RAMOS, Pedro - O Novo Infinito de Nietzsche

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Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. 1-2, jan.-dez., 2006. p. 09-15.

O NOVO “INFINITO” DE NIETZSCHE

PEDRO HUSSAK VAN VELTHEN RAMOS1

1. Prof. Adjunto de Filosofia da Educação – UFRRJ/IM.

RESUMO: RAMOS, P. H. V. V. O novo “infinito” de Nietzsche. Revista Universidade Rural: SérieCiências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 09-15, jan.-dez., 2006. Este artigoconsiste em uma interpretação do aforismo 374, de A gaia ciência, intitulado Nosso novo “infinito”. Estainterpretação visa discutir o sentido de infinito no texto de Nietzsche, mostrando que ele não deve sertomado metafisicamente como o apeíron de Anaximandro, mas sim como a multiplicidade de interpretaçõesperspectivísticas do real. O artigo então procura esclarecer a noção de perspectiva a fim de mostrar emque sentido Nietzsche não recai em um relativismo teórico ao defender a infinidade de interpretaçõespossíveis do real. O desenvolvimento do artigo visa mostrar que o relativismo ainda se encontra dentro danoção tradicional do conhecimento, pois emerge dos dualismos criados por este. Compreender operspectivismo significa saltar sobre todos os dualismos metafísicos a fim de situar uma outra instância dedeterminação do real. Se a teoria do conhecimento tradicional opera com uma compreensão substancialistada realidade, o perspectivismo estabelece uma visão relacional da coisa.Palavras-chave: Infinito, metafísica, multiplicidade, perspectivismo.

ABSTRACT: RAMOS, P. H. V. V. Nietzsche’s new infinite. Revista Universidade Rural: SérieCiências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 09-15, jan.-dez., 2006. This paperconsists in an interpretation of aphorism 374 of The Gay Science entitled Our New “Infinite”. Thisinterpretation aims at discussing the sense of infinite in Nietzsche’s text showing that it should not be takenmetaphysically as the Anaximandro’s apeiron, but rather as the multiplicity of perspectivist interpretationsof the real. This paper then seeks to clarify the notion of perspective in order to demonstrate in whichsense Nietzsche does not fall in a theoretical relativism upon defending the infinity of possible interpretationsof the real. The deployment of the paper intends to show that relativism is still within the traditional notionof knowledge, since it rises from the dualisms created by this latter. Understanding the perspectivismmeans jumping over all the metaphysical dualisms to establish another instance of determination of thereal. Although the traditional knowledge theory operates with a substancialist comprehension of reality,perspectivism establishes a relational view of the thing.Key words: Infinite, metaphysics, multiplicity, perspectivism.

A verdade não está em um sonho apenas,mas em muitos sonhos

(As Mil e Uma Noites)

Este art igo consiste em umainterpretação do aforismo 374, de A gaiaciência, intitulado Nosso novo “infinito”.Esta interpretação visa esclarecer, aindaque não totalmente, que o “infinito” deNietzsche deve ser pensado como amul tipl icidade de interpretaçõesperspect iv íst icas do real. Comoconseqüência deste esclarecimento, otrabalho pretende mostrar em que sentidoo perspectivismo não deve ser interpretadocomo relativismo, mas sim como umaposição que se situa para além todas asoposições tradicionais da teoria do

conhecimento, como relativo e absoluto,sujeito e objeto, verdade e erro, doxa eepisteme, realismo e idealismo,racionalismo e empirismo.

Eis o texto de A gaia ciência:

Nosso novo “infinito”. – Até onde vai ocaráter perspectivista da existência, oumesmo se ela tem outro caráter, se umaexistência sem interpretação, sem “sentido”[Sinn], não vem a ser justamente “absurda”[Unsinn], se, por outro lado, toda existêncianão é essencialmente interpretativa – issonão pode, como é razoável, ser decididonem pela mais conscienciosa análise eauto-exame do intelecto: pois nessaanálise o intelecto humano não pode deixarde ver a si mesmo sob formas perspectivase apenas nelas. Não podemos enxergar

Dossiê Temático Filosofia

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além de nossa esquina: é umacuriosidade desesperada querer saberque outros tipos de intelecto e deperspectiva poderia haver: por exemplo,se quaisquer outros seres podem sentiro tempo retroativamente ou, alternando,progressiva e regressivamente (com oque teria uma outra orientação de vida euma outra noção de causa e efeito). Maspenso que hoje, pelo menos, estamosdistanciados da ridícula imodéstia dedecretar, a partir de nosso ângulo, quesomente dele pode-se ter perspectivas.O mundo tornou-se novamente “infinito”para nós: na medida em que nãopodemos rejeitar a possibilidade de queele encerre infinitas interpretações. Maisuma vez nos acomete o grande temor –mas quem teria vontade deimediatamente divinizar de novo, àmaneira antiga, esse monstruoso mundodesconhecido? E passar a adorar odesconhecido como “o serdesconhecido”? Ah, estão incluídasdemasiadas possibilidades não divinasde interpretação nesse desconhecido,demasiada diabrura, estupidez, tolice deinterpretação – a nossa própria, humana,demasiado humana, que bemconhecemos...1

O “novo infinito” aqui se relaciona coma multipl icidade perspectiv ística,compreensão que se opõe frontalmente a“antigo infinito”, o infinito da tradiçãometafísica. Para marcar a diferença dasduas noções, Nietzsche coloca seu“infinito” entre aspas, pois de acordo como pensamento metafísico, o infinito étomado como fundamento de todarealidade finita que, por sua vez, encontra-se condicionada àquele. Do ponto de vistafilosófico, a primeira formulação do infinitoremete ao apeíron, o ilimitado, deAnaximandro.2 Esta noção aqui surgecomo o amorfo e sem determinação emoposição àquilo que se apresenta

determinado e diferenciado na dimensãoespaço-temporal. Os problemas quedevem ser enfrentados em relação ao “novoinfinito” consistem em mostrar que não setrata de voltar ao âmbito do amorfo e doindeterminado, mas ao contrário, pensar oinf inito desde um horizonte dedeterminação, ou seja, a partir do limite dacoisa. Com é possível então pensar oinfinito não metafisicamente? Isto significaentender que o infinito não é o fundamentodo finito, mas paradoxalmente, dá-se nojogo das relações de forças finitas.

Nietzsche pensa o infinito a partir dasua noção de perspectiva. De acordo como texto, não se pode rejeitar que o mundoencerre inf initas interpretações eperspectivas. Mas o que Nietzscheentende por perspectiva? De início, somoslevados a pensar esta questão em analogiacom a perspectiva clássica da pintura queconsiste no estabelecimento de ponto defuga a partir do qual aparecem grandezasrelativas a este. Este ponto seria, assim,um ponto ideal de visão a partir do qual ascoisas aparecem em um volume,apresentando-se como simplesmentedadas.

Esta analogia com a pintura não explicao fenômeno do perspectiv ismonietzschiano, pois este ponto ideal não éum verdadeiramente perspectivo, mas simum ponto extraperspectivo porque seriaum ponto fora de qualquer relação. Esteponto aparece como único eincondicionado, já que todos os objetosque aparecem na imagem sãodependentes deste ponto. Aqui estamosmais próximos do pensamento metafísicoque procurou determinar da mesma formaum ponto de vista extraperspectivo quefosse o fundamento da realidade, ou seja,um ponto absoluto e incondicionado, forade qualquer perspectiva concreta. Este foi

1NIETZSCHE, F. A gaia ciência, aforismo 374, p. 278.

2Cf. ANAXIMANDRO; PARMÊNIDES; HERÁCLITO. Os pensadores originários, p. 39.

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o projeto da metafísica, tentar encontrar umprincípio, um ponto seguro, tal como o deArquimedes, que valha por si e seja em si,independente de toda relação. Tal princípioincondicionado recebeu inúmeros nomesna tradição: primeiro motor imóvel, a razãosuficiente, a causa sui, o cogito cartesianoetc. A idéia de que o mundo tornou-senovamente infinito implica na compreensãode que não há este ponto extraperspectivoque fundamenta a realidade, mas que todoreal se revela apenas em um domínio derelações em constante transformação.

Destarte, assumir o caráterperspectivístico da existência significarealizar a experiência do sem fundo. Ohomem é impotente para determinar tantoa causa quanto a finalidade da existência,pois ele v iv e sempre no meio, nointermezzo, lançado desde sempre nadimensão do v ir-a-ser enquanto suadinâmica de realização. Desde sempretocado e perpassado pelo devir, o homemnão consegue para além, mas vive sempredeterminado por esta experiência.

Nietzsche diz que mundo tornou-senovamente infinito, mas não para reafirmara idéia de um fundamento infinito para ofinito, mas, ao contrário, para que o homemretorne para a dimensão do vir-a-ser e lápermaneça no sem fundo da existência. Éneste sentido que é possível entender apergunta do aforismo sobre até onde vai ocaráter perspectiv íst ico de nossaexistência, ou antes, se é possível pensarem algum outro caráter para a nossaexistência. A resposta aqui consiste emque o real se dá sob formas perspectivase apenas nelas, não é possível saltar paraalém de nossa esquina. Vemos sempre apartir de nosso ângulo. Em outras palavras,é impossível chegar à coisa senão a partirde uma visão que a determine; ver algode modo “isento” e “desinteressado”significaria o mesmo “olhar sem ver”. A

nossa esquina é, ao mesmo tempo, aprisão da qual na se pode saltar (já quenão é possível não estar na dimensão deum olhar) e também a abertura para novase infinitas possibilidades de interpretação,pois cada perspectiva diferente enriquecemais a compreensão do mundo.

Mas se são permitidas inf ini tasinterpretações, então é possível objetarque o perspectivismo se constitui como umdos principais problemas apontados portoda teoria do conhecimento – orelativismo. Se cada um possui o seu“ponto de vista”, não é possível pensar emcritérios universalmente válidos quegarantam a universalidade doconhecimento. O rompimento com acompreensão tradicional do conhecimentotrazido pelo perspectivismo significariaassumir uma tese do senso comum quediz que o ponto de vista revela apenas umaopinião subjetiva de um indivíduo (oumesmo a opinião de um grupo social)acerca de um assunto. Tal ponto de vistadeveria passar pela depuração do métodocientífico a fim de se fundamentar umacompreensão segura e universalmenteválida.

No entanto, Nietzsche afirma que nãohá outro tipo de conhecimento senão operspectivo.3 Com efeito, trata-se desuperar a compreensão tradicional dateoria do conhecimento, mas isto nãosignifica igualar perspectiva a “ponto dev ista”, pois o que se entende porperspectiva aqui é essencialmentediferente da compreensão comum. Masem que consiste esta “esquina” e por queela não deve ser pensada como “ponto devista”?

A palavra perspectiva, de acordo como dicionário Houaiss,4 é composta da raiz–spek*, que significa olhar com atenção,contemplar, observar. Desta raiz, tambémvêm as palavras: aspecto, aparência,

3Cf. NIETZSCHE, F. Genealogia da moral, Terceira Dissertação, § 12.

4Cf. HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.

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espectro, forma, figura, vista, espetáculo,espectador, spectulator, o espião,speculum, o espelho, e espécie; além deoutros termos como circunspecção, o“olhar em torno”; introspectivo, o que olhapara dentro; o suspeito, o que olha de baixopara cima. A palavra perspectiva écomposta pelo “ver” (-spek) e pelapreposição per, que significa através.Perspectiva significa que olhamos sempreatravés de um médium que determinacomo vemos determinada coisa. Mas alémde olhar através, também sempre olhamospara, em direção a algo. Olhar parasignif ica ad spectus, o aspecto.Perspectiva também significa ver a coisasob determinado aspecto, “aparência soba qual algo se apresenta”. Esta noçãoimplica que nunca temos um olhar inteiropara a realidade, mas sempre vemos demodo fragmentário. A idéia de ver oaspecto também está na palavra gregatheoreîn indica que teorizar significa ver(horáo) o aspecto (théa).5

Perspectiva significa ver através, verdesde um horizonte previamente aberto.Além disso, ver significa sempre ver algo,pois todo olhar está sempre direcionadopara. “Olhar para” é o aspecto. Ao semostrar em uma determinada visão, acoisa nunca se revela por inteiro, mas sobdeterminados aspectos. Mas se assim for,onde estaria o “miolo”, o “núcleo” da coisa?Aqui estamos diante da compreensãosubstancialista da coisa, que é a idéia deque ela consiste em um núcleo verdadeiroao qual são adicionados seus atributos ouacidentes. A substância é exatamenteaquilo que jaz por baixo dos atributos, o

“ser” da coisa, aquilo que faz a coisa serela mesma independente de seus aspectosou modos de aparecer. Na Genealogia damoral, Nietzsche critica a idéia da coisacomo substância + acidentes, mostrandoque esta compreensão repousa em umpreconceito da linguagem, pois se digo “oraio brilha”, pressuponho que há um“sujeito”, o raio, que existe independentedo brilhar.6 No entanto, se se retira oatributo, o brilho, não aparece a “substância”da coisa, o raio. A força de determinaçãodo raio está exatamente no seu brilhar, nomodo como ele aparece. Se não há umsujeito sustentando o aparecer, istosignifica que o que a coisa revela de si sãosimplesmente aspectos.

O aspecto é o como a coisa se mostraou se revela em um determinado momento.Nunca temos acesso a este núcleo, massomente a seus aspectos, o que significaque sempre acessamos a coisa em umdeterminado mostrar. O aspecto é orevelar-se da coisa como tal, isto é, o comose vê a coisa, mas não no sentido de quehá uma coisa que subsiste à visão, porquea própria coisa só se revela em umaperspectiva.

Apesar de Leibniz adotar umacompreensão substancial ista, umaimportante passagem da Monadologia dáconta perfei tamente deste caráterfragmentário da realidade:

E assim como uma mesma cidade, vistade vários lados, parece completamenteoutra e fica como que multiplicadaperspectivamente, ocorre também que,pela profusão infinita de substâncias

5Cf. HEIDEGGER, M. Ciência e meditação. In: Ensaios e Conferências, p. 45. Sobre o verbo teorizar,afirma Heidegger: “O verbo theoreîn nasceu da composição de dois étimos Théa e horáo. Théa (veja-seteatro) diz a fisionomia, o perfil em que alguma coisa é e se mostra, a visão que é e oferece. Platão chamaesse perfil, em que o vigente mostra o que ele é, de eîdos. Ter visto, eidénai, o perfil, é saber. O segundoétimo em theoreîn, o horáo, significa: ver alguma coisa, tomá-la sob os olhos, percebê-la com a vista.Assim resulta que theoreîn é Théa e horáo: visualizar a fisionomia em que aparece o vigente, vê-lo e poresta visão ficar sendo com ele”. De acordo com Heidegger, a tradução latina, contemplari, que se aproximaetimologicamente de Templum, não traz o espírito da palavra grega, pois “significa separar e dividir umacoisa em um setor e aí cercá-la e circundá-la”.

6NIETZSCHE, F. Genealogia da moral, Primeira Dissertação, § 13, p. 36.

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simples, há como que outros tantosdiferentes universos, que não sãoentretanto senão as perspectivas de umúnico de acordo com diferentes pontos devista de cada mônada.7

Se alguém chega a uma cidade e olhapara ela de longe, ele terá a impressão deque a cidade está escondida atrás de seusprédios. Mas onde está a cidade? Ele tentaentrar na cidade para encontrá-la atrás dosedifícios. Ele continuará vendo apenasaspectos da cidade, o “detrás” será sempreum mistério para ele, mas ele terá novosganhos nesta busca, pois estará sempredescobrindo novos aspectos que antesestavam velados. Se ele prestar atençãoem algo, descobrirá novas possibilidadesde realização da própria coisa que antesnão percebia, e isto sempre em umadinâmica viva de renovação e crescimento.A realidade, compreendida comoperspectiva, não acontece como sendo daordem do substantivo, mas sim do verboà medida que o real é um operar, umprocesso de realização em que a coisa sefaz coisa a partir de um domínio derelações.

Leibniz ainda se move emcompreensão substancial ista porqueacredita que há uma cidade que subsistea todos os pontos de vista, mas estapassagem mostra bem em que sentidouma mesma cidade parece sempre outravista a partir de cada visada, tornando-seassim multiplicada e infinita de acordo comas perspectivas pela qual ela é vista.Como? A cidade é sempre outra? Entãoela não possui uma consistência?Acontece que a mesma cidade sempre serevela em uma multiplicidade de aspectos,ou seja, a cidade se torna o que ela é nassuas diferenciações.

Tal processo ocorre porque a coisa nãodeve ser pensada isoladamente, de modo“isento” e “em si”, mas sempre em umdomínio de relações, o que significa queas coisas se dão sempre em um horizonte,em um olhar. Não se pode enxergar alémde sua esquina. Mas se o homem está nadimensão do ver, isto significa que ele jásempre viu, pois o olhar está desdesempre determinando de antemão a coisa.Este olhar prévio é o que chamamosperspectiva – ver através. Perspectiva é omédium a partir do qual se vê, é o meioque faz com que ver seja ver alguma coisa,e também que faz com que a coisa só sejaa partir desta visão.

É nesta relação circular que Nietzschepensa que a noção de perspectiva realizauma superação da noção tradicional doconhecimento, se este é compreendidocomo a operação que o intelecto fazvisando a reprodução ou representação dacoisa em si mesma. O problema destacompreensão é que se parte da idéia deque há algo simplesmente dado para queo intelecto possa representá-lo e, paraalcançar esta representação correta dacoisa, o conhecimento deve partir decritérios, que são estabelecidos por uma“teoria do conhecimento” ou uma“epistemologia”, a fim de que se alcanceuma visão isenta e desinteressada, emsuma, objetiva, da coisa.

No entanto, a busca da objetividade nãopassa de uma ilusão, pois uma visão“isenta” seria efetivamente um “não-ver”.A questão é que todo conhecimento quese pretende objetivo já está previamenteorientado pela própria paixão peloconhecimento, mas esta própria éesquecida quando se pretende estabelecerum saber sobre algo. A paixão peloconhecimento implica no estabelecimento

7Cf. LEIBNIZ, G. W. Monadologie, p. 106. 57. “Et comme une même ville regardée de differens côtésparoist toute autre et est comme multipliée perspectivement, il arrive de même, que par la multitude infiniedes substances simples il y a comme autant de differents univers, qui ne sont pourtant que les perspectivesde un seul selon differents points de vue de chaque monade“ (tradução nossa).

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de uma relação com seu objeto, em outraspalavras, coloca-se a coisa em umadeterminada perspectiva, a saber, a doconhecimento que, portanto, aparecesempre guiado por um interesse prévio. Àmedida que o “sujeito” coloca a coisa naperspectiva do conhecimento, isto implicaque este próprio esforço de se conhecer acoisa objetivamente se mostra fracassado.Sempre que se almeja o conhecimento,procura-se alcançar a coisa em si, masexatamente pelo fato de que o próprioconhecimento se revela um modo deorientação para a coisa, então isto implicaque ela nunca é em si, mas sempre parasi. Mas isto não no sentido de que há umobjeto simplesmente dado e outrainstância que é a relação. A relação é todohorizonte de realização possível, já que acoisa aparece sempre orientadapreviamente a partir uma perspectiva.

Entendido como perspectiva, oconhecimento não se mostra como umórganon para se chegar a uma coisasimplesmente dada. O “sujeito”, ohorizonte/perspectiva e o “objeto” nãodevem ser tomados como três instânciasestanques, mas sim como uma unidade,sendo a separação algo derivado eposterior. Esta unidade é propriamente ofenômeno da perspectiva. Não se faznecessário, portanto, tal como na teoria doconhecimento tradicional, um método quede antemão pudesse assegurar algo quegaranta a possibilidade de se chegar aoconhecimento, antes todo “método” é quedev e ser pensado como sendodeterminado por uma visão prévia.

O perspectivismo de Nietzsche se situapara além da compreensão tradicional doconhecimento porque recusa acompreensão substancialista em prol deuma noção relacional da realidade. Talcompreensão implica que o mundo se dáem um infinito de relações, portanto quantomais “‘olhos’ soubermos ter sobre a coisa,

mas completo será o seu ‘conceito’, sua‘objetividade’”.8 A compreensão relacionalconcerne a um pensamento que superaos conceitos tradicionais do conhecimento,portanto não cabe falar em um“relativismo”, já que esta própria visão estádentro dos dualismos (absoluto e relativo)que, por sua vez, estão calcados em umavisão substancialista. O relativismo sóexiste enquanto uma contraposiçãodualista do absoluto. No entanto, em todanegação dual, o pólo que nega encontra-se sempre determinado por aquilo que elenega. Pensar na dimensão relacional eperspectiva significa colocar-se em umaoutra instância de determinação de realonde não cabem os dualismos.

É também a partir de umacompreensão relacional do real que sedev e entender um dos problemasfreqüentemente colocado em relação aoperspectivismo de Nietzsche. Se o própriopensamento de Nietzsche é umaperspectiva dentre as outras, ou se eleconsidera que o perspectivismo é umacompreensão privilegiada do real. Noprimeiro caso, Nietzsche teria que afirmarque sua própria perspectiva é mais umadentre todas as outras posições filosóficas,mesmo as que negam o perspectivismo.Neste caso, esta tese fica comprometida,pois seria necessário afirmar que tesescontrárias a ele também são válidas. Nosegundo caso, a tese de Nietzschetambém se complica, pois, então, aperspectiva teria de ser tomada como umfundamento, o que também a contraria.

Consideramos que, para Nietzsche, hásim uma privilegiada, aquela que participada compreensão da realidade comoperspectiva. No entanto, esta v isãoprivilegiada não pode ser entendida comouma visão abstrata, um ponto ideal “fora”de qualquer relação; ao contrário, pensara perspectiva significa pensar a partir doAbgrund, do sem fundo do real . A

8NIETZSCHE, F. Genealogia da moral, Terceira Dissertação, § 12, p. 108.

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perspectiva deve ser sempre pensada emuma dinâmica de realização concreta, ouseja, enquanto diferenciação. Destarte, elasempre se revela em uma visão particular,não há nada que ultrapasse a perspectivaconcreta que se realiza em um horizontedeterminado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANAXIMANDRO; PARMÊNIDES;HERÁCLITO. Os pensadores originários.Trad. Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed.Petrópolis: Vozes, 1993. 93 p.

HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaissda língua portuguesa. Versão 1.0. Rio deJaneiro: Objetiva, 2001. CD-ROM.

HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências.Trad. Emmanuel Carneiro Leão et. al.Petrópolis: Vozes, 2002. 232 p. (ColeçãoPensamento Humano).

LEIBNIZ, G. W. Monadologie. Paris:Gallimard, 1995. 169 p.

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. PauloCésar de Souza. São Paulo: Schwarcz,2001. 362 p.

____________. Genealogia da moral: umapolêmica. Trad. Paulo César de Souza.São Paulo: Companhia das Letras, 2001.179 p.