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LOUREIRO, Eduardo Campolina Viana. (2016) Schoenberg/Boulez: ideia/sistema. Per Musi. Ed. por Fausto Borém, Eduardo Rosse e Débora Borburema. Belo Horizonte: UFMG, n.33, p.25‐58. 25 DOI: 10.1590/permusi20163302 ARTIGO CIENTÍFICO Schoenberg/Boulez: ideia/sistema Schoenberg/Boulez: idea/system Eduardo Campolina Viana Loureiro Escola de Música/Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. [email protected] Resumo: Dois textos principais orientam o presente estudo: A música nova, a música demodée, o estilo e a ideia, escrito por Arnold SCHOENBERG (1977b) em 1946, e O sistema e a ideia, escrito por Pierre BOULEZ (1986) em 1986. Inicialmente é trabalhado o conceito de ‘ideia musical’ em diversos textos de Schoenberg. O conceito é então confrontado com uma análise de seu Prelúdio do Op. 25, elaborada por Jack BOSS (2014). Essa análise levanta a problemática da percepção, conduzindo à discussão do texto de Boulez. Esse último é trabalhado na relação da ‘ideia musical’ com o ‘sistema’, inicialmente em conexão com a segunda Escola de Viena e em seguida com sua própria estética. Procura‐se compreender como se articulam esses dois conceitos nas reflexões dos dois compositores, que muito influenciaram a transformação da linguagem musical no século XX, e que se situam em uma linha evidente de conexão e continuidade. Palavraschave: sistema em Arnold Schoenberg; sistema em Pierre Boulez; ideia musical e composição; Prelúdio do Op. 25 de Schoenberg. Abstract: Two main texts have guided this study: New music, outmoded music, style and idea, written by Arnold SCHOENBERG (1977b) in 1946, and System and idea, written by Pierre BOULEZ (1986) in 1986. Firstly, the concept of ‘musical idea’ is dealt with in several of Schonberg’s texts. The concept is then confronted with an analysis of Schoenberg’s Prelude Op. 25 elaborated by Jack BOSS (2014). This analysis raises perception issues that lead to Boulez’s text. This last text is approached with a focus on the relation between the 'musical idea' and the 'system', in connection with the Second Viennese School, and then with his own aesthetics. This article works on how these two concepts are articulated in the reflections of these two composers, who greatly influenced the directions of the transformation of musical language in the 20th century, and who are clearly located in a line of connection and continuity. Keywords: system in Arnold Schoenberg; system in Pierre Boulez; musical idea and composition; Schoenberg’s Prelude Op. 25.

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DOI:10.1590/permusi20163302

ARTIGOCIENTÍFICO

Schoenberg/Boulez:ideia/sistema

Schoenberg/Boulez:idea/system

EduardoCampolinaVianaLoureiroEscoladeMúsica/UniversidadeFederaldeMinasGerais,BeloHorizonte,MG,[email protected]

Resumo:Doistextosprincipaisorientamopresenteestudo:Amúsicanova,amúsicademodée,oestiloea ideia, escritoporArnold SCHOENBERG (1977b) em1946, eOsistemaeaideia,escritoporPierreBOULEZ(1986)em1986.Inicialmenteétrabalhadoo conceito de ‘ideiamusical’ emdiversos textos de Schoenberg.O conceito é entãoconfrontado com uma análise de seu Prelúdio do Op. 25, elaborada por Jack BOSS(2014).Essaanáliselevantaaproblemáticadapercepção,conduzindoàdiscussãodotextodeBoulez.Esseúltimoétrabalhadonarelaçãoda‘ideiamusical’como‘sistema’,inicialmenteemconexãocomasegundaEscoladeVienaeemseguidacomsuaprópriaestética.Procura‐secompreendercomosearticulamessesdoisconceitosnasreflexõesdosdoiscompositores,quemuitoinfluenciaramatransformaçãodalinguagemmusicalnoséculoXX,equesesituamemumalinhaevidentedeconexãoecontinuidade.Palavras‐chave: sistema em Arnold Schoenberg; sistema em Pierre Boulez; ideiamusicalecomposição;PrelúdiodoOp.25deSchoenberg.Abstract:Twomaintextshaveguidedthisstudy:Newmusic,outmodedmusic,styleandidea,writtenbyArnoldSCHOENBERG(1977b)in1946,andSystemandidea,writtenbyPierreBOULEZ(1986)in1986.Firstly,theconceptof‘musicalidea’isdealtwithinseveral of Schonberg’s texts. The concept is then confronted with an analysis ofSchoenberg’s Prelude Op. 25 elaborated by Jack BOSS (2014). This analysis raisesperceptionissuesthatleadtoBoulez’stext.Thislasttextisapproachedwithafocusontherelationbetweenthe'musicalidea'andthe'system',inconnectionwiththeSecondVienneseSchool,andthenwithhisownaesthetics.Thisarticleworksonhowthesetwoconcepts are articulated in the reflections of these two composers, who greatlyinfluencedthedirectionsofthetransformationofmusicallanguageinthe20thcentury,andwhoareclearlylocatedinalineofconnectionandcontinuity.Keywords:systeminArnoldSchoenberg;systeminPierreBoulez;musicalideaandcomposition;Schoenberg’sPreludeOp.25.

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Dataderecebimento:03/02/2016.

Datadeaprovaçãofinal:18/04/2016.

1‐Introdução

Em 1946, Arnold Schoenberg publica texto intitulado “A música nova, a música

démodée,oestiloeaideia”1(SCHOENBERG,1977b,traduçãonossa).Trata‐sedeum

textolongo,escrito5anosantesdesuamorte,noqualsereconheceapersonalidade

combativaedeterminada,quesempredefendeudeformaradicalsuasposições,eque

neste momento procura desembaraçar os quatro conceitos que compõem o título:

“Destesquatroconceitos,ostrêsprimeirosfizeramumabelacarreiranosúltimosvinte

e cinco anos; se preocuparammuitomenos com o quarto, a ideia” (SCHOENBERG,

1977b,p.93).

Ésabidoqueaquestãodaorganizaçãodasalturasfoioprincipalmobilenaexistência

de Schoenberg. Seu método dodecafônico foi o resultado concreto de uma longa

elaboração manifesta em uma escrita fechada e aberta ao mesmo tempo, que, em

princípio, deveria assegurar a coerência e a unidade, valores que lhe eram

extremamentecarosnaconstruçãomusical.Notextocitadopercebe‐seclaramenteo

queoincomodavanaquelemomento:suamúsica,queseapoiavaemseumétodo,eque,

enquanto‘músicanova’haviasidoobjetodeforterejeiçãoporpartedopúblicoede

uma certa crítica especializada, já era tida como ultrapassada. Ela passava a ser

considerada como representante do fim de uma era envelhecida, em favor da

supervalorizaçãodeumaprodução,segundoele,equivocada.Arazãodoequívocoviria

essencialmentedamácompreensãodadiferençaentre‘estiloeideia’–valorizava‐se,

naquiloquepassavaa ser compreendidocomo ‘músicanova’,oprimeiro termoem

detrimentodosegundo,sendoesteúltimo,paraele,odefinitivo,omaisimportante.

1Paraopresentetrabalhofoiconsultadaaversãofrancesadolivro“Lestyleetl’idée”(SCHOENBERG,1977).Otítulodoartigoapresentadoconstanessapublicaçãocomo:“Lamusiquenouvelle,lamusiquedémodée,lestyleetl’idée”(SCHOENBERG,1977b).Todasastraduçõesapresentadasnopresenteartigosãonossas–evitaremosarepetiçãodainformaçãodaquiemdiante.

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Em1986,PierreBoulezpublica“Osistemaeaideia”(BOULEZ,1986,2012)2.Trata‐se

de um texto denso no qual ele se dedica a uma revisão do aspecto sistêmico no

pensamento da segunda Escola de Viena, e, a partir daí, elabora profundamente a

relaçãoentresistemaeideianointeriordesuaprópriaestética.Nasprimeiraspáginas

de“Penser lamusiqueaujourd’hui”PierreBoulezafirma:“Euestouconvencidoque

umalinguageméumaherançacoletivadaqualéprecisoassumiraevolução”(BOULEZ,

1963,p.8).SuaconexãocomopensamentoeasobrasdaSegundaEscoladeVienaé

suficientementeconhecidaapartirdavisitaçãodeseustextos.Acitaçãoanteriorsó

vem reforçar tal fato. Mas, enquanto referência, a estética anterior deveria ser

ultrapassada,sobpenaderecairnaasfixia:“ocritériodeexcelênciajánãosemedeem

termos de preservação das aquisições, da sua consolidação, mas em termos de

evoluçãovoluntarista,eatémesmodedestruição”(BOULEZ,1986,p.1).

Aescolhadotexto“Osistemaeaideia”(BOULEZ,1986)comoparcomplementardo

textonoqualSchoenbergseconcentrasobreestiloeideia(SCHOENBERG,1977b)não

éumacaso,evidentemente.ApesardenãohaverreferênciadiretanotextodeBoulez,

aconexãoentreosdoiséinegável3.

2‐Schoenbergeaideia

AverificaçãodosdiversostextosdeixadosporSchoenbergrevelaumainquietaçãoque

pareceoacompanhardurantetodaavida,qualseja:comodefinirdemodosatisfatório

oconceitode‘ideia’emumaconstruçãomusical.Encontra‐senasériedeconferências

proferidasporAntonWebernreunidassobotítulo‘Caminhosparaanovamúsica”,um

2Paraesteestudofoiutilizadaaprimeiraversãooriginaldotexto,emfrancês,de1986.Foiacrescentadanasreferênciasbibliográficasaversãotraduzidaparaoportuguês(BOULEZ,2012),queéatraduçãodasegundaversãodotexto,ampliadaepublicadaem“Jalons(pourunedécennie)”(BOULEZ,1989).3DanielleCohen‐Levinaspublica“Loietnegativité:dustyleetidéedeSchoenbergausystèmeetidéedeBoulez(COHEN‐LEVINAS,2000),textodeteormuitomaisfilosóficoqueanalítico,noqualaautoraexploraaideiadequeaatitudetantodeSchoenbergquantodeBoulezemseusmomentoshistóricosespecíficosfoiorientadapelareaçãoaumestadodecoisasquelhesprecedia,comumcomportamentofocadoprincipalmentenaatitudedenegação.Otextocertamentecontribuiparaodebate.

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indicativoimportante:“Schoenbergconsultounumerososdicionáriosparaencontrar

adefiniçãodapalavra ‘ideia’,maselenãoencontrou.Oqueéuma ‘Ideiamusical’?”

(WEBERN,1980,p.113).

AlexanderGoehrfazreferênciaaumpequenocomentáriosoltoemumpedaçodepapel

datadode7deabrilde1929:“Aquestãodoqueéumaideiamusicalnãofoirespondida

atéagora.[...]Hojeeupenseiqueseriacapazdeformularissoclaramente,estavatudo

tão claro para mim. Mas eu ainda devo esperar. Talvez eu ainda volte a isso”

(SCHOENBERG,citadoporGOEHR,1985,p.61).TantoaobservaçãodeWebernquanto

acitaçãodeGoehrtestemunhamofatodequeacompreensãodoconceitofoiquestão

central para Schoenberg em grande parte de sua vida. A construção de uma obra

musical naquele momento histórico deveria, segundo Schoenberg, apoiar‐se em 3

aspectosfundamentais–coerência,unidade,variação–termosquesempreretornam

nostextosdeixadosporeleeseus2principaisdiscípulos(BERG,1985;SCHOENBERG,

1967, 1977; WEBERN, 1980). Mas a boa articulação desses aspectos passaria

inevitavelmentepelaconsistêncianaconstituiçãodaideia–daísuapreocupaçãocom

oconceito.

EmcartaendereçadaaRudolfKolisch4,Schoenbergcriticaaanálisedeseu terceiro

Quarteto de Cordas, pelo fato dele ter se concentrado excessivamente no aspecto

numéricodaorganizaçãoserial:

Vocêdevetertidoumtrabalhoincrível,eeunãopensoqueteriatidoessapaciência.Vocêacreditaentãoquehajaalgumautilidadeemsaberdisso?[...]Eujárepetiistoobastante:minhasobrassãocomposiçõesdodecafônicasenão composiçõesdodecafônicas. [...]Aúnicaanálisequeeupossoconsideraréaquelaquefazapareceraideiaemostrasuarepresentaçãoeseudesenvolvimento(SCHOENBERG,1983,p.166).

Como é possível perceber, o foco não está na demonstração do funcionamento do

método de escrita,mas simnamaneira como as ideias são ali inseridas e como se

4RudolfKolish,violinistaaustríaconaturalizadoamericano,irmãodeGertrudKolisch,segundamulherdeSchoenberg,dequemtambémfoialuno.AtuavacomoprimeiroviolinodoquartetoKolisch,responsávelporinúmerasapresentaçõesdeobrasdasegundaEscoladeViena(SCHOENBERG,1983,p.165).

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articulamnaconstituiçãododiscurso–ogrifodadopeloautoràspalavrascomposições

edodecafônicasnãoquerdizeroutracoisa.

Schoenberg deixa uma possível definição de ideia musical fortemente apoiada no

conceitodetema:“Emumapeçadeestilocontrapontístico,aideiaérestritaaoslimites

deumtema,deumsujeito,cujoselementosconstitutivosouvidosjuntosformamuma

espéciede ‘pontodepartida’”(SCHOENBERG,1977c,p.226). Ideiaaquiseconfunde

commaterial.Emumafugatonalosujeitoéonúcleocentraldeondesurgemasvárias

derivaçõesquealimentamosdesenvolvimentos;emumafuganãotonalasrelações

entreasalturasse libertamdafuncionalidade(tonal),masénecessárioconservaro

princípiodedesenvolvimentolinearapartirdeuma‘ideia’básica(sujeito),sobpena

dedescaracterizar justamentea forma ‘fuga’enquantomoldedaescrita.Nomesmo

textoSchoenbergreforçaadefiniçãoqueaindamantemarelaçãoestreitaentreideiae

material:

Todasasevoluçõespossíveisdeumapeçamusicalestãoemgermeemseu tema; ali elas estão previstas, preditas, consideradas, dispostas,prefiguradas.Euvejoumapeçamusicalcomoumlivrodeimagensque,porvariadoquesejaseuconteúdo,(a)mostrasemprecoisascoerentesumascomasoutras,(b)sóexpõevariaçõesdeumaideiafundamental,amultiplicidade de caracteres e de formas levando em conta que avariaçãoéoperadademúltiplasmaneiras,ométododevariaçãosendoo ‘desenrolarprogressivo’oudo ‘desenvolvimento’” (SCHOENBERG,1977c,p.226).

Aideiamusicalaparecesoboutraperspectiva,umpoucomaisdesenvolvida,nomesmo

textoondeSchoenbergrefletesobreaescritacontrapontística:

Contrapontoquerdizerqueexisteumpontoopostoaoprimeiroeésobre esta oposição do segundo ponto em relação ao primeiro querepousa a ideia expressa; é à existência de um ponto oposto que édevido o esquema do conjunto. Podemos pensar, por exemplo, naidentidade(a+b).(a‐b)=a²‐b²,naqual (a²‐b²)seriaa ideia,(a+b)sendoopontoe(a‐b)sendoopontooposto(SCHOENBERG,1977c,p.225).

Nestecaso,aideiasedescolaumpoucodesuaconexãotãoestreitacomomaterialpuro

e deriva para amanifestação de um processo. A identidade da ideia aparece como

resultadodeumprocedimentotécnicomaiscomplexo,compostoporníveisdistintose

superpostos,enãomaiscomoaexpressãodeummaterialisolado,unidimensionalna

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linearidadequeoconstitui.

Adefiniçãomaiscompletaedesenvolvidadaideiamusicalseencontranotextobase

citadonasprimeiraslinhasdestetrabalho:

Cadavezqueaumanotadadavocêacrescentaumaoutranota,vocêlançaumadúvida sobreoquequeriadizer aprimeiranota. Se, porexemplo,vocêfazseguirumDóporumSol,oouvidopodeseperguntarsevocêvaiprosseguiremDóMaior,ouemSolMaior,oumesmoemFáMenor,emMiMenor,etc.,eaadiçãodasnotasseguintesajudaráounãonasoluçãodesseproblema.Vocêprovocouassimumaimpressãodeincerteza,dedesequilíbrio,quevaiseacentuarcomasequênciadapeçaeseencontraráreforçadaporumaflutuaçãodamesmaordem,relativa ao ritmo. O método pelo qual você consegue restabelecerassimoequilíbriocomprometidoéameuveraverdadeira‘ideia’deumacomposição(SCHOENBERG,1977b,p.101).

Portanto,em1946,namaturidadedeseus72anosdeidade,Schoenbergécapazdese

exprimiremtermosmuitomaisamplosquenascitaçõesanteriores.Percebe‐seque,

movidopelo esforçodo refinamento, ele transformapouco a pouco sua concepção,

saindodeumadefiniçãode certa forma sumária e discreta, apesar de francamente

aceitável(ideiaigualatema),paraumraciocíniobemmaisarticulado,quedáorigema

umadefiniçãoqueédaordemdarepresentação.Umasituaçãoédesenhada,colocando

de formaquase táctiluma imagemquecorrespondeàconstituiçãoda ideiamusical

dividiaem3fases:incerteza/ambiguidade–desequilíbriopeloaumentodaincerteza

–resoluçãododesequilíbriocomfechamentodaideia.

Ariquezaeaclarezadessadefinição,assimcomoseucaráterneutroabreumcampo

muito amplo para os trabalhos de análise (e por que não para os exercícios de

composição?).O equilíbrio emumaconstruçãomusical, seja ela tonal ounão tonal,

podeserestabelecidoourompidoatravésdousodelequemuitoamplodevariáveis.O

estudo da inter‐relação dos diversos parâmetros em jogo, da regulagem de suas

intensidades, acelerações, superposições ou cruzamentos pode dar lugar a um sem

númerodeestratégiasdopontodevistadaconstruçãooudesconstruçãodoequilíbrio.

Schoenbergexercitauma finezadoolharquevaideparcomseupotencial criativo.

Qualquerconstruçãosensível, sejaelamusical, cinematográfica, literáriaoumesmo,

emcertascircunstâncias,pictóricapodeservistapeloviésqueelepropõecomessa

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últimadefinição.Oqueeleenuncianãoésimplesmenteumadefiniçãodeideiamusical

–elenosdeixaumachaveanalíticaecriativamuitopoderosa,quepodesermodulada

emacordocomoobjetodeanálise,contribuindoparaalargaracompreensãodocampo

artísticoeminúmerascircunstâncias.

EmestudoextremamentedetalhadoJackBOSS(2014)seconcentranaanálisedeobras

dodecafônicasdeSchoenbergutilizandocomoeixodametodologiaaquestãodaideia

musical.Eleconstróitodoumraciocínioanalíticoquesupõe“aexistênciadeuma‘ideia

musical’comoestruturaprimordialemqualquerobradodecafônicadeSchoenberg”

(BOSS,2014,p.5).Seráinteressantelançaragoraumolharumpoucomaisdetalhado

sobreametodologiapropostaporBOSS,umavezqueelesebaseiaemumdosconceitos

centraisqueorientameste texto–a ideiamusical.Alémdisto, essepequenoatalho

poderálevantaralgunsaspectosproblemáticosnaanálisedeBOSS,queserelacionam

estreitamentecomosegundotextofundamentaldesteestudo–Osistemaeaideia,de

PierreBoulez(1986).

3‐Aideiaeumaaproximaçãodaideia

OlivrodeJackBOSS(2014),quetrazcomosubtítulo“Simetriaeaideiamusical”,parte

doprincípioqueaspeçasdodecafônicasdeSchoenbergsãoestruturadasnoentorno

deumasituaçãoqueele chamade ‘ideal’, constituídaporestruturas simétricasque

surgemquandodacolocaçãoemfuncionamentodasérie:

Eu interpreto a ideia musical como uma estrutura analítica: umprocessoqueabrangetodaapeçanoqualumaespéciedeoposiçãoouconflitoentreelementosmusicaiséapresentadonoinício,elaborado,eaprofundadoduranteapeça,eresolvidonooupertodofim.[...]OconflitoquecolocaaIdeiaemmovimentoestáentreum‘ideal’musicalealgumarealidademusicalqueproporcionaumaimagemimperfeitadaqueleideal(BOSS,2014,p.1).

Asimetrianaestrutura,ouo‘ideal’musicalcomoeledenominapodesemanifestarde

modomaisoumenosexplícitoe,fundamentalmente,éconstituídopor“altura,classe

dealturae/ousimetriaintervalarnasdimensõeshorizontalevertical”(BOSS,2014,

p.2). O ‘ideal’ musical é colocado enquanto um potencial no início da peça, sofre

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deformações e desvios como consequência do desenrolar do trabalho temático, e

atingeummáximode tensãoque é conduzido à resoluçãonaporção final da peça.

Percebe‐sequeBOSSprocuraaproximaroconceitodeideiamusicalcomoproposto

porSchoenberg(ambiguidadeeincerteza,tensãoporaumentodaincerteza,resolução

da incerteza), gerando uma imagem correlata (ideia em potencial, deformações e

desvios, máximo de tensão, resolução) que surge no âmago mesmo da estrutura

dodecafônicaemfuncionamento.

O trabalhodeBOSSé extenso, impressionapelo fôlego, e émuitodetalhado.Ele se

entregaàdescriçãododesenrolardasformasseriais,indicasimetriasextremamente

complexas distribuídas na textura, tudo isso depois de cercar seu raciocínio com

diversas salvaguardas iniciais, no sentido de não se colocar enquanto detentor da

verdade absoluta.5No entanto, um estudo detalhado de suas análises levanta uma

questãoproblemática,comoserávistoaseguir.

AprimeirapeçaanalisadaporBOSSéoPrelúdiodasuíteparapiano,Op.25.Asérie

originalutilizadanaobraéaseguinte:

Figura1:SérieOriginaldaSuiteOp.25–A.Schoenberg.

Schoenbergdeixouumrascunhonoqualconstamasúnicasformasseriaisutilizadas

em toda a suite – P4, P10, I10 e I4. Ele as apresenta subdivididas em tetracordes

superpostos,colocandoaoladodecadaumadelasaformaretrógradacorrespondente,

tambémdivididaemtetracordes(BOSS,2014,p.39):

5NasprimeiraspáginasdolivroBOSSprevineoleitordequesuasanálisesnãodevemserconsideradasasúnicascorretas;comelaselenãopretendereproduziropensamentodocompositorduranteoatodecomposição;oqueelepropõesãosugestõesdeleituraqueagregamumpossível,enãooúnicosentidoàsobras(BOSS,2014,p.2‐3).

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Figura2:FormasseriaisutilizadasnasuíteOp.25–A.Schoenberg.

NasformasretrógradasaordemdostetracordesfoiinvertidaporSchoenberg.Aleitura

ordenadadeP4,porexemplo,sefazapartirdotetracordesuperioredescendo:4–5–

7–1–6–3–8–2etc.AleituraordenadadeR4(retrógradodeP4)deveserfeitaa

partirdotetracordeinferioresubindo:10–9–0–11–2–8–3–6etc.Aodisporas

formasseriaisdessemodo,Schoenbergreforçaasimetrianaturalquetodoretrógrado

jásupõe–cadatetracordeapareceaoladodeseusimétrico,formandopalíndromos,

comopodeservistonaFigura2.

ApartirdessaconstataçãoJackBOSSconstróisuainterpretação.Elejogacomoaspecto

simétricodomaterialparaprojetá‐lonaideiaqueregeacomposição.Segundoeleos

tetracordesapresentadosnoesquemasãoabasequedáorigemà ideiamusical.Ao

comentarorascunhodeSchoenbergcomadisposiçãosimétricadostetracordesele

afirma:

Otodocriaumpalíndromo,comoofazcadavoz,asuperior,adomeioeainferior.Estaestruturaempalíndromoentãoassumeopapeldeum‘ideal’ que é sugerido e tambémmascarado nos compassos iniciais,reforçado em grande parte da peça até um clímax (c.17‐19),concretizado(c.20‐21)eentãoabandonado(BOSS,2014,p.38).

SegundoBOSS,portanto,aideiamusicalsemanifestanoPrelúdiocomoaimagemde

ummovimentoirregularemdireçãoaumasituaçãoideal,queatingeumclímaxeem

seguidaretrocedeàmedidaqueapeçaseaproximadofinal.

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Aanálisedoc.20confirma,pelasimetria,umpossívelclímax:

Figura3:PrelúdioOp.25,A.Schoenberg‐Análisedoc.20comanumeraçãodas

séries(BOSS,2014,p.57).

Figura4:FormasseriaisP4eseuretrógradoR4utilizadasnoexemploanterior,

subdivididasemtetracordes.

Figura5:RepresentaçãoesquemáticadostetracordesdeP4eR4relativaàimagem

daFigura3,comindicaçãodasnotascomuns(BOSS,2014,p.57).

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Oc.20éorganizadodeacordocom3camadassimétricas,comopodeservistonasfigs.3

e 5. Schoenberg usa a série não como uma estrutura linear com senso único. Os

tetracordes do esquema inicial aparecem comumapartição funcional, sendo que a

colocaçãodasnotasalteraaordemdos tetracordes(R4é iniciadasimultaneamente

pelosdoisúltimostetracordes,naterceiracolcheiadocompasso),assimcomoasnotas

dentrodeummesmotetracorde(emR4osegundotetracordeaparececomaordem

alteradaemrelaçãoaoesquemainicial).

Asimetrianoc.20éreveladacombastanteevidência(omesmopodeserverificadoem

umaanálisedoc.21).Emnenhummomentodapeça,nemantesnemdepoisdessesdois

compassosasimetriaétãoexplícita.

Oproblemaaparecequandosetentaacompanharoraciocínioemsuaintegralidade.

BOSS fala da ideia musical no Prelúdio como expressão sonora de um percurso,

portantoaforçadesuaideiadependedaverificaçãodomecanismoenquantofluxono

tempo;nãobastaaconstataçãodoclímax.AFigura6mostraaanálisedeumtrecho

escolhidoentreofinaldoc.5eoiníciodoc.7(BOSS,2014,p.46),ondeoautordefende

queassimetriasdevemacontecermasnãodeformatãoexplícitacomofoivistonoc.20,

deformaarespeitaropercursosugeridoemdireçãoaoclímax:

Figura6:PrelúdioOp.25,A.Schoenberg‐Análisedosc.5‐7comanumeraçãodas

séries.

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LOUREIRO,EduardoCampolinaViana.(2016)Schoenberg/Boulez:ideia/sistema.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.33,p.25‐58.

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Figura7:SimetriasdetectadasporJackBOSS(2014,p.41)naanálisedosc.5‐7

apresentadosnaFigura6.

OesquemadaFigura7indicaassimetriasdetectadasnaanálise.Émuitoimportante

que fique bem compreendida amaneira comoBOSS as identifica, uma vez que seu

esquemapodedarmargemadúvidas.Serãosimétricose formarãopalíndromo,por

exemplo,ointervalo5‐0deR4com0‐5deRI4,umavezquetrata‐sedasmesmasduas

classesdenotacomsuasordenaçõesinvertidas.Damesmaformaserãopalíndromos

9‐11deR4e11‐9deRI4.Nãoserãoconsideradospalíndromos4‐10deR4e4‐10de

RI4umavezqueaordemdeapariçãodasclassesdenotaéamesma,nãoháinversão

daordenação.Noentanto,aoprojetaroesquemadaFigura.7sobreaorganizaçãoreal

dassériesnapartituradaFigura6umaspectochamaaatenção:alimpezadasimetria

apresentadanoesquemaperdeforçaquandoseobservaadistribuiçãodasnotasna

pauta.BOSSdefendesimetriasmuitoclarasnoesquema,masparaqueganhemalguma

funcionalidade efetiva é necessário ummínimode transparência na realização, sob

penadeperdanaconsistênciadainterpretaçãoproposta.

Defender,porexemplo,apartirdasFiguras6e7acima,umasimetriaempalíndromo

entre as quartas justas 5‐0 de R4 e 0‐5 de RI4 é demasiado arriscado, na nossa

avaliação. O mesmo pode ser dito de 9‐11 de R4, com 11‐9 de RI4. A simetria se

apresentanoesquema(Figura7)masnãonapartitura(Figura6)–oesquemadescola

dapartitura,enãonosparecerepresentativoobastanteparafornecertamanhoálibi.

A única configuração que no nosso entender apresenta alguma simetria com um

mínimodepregnânciaéformadapelas4primeirasnotasdeR4:1‐7‐5‐4emrelaçãoàs

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4 primeiras notas de RI4: 7‐1‐3‐4, e isto se dá muito mais pelo caráter imitativo

presentenoperfilrítmicodaFigura3semicolcheiasiniciadasempartefracadotempo,

seguidas de nota longa – do que pela questão intervalar devida ao par 7‐1/1‐7. As

demais supostas simetrias não possuem ancoragem mínima suficiente no registro

perceptivoparaseremclassificadascomotal,etodasasanálisesdeBOSSnoPrelúdio

vão nomesmo caminho. As diferenças de figuração e de contexto são tantas que a

conexãoentreasocorrênciasédiluída,praticamenteaniquiladanocurtoespaçode

tempo que as separa, impedindo a percepção da identidade projetada. A inegável

técnica de escrita de Schoenberg, que lhe permite a multiplicação das relações

estruturaisnessaouemqualquerpeçadeseurepertório,nãopodeserconfundidacom

uma capacidade quasemágica de gerar tal densidade de correspondências como é

sugeridoaquienorestantedareferidaanálise.

Todaessaquestãotemrelaçãocomosprocessosdesegmentaçãonaanálisemusical,

sobretudonamúsicaatonal.Oproblemanãoésimpleseédeterminanteemqualquer

exercícioanalítico,comopodeseratestadonosescritosdeAllenFortequededicauma

seçãodeseu“Thestructureofatonalmusic”(FORTE,1973)àquestãodasegmentação.

Jean‐JacquesNattiezfazomesmoemseutexto“AllenForte’ssettheory,neutrallevel

analysisandpoietics”(NATTIEZ,2003).

JackBOSSemsuaanáliseconsideracomosimetriasválidascertasestruturasqueestão

aliporsereminerentesaométodoserial,quejogajustamentecomummódulo12fixo

e recorrente. O método fatalmente produzirá correspondências à medida que as

formasseriais foremencadeadas, istonessapeçaouemqualquerpeçaqueutilizeo

métodododecafônico.

AquifoiatingidoocernedaproblemáticaqueperpassaaanálisedeBOSSequejustifica

suainclusãonesseestudo:arelaçãoentreestruturaepercepção.Apartirdaíseráfeita

aconexãocomosegundotextofundamentaldestetrabalho–‘Osistemaeaideia’,de

PierreBOULEZ(1986).Aoprocurarconstituirumeixocondutorparaaanálisecalcado

nasreflexõesdeSchoenbergsobreaideiamusical,BOSSelaboraummecanismoque,

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paraseadequaraoprocessoéobrigadoaconsiderarapercepçãodassimetriascomo

aspectosuficientementeresolvido.Éverdadequeoautornãoconsideraacategoria

totalmenteresolvida,masaomesmotemponãolhededicaamesmaatençãoquededica

àdescriçãodaestrutura:

Eu devo admitir que em algumas peças, na verdade, o amplo arconarrativoédifícildesepercebercompletaeimediatamente.[...]Masexistempeças,sobretudoasmenores,ondeagrandeestrutura,aIdeiaseapresentaaoouvintecomoalgoquepodesersentido.OPrelúdioOp.25quemencioneiacimaéumexcelenteexemplo.Nele,umpadrãosimétricodeclassedealturaé sugerido, gradualmenteobscurecido,aproximadoutilizando‐sediferentespadrões,efinalmenteconcluído(BOSS,2014,p.4‐5).

A escolha do Prelúdio se deu muito em função da citação acima – afirma‐se aí a

possibilidadedepercepçãoauditivadaideia.Nossadiscordânciaresidenofatodeque

asupostaideiaquesustentaacomposiçãotrabalhacomumaregulagemdesimetrias

intervalaresquesãomuitodifíceis,senãoimpossíveisdeseremidentificadascomotais,

por aparecemmescladas às demais notas que compõem a textura e pelos desvios

rítmicos,dinâmicosede registroqueasafetam.Porconsequência,napercepçãose

tornamirrecuperáveis.Essefatocriaumadistânciaexcessivaentreosdoisaspectos–

estruturaepercepçãodaestrutura–oque,nonossoentender,geraproblema.

PierreBoulez,próximofocodestetrabalho,emseutexto“Osistemaeaideia”(1986)

dedicaespecialatençãoàquestãoperceptivaemsuarelaçãocomosistema.Antesde

passar ao texto de Boulez, no entanto, é necessário aprofundar um pouco mais a

problemáticalevantadaapartirdaanáliseanterior,poisadiscussãoarespeitonãoé

recente.

4‐Percepçãoversusestrutura:umaaproximação

semiológica

Adécadade1970foiummomentodeintensadiscussãonaáreadasemiologiamusical,

marcada fortemente pelos trabalhos de Jean‐Jacques Nattiez e Jean Molino,

principalmenteatravésdeseusdoistextosmaisimportantes:“Fundamentosdeuma

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semiologiadamúsica”(NATTIEZ,1975b)e“Fatomusicalesemiologiadamúsica”

(MOLINO, 1975). Nattiez e também Molino discutem as bases de uma semiologia

musical que permitiria aprofundar a discussão do sentido simbólico de qualquer

música (NATTIEZ, 1975b, p.50). Nattiez, então, traz para o debate a chamada

tripartiçãodeMolinosegundoaqual“oprocessodesimbolizaçãoimplica3polos:a

mensagemem simesma, em sua realidadematerial, as estratégias de produção da

mensageme suas estratégiasde recepção” (NATTIEZ,1975b,p.50). Sinteticamente,

diríamosqueoprimeiropoloéonívelneutro,éaquelequeservedeancoragemao

funcionamentodosoutrosdoisníveis,éavisãoanalíticadaobraemsuamaterialidade

maisimediata.Osegundoníveléopoiéticoquetratadasestratégiasdeelaboraçãodo

material,asmecânicascriativasecompositivas;eoterceiro,oestésico,éoquetrata

dasestratégiasderecepçãodamensagem,aextremidadeúltimadoprocesso,onível

dapercepçãomusical.

Nattiezafirmaque:

Onívelneutroéumníveldeanáliseondenãosedecideaprioriseosresultadosobtidosporumprocedimentoexplícitosãopertinentesounãodopontodevistadoestésicoe/oudapoiética.Oquetornaneutroesseníveldescritivoéqueasferramentasutilizadasparaorecortedosfenômenos são exploradas sistematicamente até suas últimasconsequênciasesósãosubstituídasquandonovashipótesesounovasdificuldadesconduzemàproposiçãodeoutros.‘Neutro’significaaquique se vai até o fim da aplicação de um procedimento dado,independentementedosresultadosobtidos(NATTIEZ,1975b,p.54).

Acitaçãoacima,emparte,validariatodaaestratégiaanalíticadeBOSS.Umacoisanão

se podenegar em seu trabalho: suapersistência e capacidadedemanter o focoda

análise.Noentanto,Molinoajudaaavançaradiscussão:

O que é, portanto, a análise musical? É essa dialética do trabalhocientífico que, partindo da análise ‘neutra’ do material sonorotranscrito por uma prática social que já é uma análise, progride,definindo pouco a pouco novos estratos de análise, seja integrandodadosemprestadosàsoutrasdimensões(produçãoerecepção),sejaquestionando os instrumentos utilizaos para a análise e tentandoforjarnovos(MOLINO,1975,p.58).

Aanálisesefazporetapas,eéfundamentalaintegraçãodos3eixosdatripartição,éo

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que diz Molino. Os procedimentos serão sempre aproximativos, e a interpretação

estará sempre ligadaà subjetividadedequemanalisa,nãohá comocontrariaresse

princípio,eéissoquedeixaabertaadiscussão.Masopensamentosemiológiconosdiz

também:

As análises do nível neutro não representam a finalidade últimadapesquisasemiológica,maselassãoummomentoimportante.Opontode vista semiológico cessa ali onde não émais possível estabelecerumaligaçãoentreamúsicaelamesmaeaquiloaqueelaremete,doduplopontodevistadocriadoredoouvinte(NATTIEZ,1975a,p.8).

Projetandoessasúltimascolocaçõessobreaproblemáticaanteriormentelevantadaé

possível considerar que a metodologia proposta por BOSS no nível neutro foi

conduzida com extremo cuidado e detalhamento, mas com um excessivo grau de

tolerância em relação à suapouca conexão comonível estésico. Se amanifestação

daquiloquejustamenteguiaocompositoremsualidacomomaterial–aideia–nãose

concretiza de modo minimamente assimilável no nível estésico, onde se situa sua

funcionalidadedaestratégiapoiética?Acontradiçãonospareceevidente.Poroutro

lado,aconexãonívelneutro/nívelpoiéticonessecasoéimpossíveldeseverificar,por

óbvio;mas,acorrer‐seorisco,nelatambémnãoapostaríamos.

5‐Boulezeosistema,eaideia,eoproblema

UmaquestãoterminológicapairaportrásdaaproximaçãodotextodeSCHOENBERG

(1977b)comodeBOULEZ(1986).ÉsabidoqueSchoenbergsempreevitouassociaro

dodecafonismoaumsistema–eleseconsideravaautordeummétodo6.Ofatodenão

6Notexto“Acomposiçãocomdozesons”Schoenbergérealmenteexplícitoaodeclararemumanotadepédepágina:“Eunãosouoinventordeumsistema,massimdeummétodo,oquequerdizerdeumamaneiradecolocarlógicamenteemumaobraumafórmulapredeterminada”.[Jenesuispasl’inventeurd’unsystèmemaisbiend’uneméthode,cequeveutdired’unefaçondemettrelogiquementenoeuvreuneformuleprédeterminée.](SCHOENBERG,1977a:166).FlorivaldoMenezestececonsideraçõesarespeitocitandoinclusiveacontribuiçãodeCagequedefineem1958“métodocomo‘caminhodenotaparanota’“(MENEZES,Flo,2002:207).Nessesentido,Menezesoptapelotermométodooutécnicaquandoserefereaopensamentoserial.Feitasessasressalvas,nestetrabalhooptamosporutilizarotermosistemacomoválidoparaosdoispensamentos–dodecafônicoeserial–assimcomoofazBoulez(1986)deformagenéricaemsuareflexão.

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ter encontrado regras ou leis que definissem uma funcionalidade correlativa às

funcionalidades do sistema tonal lhe incomodavanadefinição. Boulez fala em seus

textostodootempode‘sistema’.Ésabidotambémqueoserialismointegral,oumais

simplesmente o pensamento serial, além de não ter tido um idealizador principal,

tendosidofrutodeumpensamentodealgumaformacoletivo,nuncafoipautadopor

regras ou funcionalidades plenamente definidas. Se for justo e determinante esse

motivo,oequívocofoiassimiladocomoadequação–Boulezsereferetodootempoa

sistemaaorefletirsobreopensamentoserial.Aquiasduassituaçõesserãotratadas

paralelamente,semmaioresdiferenciaçõesentremétodoesistema.

Gerd Bornheim, ao tratar de “Filosofia e sistema” (BORNHEIM, 1978, p.101‐113)

generalizaapertinênciadosistemaenquantomododepensarquenãoéexclusivoda

áreadafilosofia,sendocomumatodoocampoepistemológico.Afilosofiatrabalhacom

amultiplicidadeediversidadedetodososentese,nessesentido,élevadaaconsiderar

orealsobumpontodevistaontológico,opontodevistadoser–oseréoqueháde

comumatodososentes:

Nessesentidodetotalidadeontológicapodemosfundamentaraideiadesistema.Qualquerquesejaoaspectodorealestudadopelofilósofo,ele o considera sempre em função de seu fundamento: trata‐se desaberqualéoserdohomem,oserdaculturaoudanatureza,ouaindaoserdaobradearte,da linguagemeassimpordiante(BORNHEIM,1978,p.108).

Bornheim afirma que “para explicar o sistema não é suficiente partir do próprio

sistema,poisdevemosatendertambémaquiloapartirdoqualseinstauraaexigência

sistemática,ouseja,oproblema”(BORNHEIM,1978,p.101).Apartirdacolocaçãode

Bornheimserátrabalhadaamesmaperguntaemrelaçãoaosdoispontosfocaisdeste

estudo,SchoenbergeBoulez:qualaverdadeiranaturezaeamplitudedoproblemaque

afetavacadaumdessescriadoresnoâmagodesuasaspiraçõesestéticasefilosóficas,

nasituaçãodepressãofaceàperspectivahistóricaqueosenvolvia?

O problema que Schoenberg procura resolver com seu método é claríssimo, e ele

deixou inúmeras referências a respeito. O cerne do problema seria assumir a

emancipação da dissonância, fato amplamente atestado pela produção do final do

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séculoXIXnasobrasdeWagner,MahlerouRichardStrauss,dentreoutros.Umsegundo

aspecto seria justamente a inteligibilidade enquanto fundamental para toda

construçãomusical.Asériejogaafavordainteligibilidade(sem,noentanto,garanti‐

la).Dainteligibilidadeépossívelpassaràcoerência:“Comoumgraudecoerênciatão

inabitualpodeseratingidonamúsicadedozesons?Graçasà leiquedeterminaque

nenhumsomsejarepetidoantesdeseulugarnodesenrolardasérieescolhidacomo

base da composição” (WEBERN, 1980, p.136). A variação: a repetição sempre foi

recurso lícito e mesmo necessário na tradição ocidental. Schoenberg quis evitá‐la

radicalmente:“Cadaumademinhasideiasessenciaiséenunciadaumaúnicavez,ou

seja,eumerepitopoucooudejeitonenhum”(SCHOENBERG,1977d,p.85).Asériede

dozesonsébaseadananegaçãodoprivilégiopelaausênciaderepetição.

A referência histórica é tão forte em Schoenberg que, ao propor o método

dodecafônico, ele visa trabalhar em continuidade,mas tambémemoposição auma

sériedebalizasqueorientavamoprocessocriativodeseusantecessoresdatradição

ocidental:

Deondeaideiadeconstruirumsistemacontraoutrosistemaenãoaolado ou por trás. O face a face com a tradição é fundamentalmentedialético e não renuncia nunca às virtudes antitéticas do combate,como se se tratasse de afirmar ou construir uma teleologia datransformação musical [...] Negatividade do sistema, no sentidoadorniano do termo; imagem inversamente proporcional aosolipsismoqueafetaaaplicaçãodeumaregra(COHEN‐LEVINAS,2000,p.249).

QuantoaBoulez,querespostaseledáàmesmaquestão?Ondeelelocalizaoproblema?

Em ‘O sitema e a ideia’ BOULEZ (1986) se dedica a uma revisão histórica da

problemática do sistema na criação musical, com foco principal nas aquisições da

segundaEscoladeViena.Suavisãocríticaaprofundapoucoapoucoasquestõesnão

totalmente resolvidas, e no correr do texto é delineada sua maior preocupação: a

questãodaescuta,dapercepção,doestésicoemrelaçãoaodadosistematizado–este

seriaograndeproblemaaequacionar.

Schoenbergnãosedescuidoudoestésico.Quandoserefereànecessidadedeclareza

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naexposiçãodequalquerideiamusical,quandosepreocupacomaunidadenaescrita,

quando fala da coerência, ele na verdade procura a eficácia para chegar à outra

extremidadedacorda–arecepção.Aoproporseumétododeescritafundamentado

emumamatrizúnica,Schoenbergprocuraasuficiênciatambémnoquetocaàquestão

estésica.

Masparaalémdamatriz,nocampooperacional,anecessidadedevariaçãopermanente

acrescentaumadificuldadequepõeemriscoaeficáciadométodo:

Quanto à unidadeda obra assumida pela unidade deumamatriz, énecessárioreconhecerautopiadeumtalprojeto,porqueosprodutosderivadosdessesistemaúnico,permanentementesubjacente,devemserdiversificadospelanão repetição textual.Asdeduçõesmúltiplasrevelamrealmenteaentidadedepartida?Outornam‐seelasmaisoumenos autônomas graças à personalidade que se requer delas emrelaçãoaodesenvolvimentoeàforma,sedistanciandoaessepontodamatrizoriginalquenãopodemmaisseconectaraestafontesemumaginásticavisualquenãotemmaismuitacoisaavercomapercepção?(BOULEZ,1986,p.9).

Boulezatacaoproblemafrontalmente,nãosemobservar,énecessáriodizer,quetal

insuficiêncianãopassoudespercebida–asobrasdosvienensessãotestemunhasdas

estratégiasdecompensaçãoadotadasparaneutralizaraslacunasdosistema.

Boulezapontamaisumaspectoproblemático:areferênciaexcessivaaosistematonal

que aparece em diversos procedimentos adotados por Schoenberg, espécie de

nostalgia mesclada à necessidade de validar sua proposta colocando‐a ao abrigo

daquelaquedeixavadelado:

Encontram–se mesmo traços textuais do antigo sistema, que alipermanecem como a estampade uma línguamorta: no quintetodesoprosop.26,atransposiçãoprivilegiadadasérieinicial,aquelaqueproduzirá regiões semelhantes, será efetuada à quinta, intervalofundamentaldalinguagemtonal.Aquinãoseriaquestãodeumretornoexatoàsfunçõestonaisdaquinta;aliásnãoseescutaessatransposiçãocomoligadaaesseintervaloespecífico,masnósacaracterizamospelasduas regiõesde intervalosque ela suscita. Pelomenos, essaquinta‐fantasma é perfeitamente simbólica de um estado de espírito, oumelhor,deumestadodealma:sentimental,claro,masnãoaopontodeabdicar(BOULEZ,1986,p.10).

Aconsequênciadessetipodemecanismovairefletirnoperfildaideia,potencializando

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oproblema:

Aascendênciadoantigosistemasobreonovo,enquantojustificativafundamental vai, portanto, forçar as ideias musicais a nascer e acresceremumambientelimitadorquelhesdaráumaaparênciapré‐fabricada;asideiassãosuscitadasemvistadessaconjunçãodosdoissistemas,ehaveránãosomenteanalogiadeumaoutro,massimtotalrecobrimento(BOULEZ,1986,p.10).

A primeira peça dodecafônica de Schoenberg é uma valsa (Op.23/V); uma das

primeirasobras inteiramenteescritasdeacordocomométodoéasuiteOp.25,que

contemprelúdio,gavota,minueto‐trio,giga.Obviamenteacapacidadeeacriatividade

deSchoenbergatuavam,eosprojetossempreforambemresolvidos.MasoqueBoulez

aponta aqui não é uma indigência técnica, e sim uma certa asfixia que é possível

perceber no tematismo. Ideia e sistema se acoplam,mas com esforço, como numa

tentativadevestirummesmocorpocomduasroupasdisparates,daíaaparência“pré‐

fabricada”quepairasobreotematismo.

QuantoaBerg,Boulezcomentaquãoparticularéseuprocessodededuçãotemáticaa

partirdasérie,porexemplo,nocasodaóperaLulu.ApartirdeumasérieoriginalBerg

aplicaoperaçõesarbitráriasdeescolha–umanotaacadaduas,umanotaacadatrês,

umanotaacadaquatronotas.Oprodutoobtidoéumanovasériededozesons,apartir

daqualelevaiderivarnovasentidadestemáticasmelódicasouharmônicas.Oprocesso

de dedução da série é absolutamente hermético à percepção, distanciando o novo

material da fonte que lhe deu origem. Berg pode também retirar da série algum

intervaloprivilegiado,comoaquarta,porexemplo,quenãonecessitariadaquelasérie

específicaparaviràtona.ApartirdaíBoulezquestiona:“porquerecorreramétodos

dededuçãotãorigorososetrabalhados,seéparaesquecê‐losassimqueelestiverem

servido?” (BOULEZ,1986,p.12).Boulez comestaobservação colocanovamenteem

questãoarelaçãoentresistemae ideiapeloviésdapercepção:“Nadanapercepção

musical que possa nos conduzir à fonte; a cadeia de deduções se mantém

exclusivamentecomopropriedadedoautor,oouvinte,mesmoomaisatento,omais

esclarecido,nãoconseguepercebernadanotextofinal”(BOULEZ,1986,p.12).

ÉcadavezmaisevidentequeBoulezprocurapotencializararelaçãosistema/escuta,

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demodoagerarmaiororganicidadenoparsistema/ideia.

Webern,segundoBoulez,équemconseguemelhorintegrarsistemaeideia:

NaobradeWebern,contrariamenteaBergquemultiplicaoperaçõesnuméricas destinadas enquanto tais a permanerem esotéricas, aoperação sobre a série é redutora, simplificadora ao extremo parapermitir a identificação imediata, para manifestar a evidência semambiguidade(BOULEZ,1986,p.16).

A operação básica efetuada porWebern é suficientemente conhecida – a partir do

Op.21eleintroduzeixosdesimetriaqueimprimemumaespéciedefuncionalidadena

série,queserámanifestadeacordocomoeixoqueguiarafiguração.Umexemploclaro

doaproveitamentodesseseixoséosegundomovimentodoQuartetodecordasOp.28,

cujasérieéapresentadaaseguir:

Figura8:SériedoOp.28,A.Weberncomindicaçãodecélulassimétricas.

Foramindicadasnafiguraacimaassimetriasentrecélulasde2,3,4e6notas.Cada

nível manifesta um tipo de simetria, que pode ser por simples transposição (por

exemplo,primeiraeúltimacélulasde4notas),ouporretrogradaçãoinvertidamais

transposição (por exemplo, segunda e terceira células de 3 notas; ou primeira e

segundacélulasde6notas).ComessetipodeestratégiaWebernprocuraamenizaro

trabalhodapercepção.Aoinvésdeterqueserelacionarcomummódulo12,elapassa

atrabalharcommódulosmenoresde2,3,4ou6notas.

OsegundomovimentodoquartetoOp.28éumbomexemplo.Aformaéextremamente

simples:A–B–A’.Webernorganizaomaterialdemodoquenaprimeiraenaúltima

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parteele trabalha,emrelaçãoàssimetrias, sobcertaneutralidade.Nenhumtipode

simetriaéexplicitamenteprivilegiadonapercepção,comexceçãodealgumasfiguras

de2notasdelimitadasporligaduras,sobretudoentreosc.10e14daprimeiraparte,

porexemplo,quesempreserelacionamporcromatismo:

Figura9:AntonWebern,QuartetoOp.28,segundomovimento,c.10‐14.

Nasegundaparteelealteraoprocedimento,epassaaprivilegiarclaramenteapartição

dasérieemcélulasde3notas.ComopodeservistonaFigura.10aseguir,entreviolae

violonceloháumjogoclaroentrefigurasde3notasquemanifestamsimetrias:

Figura10:AntonWebern,QuartetoOp.28,segundomovimento,c.20‐24.

Essetipodeprocedimentoindicaumaclaraestratégiadeconexãosistema/ideiaeé

issoqueBoulezvaloriza.Seosistemafornececélulassimétricasde3notas,afiguração

em algum momento específico – nesse caso, na segunda parte – vai colocar em

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evidênciataiscélulas.Oprojetocompositivoabsorveumacaracterísticaimanentedo

sistemae joga comelanaarticulaçãoda forma,nodesenvolvimentodo tematismo:

“Ideia e sistema, eu repito, referem‐se um ao outro, explicam‐se um ao outro, se

fortificam, justificam‐se um pelo outro, eles formam, no limite, um casal de uma

completareciprocidade.”(BOULEZ,1986,p.16)

BouleznãoexerceacríticasomentecontraaescoladeViena–suageraçãotambém

passa pelo crivo, com o mesmo rigor. Assimilados os efeitos na transformação da

linguagemmusicalderivadosdetodoomovimentoverificadonaEuropaocidentalna

primeirametadedoséculoXX,arespostasefeznecessária,eestenecessárioapontou

nadireçãodaexacerbaçãodaideia.Aforçaeopotencialrenovadorquealimentavam

a reflexão e a produção de Schoenberg, Berg eWebern os colocava no centro das

atençõesdoscompositorescomprometidoscomatransformaçãodalinguagem.Toda

a reflexão anterior desenvolvida por eles tinha se concentrado na questão alturas,

deixando as demais variáveis numa espécie de automatismoquedependiamais da

avaliação no momento do que de uma lei rigorosa que resolvesse a questão da

adequaçãoecoerênciademodosatisfatório:“Quefazerentão,senãounificarosistema

edarigualimportânciaatodasascomponentesdosom?”(BOULEZ,1986,p.17).

Maisumavezavariável‘percepção’étomadacomofundamentobásiconaapreciação

doproblema.Aorganizaçãodasdozenotaspodeanularasfuncionalidadesantigas,eo

resultadopodeserneutroporquedopontodevistaperceptivocadaalturapodeser

equiparadaaqualqueroutra.Omesmonãoacontececomasdurações–umasériede

duraçõesquepartedeumvalorcurtocomounidade,equecontemumvalormuito

longojustificadoenquantomultiplicaçãodessamesmaunidadepordoze,porexemplo,

nãogeraumasérieequilibrada.Ocampodaagógicanãofuncionadamesmaformaque

ocampodasalturas–anotamuito longase impõefatalmente faceàsmuitocurtas,

imprimindooprivilégionapercepção,desequilibrandooprojetopeladestruiçãoda

premissa básica. Timbre e dinâmica são variáveis ainda mais complexas que não

permitemumcontroleserialanãosersobavaliaçõesmuitosubjetivas.Apartirdesse

raciocínioBoulezacrescentaquenessescasos“ocontextopermanece indispensável

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como critério de julgamento” (BOULEZ, 1986, p.19). Mas, na origem, a grande

preocupação dos compositores envolvidos com o pensamento serial era relativa à

unidade da sistematização como consequente fortalecimento da coerência interna,

valoraprendidodahistóriarecente,equenãopoderiaserdeixadosoltoparacorreções

emfunçãodeumcontextomalaparado.Haviaumacrençaexacerbadanaeficáciada

‘ordem’derivadadeumalógicaunitáriaenquantogarantiadobomfuncionamentodos

projetos:

Era a utopia que dirigia o serialismo integral: além do desejo deunificar o sistema, de fazer justiça às componentes até entãonegligenciadas,dereabilitá‐las,existia,nãomenosforte,umacrençanainfalibilidadeda‘ordem’,quaseumasuperstiçãoemrelaçãoàssuasvirtudes mágicas, se elas não substituíam completamente apersonalidadedocompositor,oapoiavamsemfalhaemseucombatecontraa incerteza, aopreçodeumaparte consentidadeanonimato(BOULEZ,1986,p.18).

Oproblemaaquiressurgesoboutraperspectiva:oesforçonosentidodeconstruirum

sistemaquesequerglobalizante,quegarantaoordenamentodetodasasvariáveisà

disposição em suas perfeitas regulagens não deve gerar como produto um sistema

rígido.Aordemdevecederopassoassimqueseaproximadarigidez,econfundiros

doistermoséperderaapostaporantecipação.Boulezpropõeumasériedeconceitos

ouprocedimentosque carregam junto comeles apossibilidadede flexibilizaçãodo

sistema, ao mesmo tempo que funcionam como reguladores da percepção, como

auxiliaresdamemóriaauditiva,gerandobalizasqueconduzemeorientamaescutano

correr da obra. Em 1997 Boulez faz uma reflexão durante uma entrevista que é

bastantesignificativaporreforçarmaisumavezesseaspecto,pornosfazerperceber

que sua preocupação de fundo é com o ajuste da percepção no momento da

sistematização, seu compromisso é com o jogo do reconhecimento no interior do

sistema:

Naépocademinhajuventude,eupensavaquetodamúsicadeveriaseratemática,semnenhumtema,efinalmenteeuestouconvencidoagoraqueamúsicadevesebasearemcoisasquepodemserreconhecíveismasquenãosãotemasnosentidoclássico,mastemasondeháumaentidade que toma diferentes formas mas com características tãovisíveisquenãosepodeconfundi‐lascomoutrasentidades(BOULEZ,citadoporGOLDMAN,2003,p.84).

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EmconsonânciacomessaafirmaçãoBoulezpropõe3conceitosoumecanismos:aura,

envelopeesinal.Essesconceitosnãoserãodesenvolvidosaqui;apenaspassaremospor

elesdeformaquepossamserinseridosnoraciocínioglobalquevemsendoconstruído

atéagora.

Aaurafuncionacomoumtipodecomplemento,correlativodaantigaapojatura,que

gravita no entorno de um elemento principal, descrevendo figuras variáveis que

podemserconstruídascomaltograudeliberdade,oumesmoseremcompostaspor

conjuntos de classes de notas derivados de uma estrutura anterior. A aura pode

assumirasmaisdiversasformas,epodefuncionarcomoreferênciaparaapercepção

namedidaemquegerablocosmaisoumenosreconhecíveis.

Oenvelopeéumaentidadedenaturezaglobal.Podesercaracterizadoporumaregião

definidadoregistro,ouumtimbreespecíficoque,umavezidentificados,poderãoser

reconhecidos numa segunda escuta. O envelope pode também ser definido pela

duração – um segmento rápido com notas curtas ou com ressonâncias pode

caracterizarumenvelopeporsertexturadefácilreconhecimento.

Osinal,contrariamenteaoenvelope,édenaturezapontual.Umsinalpodearticulara

forma,podemarcaroiníciodeumdesenvolvimento.Umaformaquealternatiposde

texturadiversospodecontarcomsinaisoufamíliasdesinaisquemarcamouanunciam

cadadesvio(BOULEZ,1986,p.26‐28).

Esses3últimosconceitospropostosporBoulezcarregamemseuinteriorumamesma

orientaçãoou função fundamental, reforçandoapreocupaçãosubjacentea todasua

reflexãoqueprocuramosevidenciarnesseestudo:gerarreferenciaisparaaescutade

formaamanteroouvinteconectadoàmensagemquelheéendereçada.

6‐Consideraçõesfinais

Por tudo o que foi desenvolvido até aqui, percebe‐se que Boulez trabalhou na

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continuidadedeSchoenberg,masemumacontinuidadesignificativamenteexpandida.

OquepermitiuaBoulezavançarnareflexãofoiprincipalmenteofatodeque,paraele,

arelaçãocomosistemanãoseencontravainteiramenteresolvida.Asdificuldadesjá

eram apontadas na década de 1960 em um longo texto “A necessidade de uma

orientaçãoestética”(BOULEZ,2007a,p.15‐93).Nessetextoelesededicaaumalonga

reflexão sobre a problemática colocada em relação à eficácia do sistema serial no

momentodecomposiçãodas“Structures”paradoispianos.Em“Osistemaeaideia”

(1986),maisdevinteanosdepoisareflexãoémaisprofundaporquemaisamadurecida

– aqui, sua crítica tanto às soluções da Escola de Viena, quanto às fragilidades do

serialismo integral são contundentes e muito mais abrangentes. A posição de

Schoenberg não é a mesma. Apesar de esperar futuros desenvolvimentos no

dodecafonismo,quepoderiamvirdasgeraçõesaseguir,elehaviaencontradoumgrau

satisfatório de estabilidade em relação ao método, que lhe permitia compor uma

‘música nova’, para ele plenamente justificada porque unificada e coerente

historicamente.Seutextoéumadefesadeseumétodo;otextodeBouleznãoequivale

aumadefesaintransigente–trata‐sedeumrealinhamentodaspremissasbásicasque

orientamaoperaçãodeseusistema,apartirdahistória,apartirdesuaexperiência

própria.

Adiscussãoaquidesenvolvidapartiubasicamentede3termos:estilo,sistemaeideia.

Dentreelessomente2foramtrabalhados:sistemaeideia.Aquestãodoestilonãofoi

explorada7porqueoparsistema‐ideianospareceugerarumfocomaisinteressante,

compossibilidadesdedesenvolvimentoquerespondiammelhorquandoconfrontados.

Dentre os dois termos trabalhados, o sistema já é algo de bastante conhecido,

elaboradoediscutidona literatura tradicional, sobretudonoque se referea todaa

tradição damúsica ocidental que teve o sistema tonal enquanto principal suporte.

Quantoà ideia, trata‐sedeumconceitoquenão faz sentidosomentenocampodas

artes,mas que pode ser desenvolvido em todo campo que envolve a racionalidade

humana.Encontramoscomoetimologiadapalavra‘ideia’:“imagemdealgumacoisaou

7DanielleCohen‐Levinas(2000)desenvolveumalinhaderaciocínionaqualotermo‘estilo’émuitoexplorado.Podeserumpontodepartidaparaumanovadiscussão.

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dealguém,talqueoespíritoaconservanalembrançaearepresentapelaimaginação”

(CNRTL,2016).Ideia,naorigem,portanto,temavercomimagem,comimaginação.A

ideiamusical,nonossoentender,deveriapassarporaí,preservandocertasimplicidade

na concepção, de forma que pudesse ser trabalhada em estreita conexão com a

dimensão perceptiva, e, sobretudo, que fosse afeta ao som, à matéria com a qual

trabalhaocompositor.

FoifeitaumacríticaàabordagemdeJACKBOSSemsuaanálisedoPrelúdiodaSuite

para piano, Op.25 de Schoenberg. A ideia perseguida por BOSS não nos parece

impossível de ser trabalhada; trata‐se de uma ideia simples, condensada, emesmo

factível.Nossa discordância não é sobre a ideia em si, que poderia ser plenamente

desenvolvida em uma composição, mas sim sobre a falta de conexão desta com a

dimensãoperceptivanaanáliseemquestão–nessecasoaideiaescapadamúsica,logo

aanáliseéfragilizada.

AideianoPrelúdiodoOp.25deSchoenberg,nonossoentender,temrelaçãocomuma

espéciedemovimentodevaievem,naalternânciaentredois tiposdetextura:sem

notasrepetidas/comnotasrepetidas.Umaanálise,mesmoquesuperficial,mostrano

iníciodecadasegmentodaforma(c.1,finaldoc.5,finaldoc.9,finaldoc.16)umatextura

semnotasrepetidas,comumapassagempaulatinaaumatexturanaqualarepetição

denotaspredomina.Omecanismoéfacilmentecaptadopelapercepção.Issoserepete

por ondas, até o fim do c.19; a partir daí a ideia da textura com notas repetidas é

abandonada.Estaobservaçãoestásendofeitaaquiapenasnosentidodeapresentar

umpossívelenfoqueanalíticocapazdeclarearumaquestãoquenãoacreditamoster

sidobemequacionada;maséevidentequeserianecessárioumnovoartigoparaque

fossesuficientementedesenvolvida.

Emumaentrevistade2007Boulezdáumexemplodeextremasimplicidade,noqual

descreveamaneiracomoaideiamusicalfoiconcebidaemÉclat(1965):

Éclatfoiúnicamenteumareflexãosobreosinstrumentosressonantes.E eu não pensei de modo algum no que quer que seja como ideiamusical,eupenseisimplesmenteemumacombinaçãodeinstrumentosressonantes. E eu pensei a combinação de instrumentos antes de

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pensarnaideiadacomposiçãoelamesma.Mas,umavezqueocorpoinstrumental foi decidido, aí era necessário utilizá‐lo realmente deumamaneira lógica. Quer dizer, porque instrumentos ressonantes?Porqueelestêmumcomportamentodiferente.Nosinstrumentosquetêmumaressonânciamuitolonga,vocêtemumaressonânciaquevocêpodeanalisarpeloouvido,porqueessaressonânciaficamuitotemponoseuouvido.Masvocêteminstrumentosressonantesqueressoammuito brevemente, sobretudo no agudo, você tem um bandolim oumesmo um violão que ressoam muito curto. Portanto, o que erainteressante era encontrar uma ideia musical que justificasse esseempregoda ressonância.Então,ouvocê tocaesses instrumentosdeumamaneiramuitocurtaeaívocênãopodedistinguirquemtocaoquê.Ou então, pelo contrário, você deixa a ressonânciamorrer e aívocêpodeanalisarosinstrumentosqueresistemmaistempoàusuradaressonância.Eapartirdaívocênãopodemaisjogarcomumtempomedido. O quemede o seu tempo? É a ressonância, quer dizer, é oobjetoelemesmo,e,portanto,énecessáriaumaescritaextremamentelivrequenãoémaisdependentedeumamedida,querodizerdeumamedidanosentidogeraldotermo,umamedidadotempo.Efoiassimquemeveioaideia(BOULEZ,2007b,2’:05–3’:55).

Agêneseda ideiaaquiédescritacomtotal simplicidade.Partindodeumaoposição

clara–muitaressonânciaxpoucaressonância–escolhe‐seumgrupodeinstrumentos.

Opera‐se uma classificação das capacidades de sustentação do som. A partir daí

definem‐se estruturasque jogam como fator em foco, que acabapor determinar a

maneiracomoopassardotempopodesercontrolado–tempoliso,tempoestriado.A

ideiasurgedeumacaracterísticadosom–aregulagemdoparâmetroduraçãoatravés

da capacidade de ressonância de cada instrumento. Essa característica é projetada

sobre um outro aspecto do sistema – o controle do passar do tempo, que deve se

adequaracadatipodetextura–pulsadaounãopulsada.

Aseguirsãoapresentados3exemplosdeexpressãodaideiaemÉclat.Comoficouclaro

nacitaçãoanteriorumadaspossibilidadesdemanifestaçãodaideiaéoataquesecoe

simultâneodediversosinstrumentos,comoacontecenaFigura.11,napróximapágina

–trêsataquessucessivos,cadaumcomumgrupodeinstrumentos,sendoqueemcada

ataquearessonânciaémantidaemalgunsdeles,gerandopercepçõesdiferenciadas:

‐ataque1–pianocomressonância

‐ataque2–bandolimevibrafonecomressonância

‐ataque3–sinoepianocomressonância

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Figura11:Éclat–nº18–PierreBoulez(1965).

Outro exemplo de trabalho com as ressonâncias aparece na figura 12, onde são

colocados sete ataques também com instrumentações diferentes, todos com

ressonância.Cadagrupogeraumtimbrepeladiferençanainstrumentação,ecadaum

resistiráà‘usuradaressonância’emseutempoespecífico.Otempoaquiétotalmente

liso, semorientaçãoquantoaoritmodosataques, conformeespecificadonoaltoda

figura,aseguir:

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Figura12:Éclat–PierreBoulez(1965)–p.7,(Textonoaltodafigura:Daras7entradasdesigualmentesemnenhumaorientaçãorítmica,ordemdosinstrumentos

adlibtum).

Paraterminarumúltimoexemplo:

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Figura13:Éclat–n°26–PierreBoulez(1965).

Na Figura.13 a ressonância participa da ideia interferindo de duas maneiras: no

primeirocompassode26,aressonâncianoataquedopianopermanece.Oregentedeve

ouvi‐la e disparar o ataque do próximo compasso quando essa dissonância se

enfraquecer (observação escrita na parte do piano: ‘esperar que se enfraqueça a

ressonânciadopiano’)–logo,aressonânciaregulaaduraçãodocompasso.Nosegundo

compassode26,Boulezconstróiumaimageminvertidadafiguraataque‐ressonância

decrescendo, comoemumgestoprovenientedamúsicaeletroacústica: ressonância

crescendo‐ataque (a observar o aumento na quantidade do crescendo indicado na

proximidadedoataque).Aressonânciaéutilizadaparagerarumobjetoqueéaimagem

retrogradadaevariadadogestoanteriordopiano.

Com esses últimos exemplos espera‐se ter mostrado, pelo menos em parte, como

Boulezratificanapráticamusicaloquepropõeemsuaelaboraçãoteórica:“Osistema

remeteàideiaquetransformaosistemaquerecriaaideia,eassimsevaisemcessar

na espiral do desenvolvimento. Esse par implica uma perpétua evolução, indica a

analogiacomumuniversoemexpansão”(BOULEZ,1986,p.29).Aimagemutilizadapor

BoulezseaplicatambémaeleeaSchoenberg–ambostrabalharamativamentepela

expansãodopensamentomusicalemsuasrespectivascontemporaneidades,apartir

dossistemas,emfunçãodasideias.

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Demais excertos apresentados foram editados pelo próprio autor para o presentetrabalho.

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Notasobreoautor

EduardoCampolinaVianaLoureiroéProfessordaáreadeComposiçãodaEscoladeMúsicadaUFMG,onde foiChefedoDepartamentodeTeoriaGeraldaMúsicaentre1996‐1998eem2015;CoordenadordoCursodeEspecializaçãoemEducaçãoMusicalentre2003e2009,CoordenadordoVestibular1999‐2000.GraduadopelaUniversitédeParisVIII(Maitrise,DEA),PremierprixdeGuitarepeloConservatoiredeSaintMaur(Paris),MestradopelaFaculdadedeEducaçãodaUFMGcomdissertaçãosobreoensinodadisciplinaHarmonia,DoutoradopelaEscoladeBelasArtesdaUFMGcomtesesobreaquestãodaTécnicanamúsicaenapinturanoséculoXX.Autordolivro‘OuvirparaescreverouCompreenderparacriar’(AutenticaEditora,2001).