distribuidor e regulador dos recursos e das políticas públicas, deve ser um dos focos de ação da cidadania. A sociedade civil deve agir no sentido de influenciar nas polí-ticas de Estado. Deve-se ter claro que não se pode mais adotar uma pos-tura estadocêntrica, onde cabe apenas ao Estado a responsabilidade pelo bem-estar social e pela efetivação dos direitos fundamentais.

Toda a sociedade deve ser responsabilizada pelo processo de mu-dança social. É legítimo que a sociedade civil realize parcerias com o Estado, com o mercado e com a diversidade de agentes sociais que com-põem a própria sociedade civil. Uma democracia se constrói com diálogo e com ações cívicas comprometidas com a vida pública e com a conso-lidação de instituições que efetivem a expansão dos direitos humanos. Dialogar, fazer parceria e ter postura crítica é não aceitar que estratégias perversas se consolidem como se fossem uma nova cultura de inclusão social e solidariedade.

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3. O texto da ANTEAG e de Rosemary Gomes, da FASE, foram apresentados no seminário sobre economia solidária, realizado pelo Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2002. www.forumsocialmundial.org.br

A Economia SolidáriaDo ponto de vista da organização do trabalho, da produção de bens sim-

bólicos e materiais e da circulação de mercadorias, a economia solidária vem se constituindo como a ação cívica mais ousada de convivência com a estratégia de mundialização da economia capitalista. Ela já é uma prática recorrente em vários países e aparece sob várias denominações: economia solidária, socioeco-nomia solidária, economia popular, humano economia, economia de proximi-dade. Trata-se na realidade de práticas de relações econômicas e sociais que, de imediato, visam promover a ocupação, a sobrevivência e a melhoria de qualida-de de vida de pessoas vítimas do processo de exclusão social. A longo prazo tem a pretensão de ser uma nova forma de organização econômica e social.

A economia solidária não quer ser apenas um remendo das mazelas so-ciais geradas pela economia capitalista, ela quer ser uma prática humanizadora de desenvolvimento socialmente justo de resposta às necessidades básicas dos indivíduos. Quer ser uma ação global de relações solidárias que valoriza o meio ambiente como casa de todos, o feminino como possibilidade de aceitar o ou-tro como um legítimo outro na convivência, e rejeita as posturas patriarcais e patrimonialistas que marcam o comportamento racionalista do ocidente.

O empoderamento de grupos, comunidades e cidades é um dos gran-des desafios da economia solidária. O financiamento da economia solidária passa pela redefinição do papel do dinheiro como instrumento de consolida-ção de uma cultura autogestionária, o que implica na utilização de moedas comunitárias, controle de taxas de juros, combate à atividade especulativa, fortalecimento do comércio justo e a criação de redes de empresas solidárias.

Alguns princípios são centrais na orientação das experiências desen-volvidas pela economia solidária: i – questão da propriedade social, que im-plica na participação dos indivíduos não só nos lucros, mas na propriedade e no controle dos empreendimentos; ii – questão da autogestão, que implica num modo de gestão coletiva e democrática dos empreendimentos, trata-se da sedimentação de práticas sociais fundadas na solidariedade e na coope-ração que coloca as pessoas como protagonistas dos empreendimentos; iii – liberação do tempo livre pelo aumento da produtividade, fazendo com que as pessoas possam dedicar-se às tarefas mais nobres do desenvolvimento hu-mano (teatro, música, arte, turismo, literatura, jardinagem); iv – economia solidária como alternativa pós-capitalista de organização social.

Para a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão a Participação Acionária – ANTEAG3, os principais obstá-culos na constituição e desenvolvimento dos projetos de economia soli-dária e de autogestão são:

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– resistência em superar a cultura paternalista que tanto inibe ini-ciativas e faz com que os trabalhadores esperem que façam tudo por eles;

– medo de correr riscos no negócio e de assumir responsabilidade perante o coletivo;

– dificuldade de gerir o negócio com competência e de maneira democrática, transparente;

– inexistência de financiamento aos projetos viáveis. Os trabalhado-res, geralmente, não têm aval e garantias. As instituições públicas e priva-das, além da burocracia, são elitistas e cheias de preconceitos: não acredi-tam na capacidade coletiva, tampouco na inteligência dos trabalhadores;

– resistência de trabalhar na constituição do coletivo, tomando de-cisões e evitando a ocorrência do antagonismo: centralismo-democratico;

– falta de recursos, no curto prazo, para melhorar as condições de saúde do trabalho, visando tornar empresas menos perigosas e menos agressivas ao meio ambiente.

Para Rosemary Gomes, técnica da FASE:

a socioeconomia solidária remete aos processos de reprodução social coletiva que interligam moradia, transporte, saneamento, educação, segurança alimentar etc, que refletem nas formas de desenvolver no-vos mercados locais e suas relações com as diferentes redes e fluxos de relacionamento entre o local, nacional e o global (2000, p. 14).

O que podemos observar é que a economia solidária não trata de políticas compensatórias e nem de filantropia. Trata-se de um movi-mento político e crítico contra a economia capitalista e de uma constru-ção imediata de respostas alternativas e reais para pessoas e comunida-des que sofrem com a exclusão social. No Ceará, a economia solidária ganhou visibilidade nacional e internacional a partir da iniciativa da Associação de Moradores do Conjunto Palmeiras, que, em janeiro de 1998, criou o Banco Popular do Conjunto Palmeiras ou simplesmente Banco Palmas.

No início, o banco contou apenas com um empréstimo de dois mil reais oferecidos pela ONG Cearah Periferia, duas pessoas para gestão do banco e com um treinamento sobre gestão financeira oferecido pela Prefeitura de Fortaleza. A filosofia do Banco Palmas (Prorenda Urbano, 2000) está focalizada no desafio de equilibrar a produção e o consumo comunitário através de uma rede solidária entre os moradores. Através de microcréditos, o banco financia quem quer produzir ou comprar pro-dutos e serviços dentro da comunidade. Além disso, o banco criou o seu próprio cartão de crédito: o Palma Card. Com o Palma Card, as famílias

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podem fazer compras em mercearias, lojas e rede de serviços que estejam cadastradas no banco. O Banco Palmas vem fazendo tanto sucesso e contribuindo para a melhoria de vida da população que já oferece vários serviços econômicos com espírito solidário: microcréditos, feiras, balcão de emprego, troca de serviços, Palma Fashion, Incubadora Feminina, PalmArt e PalmaTech.

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RESISTÊNCIAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE CRISEadelita neto Carleial

Introdução

A recente crise irrompida nos EUA, 80 anos depois da Grande De-pressão de 1929, tem intensas implicações na política norte-americana in-terna e externa, repercutindo no mundo e, em particular, nas sociedades periféricas, como a América Latina.

A explicação da Crítica Radical (2011) acerca da crise recente do capitalismo, datada da primeira década dos anos 2000, é de que se trata de um colapso da sociedade-mercadoria, sendo uma crise duradoura e es-trutural, que tem por base o fetiche da mercadoria, razão da dissolução das relações entre homens e mulheres, entre ser humano e natureza. Sob a égi-de dessa abstração do real, que é o fetiche, segundo essa corrente política, as relações sociais se transformam em coisas, com sérias implicações sobre a vida social e a preservação do planeta. Essa crise, então, chegou ao limite das possibilidades da sociedade capitalista de realizar o valor, de acumular e de manter as relações mercantilizadas entre pessoas e entre seres huma-nos e natureza.

A proposta da Crítica Radical para superação dessa crise seria: compreender e captar o sentido destrutivo do fetichismo dessa sociedade, para depois trabalhar na direção de sua superação, desfetichizando as re-lações coisificadas (patriarcado, racismo etc) e permitindo a emancipação humana promovida por todos aqueles que se posicionam radicalmente contra o capital.

Essa concepção vê a crise da produção capitalista sem soluções ime-diatas e pontuais, pois ela seria resultado do próprio desenvolvimento ca-pitalista explorador da força de trabalho, de um sistema de classe que gera

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RESISTÊNCIAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE CRISE

contradições intransponíveis, e sua resolução somente poderia dar-se em outro modo de produção, baseado noutra lógica, para além da propriedade privada, mas assentada no associativismo, cooperativismo e produção co-munal e de massa.

É nessa perspectiva de impossibilidade de solução para a crise den-tro do capitalismo que se fundamenta Mészáros (2009), com sua argu-mentação sobre a natureza da crise estrutural do capital que envolve toda a humanidade, ao constatar a insustentabilidade da permanência do status quo, pois o movimento da história é incessante, portanto, não haveria pos-sibilidade da perpetuação dessa sociedade de mercado. Alerta Mészáros que o capital tende a perder o controle social sobre a produção, concen-tração e distribuição, com a “fragmentação mecânica do trabalho”, com a aceleração do consumo de massa manipulado, resultando numa crise sem precedente em escala mundial, cujos limites coincidem com os próprios limites da existência humana.

Nesse contexto tenso de crise, precisa-se elucidar algumas ques-tões: Como entender a relação entre a crise recente, originada nos Es-tados Unidos, e os estados nacionais na América Latina? Quais foram as respostas diferenciadas, adotadas pelos movimentos sociais de países latino-americanos, para enfrentar essa crise? Como a sociedade civil lati-no-americana, em geral, acompanha o movimento do Estado nessa fase crítica do capitalismo?

Para responder a essas questões, este texto mostra a dependência aos Estados Unidos e as tentativas de superação dessa dependência pelos países latino-americanos, além de evidenciar o rearranjo de forças entre os países da América Latina no enfrentamento ao poderio estaduniden-se. Também discute a existência de contradições internas aos estados nacionais da região, além de constatar as tensões internacionais entre os estados latino-americanos. O objetivo deste artigo é, pois, discutir a rela-ção entre essa recente crise estrutural, econômica e política, e a dinâmica dos países latino-americanos.

Superando dependências diversas

Relações de dependência das nações periféricas às nações desen-volvidas permeiam a história da América Latina. As dominações remotas, portuguesa e espanhola, transformaram nações livres em colônias, mar-cando profundamente o modo como as suas economias se desenvolveram na região. De colônias passaram à sociedade de mercado subordinadas, em situação de periferia, que implica em sociedades políticas de traços atra-sados e conservadores. As elites reproduziram suas dominações em detri-

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mento dos trabalhadores, ampliando sua ganância, lucros, sem um projeto nacional, para todas as classes, mas com uma direção de classe tipicamente capitalista, associada e combinada com o capital externo.

Essa forma de ver a história da América Latina já nos ensinava Flo-restan Fernandes, em sua obra “Revolução burguesa no Brasil”, escrita entre os anos de 1966 a 1975, quando interpretou a formação econômica e política da sociedade brasileira até a década de 1970.

Florestan fala do Brasil como uma sociedade crivada de mando-nismo, paternalismo, ritualismo eleitoral, manipulação dos movimentos políticos e populares.

Marcada pelo colonialismo, a sociedade brasileira submeteu o liberalismo e a democracia à diversidade da economia nacional e à do-minação e privilégios dos estamentos senhoriais. Em suma, a economia urbana nascente, no Brasil, estava montada sobre um sistema econômico agrário, escravista e dependente do mercado externo. Sua história de mo-dernização capitalista coincide com a formação do processo democrático nacional, com a economia baseada no homem livre e com possibilidade da participação desse homem na vida social e política. Para ele, a debi-lidade da construção democrática no Brasil decorre da separação dos processos de evolução da política e de evolução da economia burguesa, enquanto o Estado prima pela dependência e pela apartação.

Suas conclusões para o Brasil, quando ampliadas, podem ser verda-des para a América Latina, tais como: eclosão de um mercado capitalista mais ou menos moderno (transição neocolonial); formação e expansão do capitalismo competitivo; irrupção do capitalismo monopolista (gran-des corporações estrangeiras, estatal e mista).

Deduz Florestan que a sociedade brasileira teria três traços funda-mentais: periférica, heteronômica e de origem colonial. Continua mos-trando que as características que permaneceram, ao longo da história, foram: dependência com o exterior; permanência dos regimes anterio-res; natureza subdesenvolvida e extrema concentração de riqueza. Tais ponderações, sem sombra de dúvida, servem para explicar outras socie-dades da América do Sul.

Sua análise sobre a economia brasileira periférica ou dependente compreendia os vínculos com o mercado em que predominavam as co-nexões econômicas externas e internas sem autonomia. Para ele, os agen-tes externos, não mais pelo poder político da relação metrópoles-colônia, mas pelo poder econômico, dariam as regras do jogo, num longo proces-so de transferência de dominação.

O Brasil, aparelhado, exercia seu papel na fase do capitalismo comer-cial pós-colonial, com as associações de brasileiros às firmas estrangeiras. Era uma situação de neocolonialismo, modernização econômica, economia ca-

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pitalista dependente, Estado nacional controlado pelas “elites nativas”. Fala Florestan, ainda, na situação brasileira de sociedade hospedeira

do capitalismo dos países centrais, detentora de uma burguesia com mo-derado espírito modernizador, autocrática, sem fortes concepções republi-canas, mas composta por uma base nacional e outra internacional. Daí a formação de um Estado concentrador e militarizado, controlador da eco-nomia, focado no desenvolvimento das cidades em detrimento do campo.

Inseridos na mesma lógica capitalista global, tudo leva a crer que outros países na América do Sul, mesmo que distintamente, pelos traços culturais e históricos, estiveram submetidos à dominação semelhante, com implicações na formação de suas sociedades nacionais.

Um ensaio sobre o “desenvolvimento dependente-associado” na América Latina corrobora com a ideia de que existem na região traços semelhantes de subordinação à lógica capitalista que submete as econo-mias locais sob a concessão de grupos econômicos nacionais associados ao capital externo. Escrita por Cardoso e Faletto (2004), na mesma épo-ca que Florestan publicou suas reflexões sobre a revolução burguesa bra-sileira, essa abordagem dialética, histórico-estrutural, revista no início dos anos 2000, garante a atualidade da explicação sobre as relações de dependência política e econômica entre países periféricos e desenvolvi-dos, que são ajustadas diferentemente às sociedades nacionais, confor-me suas especificidades.

Os autores afirmam que a expansão capitalista desenvolve os paí-ses periféricos, crescendo a economia de forma “desigual e assimétrica” internamente e em suas relações internacionais. Atualizando seus pensa-mentos, eles afirmam que na globalização ocorre uma integração plane-tária entre os nichos de prosperidade, independente de nacionalidades, por causa das interconexões e fluxos transnacionais, com consequências nos grupos e classes sociais.

Essa forma de interpretar o desenvolvimento na América Latina, como dependente, tinha por pressuposto as transformações processuais e históricas acompanhadas de mudanças na estrutura de dominação, com adoção de novas formas de tensões entre grupos e classes sociais pelo controle social da produção e do consumo. Partia-se de sociedades subdesenvolvidas em suas conexões entre determinantes internos e ex-ternos, que as diferenciavam, entre si, como “sociedades coloniais” ou “sociedades nacionais”.

A importância do conceito de dependência está em sua capacidade analítica de interpretar as sociedades latino-americanas em suas interco-nexões entre a economia e a política, entre suas tensões internas e entre essas sociedades e o exterior.

Interessa aqui discutir as repercussões da crise atual sobre as socie-

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dades latino-americanas e para isso a teoria da dependência vai apoiar a compreensão de que há uma articulação subordinada do capital interno ao externo nas diferentes fases de articulação entre a América Latina e as economias dominantes internacionais.

Longo é o processo histórico de dependência que marcou os países na região. Essas subordinações econômicas e políticas variaram de direção: Portugal, Espanha, depois a Inglaterra e agora os Estados Unidos. A atual dominação do Norte sobre as economias e as políticas macroeconômicas nos países da região, não somente se impõe desde fora, mas, também, se associa com forças de dentro, replicando as desigualdades econômicas em regiões mais ou menos desenvolvidas no interior dos estados nacionais.

As investidas dos EUA sobre a América Latina vêm de longas da-tas. Elas existiram antes e durante a crise recente indicando a relação subordinada da região a essa força externa que tem dado o rumo do de-senvolvimento latino-americano, mesmo com certa margem de manobra das diferentes nações na América Latina.

Sousa (2010) descreve o período após a Segunda Guerra Mun-dial até a atual crise do capitalismo (2008) como fase de dependência da América Latina aos EUA, por intermédio de agências financeiras, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e o Banco Interameri-cano de Desenvolvimento (BID). Além disso, o autor indica os seguidos acordos econômicos (Bretton Woods (1944), GATT (1947), Plano Baker (1985), Consenso de Washington (1989), TLCAN (1994), que marca-ram, distintamente, a história de dependência regional, resultado da im-posição do dólar como moeda padrão internacional. O autor percorre as décadas (1980, 1990, 2000) e suas sucessivas crises. Nos anos 1980, a crise do Petróleo, recessão mundial, pressão da dívida externa na Améri-ca Latina, e cumprimento dos preceitos neoliberais na região. Na década de 1990, expansão econômica estadunidense e vulnerabilidade latino--americana aos investimentos externos, combate à inflação, ajustes es-truturais neoliberais e redução dos investimentos nas áreas sociais foram os traços marcantes na região. Daí seguiram o incremento econômico nas inovações tecnológicas, informatização e telecomunicações, passan-do por flexibilização do mercado de trabalho, continuidade nas privati-zações, reformas do Estado e políticas sociais de combate às profundas desigualdades sociais, implementadas no contexto das contradições do sistema capitalista.

O caminho traçado pela expansão do capitalismo, após 1930, é a trilha percorrida pela dominação estadunidense. Oliveira (1998) fala desse período como sendo um estágio onde o capital perdeu seu poder de autorregulação, portanto, tornando-se com características altamente destruidoras, daí a força de medidas reformistas que produzem antiva-

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lor, isto é, transferem riquezas públicas e retiram dinheiro das esferas da mercadoria para as atividades não produtivas.

Este contexto de crise e dependência estrutural na América Latina tem desdobramentos no campo da política, nas tensões entre governos, grupos e classes sociais; contradições entre agentes econômicos e políti-cas públicas que tentam disciplinar a valorização do capital.

Não obstante, a situação política muda, paulatinamente, na região, com os novos governos eleitos, vinculados a movimentos sociais e sin-dicais, permitindo acomodações dos sistemas políticos às pressões de fora e de dentro, ao invés de tentativas na direção do rompimento com a dependência estrutural e histórica. A região conta com tentativas de congregação de esforços visando à recuperação da economia e ao forta-lecimento da região, tais como os blocos de integração Mercosul, ALBA e Unasul, dentre outros.

Sobre o Mercado Comum do Sul (Mercosul), tratado assinado em Assunção, em 1991, a constituição de um mercado comum foi sua mo-tivação de formação. Inicialmente, agregou Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e, mais recentemente, foi ampliado pela incorporação dos paí-ses Bolívia, Chile, Peru, Equador e Colômbia. A inclusão da Venezuela, diferentemente, foi motivo de processo mais demorado do que outros, no parlamento brasileiro. Isso não ocorreu nas decisões do Uruguai e Ar-gentina em relação à adesão venezuelana. Esse bloco econômico do Sul visa à livre circulação de bens, serviços, adoção de políticas conjuntas sob a jurisdição de leis internacionais compartilhadas. Tem avançado na constituição de novos fóruns comuns de participação com a criação do parlamento do Mercosul.

A Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), por sua vez, difere do Mercosul por sua declarada opção pelos valores anticapitalistas. O acordo entre a Argentina e a Venezuela, que prevê a troca de alimentos argentinos por combustíveis venezuelanos, numa ação de complemen-taridade, faz parte dessa articulação regional. Outro exemplo é o acordo que intercambia conhecimentos entre exploração brasileira de petróleo em alto mar e exploração venezuelana em terra firme.

A União das Nações Sul-Americanas (Unasul), mais recente bloco de 12 países da América do Sul, foca a questão energética na região. Criado em 2008 para ser implantado em 2011, destina-se a resolver controvérsias e garantir a segurança regional para ampliar a democracia na região.

No campo militar, por exemplo, está distante, no Brasil, o fato de em 1999 o Governo Fernando Henrique Cardoso ter criado um “cordão sanitário” em torno da área colombiana desmilitarizada na fronteira com o Brasil, onde tropas brasileiras e colombianas, treinadas por militares norte-americanos, instalaram pontos de intercepção e acompanhamen-

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to do comércio fronteiriço, para bloquear o abastecimento aos mem-bros guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). (DN, 21/8/1999, Nacional, p. 6).

Na Venezuela, os EUA tentaram, e não conseguiram, um golpe, em 2002, com ajuda da oposição no fato que veio a ser conhecido de der-rubada frustrada do Presidente Hugo Chávez. Segundo Pablo Uchoa (O POVO, 27/7/2003, Internacional, p. 33) uma investigação do Congresso americano apontou que os EUA financiavam a oposição a Hugo Chávez: “A Fundação Nacional para a Democracia despejou milhares de dólares para organizações de oposição feroz a Chávez. [...] Mas nunca foi prova-do que os EUA participaram ativamente.”

Entretanto, outras ações militares associadas entre governos e Esta-dos Unidos reforçam a subserviência e a aceitação das imposições externas.

As investidas militares estadunidenses na região estão sendo des-vendadas e divulgadas na mídia, dando conta da diversidade de ação e de interferência nos assuntos políticos latino-americanos. Podem ser elencados: práticas autoritárias contra a soberania nacional do Brasil, no golpe militar de 1964, e no Chile, na derrubada do governo Allende, em 1973; criação da Escola das Américas, em 1946, que permaneceu no Panamá até 1966, atualmente mantida nos EUA, cuja finalidade é trei-nar militares latino-americanos em práticas de tortura contra subversões (ESPINOZA, 2010); reativação da Quarta Frota da Armada, para apoio às ações militares na região e aviões não tripulados de origens estadu-nidenses violaram o espaço aéreo venezuelano, em 2009 (GOLINGER, 2009); acordo militar é assinado entre EUA e Colômbia para implanta-ção de sete bases militares estadunidenses em território colombiano, em 2009 (ASSUNÇÃO, 2009).

Esse contexto de crise, dependência externa e de intervenções eco-nômicas e políticas dos EUA às quais as nações latino-americanas estão submetidas, são fatores de instabilidades e tensões que rearranjam as for-ças internas provocando práticas de defesas institucionais e reações de resistências e confrontos pelos movimentos sociais.

Redesenho da política e contradições internas

Nesse contexto, emergem novas sociabilidades críticas ao avanço do capitalismo, no campo da sociedade civil, contra Estados latino-ame-ricanos promotores de práticas neoliberais, conciliadores com o sistema de mercado. Trata-se de movimentos sociais que exercem uma crítica prática, que podem ser considerados como defesas contra o capitalismo.

Margarita Favela e Diana Guillén (2009) em seu artigo “Luta so-

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cial e direitos cidadãos na América Latina” vão demonstrar como no sé-culo XXI os movimentos de protesto marcam um novo tempo na região em sua luta pelo exercício da cidadania. As autoras acreditam que o pro-cesso de democratização da região fez com que os movimentos sociais em defesa de direitos entrassem em cena, em um contexto de rearranjo das forças políticas que buscavam a estabilidade institucional dos novos regimes, após sistemas políticos, claramente, autoritários. A passagem do século, para as autoras, vai demarcar o retorno da democracia liberal como a forma legítima de Estado, em que a sociedade civil questiona a institucionalidade vigente, critica o contexto jurídico e legal, e denuncia a falta de atendimento às reivindicações por direitos cidadãos.

Essa luta social em busca de uma nova institucionalidade, onde hou-vesse concessão de direitos, tencionou a permanência de políticas neolibe-rais de Estado mínimo, com redução de investimentos em políticas sociais, e continuidade de privatizações. Os impactos dessa tensão sobre a vida so-cial geraram diferentes conflitos na região. Os conflitos resultariam, igual-mente, do processo de acumulação globalizado, cuja competição entre os capitais impunha novas tarefas ao Estado e ampliava a mercantilização dos diferentes espaços e atividades sociais (terra, água, luz...).

A expressão mais visível desses conflitos manifestou-se nos mais variados movimentos sociais na região. Dentro desse marco das lutas sociais se incluem os amplos movimentos indígenas na América Lati-na. Passaram-se mais de quinhentos anos de tentativas colonialistas de dizimar esses povos, mas os indígenas estão dando provas de sua viva-cidade, mostrando sua face defensora da terra e dos recursos naturais, demonstrando como vivem protegendo a natureza, lutando contra o en-volvimento do planeta na crise ecológica de devastação ambiental. Essa é a marca principal do movimento indígena da Bolívia, Equador, Brasil, México e de outros lugares, a defesa do planeta, uma luta humanitária que transcende seus interesses corporativos e exalta sua natureza planetária, de povos preservacionistas.

Na Bolívia, Chávez (2009) reflete sobre a primeira década do sé-culo XXI para dizer sobre as condições contraditórias da vitória eleitoral do Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP), em 2005. Liderado por líder indígena cocalei-ro, esse movimento pretendia democratizar o sistema político pela via institucional. O exercício do poder demonstrou os limites da relação en-tre governo, partido e organizações populares, entre sociedade política e sociedade civil. Os entraves encontrados pelo governo autodefinido “governo dos movimentos sociais” se relacionaram ao sistema liberal e colonizado da sociedade boliviana, com seus traços clientelistas, corpo-rativos e conservadores. A reação da direita organizada foi forte em re-

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lação às possibilidades de mudanças contrárias às elites regionais e aos partidos conservadores.

As manifestações indígenas na Bolívia vão colocar o governo no meio da disputa fundamental entre a luta pela terra e pelo território indí-gena comunitário e o poder latifundiário. As Marchas dos Povos Indíge-nas das Terras Baixas, em 1990 e 2002, são demonstrações das exigências indígenas ao governo, para que reconheça suas formas de organização. A luta por Assembleia Constituinte faz parte da luta indígena, e na Guer-ra da Água em 2000 essa demanda generalizou-se em âmbito nacional. Esse confronto resultou na expulsão de transnacional pelas pressões da população organizada que amplia o campo da sociedade civil rompendo o “monopólio partidário da política” (CHÁVEZ, 2009, p.196).

O movimento indígena latino-americano tem, no México, outra im-portante força: o movimento zapatista, que perdura desde 1994, quando tomou de assalto, no estado de Chiapas, quatro municípios, dentre os quais San Cristóbal de las Casas. Trata-se de uma ação coletiva de resistência in-dígena ao capitalismo, com um componente militar, o Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN). Sua dinâmica inclui a apropriação da terra dos povos originários, transformados por eles como territórios autônomos, os Caracóis, com formação política, as Juntas de Bom Governo. Desde 2006 estão em uma nova etapa de trabalho civil e pacífico. Seus principais princípios de vida e trabalho são: verdadeira democracia, liberdade e justi-ça para todos. Sob o lema “Resistência e rebeldia”, defendem a luta social contra o capitalismo e o neoliberalismo (LA JORNADA, 1996).

Seu modo de fazer política é bastante variado e complexo, desen-volvendo comunicação direta com a população mexicana através de rádios comunitárias, usando exaustivamente as multimídias, com linguagem po-ética. Manipulando símbolos indígenas, reforçam a cultura como marca estruturante de seu movimento, valorizando a história e os seus modos particulares de construção da vida e do trabalho. Defendem a terra, a natu-reza, podendo ser caracterizados como protetores do meio ambiente.

Autodefinido como “Movimento antissistêmico e planetário”, abre-se para o exterior, realiza debates internacionais, participa de even-tos acadêmicos e recebe estrangeiros em seu Centro de Línguas Tsotsil e Espanhol. Suas atividades se estendem à defesa de presos políticos, re-tomada de símbolos clássicos da esquerda, avanços na questão de gênero com a participação feminina em postos de comando, fazendo uso de dis-curso ideológico de classe.

Todos esses movimentos indígenas constroem identidades como ação política agregadora de nações de povos originários em diferentes países. Esses movimentos têm importante dimensão cultural, como va-lor a ser respeitado. Eles questionam o conceito de nação herdado e força-

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do pela dominação colonialista. Outra característica do movimento indí-gena é sua politização, dimensão que ultrapassa a satisfação de interesses imediatos de questiúnculas. Trata-se de um movimento de emancipação, porque discute e protege a questão ecológica, a história dos povos, a me-mória, a terra, na perspectiva da cultura.

Esses movimentos têm marcado presença em diversos países, mu-dando o eixo principal da dinâmica e da feição dos movimentos sociais que eram, na década de 1980, predominantemente urbanos, passando a ter visibilidade e peso político. Os movimentos que vêm do campo se estendem à luta dos movimentos dos povos indígenas, aos movimentos camponeses, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Brasil, que exerceu nos anos 1990 “uma crítica radical ao sis-tema” (OLIVEIRA, 1998).

O movimento camponês brasileiro representado pelo MST cons-titui o mais abrangente da história, ao longo de três décadas. Sua cons-trução tem sofrido violentas agressões por parte dos donos de terra e da polícia, resultando em inúmeras mortes de camponeses militantes, líde-res presos e condenados por tribunais do Estado (SILVA, 2004).

Acusados como criminosos, os líderes do MST são notícias no Bra-sil. O MST critica o poder judiciário, que prendeu por três vezes o líder José Rainha em sentença de 10 anos, por invasão de terra. No intervalo de 2002 e 2003 foram expedidos 48 mandatos de prisão contra líderes do MST (O POVO, 4/3/2006, Brasil, p. 12). Outros exemplos dessa violenta repressão física: morte de 19 militantes, em 1996, no episódio conhecido como massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará (FOLHA, 2011); morte de militante no Rio Grande do Sul, em 2009 (ESTADÃO, 2009); assassi-nato de militante no Pará, em 2010 (CIRANDA BRASIL, 2010).

Contra a sociedade civil, a sociedade política, em diferentes países na região, o governo tem adotado essa política de criminalização dos movimen-tos sociais, descaracterizando a luta social e política aos movimentos e colo-cando-os na condição de bandidos comuns e caso de resolução da polícia.

As lutas do MST são, em geral, para a inclusão dos trabalhadores ru-rais no sistema social da posse da terra. A diferença fundamental, nesse as-pecto, é a natureza dessa posse que foge ao modelo capitalista e aproxima-se do coletivismo, portanto, da ampliação da “cidadania política” e da constitui-ção da “cidadania econômica” (CARLEIAL, 2006).

A luta pela terra coletiva combate a exploração do trabalho mostrando sua vitalidade no contexto da mundialização da expansão capitalista. Nessa linha política, o MST questiona o capitalismo em suas novas formas de ex-ploração, de subjugação da classe trabalhadora, e nega ao Capital legitimida-de e consentimento social. Sua ação transgressora das normas sociais, pelas ocupações diretas das terras improdutivas, privadas ou públicas, é uma de-

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sobediência civil que reforça o coletivismo, permite a acumulação ampliada do capital social e desfaz as relações de exploração e de propriedade privada.

Assim, o MST mantém uma prática de resistência contra a opres-são e a politização; é a marca desse movimento camponês. Resistir lutan-do pela terra coletiva, com os efeitos decorrentes sobre as sociabilidades, muda o poder, acrescenta algo novo na dinâmica democrática nacional e enfrenta contradições e interesses conflituosos.

As contradições provocadas pela ação do MST colocam o governo em oposição à direita que o questiona por apoiar os Sem-Terra, através de programas sociais e política parcial de redistribuição de terras, pelo Insti-tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) (REVISTA VEJA, 9 de março de 2005). O governo é pressionado, ao mesmo tempo, pela esquerda mais radical que o critica pelas medidas neoliberais adota-das e ausência de reforma agrária efetiva. No meio de forças contrárias, o governo brasileiro oscila, de um lado ao outro, no difícil movimento pela superação dos entraves políticos e econômicos.

Dessa forma, os movimentos sociais indígenas e camponeses na América Latina constituem importantes forças internas que se lançam contra a hegemonia das forças externas estadunidenses, aliados a grupos políticos locais, porque são movimentos politizados, plurinacionais, que ocorrem em redes de protesto e manifestação, abrangendo a luta cultural e a defesa de identidades, em diferentes países.

Os movimentos latino-americanos pela terra, camponês e indígena, não recolocam a dualidade entre campo e cidade, mas percebem a relação dialética entre produção agrícola e economia urbano-industrial como pro-cessos imbricados, interdependentes e complementares.

A politização consciente é a marca desses movimentos sociais anali-sados. Na atual fase do capitalismo, globalizado e militarmente expansio-nista, isso constitui uma novidade política. Esses novos sujeitos políticos se explicam por uma série de fatores que vão desde as características do desenvolvimento do capitalismo na atual fase mundializada, até a consti-tuição histórica das redes invisíveis de poder que vêm do interior da socie-dade, de diferentes lugares.

Aliada às históricas lutas desses movimentos sociais na América Latina, recentemente espetacularizados pelas mídias e pelos próprios su-jeitos, está a recuperação das economias locais e a formação de governos, distintamente, nacionais e populares, cujas práticas políticas percorrem ca-minhos da nacionalização de recursos naturais e voltam-se para a redução das desigualdades sociais.

Nesse sentido, notícia divulgada na Carta Maior, seção Internacional, de 13/11/2009, diz que “Equador e Bolívia são casos de sucesso em meio à crise global”, porque a Bolívia é o país que crescerá mais na região, devido

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a sua política de nacionalização dos hidrocarbonetos, o que implicará em desenvolvimento para as populações locais de maioria indígena e campone-sa. No caso do Equador, o Presidente Rafael Correa, entre outras medidas nacionalistas, recalculou a dívida externa do país e chegou a resultados que provam que a dívida estava ilegalmente contratada e exigiu a moratória em tribunal internacional. Renegociou seus contratos com empresas estrangei-ras de petróleo, recuperando sua economia. Tais imagens positivas da região corroboram com a ideia de revigoramento das economias na região.

Nem todas as relações entre os governos da região têm sido pacífi-cas. Há casos históricos e recentes de contradições, algumas com a busca de soluções diplomáticas exitosas, como foi o caso entre Brasil e Paraguai, na polêmica relativa à hidrelétrica binacional Itaipu. Ficou evidenciada a oposição secundária entre os dois países latino-americanos, pois se tratava de uma reivindicação paraguaia, que contrariava os interesses do governo brasileiro. O Presidente Fernando Lugo, do Paraguai, reivindicava o direi-to de vender livremente a cota de seu país, de energia gerada, para outros países, e a venda para o Brasil de acordo com os preços de mercado (DN, 9/5/2009, Nacional, p. 9).

Além dos movimentos sociais, do fortalecimento das economias locais e dos blocos econômicos e políticos regionais, as forças internas ainda dispõem da constituição e da consolidação de alguns governos de esquerda na região.

Os anos 2000, na América Latina, estiveram marcados por fortes mu-danças nos governos, com eleições livres, administrações nacionalistas (Ve-nezuela de Chávez), centro esquerda pragmática (Brasil do Lula), esquerda indígena (Bolívia de Evo Morales e Equador de Rafael Correa).

Uma das características dessa guinada à esquerda, mas não ao socia-lismo, é que alguns chefes de governo foram formados pelas classes trabalha-doras, operários e indígenas.

Essa mudança resultou em novo jogo de forças internas, ampliando os espaços políticos da sociedade civil. De que maneira? Com a aceitação pelas instâncias oficiais da participação popular, pelo reconhecimento dos direitos à manifestação dos movimentos de rua, pela incorporação de suas demandas na pauta das políticas públicas, mesmo quando essa aceitação dos movimen-tos sociais deu-se depois do uso da força policial contra os movimentos.

Algumas conclusões

Muitas são as contradições regionais que dificultam a constituição de uma força hegemônica interna à região, que a fortaleça contra as inves-tidas estadunidenses, país-chefe do capitalismo contemporâneo em crise.

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Mesmo com governos de distintos matizes neoliberais, nacionalis-tas e populares, na América do Sul, eles possuem interesses nacionais que entram em choque com outros países latino-americanos, além de mante-rem relativas ou ampliadas articulações subordinadas ao mercado e às for-ças econômicas expansionistas em contexto de crise e contestação social.

Injetar recursos públicos na economia tem sido medidas adotadas por todos os países envolvidos pela crise. Redimensionar investimentos para determinados setores em detrimento de outros também faz parte do leque de possibilidades de combate estatal à crise. Nesses aspectos, as contradições são exacerbadas e a crítica social pode vir à tona. As possibi-lidades de protestos e de revoltas populares podem ser tolhidas pela força policial do Estado, em prejuízo da democracia na região.

Essas invertidas para escapar da crise desnudam a natureza do co-lapso capitalista: taxa decrescente da ganância, contradições da expan-são capitalista, disputa entre capitais na corrida dos lucros, e incapaci-dades da especulação capitalista sobre as mercadorias. É uma crise que aponta para o desmonte do sistema, mas é apenas uma ponta do iceberg. Novas crises virão, pois o capitalismo tem crises cíclicas, permanentes, que manifestam sua essência contraditória, mas, também, um fôlego que permite sua reinvenção sistemática.

O papel do Estado no combate aos efeitos da crise recente não é ili-mitado. Existe certa autonomia relativa dos agentes econômicos em suas disputas e a competição entre capitalistas pode dificultar o desempenho de políticas reparadoras da crise. Os empresários querem ajuda do Esta-do, mas não querem que o Estado aumente seu poder sobre o mercado. Além do que existem também as contradições entre certos setores capi-talistas e o Estado representado pelo governo, em casos de governos de esquerda ou centro-esquerda.

Estamos, entretanto, diante de uma crise que, diferentemente, tem atingido o coração estadunidense, seu principal timoneiro, deixando em expectativa seus rumos e as possibilidades ou não de ser administrada por seus gerentes.

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RESISTÊNCIAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE CRISE

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A CONTEMPORANEIDADE DO PENSAMENTO DE CELSO FURTADO PARA A EMANCIPAÇãO DA AMÉRICA LATINAeduardo Girão santiago

Introdução

Durante o Fórum de Desenvolvimento realizado pelo Banco do Nordeste do Brasil – BNB, em 2005, o economista Paul Israel Singer afir-mou que nenhum intelectual brasileiro teve tanta relevância em termos da conciliação teoria socioeconômica e ação do que Celso Furtado.

O próprio Celso Furtado pronunciou-se acerca da relação teoria--ação da seguinte maneira: “Nós, intelectuais, que lidamos com idéias, não desconhecemos a importância da ação. Não fui outra coisa na vida senão um intelectual, mas sempre consciente de que os problemas maio-res da sociedade exigem um compromisso com a ação.”(GAUDÊNCIO e FORMIGA, 1995, p. 39).

A vida desse cientista social foi traduzida, efetivamente, por tomar as suas causas teórico-humanistas com afinco, sem sobressaltos, com lhaneza e elegância na convivência com os seus opositores. Pesquisar e conhecer para transformar. Assim é que, já no período 1949-57, quando ocupava o cargo de diretor da Divisão de Desenvolvimento da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina), Furtado contribuiu, ativamente, com o economista argentino Raúl Prebisch para a formulação do enfoque estru-turalista da realidade socioeconômica da América Latina. Esse pensador latino-americano afirmou em suas memórias que seus estudos e de Raúl Prebisch se referiam “à dinâmica do sistema centro-periferia e dos dese-quilíbrios estruturais engendrados nas economias periféricas pelo novo

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centro principal (Estados Unidos), que combinava elevada produtividade e protecionismo seletivo” (FURTADO, 1997, p. 156). Esses estudos assu-miram um forte tom de denúncia de uma situação intolerável a que eram submetidos os países exportadores de produtos primários. Tal estado de coisas, asseverou Furtado, era fruto de um sistema tradicional de divisão social do trabalho “que opera implacavelmente no sentido de criar servi-dões para os países da periferia” (FURTADO, 1997, p. 156). Estava cria-da, portanto, uma corrente teórica própria e adequada para compreender, dialeticamente, as relações socioeconômicas do Centro e da Periferia. A partir daí, indicar caminhos para o desenvolvimento dos países perifé-ricos, rompendo esta dinâmica, foi a trajetória de Celso Furtado, como intelectual e homem público que planejou e executou políticas. Enfim, “conhecer para transformar” foi a sua marca registrada.

Em vista desse preâmbulo, anunciamos que o sentido maior desse artigo, além de traçar um perfil da ação transformadora de Celso Furtado, é destacar, também, a profunda influência teórica e prática nas lutas eman-cipatórias da América Latina e, em particular no Brasil, seja na segunda metade do século XX, seja na primeira década do século XXI, período no qual o presente trabalho se deterá com mais ênfase, porque procurará res-saltar o quanto os dois governos do presidente Lula foram caudatários do pensamento furtadiano recente.

Nesta perspectiva, além de percorrermos os pensamentos fun-dantes para a superação do subdesenvolvimento dos países do Terceiro Mundo, encontrados na vasta bibliografia que o mestre Furtado cons-tituiu, dialogaremos, sobretudo, com a coletânea dos últimos pronun-ciamentos feitos por esse socioeconomista a partir de 1997 e que estão sistematizados no nosso artigo, intitulado “Profecias de um Combatente: recortes do pensamento recente de Celso Furtado”, que consta no livro “Celso Furtado e o Desenvolvimento Regional”, publicado pelo Banco do Nordeste do Brasil-BNB, em 2005.

Em suma, pretendemos elaborar um cotejo das predições e su-gestões recentes do ideário político e socioeconômico de Celso Furtado com as medidas adotadas pelos governos Lula no campo das transforma-ções sociais pelas quais passou o Brasil nos últimos oito anos.

O homem, as influências teóricas e sua obra

Celso Furtado, o cientista social latinoamericano mais lido em todo o mundo, nasceu em Pombal, no estado da Paraíba, em 26 de julho de 1920. No capítulo intitulado “Aventuras de um economista brasilei-ro”, do livro Obra Autobiográfica de Celso Furtado, o laureado economista

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afirma que o Nordeste brasileiro, onde nasceu, foi o núcleo mais antigo do povoamento do País. Após uma fase de prosperidade nos séculos XVI e XVII, a região entrou em declínio.

Para ele, o Nordeste onde nasceu e viveu a infância e adolescência era uma região marcada por conflitos e rivalidades entre grupos políticos e famílias locais, caracterizada por histórias de violência, de arbitrarieda-des, prepotências e pelo cangaço.

Era um mundo marcado pela incerteza e pela fatalidade, pelas ca-lamidades climáticas, constituindo-se campo fértil para o surgimento de milagreiros e chefes políticos carismáticos, como o Padre Cícero e João Pessoa.

Neste mundo restrito, Celso Furtado, filho de um juiz maçom que se esquivava da política como forma de manter a sua independência, des-de cedo, aos 14 anos, teve acesso à biblioteca do seu pai. Toma gosto pela literatura, conhecendo autores como Swift, Defoe e R. Stevenson. Graças aos seus conhecimentos de latim, a literatura o levou a conhecer muitos autores da língua portuguesa. Chegou a revelar que até os 30 anos pen-sou em ser escritor.

A biblioteca paterna possibilitou ao jovem Celso Furtado a primei-ra paixão intelectual, vale dizer, a História (FURTADO, 1997). Ela foi o ponto de partida para seus estudos, uma permanência metodológica visível em toda a sua obra. Isto foi tão forte que o próprio economista em foco chegou a afirmar que “o contato com a sociologia norte-americana corrigiu os excessos do meu historicismo”(FURTADO, 1998, p. 9).

Em sua obra autobiográfica, Furtado (1997) indica que as suas principais influências intelectuais foram calcadas em três eixos básicos. Em primeiro lugar, o positivismo, que lhe incutiu a primazia da razão, vale dizer, a ideia de que o conhecimento em sua forma superior se con-verte em conhecimento científico e, consequentemente, conduz ao pro-gresso. A segunda vertente de influência vem de Marx, por conta da His-tória. O economista paraibano adverte que foi por intermédio da leitura de “História do Socialismo e das Lutas Sociais”, de Max Beer, que passou a buscar um sentido para a História, enquanto prática metodológica in-telectual. Convém ressaltar a confluência da análise histórica e do po-sitivismo que conduz ao progresso na formação intelectual de Furtado:

Na sociedade estratificada e parada no tempo em que eu vivia, a idéia de que as formas sociais são históricas, portanto, podem ser superadas, per-mitia ver o mundo com outros olhos. Essa idéia, ligada à do conhecimento como arma do progresso, que vinha do positivismo, compôs no meu es-pírito uma certa visão do homem em face da história. Essa idéia permitia superar o círculo fechado do fatalismo e do absurdo, e ao mesmo tempo desembocava numa responsabilidade moral (FURTADO, 1997, p. 15).

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A partir desse momento, o planejamento foi para mim uma técnica social de importância muito maior, a qual permitia elevar o nível de racionalidade das decisões que comandam complexos processos sociais, evitando-se que surjam processos cumulativos e não-rever-síveis em direções indesejáveis. Fixou-se, assim, no meu espírito a idéia de que o homem pode atuar racionalmente sobre a História. Hoje me pergunto se não existe uma grande arrogância nessa atitu-de: imaginar que estamos preparados para dar um sentido à Histó-ria. (FURTADO, 1997, p.18).

Dos malabarismos verbais com que o professor procurava transmi-tir a idéia de utilidade marginal (o último pedaço de pão, o último copo de água...) ficou-me uma vaga impressão de jogos de espírito pueris. (FURTADO, 1997, p. 19).

A terceira linha de influência intelectual no pensamento furta-diano adveio da sociologia norte-americana, especificamente da teoria antropológica da cultura. A leitura de “Casa Grande & Senzala”, de Gil-berto Freyre, embora não tenha influenciado substantivamente Furtado na interpretação do Brasil, significou a atualização na sua metodologia de abordagem dos problemas sociais, porque introduziu aspectos culturais e antropológicos como novos instrumentais de trabalho. Ademais, como o próprio autor em estudo compreendia, a sociologia norte-americana viabilizava a utilização de esquemas teóricos desprovidos de preconcei-tos de raça, clima e cultura, ao contrário daqueles modelos conservado-res que consolidavam o fatalismo imobilizador.

A estrutura intelectual e a visão de mundo de Celso Furtado forja-das em sua juventude, com as três linhas de influência há pouco mencio-nadas, foram enriquecidas por ocasião da continuação dos seus estudos no Rio de Janeiro e Paris. A partir daí, segundo o próprio Furtado, a influência de Marx em sua formação se ampliou por intermédio da leitura dos livros de karl Mannheim sobre a sociologia do conhecimento. Acrescente-se a este cabedal intelectual o estudo da administração sobre o tema da organi-zação, mais precisamente, a direção da organização. Assim, Furtado perce-beu que a racionalidade da direção dependia do planejamento:

Celso Furtado, em suas revelações autobiográficas, afirmou que o estudo sobre o tema do planejamento o conduziu para a leitura da ciência econômica. Em pouco mais de dois anos, ainda na Universidade do Bra-sil, desvaneceu-se dos “encantos” dessa “ciência menor”, que para ele era destinada “para gente sem imaginação”. Dosando visão crítica com certa ironia, afirmou:

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Ao que tudo indica, a matriz inaugural da formação intelectual de Furtado demandou o seu interesse pela sociologia alemã de Weber, Tön-nies e Simmel em torno da teoria das organizações. Permanece ainda o seu interesse pela História, dessa feita, relacionada aos estudos de Hen-ri Pirenne, Sombart e Antônio Sérgio sobre as origens do capitalismo, a economia e a história portuguesa, tão presentes no seu livro clássico “Formação Econômica do Brasil”.

O efetivo interesse de Furtado se voltará para a macroeconomia. Assim, assimila Schumpeter e o seu enfoque sobre a importância do pro-gresso tecnológico. Em keynes, Furtado perceberá a influência estraté-gica do Estado como ente que toma decisões diretivas para o funciona-mento dos sistemas econômicos. Afirma em suas memórias que “todo capitalismo é em certo grau um capitalismo de Estado”. Foi a partir dessa ideia que Furtado pôde perceber o fenômeno da dependência econômica em sua natureza estrutural (FURTADO, 1997, p. 21). E foi em decorrên-cia disso também que ele percebeu que as estruturas podem mudar para além dos mecanismos econômicos que causam tantos “ilusionismos” nos economistas, em geral.

Assim, o que importa mesmo são os centros de decisão. Antes de se apropriar dos conhecimentos de economia, Furtado já percebera que não existe organização ou sistema sem coordenação e controle e, portan-to, devem existir centros de decisão para definir objetivos. Desta cons-tatação advém a forte crença que ele deposita no planejamento, porque este traz os objetivos explícitos ou implícitos na governança das nações. Nesta perspectiva, afirma Furtado, o planejamento, orientado para o di-recionamento político das economias faz ruir “o mito do laissez-faire, o qual nas economias subdesenvolvidas tem servido para sancionar e con-solidar a dependência.” (FURTADO, 1997, p. 25).

As predições de Celso Furtado: suas profecias para o Brasil e para a América Latina

Em memorável artigo no livro “50 Anos de Formação Econômica do Brasil” (ARAÚJO, WERNECk VIANNA E MACAMBIRA, 2009, p. 14-21), César Benjamin, parodiando o general De Gaulle, que cunhou a frase “uma certa ideia de França” como referencial de resistência contra os nazistas invasores, evocou, também a frase “uma certa ideia de Brasil” como estratégia de passagem do “Brasil-empresa-para-os outros” para o “Brasil nação-para-si”. Este intelectual resgatou, assim, toda uma trajetó-ria de vida e ação política de Celso Furtado em relação ao Brasil, median-te a crença eterna e estrutural no Estado Nacional.

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Daqui em diante, portanto, este artigo trará à tona uma coletânea de ideias-força emitidas desde 1997 que serão relacionadas com alguns êxitos específicos dos oito anos do Governo Lula. Este conjunto de ideias profe-ridas pelo mestre Furtado, ao que tudo indica, poderá ter sido um brado permanente e coerente que norteou a mudança do paradigma ortodoxo da economia para um padrão heterodoxo e mais voltado para a construção de um projeto nacional compatível com “uma certa ideia de Brasil”.

Para consubstanciar o projeto nacional de desenvolvimento, o pensador social paraibano assim se referiu sobre o tema da soberania latino-americana e a Área de Livre Comércio das Américas – ALCA:

A ALCA é se entregar aos americanos. Todo mundo sabe disso. O Brasil tem que ter um projeto próprio. O Brasil é grande, tem quase 200 milhões de habitantes, tem um potencial de recursos enorme, e é o único país do mundo que tem abundância de terras férteis e uma população querendo trabalhar na agricultura. O Brasil tem muitos trunfos e isso faz com que seja tão visado. Posso testemunhar que, se há um país que conta e que preocupa todo mundo, grande e pe-queno, é o Brasil. (Entrevista à Revista Universidade Pública. For-taleza – UFC, ano I, n. 3, out/nov., 2000).

A ALCA é a renúncia à soberania nacional. É preciso entender isso. Se há uma coisa a qual você não pode renunciar é a soberania, porque, se você tem um pouco de soberania como tem o Brasil ainda, pode ter uma política econômica que responda às necessidades e aspirações do povo. Mas, se estiver enquadrado pela ALCA, as grandes empresas é que vão traçar a política econômica do Brasil. As grandes empresas que já são poderosíssimas no Brasil, vão ficar ainda mais poderosas. É o seguinte: a gente tem hoje um setor muito importante de empresas internacionais, que pesam positivamente no PIB brasileiro, como a in-dústria de automóveis, a de equipamentos etc., mas essas empresas não atendem aos requisitos da prioridade nacional, não atuam a partir de uma visão global da economia brasileira, elas são comandadas pela ra-cionalidade típica de qualquer empresa: o lucro. O que é racional para a Ford é que, se necessário, ela fecha a fábrica aqui e passa para outro país. Você tem de partir da seguinte questão: somos ou não um sistema eco-nômico? Se somos um sistema econômico, temos uma lógica própria e essa lógica não combina com nenhuma racionalidade internacionaliza-da. (Entrevista a João Paulo Stedile, Plínio Sampaio Jr. e José Arbex Jr. à Revista Caros Amigos. São Paulo, ano VI, n. 71, fev., 2003).

Nada é mais característico no pensamento furtadiano do que a sua acendrada noção de soberania. Entendia que a ALCA seria algo extrema-mente adverso aos interesses do Estado Nacional brasileiro:

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Já no início do primeiro mandato, o Brasil desempenhou papel im-portante para inviabilizar o projeto neocolonialista da ALCA. Lula incrementou as relações bilaterais com os países da região, visitando ou recebendo todos os chefes de Estado sul-americanos, sendo inú-meras as iniciativas postas em prática nesse sentido – MERCOSUL fortalecido e ampliado, Unasul, Conselho de Defesa, Banco do Sul, Comunidade de Estados Latino-americanos e caribenhos, entre ou-tras. Nesse marco cresceu o protagonismo brasileiro na luta contra as ingerências externas, a instalação de bases militares estadunidenses, os golpes, assim como estreitaram-se os laços com países revolucio-nários e antiimperialistas, nomeadamente Cuba, Venezuela e Bolí-via. (Carvalho, In: Revista Nordeste Vinte Um, 2010).

A par do pensamento histórico do mestre Furtado há pouco mencio-nado, convém, agora, cotejá-lo à efetiva política externa do Brasil, a partir do primeiro governo do Presidente Lula. Tudo leva a crer que o pensador paraibano foi ouvido. Na avaliação de José Reinaldo Carvalho (Revista Nordeste Vinte Um, 2010), o êxito da política externa desencadeada por Celso Amorim pautou-se na luta pelo desenvolvimento nacional, pela afir-mação da soberania, num mundo eivado pelo espectro e ameaças da globa-lização financeira e pela política das nações centrais, marcadamente pelo imperialismo dos Estados Unidos e seus aliados.

Ainda na opinião de Carvalho, a política externa posta em prática no início de 2003 foi autônoma, pacifista e democrática “ideologicamente vin-culada ao nacional-desenvolvimentismo, às melhores tradições da diplo-macia brasileira”. O jornalista em destaque assevera que a política externa brasileira não mais considerou o Brasil um país dependente e subordinado aos Estados Unidos. Ainda que vulnerável, a política do ministro das re-lações exteriores projetou um país em transição para o status de potência emergente, mediante posição “ativa e altiva”.

As marcas do universalismo e do multilateralismo conduziram o Bra-sil para o caminho da reformulação das Nações Unidas, a democratização e reestruturação das suas instâncias. Ainda na ótica de Carvalho, “o univer-salismo e o multilateralismo da política externa brasileira ganharam fôlego com o estabelecimento de parcerias estratégicas com a China, a Rússia, a Ín-dia e a África do Sul e a atenção dedicada ao Oriente Médio”.

Mas foi para a estratégica atenção para a América Latina que a po-lítica externa do Governo Lula envidou o seu maior esforço. Carvalho acentua que “foram inúmeras as iniciativas para fortalecer as relações com os países do entorno, como para levar adiante e consolidar o pro-cesso de integração em curso, especialmente o MERCOSUL”. No que concerne ainda à política externa do Governo Lula, de nítida influência furtadiana, convém transcrever a opinião de Carvalho em sua íntegra:

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Um país dotado de imensas reservas naturais e de mão-de-obra aplica uma política que se satisfaz com uma taxa de crescimento próxima de zero. Não é fácil descobrir as causas desse processo, mas devemos reconhecer que ele tem origem ou é reforçado pelo chamado Con-senso de Washington, que não passou de um receituário neoliberal a serviço da consolidação da política imperial dos Estados Unidos. (Celso Furtado, In: Jornal do Brasil, nov., 2004).

Convém anunciar as predições furtadianas a respeito do Consen-so de Washington e do imperialismo norte-americano, naquele que foi o último artigo de Celso Furtado:

Como decorrência desta observação, o pensador social em estu-do revela, em suas predições, que a política imperial dos Estados Unidos sempre teve como estratégia ampliar o endividamento externo do Brasil. Ora, se os ativos internacionais no País, mesmo nas mãos dos brasileiros, são títulos estrangeiros e os investimentos em moeda estrangeira no Bra-sil crescem rapidamente, significa que o patrimônio das empresas aliení-genas, mais os investimentos internacionais, comporão a totalidade da renda nacional.

Assim, segundo Furtado (2005, p. 175), “o país fica uma província, não pode ter governo próprio. É preciso que haja uma reação no Brasil, principalmente do pessoal jovem, que acredita que tenha vida para vi-ver.” Convém lembrar que, no livro “A Hegemonia dos Estados Unidos e o Subdesenvolvimento da América Latina” (1978), Furtado já advertia que “a margem de autodeterminação na busca de meios para enfrentar os problemas do subdesenvolvimento tendeu a reduzir-se, na medida em que os imperativos da ‘segurança’ dos Estados Unidos exigiram crescen-te alienação de soberania por parte dos governos nacionais”.

A par de todo o conjunto do pensamento emancipacionista de Cel-so Furtado para os países subdesenvolvidos, entendemos que a política externa brasileira e a autoafirmação do País, de nítida influência furta-diana, foram exitosas nos governos Lula. Já demonstramos isto. Para re-forçar esta evidência, convém, entretanto, destacarmos o artigo de Celso Amorim na Revista Carta Capital de 27 de julho do corrente ano, no qual revela as surpreendentes observações do Conselho de Relações Exterio-res dos Estados Unidos a partir de estudos de uma força-tarefa reunidos em um relatório exclusivo sobre o Brasil. Diz o documento que “O Brasil é e será uma força integral na evolução de um mundo multipolar” e que “A Força-Tarefa (em maiúscula no original) recomenda que os responsá-veis pelas políticas dos Estados Unidos reconheçam a posição do Brasil como ator global”.

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O documento em destaque apregoa, também, uma “relação mais ampla e madura” dos Estados Unidos com o Brasil, além de sugerir que “as inevitáveis discordâncias sejam tratadas com respeito e tolerância”. Por fim, convém destacar que o estudo em apreço alerta que os Estados Unidos deverão ajustar-se a um Brasil mais afirmativo e independente. E mais, a força-tarefa “recomenda que a administração Obama endosse plenamente o Brasil como um membro permanente do Conselho de Se-gurança das Nações Unidas”.

O intuito deste artigo tem sido estabelecer uma relação direta das análises, recomendações e prognósticos formulados pelo mestre Furta-do com as políticas socioeconômicas adotadas pelos governos Lula. Se o Brasil galgou prestígio no conturbado cenário internacional nos últi-mos oito anos foi, segundo nosso juízo, em decorrência das profundas mudanças imprimidas ao papel do Estado Nacional Brasileiro. E Celso Furtado contribuiu sobremaneira para isso. Senão vejamos, consoante as seguintes predições:

1. “Não existe uma civilização que não tenha se organizado a partir de um Estado. O Estado é, na verdade, a vontade coletiva institucionali-zada. Se você não tem isso, alguém toma conta. Essa consciência de exis-tir com autonomia, existir como brasileiro é uma coisa que pode desapa-recer. O espaço brasileiro sempre existirá, mas o imaginário brasileiro, a cultura brasileira, o Brasil como nação, isso poderá desaparecer. É isso que está em jogo e que a juventude pode corrigir.” (Entrevista com Celso Furtado. Revista Universidade Pública. Ano I, n.3, out./nov., 2000).

2. “O Estado Nacional é o instrumento privilegiado para levar adiante uma política de reconstrução estrutural. O desafio está em com-patibilizar a ação estatal disciplinadora dos fluxos monetários e financeiros com o processo de globalização de crescente autonomia. Temos que reco-nhecer que o Brasil está empenhado, sob a liderança de V. Exa. (referindo--se ao presidente Lula), em uma luta grande de transformação. Diria eu, para simplificar, que essa luta compreende pelo menos três frentes de ação: primeiro, o problema da fome e da exclusão social, já tão bem formula-do por seu governo. Em segundo lugar, os investimentos necessários ao aperfeiçoamento do fator humano, a fim de ampliar a oferta de pessoal qualificado; e em terceiro lugar, a submissão do processo de globaliza-ção às prioridades do mercado interno. (grifos nossos). Significa que o projeto de desenvolvimento do Brasil tem que partir das potencialidades do mercado interno, e não pensar que basta exportar para resolver o pro-blema brasileiro” (Discurso de Celso Furtado na cerimônia de recriação da SUDENE, na sede do Banco do Nordeste do Brasil – BNB, 2003).

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3. “O Estado continua a crescer no mundo inteiro. Há poucos dias, eu estava vendo algumas estatísticas. Nos países desenvolvidos em que houve a participação do Estado na economia, registrou-se crescimento nos últimos anos. Portanto, dizer que o Estado está desaparecendo é uma bobagem. Mas é preciso modificar a orientação da ação do Estado. Ago-ra, todo mundo está percebendo e repetindo isso. A economia moderna depende essencialmente de uma ação adequada do Estado. O difícil é des-cobrir que ação seria a mais oportuna e necessária.” (Entrevista de Celso Furtado a Aspásia Camargo e Maria Andréa Loyola, UERJ, 2002).

4. “O desafio do Brasil é criar um modelo novo, que permita, por exemplo, viver com menos urbanização. Fazer crescer as grandes cidades no Brasil é um absurdo. Não tem emprego, só criminalidade. O grande problema do Brasil é encontrar um modelo próprio. Ou seja, ligar a utiliza-ção potencial de seus recursos com a criação de emprego e com a melhoria das condições de vida e do fator humano. O grande atraso do Brasil está em ter investido pouco no homem. É impressionante o baixo nível de for-mação do trabalhador brasileiro”. (Entrevista com Celso Furtado. Revista Universidade Pública, ano I, n. 3, out./nov., 2000).

O fio condutor interpretativo dos preceitos apresentados por Celso Furtado, no que respeita à capacidade de ação de um Estado Nacional li-vre das amarras do neoliberalismo, foi delineado nos quatro itens há pouco apresentados. A seguir, apresentaremos um conjunto de ações desencadea-das pelo Governo Lula, de franca inspiração nas predições furtadianas. Na apreciação do jornalista Luiz Carlos Antero, exposta na edição nº 17 da Revista Nordeste Vinte Um, o período dos dois governos de Lula foi ca-racterizado, fundamentalmente, pelo fato de conter o desmonte do Estado e promover o resgate da soberania. Assim, foi posto em prática um projeto nacional de desenvolvimento que contemplou crescimento econômico, distribuição de renda e justiça social.

Assevera ainda que o Estado, na era Lula, induziu programas sociais e intensificou outros no âmbito da Previdência Social. A luta contra a fome, por intermédio do Programa Bolsa Família, culminou com 27,9 milhões de pessoas que saíram da pobreza absoluta. A desnutrição infantil dimi-nuiu 61% de 2003 a 2008. Segundo esse jornalista, a taxa de desemprego alcançou o seu patamar mais baixo das últimas décadas, vale dizer, 6,1%.

Isto significou uma performance excepcional em termos de geração de novos empregos. Pela primeira vez, num período de décadas, o contin-gente de mão-de-obra ocupada em atividades formais superou o de ocu-pações informais. No âmbito da agricultura familiar foram assegurados a oferta de crédito adequado ao setor, a garantia de compra da produção,

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luz elétrica e programas socioeconômicos de base microrregional como os Territórios da Cidadania.

Pelos inquestionáveis êxitos obtidos na área social, o presidente Lula conquistou o prêmio “Estadista Global”, promovido pelo Fórum Econômi-co Mundial em Davos. Mais uma vez ecoava uma das predições de Celso Furtado, já mencionada neste artigo, no sentido de que uma das priorida-des do Brasil deveria ser o combate à fome e à pobreza. Não foi em vão que Lula afirmou, por ocasião do recebimento do prêmio: “A melhor política de desenvolvimento é a luta contra a pobreza”.

Na área da educação, especificamente no ensino superior, o gover-no Lula conseguiu índices de crescimento nunca vistos na história. Em oito anos de governo surgiram 14 novas universidades e 126 campi no in-terior do País. Sem falar em 214 novas escolas técnicas. Ademais, graças ao ProUni (Programa Universidade para Todos), cerca de 750 mil jovens, negros, indígenas e moradores de periferias estão tendo acesso ao ensino superior. Esta política, a nosso juízo, toca diretamente nas profecias do mestre Furtado, quais sejam, o redirecionamento do desenvolvimento fora das grandes cidades e a formação de recursos humanos, nos níveis superior e técnico-profissionalizante.

É preciso que se registre este fato. Até mesmo o jornal “O Povo”, costumeiramente hostil nas críticas ao governo Lula, reconheceu que, no campo da educação superior e das escolas técnicas, houve uma “dife-rença brutal entre os governos Lula e FHC”. Reconheceu este jornal que Lula colocou o ensino superior de novo nas mãos do Estado, proporcio-nando a presença da universidade nos rincões mais remotos. (Jornal “O Povo”, 13/06/2010).

Na visão da economista Tânia Bacelar de Araújo, a marca impor-tante dos oito anos do governo Lula foi a retomada gradual de políticas nacionais que, aos poucos, desmontaram o neoliberalismo no Brasil. Isto ajudou a consolidar a mesma tendência em países da América Latina. Para ela, o êxito desse período de governo foi a adoção de políticas sociais em geral, com destaque para a política de combate à fome e à pobreza. Somem--se a isso, ainda, a política de reajuste do salário mínimo e o alargamento do acesso ao crédito.

Mesmo considerando que as políticas tipicamente regionais não avançaram o esperado nos oito anos de governo Lula, Tânia Bacelar, em artigo intitulado “O governo Lula e o Nordeste”, publicado no jornal “O Povo”, em 26/12/2010, asseverou que as mudanças na política da Petro-bras influenciaram bastante na dinâmica econômica do Nordeste. Isto porque a decisão estatal de investir em novas refinarias e na retomada da indústria naval brasileira culminou com o fato da instalação de vários estaleiros na região.

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Tânia Bacelar, não só no artigo a que nos referimos, mas em quase todas as palestras proferidas sobre desenvolvimento regional, tem des-tacado a ampliação dos investimentos em infraestrutura (Programa de Aceleração do Crescimento – PAC), em todo o País e no Nordeste tam-bém, como a interligação de Bacias, a construção da ferrovia Transnor-destina e o aeroporto da Região Metropolitana de Natal, dentre outras.

Mais uma vez, uma fonte altamente qualificada como a professora Bacelar reconheceu, no artigo há pouco referido, que a política de am-pliação das universidades federais e a expansão da rede de ensino profis-sional foram políticas de larga repercussão no País e no Nordeste, marca-damente nas cidades médias.

Conclusão

No entender de Araújo (2010, p. 26), com a adoção de uma nova con-cepção de Estado Nacional, o período Lula adotou políticas estratégicas e desenvolvimentistas. Interrompeu as privatizações e recompôs a capacida-de de investimentos das estatais como Petrobras, BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Banco do Nordeste, além de empresas federais como Eletrobras, Correios, Infraero, dentre outras. Segundo este pesquisador, o segmento estatal foi fundamental para a retomada do desenvolvimento brasileiro e para o enfrentamento da crise econômica mundial. Convém registrar a criação de uma nova estatal para gerir o futuro do pré-sal, po-tencial energético descoberto graças à ação de outra estatal, a Petrobras.

O certo é que, como previra Celso Furtado, o estado passou a ter papel ativo na economia e nos programas desenvolvimentistas, como o PAC, o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida.

Ainda segundo Araújo (2010, p. 27), o período Lula interrompeu o desmonte do Estado e voltou a contratar servidores para os campos da educação, segurança pública e demais setores estratégicos. Retomou o caminho da industrialização brasileira.

Nada foi mais simbólico para o resgate do papel desempenhado por Celso Furtado e da gratidão do governo Lula a ele do que o lança-mento ao mar de um navio petroleiro que recebeu o seu nome, no dia 24 de junho de 2010, fabricado pelo estaleiro Mauá.

Retomemos o pensamento de Benjamin (2009, p. 25) acerca de “uma certa idéia de Brasil”, que Furtado, em vida, tanto se empenhou e lutou por ela. Fiquemos, pois, com a reflexão conclusiva de Benjamin: “Ou o povo brasileiro, movido por uma idéia de si mesmo, assume pela primeira vez o comando de sua nação, para resgatá-la, reinventá-la e de-senvolvê-la, ou assistiremos neste século ao desfazimento do Brasil”.

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Celso Furtado, denominado por Francisco de Oliveira como um dos “demiurgos do Brasil” passou toda a sua vida política e intelectual a bradar “por uma certa idéia de Brasil”. A grande mídia nunca lhe deu ou-vidos, queixou-se ele a Vladimir Safatle, em entrevista meses antes de sua morte e publicada na edição de 1º de dezembro de 2004 de Carta Capital. Após a reprodução de ideias e predições do mestre Furtado, que se torna-ram realidades na era Lula, cabe-nos repetir a certeira frase de Benjamin: “Os discursos de quem viu”, dizia o Padre Vieira, “são profecias”.

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A CONTEMPORANEIDADE DO PENSAMENTO DE CELSO FURTADO PARA A EMANCIPAÇÃO DA AMÉRICA LATINA

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A COLONIALIDADE DA NAÇãO CEARÁ: TESTEMUNHOS DE UMA IDENTIDADE NEGADAPedro vítor Gadelha Mendes

Gilberto Freyre inaugurou no seu livro “Casa-Grande & Senzala” o que viria a ser conhecido como “democracia racial”. Essa ideia defende a não existência do racismo no Brasil em comparação a outras sociedades reconhecidamente racistas, como é o caso dos Estados Unidos. Ela par-te da explicação de Gilberto Freyre sobre o processo de miscigenação do povo brasileiro, em que escravos e senhores teriam construído relaciona-mentos amorosos e fraternais, diferente de outras povoações colonizadas. Essa aproximação histórica teria criado uma população em que brancos e negros, além de miscigenados, mantêm uma permanente relação amistosa. Essa proximidade se configuraria futuramente em um povo tão miscigena-do que seria confuso definir quem pertence à raça branca e quem pertence à raça negra.

O fim do racismo foi assimilado e divulgado pelos regimes naciona-listas posteriores ao lançamento do “Casa-Grande & Senzala”, principal-mente pelo Estado Novo e pela Ditadura Militar. Esses regimes procura-ram construir uma identidade brasileira, um constructo que ajudasse na ideia de brasilidade nata. Negar a polaridade entre brancos e negros ao pas-so que se forja uma identidade mestiça convinha com o ideal nacionalista de centralização e naturalização de um ser brasileiro. A democracia racial foi propalada por todo o território. O discurso que nega o racismo na rea-lidade brasileira continua sendo acolhido e reproduzido pela maior parte dos veículos de mídia deste País. O não reconhecimento de um problema inviabiliza a busca de sua solução. Recorrer o do racismo tende a agravar a exclusão racial no Brasil.

No Brasil, em particular, a mestiçagem se dá entre vontades vertica-lizadas dentro das teias das relações sociais. Ela acontece entre os poucos representantes da metrópole e uma grande multidão de mulheres indígenas e negras, quase sempre escravizadas. A liberdade sexual destacada por Gil-berto Freyre (1980) quando ele sugere a disposição do senhor de escravos

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em ir até a senzala “fazer amor” com alguma de suas cativas, não era permi-tida a nenhuma escrava que quisesse procurar seu senhor na casa-grande, se é que tal interesse pudesse existir. Neste contexto, a miscigenação não acontece por ausência de racismo, mas sem dúvida está relacionada a um racismo distinto do aplicado pelo colonialismo hegemônico.

A miscigenação pelo português colonizador não surge do homem negro com a mulher branca, mas quase completamente do homem branco com a mulher negra, fato que expõe, além do elemento racial colonialista, a intersecção com as estruturas sexistas que ainda hoje se fazem presentes. A mestiçagem deu origem ao mulato, à incorporação de um agente que sub-verteu o racismo puro, fazendo surgir um racismo sem raça, um racismo difícil para os colonizadores acostumados ao posto em prática no mundo anglo-saxônico e para aqueles com uma noção mais imediata de raça. A mestiçagem inaugura um racismo de gradação, em que negros podem ser mais ou menos discriminados a depender da sua proximidade com o fenóti-po comum ao africano subsaariano ou da manifestação de traços europeus.

O racismo como instituição colonial no Brasil adquire novos pa-drões distintos do colonialismo anglo-saxão. O racismo, nas colônias ingle-sas, está relacionado à genealogia. A própria concepção racista pressupõe a descendência como perpetuadora das desigualdades sociais e evolutivas entre uma etnia e outra. No entanto, a mestiçagem brasileira subverteu esse conceito. Numa população onde todos, em algum grau, são mestiços, a genealogia se tornou um ponto irrelevante.

O racismo brasileiro é, essencialmente, um racismo de marca, no qual o que conta para a aplicação dos processos de exclusão é o fenótipo de de-terminado indivíduo e o grau de proximidade dele com o fenótipo puro da etnia discriminada. É a marca que cria, principalmente, dois grandes grupos identitários no Brasil: os negros e os brancos. Na verdade, a mestiçagem não rompeu a linha que separa negros de brancos: apenas a tornou menos simpló-ria do que os limites demarcados pelo colonialismo anglo-saxão.

Para tratar do racismo, pressupõe-se a existência de distintas raças. Apesar de todo o consenso na ciência contemporânea de que raças ou su-bespécies não existem biologicamente na espécie humana, esse valor conti-nua não sendo apropriado pelas sociedades historicamente marcadas pelo racismo. Por isso o conceito de raça aqui debatido é entendido como cons-trução social. Além disso, abordo o conceito de “racismo” em suas duas expressões: na material e na simbólica. A expressão material de racismo significa a dominação sistemática de um grupo racial por outro, adotan-do o sentido de sistema, na conceituação de Joel Rufino dos Santos, como “um conjunto de idéias e práticas, pessoais e coletivas, de pequeno e longo alcance” (Santos, 1984). A expressão simbólica do racismo diz respeito à própria origem da ideologia racista, ou seja, a crença na superioridade natu-

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ral de um grupo racial sobre outro. Como instituição colonial, é do racismo que se vale o colonizador para justificar cientificamente a hierarquia das ra-ças, mobilizando para isso desde as Ciências Sociais à Antropologia física, saberes europeus que gozavam de prestígio suficiente para serem conside-rados neutros e imparciais. Diante disso, infiro que o Brasil constitui uma sociedade racista “na medida em que a dominação social de brancos sobre negros é sustentada e associada à ideologia da superioridade essencial de brancos” (Baptista da Silva e Rosemberg, 2008).

Para kabengele Munanga, foi posto em construção no Brasil, por meio da pressão da elite dirigente, um modelo de identidade nacional sin-crético e não democrático. Esse modelo foi assimilacionista (Munanga, 2010), pois tentava encaixar num projeto de identidade nacional diversas identidades, mesmo tomando uma postura eurocêntrica nesse processo. Tanto a cultura dos povos nativos quanto a dos que aqui foram trazidos pela força foram inibidas a manifestarem-se frente à nova cultura nacional. Adotando a ideologia da elite nacional, o projeto de identidade brasileira se voltou para o ideal de branqueamento da população, o que obrigou negros e mestiços que queriam escapar dos efeitos da discriminação racial a perse-guirem esse ideal individualmente.

A idéia de uma nova etnia nacional traduz a de uma unidade que res-tou de um processo continuado e violento de unificação política por meio de supressão das identidades étnicas discrepantes e de opressão e repressão das tendências virtualmente separatistas, inclusive dos movimentos sociais que lutavam para edificar uma sociedade mais aberta e solidária (Munanga, 2010).

Os nacionalismos até então defendidos pelo Estado no Brasil se dei-xaram desembocar no racismo justamente por silenciar as vozes de outras culturas em detrimento de um grupo étnico em especial, reproduzindo uma situação de colonialidade interna. É com o colonialismo interno perpetuado no Brasil que atuaram as enunciações e os silêncios na formulação de uma identidade nacional excludente e racista. Isso se reflete na força da própria “colonização” empreendida pela elite local no Brasil, uma colonização que pode ser ilustrada com o fato de ter sido o Brasil o último país no mundo a abolir o regime de escravidão de africanos e seus descendentes. Um escravis-mo criminoso (Cunha Júnior, 2008) em que a dominação de afro-descen-dentes negros se estendeu para além dos escravos, recaindo também sobre mulheres e homens negros livres. A identidade negra sempre foi ignorada pelos projetos nacionalistas no Brasil, seja questionando a sua existência enquanto povo e enquanto seres humanos, seja negando a sua condição de oprimido, diluindo a sua cultura numa identidade nacional forjada.

No Ceará, uma peculiaridade histórica dinamitou a força que o

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discurso democrata racial encontrou na maior parte do País. No final do século XIX, o Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, a exemplo dos institutos históricos espalhados pelo País, procurou integrar a até então província à história da civilização (Oliveira, 2001). Para isso, buscou-se construir uma identidade cearense, um conjunto de elementos e práticas sociais que sintetizassem certa natureza cearense iniciada com a chegada dos portugueses ao território. Junto aos euro-descendentes, foram soma-dos a essa identidade os indígenas que cooperaram com a colonização por-tuguesa. Assim construiu-se a identidade cearense mestiça: civilizados por serem euro-descendentes e legítimos sobre o território ocupado por serem descendentes dos índios que ali viveram.

Diferente do ideal de democracia racial construído para o Brasil, o mestiço cearense, segundo o Instituto, seria fruto somente de duas matri-zes: a indígena e a portuguesa. Os historiadores do Instituto, ao conside-rarem que a presença do escravo foi ínfima na história do Ceará, negam o componente afrodescendente em suas contribuições físicas e culturais para a Pátria Ceará. Ainda que a presença escrava fosse de fato irrelevante, o que não é unanimidade entre os historiadores, os intelectuais do Instituto in-correram em um equívoco ao relacionar diretamente o escravizado com o negro. Uma confusão que é reproduzida até hoje e dissemina uma ideia não correspondente à realidade: a de que no Ceará a presença afro-descen-dente foi irrelevante. Nega-se no Ceará a presença de um pressuposto da democracia racial: a existência de negros na população cearense. Se não há negros, não há sequer a problemática que a democracia racial busca descre-denciar: o racismo antinegro (Cunha Júnior, 2008).

Buscando ter contato com diferentes percepções sobre os racismos existentes no Ceará, realizei entrevistas com pesquisadores negros de questões ligadas à afrodescendência e negritude no Ceará e com estudan-tes negros do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Para facilitar o pertencimento de cada entrevistado a um grupo específico, identifico neste trabalho os pesquisadores pela letra P, enquanto a declara-ção dos estudantes é seguida pelas letras CS. Busquei com os entrevistados depoimentos que comprovassem a permanência do discurso que nega a presença negra no Ceará. Após se identificarem como negros e negras, per-guntei qual era a reação da maioria das pessoas diante do seu reconhecer--se negro. Considero este um dos dados mais importantes de minha pes-quisa: todos, sem exceção, narraram a ocorrência frequente e constante de um comportamento negador de sua identidade negra, o que levava, quase sempre, à sugestão de substituir-se o “negro” por “moreno”. Este mesmo discurso se mostrou muito presente quando eu pedia para os entrevistados diferenciarem o racismo sofrido no Ceará do racismo sofrido em outros estados da federação já visitados pelo entrevistado.

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Nos outros Estados, por exemplo, o que perdura mais é que nós não somos racistas, que tem a democracia racial. Aqui não. Aqui é: não tem negro. Aqui é bem mais porque aqui é a invisibilidade. Nos ou-tros “ah, vocês existem e nós estamos numa boa! Vocês estão aqui, mas estamos todo mundo igual. Se sinta acolhido”. Aqui no Ceará eles dizem “não, vocês não existem. Vocês não estão juntos com a gente porque não tem! Se vocês tivessem, até a gente ia olhar para vocês, mas vocês não tem!”. Então nem sequer o degrau, o mito da democracia, vai ter! Porque lá na democracia racial parte do pressu-posto que existe! Não tem desigualdade, né? Mas os negros estão lá, não está todo mundo igual. Aqui no Ceará não! Aqui não tem! - Zel-ma Madeira, 42, P.

No meu caso eu vejo muito isso... Tenho amigas que por terem pai ne-gro e mãe mestiça não se consideram negras. É muito comum, prin-cipalmente na periferia. Fora dos âmbitos da academia... dos muros. Dos muros belos da academia. - Marcos de Sousa Silva, 29, CS.

Existe aquela coisa: “Não, você não é, você não é negra!”. Porque o pessoal tem muito aquela ideia de que o negro é aquele tição mesmo, aquele bem preto. Então isso já dificulta. (...) Mas, eu não sei se você reparou que quando você chegou naquela abordagem inicial de on-tem e a karen chegou e disse: “Não, você não é preta não”. Ela disse “Tu é amarela”, não sei o que... - Débora Vaz Costa, 21, CS.

Eu acho que o Ceará tem esse problema grande de não se reconhecer. Porque o cearense reconhece um Ceará moreno, um Ceará mestiço, um Ceará índio, caboclo, e aí quem é negro fica sem saber o que é. E acaba se dizendo mestiço, moreno, caboclo, menos negro. Fica difícil. - Ma. Auxiliadora Holanda, 50, P.

Esta negação não só parte de brancos. Ela chega a ser internaliza-da pelas próprias vítimas do racismo. Todo um processo de reconheci-mento identitário é descredenciado pela ideia que diz não existir negros no Ceará. Quando justificada, essa ideia apela para indícios históricos, evidências que “comprovam” a não existência de negros em nosso Esta-do; explicações que reproduzem as conclusões do que foi produzido no Instituto Histórico do Ceará no final do século XIX. Esse processo de negação da identidade negra soma-se a instituições como a branquidade normativa (Baptista da Silva e Rosemberg, 2008), que desnaturaliza a presença negra nos veículos de mídia no Brasil. A estereotipia de per-sonagens negros nas mídias brasileiras também contribui para a cons-trução de uma visão negativa sobre o negro. Tudo isso, somado a um discurso que nega a presença negra no Ceará, dá vazão a um processo que começa desde a infância:

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De onde eu vim, no meu colégio, e até mesmo onde eu moro, as pes-soas com pele mais escura são “moreninho”, “negrinho”, mas nunca chega e diz: “eu sou negro”. Eu tenho uma sobrinha que ela é mo-rena, e quando ela era pequena, ela dizia: “não, eu num sou negra não, eu sou branquinha”. Ela era pequeninha ainda, mas ela já era moreninha. - Marcela Andrade Lucena, 20, CS.

O cara, político, principalmente historiador. Aí ele: “Não, você não é negro, não. No Ceará não existe negro”. E não só ele: eu vi outras pessoas falarem e eu “porra... Não tem negro para você, porque você é branco e não sente, né?”. Porque só quem sabe que existe negro no Ceará são os negros, né? Uma parcela da população que vive e que sofre com um processo cultural que possibilitou, que fabrica e que produz essas formas de discriminação nesse sentido de desconstruir a identidade do outro, colocar a identidade do outro menor que a sua identidade. - Marcos de Sousa Silva, 29, CS.

Os mais capacitados a sentir o peso do racismo são aqueles que ar-cam com o ônus desse sistema. Talvez por isso tenha ficado claro nos de-poimentos que os interlocutores mais convictos da não existência de ne-gros no Ceará são os brancos.

Assim como o restante do Brasil, o Ceará foi colonizado por portu-gueses. Diferente do colonialismo hegemônico representado pela Inglater-ra, o colonialismo português instituiu um racismo tolerante à mestiçagem. Enquanto no racismo do colonialismo anglo-saxão a origem determina quem deve ser passível de discriminação, no racismo propagado pelo por-tuguês o que conta são os traços fenotípicos, uma vez que o próprio coloni-zador português já é mestiço. O racismo no Brasil é, por isso, marcado pelo preconceito de marca (Nogueira, 1985 apud Munanga, 2010).

O político e historiador a que se refere Marcos, apesar de estar dian-te de um negro, nega-lhe essa identidade porque, provavelmente, considera que ser negro não esteja relacionado a traços fenotípicos, mas a uma ideia de “pureza” do sangue afrodescendente. Para ser negro Marcos não pode-ria ser mestiço. O racismo é vivenciado, é sentido pelos negros no Ceará. Para haver racismo antinegro, tem que haver negros. Se não há negros, não há racismo. A partir do momento em que sua identidade é negada, tem-se a impressão de ser invisível. Não é possível sofrer por algo que não se é. A invisibilidade da identidade negra no Ceará é acompanhada por uma ten-tativa constante de embranquecimento desta população por terminologias como o moreno e o caboclo. Terminologias que não contemplam quem se reconhece negro e sabe que tem motivos para isso.

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“Você tem que lutar não é só nem contra o preconceito. É se afirmar. Sendo que por ter essa negação também, as próprias pessoas não se afirmam, como essa pesquisa que eu estou fazendo lá na Regional I, tem um cadastro que a gente faz, tem a história da autoafirmação, da cor, da etnia. E a maioria, eu vejo pessoas negras que dizem: ah, eu sou morena, eu sou parda. Porque não se identificam, porque não tem nem conhecimento e também sofre com isso de ‘não existe ne-gro e eu sou negro? Como assim?’(...) Por que eu acho muito mais grave, muito mais agressivo, você negar a existência de uma cultura, de um grupo de pessoas, no momento em que, em outros lugares, as pessoas não reconhecem o racismo, mas dizem que ‘aqui há ne-gros’, tem pessoas que se afirmam, dá para você ainda reconhecer culturas, sabe? E aqui as pessoas têm até vergonha de se afirmar ou de manter, sei lá, de repente, alguma tradição que reconheça que tenha uma raiz, porque é a negação e eu acho isso mais cruel, sabe? Você ser uma pessoa negra, mas no meu Estado dizem que não há negros! São duas lutas que você tem que fazer, para se afirmar e para combater aquilo que você sofre. Quer dizer, eu sofro racismo num estado que diz que não há nem negros, como é que você sofre um racismo? Eu acho mais pesado.” Isabel Carneiro, 21, CS.

“O Ceará consegue fazer todas as etapas possíveis de uma socie-dade racista, né? Ele consegue fazer com que os negros sejam dis-criminados e não consigam se perceber negros porque, se eles se perceberem negros, metade do Estado vai se perceber se discrimi-nando a si próprio também. Mas as elites são brancas no Ceará.” Henrique Cunha Jr., 56, P.

A negação do negro no Ceará surge através da exclusão do com-ponente afrodescendente da formação sociocultural do povo cearense por parte do Instituto Histórico do Ceará. Mas como negar a presença de um contingente populacional tão perceptível e evidente na realidade cearense? Soma-se a ideia que irreleva a presença afro-descendente em nosso Estado à democracia racial. Essa estrutura discursiva presente em todo território nacional dialoga com as peculiaridades do racismo cea-rense, criando uma realidade que utiliza a mestiçagem como justificati-va para negar a existência de negros no Ceará. Se se é mestiço, não se é negro. Mas essa relação não é estabelecida da mesma forma para com os brancos: a mestiçagem não os aniquila dessa realidade. A mestiçagem é instrumentalizada discursivamente numa expectativa de borrar o negro da realidade cearense. Por outro lado “quem sabe que existe negro no Ceará são os negros”. A identidade negra é reconhecida, mas tende a ser negada discursivamente no Ceará.

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“No caso da peculiaridade do racismo cearense, um deles é dizer que não têm negros e ao mesmo tempo você tem uma cultura negra que é utilizada como uma cultura que representa o Ceará, que é o maraca-tu. Então você nega e ao mesmo tempo utiliza. Para mim esta é uma das grandes peculiaridades que aos poucos começa a ser questionada, a ser desconstruída pelas próprias pesquisas que estão sendo feitas mostrando que tem uma presença negra no Ceará. Então, eu vejo, neste momento, esse elemento. Que é algo muito prejudicial: você vê o negro, mas diz que não existe. É uma ideologia tão forte, que você não consegue olhar, não consegue vê-lo. Por mais que ele passe por você.” Hilário Sobrinho, 45, P.

“Eu trabalho com crianças e adolescentes em situação de rua. Embo-ra isso exista em um Estado que sempre alegue que nós não temos a contribuição negra aqui no Ceará, a maioria das crianças e dos mo-radores de rua são afrodescendentes. E você vê isso. Ah, mas é a des-cendência indígena... há uma diferença muito grande entre afrodes-cendência e descendência indígena, só não vê quem não quer. Tanto na melanina da pele, quanto no formato do rosto, tanto nos traços físicos, como também em sua fisionomia geral. E o que nós vemos dentro do Ceará, a maioria dos meninos em situação de rua são re-almente afrodescendentes.” Paulo Sérgio Lisboa Cavalcante, 33, CS.

Há um tênue limite entre a mitologia que nega o negro e a cons-tante discriminação praticada no âmbito das relações raciais no Ceará. A negação discursiva do negro neste Estado não só tenta negar aos ne-gros o direito de assumir a sua identidade como também nega a heran-ça afrodescendente na cultura cearense, seja através da omissão sobre as raízes dessas manifestações culturais, seja dando voz às afirmativas que negam essa ancestralidade. O maracatu, manifestação cultural afro-descendente, não poderia ser cearense, teria que ter sido importado de outro Estado. Ao se apagar o negro dessa realidade, apaga-se a proble-mática racial presente nos processos de exclusão social e cultural sofridos pela população afrodescendente.

No Ceará, o racismo tem como principal característica a negação do negro pela via do discurso, ao passo que se utiliza de várias estratégias coloniais para excluí-lo do acesso aos bens materiais e imateriais produzi-dos pela sociedade cearense. Nas entrevistas realizadas ficou claro que esse racismo age principalmente sobre a marca que cada indivíduo negro carre-ga. Diferente do racismo instituído pelo colonizador anglo-saxão nas suas colônias, o racismo português, por estar imerso em uma realidade mestiça, não pôde se “dar ao luxo” de discriminar um indivíduo pela presença ou não de ancestrais “inferiores”, uma vez que o próprio português careceu da mestiçagem, junto à cafrealização (Sousa Santos, 2008), como estratégia

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“[...] eu tenho dois filhos, eu sei que eles vão passar por situações se-melhantes às que eu passei e já estão passando. Eu tenho dois filhos, o Miguel que tem traços fenotípicos mais negros, a Flora já mais par-da, então eu sei como é isso, porque as pessoas colocam a Flora, por exemplo, num grau, pelo menos estético, mais alto, porque ela tem um fenótipo mais aproximado de branco, cabelos mais ondulados, caidinhos.” Ma. Auxiliadora Holanda, 50, P.

“A Daniele (irmã) foi a pessoa que mais sofreu preconceito... Na famí-lia por parte do meu pai... ‘Valha, por que essa menina nasceu tão pre-ta?’ se dirigindo à minha mãe. É motivo de muita revolta da Daniele. Ela cresceu ouvindo aquilo. ‘A Ana Cristina...’, que é minha prima, ‘... nasceu bem branquinha, tu nem é negra Vaulice, nem teu marido, por que essa menina nasceu negra desse jeito?’” Gabriela Pereira de Araujo, 22, CS.

de sobrevivência nas colônias em que instalou postos da metrópole ibérica. O preconceito de marca faz com que o racismo atue de forma gradativa nos indivíduos identificados como negros. Ao longo das entrevistas essa gradação na discriminação cearense ficou evidente por meio de alguns in-dícios. O primeiro foi o fato de que os quatro entrevistados negros de tez mais clara foram os que menos narraram vivências em que foram vítimas de racismo, ao passo que se concentraram mais em narrar experiências vi-vidas por outros. Outra evidência desse racismo de gradação cearense está presente nos depoimentos que narram histórias de irmãos negros cuja to-nalidade da pele é distinta, dada a proximidade entre ambos e a diversidade de experiências vividas em grupo.

Esse racismo de gradação combina-se com a negação discursiva do negro no Ceará, incitando o embranquecimento da identidade dos negros cearenses principalmente sobre aqueles de tez mais clara. Dentro da escala gradativa negra no Ceará, entrevistados chamaram a atenção para a impor-tância do cabelo nesse processo, sendo depreciado o cabelo mais crespo em detrimento de um cabelo mais liso.

“Aí tem a grande questão que é se identificar. Por que tem muitos ne-gros que sabem que são negros, né? Pelo seu papel, pela sua trajetória biológica, sei lá... mas tem um certo receio de se intitular.Como se ser negro fosse uma coisa pejorativa na nossa sociedade. Em alguns nichos da nossa sociedade. Isso é constante no nosso mundo, na nossa sociedade. A grande diferença: na periferia o negro é bem mais encontrado no sentido da cor, mas a maioria não se intitula ne-gro, né? Ou por ter uma mistura de miscigenação, no sentido das et-nias, ou por ter o cabelo liso, essas coisas... na nossa cultura brasileira, que eu vejo um branco diferenciar... o que eu vejo, o que eu convivi

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“A esquerda faz a propaganda, ‘a loirinha’, a direita faz a propaganda, ‘o cara dos olhos azuis’, perceba que essas coisas só têm significado numa sociedade racista. Ninguém na Europa, nem nos Estados Uni-dos, nem no Chile vai fazer uma propaganda do cara porque é loiri-nho ou porque tem olhos azuis. Então, quando essas coisas têm signi-ficado, elas têm um lado interior.” Henrique Cunha Jr., 56, P.

Neste depoimento, Marcos cita que, apesar da semelhança entre a cor da pele de seus irmãos, os dois únicos a ter cabelo liso se colocavam numa posição de destaque e superioridade estética frente aos outros, os-tentando seus cabelos lisos em detrimento do cabelo crespo dos demais irmãos. O processo de construção identitária cearense levada a cabo pelo Instituto Histórico e Antropológico do Ceará no final do século XIX desconsiderou a contribuição negra na formação do povo cearense. Frente ao tipo brasileiro comum, o cearense teria a “vantagem evolutiva” de não ser um mestiço com sangue africano. A comemoração da ausên-cia de um se transfigurou, de certa forma, na comemoração da presença de outro, já que o índio, além de representar o antepassado legitimador da ocupação do território cearense, delegou ao euro-descendente grande parte das características que passaram a compor o cearense, em especial, suas características endêmicas. Desconfio que nesse processo se gerou uma valorização dos traços fenotípicos originariamente indígenas em detrimento da depreciação de traços fenotípicos afrodescendentes.

Características como ter o cabelo liso ou “ser linda igual a uma in-diazinha” foram, ao longo do tempo, constituindo-se como um padrão estético quiçá mais próximo, em nobreza, do padrão de estética euro--descendente. É importante frisar que essa nobreza se limitaria ao aspec-to fenotípico e histórico do indígena como componente de formação do povo cearense, não se estendendo para a valorização dos atuais povos originários deste Estado, que, junto aos negros, são historicamente invi-sibilizados. No que tange à valorização de um padrão de estética, o Ceará mostra uma das faces mais perversas de seu racismo:

com isso é: ser negro do cabelo liso não é ser negro. É interessante isso! É incrível! Tenho dois irmãos... Eu tinha dois irmãos, um que faleceu com 17 anos, que tinha o cabelo bem lisinho... não era crespo. Diferente do resto dos meus irmãos. Só dois tinham o cabelo liso e eles: ‘ah, cabelo, não sei o que... cabelo ruim’ né? Que é o crespo. Fa-lava comigo, com os meus irmãos... que o cabelo deles diferenciava eles nesse sentido. Ele era da minha cor. Em termos de tonalidade era mais claro um pouquinho. Mas o cabelo liso dava toda uma transfor-mação no indivíduo.” Marcos de Sousa Silva, 29, CS.

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Em poucos lugares no mundo características fenotípicas euro-des-cendentes são tão cultuadas a ponto de serem utilizadas como estratégia publicitária em campanhas eleitorais. Esse culto é tão naturalizado que o seu uso é tanto apropriado pela direita, representada no depoimento pelo “Galeguinho dos olhos azuis”, o outrora governador Tasso Jereissati, como pela dita esquerda, representada pela “loirinha”, a atual prefeita de Fortaleza Luizianne Lins.

Frente às vivências dos entrevistados, podemos concluir que no Ceará, ao contrário do que prega o censo comum, existem, sim, negros. Existe um racismo que não é reconhecido pelos que o praticam. No cam-po dos discursos, nega-se a presença negra em território cearense, ao mesmo tempo em que se exclui o negro do acesso a bens materiais e ima-teriais. Frente às pessoas que se consideram negras um comportamento comum tenta embranquecer a negritude através de construções discursi-vas que se escondem por trás de nomenclaturas como moreno e caboclo. Frente a essa possível “vantagem evolutiva” apontada pela construção da identidade cearense, o fenótipo indígena é mais valorizado em detrimen-to de características afrodescendentes.

No campo do discurso, a democracia racial não mostra a força pre-sente em outros lugares do País, uma vez que um dos pressupostos desta teoria, a existência de negros, não é admitida. No entanto, há um diálogo entre essa estrutura discursiva nacional com a estrutura discursiva lo-cal. A conjugação da democracia racial junto à negação do negro resulta numa estratégia discursiva que nega a presença negra partindo de um ideal de “pureza” afrodescendente. Para ser negro o indivíduo teria que ser “puro”. Há uma estimativa de desaparecimento do negro que não se estende da mesma forma para o branco. Essa contradição entre o discur-so e a exclusão gera um sentimento, percebido pelos negros no Ceará, de invisibilidade, o que os indica a necessidade de duas lutas: uma pelo reconhecimento de sua identidade e outra pelo reconhecimento do racis-mo. Por outro lado, a negação da identidade negra, a negativação dessa e a branquidade normativa juntas atuam de tal forma que ao “negro” é incorporado um caráter pejorativo.

A necessidade de persistir-se sobre a temática racial brasileira ficou evidente no transcorrer dessa pesquisa. É necessário insistir no debate sobre esta questão na esfera pública: universidades, escolas, associações profissionais, associações comunitárias, sindicatos e veículos de mídia. A permanência do silêncio sobre esta problemática só reforça e aprofunda a exclusão racial no Brasil.

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REALIZAÇãO

PATROCíNIO

Publicação realizada pelo convênio Difusão da Produção Científica da UFC - BNB/ETENE

Este livro foi composto com as famílias tipográficas Bebas Neue, projetada pelo estúdio Dharma Type, e Arno Pro, projetada por Robert Slimbach.

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