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  • 8/8/2019 Percursos - Centro de Estudos de Fátima

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    «Concurso Jovens Autores de Histórias Ilustradas»

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    Percursos… 

    I

    Trim, Trim… 

    - Estou sim. Quem fala?- Boa noite. Estou a falar com o filho do Sr. Ricardo?- Está sim. Mas quem fala?- Daqui fala o tenente Rui Santos. Infelizmente, estou a ligar para lhe comunicar más notícias. É sobre os seus pais

    - disse ele num tom estranhamente calmo para quem tem más notícias a transmitir.- O que se passou homem!? Desembuche por favor! – Supliquei, aflito.

    O polícia hesitou, mas as dolorosas palavras acabaram por ressoar como se de um eco se tratasse:- Os seus pais sofreram um acidente rodoviário…Não conseguiram sobreviver, lamento. O oceano, que já surgira nos meus olhos, estava agora agitado, afogando a minha boca e arrastando o meu sorriso

    na corrente:- E o meu irmão!? Como está o meu irmão!? – persistia eu.- O seu irmão sobreviveu mas encontra-se gravemente ferido, o acidente foi bastante violento, teve imensa sorte

    pois se… Não aguentei, o mundo desabou em cima de mim com todas as suas majestosas forças. Caíram-me nuvens negras

    na cara carregada de tristeza, estas que se apoderaram dos meus olhos, pressionaram o botão e arrastaram-me atéao carro. Tinha de ir ver o meu irmão!

     Algumas horas depois, já me encontrava no hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde ele estava internado. Ademora de alguns minutos a atender as minhas preces pareceu-me uma eternidade. Até que o médico se aproximoue me explicou a situação do meu irmão…estava tetraplégico! O que iria ser de mim agora, sem os meus pais, sememprego e com um irmão tetraplégico para cuidar? Tanta volta que o nosso mundo dá e tinha logo de se voltar contramim.

    São estas situações que nos fazem duvidar da Sua existência. Se Ele de facto existe decerto que não sofre deamores por mim! Ou será que isto, a morte, a fome, a doença, tem um propósito…? Quero acreditar que sim! Ou entãoo Diabo é mais forte, tão forte que sente um fraco por mim.

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    II

     Aproveitei os dias que o meu irmão esteve internado para ir procurar emprego. Felizmente, arranjei rapidamenteum part-time num restaurante em Fátima, não era o trabalho ideal, não me estimavam e pagavam-me pessimamente,mas eu precisava mesmo do dinheiro.

    Os meus avós sempre nos apoiaram imenso e, como era de esperar, quando o meu irmão recebeu alta, aceitaram-nos de braços abertos. Eles são ambos autossuficientes contudo, lamentavelmente, não nos deixam pagar os estudoscom couves e batatas, por isso tive de enfrentar a realidade e assumir as responsabilidades… A minha adolescênciaacabou! Deixei de ter tempo para os amigos, para a namorada e para a música, mas, enfim, família é família.

    Não me podia esquecer que o meu irmão sempre foi o meu braço direito, sempre me defendeu e me apoiou quando

    mais ninguém se dignou a fazê-lo, era uma espécie de pai e, simultaneamente, o meu melhor amigo. Agora é a minhavez de estar presente, e de tocar as notas da vida em uníssono.Por vezes, o vento traz dissolvidas em si belas e desagradáveis memórias, que, misturadas no relógio, fazem aquilo

    que sou. Desde o acidente, que tem havido tempestades na minha cabeça. Recordo-me dos tempos em que fui feliz.Recordo-me dos meus pais, recordo-me do meu irmão. Um dos episódios, desta curta série a que chamamos vida,que me marcou como um ferro quente gravado na pele, foi o momento em que os meus pais nos levaram a andar dekarting a primeira vez. Nós ficámos fascinadíssimos, e esse fascínio espelhou-se nas águas do destino, pois, devidoa essa experiência, surgiu o interesse do meu irmão por velocidade, que o levou a tornar-se piloto de rally, e, também,o meu interesse por motores, que me empurrou para o curso de engenharia.

    III

    Hoje vou sair! O meu irmão já se encontra melhor a nível psicológico e não se importa de ficar com os meus avósesta noite. Estou felicíssimo, tenho saudades dos amigos, das nossas aventuras e loucuras (sempre fui um poucorebelde, consciente…mas rebelde). Ultimamente, os meus ouvidos têm sido alvo de histórias, de festas e jantaradasque, infelizmente para mim, não passam de isso mesmo … histórias, narrativas que eu leio nos lábios de outros.

    Espero que, de hoje em diante, seja incluído nalguns capítulos de um conto em que, outrora, fui protagonista.Estou pronto! Pedi o casaco emprestado às traças e roubei as calças ao pó, estou pronto para ir passear cento e

    setenta cavalos.Fizeram-me a já esperada surpresa, o suposto café era afinal três barris de cerveja, um banquete e dezenas de

    pessoas. Nos meus olhos, era possível visualizar o espetáculo de pirotecnia. Estou ligeiramente embriagado, nãodevia ter bebido tanto café, e muito menos deste com elevado teor de cafeina. Como o carro não se desloca sozinho

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    e não vou conduzir neste estado, resta-me ficar a dormir em casa da minha namorada, que fica apenas a quatrocentosmetros do local onde nos encontramos. Em casa dela, tive um sonho que já não tinha há alguns meses. Nestedevaneio estávamos ambos em “conchinha” quando sinto a sua mão a passar suavemente pelas minhas pernas

    escalando o meu corpo lentamente. Os nossos olhos fechavam de forma inversamente proporcional aos lábios, e assuas pernas prendiam a minha anca de um modo tão intenso que os nossos corpos se transformavam num só, unidospela alma. O meu ventre massajava o dela, enquanto as nossas faces pingavam amor em estado líquido. Éramos umser tão uniforme que desejei, por momentos, ser seu siamês, não me queria descolar dela, para quê descolar se jáestava nas nuvens? Ai como eu adoro sonhar com os olhos abertos!

    IV

    O meu irmão teve uma recaída, já esperava que tal acontecesse mas nunca pensei que fosse logo após vinte equatro batimentos cardíacos do relógio. Ele estava sozinho a contemplar o carro e a lavar a cara com aquela famosaágua temperada.

    - Então Luís, o que é que se passa?- Nada, não é nada - disse ele soluçando.- Se continuares assim, bem vais ter de nadar.- Queres de bruços ou mariposa?O meu irmão é assim, mesmo estando triste, arranja sempre espaço para a ironia sobre a forma de humor. Porém,

    rapidamente lhe voltou a chover na cara e, entre os soluços, disse:- Nunca mais vou poder fazer aquilo de que eu mais gosto … conduzir! É a minha maior paixão, Diogo! – fez uma

    breve pausa – tenho pensado imenso nisto, e acho que o melhor ainda era eu… - Cala-te Luís! – Interrompi eu, já com os olhos espelhados – já perdi a mãe e o pai, não iria suportar a dor de te

    ver partir. Não podes fazer-me isto, não podes! Peço-te por tudo!- Sabes o que é perderes tudo aquilo que sempre tiveste? Sabes o que é perderes a autonomia?- Eu sei, também não tem sido fácil para mim. E não te preocupes que vais voltar a conduzir! - exclamei

    determinado.

    - Como é que posso ser pássaro se não tenho asas?- Não precisas de ser pássaro para voar. Vais voltar a conduzir. Não sei como nem qua ndo, mas vais…prometo!

    Mas agora vamos para dentro de casa que as tuas lágrimas estão a congelar.

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    V

    Nas semanas seguintes, só o meu corpo ia às aulas, a cabeça ficava no caderno a namorar a imaginação. Eram o

    par mais bonito da escola, estavam sempre juntos. Eu fiz uma promessa, e os rascunhos no meu caderno são a provade que a vou cumprir a todo o custo, estou determinadíssimo. Vou criar um carro autónomo!

    O meu objetivo pode ser atingido com dois tipos de dardos diferentes.O primeiro é um automóvel cem por cento autónomo, ou seja, não precisa de nenhum interveniente, pode acelerar

    e travar, estacionar, reconhecer a sinalização, efetuar interseções e até inverter o sentido de marcha tal e qual comose fosse uma pessoa a conduzi-lo, mas com mais segurança ainda. Para que tal seja tecnologicamente possível,serão precisos imensos recursos materiais, sensores de tudo e para tudo, sistema de GPS, câmaras, entre outros.

     A outra ideia implantou-se na minha mente depois de ter assistido a um filme nomeado para os Óscares, «A Teoria

    do Tudo», que relata a vida de Stephen Hawking, e me fez pensar que, realmente, por muito má que seja a nossasituação, existe sempre quem se encontre pior, e, mesmo assim, consegue enfrentar essas tempestades e ser feliz.Por isso, parar é morrer, principalmente para o meu irmão, pois temo que ele interprete estas palavras no seu sentidoliteral. Este filme não foi só uma motivação, foi também uma fonte de inspiração, uma fonte que protestou em mimuma chuva divina, que veio cultivar ideias na minha mente quando esta estava em seca já há uns dias. Se Hawkingconsegue deslocar-se e comunicar através de um aparelho controlado apenas com os olhos, certamente que tambémposso criar um automóvel controlado pela voz do meu irmão. Uma espécie de Siri ( aplicação de reconhecimento devoz) mas mais complexo. Esta é a ideia que considero mais apelativa porque, sendo o Luís um ex-piloto de rally,certamente que prefere ser ele a ter o controlo sobre o seu próprio carro.

    Pesquisei sobre tudo o que poderia ser relacionado com automóveis e autonomia, estou pronto para pôr as mãosna massa. Só me falta a farinha, o sal, o fermento e a água. Como não se faz pão de ar, é óbvio que tenho de passarna mercearia, mas ao menos já tenho a receita, e fome, meu Deus, como tenho fome!

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    VI

    Na semana que se seguiu, entrei em contacto com várias empresas e falei até com uns jovens que participaram

    num concurso de robótica e que me ajudaram a desenvolver o projeto e, simultaneamente, a construir um protótipo.Mas…este ainda tinha bastantes falhas, falhas tais que para as reparar seria necessário muito mais daquele tão suadodinheiro que, dramaticamente, começa a escassear nos meus bolsos. E eu bem os punha do avesso!

    Estou desmotivado. Eu bem quero fazer o pão e dá-lo ao meu irmão, mas parece que nem as migalhas sãocombustíveis. Tudo porque não tenho verba para comprar os ingredientes certos.

    - O que se passa contigo hoje, Diogo? – perguntou o meu irmão.- Não é nada, Luís – exclamei cabisbaixo.

    Ironia do destino, há uns tempos atrás tivemos este mesmo diálogo mas com os papéis invertidos.

    - Não está a correr bem o projeto, não é? – perguntou ele num tom de voz que trazia implícito o facto de ele jásaber a resposta - não te preocupes, o facto de te estar a ajudar a concretizar o teu sonho, tem-me ajudado bastantena recuperação, portanto, mesmo que demore meses, havemos de conse… 

    - Estou sem dinheiro Luís! – interrompi eu.- Ah! Então, é esse o problema.- E não te chega!?- Uma adversidade só é um problema quando não existe solução. Já pensaste em falar deste projeto a uma

    multinacional?- É isso! Como é que não pensei nisso antes? Se não consigo fazer o pão vou diretamente à padaria. Vou falar com

    os melhores dos melhores, a Nissan! Haverá melhor padeiro que a Nissan? A resposta é óbvia.

    VII

     Ao investigar um pouco mais sobre a marca, e sobre quais são os seus objetivos para um futuro próximo, sinto osmeus olhos a serem puxados para o canto inferior direito do ecrã, como se a lei gravitacional dependesse da

    curiosidade. “Automóveis autónomos em 2020”  li eu. Fiquei empolgadíssimo, finalmente senti na pele e na alma overdadeiro significado do Slogan “Innovation that excites”. A autonomia é um conceito que, para além de ser inovador,é nobre, pois, assim como vai conseguir dar ao meu irmão melhores condições de vida, vai conseguir fazê-lo tambémpara outras pessoas que se encontrem em situações idênticas à dele. Li também que a Nissan tem apostado nasustentabilidade e autossuficiência, como pode ser comprovado com o Nissan Leaf, carro cem por cento eléctrico e,

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    consequentemente, ecológico. pois as emissões de CO2 são significativamente reduzidas. A Nissan possui o pãodivinal, a hóstia da indústria automóvel. E o melhor é que a massa já está no forno.

    Estou no meio da biblioteca da escola, imóvel e com olhos fixados num ponto do ecrã, como se esse mero ponto

    fosse todo ele uma bola de cristal pela qual consigo visualizar o futuro. Imagino um mundo em que todos os automóveissão autónomos: A mobilidade atinge proporções inimagináveis, vejo deficientes, idosos e crianças ao “volante” doscarros, vejo autocarros a circular em plena avenida sem condutor, vejo pessoas a dormir, comer e a ingerir bebidasalcoólicas no lugar em que, outrora, era impensável fazer tais coisas. Nos noticiários, já se extinguiram as notícias deacidentes rodoviários, as operações STOP são, agora, revisões surpresa ao automóvel, a segurança nas estradas étambém de percentagem máxima, e as árvores são bem mais verdes! Se pudesse regressar ao passado teria“roubado” um destes automóveis para oferecer aos meus pais. Assim, talvez eles ainda estivessem… 

     Acordo com um ligeiro toque no ombro, era o Gonçalo, um grande amigo que tem colaborado comigo neste projeto.

    Expliquei-lhe que tinha em mente falar com a Nissan, e ele concordou depois de lhe ter explicado tudo o que a Nissantinha feito pelo planeta Terra, como lhe chamam, eu, cá, chamo-lhe “Casa”. Ele, como Green Peace que é, achouótima a ideia de tentar envolver a Nissan no projeto. Então, após ligar para a linha de apoio da marca, que meaconselhou enviar um e-mail para a Nissan Portugal, marquei uma reunião com o Sr. Alfredo Rodrigues. Este mostrou-se bastante interessado no nosso projeto, talvez por o Luís ser ex-piloto da Nissan, ou porque falou mais alto aemoção, nitidamente visível no seu olhar, que a nossa história de vida lhe proporcionou. Foi assim que secomprometeu a ajudar-nos em tudo o que lhe fosse humanamente possível. A mim, foi-me proposto um cargo naempresa, relacionado com a autonomia, e o meu irmão é agora o piloto responsável pelos testes aos veículosautónomos.

     Ao sair da empresa, oiço uma voz no fundo do corredor a chamar-me, está cada vez mais intensa, parece estar aser sussurrada ao meu ouvido, onde ecoa sem parar. Começo a ver tudo branco e a perder as forças, até que agravidade me empurra para o chão.

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    VIII

     Acordo atordoado… 

     À medida que a neblina branca, diante dos meus olhos, vai desenhando silhuetas, apercebo-me de que estou numacama de hospital, e as tais silhuetas ganham a forma do rosto dos meus pais… Sim, são mesmo eles! Fiquei sem

    fôlego, completamente baralhado, e até me cheguei a questionar se estava no tão esperado “Céu”, mas não…Sãomesmo eles! E o sentimento de confusão rapidamente se transformou numa imensa alegria quase inexplicável. Tentoabraçar os meus pais, mas… Nada! Não sinto o corpo, somente a alma. Talvez devido aos medicamentos que mederam para as dores, dores que não doem. Concentro todos os esforços humanamente possíveis, nos membrossuperiores, mas nada sucede, não adianta, estou tetraplégico - explica-me o médico. Estive envolvido num acidentede automóvel e fiquei duas semanas em coma profundo.

    - Como te sentes? - pergunta o meu irmão que, graças a Deus, se encontra de pé diante de mim.- Não me sinto! - digo eu com um sorriso que espelhava a minha satisfação em estar eu nesta cama em vez dele.- Eu sei…Mas não te preocupes que havemos de arranjar solução…  -Tive duas semanas para pensar nisso! - exclamei confiante.- Como assim?-perguntou Luís, surpreso com a minha afirmação.-Tens o número da Nissan?