Política Habitacional, Assentamentos Precarios. Parametros, Tecnicos, Metodologias. 2008

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Política Habitacional, Assentamentos Precarios. Parametros, Tecnicos, Metodologias. 2008

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  • Poltica Habitacional e a integrao Urbana de assentamentos Precrios

    Parmetros conceituais, tcnicos e metodolgicos

  • Ministrio das Cidades

    Ministro de Estado das CidadesMARCIO FORTES DE ALMEIDA

    Secretrio ExecutivoRODRIGO JOS PEREIRA-LEITE FIGUEIREDO

    Secretria Nacional de HabitaoINS MAGALHES

    Diretora do Departamento de Desenvolvimento Institucional e Cooperao TcnicaJNIA SANTA ROSA

    Diretora do Departamento de Urbanizao de Assentamentos PrecriosMIRNA QUINDER BELMINO CHAVES

    Diretor de Produo HabitacionalDANIEL VITAL NOLASCO

    Secretaria Nacional de Habitao

  • Ministrio das Cidades

    Secretaria Nacional de Habitao

    Poltica Habitacional e a integrao Urbana de

    assentamentos Precrios

    Parmetros conceituais, tcnicos e metodolgicos

    Braslia DF2 reimpresso

    2008

  • POLTICA HABITACIONAL E A INTEGRAO URBANA DE ASSENTAMENTOS PRECRIOS: PARMETROS CONCEITUAIS, TCNICOS E METODOLGICOS

    ORGANIZAOJnia Santa Rosa (Ministrio das Cidades)

    CAPAA+ Comunicao

    PROJETO GRFICO E EDITORAOGabriel H. Lovato

    FOTOSPrograma Habitar Brasil-BID

    TRATAMENTO DE IMAGEMGermano Andrade Ladeira (Ministrio das Cidades)

    REVISOFlavio Henrique Ghilardi (Ministrio das Cidades)Otaclio NunesSilvana Tamiazi (Ministrio das Cidades)

    Os textos deste livro so de inteira responsabilidade de seus autores.

    ISBN 978-85-60133-63-5

    Ministrio das Cidades

    Secretaria Nacional de Habitao

  • AGRADECIMENTOS

    Este livro s foi possvel graas participao de especialistas e tcnicos de diversas instituies pblicas, tcnicas, acadmicas e de pesquisa que h muitos anos se dedicam ao tema da habitao popular e da urbanizao de assenta-mentos precrios. Eles foram imprescindveis para que pudssemos avanar na formulao de uma poltica nacional de integrao urbana de assentamen-tos precrios. A Secretaria Nacional de Habitao do Ministrio das Cidades tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar parte substantiva das contribuies e discusses presentes nesta publicao.

  • APRESENTAO

    Com a criao do Ministrio das Cidades, em 2003, um novo marco pol-tico-institucional foi institudo para o setor habitacional de forma a articular a rea de habitao de interesse social e o setor habitacional de mercado, eixos importantes da poltica de desenvolvimento urbano no pas. A nova Poltica Nacional de Habitao PNH, aprovada em 2004 pelo governo federal, definiu de forma prioritria a integrao urbana de assentamentos precrios como um de seus principais componentes. A necessidade de construo de uma polti-ca habitacional com foco na integrao urbana de assentamentos precrios, especialmente na garantia do acesso ao saneamento bsico, regularizao fundiria e moradia adequada, articulada a outras polticas sociais e de de-senvolvimento econmico, essencial na implementao de qualquer estra-tgia de combate pobreza e perspectiva de sustentabilidade urbana. Cidades com vastas pores de seu territrio ocupadas por assentamentos precrios dificilmente podem ser sustentveis do ponto de vista scio-ambiental se no efetivarem intervenes que visem incluso scio-espacial do expressivo contingente populacional que reside nesses assentamentos.

    Dispor de informaes sistematizadas e de ferramentas de anlise capazes de contribuir no entendimento da dinmica social de produo dos assenta-mentos precrios nas cidades brasileiras e na definio de polticas e programas capazes de efetivar a integrao urbana destes assentamentos tem sido um dos grandes desafios da atual poltica habitacional. O presente livro rene textos e reflexes que contriburam para isso. Reunindo um conjunto importante de especialistas e pesquisadores sobre o tema dos assentamentos precrios, foram trabalhadas dimenses conceituais e metodolgicas, tcnicas e dados de mensurao e espacializao, tipologias e parmetros de interveno urbana, entre outros aspectos.

    O conjunto de reflexes reunidos no presente livro foi apresentado e de-batido nas oficinas de trabalho realizadas sob a coordenao da Secretaria Nacional de Habitao do Ministrio das Cidades. Grande parte das diretrizes apresentadas nestas reunies de trabalho foi fundamental para subsidiar a definio das diretrizes da nova Poltica Nacional de Habitao e do progra-ma nacional de urbanizao e regularizao de assentamentos precrios do governo federal.

    Finalmente, cabe destacar que com a aprovao da Lei Federal N 11.124/ 2005, que instituiu o Sistema e o Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social - SNHIS/FNHIS e seu Conselho Gestor, o programa nacional de urba-nizao e regularizao de assentamentos precrios passa a ser prioritrio. Em 2006 o FNHIS recebeu R$ 1 bilho para iniciar a sua operao. Parte substantiva destes recursos foi direcionada, por meio de repasse aos estados e municpios, para a implementao de projetos de integrao urbana de assentamentos pre-crios. Tambm em 2007, a urbanizao de assentamentos precrios ganha projeo nos investimentos do governo federal. De forma indita, o tema da urbanizao de assentamentos precrios foi considerado como um dos eixos

  • fundamentais para a consecuo do desenvolvimento econmico e social do pas, ao ser includo no rol de aes do Programa de Acelerao do Cresci-mento PAC.

    O Programa, lanado em janeiro de 2007, consiste em um conjunto de medidas, a serem implementadas entre 2007 e 2010, destinadas a: incentivar o investimento privado, aumentar o investimento pblico em infra-estrutura e remover obstculos (burocrticos, administrativos, normativos, jurdicos e legislativos) ao crescimento.

    Mais especificamente para a urbanizao de assentamentos precrios, a expectativa que o volume de investimentos alcance R$ 17 bilhes nos pr-ximos quatro anos na rea de habitao e saneamento.

    Esperamos que os artigos reunidos neste livro no apenas contribuam qua-lificando o debate sobre a questo dos assentamentos precrios, mas tambm venham a consolidar uma nova perspectiva das polticas pblicas de integra-o e urbanizao dos assentamentos precrios reforando o reconhecimento do direito cidade e moradia digna, especialmente da populao de baixa renda.

    Ins MagalhesSecretria Nacional de Habitao

  • Sumrio

    PARTE 1

    Contextualizao / Caracterizao 13Prof. Dr. ADAUTO LCIO CARDOSOIPPUR/UFRJObservatrio IPPUR/UFRJ-FASE

    Parmetros e tipologias 47Profa. Dra. LAURA MACHADO DE MELLO BUENOFAU/PUC CampinasPesquisadora do LABHAB/FAU/USP

    Estratgias de enfrentamento do problema: favela 61Profa. Dra. ROSANA DENALDISecretaria Municipal de Incluso Social e HabitaoPrefeitura Municipal de Santo Andr - SP

    PARTE 2

    Estratgias de gesto 79Prof. Dr. SRGIO DE AZEVEDOTitular da Universidade Estadual Norte Fluminense e Coordenador do GT Cidade, Metropolizao e Governana Urbana Associao Nacional de ps-graduao e Pesquisa em Cincias Sociais.

    O desafio da mensurao 93Profa. Dra. SUZANA PASTERNAKFAU/USP

    A questo do dficit habitacional nas favelas: os pressupostos metodolgicos e suas implicaes polticas 111Prof. Dr. SRGIO DE AZEVEDOTitular da Universidade Estadual Norte Fluminense, Membro do Instituto do Milnio / Observatrio das Metrpoles e Consultor Ad Hoc da Fundao Joo Pinheiro e do Ministrio das Cidades.MARIA BERNADETE ARAJODemgrafa, Coordenadora do Centro de Estatstica e Informaes da Fundao Joo Pinheiro

    Uma metodologia para a estimao de assentamentos precrios em nvel nacional 125MARIA PAULA FERREIRA (Fundao Seade e consultora do CEM/Cebrap)EDUARDO C. L. MARQUES (DCP/USP e diretor do CEM/Cebrap)EDGARD R. FUSARO (Dieese e consultor do CEM/Cebrap)ELAINE G. MINUCI (Fundao Seade)

  • PARTE 1Contextualizao / CaracterizaoProf. Dr. ADAUTO LCIO CARDOSO

    Parmetros e tipologiasProfa. Dra. LAURA MACHADO DE MELLO BUENO

    Estratgias de enfrentamento do problema: favelaProfa. Dra. ROSANA DENALDI

  • contextualizao / caracterizao

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    Contextualizao / CaracterizaoProf. Dr. ADAUTO LCIO CARDOSOIPPUR/UFRJObservatrio IPPUR/UFRJ-FASE

    O presente texto tem como objetivo apresentar elementos conceituais e metodo-lgicos para que possam ser delineadas propostas para a constituio de uma Poltica Nacional de Urbanizao e Regularizao de Assentamentos Precrios. A primeira parte do texto desenvolve uma reflexo sobre as formas de produo e de reproduo dos assentamentos precrios, enfocando dois temas: a especificidade do mercado de moradias e o papel da legislao. A segunda parte discute as tendncias histricas na atuao dos bancos multilaterais de fomento (BID e Banco Mundial), buscando refletir sobre as mudanas que vm se operando nessa atuao e estabelecendo alguns parme-tros crticos sobre as linhas adotadas mais recentemente. Em seguida busca-se qualifi-car o que se entende por assentamentos precrios, atravs de um breve histrico sobre os conceitos e as mudanas operadas, tanto no plano das definies quanto no plano da realidade concreta. O item subseqente busca estabelecer, brevemente, algumas caractersticas centrais da populao residente em assentamentos precrios, do ponto de vista demogrfico e social. O texto conclui com um histrico das intervenes sobre assentamentos precrios no Brasil, buscando, basicamente, estabelecer quais as formas de interveno e os mecanismos institucionais acionados, em cada momento. Com base nas reflexes elaboradas nestes itens, passa-se para a ltima seo, que apresenta algumas propostas para a discusso.

    A produo e a reproduo dos Assentamentos Precrios

    A dinmica socioeconmicaTomando como referncia o debate internacional, duas abordagens conservado-

    ras vm obtendo substancial hegemonia recentemente: a viso de Mayo e Angel, economistas do Banco Mundial, que publicam no incio da dcada de 90 o trabalho intitulado Housing: Enabling Markets to Work (WORLD BANK, 1993); e a viso do economista peruano Hernando de Soto (DE SOTO, 2001). Essas duas abordagens apresentam argumentos similares em alguns sentidos na explicao das causas da proliferao dos assentamentos irregulares e precrios na Amrica Latina.

    Para De Soto, que trouxe a questo da regularizao da propriedade para um pblico mais amplo, as sociedades latino-americanas se caracterizariam por apresentar uma economia submersa, ou seja, uma capacidade de atividade econmica e de empre-endedorismo que s no se desenvolve mais por causa dos obstculos colocados por uma legislao excessiva, antiquada e com padres irrealistas, aliada a procedimentos burocrticos morosos, excessivos e desnecessrios, cujo efeito final manter essa am-pla atividade econmica na informalidade. Essa mesma anlise aplicada questo da propriedade da terra, j que os mesmos obstculos impossibilitam a transforma-o dessa riqueza em capital. Nesse sentido, a simplificao de procedimentos e a criao de um registro de propriedade unificado, que permita dar confiabilidade s transaes, permitiria, na viso de De Soto, a utilizao da propriedade como garantia

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    para a obteno de emprstimos, transformando os agentes econmicos informais em empreendedores e trazendo tona essa economia submersa.

    As teses de De Soto, que orientaram iniciativas de regularizao fundiria apoiadas pelo Banco Mundial, no se confirmam no mundo real: a experincia levada a cabo no Peru (que compreendeu a regularizao e a unificao e simplificao dos registros) no gerou efetivamente um maior acesso ao crdito para a populao (COCKBURN, 2003). Com relao crtica quanto aos procedimentos excessivos e inadequao da legislao, De Soto no estabelece diferenas clara entre as leis inadequadas e aquelas destinadas a preservar qualidade de vida ou conquistas sociais, todas sendo considera-das como empecilhos ao empreendedorismo e justificando, portanto, procedimentos de flexibilizao amplos. Por outro lado, a anlise de De Soto deixa de ver as questes da terra e da propriedade imobiliria em geral como elementos de um sistema de produo especfico, ou de um mercado diferenciado, ignorando outras variveis fundamentais para se entender a dinmica de reproduo ampliada da irregularidade e da precariedade. A viso de De Soto corresponde, de forma inequvoca, proposta de um Estado mnimo nos moldes da ideologia neoliberal.

    Um pouco mais complexa a viso de Mayo e Angel. Atravs de uma anlise mais sofisticada, centrada exclusivamente nos problemas do mercado de moradias, buscam identificar os limites que se colocam a este mercado do ponto de vista da oferta e da demanda.

    Do ponto de vista da demanda, os autores mostram que o gasto com moradia cresce juntamente com o desenvolvimento econmico, ou seja, existiria uma forte elasticidade do lado da demanda, tendo como limite a disponibilidade de renda e considerando-se os gastos bsicos (prioritrios) com alimentao, vesturio, transportes etc. Obvia-mente, pressupe-se aqui que o desenvolvimento econmico implica distribuio de renda, seno reduzindo as desigualdades, pelo menos mantendo-as no mesmo patamar e, portanto, permitindo o crescimento do rendimento dos setores mais pobres, o que nem sempre acontece, como mostram vrias anlises sobre o processo de crescimento econmico brasileiro (PAES BARROS e MENDONA, 1992).

    Outros fatores que, segundo Mayo e Angel, influenciam a demanda seriam: a insegurana da posse da moradia,1 que limita o investimento no melhoramento das condies habitacionais; a disponibilidade de financiamento habitacional, atravs de um sistema de hipotecas adequadamente desenhado, que permita acelerar a aquisio ou construo da moradia e uma melhor alocao dos recursos familiares entre habi-tao e outros bens, e poupanas dentro do ciclo de vida familiar (WORLD BANK 1993: 23); por fim, subsdios para ampliar a demanda, os quais devem ser institudos com cuidado para evitar ineficincias alocativas.

    Do ponto de vista da oferta, verifica-se que a sua resposta depende de trs fatores: da ao do setor pblico na proviso de infra-estrutura; da ao do setor pblico no es-tabelecimento do sistema regulatrio; e do desempenho da indstria de construo.

    Embora identificando esses trs fatores, segundo a anlise comparativa de experi-ncias internacionais, apresentada por Mayo e Angel,

    1 Por insegurana de posse no se define apenas a questo da legalidade da propriedade, mas, principalmente, o risco do despejo ou remoo. A experincia brasileira mostra que, uma vez interrompidos os programas de remoo, houve investimentos importantes na qualidade da moradia nas favelas consolidadas.

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    nada influencia mais a eficincia e a capacidade de resposta da oferta de moradias do que a estrutura regulatria e legal na qual os produtores de moradia operam. Todos os mercados de moradia so influenciados por um largo espectro de regu-lamentaes, como cdigos de edificaes, padres de infra-estrutura e de uso do solo. Apesar das bvias vantagens de regulamentaes sobre o solo e a moradia bem concebidas e implementadas, elas podem ter um sem-nmero de conseqncias imprevistas que tanto impem grandes custos sobre a sociedade quanto subvertem seu sentido original. (WORLD BANK, 1993: 24)

    Um dos problemas dessa concepo sobre o funcionamento do setor habitacio-nal que ela aparentemente concede o mesmo peso para todos os elementos que influenciam a oferta e a demanda e, ao final, acaba se concentrando mais fortemente nos limites estabelecidos pela regulao e burocratizao excessiva dos processos de licenciamento e de registro de propriedade da terra. No entanto, a literatura econmica quase unnime em afirmar a relevncia estratgica de dois elementos: o padro de financiamento habitacional para a ampliao da demanda efetiva e as restries oferta de terras, esta ltima questo no tratada no estudo do Banco Mundial.

    Essas anlises mostram que o dilema do financiamento reside na desconexo entre as decises de investimento movidas segundo a dinmica dos mercados financeiros, que estabelecem condies de rentabilidade e liquidez mdias e as possibilidades ofe-recidas pelo mercado de moradias, derivadas das caractersticas bsicas do bem habita-o: alto valor agregado, longo tempo de consumo, necessidade de um novo terreno a cada ciclo produtivo. Por isso, a solvabilizao da demanda s se torna possvel atravs da criao de um sistema de financiamento prprio. Durante algum tempo, o Sistema Financeiro de Habitao (SFH) cumpriu esse papel, permitindo, atravs do Fundo de Garantia do Tempo de Servio (FGTS), a ampliao da oferta de financiamentos com juros baixos e longo prazo. Com o fim do SFH e com a crescente limitao dos recursos do FGTS para o financiamento subsidiado da moradia, caminha-se para o impasse na resoluo desse problema.2 O que cabe ressaltar que essas anlises estabelecem uma hierarquia de causalidade sobre a limitao da oferta, identificando o financiamento com um dos obstculos estruturais ampliao da oferta.

    Como mostra a experincia histrica, mesmo nos pases centrais a expanso do mercado de imveis residenciais para as camadas de baixa renda, ou mesmo para setores inferiores das camadas mdias, somente ocorre quando h um sistema de crdito capaz de solvabilizar amplamente a demanda, financiando no curto prazo a construo e no longo prazo o consumo. Essas experincias mostram, ainda, a im-portncia do fundo pblico como elemento assegurador dos financiamentos.3 Alm disso, deve ser considerado que, dados a estrutura de distribuio de renda e os altos nveis de pobreza, esse sistema de financiamento deve contar necessariamente com um sistema amplo de subsdios.

    2 O Sistema de Financiamento Imobilirio (SFI), gestado no governo Fernando Henrique Cadoso, corres-ponderia implantao, no Brasil, do modelo de securitizao, inspirado nas experincias americana e chilena. No entanto, o SFI no pretende atuar na baixa renda. No Chile, o sistema de securitizao funcionou mais amplamente porque os setores de baixa renda tiveram subsdio direto do governo federal, atingindo 90% do valor financiado para os setores de mais pobres.3 Mesmo o modelo americano, baseado no mercado secundrio de hipotecas, tem como base duas macro-estruturas financeiras paraestatais, que ancoram o sistema. Ver, a respeito, LEAL (1999).

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    Uma vez que o produto da construo um bem imvel, a produo de moradias necessita permanentemente de novos terrenos. No quaisquer terrenos, mas aqueles localizados em zonas dotadas dos equipamentos e servios necessrios vida urbana. A variao da oferta de terrenos depende de dois fatores: as formas de propriedade e o preo da terra.

    Em primeiro lugar, a predominncia de relaes de propriedade no-capitalistas, ou seja, aquelas em que predomina o valor de uso4 ou aquelas em que a terra cumpre um papel de acumulao patrimonial/reserva de valor, pode vir a ser um obstculo colocao de novas terras no mercado na quantidade, qualidade e localizao reque-ridas para a produo de moradias.

    Com relao ao preo da terra, sua variao ir depender essencialmente das con-dies de construtibilidade dos terrenos e da sua localizao no espao da cidade. Um dos componentes da construtibilidade a natureza fsica do terreno propriamente dito, ou seja, sua topografia, as caractersticas geomorfolgicas etc. O outro compo-nente o conjunto de normas que regulam o uso e a ocupao do solo e as regras relativas edificao.5 A legislao aparece aqui, portanto, como um dos fatores que definem as condies de construtibilidade dos terrenos e, portanto, seu preo.6

    O fator localizao envolve uma maior complexidade. Por um lado, como j foi enunciado, os terrenos disponveis para o mercado seriam aqueles que gozassem de acessibilidade mnima aos centros geradores de emprego e que contassem ainda com um conjunto de infra-estruturas, equipamentos e servios que garantissem um deter-minado padro de qualidade de vida. A escassez ou a abundncia relativas desses itens transportes, saneamento ambiental, equipamentos de educao, sade e lazer, entre outros definir ento um mapa bsico de preos de terrenos na cidade. A esse mapa bsico se sobrepe, ento, uma outra dimenso, que reflete o que se poderia chamar de diviso social e simblica do espao e que consiste na valorizao diferenciada que atribuda a diferentes lugares na cidade em razo de certas caractersticas, como a pro-ximidade a certas amenidades, a qualidade da paisagem, o acesso a determinadas ativi-dades valorizadas socialmente ou, ainda, a possibilidade da auto-segregao em relao a categorias sociais consideradas inferiores na hierarquia social dominante. No caso principalmente das grandes cidades essa qualidade simblica do espao fundamental na determinao dos preos fundirios, dadas as caractersticas ambientais e paisagsti-cas que marcam uma parte importante da cidade, nas proximidades da sua rea central. Deve-se, contudo, lembrar que essa valorizao simblica tambm produzida pelo prprio mercado, que gera a obsolescncia de certas reas para deslocar a demanda, abrindo novas fronteiras para a expanso da oferta imobiliria (SMOLKA, 1990).

    Deve-se ressaltar, ainda, que essa qualidade diferencial dos bairros e localizaes 4 O exemplo mais contundente o do pequeno comerciante ou prestador de servios que depende de uma determinada localizao para manter a sua atividade, o que faz com que esse agente no se coloque no mercado segundo uma racionalidade capitalista em sentido estrito, ou seja, ele no estaria disposto a oferecer sua terra por um preo estabelecido a partir da lgica de valorizao dos capitais imobilirios.5 Essas normas podem ser definidas pelo poder pblico ou podem ter o carter de uma regulao privada estabelecida pelo loteador ou por uma conveno de condomnio, quando for o caso.6 Dada uma situao mdia de construtibilidade, ou seja, excluindo-se os casos de terrenos com caracte-rsticas fsicas que impeam ou encaream muito a construo, o preo da terra ir refletir para uma dada localizao o seu uso mximo potencial, ou seja, o mais rentvel naquele submercado, importando pouco o estado e a qualidade das construes eventualmente existentes.

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    mais valorizados tambm pode ser produzida ou preservada por influncia da legislao urbanstica, atravs da preservao de reas verdes, da eliminao de usos inadequados ou da manuteno de baixas densidades. Nesses casos, muitas vezes ve-rifica-se uma relao tensa entre as necessidades de preservao da qualidade local e a presso do setor imobilirio pela alterao das normas visando a liberao de terra ou a alterao de ndices, viabilizando um maior adensamento.

    Como se pode identificar, a partir da anlise acima esboada, a legislao exerce um papel importante, porm determinado, sobre a oferta de moradias, sendo o problema da irregularidade ou da ilegalidade motivo de reflexo no item que segue.

    Em relao s articulaes entre a dinmica do mercado de moradias e a infor-malidade, a expanso desse mercado, como vimos, depende da oferta de crdito e de terra. A primeira depende da constituio de um sistema de financiamento que permita garantir prazos maiores e juros subsidiados, o que no pode ser pensado, em grande escala, seno a partir de uma poltica federal.

    Em relao questo fundiria, o aumento da oferta depende, em parte, da ao do poder pblico na proviso de infra-estrutura, dos equipamentos e dos servios urbanos, responsveis, em parte, pela produo de terra urbanizada. A ausncia do poder pblico na proviso da infra-estrutura gera uma escassez de terra urbanizada, com conseqncias sobre o seu preo. Nesse sentido, uma ampla poltica de urbaniza-o, com forte investimento em energia, transportes, sistema virio, saneamento etc. poder ter efeitos muito mais substantivos sobre o mercado de terra do que polticas habitacionais especficas.

    A elevao do preo da terra decorrente desse processo torna extremamente difcil o acesso s camadas de renda baixa. Para resolver esse problema, produz-se uma tendncia dual: a precarizao da moradia e a informalizao da produo, redu-zindo-se o preo final para o consumo de mercadorias baratas e de baixa qualidade. SANTOS (1985), descrevendo a expanso dos loteamentos perifricos, assim expressa essa tendncia:

    Assim as empresas podiam realizar o milagre de continuar agindo em sees do territrio que no permitiam lucros altos nem em grande velocidade. Praticavam uma dupla abstrao: 1- Fingiam que estavam oferecendo terra urbanizada; 2) faziam crer que, no futuro, seria inevitvel a ao do governo para promover a melhoria dos locais que vendiam. (SANTOS, 1985: 25)

    A precarizao/informalizao de parcela significativa da produo habitacional tem como conseqncia uma segmentao da oferta em quatro submercados, com localizaes geogrficas diferenciadas, formas de produo especficas e agentes eco-nmicos particulares:

    - O submercado em que predomina a produo formal da habitao pelos segmentos empresariais mais modernos, concentrada em uma regio da cidade que se caracteriza pelo alto valor material e simblico da terra e por um respeito maior s normas de uso e ocupao do solo embora a tambm se verifiquem irregularidades em relao legislao;- O submercado em que predomina uma produo formal ou semiformal de loteamen-

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    tos populares, voltada para setores de renda baixa ou mdia baixa e que se estende pela periferia metropolitana, onde a irregularidade est ligada principalmente ao no-cum-primento das determinaes da legislao federal de controle do parcelamento do solo (a lei 6.766 e suas atualizaes ou leis municipais especficas);- As favelas7 e loteamentos clandestinos,8 onde predominam a informalidade, dada pela origem dos assentamentos (por invaso), e a maior precariedade das construes e das condies urbansticas, tendendo a assumir caractersticas mercantis (aluguel ou venda do direito de ocupao).- O submercado da produo no-mercantil, que representa uma parcela importante do parque habitacional e que caracteriza uma parte importante dos subrbios cariocas, onde a produo feita por encomenda a profissionais especializados (empreiteiros ou arquitetos), ficando muitas vezes irregular por longo tempo at que, no momento da venda, a construo seja regularizada para que se obtenha a legalizao no cartrio.

    Alm destes quatro submercados, vem se afirmando com algum vigor, mais recen-temente, segundo algumas anlises empricas, um submercado de aluguel de cmodos que se desenvolve fortemente nas reas perifricas e tambm nas reas de favelas mais consolidadas, neste ltimo caso, atravs de processos de verticalizao. Embora esta seja uma situao que no nova, a novidade parece ser a sua extenso, provavelmente decorrente da escassez de terras (para invaso ou para aquisio), o que tenderia a tornar o aluguel de quartos, de solues provisrias, at que se viabilizasse o acesso ao lote ou ocupao, em solues mais permanentes.

    Como concluso, pode-se afirmar que, em funo dos constrangimentos macroeco-nmicos globais (padro de distribuio da renda, taxa de crescimento da economia, taxa de juros bsica etc.), da ausncia de financiamento e da limitao da oferta de terrenos, constrangida por uma poltica urbana (investimentos em infra-estrutura) limitada e por mecanismos especulativos, existe uma forte tendncia contnua re-produo dos assentamentos informais e precrios, nica alternativa vivel de acesso moradia para amplas camadas da populao. Isto posto, cabe olhar com mais detalhe o debate em torno do papel da legislao na reproduo dos assentamentos precrios.

    O papel da legislaoUma vez estabelecida a dinmica econmica de reproduo dos assentamentos

    populares precrios, resta discutir com maior cuidado o papel da normatizao fun-diria, urbanstica ou construtiva. Como j apontado, essa tese tem sido defendida por autores conservadores como De Soto e Mayo/Angel, mas tambm tem sido recor-rentemente utilizada por pensadores do campo progressista. Importa aqui, portanto, mais que defender posies, avanar no debate.

    Neste sentido, deve-se considerar que:

    7 Pode parecer excessivo caracterizar esta forma de acesso moradia como um submercado e talvez efeti-vamente o seja, j que o que sempre caracterizou esse tipo de assentamento precrio foi o fato de se caracterizar por uma forma de acesso terra e de produo habitacional no-mercantil, ou seja, referida a outros processos sociais. No entanto, pelo menos nas grandes metrpoles pode-se pensar numa tendncia mercantilizao destes espaos, como se ver em item posterior, o que nos levou a tratar este item desta forma aqui.8 Por loteamentos clandestinos entendemos aqui os processos de parcelamento realizados a partir de pro-cessos de grilagem de terras.

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    - Um exame atento da legislao urbanstica vigente na grande maioria dos municpios brasileiros mostrar, inequivocamente, sua desatualizao, sua inadequao s polticas que ambicionam a ampliao da oferta de moradias e sua total falta de legitimidade. O mesmo raciocnio aplica-se aos procedimentos de licenciamento e de fiscalizao;- Ao mesmo tempo, no se deve perder de vista que o problema da inefetividade da lei muito mais amplo, envolvendo questes estruturais que marcam nosso processo de desenvolvimento. Isso implica que as iniciativas de regularizao e de simplificao da legislao, desejveis que so, encontraro certamente grandes obstculos para ganhar plena vigncia.

    Explicitando melhor o segundo ponto, alguns autores, tratando da realidade brasi-leira ou latino-americana, tm apontado a baixa capacidade de fazer valer a legislao vigente como uma das caractersticas do nosso continente. SANTOS (1990) aponta a combinao perversa do hbrido institucional com a cultura cvica predatria como expresso mxima desse processo. Isso significa, em linhas gerais que aqui teramos desenvolvido um amplo aparato legal, contudo caracterizado como um sis-tema que governa no vazio, com leis que no se fazem cumprir completamente e que o prprio poder pblico se recusa a fazer cumprir. Teramos ento um sistema legal que vige apenas sobre um pequeno grupo de cidados e de forma diferenciada, restando fora da capacidade pblica de regulao, tanto os setores populares, onde passa a imperar um sistema legal informal, quanto os setores da elite que, capturando os aparatos do Estado, poderiam sempre obter legislaes em causa prpria, quando no a simples conivncia transgresso. Quanto cultura cvica predatria, seria o resultado de um processo de incorporao das massas poltica que precedeu a for-mao de mecanismos de intermediao de demandas como partidos, associaes ou sindicatos. Assim, os indicadores mais recentes de expanso do associativismo encobririam uma fragilidade estrutural destas estruturas associativas, abrindo campo irrestrito ao clientelismo, ao populismo, corrupo. Em sntese, a combinao do hbrido institucional com a cultura cvica predatria resultaria em uma ineficcia generalizada da norma social, com a conseqente fragmentao e o esgaramento do tecido social.

    J ODONNELL (1998), analisando a realidade latino-americana, enfatiza a impor-tncia da influncia da situao de pobreza e desigualdade sobre o comportamento do sistema poltico democrtico. Para o autor, um dos pressupostos da democracia a vigncia dos chamados direitos civis, ou seja, o conjunto de direitos e garantias individuais que marcaram a emergncia do Estado liberal e que se constituem como uma proteo do indivduo contra a tirania do Estado. Os direitos civis, como fundamento de uma situao de igualdade formal, so o pressuposto da igualdade poltica, que implica uma aposta na autonomia individual de cada cidado, na sua capacidade de fazer escolhas e de agir, no mundo da poltica, em direo construo do bem comum ou, no mnimo, do melhor possvel. O fundamento desta aposta a idia de agency, ou seja, a capacidade de atuao poltica. Ora, argumenta o autor, em contextos de pobreza e desigualdade, o princpio da agency perde efetividade, j que aos mais pobres faltariam as condies mnimas para a sua sobrevivncia, com-prometendo assim as suas capacidades ou a sua habilitao para o exerccio pleno de seus direitos formais. Da mesma forma, a desigualdade gera situaes de assimetria

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    que implicam graus diferenciados de acesso aos recursos estratgicos de poder, insti-tuindo diferenas de fato, tanto no plano dos direitos polticos, quanto no plano dos direitos civis. Em sntese, para ODonnell a inefetividade da lei na Amrica Latina seria o reflexo de um sistema econmico-social extremamente desigual e gerador de pobreza que compromete estruturalmente as possibilidades de consolidao e aprofundamento da democracia.

    Uma outra possibilidade de anlise, que complementa a leitura de ODonnell, par-te da reviso do papel desempenhado pelo urbanismo, na Europa como nos Estados Unidos, como parte de um conjunto de iniciativas de interveno sobre a sociedade, denominado de Reforma Social, e da sua comparao com as situaes latino-america-na e brasileira. Essas iniciativas, que tiveram incio no final do sculo XIX, alcanaram plena vigncia com a reconstruo massiva do Estado, que se operou a partir do final da Segunda Grande Guerra, inspirada nos ideais keynesianos e nos princpios do Estado do Bem-Estar ou Estado Protetor. O novo papel do Estado tinha, do ponto de vista da economia, a tarefa de intervir sobre os mercados, garantindo a estabilidade econmica, evitando as crises sistmicas e ampliando as condies do processo de acumulao. J do ponto de vista social, alm de se colocar como o fiador do novo pacto social que garantia os contratos coletivos de trabalho, o Estado passou a investir pesadamente na proviso de um conjunto de infra-estruturas e servios destinados a garantir a sobrevi-vncia dos trabalhadores, a partir de um mnimo social. Este mnimo implicava um pacote de direitos sociais, considerados condio bsica de cidadania, e incluam edu-cao, sade, saneamento, previdncia, seguro-desemprego, habitao, entre outros.

    A contraparte econmica da reorganizao do Estado o novo padro de acumu-lao estabelecido no ps-guerra, baseado na reestruturao tecnolgica, na produo de massa, na reorganizao do sistema monetrio, no pacto social sintetizado nos contratos coletivos de trabalho e nos ganhos salariais obtidos pelos trabalhadores. O novo modelo de desenvolvimento estabeleceu um crculo virtuoso de acumulao que, expandindo-se para os mercados perifricos e ampliando seus mercados internos, garantiu trinta anos de prosperidade, apenas interrompidos na dcada de 70.

    O processo de urbanizao que, na Europa e nos Estados Unidos, j tinha atin-gido seu auge nas primeiras dcadas do sculo XX um importante suporte deste processo. Garantindo a aglomerao industrial e de condies de acumulao, per-mitindo a concentrao de mo-de-obra qualificada e abundante e, ainda, criando as bases fsicas e sociais das novas prticas de consumo que iro permitir o escoamento dos novos produtos (automveis e eletrodomsticos), a cidade fordista no apenas cenrio deste processo, mas tambm influencia e organiza as suas possibilidades de realizao e expanso.

    No entanto, para que a cidade fordista pudesse cumprir este importante papel, sem apresentar os problemas trgicos que caracterizaram a urbanizao das primeiras etapas da industrializao, seu desenvolvimento no poderia ser deixado ao arbtrio do mercado. A interveno pblica sobre o desenvolvimento das cidades ter dois eixos bsicos. Em primeiro lugar, atravs da interveno direta, provendo infra-estrutura (sistema virio, saneamento, energia, transportes), servios (equipamentos de sade, educao, segurana etc.) e, ainda, atuando na produo de moradias populares. Em segundo lugar, atravs da regulao da atividade privada de produo do ambiente

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    construdo, aliada criao de sistemas de financiamento especficos e de iniciativas de ampliao da oferta fundiria, visando a ampliao, a qualificao e o barateamento do mercado de moradias.

    A legislao urbanstica aparece, ento, como um dos elementos deste pacote de intervenes que serviu de importante suporte ao processo de acumulao e reestrutu-rao do Estado. A regulao da produo privada do ambiente construdo, aliada ao investimento em infra-estrutura, permitiu uma verdadeira reconstruo das cidades dos pases desenvolvidos, baseada em um planejamento racional da distribuio da populao e das atividades no espao, adequando-os aos condicionantes ambien-tais e s possibilidades de acesso aos mercados de trabalho. Promove-se, assim, uma transformao urbana que amplia, em dimenso exponencial, a produtividade das economias urbanas.

    Do ponto de vista dos mnimos sociais, a legislao urbanstica vai estabelecer um conjunto de padres que possam garantir salubridade e segurana, principal-mente nos bairros operrios. Trata-se de um amplo projeto de reforma social, com implicaes no disciplinamento da classe trabalhadora, adaptando-a s novas ne-cessidades da produo fordista e que foi o suporte fsico e social da contrapartida estatal ao processo de assalariamento global que passa a marcar as sociedades capi-talistas avanadas. em torno da moradia operria e dos bairros operrios, assim como das fbricas, que se constituem as principais intervenes que garantem um padro mnimo de qualidade de vida, considerado como direito bsico de cidadania e contrapartida do assalariamento.

    Os instrumentos bsicos do controle urbanstico so o zoneamento, controlando a distribuio dos usos e atividades, os parmetros de ocupao do solo (ndices de aproveitamento, afastamentos, taxas de ocupao etc.), a regulamentao do parcela-mento do solo (instituindo lotes mnimos, taxas de reas verdes etc.) e o controle sobre as edificaes visando a estabilidade e a salubridade. Esse conjunto de instrumentos usualmente articulado entre si e tem como fundamento o zoneamento. A experincia histrica do zoneamento tinha, desde o sculo XIX, consagrado um modelo que buscava racionalizar a distribuio espacial das hierarquias sociais, criando zonas segregadas segundo as classes. Em contrapartida, o modelo desenvolvido no mbito do urbanismo modernista apresentava-se como um padro de racionalizao de fun-es, sem discriminao de categorias sociais, estabelecendo um modelo de cidade baseada numa utopia igualitria, como se depreende da anlise dos projetos de Cerd, para Barcelona, e das propostas de Le Corbusier, sistematizadas na Carta de Atenas, bem como, no caso brasileiro, nas propostas de Lcio Costa para as superquadras de Braslia. Nas experincias concretas da legislao urbanstica, verifica-se a convivncia destas duas abordagens do zoneamento, j que a segregao espacial responde a uma necessidade de distino das elites e de obteno de sobrelucros extraordinrios pelos sistemas privados de produo do ambiente construdo.

    Como concluso, pode-se afirmar que a legislao urbanstica configura-se como um item de um pacote de direitos sociais/polticas pblicas e como um elemento cen-tral do processo de reestruturao do espao para garantir o processo de acumulao. Do ponto de vista dos direitos sociais, a legislao tem como contexto um processo de assalariamento integral (a chamada sociedade salarial, conforme CASTEL, 1998)

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    e um novo papel do Estado na proviso de um salrio indireto, como contrapartida de um novo modo de dominao e disciplinamento da classe trabalhadora. Ao exercer o seu papel, a legislao tem como conseqncia uma reestruturao do sistema de produo privada do ambiente construdo, ancorada, entre outros elementos, num sistema estatal ou paraestatal de financiamento para o setor habitacional.

    A experincia brasileira do urbanismo se constitui a partir da dcada de 20, con-solidando-se a partir dos anos 30, como mostram os estudo recentes (RIBEIRO e PECHMAN, 1996), tendo como referncia as idias e as experincias internacionais, divulgadas atravs dos Congressos de Urbanismo e das publicaes especializadas. Considerando-se as tendncias de crescimento apresentadas pelas grandes cidades brasileiras desde o final do sculo XIX, parecia bastante razovel, aos adeptos das novas teorias, a importao das idias ento em voga. No entanto, nosso processo de urbanizao configurava-se, diferentemente do processo europeu e norte-americano, sem ser gerado por e ser suporte espacial de um processo global e ampliado de industrializao. Sendo a economia fundada na agricultura de exportao, cabia s cidades um papel fundamental ao processo de organizao econmica, a saber, a inter-mediao comercial e financeira, como mecanismo de centralizao e redistribuio dos fluxos de mercadorias e capitais (CARDOSO, 1972). Alm disso, as cidades, como herana do perodo colonial, tinham tambm a funo de organizao dos processos de explorao, configurando-se como centros polticos importantes.

    esse papel da urbanizao que explica as elevadas taxas de crescimento que geram nossos primeiros problemas urbanos, j na virada do sculo XX: cortios, epidemias, greves, revoltas de trabalhadores etc. Menos importante foi o papel das cidades como centro de organizao de um mercado interno, que, de resto, permane-cer pouco significativo pelo menos at os anos 60, e, menos ainda, como mecanismo de apoio industrializao capitalista, que s iria se desenvolver mais fortemente a partir dos anos 50, com o incio do processo desenvolvimentista. No mbito deste processo de industrializao restringida, a cidade brasileira configura-se como uma aglomerao de recursos e de mo-de-obra que apenas parcialmente se constituem como parte do processo de modernizao capitalista em curso. particularmente relevante para o nosso argumento que a fora de trabalho no se constitua em um regime de assalariamento pleno, como nos pases centrais, com grandes diferenas inter-regionais e intra-urbanas. Considerando que a populao trabalhadora assala-riada sempre conviveu com uma massa de trabalhadores informais ou marginais (OLIVEIRA, 1972), pode-se afirmar que, mesmo quando o processo de industriali-zao se desenvolveu, j nos anos 60 e 70, no se pode dizer que se tenha constitudo aqui uma relao salarial plena, como ocorreu no caso dos pases centrais. Essa relao salarial restrita implicou perdas relativas de direitos para os assalariados e, por outro lado, a existncia de no-direitos ou quase-direitos para os trabalhadores excludos do mercado formal.9

    A industrializao restringida implicou tambm um papel diferenciado para o Estado. A promoo do desenvolvimento econmico, desde os anos 50, passou a ser encarada como tarefa primordial do poder pblico, implicando investimentos

    9 Mas no excludos da economia, como mostra o estudo seminal de Chico de Oliveira (OLIVEIRA, 1972).

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    extensos nas infra-estruturas necessrias ao desenvolvimento econmico e tambm o investimento direto em atividades produtivas consideradas estratgicas para o desen-volvimento capitalista. O esforo de financiamento do desenvolvimento econmico trouxe como conseqncia limites ao investimento social, com fortes repercusses sobre o desenvolvimento das cidades, principalmente no que dizia respeito ao apoio produo privada do ambiente construdo.

    O no-assalariamento integral e os quase-direitos sociais da massa trabalhadora implicaram a existncia de mnimos sociais no-universais, que eram providos pelo poder pblico a uma parcela restrita da populao. Do ponto de vista urbano, essa situao se agravou com o fato de que os investimentos em infra-estrutura, restringi-dos, passam a ser disputados entre os grupos sociais que pressionam o poder pblico para conseguir os investimentos para suas reas de interesse. Como o acesso aos investimentos pblicos nas cidades mediado pela produo privada do ambien-te construdo, particularmente pelo mercado de terras e imobilirio, os interesses econmicos passam a orientar sua atuao pela captura destes investimentos como forma de realizao de lucros extraordinrios, garantindo assim o acesso das elites e camadas mais favorecidas cidade urbanizada. Como o Estado no atua tambm na criao de sistemas de financiamento habitacional, a realizao dos lucros imobilirios se d principalmente pela realizao de ganhos fundirios fundados no processo de diferenciao urbana, entre reas servidas e reas no servidas por infra-estrutura e servios (RIBEIRO, 1997).

    esse conjunto de caractersticas que vai caracterizar os dilemas e ambigidades da legislao urbanstica entre ns, diferenciando-a radicalmente de suas congneres nos pases centrais. Com um Estado Protetor limitado, estabelecendo mnimos sociais no-universais e sem capacidade de apoiar o processo de modernizao da produo privada do ambiente construdo, a legislao no consegue fazer valer os seus padres mnimos de forma universal e no consegue impor o imprio da lei (rule of law) de forma universal e homognea. A convivncia de uma legislao restritiva e segrega-dora, que, em parte, buscava proteger os mercados das camadas de mais alta renda, com uma tolerncia quase absoluta transgresso pelas camadas mais empobrecidas (desde que no atingissem os interesses diretos e imediatos da elite) deveu-se, assim, necessidade de conciliar a formalidade legal com a ausncia de direitos. Essa situao revelou-se ainda singularmente propcia explorao poltica, j que a situao de ir-regularidade e a ausncia de servios que marcaram historicamente os assentamentos precrios tornaram-se (e ainda assim permanecem) eficiente moeda de troca para a proteo dos polticos, dos cabos eleitorais e para a poltica da bica dgua.

    Concluindo, pode-se dizer que a inefetividade da legislao urbanstica, e mesmo da legislao que regula o direito de propriedade, reflete uma situao estrutural de no-universalidade dos direitos bsicos e conseqente disputa hobbesiana pelo acesso aos parcos investimentos pblicos nas cidades. Nesse sentido, deve-se levar em conta que as iniciativas de aprimoramento da legislao, e mesmo os processos de regulari-zao fundiria, enfrentam fortes limites estruturais para a sua efetivao para alm das questes especficas da qualidade da lei ou da sua forma de implementao.

    O reconhecimento dos limites estruturais que se colocam para a conquista de maior efetividade da lei no devem, no entanto, obstaculizar as iniciativas de apri-

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    moramento e reforma das normas e dos procedimentos, to-somente devem balizar os projetos e expectativas, no sentido de que se construam intervenes mais eficazes e, talvez, menos ambiciosas. Por outro lado, tendo em vista as relaes entre a rule of law e a normalidade democrtica, deve-se levar em conta que os eventuais avanos em termos de maior eficcia e capacidade normativa em termos urbansticos tero reflexo importante na construo de um estado de direito, base de uma democracia saudvel e estvel. Nesse sentido, vo as observaes que se seguem.

    A grande maioria dos municpios brasileiros, exceo das grandes cidades, se-gundo avaliaes recorrentes, no atualiza a sua legislao urbanstica bsica h muito tempo. Trata-se de normas antigas, elaboradas na dcada de 70, sob influncia do extinto Servio Federal de Habitao e Urbanismo (Serfhau) ou de rgos estaduais de planejamento. Os tcnicos locais, responsveis pela aplicao da lei, em geral tm pouco ou nenhum conhecimento da lgica que levou formulao daqueles instru-mentos. A legislao, que vai se tornando obsoleta com o passar do tempo, perde legitimidade e passa a ser modificada de forma pontual, caso a caso, muitas vezes ao sabor de presses polticas ou econmicas. As mudanas recorrentes de partes da legislao acabam criando uma superposio de normas, o que dificulta enormemente a sua compreenso e aplicao. Perde-se a eficcia e a legitimidade, criando-se um aparato normativo confuso e inconsistente, que pode ser aplicado de forma discricio-nria, fortalecendo a irregularidade legtima, pela ineficcia da lei e pelo arbtrio de sua aplicao. Esse quadro acaba reforando as excees especiais que se submetem aos padres de clientelismo e corrupo. A essa confuso e inconsistncia do aparato legal, soma-se a incapacidade de aplicao das normas pelas administraes locais, dadas a precria estrutura de fiscalizao e a ausncia de instrumentos de incentivo regularizao. Em resumo, o quadro geral de um sistema legal pouco eficiente, sem consistncia do ponto de vista urbanstico e, portanto, incapaz de controlar, mesmo se praticado, os principais problemas urbanos.

    A complexidade da legislao produz, alm dos problemas acima apontados, um processo de licenciamento obscuro e tortuoso que se prolonga no tempo, fortalecendo o poder dos funcionrios corruptos e dos despachantes, intermedirios especializados no conhecimento dos caminhos obscuros da burocracia pblica. Os procedimentos de licenciamento, principalmente nas grandes cidades, requerem a passagem da documen-tao por vrios rgos da administrao municipal, quando no necessrio consultar instncias estaduais e federais (o que acontece usualmente em casos de reas de interesse ambiental ou de preservao do patrimnio). A simplificao dos processos de aprova-o de projetos hoje uma tarefa fundamental para garantir a eficcia da legislao.

    Tendo em vista o diagnstico acima, pode-se sugerir algumas medidas de reviso dos instrumentos normativos que vm sendo discutidas pela literatura especializada, o que apresentado na ltima seo deste texto.

    O papel das agncias multilaterais

    No caso do Banco Mundial, at 1975 sua atuao se caracterizou pelo financiamen-to prioritrio da infra-estrutura para o desenvolvimento, concentrando-se principal-mente nos setores de energia e transportes, desconsiderando o financiamento do setor

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    habitacional. Tinha-se como certo que o desenvolvimento econmico promoveria efeitos de crescimento e de redistribuio da renda e das oportunidades de emprego, gerando respostas naturais de enfrentamento da pobreza. J o Banco Interameri-cano de Desenvolvimento (BID), mais comprometido com o desenvolvimento de programas sociais, tinha os investimentos habitacionais em seu portfolio de emprs-timos, concentrando-se, at cerca de 1975, em financiar programas de construo de conjuntos habitacionais.

    Essa postura mudou no perodo posterior (de 1975 a 1985), em que ateno especial foi conferida s polticas sociais para reduo da pobreza e s experincias alternativas. Foi a poca do desenvolvimento dos projetos urbanos, principalmente nas reas de infra-estrutura e habitao. Os principais projetos apoiados foram os de tipo site and service (lotes urbanizados) ou slum upgrading (urbanizao de favelas), concebidos como projetos experimentais, pontuais, em pequena escala e de baixo custo, buscando gerar dinmicas locais que replicassem as experincias. Grande nfase se dava ento busca de tecnologias e metodologias alternativas que reduzissem o custo dos inves-timentos e permitissem o aproveitamento de materiais e mo-de-obra local.

    Cabe ressaltar que boa parte dessas aes inspirava-se nas idias de John TURNER (1972), feroz crtico das solues habitacionais tradicionais construo de grandes conjuntos em reas perifricas , que via como problemas, valorizando as experi-ncias autnomas e espontneas de autoproduo da moradia popular que via como solues. Essas idias tiveram forte repercusso internacional, principalmente na Conferncia do Habitat, em 1976, e comeam a construir um consenso interna-cional entre especialistas e policy-makers sobre a necessidade de mudar a poltica de erradicao das favelas por aes de urbanizao que preservassem o patrimnio construdo, garantindo a segurana de posse e provendo a infra-estrutura, permi-tindo o investimento dos prprios moradores nas melhorias habitacionais.

    Cabe ressaltar que at meados da dcada de 80 os organismos internacionais no exerceram influncia direta sobre a definio das linhas polticas centrais na poltica urbana brasileira, j que havia ento disponibilidade de recursos financeiros de baixo custo. S com a crise geral da economia nos anos 80 e com a falncia do sistema de financiamento ao desenvolvimento urbano que os programas dos Bancos Mundial e Interamericano passam a ser atraentes para o governo federal e, mais tarde, para os go-vernos locais. As mudanas que se operam devem-se a uma combinao de dois fatores: a ascenso, no campo decisrio federal, dos economistas que pregavam o ajuste e uma poltica mais forte do BM e do BID de apoiar as reformas nessa direo. importante lembrar aqui que a entrada de capitais via BM e BID foi importante na manuteno do equilbrio externo, j que no existiam, naquele momento, capitais em disponibi-lidade, a baixo custo, no mercado financeiro internacional. O apoio do BM e do BID era tambm importante para as negociaes com outros organismos internacionais, o que fortaleceu uma aliana entre os economistas conservadores, que passam a ganhar maior poder na gesto econmica interna e na burocracia dos bancos multilaterais.

    Entre 1985 e 1990 verifica-se uma concentrao das aes em direo s medidas de ajuste estrutural. Uma das nfases da ao do banco passa a ser o financiamento de reformas institucionais, na direo dos objetivos de eficcia da ao pblica num contexto de desregulamentao e privatizao, como foi, por exemplo, o caso do fi-

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    nanciamento do Programa de Modernizao do Setor de Saneamento. Do ponto de vista urbano, verifica-se uma nfase em projetos de apoio institucional, articulados s intervenes de melhoramentos integradas, incorporando outras dimenses, alm da infra-estrutura (emprego e renda, educao, sade, desenvolvimento comunitrio etc.), intitulados projetos urbanos programticos. Estes projetos contam com certa flexibili-dade na sua definio, pretendendo ajustar-se s demandas ao longo do tempo, a partir de critrios de elegibilidade predefinidos. No Brasil, um exemplo o Projeto Grande Recife (administrao Gustavo Krause), depois estendido a Salvador e a Fortaleza.

    De 1990 em diante, o novo discurso do Banco Mundial busca atenuar os efeitos sociais das polticas de ajuste, articulando-as a estratgias de alvio pobreza e criao de poverty safety nets. O documento de 1991 intitulado Urban Policy and Economic development: an agenda for the 90s coloca no centro da agenda o aumento da produtividade da economia urbana, como estratgia bsica para enfrentar a questo da pobreza, aliada a aes especficas nesta rea. curioso este deslocamento, j que o problema da economia usualmente tratado na escala nacional ou, no mximo, na regional. Neste caso, parece que, dada a imposio do ajuste, que se realiza na escala nacional, o aumento da produtividade da economia urbana visaria minimizar os im-pactos negativos do ajuste, criando alternativas locais para o crescimento do emprego e da renda. Uma das conseqncias deste iderio foi o desenvolvimento das estratgias de competio entre cidades, cujos efeitos danosos j foram suficientemente tratados pela literatura. Projetos urbanos programticos ganham maior espao nas linhas de financiamento do banco, recuperando a urbanizao de favelas (slum upgrading), que passa a ser um componente fundamental dos projetos, passando a colocar como ques-to o scaling-up (ou seja, como sair dos projetos pontuais para aes de maior escala, em termos urbano e/ou nacional), atingindo os pobres de forma mais ampla.

    Cabe ressaltar que a nfase na urbanizao de assentamentos precrios tem outro objetivo estratgico: a focalizao (targeting), ou seja, a garantia de que a populao alvo ser atingida. Documentos do BID e do BM, avaliando experincias anteriores, levantam este problema (os programas no atingem aqueles que seriam seus principais beneficirios) e o nico consenso parece ser que a focalizao geogrfica (atuao em bolses de pobreza) seria a forma mais eficaz de evitar que os recursos investidos fossem apropriados por outros grupos. Um conjunto de textos trabalha especifica-mente com os problemas de targeting surgidos em projetos descentralizados, em que os nveis de governo locais teriam poucos incentivos a concentrar efetivamente os investimentos nas reas mais carentes.

    Outro elemento importante a recuperao de custos (cost recovery), enfatizando a necessidade de mobilizar a populao atingida para pagar: isso implica, inclusive, metodologias participativas que permitam desenhar os programas de investimento tomando como base as escolhas feitas pela populao segundo a sua willingness to pay (disponibilidade para pagar pelas benfeitorias).

    A partir da dcada de 80 o BM e o BID passam a negociar com os nveis subna-cionais, ao invs de continuar atuando no nvel federal e atravs de rgos setoriais, como acontecia antes. Assim, alm do caso de Recife, j mencionado, em 1989 o Banco Mundial financiou o Programa Reconstruo Rio, sob a responsabilidade do governo do estado do Rio de Janeiro, destinado ao atendimento emergencial s vtimas de en-

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    chente ocorrida em 1986, e em 1992 financiou o Programa de Saneamento Ambiental do Reservatrio Guarapiranga envolvendo a urbanizao de favelas. Em 1993, o BID inicia os entendimentos para o financiamento do projeto Favela-Bairro, desenvolvido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, e, em 1994, o Projeto Cingapura, desenvolvido pela Prefeitura de So Paulo. Nestes casos, o aumento da escala foi buscado atravs de um financiamento que contempla vrias favelas. Uma outra experincia se deu atra-vs do Programa Habitar-Brasil-BID, em que se buscou o scaling-up atravs de uma negociao de nvel nacional, com a Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano (SEDU/PR) controlando o repasse de recursos para as unidades descentralizadas.

    Os problemas identificados nesta trajetria de progressiva importncia dos orga-nismos multilaterais na poltica urbana brasileira so:

    - A subordinao a diretrizes e prioridades polticas que no so definidas internamen-te, com perda de autonomia e soberania nacional;- A uniformizao de regras e procedimentos para todo o territrio nacional, desconside-rando a diversidade de necessidades e de experincias histrico-polticas;- A estipulao de limites mximos de financiamento que desconsideram a diversidade dos custos de urbanizao nas regies, gerando problemas para o atendimento de situa-es de desadensamento e de atendimento s populaes em reas de risco.

    Alm destes problemas, outras questes que merecem reflexo dizem respei-to ao modelo de participao popular proposto pelos projetos financiados pelo BM/BID, que tm como objetivo mais importante um aumento da eficcia e da eficincia da ao. Neste sentido, a participao da populao diretamente bene-ficiada permitiria:

    - Ajustar o desenho final da interveno s necessidades reais da populao;- Aumentar o controle social sobre os investimentos, garantindo maior accountability e, logo, permitindo que os investimentos do Banco tivessem maior segurana de atingir os seus objetivos;- Aumentar a legitimidade das intervenes, o que, paralelamente, aumentaria a legiti-midade do Banco em pases do Terceiro Mundo (como a participao destes organis-mos na estratgia geral de ajuste estrutural tem gerado fortes crticas, a ao social do BM e do BID tem o sentido explcito de compensar a atuao do FMI e de refor-la, ao associar os emprstimos ao ajuste estrutural e s propostas de privatizao setorial, como no caso do saneamento; a participao atua no sentido de aumentar a legitimida-de dentro deste contexto);- Reduzir custos de implementao, j que a populao participante controlaria a atua-o das empreiteiras ou do poder pblico, reduzindo a necessidade de investimentos em auditorias externas.

    Considerando estes elementos, o modelo de participao preconizado pelos Bancos tem o carter do que AZEVEDO e PRATES (1991) denominaram de participao restrita, em que a agenda da deliberao restringida a elementos acessrios, e a reduo de custos e a legitimao das aes tm importncia central.

    Uma perspectiva de participao no contexto de um governo democrtico-popular deve ter outros objetivos:

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    - Constituio da populao como atores sociais e polticos, capazes de se colocar como sujeitos no espao pblico;- Constituio de uma esfera pblica que desloque o eixo do processo deliberativo para terreno situado na interface entre Estado e sociedade organizada.

    A construo destes dois grandes objetivos tem como pressupostos:

    - Construo de espaos institucionais que permitam e incentivem a constituio de atores e da esfera pblica;- Capacitao e educao poltica da populao no sentido de ampliar a capacidade de formulao e deliberao;- Capacitao e educao poltica dos quadros tcnicos dos vrios nveis de governo, no sentido de criao de procedimentos que assegurem a transparncia e a democracia e permitam o desenvolvimento de aes eficazes e eficientes em ambiente participativo;- Tomar-se a participao como objetivo em si, o que implica estabelecer prazos e pro-cedimentos adequados a processos de deliberao ampliada e abrangente;- Formao de novas lideranas para ocupar com maior eficcia o espao pblico constitudo;-Democratizao da informao para assegurar decises competentes e evitar a mani-pulao poltica;- Constituio de mecanismos de implementao dos processos decisrios que assegure os objetivos centrais de eficincia e eficcia e transparncia das polticas.

    Cabe ainda ressaltar a criao da Cities Alliance, agncia de nvel internacional criada para implementar o City Development Strategy, programa que tem o objetivo de estimular a elaborao de planos que viabilizem a reduo da pobreza e o desen-volvimento econmico urbanos, formado por uma parceria entre o Banco Mundial, o Habitat e o PGU (estes dois ltimos, programas das Naes Unidas, no mbito do PNUD). Na concepo do Cities Alliance, favelas so o resultado de polticas fra-cassadas, m governana, corrupo, regulao inapropriada, mercados fundirios disfuncionais, sistemas financeiros irresponsveis e uma fundamental ausncia de vontade poltica (Citties Alliance, citado em DENALDI, 2002: 34). Essa definio revela e sintetiza a mudana no diagnstico sobre os problemas sociais e urbanos, que se opera desde o incio dos anos 90 e se consagra na Habitat 96: favelas no so o fruto de problemas estruturais da sociedade e da economia, mas so fundamental-mente o resultado de m governana, ou seja, de governos que no conseguem acionar mecanismos adequados de facilitao da atuao dos mercados.

    Importa aqui ressaltar que, sem perder as oportunidades de financiamento que, dado o quadro atual, so sem dvida importantes, isso no deve implicar a subordi-nao a objetivos ideolgicos e polticos que no se coadunam com os princpios da Reforma Urbana.

    Polticas de tratamento do problema dos assentamentos precrios: um breve histrico

    Cortios, estalagens ou casas de cmodos eram as denominaes dadas s habi-taes populares predominantes no sculo XIX. Identificados, nas concepes higie-nistas, como focos de contaminao e de propagao de doenas, alm de locais de

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    concentrao das classes perigosas, so objeto de programas de erradicao, atravs da proibio no aparato regulatrio que comeava a se criar naquela poca e, princi-palmente, da famosa poltica do bota-abaixo que caracterizou a gesto do prefeito Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro. No caso do Rio, essa poltica teve sucesso, relegando o problema dos cortios a nmeros pouco significativos, hoje, enquanto em So Paulo trata-se de uma forma de acesso moradia que ainda apresenta relevncia, abrigando um contingente significativo da populao.10 No entanto, o sucesso da erradicao significou to-somente a transferncia do problema para outros lugares: na falta de outras opes a populao de baixa renda, na maioria das cidades brasilei-ras, sobe os morros ou ocupa as reas de mangues e alagados, pouco valorizadas pelo mercado fundirio incipiente, gerando o problema das favelas (vilas, mocambos, palafitas, malocas, invases, baixadas etc.).

    Tal como ocorreu com os cortios, as favelas, to logo percebidas11 e transfor-madas em um problema, so objeto de restries do aparato regulatrio. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Plano Agache, apresentado em 1930, identificava uma inverso da funo adequada das reas ocupadas por estes assentamentos, que, pela sua localizao, deveriam acolher populao de classe mdia. Para a populao favelada, o Plano previa a construo, na periferia, de cidades-satlites, junto a zonas industriais que proveriam emprego para a populao de trabalhadores pobres. Largamente inspirado no Plano Agache, o Cdigo de Obras de 1936 (Decreto 6.000), em seus artigos 347 e 349, proibia a construo de novas favelas e a realizao de melhorias nas favelas existentes, a serem substitudas por ncleos de habitao de tipo mnimo atravs da construo de habitaes proletrias (VALLADARES, 1980; MACHADO DA SILVA, 1981).

    Em que pese a fora formal e simblica dessa proibio, ela no se traduz em um plano de erradicao, marcando uma postura ambgua em relao aos assentamentos populares. Por um lado, a expulso dos favelados tendia a ocorrer atravs das aes de reintegrao de posse e, por outro lado, at a dcada de 60, as propostas governamen-tais usualmente contemplavam a realizao de melhoramentos nos assentamentos. Pode-se citar, tendo ainda como exemplo o caso do Rio de Janeiro, a criao, em 1941, pela Prefeitura do Rio de Janeiro, dos Parques Proletrios Provisrios, que deveriam acolher a populao favelada enquanto se construam casas definitivas, de alvenaria, nas favelas. A concepo que norteava a criao dos Parques Proletrios era a de que a favela era principalmente um lugar de acolhida de migrantes, um estgio em uma trajetria de progressiva integrao social, que deveria ser acelerada atravs da trans-ferncia dos favelados para os Parques e sua posterior integrao em um ambiente urbano normal. Ainda na dcada de 40, outras iniciativas oficiais visavam atuar sobre o problema das favelas cariocas: a Fundao Leo XIII, criada a partir de uma parceria precoce entre a Arquidiocese do Rio de Janeiro e a Prefeitura, atuou, entre 1947 e 1954, em cerca de 34 favelas, atravs da proviso de servios bsicos, criando Centros de Ao Social em oito delas; a partir de 1955, a Arquidiocese age atravs

    10 No existe referncia existncia de cortios em outros lugares, parecendo tratar-se portanto de um pro-blema especfico da cidade de So Paulo.11 Durante um certo tempo estes assentamentos proliferam sem serem tratados como um problema, per-manecendo, portanto, invisveis (ALFONSIN, 2000).

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    da Cruzada So Sebastio, enquanto a Prefeitura criava o SERFHA (Servio Especial de Recuperao de Favelas e Habitaes Anti-Higinicas). A Cruzada So Sebastio atuou realizando melhorias em servios bsicos em doze favelas e teve como principal marca de sua atuao a edificao de um conjunto de prdios no bairro do Leblon (situado na Zona Sul carioca, uma das mais caras do Rio), que abrigou populaes oriundas de trs favelas prximas. Alm disso, a Cruzada interferiu contra o despejo de trs outras favelas (Borel, Esqueleto e Dona Marta).

    A literatura aponta que foi s na dcada de 60, com o programa de erradicao de favelas desenvolvido pelo governador Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, que a pola-rizao entre remoo e urbanizao apareceu no debate (MACHADO DA SILVA, 1981; VALLADARES, 1980). O processo de remoo causou grande repercusso e resistncia por parte da populao favelada, embora tenha contado com apoio das camadas mdias e do setor imobilirio, diretamente beneficiado por algumas remo-es. Uma das comunidades que teve maior capacidade de resistncia foi a de Brs de Pina, que, com apoio de setores da Igreja, conseguiu permanecer no local e passou a lutar pela urbanizao. O governo subseqente, comprometido por compromissos de campanha com a urbanizao, criou a Companhia de Desenvolvimento de Co-munidades (Codesco), em 1968, dando incio a um processo de urbanizao em trs favelas (Mata Machado, Braz de Pina e Morro Unio) que, pelo escopo da proposta e pela metodologia empregada, tornou-se referncia, desde ento, no debate nacional, justificando que nos detenhamos um pouco no seu contedo.

    A proposta da Codesco tinha como objetivo central integrar a comunidade sub-normal no bairro adjacente (BLANK, 1977: 11), o que deveria ser conseguido atravs de trs iniciativas:

    1. Infra-estrutura: a ser desenvolvida sob total responsabilidade do Estado, sem incidncia de qualquer custo para a populao;

    2. Melhoria habitacional: segunda fase do programa, desenvolvida sob responsa-bilidade da populao, contando com apoio do poder pblico e visando propiciar as condies mnimas de higiene e segurana dos padres de moradia (idem, p. 12);

    3. Desenvolvimento socioeconmico: visa principalmente criar pr-requisitos tais que permitam populao de menor faixa etria desenvolver-se em ambiente de normalidade urbana em todos os seus aspectos, da higiene segurana social. Para atender a este objetivo era considerado objetivo central a definio da propriedade do terreno (ibidem, p. 13).

    O objetivo referido de integrao social tinha como pressuposto a noo de mar-ginalidade. Considerava-se, neste sentido, que a populao favelada era marginal, no sentido de um dficit de participao: nesse sentido, os diferentes membros de uma sociedade no participam igualmente dos benefcios da vida social. E o conceito de parti-cipao precisa ser referido s esferas de organizao da organizao social determinada: participao nos benefcios da vida econmica, da educao, do governo, da comunida-de, das atividades recreativas, etc. (ibidem, p.15). Segundo Blank, seguindo este racio-cnio, os bairros marginalizados, como denominamos s vezes as favelas, necessitam integrar-se porque no esto incorporados totalmente, no tm participao social em algumas esferas do sistema (...) principalmente no que se relaciona ao sistema moradia, a prpria habitao e suas complementaes de servios (ibidem, pp. 15/16).

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    O que cabe ressaltar aqui que o diagnstico da marginalidade social estendido ao aglomerado sub-normal e reduzido dimenso das estruturas fsicas da moradia (habitao, infraestrutura e servios). Nesse sentido, de certa forma se recupera uma viso que predominou nas teorias urbansticas do incio do sculo XX, qual seja a de que a interveno sobre o espao permitiria efetivar mudanas civilizatrias e disci-plinadoras sobre as classes perigosas. dentro desse contexto que tambm ganha outro sentido a viso da participao da populao no processo de urbanizao, j que se trataria do desenvolvimento de uma conscincia cvica, atravs de um pro-cesso pedaggico ensejado pela participao. Essa concepo era bastante difundida na Amrica Latina entre os anos 50 e 60, pelas instituies reformadoras como o DESAL e a Igreja.

    Uma outra forma de enfocar a mesma problemtica, que era uma referncia na ex-perincia de Brs de Pina, era a concepo de John Turner acerca do papel da moradia como elemento fundamental no processo de integrao social dos migrantes rurais vida urbana moderna. Segundo TURNER (1973), a abordagem que orientava as polticas habitacionais oficiais desconsiderava que a habitao exercia trs funes fundamentais no processo social: localizao, segurana da posse e conforto. E, ainda, que essas trs funes tinham importncias diferenciadas, dependendo da etapa do ciclo de integrao do migrante vida urbana. Para os migrantes recm-chegados, a localizao colocava-se como a funo mais importante da moradia, pouco im-portando os aspectos da segurana de posse e do conforto. Era isso que explicava, no caso peruano, a proliferao dos corralones, aglomerados de choas em terrenos vazios nos centros urbanos, ou, no caso brasileiro, a proliferao de favelas nas reas centrais, ocupadas por biscateiros. J para o migrante que tivesse opes de trabalho mais regulares ou empregos mais ou menos fixos, a segurana de posse assumia papel mais importante, como ponto de apoio para enfrentamento dos eventuais perodos de desemprego, sendo a soluo habitacional mais adequada a barriada, invases em terrenos perifricos, no caso peruano, ou os loteamentos populares, no caso brasilei-ro, em que os moradores comeam paulatinamente a investir em infra-estrutura e, posteriormente, na soluo habitacional. Por fim, para os setores da populao que conseguem maior estabilidade e capacidade de ascenso social, integrados ao merca-do de trabalho formal, a opo o subrbio tradicional, valorizando-se a funo de abrigo/conforto em detrimento da localizao e da segurana de posse (no sentido em que esta populao pode, por exemplo, pagar aluguel).

    O que aparece de forma implcita na viso de Turner que, em primeiro lugar, est pressuposto um processo evolutivo de integrao social, ou seja, de progressiva adapta-o dos migrantes rurais vida urbana moderna, o que apontaria, num horizonte de tempo mais ou menos longo, para uma sociedade totalmente integrada, a partir do pro-cesso de desenvolvimento econmico. A formulao deixa de lado, portanto, outras hi-pteses sobre as desigualdades estruturais que marcam o processo de desenvolvimento latino-americano, como fruto da lgica do processo de desenvolvimento mesmo e no como fruto do nosso atraso. Outro ponto importante o papel desempenhado pela habitao no processo de integrao. Para Turner, a favela, a barriada, o subrbio, etc., ao se desenvolverem progressivamente, constituem poderoso agente de integrao econmica graas ao fato de que a muitos tm liberdade para investir seus prprios

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    recursos sua maneira individual (TURNER, 1968: 19). Aqui ganha talvez sua mais completa expresso a tese de que os programas ditos alternativos, preconizados por Turner e largamente adotados internacionalmente da em diante, visassem construir a integrao social atravs da integrao fsica: apoiando a populao na autoconstruo de seu habitat proporcionava-se, alm das melhorias fsicas estritas, a integrao social ou, como postulava a Codesco, o desenvolvimento socioeconmico.

    Essa concepo permanece, ainda hoje, subjacente s intervenes em favelas, o que deve ser objeto de nossa reflexo.

    Como outros elementos presentes no modelo de interveno preconizado pela Codesco e experimentado na favela de Brs de Pina, temos os seguintes elementos:

    1. Diferentemente de outras experincias de intervenes pontuais em favelas, em Brs de Pina foi desenvolvido um projeto de urbanizao, que redesenhava o sistema virio, estabelecia uma nova diviso da terra em lotes e indicava a distribuio da infra-estru-tura e dos equipamentos coletivos.2. O sistema virio proposto criava uma hierarquia viria interna favela, com vias principais, destinadas ao fluxo principal de veculos, que eram um dos elementos cen-trais da proposta de integrao ao bairro adjacente, e vias secundrias, de pedestres, mas com dimensionamento adequado para tambm permitir a entrada de veculos.3. O sistema virio, por outro lado, respeitou ao mximo a estrutura original da favela, tentando preservar as unidades construtivas em bom estado, sem prejuzo do projeto, bem como o tipo de circulao j existente, fluxo natural de vias de pedestres, corrigin-do apenas as descontinuidades e permitindo o trfego normal e ocasional (BLANK, 1977: 77).4. Ao reestruturar a distribuio das moradias atravs do loteamento, o projeto de urba-nizao efetuou uma equalizao da diviso da terra no assentamento, com lotes mdios de 120 m2.5. O projeto no previu a oferta de servios coletivos como escolas e postos de sade no interior do assentamento, considerando a ampla oferta existente no bairro do entorno e considerando ser esta iniciativa mais favorvel ao processo de integrao visado.6. O projeto de urbanizao foi amplamente discutido com a comunidade, que pode esco-lher entre as opes apresentadas, tendo optado por um padro que se aproximava mais das solues dos loteamentos normais. Todo o complexo processo de relocalizao que foi necessrio, dada a quase total reestruturao da rea, foi tambm amplamente discuti-do, tendo as famlias oportunidade de escolha dos lotes para onde seriam transferidas.7. Foi originalmente prevista a participao da populao local na execuo das obras de infra-estrutura, atravs do mutiro, o que todavia no foi efetivado, j que havia a necessidade de concluir rapidamente a obra, tendo em vista as dificuldades polticas que o programa enfrentava na administrao local e a franca oposio do BNH.8. A proposta enfatizava muito a ampla liberdade de concepo das moradias pelos mo-radores. As propostas de melhorias habitacionais implicaram de fato novas edificaes, j que a maioria esmagadora das habitaes era em barracos de madeira e que houve ne-cessidade de relocalizar praticamente toda a populao. A produo de novas unidades foi acompanhada pela equipe de campo, que discutia os projetos apresentados pelos moradores, fazia estimativa do material a ser consumido, para efeito de dimensiona-

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    mento do financiamento a ser solicitado ao BNH,12 aprovava o oramento apresentado pelos fornecedores de material de construo e acompanhava a execuo da obra.9. A construo das moradias foi realizada atravs da autoconstruo, entendida como mecanismo de reduo do custo final e, na linha de Turner, como forma de adaptar o ritmo e o programa s necessidades cambiantes das famlias.10. Foram institudos parmetros de uso e ocupao do solo, visando disciplinar a ex-panso da rea o que, no entanto, nunca foi respeitado, mesmo enquanto a equipe tc-nica permanecia em campo.

    A experincia de Brs de Pina e das outras favelas urbanizadas sob a gide da Codesco firmou-se como uma referncia alternativa no exato momento em que o regime militar endurecia a represso resistncia da populao favelada s remoes, que alcanaram, entre 67 e 74, seu apogeu.13 A partir da segunda metade da dcada de 70, o prprio BNH acabou por instituir programas alternativos, dentre os quais destacou-se o Programa de Erradicao da Sub-habitao Promorar, que se apre-sentava, inclusive, como inovador: ser a primeira vez que se far uma erradicao de favelas no Rio, deixando os moradores na mesma rea, segundo palavras do ento ministro Mrio Andreazza.14

    Nos anos 80, seja com apoio do BNH, seja com utilizao de recursos prprios, verificam-se iniciativas de governos estaduais e municipais no sentido de desenvolver programas de urbanizao de assentamentos precrios. Em Minas Gerais, o governo estadual, sob o mbito da legislao do ProFavela,15 criou o Programa de Desen-volvimento de Comunidades Prodecom, em 1979, que em 1983 foi reestruturado e denominado Programa de Integrao Urbana na Regio Metropolitana de Belo Horizonte PIURMBH, que contou com o apoio da cooperao alem, atravs da GTZ Gesellschaft fur Technische Zusammenarbeit, como um dos projetos cons-tantes do Programa de Viabilizao de Espaos Econmicos para as Populaes de Baixa Renda - Prorenda. Pensado como projeto piloto com interveno prevista em reas faveladas da RMBH, o PIURMBH tinha como pressuposto que os projetos fossem elaborados e implantados pelos prprios moradores e suas associaes com interferncia institucional apenas no que se refere assistncia tcnica e financeira (NAVARRO, 1993: 15).

    Outras experincias se desenvolvem no pas, ao longo dos anos 80, cabendo res-

    12 Atravs do programa RECON-SOCIAL, que foi utilizado pela primeira vez na experincia de Brs de Pina.13 A Coordenao de Habitao de Interesse Social da rea Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM), criada poucos meses aps criao da Codesco, tinha como objetivo erradicar as favelas cariocas, contando para isso com o apoio poltico do governo federal e os recursos do BNH. A Cohab passou ento a trabalhar sob a superviso da CHISAM, que, por sua vez, estava diretamente subordinada ao Ministrio do Interior. Ao gover-nador eleito restou manifestar apoio iniciativa (VALLADARES, 1980). A ao da CHISAM desenvolve-se at 1974, englobando ainda o perodo primeiro mandato do governador Chagas Freitas. A remoo concentrou-se essencialmente na Zona Sul da cidade, atingindo o total de mais de 16.000 unidades. Em Belo Horizonte, a poltica de erradicao intensificada no final da dcada de 60, com a criao da CHISBEL Coordenao de Habitao de Interesse Social, com cerca de 10.000 famlias, ou seja, cerca de 43.000 pessoas foram expulsas de 423 reas invadidas, em muitos casos por meios violentos, recebendo indenizaes insignificantes (Berenice Guimares, apud DENALDI, 2003).14 Citado em VALLADARES (1980).15 Lei 3532/83, autoriza o Executivo a criar o ProFavela; Decreto Municipal 4762 de agosto de 1984, criao do ProFavela; Lei 3995 de janeiro de 1985, regulamentao do ProFavela Programa Municipal de Regularizao de Favelas, ProFavela (Lei n 3.995/85).

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    saltar a interveno nos Morros do Pavo/Pavozinho e Cantagalo, no Rio de Janeiro, no primeiro governo Brizola, e a experincia do Recife, com a promulgao da lei do PREZEIS, em 1983.

    O caso do Pavo/Pavozinho/Cantagalo foi a primeira interveno em uma fave-la de maior porte em encosta, gerando uma metodologia que veio a ser mais tarde adaptada e empregada em outras experincias no pas, como no caso de So Paulo, na gesto de Luiza Erundina, em Vitria, com o Projeto Terra, e no Projeto Favela Bairro, desenvolvido no Rio de Janeiro a partir de 1994. Os elementos centrais con-templavam a implantao de infra-estrutura e a criao de uma via carrovel que penetrava na favela num trajeto que buscava atender, o mximo possvel, aos pontos mais distantes, facilitando o acesso de ambulncias e outros veculos. Dadas as altas declividades, no foi possvel o acesso de caminhes de lixo, sendo a questo resol-vida atravs de caambas. Buscou-se ainda estabelecer limites fsicos, visando conter o processo de expanso. Diferentemente do caso de Brs de Pina, manteve-se aqui a estrutura existente (incluindo os becos e vielas), sem intervenes nas edificaes. Outra grande diferena em relao a Brs de Pina foi a implantao de equipamen-tos sociais (escola, creche, quadra de esportes etc.). Fazia ainda parte do projeto a implantao de um telefrico (sistema de plano inclinado) para viabilizar o acesso s partes mais altas do morro.

    A experincia do Rio consagra um modelo de interveno em que a estrutura bsi-ca da favela no alterada, no se realizam investimentos em melhorias habitacionais e se incorporam ao projeto fsico-urbanstico alguns equipamentos sociais.

    J o caso do Recife tem como elemento central um novo modelo de gesto do problema das favelas que combina a pr-regularizao, atravs da criao das Zonas Especiais de Interesse Social, que garante a segurana de posse, com um programa de urbanizao, a largo prazo, com forte participao popular atravs das Comuls (Co-misses de Urbanizao Locais) e do Frum de PREZEIS, que rene as representaes das Comuls, organizaes no-governamentais e governo, num frum deliberativo com maioria da representao popular. Uma das novidades do PREZEIS que ele aponta para uma soluo global para o problema das favelas, que, uma vez transfor-madas em ZEIS, instalam suas Comuls, tm elaborado um projeto de urbanizao e iniciam os procedimentos de regularizao fundiria.

    O modelo do Frum de PREZEIS permanece como uma experincia restrita ao Re-cife, embora tenha servido de inspirao a vrias legislaes e experincias municipais no Brasil.16 Ressalte-se, principalmente, a importncia da adoo da legislao de AEIS ou ZEIS como mecanismo de segurana de posse e de viabilizao da regularizao urbanstica que adotada hoje na maioria das grandes cidades brasileiras.

    Na dcada de 90, a urbanizao de assentamentos precrios desenvolveu-se for-temente no pas, registrando-se diversas experincias nas grandes cidades: programa Favela Bairro, no Rio de Janeiro; programas de urbanizao de favelas desenvolvidos pelas administraes da cidades de So Paulo (incluindo o programa Cingapura e Guarapiranga); projeto Vila-Bairro, em Teresina; programa de regularizao fundiria, em Porto Alegre; projetos de urbanizao dos Alagados, em Salvador; programas de

    16 Como o caso do modelo implantado em Santo Andr.

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    urbanizao de assentamentos, em Diadema e Santo Andr; programas de urbanizao em Belo Horizonte e em Betim, na RMBH; projeto Terra, em Vitria, etc. Dentre estas intervenes, destaque-se o caso de Belo Horizonte, seja pelo seu modelo de partici-pao ampliada (articulando Conferncia, Conselho, Oramento Participativo, Ora-mento Participativo da Habitao e grupos de referncia locais), seja pelo Plano Global Especfico, que estabelece um programa de longo prazo e que orienta as intervenes em favelas a partir de aes estruturais baseadas em um planejamento global.

    Alm dos citados, que so programas com relativa estabilidade no tempo, pode-se afirmar que a maioria das prefeituras desenvolveram aes mais pontuais de interveno na proviso de infra-estrutura e equipamentos em favelas e assentamentos precrios.

    Alm dos programas de urbanizao e de regularizao de favelas, cabe destacar a experincia, mais limitada, de desenvolvimento de aes visando a regularizao dos loteamentos irregulares e clandestinos. Destaca-se, neste caso, principalmente a experincia do Ncleo de Regularizao de Favelas do Rio de Janeiro.

    O Ncleo de Regularizao de Loteamentos teve sua origem na atuao da Procu-radoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, que, na dcada de 80, organizou um frum com participao de representantes do Movimento de Loteamentos. Este Frum ins-trumentalizava a ao da Procuradoria, que, utilizando-se dos recursos da Lei Federal 6.766, buscava penalizar os loteadores responsveis pelos loteamentos irregulares e clandestinos. Com a participao da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, o Frum ganha maior efetividade no desenvolvimento de obras de urbanizao.

    No final da dcada de 80 o Ncleo passa para o mbito municipal, sendo hoje uma das atribuies da Secretaria Municipal de Habitao, sob a coordenao de um de seus tcnicos. Sua composio paritria, prevendo-se a participao de representan-tes do Movimento de Moradores de Loteamentos da Cidade do Rio de Janeiro e da Gerncia do Programa de Regularizao, representada pelos vrios rgos municipais e, ainda, pela Light (servios de eletricidade, hoje privatizada) e pela Companhia estadual de guas e Esgotos (CEDAE).

    O Ncleo permanece em atividade, tendo sobrevivido a vrias mudanas de admi-nistrao, contando hoje com o apoio do BID, tendo sido includo no Proap II.

    A anlise da evoluo dos programas de urbanizao de assentamentos precrios revela, como tendncia, uma progressiva incorporao de programas e aes sociais no escopo da interveno, de forma complementar s intervenes fsico-urbansticas. Nesse sentido, a experincia que ganhou maior relevo pela inovao na capacidade de articulao horizontal das aes, numa perspectiva matricial de administrao, o projeto Santo Andr Mais Igual desenvolvido pela Prefeitura Municipal de Santo Andr (SP). O programa teve incio em 1997, quando a nova administrao decide retomar os projetos de urbanizao de favelas, incluindo a perspectiva da incluso social,17 j que avaliava-se que apenas a urbanizao seria incapaz de propiciar mu-danas efetivas no quadro socioeconmico e cultural que caracterizava a populao residentes nestes assentamentos. Colocou-se assim como modelo de interveno a articulao de diversos programas nas mesmas comunidades, comeando pelo pro-

    17 Estamos aqui adotando este termo de uma forma acrtica, j que as idias de incluso e excluso tm merecido algumas reinterpretaes que questionam a sua adequao ao fenmeno que pretendem descrever. Ver, a respeito, MARTINS (2002).

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    grama de Renda Mnima, que, mais tarde, foi complementado com atuaes nas reas de educao (cursos de alfabetizao, cursos de certificao da 4 srie do ensi-no fundamental, acompanhamento das crianas na escola), sade, trabalho (cursos para agentes de formao profissional, capacitao de empreendedores), organizao sociopoltica (capacitao para lideranas), gnero (oficinas de sensibilizao para mulheres) etc. Alm das aes de capacitao, a rea de gerao de renda envolveu o acompanhamento e assessoramento na obteno de crdito junto ao Banco do Povo (municipal) para viabilizao dos empreendimentos.

    A realizao de um programa de interveno complexo, envolvendo diferentes rgos e setores da Prefeitura, exigiram uma nova perspectiva de organizao, articu-lao e integrao das aes, no nvel intramunicipal. A Prefeitura instituiu ento trs esferas de articulao intersetorial das aes, definindo nveis hierrquicos, a saber: a equipe gestora, formada pelos titulares das secretarias envolvidas, responsvel pelas diretrizes gerais e pela avaliao; as equipes operadoras, responsveis pela coordena-o tcnica, formadas pelos responsveis diretos por cada ao; e, finalmente, a equipe local, formada pelos agentes responsveis pelas diferentes linhas de trabalho.

    A experincia de Santo Andr aponta uma perspectiva que est colocada como horizonte de um processo de aperfeioamento e de maior eficcia da ao dos governos municipais. No entanto, essa breve descrio aqui apresentada, j suficiente para mos-trar a compl