TRATADO SOBRE ZONAS ÁRIDAS E SEMI-ÁRIDAS

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TRATADO SOBRE AS ZONAS ÁRIDAS E SEMI-ÁRIDAS [30] PREÂMBULO 1. As zonas áridas e semi-áridas constituem um conjunto de formações naturais complexas, dispersas em vários pontos do planeta e muito diferenciadas entre si, mas guardando pontos comuns de identificação que as tornam singulares em relação a outros ecossistemas. 2. As zonas áridas e semi-áridas devem ser consideradas nas suas interrelações e complementariedade com outras zonas ecológicas do planeta. 3. As zonas áridas e semi-áridas apresentam via de regra um potencial natural (biodiversidade, biomassa, água, solos, etc.) e cultural que permitem um desenvolvimento sustentável. 4. Nas últimas décadas, estas zonas, apesar do potencial existente, têm sofrido um acelerado processo de degradação sócio-ambiental, cujas causas principais são: q A crescente adoção do pacote tecnológico da "Revolução Verde", particularmente através da agricultura irrigada; q A construção de grandes barragens, com inundações permanentes e deslocamentos de populações locais q A não adaptabilidade dos sistemas de produção tradicionais às novas relações sociais e econômicas emergentes; a pecuarização e o pastoreio excessivo; aumento de pressão sobre a terra nas pequenas comunidades camponesas e tribais; o desmamamento acelerado; a degradação dos solos reforçando os mecanismos de erosão e desertificação; q O acesso desigual aos recursos naturais (terra, água, biomassa). 5. A rápida degradação dos recursos naturais e a alteração nos regimes hídricos desses ecossistemas, têm trazido como conseqüência mais visível a redução dos índices de produção de alimentos, o que provoca uma pressão ainda maior sobre esses recursos, na medida em que as comunidades locais tentam compensar as quedas na produção por uma intensificação do uso dos recursos naturais, desrespeitando os ciclos naturais de recuperação do ecossistema 6. Estes problemas, conjugados com as mudanças climáticas mais globais, produzem alterações do clima local que se expressam em estações secas mais quentes e prolongadas e na ocorrência de secas mais intensas e freqüentes.

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1. As zonas áridas e semi-áridas constituem um conjunto de formações naturais complexas, dispersas em vários pontos do planeta e muito diferenciadas entre si, mas guardando pontos comuns de identificação que as tornam singulares em relação a outros ecossistemas. 2. As zonas áridas e semi-áridas devem ser consideradas nas suas interrelações e complementariedade com outras zonas ecológicas do planeta. PREÂMBULO q O acesso desigual aos recursos naturais (terra, água, biomassa).

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TRATADO SOBRE AS ZONAS ÁRIDAS E SEMI-ÁRIDAS[30]

PREÂMBULO

1. As zonas áridas e semi-áridas constituem um conjunto de formações naturaiscomplexas, dispersas em vários pontos do planeta e muito diferenciadas entre si,mas guardando pontos comuns de identificação que as tornam singulares emrelação a outros ecossistemas.

2. As zonas áridas e semi-áridas devem ser consideradas nas suas interrelações ecomplementariedade com outras zonas ecológicas do planeta.

3. As zonas áridas e semi-áridas apresentam via de regra um potencial natural(biodiversidade, biomassa, água, solos, etc.) e cultural que permitem umdesenvolvimento sustentável.

4. Nas últimas décadas, estas zonas, apesar do potencial existente, têm sofrido umacelerado processo de degradação sócio-ambiental, cujas causas principais são:

q A crescente adoção do pacote tecnológico da "Revolução Verde",particularmente através da agricultura irrigada;

q A construção de grandes barragens, com inundações permanentes edeslocamentos de populações locais

q A não adaptabilidade dos sistemas de produção tradicionais às novas relaçõessociais e econômicas emergentes; a pecuarização e o pastoreio excessivo;aumento de pressão sobre a terra nas pequenas comunidades camponesas etribais; o desmamamento acelerado; a degradação dos solos reforçando osmecanismos de erosão e desertificação;

q O acesso desigual aos recursos naturais (terra, água, biomassa).

5. A rápida degradação dos recursos naturais e a alteração nos regimes hídricosdesses ecossistemas, têm trazido como conseqüência mais visível a redução dosíndices de produção de alimentos, o que provoca uma pressão ainda maior sobreesses recursos, na medida em que as comunidades locais tentam compensar asquedas na produção por uma intensificação do uso dos recursos naturais,desrespeitando os ciclos naturais de recuperação do ecossistema

6. Estes problemas, conjugados com as mudanças climáticas mais globais,produzem alterações do clima local que se expressam em estações secas maisquentes e prolongadas e na ocorrência de secas mais intensas e freqüentes.

7. A desertificação apresenta-se, também, como outra face dessa problemática,chegando a atingir 1/6 (um sexto) da população mundial, em cerca de 3,6 bilhõesde hectares de terras.

8. Esta desertificação provoca o crescimento da pobreza rural e acelera a migraçãopara as cidades. Por outro lado, o inchamento das cidades aumenta a pressãosobre os recursos naturais (madeira, água, etc.) e assim, cria-se um círculovicioso que acelera ainda mais a degradação dos ecossistemas e os processos dedesertificação.

9. As políticas públicas para as regiões áridas e semi-áridas dos países do TerceiroMundo, historicamente, têm assumido um caráter mais emergencial de tratamentoda seca e da fome, sem enfrentar as questões estruturais, como o acesso à terra eà água, contribuindo para a perpetuação de estruturas socialmente injustas edegradadoras do meio ambiente.

PRINCÍPIOS PARA UMA ABORDAGEM ALTERNATIVA

1. As zonas áridas e semi-áridas são ecossistemas complexos com potencialnatural suficiente para propiciar uma boa qualidade de vida para suas populações,desde que se adota uma concepção de desenvolvimento que seja socialmentejusto, ecologicamente sustentável, culturalmente apropriado e baseado em umavisão holística da ciência e natureza..2. O desenvolvimento dessas zonas, pensado e elaborado a partir de suas própriaspotencialidades especificidades, deve estar intimamente relacionado com odesenvolvimento das demais zonas do planeta firmando um princípio desolidariedade entre populações de áreas ecologicamente diferentes.

3. A cooperação solidária entre os governos dos diversos países deve ser exercidano sentido de superar os atuais problemas dessas zonas.

4. A efetiva participação das ONGs, dos Movimentos Sociais e das populaçõesdiretamente envolvidas, é indispensável em todos os estágios do desenvolvimentosustentável: diagnóstico dos problemas e potencialidades; definição de objetivos emetas; aprovação, implementação e acompanhamento dos projetos e programas,avaliação dos impactos ambientais, sócio-econômicos e culturais.

5. A qualidade de vida do ser humano e a preservação, conservação e recuperaçãodo meio ambiente dessa zonas, devem estar acima dos interesses das corporaçõeseconômicas e dos grupos políticos dominantes. As secas, a fome, a desertificaçãoe outros problemas dessas zonas não devem ser usados como instrumentos de"chantagem" internacional e de perpetuação do poder econômico e político depoucos.

6. Para favorecer o desenvolvimento sustentável, a incorporação da economia daszonas áridas e semi-áridas deve:

q Buscar auto-suficiência alimentar em escala regional;q Priorizar as trocas de produtos locais entre áreas com excedentes de produção

e aquelas com déficit de produtos;q Evitar a evasão de recursos em níveis que comprometam a reprodução das

condições econômicas sociais e ambientais.

7. Nessas zonas, os custos sociais e ambientais devem ser analisados e realmenteconsiderados nos procedimentos de avaliação de todos os projetos dedesenvolvimento, principalmente os grandes projetos (barragens, perímetrosirrigados, etc...).

8. É necessário uma redefinição dos indicadores econômicos em geral,redirecionando as políticas econômicas dessas zonas para a produção de alimentosdestinados ao abastecimento das populações pobres.

PLANO DE AÇÃO

As ONGs e movimentos sociais se comprometem a realizar asseguintes ações relativas às zonas áridas e semi-áridas:

1. Ampliar e aprimorar os planos de reflexão e ação conjunta em relação àproblemática dessas zonas, buscando uma maior difusão e adoção de experiênciasem desenvolvimento sustentável.

2. Estabelecer mecanismos e estruturas de cooperação técnico-científico-financeiros no sentido de viabilizar este plano de ação.

3. Intensificar, ampliar e aperfeiçoar o intercâmbio de informações,conhecimentos, experiências e tecnologias socialmente justas, ecologicamentesustentáveis, culturalmente apropriadas e baseadas em uma visão holística daciência e da natureza.

4. Elaborar e implementar ações de educação ambiental que valorizem aspotencialidades ecológicas, econômicas e culturais dessas zonas.

5. Participar efetivamente dos processos de discussão, definição eacompanhamento de políticas públicas nos níveis local, nacional e internacional.

6. Conquistar espaços nos meios de comunicação de massa, para odesenvolvimento de campanhas de esclarecimento à população sobre os principaisproblemas sócio ambientais dessas zonas e sobre as soluções já existentes.

7. Apoiar e desenvolver ações concretas no sentido da democratização do acesso,uso e conservação dos recursos naturais, notadamente terra, água e biomassa,incentivando acordos sobre a utilização racional desses recursos nas áreas ondeexistam conflitos entre comunidades locais.

8. Reforçar a luta pela Reforma Agrária nas regiões de alta concentração de terra.

9. Desenvolver iniciativas, projetos e lutas, tanto pela preservação dos recursosgenéticos e da biodiversidade, como contra a apropriação privada do capitalgenéticos através do patenteamento dos seres vivos ou de qualquer outra formade controle monopólico.

As ONGs e Movimentos Sociais lutam para que os poderes públicoslocais, nacionais e internacionais adotem nas zonas áridas e semi-áridasas seguintes medidas:

10. Desenvolvimento de políticas educacionais que sejam eficientes para aerradicação do analfabetismo; que considerem os conhecimentos, tradiçõesculturais e organizações sociais de cada local; que tratem de forma integrada asdisciplinas convencionais e as questões ambientais considerando inclusive osaspectos da produção.

11. Democratização das informações governamentais sobre a realidade sócio-ambiental, bem como das políticas públicas de desenvolvimento e meio-ambientedessa regiões.

12. Reestruturação e integração do ensino, pesquisa, extensão e comunicaçãorurais, de acordo com as necessidades e realidades sociais, culturais e ambientais.

13. Democratização dos programas governamentais quanto ao acesso, uso econservação dos recursos naturais - principalmente terra, água e biomassa - demodo a favorecer os camponeses e as comunidades tradicionais, indígenas etribais.

14. Realização de Reforma Agrária nos países onde há alta concentração de terras,com uma política de crédito, assistência técnica e comercialização eficiente eadequada às condições sociais, econômicas, culturais e ambientais de cada região.

15. Adoção do princípio de que os recursos genéticos são patrimônio cultural doscamponeses e comunidades tradicionais, indígenas e tribais, e criação de legislação

rigorosa contra qualquer forma de apropriação privada e monopólica do capitalgenético.

16. Definição de uma política que valorize as áreas de sequeiro tendo em vista asatividades agrícolas, florestais e pastoris; e, reestruturação da agricultura irrigada,na perspectiva do uso integrado e sustentado dos recursos naturais.

17. Reorientação da política agroindustrial, no sentido da valorização das unidadesde pequeno porte, geridas pelos produtores e outros setores populares edestinadas ao incentivo do desenvolvimento local e regional.

18. Reorientação da política industrial de maneira a contemplar somente indústriasnão poluentes e estruturas de serviços econômicos e sociais, que criemoportunidades de trabalho e melhoria na qualidade de vida.

19. Reorientação de políticas para o desenvolvimento do artesanato utilitário eartístico das populações locais, mediante a criação de reservas naturais deprodutos essenciais e estoques de matéria-prima para as atividades artesanais, demodo a assegurar e preservar a arte e cultura populares, garantindo efortalecendo a economia local e reginal.

20. Adoção da concepção e prática agro-ecológica participativa, evitando asubordinação dos agricultores aos sistemas convencionais de desenvolvimentorural.

21. Realização efetiva de diagnósticos, monitoramento e avaliações de todos osprojetos que possam causar degradação ambiental, social e cultural no âmbitolocal e nas áreas de abrangência.

22. Garantir às populações locais, ONGs e Movimentos Sociais espaços denegociação de projetos, programas, recursos financeiros, etc.

23. Implantação de sistemas de alerta para prevenir as conseqüências dasmodificações climáticas, da sobre-utilização dos recursos naturais, dosdeslocamentos de populações para outras áreas e dos conflitos daí decorrentes.

24. Criação de um fundo financeiro específico para os trabalhos de recuperaçãodos recursos naturais nas áreas degradadas, no sentido de viabilizar as atividadesdas populações locais, garantindo-se o princípio de participação popular.

Como mecanismos de acompanhamento deste plano de ação paraas zonas áridas e semi-áridas, define-se:

25. Elaborar um cadastro das ONGs e Movimentos Sociais que atuam nas zonasáridas e semi-áridas, em níveis local, nacional e internacional.

26. Criar mecanismos de comunicação usando redes de computador, comunicaçãointerpessoal, boletins informativos, workshops e conferências em níveis local,nacional e internacional.

27. Estabelecer coordenações específicas para cada região, de modo a funcionarcomo ponto de referência, recepção e difusão de informações.

28. Desenvolver critérios e metodologias para avaliação de projetos e políticasdirecionados a essas zonas.

29. Acompanhar a destinação dos recursos públicos e pressionar os bancosinternacionais para a instalação de uma auditoria internacional nos projetos poreles financiados, com a participação das ONGs, Movimentos Sociais e populaçõesenvolvidas, em todos os níveis.

30. Avaliar até o final de 1994 os resultados obtidos a partir do presente acordo.

Aprovado no Fórum Internacional de Organizações NãoGovernamentais e Movimentos Sociais, no âmbito do Fórum GlobalECO 92Rio de Janeiro, 1992