londres AnAnindeu Aeditora.globo.com/premios/assets/galileu-seculo-19.pdf · deua do século 21 e a...

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1854 2016 Na metade do século 19, a capital inglesa, com 2 milhões de pessoas, mal começava a ter rede de esgoto. A SUJEIRA SE ACUMULAVA PELAS RUAS DA CIDADE AINDA SEM ESGOTO, A CIDADE Já COMEçOU A SE VERTICALIZAR VáRIAS FAMíLIAS COMPARTILHAM POçOS ARTESIANOS E FOSSAS Há UM VEíCULO PARA CADA 4,4 HABITANTES, SEGUNDO O DEPARTAMENTO NACIONAL DE TRâNSITO (DENATRAN) EM ALGUNS BAIRROS, O ESGOTO é ESCOADO DAS CASAS DIRETAMENTE PARA VALAS E CORRE A CéU ABERTO áGUA DE BEBER ERA COLETADA EM BOMBAS INSTALADAS NAS RUAS DEJETOS DAS FOSSAS ERAM RECOLHIDOS E VENDIDOS COMO ESTERCO CORTIçOS ERAM UMA FORMA COMUM DE HABITAçãO ENTRE AS FAMíLIAS DAS CLASSES TRABALHADORAS Hoje, a segunda cidade mais populosa do Pará, com mais de 500 mil pessoas, mal começa a ter rede de esgoto. LONDRES Inglaterra ANANINDEUA Brasil 36 37

Transcript of londres AnAnindeu Aeditora.globo.com/premios/assets/galileu-seculo-19.pdf · deua do século 21 e a...

1854 2016

Na metade do século 19, a capital inglesa, com 2 milhões de pessoas, mal começava a ter rede de esgoto.

A sujeirA se AcumulAvA pelAs ruAs dA cidAde

AindA sem esgoto, A cidAde já começou A se verticAlizAr

váriAs fAmíliAs compArtilhAm poços ArtesiAnos e fossAs

há um veículo pArA cAdA 4,4 hAbitAntes, segundo o depArtAmento nAcionAl de trânsito (denAtrAn)

em Alguns bAirros, o esgoto é escoAdo dAs cAsAs diretAmente pArA vAlAs e corre A céu Aberto

águA de beber erA coletAdA em bombAs instAlAdAs nAs ruAs

dejetos dAs fossAs erAm recolhidos e vendidos como esterco

cortiços erAm umA formA comum de hAbitAção entre As fAmíliAs dAs clAsses trAbAlhAdorAs

Hoje, a segunda cidade mais populosa do Pará, com mais de 500 mil pessoas,

mal começa a ter rede de esgoto.

l o n d r e sInglaterra

A n A n i n d e u ABrasil

36 37

Não são poucos os lugares no

Brasil onde o século 19 não aca-

bou — ainda que coexista com a

era do smartphone. Ao menos

2.409 cidades, o que representa

43,2% dos municípios, já têm

sinal de internet 3G, mas ain-

da não possuem rede de esgoto.

A falta de saneamento, porém,

passou longe das campanhas

eleitorais neste ano. E o sanea-

mento é atribuição fundamen-

talmente das cidades, segundo

a lei 11.445/2007.

“Em todas as grandes ci-

dades brasileiras existem de-

terminados bairros em que

ainda estamos efetivamen-

te equiparados ao início do

século 20 ou ao século 19

na Europa”, afirma Marcelo

Araújo, pesquisador da Escola

Nacional de Saúde Pública, da

Fundação Oswaldo Cruz.

A comparação não é exagera-

da. A definição do que é sanea-

mento adequado varia de acor-

do com o tempo e a tecnologia

(leia ao lado). Hoje, dos mais

de 200 milhões de brasileiros,

apenas quatro a cada dez têm

acesso ao mais básico padrão,

a coleta de esgoto em redes.

O Anuário Estatístico 2015

da Comissão Econômica para

a América Latina e o Caribe

(Cepal) comparou o servi-

ço em 17 países da região e o

Brasil ficou em décimo lugar.

Por que isso acontece? Pelo

mesmo motivo que acontecia

na Londres vitoriana. Nas úl-

timas décadas, houve uma rá-

pida migração de pessoas das

zonas rurais para as zonas

urbanas do país. Tão rápida

que não houve tempo para

criar sistemas de sa-

neamento adequados.

Brasil, 2016. Em Ananin-

deua, cidade com mais de

meio milhão de habitantes

na Região Metropolitana de

Belém (PA), Marilda Farias

vive com sua família de seis

pessoas numa casa do bair-

ro Levilândia. Na Rua das

Américas, onde mora, as ca-

sas são cercadas por uma

grande vala. O bairro não

tem água tratada na torneira.

“Dividimos um poço com a

casa aos fundos da nossa, que

é da minha nora. A gente usa

essa água para tudo, até para

beber. Água mineral a gente

só compra quando dá”, con-

ta ela, que está desemprega-

da. Rede de esgoto, nem pen-

sar. Tudo vai para a rua, a céu

aberto. “Tem dia que a gente

não quer nem ficar aqui, de tão

fedido que fica”, conta Farias.

De acordo com os dados mais

recentes do Ministério das

Cidades, o município simples-

mente não tem coleta de esgo-

to. Em 2011, nove a cada mil

habitantes de lá foram parar

no hospital com diarreia.

INGLATERRA, 1854. Durante

a Revolução Industrial, uma

maré de gente migra de áreas

rurais para trabalhar na maior

cidade do mundo, Londres.

Pela primeira vez na história,

mais de 2 milhões de pesso-

as vivem numa mesma cida-

de, muitas delas apinhadas

em cortiços. O esgoto corre

a céu aberto. Água é buscada

com balde em bombas públi-

cas. No início de setembro da-

quele ano, na hoje sofisticada

região central do Soho, 500

pessoas morreram de cólera.

A causa foi descoberta pelo

médico John Snow (que sabia

tudo) ao fazer um risquinho

para cada morto num mapa que

virou um clássico da epidemio-

logia. A contaminação veio de

um cueiro de bebê com diarreia,

jogado numa fossa ao lado de

uma bomba de água na Broad

Street. A revelação de que a

causa das mortes não era o mau

cheiro das ruas, como se pensa-

va, levou à criação do primeiro

sistema moderno de saneamen-

to urbano, no final do século 19.

reportAgem no pArá por GABRIELA AZEVEDO

ilustrAçÕes MARCUS PENNA

O BRASIL QUE ESTÁ NOSÉCULO

design JOÃO PEDRO BRITO e fERNANDA DIDINI

Em mais de 40% das cidades do país, a internet já chegou aos celulares, mas não existe rede de esgoto — um atraso de um século e meio

por MARCELO SOARES e GIULIANA DE TOLEDO

Atualmente, apenas quatro a cada dez de brasileiros têm coleta de esgoto em rede ligada à sua residência

Evolução dos objetivos de tratamento de esgoto em países desenvolvidos

ATÉ O INÍCIO DO SÉCULO 20• Remoção dos sólidos em suspensão na água

ATÉ A DÉCADA DE 1970• Tratamento de matéria orgânica e eliminação de organismos patogênicos

A PARTIR DOS ANOS 1980• Remoção de nutrientes de bactérias, como nitrogênio e fósforo

• Aumento dos padrões para extração de produtos potencialmente tóxicos lançados no ambiente

Cada pessoa gera em torno de

1 KGde resíduos sólidos por dia, equivalente a

100 Lde esgoto.

na ponta do lÁpis

Fonte: Fiocruz

que ano é hoje?

39

Esgotonão

não informou

s im

Governo não sabe

Não tem esgoto

Tem esgoto

Sudeste

139cidades não informaram

60cidades não informaram

319não têm rede de esgoto

36cidades não informaram

31 cidades não informaram

453têm rede de esgoto

55têm rede de esgoto

41cidades não informaram

354têm rede de esgoto

156têm rede de esgoto

1.161não têm

rede de esgoto

334não têm

rede de esgoto

1.301têm rede de esgoto

794não têm rede

de esgoto

279não têm rede

de esgoto

Governo não sabe

Não tem esgoto

Tem esgoto

Norte

Governo não sabe

Não tem esgoto

Tem esgoto

Nordeste

Não é só em favelas e gro-

tões que isso ocorre. Pense

em locais turísticos. A Baía

de Guanabara recebe 18 mil

litros de esgoto por segundo.

E Ilhabela, ponto nobre do

litoral de São Paulo? Só cole-

tava 28% do esgoto em 2014.

Paraty (RJ), a terra da festa lite-

rária mais badalada do Brasil?

Zero. Santa Catarina, terra de

alto IDH e da Oktoberfest?

Só 17% dos habitantes têm es-

goto coletado em rede.

A origem da palavra sanea-

mento é o latim: sanum, sadio.

Foi na Roma Antiga que sur-

giram os primeiros sistemas,

as cloacas, por onde passa-

vam as águas de drenagem, a

água da chuva, o lixo, as fezes

e até cadáveres — tudo mis-

turado. Tratamento ainda não

era uma preocupação. Levou

tempo para se perceber que a

falta de saneamento faz com

que doenças sejam letais.

A diferença entre a Ananin-

deua do século 21 e a Londres

do século 19 é que os ingleses

precisaram literalmente co-

locar a mão no esgoto antes

da época em que, sem novas

epidemias letais com

que se preocupar, um

DESENCANADOS Quase 3 mil cidades brasileiras não têm rede de esgoto. Veja as dez piores entre as mais populosas

População com coleta: 21,2%Além da falta de rede coletora de esgoto, a capital do Acre carece de água encanada. Apenas 50,2% da população é atendida com água em casa.

10. rio brAnco · AC

População com coleta: 21,1%Para diminuir a falta de saneamento na região foi lançada, em 2013, a Carta do Cariri, que incentiva obras para evitar a poluição de mananciais.

9. juAzeiro do norte · CE

População com coleta: 19,1%No ano passado, a prefeitura da capital do estado culpava o governo federal pela situação, por ter passado anos sem investir em saneamento básico.

8. teresinA · PI

População com coleta: 0%A segunda cidade mais populosa do Pará aparece em todos os rankings do Trata Brasil como a pior entre as cem maiores do país.

1. AnAnindeuA · PA

Quanto coleta: 7,1%Otaeptatur si cuscid magnitio odiore et di cum endae. Ipiditas quodi ut laceptas nonse voluptur acienducit faceptatia es inciet reheniendi verovidunt quam si

6. mAnAus · Am 7. belém · PA

População com coleta: 0%Com quase 300 mil moradores, a terceira cidade com mais habitantes do estado está empatada com Ananindeua em 0% de rede de esgoto.

2. sAntArém · PA

População com coleta: 2%

A rede existente é antiga, quase toda instalada junto com a construção da ferrovia Madeira- -Mamoré, no início do século 20.

3. porto velho · RO

População com coleta: 5,5%

Em 2013, segundo o Jornal Nacional, os hospitais atendiam 400 pessoas por dia com doenças relacionadas ao saneamento.

4. mAcApá · AP

População com coleta: 6,6%

Boa parte do esgoto é despejada no mar, em valões que correm pela areia da praia e tornam a água imprópria para banho.

5. jAboAtão dos guArArApes · PE

Fonte: Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento 2014 (Ministério das Cidades); Ranking do Saneamento 2016 (Instituto Trata Brasil)

Tem esgoto

Não tem esgoto

Cidade não informou

No Norte do Brasil, as longas distâncias entre as cidades, a geografia e a baixa densidade demográfica tornam mais difícil a melhoria do saneamento

COMO LER O MAPA

vAmOS pOr pArtES

Em proporção ao número de municípios, o Sudeste e o Centro-Oeste são as regiões do Brasil com mais cidades que têm rede coletora de esgoto.

nordestenorte sudeste sul centro-oeste

Governo não sabe

Não tem esgoto

Tem esgoto

Sul

Governo não sabe

Não tem esgoto

Tem esgoto

Centro-oeste

homem com apelido de Jack

começou a afiar o bisturi no

distrito de Whitechapel. Os

primeiros túneis da rede de

esgoto foram inaugurados em

1865, uma década depois da

epidemia de cólera descoberta

por John Snow. O tratamento

começou no final do século 19.

Já em vários pontos do

Brasil, especialmente no

Norte, o problema é extrema-

mente atual (observe no mapa ao lado). “Até mesmo as capi-

tais, como Porto Velho (RO),

Belém (PA) e Macapá (AP),

possuem indicadores vergo-

nhosos, algumas delas com

quase 0% de coleta e trata-

mento dos esgotos”, diz Édison

Carlos, presidente executivo

da ONG Instituto Trata Brasil.

taManho é doCuMentoDevido às características do

serviço, é mais rápido expan-

dir o abastecimento de água do

que a coleta de esgoto. Foi o

que ocorreu na maior parte do

Brasil nas últimas três déca-

das. O desafio aumenta com o

tamanho das cidades: quando

elas são pequenas, porque não

há escala suficiente para o ser-

viço; quando elas são grandes,

porque é muito caro atender

direito tanta gente. No Norte,

as distâncias, a geografia e a

baixa densidade demográfica

tornam tudo ainda mais difícil.

“Em cidades distantes, como

na região Amazônica, as solu-

ções de saneamento serão ne-

cessariamente por sistemas

individuais ou minissistemas

coletivos, mas mesmo esses

são fundamentais para prote-

ger a saúde das pessoas e a na-

tureza”, diz Édison Carlos.

O economista Carlos Saiani,

pesquisador da Universidade

Federal de Uberlândia, apli-

cou ao ritmo de expansão do

acesso à água e da coleta do

esgoto a mesma régua usa-

da pela ONU para verificar o

atendimento das metas

de desenvolvimento do

População com coleta: 9,9%Alguns condomínios têm estação de esgoto particular. Em julho deste ano, uma delas explodiu, ferindo pessoas que faziam um churrasco.

População com coleta: 12,7%Pesquisa da UFPA estima que seriam necessários R$ 2,5 bilhões para dar água tratada e coleta de esgoto a toda Grande Belém.

2 4

8

7

6

5

9

10

3

1

Consulte como está sua cidade em

GALILEU.GLOBO.COM

40 41

Fonte: IBGE, Censo 2010; os dados refletem a média do uso de cada modalidade nos municípios do estado

Fontes: *Censo; **SNIS

O pAÍS EStÁ NA FOSSAFormas precárias de descarte de dejetos, como fossa rudimentar e vala, ainda são comuns em diversos estados do Brasil; veja como a população se vira em cada local

PI

0

25

50

75

100

% da

popu

laçã

o

TOmTmA ROPAAP gOAC mSAm RRRN SCRSPRAL CE SEBA PB PEES mg RJ SPDF

É a maneira mais adequada de coletar dejetos. É caro e trabalhoso fazer uma rede, por isso são menos comuns nas zonas rurais.

rede de esgoto fossa rudimentarNão há qualquer tentativa de tratamento dos dejetos, que são lançados diretamente em um buraco na terra, sem isolamento.

fossa séPticaOs dejetos passam por filtragem antes de chegarem à natureza. É adequada a zonas rurais, onde o resultado pode virar adubo.

não tinhamÉ basicamente isso mesmo, as pessoas disseram ao Censo que não tinham esgoto em casa. Em 2010, isso era mais comum no Piauí.

outro tiPoA criatividade do brasileiro não conhece limites. Em alguns estados, parcela pequena da população citou outras formas de descarte.

rio, lago ou marAcontece principalmente em favelas, por improviso. Os problemas da Baía de Guanabara na Olimpíada vieram daí.

É o famoso esgoto a céu aberto. Ocorre, em geral, em áreas irregulares e expõe os moradores a diversos tipos de doenças.

vala

trANCOS E bArrANCOSA porcentagem da população que tem esgoto melhorou. Só que melhorou mais onde já estava melhor

milênio: reduzir pela metade,

até 2015, os déficits de aten-

dimento registrados em 1990.

De acordo com o levan-

tamento, quase todos os es-

tados conseguiram cumprir

a meta no atendimento de

água, exceto cinco. Todos os

que faltaram estão no Norte:

Rondônia, Amapá, Acre, Pará

e Amazonas. No tocante ao es-

goto, foi o contrário. Apenas

cinco estados, com economias

mais fortes, atingiram a meta:

Espírito Santo, Minas Gerais,

Rio de Janeiro, São Paulo e Rio

Grande do Sul. Ainda assim, no

caso dos gaúchos isso ocorreu,

em grande parte, por meio do

uso rural de fossas sépticas —

sistemas de tanques que tratam

quimicamente os dejetos.

O Nordeste, segundo o es-

tudo, foi a região que mais ra-

pidamente evoluiu no período.

Isso ocorreu devido a uma série

de políticas públicas, incluindo

o Programa de Aceleração do

Crescimento (PAC).

“Em alguns aspectos, o sa-

neamento tem evoluído ade-

quadamente; em outros, abai-

xo do desejável, o que reflete,

em grande parte, a própria rea-

lidade socioeconômica do país,

com os déficits regionais e his-

tóricos”, diz Alceu Segamarchi

Júnior, secretário nacional de

Saneamento Ambiental do

Ministério das Cidades. “Não

se pode falar em desenvolvi-

mento sustentável sem que

os índices de saneamento es-

tejam compatíveis com a quali-

dade pretendida”, afirma.

Entre as 5.570 cidades bra-

sileiras, pouco mais da me-

tade (52%) nem sequer tem

contrato com empresa de es-

goto. Geralmente são municí-

pios muito pequenos, pobres

e pouco populosos, no inte-

rior. Das 3.828 cidades com

menos de 20 mil habitantes,

60,7% declararam ao Sistema

Nacional de Informações so-

bre Saneamento, do Ministério

das Cidades, que não

tinham contrato com

empresa de esgoto. Outras 248

delas (6,5%) simplesmente

não deram informações.

Como a população se vira

nesses casos? A melhor pis-

ta que se tem vem do Censo

de 2010, última vez em que

o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE)

bateu à porta de todos os bra-

sileiros para perguntar quem

eles são e como vivem.

Nessas cidadezinhas, quase

metade da população (47%)

informou ao Censo que usava

fossas rudimentares para elimi-

nar seus dejetos. Ou seja: eles

iam para a terra, sem qualquer

tentativa de tratamento. Isso

acontecia principalmente nos

municípios menos habitados do

Centro-Oeste (78%), do Norte

(58%) e do Nordeste (54%).

Outros 13% diziam usar

fossa séptica, solução comum

em áreas rurais, onde as pro-

priedades ficam tão distantes

umas das outras que é muito

caro levar o encanamento de

uma casa a outra. Isso é bas-

tante comum nas microcida-

des da Região Sul (28,4% de

suas populações), muitas delas

emancipadas na explosão de

criação de novos municípios

ocorrida nos anos 1990 e na

primeira década deste século.

Falta de contrato com empresas de esgoto é mais comum nas cidades menores. Dos 3.828 municípios com menos de 20 mil habitantes, 60,7% não têm rede coletora

O despacho de dejetos para

rios, lagos ou mar ainda era

comum entre 4% dos brasi-

leiros em 2010. Nas microci-

dades da Região Sudeste, a

mais rica do Brasil, isso che-

gava a quase 9% dos habitan-

tes (confira no gráfico à direita a situação de cada estado).

“Os micromunicípios, que

são maioria no Brasil, não têm

escala para operar um siste-

ma de esgoto”, afirma Rafael

Terra, pesquisador de políticas

públicas da Universidade de

Brasília. Como solução, novas

tecnologias para propriedades

individuais têm sido desenvol-

vidas. Em São Carlos (SP), a

Embrapa criou há poucos anos

uma fossa biodigestora que não

polui os lençóis freáticos. O lí-

quido resultante pode ser usa-

do como fertilizante e o siste-

ma pode ser construído com

equipamentos que se compram

em lojas de ferragens.

“Faz mais sentido tratarmos

e reusarmos todo o esgoto no

local [onde ele é gerado]”, afir-

ma Molly Winter, diretora da

ONG norte-americana Recode,

em palestra em um evento da

série TED (assista em youtu.be/2Brajdazp1o). A organização

incentiva sistemas que trans-

formem dejetos em adubo.

2014**2010*

46,5%

Sudeste

55,8%

4,7%

Nordeste

7,94%

9,4%

Centro-Oeste

13,81%

1,34%

Norte

2,81%

Sul

9,14%11,53%

42

Fonte: IBGE, Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, 2001-2009 e 2011-2014

Fonte: Banco Mundial, 2015

Por que o saneamento ainda é um desafio tão grande em 2016?As cidades brasileiras cresceram muito nas últimas décadas, com a migração do meio rural para o urbano. Isso foi bastante intenso no Brasil e em alguns países da Ásia e da América Latina. Não houve tempo de criar uma estrutura de saneamento adequada. Na Europa ocorreu o mesmo, mas foi há 120, 150 anos, na primeira Revolução Industrial.

A falta de saneamento tem “endereço”?Todo mundo acha que os problemas de saneamento do Brasil estão só no Nordeste. Não é verdade. Menos de 40% da população brasileira tem acesso a esgoto coletado e tratado. O abastecimento de água potável atinge basicamente 90% da população, em todas as regiões, inclusive no Nordeste. Mas mesmo nas

grandes cidades, mesmo em São Paulo, a metrópole mais rica do país, grande parcela da população não tem seu esgoto e seu lixo coletados adequadamente.

O problema está mais perto do que parece então?O grande problema está no planejamento urbano. As cidades deveriam crescer com base em projetos em que os bairros fossem criados com infraestrutura de saneamento, mesmo que a habitação em si não fosse ideal. Mas o mínimo necessário é acesso à água potável e integração à rede de esgoto.A fossa séptica é adequada à região rural, mas não funciona em áreas de alta densidade, como as favelas. A fossa pode contaminar o solo e invadir os lençóis freáticos, transformando os corpos hídricos das regiões urbanas em valas de captação de esgoto não tratado.

Cadê o nosso uRBanisMo?

igada ao Ministério da Saúde, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) é referência na história do saneamento brasileiro. A instituição estuda questões importantes

de saúde pública, como o vírus da zika. GALILEU conversou com o engenheiro Marcelo Araújo, pesquisador do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz, localizada no Rio de Janeiro.

“Mesmo em São Paulo, a metrópole mais rica do país, grande parcela da população não tem esgoto e lixo coletados adequadamente”

Winter defende inovações

desse tipo inclusive para os

EUA, que, ao contrário do que

se pode pensar, não dá desti-

no correto aos seus dejetos em

todas as cidades. “Cinquenta

por cento dos municípios [dos EUA] autodeclaram jogar esgo-

to puro ou parcialmente trata-

do em vias navegáveis”, diz ela.

Quanto à coleta em si, os nú-

meros são mais animadores.

Segundo o Banco Mundial,

99,5% da população norte-a-

mericana conta com fossa ou

rede de esgoto (veja no mapa ao lado o status de diversos países).

e os pRefeitos?Para chegar a universalizar o

esgoto, existem vários proble-

mas a ser superados. Quatro

deles são determinantes nos

municípios do Brasil. O primei-

ro é dinheiro mesmo. Em 2014,

o governo estimava que seriam

precisos R$ 304 bilhões para

levar água e esgoto a todos

os brasileiros até 2033. Esse

valor já foi corroído pela in-

flação, mas é comparável a

11 anos de Bolsa Família e a

mais de quatro vezes o orça-

mento inteiro do Programa de

Aceleração do Crescimento

(PAC) para saneamento.

Em 2009, o governo Lula

anunciou R$ 70 bilhões para

obras de saneamento pelo

PAC. O problema: muitas das

obras emperraram. Várias an-

dam lentamente — caso de

Ananindeua — ou simplesmen-

te pararam. “A má qualidade

dos projetos apresentados e a

burocracia para acessar os re-

cursos têm sido gargalos difí-

ceis de superar até hoje”, afirma

Édison Carlos, do Trata Brasil.

“Muitos dos projetos que foram

apresentados no PAC 1 precisa-

ram sofrer aditivos técnicos e

financeiros acima do esperado,

e isso atrasa obras até hoje.” Ou

seja: a conta só aumenta.

Na falta de dinheiro para fa-

zer obras, há prefeituras que —

por mais contraditório que isso

pareça — até devolvem dinhei-

L

ro ao Ministério das Cidades.

Guarujá (SP), onde 65,1% da

população tem rede de esgo-

to, por exemplo, abriu mão de

R$ 8 milhões aprovados pelo

governo federal para a remoção

de 242 palafitas instaladas em

cima de um mangue na praia

de Santa Cruz dos Navegantes.

As casas suspensas lançam os

dejetos diretamente na nature-

za. O projeto previa também a

instalação das famílias em ou-

tros locais com saneamento e a

recuperação ambiental da área.

Segundo a Secretaria

Municipal de Habitação, o va-

lor teve que ser devolvido por-

que a conta ficou muito mais

cara que o previsto em 2009.

Há sete anos, a cidade esti-

mava desembolsar R$ 1,8 mi-

lhão para poder fazer a obra,

agora, seriam R$ 22 milhões.

Atualmente, o custo total “se-

ria próximo de R$ 30 milhões,

o que, diante da crise atual do

país com reflexos nas cidades,

impossibilita a prefeitura de

oferecer a contrapartida”, diz

a secretaria por meio de nota.

Mas de onde, então, pode vir

dinheiro para obras que o PAC

não consegue cobrir? De acor-

do com Segamarchi Júnior, o

Plano Nacional de Saneamento

Básico, de 2013, “prevê investi-

mentos de outras fontes, além

de recursos do governo fede-

ral”. As fontes podem ser or-

ganismos internacionais como

o Banco Mundial, mas não só.

Em agosto, o jornal O Globo publicou a notícia de que o

governo Temer quer conver-

sar com os estados para pri-

vatizar ações de saneamento.

O Trata Brasil disse ver “com

bons olhos” a possibilidade.

Outros discordam. Para espe-

cialistas, ainda que não faça

muita diferença para o cidadão

pagar a conta para uma estatal

ou uma empresa privada, é jus-

tamente onde mais se precisa

de saneamento que as pessoas

menos têm condições de pagar

por ele. “Uma empresa priva-

da vai querer ter lucros. Não

O CHEIrO DO mUNDOCompare o acesso da população a sistemas que separam dejetos do contato humano

COMO lER O GRáFICO

água encanada Esgoto

CAmINHO DAS ÁGUAS O abastecimento de água é mais eficiente no Brasil do que a coleta de esgoto; observe a porcentagem da população atendida

Porcentagens da população que usa algum tipo de instalação para isolar excrementos

81 - 100%

61 - 80%

41 - 60%

21 - 40%

1 - 20%

LEGENDAS

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2011 2012 2013 20142001

45,43% 46,45% 47,95% 47,93% 48,12% 48,33%51,15% 52,51% 52,58%

55,02% 57,16% 58,16% 57,62%

77,81% 79,08% 79,62% 79,46% 79,64% 80,85% 81,45% 82,19% 82,93% 83,58% 84,41% 83,96% 84,53%

44

E A FILA AUmENtA...Cada R$ 1 investido no fornecimento de água limpa e esgoto economiza R$ 4 que seriam gastos para tratar doenças, segundo a Organização Mundial da Saúde

Fonte: Datasus (Ministério da Saúde)

Fonte: Datasus (Ministério da Saúde)

há mágica em relação a isso”,

diz Marcelo Araújo, da Fiocruz.

Em regiões pobres, a pró-

pria existência de uma rede de

esgoto próxima às casas não

é garantia de que os morado-

res conseguirão usá-la. A obra

de ligação da residência à rede

precisa ser paga pelo cliente

— isso sem falar na conta que

passará a chegar todos os me-

ses. Por isso, o Trata Brasil cal-

cula que há grande ociosidade

nas redes do país. Mais de 3,5

milhões de pessoas poderiam

conectar suas casas nas cem

maiores cidades, mas não o fa-

zem, conforme estudo de 2015.

O segundo problema na

universalização do esgoto é o

planejamento. Segamarchi diz

que às vezes até existe dinhei-

ro para mandar para a prefei-

tura, mas ele não é usado por-

que o município não possui

equipes técnicas qualificadas.

Colocando em números: segun-

do a Pesquisa de Informações

Básicas Municipais feita pelo

IBGE em 2014, em nada me-

nos do que 26% das cidades os

responsáveis pela área da saú-

de tinham menos do que o en-

sino superior completo. Muitas

vezes, o dinheiro não chega

porque os projetos são repro-

vados simplesmente por serem

mal preenchidos. Quando pas-

sam, há obstáculos na execu-

ção. Em um terço das cidades,

conforme a mesma pesquisa,

apenas três a cada dez fun-

cionários têm ensino superior

completo. O problema do sa-

neamento passa também pela

(falta de) educação.

O terceiro grande problema

é a escala. Ananindeua, por

exemplo, cresceu depressa e

demorou para começar a in-

vestir em saneamento. “[A ci-dade] tem 72 anos e cresceu

mais de 450% nos últimos 25

anos. É uma explosão demo-

gráfica”, avalia o secretário de

Saneamento e Infraestrutura,

Osmar Nascimento. Depois

da última informação ao

Ministério das Cidades, refe-

rente a 2014, a gestão diz que

implantou rede de esgoto para

20 mil dos seus 500 mil ha-

bitantes — ou seja, para 4%.

Ocupação acelerada também

é o que nota a líder comunitá-

ria Eliana Rocha na sua vizi-

nhança. Há sete anos morado-

ra do bairro Jardim Canaã, em

Itaquaquecetuba, Grande São

Paulo, ela não para de ganhar

vizinhos. “Tem muita gente fu-

gindo do aluguel em São Paulo

e vindo para cá”, diz ela, que,

em casa, só bebe água de chuva

filtrada. Precavida contra estia-

gens, tem estocados, em garra-

fas PET e tonéis, 3 mil litros,

vindos de chuva recolhida em

calhas e baldes espalhados pelo

pátio e também de uma caixa

comunitária abastecida com

caminhão-pipa pela prefeitura.

Apesar de irregular, sem

água encanada e sem esgoto,

a área do Canaã é negociada

no mercado informal. Um ter-

reno custa até R$ 25 mil. Em

uma volta pelas ruas de terra

— a maioria sem nome, já que

não existem oficialmente —, é

fácil encontrar moradias em

construção, como a de Josélia

Rodrigue. Para economizar, há

dois anos ela trocou o Brás,

no centro da capital paulista,

com saneamento, pelo Canaã,

onde mora com o marido, três

filhos, genro e nora.

O Canaã, segundo a pre-

feitura, está numa fila de 184

áreas que aguardam regulariza-

ção — a rede de esgoto da cida-

de atende 64,6% da população

total. Sem resolução da situa-

ção legal, informa a administra-

ção, a Sabesp, responsável pelo

saneamento, não fará obras.

Segundo Marcelo Araújo,

da Fiocruz, os municípios que

melhor atendem seus cidadãos

com água e esgoto são os de

médio porte. Eles não têm o

volume de habitações irregula-

res das metrópoles e têm esca-

la suficiente para valer a pena

o investimento. “São cidades

com uma economia mais vi-

brante, onde a prefeitura tem

No Brasil, o tempo médio

para projetar e aprovar obras

de saneamento é de dois anos

receitas maiores e condições

mais adequadas”, diz.

O quarto grande problema

é o tempo de planejamento.

O tempo médio para projetar

e aprovar obras do setor é de

dois anos. Ou seja, só o plano

vai demorar metade do man-

dato de um prefeito, para fazer

uma obra cara e longa, que vai

“para baixo da terra” e vai atra-

palhar o trânsito. “O que falta é

vantagem política”, diz Dayana

Rodrigues, técnica em sanea-

mento ambiental do Instituto

Federal do Pará (IFPA), que cri-

tica a demora de Ananindeua

em investir em saneamento.

É difícil e caro, mas vale a

pena. “Nossos estudos apon-

tam que há um ganho na pro-

dutividade do trabalhador pela

redução das ausências ao tra-

balho, melhora a educação das

crianças, que crescem mais sau-

dáveis e distantes da possibili-

dade de contrair doenças cor-

relacionadas à ausência desses

serviços”, diz Édison Carlos, do

Trata Brasil. Segundo estudo

feito em 2014 pelo instituto, a

universalização do saneamento

cortaria quase 7% do atraso es-

colar no país. “Há uma melhora

também no valor dos imóveis,

além do turismo.”

piRiRiDiarreia infecciosa. Disenteria.

Amebíase. Ascaridíase. Febre ti-

foide. Esquistossomose. Cólera.

Hepatite A. Leptospirose. A lista

de doenças causadas pela falta

de saneamento cabe numa letra

dos Titãs. Sem nenhum surto

de cólera no país desde 2004,

a pior de todas é a mais comum: Fonte: SNIS

tOrNEIrA FECHADATotal de municípios com e sem serviço de água, por região

2000

1500

1750

1000

500

750

1259

250

Su

dest

e

Nor

dest

e

Cen

tro-

Oes

te

Nor

te

Su

l

mApA DA HEpAtItE A

mOrtE NA INFÂNCIA

mApA DA LEptOSpIrOSEA infecção do fígado é causada por água e comida contaminadas.

Total de crianças com menos de 5 anos mortas por diarreia ou infecção intestinal no Brasil

É transmitida pela urina de animais, como ratos, onde não há saneamento.

Incidência a cada 100 mil habitantes

Incidência a cada 100 mil habitantes

2014 2014

0 - 1

0 - 1

1,1 -

2

1,1 -

2

2,1 -

6

2,1 -

6

6,1 -

10

6,1 -

10

10,1

- 153

Tem água

Não tem água

Governo não sabe

10,1

- 56

SP

mg

RJ

ESmS

SC

RS

BA

gO

mT

ROAC

Am

RR AP

PA mA

PIPE

SE

PB

AL

RNCE

TO

PR

Consulte como está seu estado em

GALILEU.GLOBO.COM

1979

1980

1981

1982

1983

1984

1985

1986

1987

1988

1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

35.7

95

32.3

19

28.74

6

26.2

40

24.6

06

24.0

09

17.4

38

17.9

75

15.8

42

15.2

33

12.8

96

10.7

80

8.26

3

8.36

1

8.57

0

8.10

9

6.87

8

4.90

0

4.30

1

5.34

7

4.15

9

3.27

9

2.85

9

2.74

5

2.67

9

2.32

1

2.27

4

2.01

7

1.472

1.298

1.122

867

645

699

752

616

Rede

moc

ratiz

ação

Gove

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Collo

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Plan

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Gove

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PAC

SP

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SE

PB

AL

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TO

PR

FALtA trAbALHO SUJOCidades tratam pouco o seu esgoto; conheça as dez piores entre as mais populosas

a diarreia, grande responsável

pela mortalidade infantil.

“O indicador básico de sa-

neamento é a mortalidade de

crianças por diarreia com me-

nos de 5 anos”, diz Marcelo

Araújo, da Fiocruz. “Esse é o in-

dicador mais importante, usado

no mundo inteiro. As crianças

são mais sensíveis a essas do-

enças. Os idosos também, mas

eles podem ter várias outras

doenças mortais. Na criança é

mais fácil detectar a causa.”

Ainda em 2009, a Orga-

nização Mundial da Saúde

considerava a diarreia a segun-

da maior causa de morte infan-

til no mundo. Matava mais do

que a soma de Aids, malária e

sarampo, embora seja de fácil

tratamento. O problema é que

esse tratamento depende de

água limpa. E água limpa de-

pende de saneamento.

Ao pegar diarreia infecciosa,

não raro de vírus e bactérias

que vêm do contato com fezes,

o organismo da criança perde

rapidamente líquidos e eletróli-

tos, o que pode levar à falência

dos rins e, então, à morte.

Ananindeua é, dentre as

cem maiores cidades bra-

sileiras, a que mais gasta

com o tratamento da diar-

reia. A cada 100 mil habi-

tantes da cidade, 904 es-

tiveram internados com

diarreia em 2011, consumindo

R$ 314 mil do SUS, segun-

do estudo do Trata Brasil. E,

mesmo assim, nem todos os

casos chegam aos hospitais —

portanto, não entram nas es-

tatísticas do Datasus, sistema

do Ministério da Saúde que

coleta os números de aten-

dimentos no país. Marilda

Farias, cuja história conta-

mos no início da reportagem,

por exemplo, se automedica.

“Muitos moradores nem as-

sociam as doenças que têm à

falta de saneamento, porque

para eles aquilo já virou uma

coisa normal”, destaca Edna

Cardoso, líder de projetos so-

ciais do Trata Brasil.

gato e Rato“A médica me disse que é da

água”, conta Camila Dias en-

quanto levanta a blusa e dei-

xa à mostra a pele da barriga,

cheia de manchas vermelhas

e esbranquiçadas. “É dessa

água que a gente toma banho”,

diz ela, que mora em uma pa-

lafita do bairro Santa Cruz

dos Navegantes, no Guarujá.

A água vem de um “gato”,

instalação irregular feita com

mangueiras que serpenteiam

por debaixo dos casebres de

madeira da favela. Quase to-

das as casas têm uma bom-

ba que leva a água até caixas

instaladas nos telhados. De

lá, ela segue encanada para

as torneiras, os chuveiros e

as caixas de descarga.

Para a filha Maria Clara, de

6 anos, Camila não dá de be-

ber dali: busca água encanada

na casa de uma tia. A menina

corre pelas tábuas de madeira

que ligam sua casa às vizinhas

alheia ao risco que está lá em-

baixo: uma mistura de lama de

mangue com dejetos que caem

diretamente dos vasos sanitá-

rios, ao lado de carcaças de te-

levisão, garrafas PET, brinque-

dos quebrados, pneus furados.

Perto dali, na palafita da vi-

zinha Ciglei Moraes, o medo

é de dengue, desde que uma

das filhas teve a forma hemor-

rágica, a mais grave da doen-

ça. “A gente também vê rato,

mas aqui eu tenho gato”, diz a

aposentada que vive na comu-

nidade desde 1994, quando

“ainda era limpa a água” e “ti-

nha caranguejo no mangue”.

“Agora tenho muita vontade

de sair daqui e comprar uma

casinha. Fico apreensiva de

a água de uma enchente um

dia levantar essa casa”, conta.

“Mas na Pouca Farinha [ape-lido do bairro, atribuído a um antigo morador que cobrava em farinha a travessia de barco até Santos], a população se une.

Aqui é uma favela, mas é fa-

miliar. Não tem bandido nem

gente se drogando.”

RuMo aos 70Superado o primeiro desafio

básico, a coleta do esgoto, é

a hora do segundo, o trata-

mento — padrão de saneamen-

to buscado até a década de

1970 em países desenvolvidos.

Apenas 40% do esgoto

coletado no Brasil era trata-

do em 2014, data dos dados

mais recentes disponíveis. O

pior índice do país está no

Pará: 16%. O Maranhão vem

logo depois, com 32%. Já na

outra ponta da estatística, o

Distrito Federal trata 100%.

“O tratamento é uma etapa

mais complicada do que a sim-

ples coleta, tanto do ponto de

vista da implantação da esta-

ção como para a sua operação

posterior, que pode ser com-

plexa e cara, refletindo-se nas

tarifas”, diz Segamarchi Júnior.

De volta a Ananindeua, o

universitário Rafael Reis, que

vive no bairro do Icuí, conta

os trocados para comprar água

mineral em verões intensos,

quando seca o poço artesiano

de onde sua família de seis pes-

soas bebe água. “Há 21 anos,

desde quando nasci, esse bair-

ro está do mesmo jeito. E já

era assim antes de mim”, diz

ele. A prefeitura informou à

GALILEU que pretende ter-

minar as obras de saneamen-

to em dois anos. Com alguma

sorte, até se formar, Reis po-

derá ver seu bairro che-

gar ao século 20.

Somente 40% do esgoto coletado no Brasil, que já

é pouco, passa por tratamento

para retornar à natureza

JOGA FOrA NO LIxOMunicípios com e sem coleta de lixo, por região

Metros cúbicos

(1.000 litros) tratados

por habitante no

município em 2014

26,1 - 52 m3

0 - 26 m3

52,1 - 78 m3

78,1 - 104 m3

104,1 - 130 m3

130,1 - 156 m3

LEGENDAS

Quanto trata de esgoto coletado: 3,8%Existe coleta para 93,6% dos habitantes do município do interior paulista. Uma estação de tratamento está em construção.

10. bAuru · SP

Quanto trata de esgoto coletado: 3,7%Dos dejetos coletados de 64,6% da população da cidade, na Região Metropolitana de São Paulo, pouco chega a ser tratado.

9. itAquAquecetubA · SP

Quanto trata de esgoto coletado: 2,7%A cidade do Grande ABCD, apesar de ter rede de esgoto que atende 90,1% da população, tem baixo índice de tratamento do material coletado.

8. mAuá · SP

Quanto trata de esgoto coletado: 0%A capital já não é um exemplo em coleta: 2% dos moradores são atendidos. Do pouco coletado, nada tem tratamento.

3. porto velho · RO

Quanto trata de esgoto coletado: 0%Desde que foi feito o levantamento, a cidade começou a testar, em 2015, suas primeiras estações de tratamento.

4. sAntArém · PA

Quanto trata de esgoto coletado: 0%O município da Baixada Fluminense coleta o esgoto de 48,9% da população, porém, não trata nenhuma parcela.

5. são joão de meriti · RJ

Quanto trata de esgoto coletado: 0,05%Também na Baixada, a cidade trata os dejetos de uma fração mínima. Há coleta para 45,1% dos moradores.

6. novA iguAçu · RJ

Quanto trata de esgoto coletado: 2,3%A Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) coleta esgoto de 12,7% da população e trata uma parte pequena.

7. belém · PA

59

4

3

2

6810

Fonte: Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento 2014 (Ministério das Cidades); Ranking do Saneamento 2016 (Instituto Trata Brasil)

Consulte como está sua cidade em

GALILEU.GLOBO.COM

Fonte: SNIS

Su

dest

e

Nor

dest

e

Cen

tro-

Oes

te

Nor

te

Su

l

Tem coleta de lixo

Não tem coleta de lixo

Governo não sabe

2000

1500

1750

1000

500

750

1259

250

1. AnAnindeuA · PA 2. governAdor vAlAdAres · mg

Quanto trata de esgoto coletado: 0%O município da Grande Belém não tinha rede coletora até o levantamento, logo o número de tratamento também é zero.

Quanto trata de esgoto coletado: 0%A cidade de quase 280 mil habitantes coleta quase todo o seu esgoto (97,4% da população tem o serviço), mas não trata nada.

71

49