Historia completa do mundo de darien

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I 8 i O ANTIGO REINO DE KANDRA Os kandrianos eram tão antigos quanto o próprio Reino. Seu código de leis rígidas mas benevolentes imperava em todo o território, até nos pontos mais remotos. Era diferente de todos os códigos conhecidos, pois não dependia, para ser aplicado e seguido, nem de uma burocracia gigantesca nem de redes de espionagem nem de guarnições armadas espalhadas por todas as vilas e cidades. O poder do Reino de Kandra emanava do controle que os kandrianos tinham sobre o Mana, as forças mágicas. OS PODERES MÁGICOS DOS KANDRIANOS Os kandrianos eram mestres da arte da magia – todos eles, mesmo os mais simplórios, eram capazes de transformar água em cerveja e sabiam como acabar com verrugas, até as mais feias. Acreditava-se que, juntos, os Five Wizards of Kandra (Cinco Magos de Kandra) tinham poder suficiente para destruir todo o universo. E acreditava-se também que, pelo menos em parte, esse poder brotava de um objeto secreto, muito bem guardado, conhecido como Heart of Thesh (Coração de Thesh). Dizia-se que quem possuísse o Coração de Thesh disporia de uma força descomunal e Dois: CRÔNICAS DE DARIEN EM TEMPOS IMEMORIAIS, HÁ MILÊNIOS, O MUNDO DE DARIEN ERA UM SÓ: O REINO DE KANDRA.

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I 8 i

O A N T I G O R E I N O D E K A N D R A

Os kandrianos eram tão antigos quanto o próprio Reino.

Seu código de leis rígidas mas benevolentes imperava em

todo o território, até nos pontos mais remotos. Era

diferente de todos os códigos conhecidos, pois não

dependia, para ser aplicado e seguido, nem de uma

burocracia gigantesca nem de redes de espionagem nem de

guarnições armadas espalhadas por todas as vilas e

cidades. O poder do Reino de Kandra emanava do controle

que os kandrianos tinham sobre o Mana, as forças

mágicas.

O S P O D E R E S M Á G I C O S D O S K A N D R I A N O S

Os kandrianos eram mestres da arte da magia – todos eles,

mesmo os mais simplórios, eram capazes de transformar

água em cerveja e sabiam como acabar com verrugas, até

as mais feias. Acreditava-se que, juntos, os Five Wizards of

Kandra (Cinco Magos de Kandra) tinham poder suficiente

para destruir todo o universo. E acreditava-se também que,

pelo menos em parte, esse poder brotava de um objeto

secreto, muito bem guardado, conhecido como Heart of

Thesh (Coração de Thesh). Dizia-se que quem possuísse o

Coração de Thesh disporia de uma força descomunal e

D o i s : C R Ô N I C A S D E D A R I E NE M T E M P O S I M E M O R I A I S , H Á M I L Ê N I O S , O M U N D O D E D A R I E N

E R A U M S Ó : O R E I N O D E K A N D R A .

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devastadora, contra a qual não havia defesa ou proteção

possíveis.

Felizmente, os Cinco Magos de Kandra eram, além de

poderosos, muito sábios. Embora soubessem,

simultaneamente, de cada vez que seu código – chamado

Laws of Life (Leis da Vida) – era desrespeitado e, embora

todas as infrações fossem punidas, os magos jamais

abusavam de seu poder e posição, pois sabiam que

qualquer abuso que violasse as leis naturais inerentes à

manipulação do Mana levaria ao desastre e à tragédia.

Assim, se seu imenso poder provocava neles algum prazer

pessoal ou era motivo de alegria, esses sentimentos eram

logo ofuscados pela consciência de sua enorme

responsabilidade.

Os magos de Kandra praticavam suas artes mágicas em

lugares especiais, sagrados, que acentuavam o poder da

magia. Esses locais, demarcados por um círculo de pedras

em pé, continham provavelmente extraordinárias

concentrações de Mana. O que se sabe, sem sombra de

dúvida, é que até hoje as propriedades mágicas desses

locais mantêm-se intactas. Às vezes, quando os magos

trabalhavam com concentrações muito grandes de Mana,

gerava-se um mineral muito raro, conhecido como

mogrito, substância que dava poderes mágicos aos seres

humanos – mesmo aos mais humildes – e os tornava

imortais.

A S C I N C O R E L Í Q U I A S

Não demorou muito para que os kandrianos percebessem

o valor do mogrito. As cinco rochas de mogrito

encontradas foram reunidas, trabalhadas e transformadas

em cinco peças – conhecidas como as Cinco Relíquias: um

colar, um bracelete, um cetro, um anel e... um trono.

Cada uma dessas Relíquias simbolizava um dos quatro

elementos – terra, água, ar e fogo. A quinta Relíquia era

tida como um amálgama desses quatro elementos e

formava uma única entidade: o mundo. Assim, o colar com

a pedra de mogrito – chamado Stone of Darien (Rocha de

Darien) – simbolizava a terra; o bracelete com outra pedra

– chamado Soul of Kandra (Alma de Kandra) – simbolizava

o ar. O cetro, encimado com a pedra chamada Angvir’s

Flame (Chama de Angvir), simbolizava o fogo; e o anel,

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cuja pedra era um fragmento pequeno mas incrivelmente

puro de mogrito, chamado Macha’s Tear (Lágrima de

Masha), simbolizava a água.

A maior das Relíquias de mogrito, símbolo da

indivisibilidade do mundo, ficou conhecida como Modron’s

Eye (Olho de Modron). A pedra de mogrito foi incrustada

no espaldar do Throne of Ludd (Trono de Ludd) –

imponente peça esculpida em rocha-negra, abundante em

Darien e resistente como aço.

As Cinco Relíquias ficaram sob a guarda dos Cinco

Magos de Kandra. Durante um ano, cada um dos magos era

responsável por uma das Relíquias. Ao final do ano, os

magos trocavam as Relíquias entre eles, prática que foi

adotada para que todos tivessem sempre em mente que

não eram proprietários, mas meros guardiães, das Relíquias.

O D E C L Í N I O D A C I V I L I Z A Ç Ã O K A N D R I A N A

Os kandrianos imaginavam que, sob a guarda dos magos,

as Relíquias estariam bem resguardadas e protegidas para

sempre. Infelizmente, porém, eles estavam enganados!

Com o tempo, os magos se deram conta de que, com

uma pedra de mogrito, cada um recebia muito mais do que

poderes mágicos. O mogrito lhes dava outras coisas:

ficaram imunes a todas as doenças, seus ferimentos

cicatrizavam em instantes e tinham vida bem mais longa.

Os magos descobriram que as pedras de mogrito

incrustadas nas Cinco Relíquias aumentavam muito os

seus poderes. O Olho de Modron, em particular, tornava

seu proprietário – ou guardião – praticamente imortal.

Ora, o princípio de unidade, que mantinha coesos os Cinco

Magos era, precisamente, a absoluta igualdade entre eles.

Ao descobrirem os poderes mágicos das Relíquias, os

magos também descobriram que o guardião do trono no

qual estava incrustado o Olho de Modron teria, no período

em que a Relíquia estivesse sob sua guarda, mais poder que

os demais.

Como se não bastasse isso, nem todos os kandrianos

estavam satisfeitos com a extraordinária longevidade dos

magos. O ressentimento cresceu lenta mas continuamente.

De modo geral, os kandrianos tinham vida longa – um

kandriano comum tinha uma expectativa de vida de bem

mais de 100 anos. Mas passadas duas gerações de

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kandrianos, sempre com os mesmos Cinco Magos a

governar o Reino, o mal-estar estabeleceu-se e começaram

as indagações.

Os cinco candidatos à sucessão dos magos interrogavam

quase abertamente os velhos regentes. O treinamento dos

candidatos, escolhidos dentre os kandrianos mais

talentosos, demorava 36 anos. Era um treino duro, nas

condições de isolamento quase absoluto em que viviam os

magos. Um grupo de candidatos sucumbiu, sem jamais ter

colocado em prática os conhecimentos tão duramente

aprendidos. Os candidatos à sucessão dos magos, aliás,

protestavam cada vez com mais veemência, muitas vezes

em público, e isso era um escândalo sem precedentes na

história de Kandra.

A Q U E D A D E K A N D R A

Nos bons tempos, os Cinco Magos saberiam

instantaneamente que seu povo não estava satisfeito. Teriam

corrigido os erros, punido os culpados – caso houvesse – e

tudo, em pouco tempo, teria voltado ao normal. Mas os

magos, então, já estavam mais e mais envolvidos na luta pelo

poder. Àquela altura, cada um já tinha uma Relíquia

preferida – ou ambicionada – e, de todas, a mais cobiçada

era o trono com o Olho de Modron.

A catástrofe final eclodiu de repente, sem aviso. Não há

documentos nem registros precisos sobre a causa direta do

trágico colapso do Reino de Kandra. Teria um dos magos

forçado um golpe de Estado, na luta pelo poder absoluto? Ou

um dos eternos candidatos, frustrado com a longa espera,

teria aplicado seus conhecimentos em alguma atividade

menos nobre, ou mesmo proibida?

Ninguém sabe e ninguém jamais saberá.

O D I A D O G R A N D E C A T A C L I S M O

A única prova que resta e que chegou até nós informa que

427 anos – precisamente! – depois de as Relíquias terem

sido postas sob a guarda dos Cinco Magos, Darien foi

atingida por um golpe fatal. Desastre! As leis naturais, de

um momento para outro, deixaram de prevalecer. Nas

fazendas, os animais incharam e explodiram, como se o

sangue em suas veias, repentinamente, se tornasse gasoso.

D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

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C R Ô N I C A S D E D A R I E N

Homens e mulheres morreram numa espécie de

autoflagelação, com os corpos contorcidos e os ossos

partidos, dobrados por alguma força inexplicável, olhos

esgazeados, rostos desfigurados, crânios rebentados como

frutos apodrecidos. Na capital de Kandra, as árvores que

margeavam as grandes avenidas retorceram-se e se

racharam de alto a baixo, cuspindo uma seiva de visgo,

vapor e mau cheiro. Os mares e os lagos ferveram, os rios

secaram e sumiram em desfiladeiros profundos. As

montanhas ruíram e desapareceram na forma de planícies

de pedra e pó. Por fim, até o chão gemeu, um gemido de

morte e horror, e toda a terra de Darien foi sacudida por

um terrível terremoto.

O horror foi absoluto, mas breve: alguns instantes... e o

silêncio voltou a envolver o mundo torturado de Darien.

E do céu caiu uma chuva de sangue, por três noites e

três dias.

O R E N A S C I M E N T O D E D A R I E N

Por incrível que pareça, alguns resistiram e sobreviveram a

tudo – pobres testemunhas, enlouquecidas, que assistiram

ao cataclismo. Não sabiam por que nem como haviam sido

poupadas, mas também não se atreveram a investigar.

Imediatamente após a desgraça, Darien foi abençoado por

um período de bom tempo e bem-aventurança

inacreditáveis, que durou quase um século. Da terra

brotaram novas fontes de água cristalina; onde havia

desertos surgiram campos recobertos de grama verdejante

e macia; os pássaros voltaram a cantar e a fazer ninhos nas

árvores, outra vez cobertas de brotos.

Foi como se a natureza houvesse decidido acalantar o

mundo e curá-lo de todos os males. Aos poucos, os infelizes

sobreviventes da catástrofe reuniram-se novamente em clãs

e tribos. Mas, por mais distantes que vivessem uns dos

outros, mesmo que uns sequer soubessem da existência

dos demais, em todos esses pequenos núcleos de

civilização havia uma única crença, e todos partilhavam a

mesma postura: o mais profundo e absoluto horror por

tudo que lembrasse o tempo em que o mundo fora

dominado pelas artes mágicas. Qualquer palavra ou gesto

que fizesse lembrar o ‘tempo mágico’ da história de Kandra

era punido com extrema severidade.

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Perdeu-se, assim, o enorme patrimônio de conhecimento

mágico que os kandrianos haviam acumulado. E, à medida

que os casebres formavam vilas, e as vilas viravam cidades,

os kandrianos desenvolveram uma nova fé: a certeza de

que tudo estava absolutamente perfeito. Se uma coisa era

de um certo jeito, aquele era o modo como ela tinha de ser,

indiscutivelmente, para sempre.

O N O V O D A R I E N

O renascimento de Darien durou milhares de anos. As

novas tribos que se formaram adotaram um novo

calendário, que começava no dia do Grande Cataclismo,

tomado como Dia Um. Por isso, sabemos hoje que Darien

recomeçou a cultivar a terra no final do Primeiro Milênio;

que no início do Segundo Milênio a flora e a fauna

ganharam uma grande diversidade de novas espécies; e

que, ao final do Terceiro Milênio, já haviam desaparecido

quase todas as cicatrizes deixadas no solo de Darien,

novamente recoberto de campos e florestas. Na metade do

Quarto Milênio, quase todas as tribos que habitavam o

território de Darien já haviam restabelecido contato. O

progresso voltou e muitas áreas de conhecimento voltaram

a ser exploradas, de tal modo que, em relativamente pouco

tempo, os fragmentos de saber de cada grupo de

kandrianos tornaram-se acessíveis a toda a população.

Uma área do saber, contudo, permaneceu intocada,

evidentemente aquela que mais preocupava a todos: a

magia kandriana. Para os criadores da nova civilização de

Darien, a magia era como uma Caixa de Pandora que

aniquilaria quantos se atrevessem a usá-la.

Naquela época, não eram necessárias leis que proibissem

atividades relacionadas à magia. Para a maioria da

população do novo Darien, admitir qualquer tipo de

interesse nas artes mágicas seria tão absurdo quanto, entre

nós, admitir algum tipo de interesse em, por exemplo,

assassinatos em série. Tudo parecia resolvido.

Até que surgiu Garacaius.

O M E N I N O D A F L O R E S T A

Era um dia especial: o último dia do Quarto Milênio. Pesco,

um pescador, conduzia seu barco junto à praia, numa costa

de vegetação fechada. Não era tarefa simples, porque um

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denso nevoeiro descera sobre a água, e Pesco tinha de

desviar dos troncos que boiavam e, também, evitar os

juncos que brotavam junto à praia, na água mais rasa. Ele

tinha pressa porque a noite prometia muita festa para

comemorar a chegada do Novo Milênio, e a pressa foi a sua

perdição. O fundo do barco, de repente, bateu num tronco

parcialmente submerso, o barco saltou como um cavalo

assustado e Pesco caiu na água.

Por sorte estava no raso, a água mal chegava à cintura, o

que não o impediu de vociferar alguns palavrões. Depois de

tirar o excesso de água do chapéu, colocou-o de volta sobre

a careca e olhou em volta. A primeira coisa que percebeu

foi que os peixes estavam de volta à água, festejando a

inesperada liberdade. Pescara os peixes e os deixara vivos

porque era um homem bom, mas eles escaparam.“Eu

devia ter...” – ia recomeçar com os palavrões e os berros,

quando ouviu... um choro de bebê! De olhos arregalados,

tentava enxergar através da névoa. E ouviu outra vez: havia

um bebê por ali!

Deu alguns passos na água e aproximou-se, intrigado, de

uma árvore retorcida que avançava sobre a praia; nunca

vira árvore como aquela. O bebê tornou a chorar e Pesco foi

tomado pela sensação de que algo estava para acontecer.

Assustado, nem sentia a água escorrendo do chapéu e

molhando seu rosto. O ar estava parado. Impulsionado por

uma força incontrolável, o braço de Pesco agarrou um dos

galhos da árvore. Momentos depois, o pescador caminhava

em meio ao musgo e à grama, ferindo seus pés nos

espinhos espalhados pelo chão.

O bebê estava à sua frente. Quase tropeçou nele, ao passar

entre os ramos de um arbusto seco. Estava no centro de uma

pequena clareira, completamente nu, com uma bolsinha de

couro amarrada ao pé.

Com uma habilidade que ninguém esperaria daqueles

dedos calosos, Pesco desatou as tiras de couro e olhou o

conteúdo da pequena bolsa. E soltou-a, apavorado, com a

expressão de quem vira o rosto da morte. Num gesto rápido,

jogou a bolsinha na direção da floresta, com toda a força, o

mais longe que pôde. Aquelas sementinhas claras, macias...

aquilo era coisa de mágicos... só podia ser! O bebê tinha um

saco de sementes mágicas amarrado ao pé!

Pesco, ofegante, olhou em volta, à procura de algo que

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pudesse usar como arma, um galho ou uma pedra. Pegou

um pedaço de madeira, respirou fundo para criar coragem

e aproximou-se do bebê.

Um bebê! Um menino... Pesco tinha nove filhos e mesmo

se aquela criança não trouxesse a marca do demônio, ele

não teria como alimentar mais uma boca. Mas... e se

achasse alguém para criá-lo? Não... que idéia! E a bolsa

com as sementes mágicas?!

Ele ergueu o pedaço de madeira, aproximou-se do

bebê... mas parou.

Um bebê... um bebê...

Com um grito de raiva, Pesco jogou a arma, que caiu

longe, entre as árvores, com um ruído seco. Não parou de

maldizer a sorte, um instante sequer, enquanto pegava o

bebê e o levava ao barco; e continuou a praguejar, durante

toda a viagem, até chegar em casa.

Pesco era conhecido por blasfemar demais. Por isso

pescava sozinho.

O H U M I L D E P E S C A D O R

Há registros de que no quinto dia do sexto mês do décimo

sexto ano do Quinto Milênio, um jovem chamado

Garacaius foi aprovado no exame final da Academia Ugarit

e saiu da famosa instituição de ensino seguido por uma

nuvem negra.

Antes da formatura, cada aluno tinha de apresentar um

ensaio sobre um tema extracurricular, de sua livre escolha.

O assunto, de fato, não era importante – o que interessava

aos professores era avaliar a capacidade do estudante de

expor suas idéias, argumentar logicamente e convencer os

interlocutores. Naquele ano, um dos ensaios premiados foi

“A alegria de voar: exame das relações entre insetos

domésticos selecionados e o pote de geléia de amora”, além

do sensacional “Histórias que meu pai (que é mudo) nunca

me contou: a aventura da carpintaria”. E o jovem Garacaius

ousou escrever um tratado sobre o ... Mana! O Mana e a

função da magia no mundo natural!

Para muitos, foi a prova que faltava de que o tal

Garacaius não merecia confiança. Para começar, todos

sabiam que a Academia só o recebera porque era um dos

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protegidos do clã dos Leimar, que mandavam e

desmandavam em Ugarit. Verdade que o rapaz dizia

sempre que não pertencia àquele clã, sobretudo depois da

tensão entre os Leimar e os Balistan ter crescido tanto que

os grupos chegaram a se enfrentar em combate. A quem

lhe indagasse sobre suas origens, Garacaius dizia que

nascera numa aldeia de pescadores ao sul de Ugarit. Mas

alguns estudantes, que haviam visitado a aldeia à procura

de informações, descobriram que lá ninguém jamais

ouvira falar dele. Em resumo, mesmo antes de seu

polêmico trabalho de formatura, muita gente já tinha

motivos para suspeitar de Garacaius e, em toda a cidade,

não havia um único lugar onde ele pudesse sonhar em

conseguir emprego.

O rapaz, aliás, não pediu ajuda a ninguém. Deixou Ugarit

e partiu de volta à aldeia de pescadores onde acreditava ter

nascido. Seus ‘parentes’ do clã dos Leimar haviam contado

sobre um pescador muito humilde, que não tinha como

alimentar mais uma boca... E Garacaius, afinal, encontrou

Pesco na aldeia, já muito, muito velho, mas ainda

perfeitamente capaz de praguejar. Para tristeza do rapaz,

Pesco recusou-se a falar sobre o seu nascimento.

Como não tinha para onde ir, Garacaius decidiu ficar e

passou a pescar com Pesco – o primeiro homem a fazer tal

coisa! – e o velho começou a gostar de ter um

companheiro, principalmente porque o rapaz não

reclamava de seus maus modos e ajudava em algumas

tarefas que, com o tempo, iam tornando-se cada vez mais

difíceis. Melhor que tudo isso, contudo, foi que, em pouco

tempo, Pesco percebeu que o rapaz tinha talento... e isso o

divertia.

O B A R C O Q U E M U D O U D A R I E N

Pesco trabalhava com um barco de fundo chato, como

todos fabricados em Darien. O barco era excelente em

águas rasas e calmas e servia perfeitamente para os rios da

região. Mas uma chuva forte já significava perigo.

Depois de muita insistência, Pesco afinal concordou em

ajudar Garacaius a construir outro barco, de maior calado e

desenho revolucionário. Mais da metade do casco ficaria

abaixo da linha d’água. Pesco argumentou que, daquele

jeito, ficaria difícil de manobrar o barco, ele seria lento e,

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pior, quem conseguiria fazê-lo parar?! E, além disso, com

tanto casco submerso, seria difícil de calafetá-lo. De nada

adiantaram os argumentos – Garacaius era mais teimoso

que mula empacada e, afinal, Pesco acabou cedendo.

No ano seguinte, ao começar a temporada de pesca, o

barco estava pronto. Para surpresa geral, era quase tão fácil

de manobrar quanto o modelo tradicional. Mais: como o

novo barco era muito mais estável que os modelos antigos,

podia-se usar vela mesmo em dias de vento mais forte. Não

demorou para que Pesco e Garacaius pudessem viajar para

mais longe e alcançar áreas de pesca até então inacessíveis.

Numa dessas viagens mais longas, afinal, Pesco contou a

Garacaius como o encontrou, ainda bebê, abandonado na

floresta. Entretanto, não se sabe com certeza se falou, ou

não, sobre a bolsinha mágica. O que se sabe, sim, é que

Pesco e Garacaius passaram a trazer cada vez mais peixe;

numa das viagens os dois pescaram mais peixe que todos

os outros pescadores da aldeia juntos.

Pela primeira vez em sua longa vida de labuta, Pesco

tinha dinheiro para passar os fins de semana no bar da

aldeia, bebendo como se cada garrafa fosse a última, como

se não houvesse dia seguinte, beliscando todas as moças

que passassem por ele. Certa noite, depois de muito beber,

o pobre Pesco voltava para casa. No caminho, tropeçou e

caiu num buraco, cheio de água de chuva. Más línguas

diziam que já estava morto ao cair na água.

As más línguas diziam também que Pesco, embriagado,

contara que Garacaius havia usado artifícios sobrenaturais

para encher as redes. Que os dois discutiram. Que houve

briga. O fato é que Pesco, o velho pescador, completamente

embriagado, morreu afogado em um palmo de água. E

Garacaius, de repente, virou suspeito. A família de Pesco o

acusou do crime, menos de um mês depois de tanto ter-lhe

agradecido por haver mudado a sorte de todos.

Uma semana após a morte de Pesco, Garacaius carregou

seus poucos pertences e partiu com seu barco em direção

ao Oeste, rumo ao alto-mar. Os pescadores que

remendavam as redes na ponta do píer levantavam a

cabeça, de tempos em tempos, para ver afastar-se aquela

vela solitária. A vela foi ficando cada vez menor, até

transformar-se num pequeno ponto branco no mar

dourado pelo crepúsculo e desaparecer.

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C R Ô N I C A S D E D A R I E N

A B O A S O R T E D O S M E R C A D O R E S

D E I R G I R O N

A ilha de Irgiron, localizada bem no centro de Darien,

sempre foi um importante centro comercial. Ao final do

Quinto Milênio, havia instalada em Irgiron uma dúzia de

grandes casas comerciais, que praticamente controlavam

todo o comércio intercontinental de Darien.

O único fator que limitava o sucesso dos mercadores de

Irgiron eram seus barcos, de fundo chato, como quase

todos naquele tempo, pesados e pouco ágeis. Resultado da

péssima tecnologia naval de que dispunham, os

mercadores, na prática, acabavam perdendo no mar quase

a mesma quantidade de bens que conseguiam comerciar.

Não surpreende, portanto, que a chegada de um jovem que

dizia haver inventado um barco realmente adequado

àqueles mares tenha despertado muito interesse.

Em pouco tempo, Garacaius conseguiu todo o patrocínio

e o apoio de que precisava para começar a construir um

grande barco, capaz de enfrentar os oceanos. O novo barco

ainda tinha remos – as naves de Darien sempre haviam

sido movidas pela força de braços humanos – mas

Garacaius acrescentou-lhe uma grande vela quadrada. A

estabilidade que o calado mais fundo dava ao barco –

como explicou aos mercadores – permitia usar a vela em

praticamente todas as condições de tempo, mesmo em

tempestades. Além disso, havia muito mais lugar para

armazenar carga. Garacaius dizia que seu barco tinha

capacidade para transportar uma quantidade de

mercadorias equivalente à que meia dúzia de barcos

tradicionais comportava. E, com ele, a mercadoria sempre

chegava ao destino.

Estava certo. Em poucos anos, a população de Irgiron

duplicou. Novas fábricas surgiam, praticamente, a cada

semana, e os mercadores de Irgiron engordavam e sentiam-

se cada vez mais felizes.

A A S C E N S Ã O D E G A R A C A I U S

Quanto a Garacaius, ele cuidara de estabelecer seus

próprios entrepostos de comércio nos principais portos

de Darien e, em pouco tempo, era um dos homens mais

ricos do Reino. Estabeleceu seu centro de operações em

Estoril, a maior cidade de Irgiron, e ali construiu uma

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D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

magnífica moradia. Essa casa abrigava, dizia-se, a maior

biblioteca de Darien.

Mas Garacaius não dava sinais de querer aproveitar os

frutos de tanto trabalho – com freqüência cada vez maior,

deixava os negócios entregues a empregados de confiança e

desaparecia durante meses, em expedições particulares.

Explorou assim todos os mares de Darien, e dizia-se que

havia chegado até terras estranhas e muito distantes, bem

além de Darien. Também explorou o interior do território

e, numa dessas viagens, chegou à cidade perdida de

Waleph, cujos habitantes viviam, há cinco mil anos,

separados de Darien.

A S E S T R A N H A S V I A G E N S D E G A R A C A I U S

Os homens que acompanhavam Garacaius em suas

expedições eram de pouca conversa. Mas, vez ou outra,

quando o alívio por ter voltado os fazia relaxar e soltava-

lhes a língua, eles falavam de coisas extraordinárias.

Falavam de cidades-fantasmas, com ruas pavimentadas

e casas de pedra, onde só viviam pássaros e outros animais

selvagens. Falavam de seres estranhos, meio homens, meio

animais, e de gente ainda agarrada à vida, mesmo depois

de seus olhos terem sido arrancados das órbitas e de sua

carne, apodrecida, soltar-se dos ossos. Os homens também

falavam de outros lugares – imensos círculos de pedra,

onde o chão brilhava com uma luz úmida e suave.

Mas já no dia seguinte, se alguém lhes pedisse que

explicassem melhor o que haviam visto, que contassem

outras coisas, os homens balançavam a cabeça e calavam-

se. Só havia uma coisa que nunca se cansavam de repetir e

diziam com alegria, a quem quer que perguntasse: que

Garacaius era um homem excepcional, em quem confiavam

plenamente, de corpo e alma. Mas bastava essa rara e

estranha referência ao mundo espiritual para fazer

estremecer os curiosos que, imediatamente, desistiam do

interrogatório.

A mais longa das expedições de Garacaius, que o levou

ao coração de Zhon, estendeu-se por quase dois anos. Ao

voltar, sua tripulação ganhara mais um membro: uma bela

mulher, cujos cabelos negros e pele muito morena faziam

forte contraste com a tez clara de Garacaius. Em tempos

normais, bastaria a chegada de Lasha, aquela deusa

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C R Ô N I C A S D E D A R I E N

morena, para gerar infindáveis comentários e despertar

olhares curiosos. Mas as coisas haviam mudado muito

entre a partida e a volta de Garacaius. Nada estava como

antes. Darien inteiro havia sido tocado pela chama da

guerra.

A G R A N D E G U E R R A C I V I L D E D A R I E N

Tudo começou em Taros, a terra que Garacaius deixara,

tantos anos antes, ao partir para tentar a sorte no mar.

Os clãs de Leimar e Balistan haviam passado por outro

período de conflitos mas, desta vez, a Casa de Ontinor

havia decidido intervir. Ontinor era ligada à Casa de

Aidenfel, na terra de Aramon, e na confusão que se seguiu,

a Casa de Buriash, também de Aramon, aproveitou para

invadir um território que há anos estava em disputa. Daí, a

guerra alastrou-se como fogo em campo seco.

Um ano mais tarde, todos os clãs e todas as Casas

Nobres de Darien estavam envolvidas em algum tipo de

hostilidade contra um ou vários inimigos. A rede de

comunicações que Garacaius havia tecido com seus barcos

serviu para disseminar a guerra por todos os portos.

Garacaius tentou manter-se neutro mas, naquelas

circunstâncias, a neutralidade era difícil, senão impossível.

Um mês depois de ele ter voltado, um de seus entrepostos

comerciais da ilha de Caora foi saqueado por soldados que

chegaram por mar e todos os habitantes da ilha foram

assassinados a golpes de espada. Garacaius organizou um

pequeno exército de voluntários para punir os saqueadores

e, quase sem perceber, acabou envolvido em meia dúzia de

confrontos armados contra diferentes facções.

A Grande Guerra Civil de Darien durou oito anos.

Durante os primeiros cinco, a guerra não chegou a se

disseminar: os confrontos não passavam de combates

rápidos, seguidos de curtos períodos de paz, novamente

interrompidos por batalhas, quase sempre violentas e

sangrentas.

O N A S C I M E N T O D E V E R U N A

Ao final do quinto ano de guerra, porém, as coisas

mudaram. As várias facções independentes, muitas das

quais se reuniam em torno de Casas Nobres, clãs e tribos

de Darien, finalmente organizaram-se em quatro grandes

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I 2 1 i

D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

grupos. Três desses grupos estavam decididos a continuar

em guerra até a morte. O quarto grupo – uma federação de

cidades-estado insulares – queria a paz imediata e pregava

que as diferenças fossem discutidas e resolvidas pela

negociação. A atitude pacifista desse grupo não era

surpreendente, pois as cidades localizadas nas ilhas

constantemente eram obrigadas a se defender de ataques

inimigos, uma vez que haviam sido apanhadas pelo fogo

cruzado em um campo de batalha global.

Ninguém tampouco se surpreendeu quando Garacaius

foi eleito líder da federação das ilhas. Afinal, há anos que

ele operava nas ilhas, nelas construíra sua base e os ilhéus

tinham profundo respeito por ele. Surpresa para todos,

sim, foi o nome escolhido para batizar a federação das

ilhas: Veruna, uma antiqüíssima palavra, do kandriano

clássico, que significava “profundo respeito à verdade” .

O S T R I U N F O S D E G A R A C A I U S

Em pouco tempo, ficou evidente que o vínculo entre os

kandrianos era bem mais profundo que o nome que

adotaram. As forças de Veruna, sob o comando de

Garacaius, resistiam e derrotavam os atacantes com

espantosa facilidade. No sexto ano da guerra, uma das

Casas Nobres de Aramon, a Casa de Dernhest, declarou-se

aliada de Veruna e, ao final do ano, Garacaius já controlava

todo o continente de Veruna. No ano seguinte, sétimo ano

da guerra, Garacaius ocupou, no sul, a terra de Zhon. Mas,

à medida que se expandia o território controlado por

Garacaius, cresciam também os rumores de que o líder das

Forças da Verdade vinha empregando recursos mágicos

para derrotar seus inimigos.

No oitavo ano da guerra, Garacaius invadiu Taros. Seus

soldados desembarcaram na praia, a menos de um

quilômetro de distância da aldeia de pescadores onde ele

vivera. Encontraram-na deserta: com medo de serem

massacrados, os habitantes haviam fugido antes da

invasão. Na mesma noite, horas depois do desembarque,

Garacaius sentia-se muito triste e andava, pensativo, pelo

acampamento dos soldados, de olhos perdidos, vendo o sol

se pôr no horizonte, para além das casas vazias e ruelas

desertas.

Page 15: Historia completa do mundo de darien

I 2 2 i

C R Ô N I C A S D E D A R I E N

O R E A P A R E C I M E N T O D A M A G I A

É possível que, naquele momento, Garacaius estivesse

prevendo o que viria. A campanha de Taros foi a mais

selvagem e violenta de toda a guerra. As Casas Nobres de

Taros deixaram de lado as lutas internas e uniram-se para

enfrentar o invasor. Mas, com número menor de soldados,

os nobres de Taros logo perceberam que não teriam como

resistir e, desesperados, recorreram à antiga e eterna arma

secreta dos kandrianos: magia.

Sempre houve, em Taros, um número maior de magos do

que no restante do território. Para alguns, isto se explicaria

pela existência de muitos vulcões ativos na cordilheira de

Kaf – a espinha dorsal do continente. Nas celas do Palácio

da Justiça, em Elam, sempre havia meia dúzia de

desgraçados, condenados por prática de magia ou algum

tipo de interesse mórbido nas artes mágicas. Naquele

momento, com os exércitos de Garacaius em rápido avanço

sobre o continente, aqueles patéticos aprendizes de magos

foram arrancados das masmorras e convocados a salvar o

exército de Taros do que parecia ser uma derrota inevitável.

Por sorte, já na primeira tentativa, os pobres magos

conseguiram cegar um destacamento avançado de

cavalaria que sondava a estrada de acesso a Elam, capital

de Taros.

Os historiadores são unânimes ao afirmar que Garacaius

quase enlouqueceu de fúria ao receber a notícia. Ordenou

avanço imediato sobre Elam, em marcha forçada, e exigiu

rendição completa e incondicional dos exércitos que

defendiam a cidade. A resposta demorou. Quando já era

evidente que Taros não se renderia, Garacaius voltou à sua

tenda e de lá saiu usando um anel que ninguém jamais

vira. Andou para a linha de frente de suas tropas, ergueu os

braços e, aos gritos, pronunciou algumas palavras numa

língua estranha. Depois, ajoelhou-se e baixou a cabeça.

Como um só homem, todo o seu exército de 50 mil

soldados fez o mesmo.

Contam as testemunhas que um estranho nevoeiro,

escuro e denso, desceu sobre Elam e fez calar os gritos e

insultos dos soldados que defendiam as muralhas da

cidade. Fez-se um longo silêncio, de espanto e terror, e a

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D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

neblina começou a se dissipar. Um momento depois,

Garacaius levantou-se e, com seu exército, avançou sobre as

muralhas e entrou na cidade. Não havia ninguém. A

população inteira havia desaparecido, sumido no ar.

Nunca, antes, houve exército de ocupação mais atônito e

silencioso. Ninguém ousava falar, e os soldados mal

conseguiam acreditar no que viam: Garacaius era um mago

com grandes poderes, tão grandes quanto os mais terríveis

poderes dos infames e malditos Magos de Kandra.

O N O V O I M P E R A D O R - M A G O D E D A R I E N

Consumada a vitória, não havia como duvidar de que

Darien estava outra vez unificado. Quanto a quem seria o

novo Imperador, só havia um possível candidato:

Garacaius.

Garacaius movimentou-se com cautela. Começou por

estabelecer a nova capital de Darien na cidade de Estoril,

na ilha de Irgiron, sua terra e seu lar durante tanto tempo.

Em parte a escolha deve ter sido motivada por afeto que

nutrira por aquela região onde havia começado sua

fortuna. Mas também foi uma brilhante escolha estratégica.

Garacaius imediatamente cuidou de reformar sua

magnífica casa, ainda em bom estado, e transformou-a

num verdadeiro palácio.

No dia em que oficialmente assumiu o poder, Garacaius

discursou para os nobres de Darien, reunidos na

assembléia do novo parlamento. Nesse histórico discurso,

revelou que, ao longo de muitos anos, havia trabalhado

para recuperar o saber mágico dos kandrianos e que, em

suas expedições, conseguira recuperar as Cinco Relíquias, o

grande legado desse povo. No mesmo discurso – que a

história registra como o Juramento de Darien – Garacaius

jurou jamais fazer mau uso do saber mágico que tinha

conquistado. Só lançaria mão da magia como último

recurso e se estivesse de acordo com a vontade de seu povo.

Jurou também jamais, em nenhum caso, quaisquer que

fossem as circunstâncias, usar seus saberes mágicos em

benefício próprio.

O R E I N A D O D E G A R A C A I U S

Nos anos seguintes, Garacaius manteve a palavra. O novo

Império enfrentou sérias dificuldades. Vez ou outra houve

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C R Ô N I C A S D E D A R I E N

ameaças de guerra interna, pois os derrotados na Grande

Guerra Civil se rebelaram. Mas jamais, em momento

algum, o Imperador lançou mão de seus poderes

extraordinários. As discussões seguiram o curso normal, as

disputas acabaram resolvidas pelos meios tradicionais, sem

intervenção de qualquer força sobrenatural. Houve mesmo

quem começasse a murmurar que seria mil vezes melhor

usar alguma magia temporária para vencer os adversários

do que matá-los com o aço frio das espadas.

Os primeiros cinco anos do reinado de Garacaius também

foram marcados por eventos de caráter privado. O Primeiro

Imperador-Mago (título que, diziam alguns, Garacaius

detestava e só adotara porque era expressão da vontade da

população, assustada, mas também muito grata) uniu-se

oficialmente a Lasha – a beldade morena que o acompanhava

desde a expedição à terra de Zhon. Dessa união nasceram

quatro filhos muito belos: um menino e uma menina

morenos como a mãe e um casal louro como o pai.

Quando seus filhos aproximavam-se da idade adulta,

Garacaius já havia pacificado todo o Reino: Darien era um

território de paz e prosperidade. O Imperador podia, afinal,

dedicar-se um pouco mais à família, o que parecia fazer-lhe

muito bem. Garacaius sempre foi um homem muito ativo,

cuja fisionomia deixava transparecer a tensão em que sua

alma se debatia. Mas, afinal, na maturidade, parecia

relaxado, calmo e quase feliz.

A T R Á G I C A M O R T E D A

I M P E R A T R I Z L A S H A

A tragédia atingiu a família real como sempre: de repente.

Certo dia, Garacaius levou a família para um passeio no

primeiro barco que construiu, aquele que revolucionou a

engenharia náutica de Darien. Não parecia haver qualquer

perigo, e o Imperador não planejava aventurar-se em alto-

mar. O dia estava lindo, ensolarado, sem vento. Mas, no

mar, o tempo pode mudar repentinamente; afinal, Estoril,

na ilha de Irgiron, estava localizada no centro de um

grande oceano.

O furacão atingiu o porto como o bote de uma serpente.

Num instante, o mar ondulava como um lago; no outro,

encrespava-se em ondas encapeladas e ameaçadoras, e o

vento uivava. As crianças entraram em pânico. O barco

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D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

virou. Excelente nadador, Garacaius conseguiu salvar os

quatro filhos, mas Lasha, sua amada Imperatriz, afogou-se.

Assim como surgira, o furacão desapareceu rapidamente,

mas nada, nunca mais, seria como antes. Garacaius poderia

ter salvo a Imperatriz se lançasse mão de seus poderes

mágicos. É possível até que tenha pensado nisso, mas

vacilou, temeroso de quebrar seu juramento solene.

Quando afinal decidiu-se, já era tarde demais.

Naquela manhã, ao ver a família embarcar em seu velho

barco, Garacaius era um homem no esplendor da

maturidade e, graças às Relíquias que conservava muito

bem guardadas, podia contar ainda com muitos anos de

saúde e prosperidade. Na mesma noite, o Imperador era

um velho, alquebrado e amargurado. E, à medida que os

dias passavam, mais ele se deixava afundar no desespero e

na dor, atormentado pela própria consciência.

O D E C L Í N I O D O I M P E R A D O R - M A G O

O tempo passou, mas não cicatrizou as feridas. O grande

Imperador-Mago parecia cada dia menos interessado no

destino do Império. Os problemas começaram a se

acumular. Em todo o Darien, reabriam-se velhas feridas,

surgiam novas. Garacaius permanecia distante e

indiferente: mal atendia os emissários, que não paravam de

chegar, dispensava-os com um aceno de mão e voltava,

calado, ao seu inferno particular.

Por fim, reuniu-se, em Estoril, uma assembléia de

representantes das várias tribos e Casas Nobres de Darien.

Discutiram durante um dia inteiro e, afinal, decidiram

apresentar um ultimato a Garacaius: que voltasse a

governar ou abdicasse em favor de um de seus filhos.

Parecia justo, e os nobres esperavam que o Imperador não

se enfurecesse – quem se arriscaria a desafiar a ira de um

mago desesperado? Se o sucessor de Garacaius fosse um

bom Imperador, ótimo. Se não, ele – ou ela – poderia ser

manipulado.

Garacaius optou por uma solução intermediária: não

abdicaria mas, na prática, o Império passaria a ser

controlado pelos quatro príncipes. Dividiu o território em

quatro partes e entregou cada uma delas a um de seus

filhos, consideradas suas características particulares: às

princesas entregou os territórios que mais bem se

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C R Ô N I C A S D E D A R I E N

adaptavam aos seus temperamentos; aos príncipes, aqueles

que estavam de acordo com suas habilidades. Cada jovem

rei recebeu também uma das Cinco Relíquias. De posse das

Relíquias, os jovens sempre teriam como se proteger das

intrigas palacianas e gozariam de mais poder do que

qualquer eventual aspirante ao trono.

A S Q U A T R O C O R O A Ç Õ E S

O primogênito, Elsin, o Louro era conhecido por seu

caráter franco e aberto e por ser muito justo. Era honrado,

muito prático, muito objetivo, mas não era considerado

excepcionalmente inteligente. Dizia-se que só pensava em

fazer justiça, que não via nada além da justiça. Havia,

contudo, uma área na qual Elsin, o Louro era insuperável –

a ciência da engenharia, com suas leis e regras muito

claras, precisas, incontestáveis.

A Elsin, o Louro Garacaius entregou a terra de Aramon,

talvez o melhor dos quatro territórios em que o Império foi

dividido. Aramon já era o continente mais desenvolvido de

Darien, e Elsin rapidamente o fez progredir muito mais:

fundou cidades, construiu estradas e pontes e fundou a

famosa Academia de Engenharia e Projetos de Aramon, em

Kaluen, nova capital provincial. Para confirmar e assegurar

sua ascendência e seu poder, coube a Elsin, dentre as Cinco

Relíquias, o colar de mogrito chamado Rocha de Darien.

Na linha de sucessão de Garacaius estava, a seguir, a

princesa Thirsha, morena como a mãe e muito parecida

com ela. Thirsha amava a terra natal da Imperatriz, a terra

de Zhon, em cujas selvas fechadas e perigosas se

embrenhava para caçar, semanas a fio, acompanhada

apenas por um servo.

Garacaius entregou a Thirsha o seu bem-amado Zhon, o

continente mais selvagem e menos explorado de Darien.

Com o território, Thirsha recebeu o bracelete de mogrito

chamado Alma de Kandra. Fazia pleno sentido, pois as

florestas de Zhon escondiam muitas ruínas misteriosas do

período anterior ao Grande Cataclismo. Como no caso de

Elsin, que recebeu Aramon, a entrega de Zhon a Thirsha

mostrou-se perfeita. Em pouco tempo, a nova rainha

controlava as tribos semicivilizadas de seu continente.

Entre as tribos, ficou conhecida como Thirsha, a Caçadora.

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D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

O príncipe Lokken, o terceiro filho de Garacaius, foi

criado como uma das grandes esperanças do Reino. Mas

depois da morte da mãe, tudo o que antes era brilho e

inteligência transformou-se em ressentimento e amargura.

Garacaius amava-o ternamente, provavelmente mais do

que a Elsin. Ele acreditava que mentes inquietas precisam

de estímulo apropriado, ou correm o risco de desvanecer.

Por isso, decidiu ocupar a mente de Lokken.

Lokken recebeu Taros. O antigo continente era habitado

por algumas tribos rivais dos kandrianos e vivia em

conflito. As quatro Casas Nobres de Taros eram separadas

por disputas que se arrastavam há anos, e o território

estava devastado por infindáveis combates. Junto com a

terra, Lokken recebeu o cetro com o mogrito chamado

Chama de Angvir. Também nesse caso, a decisão de

Garacaius mostrou-se sábia: em um ano, Lokken

estabeleceu a paz, que muitos acreditavam ser impossível.

Para tanto, usou uma eficiente combinação de diplomacia,

violência e magia.

A filha caçula, Kirenna, era de todos a mais parecida

com o pai. Entre as muitas semelhanças, os dois eram

apaixonados pelo mar, um amor que, no caso de Kirenna,

sobreviveu à morte da mãe. Logo que teve idade para viajar

sozinha, Kirenna engajou-se em várias expedições que

partiam de Estoril e conheceu todo o Império de seu pai.

Os companheiros de viagem logo passaram a chamá-la de

Maga do Mar, porque ela sabia, como ninguém, prever as

mudanças dos ventos e do tempo e era capaz de conduzir

qualquer barco, em segurança, no mais denso nevoeiro.

A Kirenna coube o domínio de Veruna e o anel com a

pedra de mogrito chamado Lágrima de Macha. Uma de

suas primeiras providências foi abolir todos os impostos

internos e dobrar o salário pago aos marinheiros mais

experientes. Os ilhéus da federação de Veruna tinham,

afinal, uma governante que sabia, instintivamente, do que

eles eram capazes: em pouco tempo, Veruna detinha o

monopólio de todo o comércio marítimo.

A Garacaius coube, nos primeiro anos, a tarefa de

supervisionar o trabalho dos filhos. Mas ele era uma figura

miserável e soturna que vagava pelo palácio de Estoril, um

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C R Ô N I C A S D E D A R I E N

velho triste, sentado no Trono de Ludd, a quinta das

Relíquias, esculpida em rocha-negra. Embora o Olho de

Modron – fragmento de mogrito incrustado no trono – lhe

garantisse saúde e vitalidade, o pobre Garacaius envelhecia

dia a dia. Falava pouco e respondia com um olhar

infinitamente triste a todos que o procuravam em busca de

conselhos.

O F I M D E U M A E R A

Os anos passaram. No palácio de Estoril, preparavam-se as

grandes festas comemorativas dos dez anos das Quatro

Coroações, com inúmeras atrações: um desfile marítimo

das mais belas naves da armada de Veruna; a inauguração

da Grande Feira de Darien, na qual seriam exibidas as mais

modernas máquinas criadas pela Academia de Engenharia

de Aramon; a inauguração de uma galeria – Maravilhas de

Zhon – onde todos poderiam conhecer as preciosidades do

artesanato e da produção artística dessa terra exótica. À

noite, esperava-se com ansiedade a exibição dos Comedores

de Fogo de Taros, grupo de artistas especializado na

manipulação do fogo, nas mais incríveis situações.

O dia da festa raiou, numa aurora colorida. O palácio de

Estoril brilhava. As pedras brancas do chão pareciam

tocadas pelo pincel de um mestre que as recobria de tons

suaves, quando Gudnor, criado que acompanhava

Garacaius nos últimos 40 anos, resolveu sair à procura do

seu mestre. Começou pelos quartos do palácio. Estava

decidido a convencê-lo a se preparar para as festividades.

Por menos que Garacaius quisesse, era importante que se

apresentasse bem.

O Imperador não estava em seu quarto nem havia sinal

de que houvesse dormido em sua cama. Ao aproximar-se da

Sala do Trono, depois de muito procurar, Gudnor já

começava a dar sinais de extrema preocupação. Que idéia...

passar outra noite em claro, sentado em seu trono,

justamente na véspera de um dia tão importante. Na manhã

seguinte às noites em que não dormia, o Imperador parecia

ainda mais velho e alquebrado. Gudnor apertou na mão a

caixinha de pomada que Kirenna lhe entregara e entrou na

Sala do Trono. E o palácio estremeceu, primeiro com os seus

gritos, em seguida com os seus soluços desesperados.

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D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

Por que Garacaius não estava lá? Não havia ninguém

sentado no Trono de Ludd. E no espaldar, no lugar onde

devia estar, como sempre estivera, o Olho de Modron, havia

um buraco vazio.

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C R Ô N I C A S D E D A R I E N

Mais uma vez, estamos às vésperas de grandes mudanças.

Nos últimos dois séculos, as diferenças entre os quatro

monarcas se acentuaram cada vez mais. O surgimento de

quatro diferentes “religiões de Estado” é uma evidência de

que a unidade de Darien já é passado e dificilmente poderá

ser restituída. Em Darien, havia uma só religião. De

repente, os cidadãos de Aramon passaram a exibir anéis de

prata com a Mão de Anu, o Senhor da Luz. O povo de Taros

cultua uma terrível entidade noturna chamada Belial. Em

Zhon, cultua-se Tammuz, a Deusa da Caça. Em Veruna,

pratica-se o culto a Lihr, uma poderosa divindade marinha.

Os Quatro Reinos já lutaram entre si mas, a certa altura,

começou a surgir uma grande divisão entre os Reinos do

Oeste e do Leste.

Mesmo depois do desaparecimento de Garacaius, os

Reinos de Aramon e Veruna mantiveram-se leais ao

juramento de Garacaius e renunciaram às práticas

mágicas, exceto em casos de extrema necessidade. Os dois

monarcas, para construir Reinos poderosos, usaram

recursos econômicos: Aramon cuidou da indústria e do

desenvolvimento interno; Veruna é uma potência do

comércio intercontinental. Elsin, governante de Aramon, e

O s Q u a t r o R e i n o sO D E S A P A R E C I M E N T O D E G A R A C A I U S O C O R R E U H Á 1 5 2 7 A N O S . S E U S

F I L H O S , I M O R T A I S P O R P O S S U Í R E M A S R E L Í Q U I A S , C O N T I N U A M A

G O V E R N A R S E U S R E S P E C T I V O S R E I N O S .

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I 3 1 i

D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N

a Maga do Mar de Veruna, Kirenna, não têm dúvidas de

que a lei de seu pai tem de ser obedecida para que não

haja guerra.

No Leste, Taros rebelou-se contra a lei de Garacaius.

Lokken já usara recursos mágicos desde os primeiros

tempos, quando teve de subjugar, pelo terror, as Casas

Nobres de Taros, que se recusaram a aceitá-lo. Fascinado

pela facilidade com que venceu os primeiros combates,

Lokken jamais deixou de recorrer à magia e chegou a

remodelar a natureza de seu Reino, o que teve

conseqüências que ele, de modo algum, poderia ter

previsto. Pelas antigas Leis Kandrianas da Vida, aquele que

manipula o Mana é como um nadador que cruza um rio

caudaloso. É possível tirar vantagem de suas águas se se

nadar a favor da corrente. Mas quem tentar domar o rio, ou

nadar contra a corrente encontrará a tragédia. Lokken

afirma que tudo está correndo como planejado, mas as

coisas não parecem bem.

Ao sul de Taros, no coração das selvas de Zhon, a

Caçadora Thirsha também recorre freqüentemente à

magia. Orgulhosa e independente, a Caçadora reagiu com

escárnio às exigências de Elsin e Kirenna. Não reconhece o

direito de ninguém dizer-lhe onde e quando usar seus

encantamentos e apóia abertamente o direito de Lokken

fazer, em seu Reino, o que bem entender.

Nos séculos precedentes, as diferenças entre os irmãos

monarcas já haviam levado à guerra várias vezes. Aramon

enfrentou Veruna nos pântanos de Kuvera, no noroeste, e

em várias ilhas do Mar de Mannan. Os piratas de Zhon

atacam os barcos de Veruna e massacram tripulações

inteiras. As tribos de Zhon assaltam as ricas costas de

Aramon, cujo monarca, em retaliação, envia expedições

que invadem o território de Zhon. Um ódio implacável

separa os Reinos de Taros e Aramon, que várias vezes

envolveram-se em guerras sangrentas, motivadas sempre

por diferenças ideológicas.

Cada um dos monarcas tem muitas restrições contra os

demais, e o Império está a ponto de explodir. Os monarcas

reúnem seus soldados e se preparam para uma guerra

iminente.