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GESTÃO INSTITUCIONAL DOS RECURSOS HÍDRICOS: OS CONFLITOS E A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA INSTALAÇÃO DO COMITÊ DA BACIA DO RIO DOCE Revista de Direito Ambiental | vol. 42/2006 | p. 101 - 133 | Abr - Jun / 2006 DTR\2006\239 Sheila Maria Doula D. S em Antropologia Social (USP). Professora Adjunta do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, MG. Jacinta de Lourdes de Faria Advogada, Mestre em Extensão Rural. Departamento de Economia Rural, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa/MG (ex-bolsita da CAPES). Coordenadora do Curso de Direito da Escola de Estudos Superiores de Viçosa (ESUV-MG). Hildelano Delanusse Theodoro Sociólogo. Mestre em Extensão Rural. Departamento de Economia Rural, UFV, Viçosa/MG. Professor do Departamento de Comunicação Social, FADOM. Professor do Departamento de Administração da Faculdade Arnaldo Janssen. Membro da ONG ambiental Ecobicas; do Consea; do Conselho Brasileiro de Manejo Florestal; e membro-filiado da WWF-Brasil. Área do Direito: Administrativo; Ambiental Sumário: - 1.Introdução - 2.Panorama das águas doces no mundo - 3.Panorama das águas doces no Brasil - 4.O aparato institucional e legal e os entraves recentes para a gestão - 5.Situação atual de gestão e a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas - 6.Conflitos e participação da sociedade civil na instalação do CBH-Doce - 7.Conclusões. - 8.Referências bibliográficas Resumo: Este artigo analisa sob o ponto de vista sociológico a reestruturação do aparato legal-institucional na área dos recursos hídricos no Brasil, destacando a institucionalização da participação da sociedade civil, mais especificamente durante a instalação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce). Identifica os conflitos reais ou potenciais como impulsionadores da participação no comitê e argumenta que essa instância, criada para dirimir os principais conflitos pelo uso da água na bacia, paradoxalmente, tende a levar ao acirramento dos conflitos entre os diversos atores sociais. Discute os problemas da representação no comitê, a necessidade da construção de uma identidade coletiva na bacia, imprescindível para a participação, o voluntarismo e os incentivos positivos ou negativos necessários para a efetiva cooperação ao longo do tempo. Palavras-chave: Gestão de recursos naturais - Participação social - Comitês de bacias hidrográficas - Descentralização administrativa - Conflitos sócio-ambientais. 1. Introdução O estágio atual de comprometimento em que se encontram as águas e a nova institucionalidade que vem se configurando em torno delas nos últimos anos no Brasil, transformam-nas em um objeto fértil de investigação. Isso ocorre, principalmente, em face da emergência de novos paradigmas de gestão, pautados, pelo menos na letra da lei e nos discursos das instituições do Estado e dos ambientalistas, pela descentralização decisória e administrativa e pela participação da sociedade civil, em seus vários segmentos. Este artigo tem como objetivo analisar as iniciativas identificadas na gestão dos recursos hídricos no Brasil, tentando integrar os dados coletados em fontes institucionais ambientais e a observação da estrutura de gestão dos recursos hídricos implantada. Pretende-se, com esse estudo, identificar a GESTÃO INSTITUCIONAL DOS RECURSOS HÍDRICOS: os conflitos e a participação da sociedade civil na instalação do Comitê da Bacia do Rio Doce Página 1

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GESTÃO INSTITUCIONAL DOS RECURSOS HÍDRICOS: OS CONFLITOS E APARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA INSTALAÇÃO DO COMITÊ DA

BACIA DO RIO DOCE

Revista de Direito Ambiental | vol. 42/2006 | p. 101 - 133 | Abr - Jun / 2006DTR\2006\239

Sheila Maria DoulaD. S em Antropologia Social (USP). Professora Adjunta do Departamento de Economia Rural daUniversidade Federal de Viçosa, MG.

Jacinta de Lourdes de FariaAdvogada, Mestre em Extensão Rural. Departamento de Economia Rural, Universidade Federal deViçosa, Viçosa/MG (ex-bolsita da CAPES). Coordenadora do Curso de Direito da Escola de EstudosSuperiores de Viçosa (ESUV-MG).

Hildelano Delanusse TheodoroSociólogo. Mestre em Extensão Rural. Departamento de Economia Rural, UFV, Viçosa/MG.Professor do Departamento de Comunicação Social, FADOM. Professor do Departamento deAdministração da Faculdade Arnaldo Janssen. Membro da ONG ambiental Ecobicas; do Consea; doConselho Brasileiro de Manejo Florestal; e membro-filiado da WWF-Brasil.

Área do Direito: Administrativo; AmbientalSumário:

- 1.Introdução - 2.Panorama das águas doces no mundo - 3.Panorama das águas doces no Brasil -4.O aparato institucional e legal e os entraves recentes para a gestão - 5.Situação atual de gestão ea importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas - 6.Conflitos e participação da sociedade civil nainstalação do CBH-Doce - 7.Conclusões. - 8.Referências bibliográficas

Resumo: Este artigo analisa sob o ponto de vista sociológico a reestruturação do aparatolegal-institucional na área dos recursos hídricos no Brasil, destacando a institucionalização daparticipação da sociedade civil, mais especificamente durante a instalação do Comitê da BaciaHidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce). Identifica os conflitos reais ou potenciais comoimpulsionadores da participação no comitê e argumenta que essa instância, criada para dirimir osprincipais conflitos pelo uso da água na bacia, paradoxalmente, tende a levar ao acirramento dosconflitos entre os diversos atores sociais. Discute os problemas da representação no comitê, anecessidade da construção de uma identidade coletiva na bacia, imprescindível para a participação,o voluntarismo e os incentivos positivos ou negativos necessários para a efetiva cooperação aolongo do tempo.

Palavras-chave: Gestão de recursos naturais - Participação social - Comitês de bacias hidrográficas- Descentralização administrativa - Conflitos sócio-ambientais.

1. Introdução

O estágio atual de comprometimento em que se encontram as águas e a nova institucionalidade quevem se configurando em torno delas nos últimos anos no Brasil, transformam-nas em um objeto fértilde investigação. Isso ocorre, principalmente, em face da emergência de novos paradigmas degestão, pautados, pelo menos na letra da lei e nos discursos das instituições do Estado e dosambientalistas, pela descentralização decisória e administrativa e pela participação da sociedadecivil, em seus vários segmentos.

Este artigo tem como objetivo analisar as iniciativas identificadas na gestão dos recursos hídricos noBrasil, tentando integrar os dados coletados em fontes institucionais ambientais e a observação daestrutura de gestão dos recursos hídricos implantada. Pretende-se, com esse estudo, identificar a

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gestão a partir da inserção dos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHŽs), institucionalizados pela Lei9.433, de 08.01.1997, com a pretensão de adotar um modelo de desenvolvimento maiscompartilhado com a sociedade civil, principalmente com vistas à redução dos conflitos pelosrecursos hídricos. Cabe, neste estudo, indagar se o conflito é um elemento indutor da participação ese a instalação dos comitês tende a reduzir, de fato, a sua incidência. De forma mais particular, seráutilizado o estudo de caso sobre a instalação do Comitê da Bacia do Rio Doce (CBH-Rio Doce),identificando-se os conflitos e a participação da sociedade civil nesse processo.

O que se percebe, desde o início, acerca da situação do tema recursos hídricos é a complexanatureza administrativa que esteve e está ligada ao gerenciamento dos recursos naturais (no país, emais especificamente, no território mineiro 1), e como esta estrutura ainda carece de mecanismosmais ágeis de interação e articulação institucional entre seus órgãos formadores e destes com aspopulações existentes nas bacias hidrográficas - ou seja, com o poder local.

2. Panorama das águas doces no mundo

Estima-se que atualmente no planeta mais de 1 (um) bilhão de pessoas vivam em condiçõesinsuficientes de disponibilidade de água para consumo e que, em 25 anos, cerca de 5,5 bilhões depessoas estarão vivendo em áreas com moderada ou séria restrição hídrica. De maneira global,considera-se que há água suficiente para o abastecimento de toda a população. No entanto, adistribuição não uniforme dos recursos hídricos e também da população sobre o planeta acaba porgerar cenários adversos quanto à disponibilidade hídrica em diferentes regiões (SETTI et al, 2001).

A previsão é de que a população mundial se estabilize por volta do ano 2050, entre 10 e 12 bilhõesde habitantes, 5 bilhões a mais do que a população atual, enquanto a quantidade de água disponívelpara o uso permanecerá a mesma (OMM/UNESCO, citada por SETTI et al, 2001).

Pesquisas realizadas vêm considerando que a quantidade de água total na Terra tem permanecidoconstante durante os últimos 500 milhões de anos. O que variou foram as quantidades estocadasnos diferentes reservatórios individuais ao longo desse período (SHIKLOMANOV, citado por SETTIet. al., 2001).

A distribuição dos volumes estocados nos principais reservatórios demonstra que 97,5% do volumede água do planeta são de água salgada, formando os oceanos, e somente 2,5% são de água doce.Ressalta-se que a maior parte dessa água doce (68,7%) está armazenada nas calotas polares egeleiras. O recurso hídrico armazenado que está mais acessível ao uso humano e de ecossistemasé a água doce contida em lagos e rios, o que corresponde a apenas 0,27% do volume de água doceda Terra e cerca de 0,007% do volume total de água.

Enquanto a população na Terra aumentou em aproximadamente três vezes durante o século XX, ovolume de água utilizado aumentou de seis a sete vezes (SETTI et al, 2001). A utilização da águaextraída é, em grande parte, feita de maneira muito ineficaz, fazendo com que rios históricos, como oAmarelo, na China, o Ganges, na Índia e o Nilo, na África, não alcancem o oceano durante a estaçãomais seca (ALMANAQUE ABRIL, 2003).

Na irrigação, 2por exemplo, cerca de 60% da água captada infiltra pelos canais dos sistemas dedistribuição e se perde por evaporação. Conforme SETTI et al (2001), a água que infiltra eleva olençol freático, promovendo o encharcamento e a salinização de aproximadamente 20% das terrasirrigadas no mundo. Outra conseqüência da gestão deficiente dos recursos hídricos e do solo é aerosão, que ocasiona perdas na produção e degrada os recursos hídricos ao introduzir grandesvolumes de sedimentos nos cursos d'água. Entretanto, o desperdício de água não é exclusividade dairrigação. A indústria e os sistemas de abastecimento também apresentam considerável ineficiência(OMM/UNESCO, citado por SETTI et al, 2001).

Além dos prejuízos para as práticas agrícolas, estima-se que mais de 5 milhões de pessoas morremanualmente de doenças vinculadas ao consumo de água contaminada, serviços sanitáriosinadequados e falta de higiene (IDEM).

Em determinadas regiões do mundo são constantes os conflitos bélicos devido à escassez de água.Atualmente, conforme SETTI ET AL (2001), o conflito mais grave é vivenciado por israelenses e

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palestinos, cujos mananciais disponíveis dependem de acordos entre Jordânia, Síria, Líbano, Egito eArábia Saudita. O território palestino, sob controle de Israel desde 1967, corresponde às áreas derecarga dos aqüíferos que fluem nessa região, tão escassa em recursos hídricos.

3. Panorama das águas doces no Brasil

O Brasil é o quinto país do mundo, tanto em extensão territorial, quanto em população. Os contrastesexistentes quanto ao clima, distribuição da população e desenvolvimento econômico e social, entreoutros fatores, são muito grandes, fazendo com que o país apresente os mais variados cenários.

Perante a maioria dos países, o Brasil tem uma posição privilegiada quanto ao volume de recursoshídricos, pois dispõe de 12% da água superficial do planeta. Mais de 73% da água doce disponíveldo país se encontra na bacia Amazônica, que é habitada por menos de 5% da população e apenas27% dos recursos hídricos brasileiros estão disponíveis para 95% da população (SETTI et al, 2001).

Durante muito tempo, a idéia de abundância serviu de suporte à cultura do desperdício da água, ànão realização dos investimentos necessários para seu uso e proteção mais eficientes. Osproblemas de escassez decorrem da combinação do crescimento exagerado das demandas e dadegradação da qualidade das águas, principalmente a partir da década de 1950, com a aceleraçãodo processo de urbanização, industrialização e expansão agrícola. Ainda nesse período e como molapropulsora para o desenvolvimento, houve a exigência do crescimento do parque gerador de energiaelétrica, fazendo com que o setor hidroelétrico se tornasse preponderante na gestão dos recursoshídricos do país.

A questão principal no Brasil, segundo REBOUÇAS (2002), não é de falta física de água, mas sim deacesso à água limpa para beber. De acordo com os dados apresentados pelo mesmo autor, nenhumestado brasileiro está sob o regime de crônica escassez de água.

Conforme dados divulgados pela Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), citados por SETTI (2001),somente 49% do esgoto sanitário produzido no Brasil é coletado e, desse percentual, apenas 32%são tratados. Mais de 11 milhões de pessoas que residem nas cidades não tem acesso à águapotável. O abastecimento de água encanada na zona rural só atinge 9% da população, porém,grande parte das pessoas residentes nessas áreas utiliza poços e nascentes para o seu consumo.Essa deficiência de abastecimento, água potável e coleta de esgoto sanitário são as principaiscausas das altas taxas de doenças intestinais e outras. O Ministério da Saúde divulgou que 65% dasinternações hospitalares são resultados dos serviços inadequados de saneamento, sendo que,somente a diarréia é responsável, anualmente, por aproximadamente 50 mil mortes de crianças noBrasil (IDEM).

Deve-se atinar, também, para as águas subterrâneas e que no estado de São Paulo, por exemplo,72% das cidades são abastecidas por poços. Na Região Metropolitana de São Paulo existem maisde 10.000 (dez mil) poços clandestinos em hotéis, hospitais, clubes, postos de gasolina, condomíniose indústrias (REBOUÇAS, 2002). Portanto, tais estabelecimentos têm água gratuita e não pagampelo saneamento básico. A superexploração dessa água subterrânea está sendo maior que arecarga, podendo causar a interrupção das atividades e custos elevados na remediação doproblema. Deve-se chamar atenção, finalmente, para o fato de que o ciclo hidrológico é muito longonas águas subterrâneas, podendo estender-se por 1.400 anos, enquanto essa renovação nos riosleva 16 dias e cerca de 8 dias na atmosfera.

4. O aparato institucional e legal e os entraves recentes para a gestão

4.1 Influências internacionais e evolução legislativa

As idéias de gestão integrada, descentralizada e participativa das águas se desenvolveram no bojoda discussão mundial sobre os problemas ambientais de forma geral. Desde a Conferência dasNações Unidas sobre o Meio Ambiente, ocorrida em Estocolmo, 1972, a poluição das águas foi umtema presente, exercendo influência direta na política brasileira.

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Na verdade, essa influência no Brasil foi se concretizando na esfera estadual e municipal, apesar dacompetência exclusiva da União para legislar sobre águas. Face à inércia da União na falta deregularização do Código de Águas, os Estados federados passaram a ocupar os espaços legislativosvazios. Na década de 70, os estados começaram a legislar sobre controle da poluição das águas,vinculando o assunto à proteção da saúde e do meio ambiente. Burlar a exclusividade federal paralegislar sobre as águas foi o modo de tentar deter a atitude predatória do setor industrial (incluídas asempresas da União), identificado como representativo da ideologia do crescimento econômico aqualquer custo (CARDOSO, 2003: 17).

A Constituição Federal de 1988 assimilou algumas discussões do Seminário Internacional de Gestãode Recursos Hídricos, organizado pelo DNAEE (Departamento Nacional de Águas e EnergiaElétrica), realizado na cidade de Brasília, em 1983. Passaram a existir somente águas de domíniopúblico federal ou estadual, deixando de existir as águas privadas, municipais e comunsdisciplinadas no Código de Águas de 1934. Além disso, a CF/88 (LGL\1988\3) foi a primeira afocalizar a questão ambiental de maneira deliberada, com base mais em seus aspectossócio-políticos e técnicos, do que se centrando na definição de valor de patrimônio público ou privadodos recursos nacionais (THEODORO, 2002).

A Lei 9.433/1997 introduziu uma perspectiva baseada nos fundamentos e princípios discutidos nasúltimas décadas, decorrente das mudanças de paradigmas relativas ao meio ambiente global e àgestão democrática dos bens públicos. A Lei das Águas, como é conhecida, é o produto de quase 14anos de trabalho e discussões e abarcou novos princípios que se apresentam como a versãobrasileira dos consensos internacionais, quais sejam: a água é um bem de domínio público; a água éum recurso natural limitado dotado de valor econômico (chama a atenção para a vulnerabilidade daágua, para romper práticas culturais que levam ao uso indiscriminado); uso prioritário: consumohumano e dessedentação de animais; a gestão deve atentar para o uso múltiplo. Historicamente, noBrasil, o setor elétrico até então teve prioridade; a bacia hidrográfica é a unidade territorial paraimplementação da Política Nacional de Recursos hídricos e atuação do Sistema Nacional deRecursos Hídricos e a gestão deve ser descentralizada e contar com a participação do PoderPúblico, dos usuários e das comunidades.

A bacia hidrográfica como a unidade ideal de gerenciamento das águas é um dos fundamentos damaioria dos sistemas no mundo. Devemos entender que a bacia engloba um rio principal, osdiversos cursos d'água que o alimentam, e toda a terra drenada por esse conjunto de rios, formandoum sistema interligado (CARDOSO, 2003: 25). Nesse sistema se incluem as nascentes, bem comoas superfícies onde se desenvolvem as diversas atividades econômicas, sociais, culturais.

Para um melhor entendimento do processo de gestão, adquire importância a discussão a respeito doaparato institucional e legal que detêm hoje o Governo Federal e os Governos Estaduais. Afinal,estas duas esferas são primordiais para a consolidação dos processos de controle e avaliaçãoambiental: a legislação, criando mecanismos (ou coercitivos ou de planificação de ações), e asinstituições, executando suas tarefas através das determinações advindas da primeira. A buscadeste entendimento não pode se pautar unicamente por uma observância às leis, de modo strictusensu, pois essa conduta traz intrinsecamente o perigo do surgimento da análise viesada, na qual apercepção limitada do caráter legal positivo pode fazer perder todo o aspecto da dinâmica processualdas políticas públicas.

O modelo legal e institucional historicamente construído em relação aos recursos hídricos no Brasilpossuiu, até bem recentemente, um sentido unilateral, revelando seu poder definidor da estruturaoperacional destes bens. Por isso mesmo, as formas de interação institucional, a implementação dosaspectos legais, juntamente com a presença da ação coletiva coordenada pelo Comitê de Baciaapresentam proposições alternativas iniciais ao modelo de gestão institucional tradicionalmentecolocado em pauta. O fato de se revelar que estas esferas de ação devem ser interdependentesentre si será importante, na medida em que existe, certamente, uma seqüência de encadeamento deatuações institucionais. Portanto, é bom frisar que dentro de um mesmo cenáriopolítico-administrativo há duas perspectivas analíticas distintas: as relações entre os componentesdo sistema institucional tradicional e, por outro lado, as ações formalizadas na direção de umagestão integrada dos recursos hídricos, de caráter ainda incipiente ou hipotético.

Diante dessas duas linhas de ação institucional estabelecidas (ações consolidadas e açõesemergentes) surgem algumas hipóteses como, por exemplo, a de que a gestão integrada, via

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Comitês de Bacia Hidrográfica e suas correspondentes Agências de Águas, pode não se constituirna alternativa mais adequada para o gerenciamento ambiental dos mananciais hídricos, devido àocorrência de diversos aspectos operacionais que poderiam interferir em sua eficiência, tais como: arigidez na dinâmica interinstitucional, a legitimação ainda incipiente dos Comitês, a falta de umainfra-estrutura adequada para se colocar em operação os mecanismos de controle próprios dasAgências de Água (cobrança, outorga, fiscalização, etc.), assim como os conflitos entre estes e oaparato institucional já consolidado (e que por vezes pode impedir que haja uma inserção real dosComitês dentro da estrutura posta, uma vez que ainda não se legitimaram diante dos inúmerosatores envolvidos).

Outro ponto relevante é que o plano diretor de recursos hídricos é um instrumento, ainda queindireto, de zoneamento também do uso e de ocupação do solo, o que implica uma superposição decompetências sobre essa matéria, já que ao Município é atribuída a competência para o adequadoordenamento territorial, na forma determinada pelo art. 30, VIII, da CF/1988 (LGL\1988\3)(GRANZIERA, 2001). Trata-se, pois, de nítida fonte de conflito, cuja solução deve passar pelacooperação, pela negociação e pela prevalência do interesse geral, no âmbito da bacia hidrográfica,sobre o interesse local, do Município (IDEM: 145).

Assim, para a superação das situações de interferências de ação entre os órgãos institucionais setorna bastante relevante que haja três tipos básicos de integração entre estes: 1) IntegraçãoInterinstitucional - que exige, por parte dos segmentos estatais, uma maior participação nosprocessos de tomada de decisão e de fomento à ação coletiva organizada (assim sendo, umaarticulação recíproca entre setores municipal/estadual/federal é fundamental); 2) IntegraçãoIntra-institucional - pertinente à capacidade dos órgãos ambientais de serem co-responsáveis pelaaplicação das políticas públicas (dos recursos hídricos, no caso) dentre seus vários setoresconstituintes, definindo ações conjuntas de estratégias e desenvolvimento; 3) IntegraçãoIntermunicipal - haja vista que os Comitês de Bacia Hidrográfica são, em essência, esferas departicipação deliberativas a nível local, 3acredita-se que a busca por uma agremiação maior dosmunicípios poderá gerar a aceleração do processo de controle ambiental participativo, como tambémpossibilitará maiores oportunidades de financiamentos para projetos ligados ao desenvolvimentoregional, seja por parte do Estado, seja de fontes financiadoras externas.

Já na consolidação dos instrumentos do gerenciamento hídrico é preciso que haja uma conformaçãodas definições e princípios que visam a gestão compartilhada. A cobrança, por exemplo, somenteatingirá seus objetivos de regularizar fundos a serem destinados diretamente à gestão de cada baciahidrográfica específica quando seus valores tiverem sido estabelecidos através de propostasacordadas entre sociedade civil, movimentos sociais, Governo e setor privado.

Da mesma forma, as Agências de águas, que aplicarão esta cobrança, comportando-se comosecretarias executivas da gestão (Lei 9.984/2000), deverão ser avaliadas constantemente sobre adevida aplicação dos recursos gerados, seja via institucional, seja via pública (principalmente atravésde organizações civis).

Uma outra evidência identificada no presente estudo é que uma maior participação popular não querdizer, diretamente, maior descentralização do processo de gestão; a participação poderá estarsignificando que as pessoas estão almejando acesso ao gerenciamento, mas não necessariamenteque elas estejam realmente entendendo o processo. Uma das falácias institucionais maisrecorrentes, na realidade, se baseia na idéia de que a mera distribuição de órgãos ambientais pelointerior do país já pode ser encarada como maior acessibilidade. Entretanto, descentralizaçãoadministrativa não é o mesmo que desconcentração operacional, até porque, no caso dos recursoshídricos, continua a União enquanto o principal ator de coordenação de recursos na área. 4

4.2 Comitês de Bacia Hidrográfica: Experiências precursoras, abrangência e competência

Antes da Lei 9.433/97 já se acumulavam no Brasil algumas experiências de gestão através dediferentes tipos de organizações como os Comitês Especiais de Estudos Integrados de BaciasHidrográficas, Consórcios Intermunicipais 5e Associações de Usuários (CARDOSO, 2003).

Os Comitês Especiais de Estudos Integrados foram criados a partir de 1978 em alguns grandes riosfederais, como o Rio São Francisco, o Rio Paraíba do Sul e o Paranapanema. Eram compostos por

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órgãos oficiais, principalmente ligados ao setor energético, e não possuíam poder deliberativo, o quelevou ao seu esvaziamento. Aqueles que ainda restam estão se reformulando para se adaptar à leiatual.

A área de atuação dos Comitês de Bacia Hidrográfica é flexível, na medida em que pode abranger(art. 37, Lei 9.433/97): a totalidade de uma bacia hidrográfica; sub-bacia hidrográfica de tributário docurso de água principal da bacia, ou de tributário desse tributário; ou grupo de bacias ou sub-baciashidrográficas contíguas. Portanto, conforme MACHADO (2003), ainda que o nome da instituição seja"Comitê de bacia hidrográfica", esta denominação pode abarcar espaços físicos diferentes. Háatualmente uma discussão sobre os rios de primeira, segunda e terceira ordem, visto que na prática,existem bacias muito pequenas, como a do Rio Mosquito, norte de Minas Gerais, que abrangeapenas três municípios, contrastando com grandes bacias que envolvem diversos estados e umgrande número de municípios.

A estratégia adotada pela Secretaria Nacional de Recursos Hídricos é de dar seguimento à políticados anos 80 de criação de grandes comitês, aproveitando as estruturas já criadas, como no caso doComitê de Estudos Integrados da Bacia Hidrográfica do Vale do Paraíba do Sul - CEIVAP. As críticasfeitas a essa estratégia da SRH são no sentido de possível inoperância de uma estrutura tão grandee da dificuldade de que seja, de fato, representativa.

Atualmente no Brasil existem 87 comitês de bacias estaduais, distribuídos em 10 Estados (SãoPaulo-22, Minas Gerais-17, Rio Grande do Sul-16, Santa Catarina-12, Ceará-06, Pernambuco-06,Paraná-03, Espírito Santo-02, Alagoas-01, Sergipe-01, Rio de Janeiro-01), e 6 comitês federais(Doce, Muriaé-Pomba, Paraíba do Sul, Paranaíba, Piracicaba, São Francisco). 6

A flexibilidade quanto à área de atuação pode ser atribuída à preocupação do legislador empossibilitar o acomodamento de várias formas de bacias hidrográficas e à articulação políticapossível nas diversas regiões do país (GRANZIERA, 2001).

Na proposição de criação de um comitê de bacia hidrográfica onde o curso de água principal for dedomínio da União, deverão subscrever o pedido os Secretários de Estado responsáveis pelogerenciamento de recursos hídricos, Prefeitos Municipais, entidades representativas de usuários eentidades civis de recursos hídricos (Resolução CNRH 5 de 2000).

A Resolução CNRH 5 de 2000 determina que a proposta deve resultar de negociação políticaregional. Pode ocorrer disputa numa mesma região e dois ou mais pedidos poderão serapresentados. O deferimento ou indeferimento da proposta deve ser devidamente motivado,atinando-se para a razoabilidade, a proporcionalidade, o interesse público e a eficiência existente nopedido (MACHADO, 2003).

Os comitês são compostos por representantes da União; 7dos Estados e do Distrito Federal, cujosterritórios se situem, ainda que parcialmente, em suas respectivas áreas de atuação; dos Municípiossituados, no todo ou em parte, em sua área de atuação; dos usuários de sua área de atuação; dasentidades civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia.

Conforme o art. 39, § 3.º, I e II, da Lei 9.433/97, nos comitês cujos territórios abranjam terrasindígenas devem ser incluídos representantes da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, como parteda representação da União, e das comunidades indígenas ali residentes ou com interesse na bacia.

O setor exclusivamente composto pelos representantes dos poderes executivos ficou limitado aquarenta por cento (40%) e assim se abriu um maior espaço para o setor dos usuários, que passa adeter o mesmo percentual que o poder público. MACHADO (2003) afirma que, teoricamente, asentidades civis, com 20%, ficarão com o fiel da balança. Essa proporção vem sendo severamentecriticada, como veremos mais adiante. O Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricosabrangerá todos os Municípios, os Estados e a União, independentemente da vontade manifesta decada uma dessas instâncias em participar do comitê. Não se previu nenhuma sanção para aausência dos mesmos; contudo, os ausentes estarão sujeitos às regras aplicáveis aos queparticiparam, inclusive à obrigação de efetuar o recolhimento dos valores pelo uso dos recursoshídricos (idem).

Quanto à categoria usuários de recursos hídricos, ela abrange aqueles que se enquadrarem no art.12, Lei 9.433/97. O usuário não tem que, necessariamente, estar na condição dos que receberam

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outorga, mas pode estar na situação daqueles que independem de outorga. Essa é a interpretaçãoda lei feita por MACHADO (2003), em contraposição à Resolução CNRH 5 de 2000. A lei tambémnão exigiu que os usuários estejam participando de uma organização, entidade ou associação paraque possam representar essa categoria.

Quando os usuários se reunirem em "associações regionais, locais ou setoriais" (art. 47, II, da Lei9.433/97), fazem parte das "organizações civis de recursos hídricos", que também temrepresentação no comitê. Nesse sentido, associações de classe ou mesmo empresariais, podem serconsideradas tanto sociedade civil como usuário, dependendo da manobra que se faça. "Assim,pessoas que possuem uma forte inserção no campo de recursos hídricos facilmente pertencem adiferentes organizações e transitam entre diferentes setores, desde que estejam presentes nasinstâncias de decisão que lhes interessa" (CARDOSO: 2003, 48).

As competências do comitê, inseridas no art. 38 da Lei 9.433/97, são as seguintes:

a) Promover o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articular a atuação dasentidades intervenientes (não significa poder hierárquico sobre estas). Os Comitês são definidospelos órgãos oficiais e não-oficiais como um Parlamento das Águas. Essa expressão é utilizadareiteradamente como um recurso retórico, particularmente por órgãos governamentais, para imprimirum caráter democrático e facilitar a compreensão da natureza desse organismo (CARDOSO, 2003:34);

b) Arbitrar, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos. 8Dadecisão do comitê caberá recurso para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos;

c) Aprovar o Plano de Recursos Hídricos da bacia. O Plano é elaborado pela Agência de Águas. OComitê tem o poder de aprovar, sugerir emendas e correções ao Plano proposto, assim como arealização de novos estudos ou levantamentos;

d) Acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia e sugerir providênciasnecessárias ao cumprimento de suas metas;

e) Propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações,derivações, captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedadede outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com o domínio destes;

f) Estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores aserem cobrados. À Agência de Águas cabe propor ao comitê os valores a serem cobrados;

g) Estabelecer critérios e promover o rateio de custo de obras de uso múltiplo, de interesse comumou coletivo.

4.3 Agência Nacional de Águas - ANA

O direito norte-americano vem servindo de modelo para o fenômeno chamado de "agenciamento",que tem sido difundido não só no Brasil, mas no mundo. DI PIETRO (2002) afirma que o que maisatrai nas agências é sua maior independência em relação ao Poder Executivo e a sua funçãoreguladora. No Brasil, contudo, a inovação é menor do que se possa imaginar, porque existem nodireito brasileiro muitas entidades, especialmente autárquicas, com maior dose de independência emrelação ao Poder Executivo. A maior novidade provavelmente está na instituição das agênciasreguladoras que vêm assumindo o papel que o poder público desempenha nas concessões epermissões de serviços públicos e na concessão para exploração e produção de petróleo; é o casoda Agência Nacional de Telecomunicações -ANATEL, da Agência Nacional de Energia Elétrica -ANEEL e da Agência Nacional de Petróleo (idem).

Segundo GRANZIERA (2001), a ANA, embora seja uma agência de implementação de política,difere das outras, na medida em que o uso dos recursos hídricos não constitui, em si, nem serviçopúblico, nem atividade econômica.

A Agência Nacional de Águas - ANA foi instituída pela Lei 9.984, de 17.07.2000 ( DOU 18.07.2000).Trata-se de uma autarquia, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do

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Meio Ambiente. A agência é dirigida por uma diretoria colegiada, composta de membros nomeadospelo Presidente da República. O CNRH formula as políticas hídricas e a ANA é o braço executivo.Mas esta possui maior visibilidade e reconhecimento e isso ocorre, inclusive, através da mídia.

As atribuições da ANA são as seguintes: supervisionar, controlar e avaliar as ações e atividadesdecorrentes do cumprimento da legislação federal pertinentes aos recursos hídricos; a de disciplinar,em caráter normativo, a implementação, a operacionalização, o controle e a avaliação dosinstrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos; o planejamento e a promoção de açõesdestinadas a prevenir ou minimizar os efeitos de secas e inundações, em articulação com o órgãocentral do Sistema Nacional de Defesa Civil, em apoio aos Estados e Municípios; promoção ecoordenação das atividades desenvolvidas no âmbito da rede hidrometereológica nacional;organização, implantação e gestão do Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos;fomento da pesquisa e da capacitação de recursos humanos para a gestão dos recursos hídricos;prestação de apoio aos Estados na criação de órgãos gestores de recursos hídricos.

4.4 As Agências de Águas

As Agências de Águas têm por finalidade exercer a função de secretaria executiva dos respectivoscomitês. A sua criação será autorizada pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos ou pelosConselhos Estaduais de Recursos Hídricos, mediante solicitação de um ou mais Comitês de BaciaHidrográfica, condicionada ao atendimento dos seguintes requisitos (art. 43, I e II, Lei 9.433/97):prévia existência do respectivo ou respectivos comitês e comprovação de ter sua viabilidadefinanceira assegurada pela cobrança do uso dos recursos em sua área de atuação. Portanto, aAgência deve ser auto-sustentável financeiramente (MACHADO, 2003).

As competências das Agências de Água são as seguintes (art. 44 da Lei 9.433/97): manter balançoatualizado da disponibilidade de recursos em sua área de atuação; manter o cadastro de usuários derecursos hídricos; efetuar, mediante delegação do outorgante, a cobrança pelo uso de recursoshídricos; analisar e emitir pareceres sobre os projetos e obras a serem financiados com recursosgerados pela cobrança pelo uso dos recursos hídricos e encaminhá-los à instituição financeiraresponsável pela administração desses recursos; acompanhar a administração financeira dosrecursos arrecadados com a cobrança pelo uso dos recursos hídricos em sua área de atuação; geriro Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos em sua área de atuação; celebrar convênios econtratar financiamentos e serviços para a execução de suas competências; elaborar a sua propostaorçamentária e submetê-la à apreciação do respectivo ou respectivos Comitês de Bacia Hidrográfica;promover os estudos necessários para a gestão dos recursos em sua área de atuação; elaborar oPlano de Recursos Hídricos para apreciação do comitê; propor ao Comitê de Bacia Hidrográfica oenquadramento dos corpos de água nas classes de uso, para encaminhamento ao ConselhoNacional de Recursos Hídricos, de acordo com o domínio destes; propor os valores a seremcobrados pelo uso dos recursos hídricos; propor o plano de aplicação dos recursos arrecadados coma cobrança pelo uso dos recursos hídricos e propor o rateio de custo das obras de uso múltiplo, deinteresse comum ou coletivo.

A lei prevê que os consórcios e associações intermunicipais de bacias hidrográficas poderão receberdelegação do Conselho Nacional ou dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, por prazodeterminado, para o exercício de competência das Agências de Água, enquanto esses organismosnão estiverem constituídos. Além disso, conforme MACHADO (2003), poderemos registrar grandeinadimplência dos usuários, que não quererão pagar a um órgão que não esteja legalmente investidoda competência para fazer a gestão dos recursos hídricos e cobrar pelo seu uso. 9

Do exposto até o momento, procurou-se enfatizar que as leis e as instituições públicas no Brasilsempre se interessaram em regular a utilização da água somente no que tange ao aproveitamentodo potencial hidrelétrico ou para irrigação, omitindo-se a regulação para os outros usos. Após aConstituição Federal de 1988 e a Lei 9.433/97 houve uma evolução no sentido de se buscar umagestão que possa se ater aos diversos usos da água, principalmente no sentido de buscar resolverou mitigar os conflitos, buscando impulsionar a participação através da institucionalização de umespaço que abarque os representantes de vários segmentos sociais. Esta participação já ocorria,embora extra-oficialmente, mas não tinha o poder de tomar decisões que devessem ser acatadas.Se essa institucionalização da participação vai impulsionar a sociedade e culminar em ações etomadas de decisões que vão realmente determinar ou influenciar a política de recursos hídricos, é

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uma questão em aberto, por se tratar de um processo ainda em construção.

Vimos, também, que a legislação de recursos hídricos no Brasil contribuirá para o acirramento dosconflitos em vários aspectos: concessão de outorgas, relação entre os comitês estaduais e federais,a aplicação dos recursos gerados pela cobrança (devido a uma lacuna deixada pela lei), as decisõesdo comitê quanto ao Plano Diretor e enquadramento face às competências municipais, assim pordiante.

5. Situação atual de gestão e a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas

Atualmente, os estudos sobre a gestão de recursos comuns têm procurado conciliar as análisessócio-antropológicas que ora enfatizam o papel normativo-coercitivo do Estado, ora enfatizam osproblemas e potencialidades da participação civil, e ora privilegiam o foco do mercado nesseprocesso.

Analisar a gestão de recursos ambientais comuns requer, portanto, considerar um cenário dedisputas no qual, logo de saída, os atores envolvidos têm, reconhecidamente, poderes assimétricos.Em países como o Brasil, onde o peso do aparato estatal foi historicamente determinado pelaunilateralidade, a gestão compartilhada se constitui em um desafio, principalmente para aquelesatores sociais que só recentemente começam a exercitar diferentes estratégias nesses processos,chamados "participativos".

A participação nos comitês é idealizada pela representatividade do poder público, dos usuários(todos que utilizam a água como bem produtivo e estão sujeitos à outorga) e da comunidade(entendida como organizações da sociedade civil, não admitindo a participação de pessoa física). Aparticipação dos usuários e da sociedade civil organizada é uma inovação na gestão de águas noBrasil, mas tais categorias são um pouco ambíguas, já que facilmente qualquer agente social podese identificar como usuário de água ou como sociedade civil.

Para aqueles autores que se voltam à análise do papel do Estado na sociedade contemporânea, épertinente questionar a real capacidade que o Estado tem de transferir deveres para a sociedadecivil, o que, na implantação de uma gestão de fato compartilhada, possibilitaria aos movimentossociais incrementar sua autonomia na tomada de decisões (BECK, 1997).

O fato é que a capacidade da moderna administração pública em compatibilizar seus programas degoverno às expectativas coletivas requer, por parte das estruturas organizacionais, que tanto asistematização dos recursos (no caso, ambientais) esteja constantemente sendo atualizada, comotambém que sua infra-estrutura operacional esteja satisfatoriamente consolidada (THEODORO,2002). Somente então, e com os atores sociais claramente identificados e suas interações bemdistribuídas na agenda pública é que a sociedade de risco10passa a "pensar sobre si mesma" e sobrecomo tornar possíveis suas demandas em face do cenário atual. Essas considerações partem dopressuposto que o aumento da incidência do risco e sua percepção enquanto tal pela populaçãoacabaria gerando maior negociação de interesses e uma noção mais clara de coletividade.

No entanto, não basta a existência dos conflitos e dos riscos para que naturalmente ocorram ascoalizões entre os indivíduos e as organizações. Segundo OLSON (1999), alguns atores sociaisbuscarão não cooperar no sentido de se obter um benefício público, sendo a tendência esperar queo "outro faça"; estes atores, que constituem a maioria na sociedade, são chamados pelo autor defree riders, ou seja, aqueles que esperam sempre 'pegar carona' nos benefícios conquistados pelaluta dos outros. Olson destaca que em grupos pequenos, a contribuição individual é mais visível,havendo uma tendência maior à cooperação, ao passo que nos grupos grandes (chamados degrupos latentes), incentivos individuais positivos ou negativos devem ser utilizados para amobilização, sendo também necessária a presença de estruturas institucionais para monitorar asações. Isso não resolveria, mas pelo menos mitigaria os problemas de ação coletiva. 11

LEVI & SHERMAN (1998) chamam a atenção para a necessidade da percepção de eqüidade e deeficácia para que os atores sociais venham a cooperar; nessa mesma linha de argumentação,OSTROM (1990 e 1998) alerta tanto para a reciprocidade, ou seja, os indivíduos irão verificar quaissão os atores envolvidos no jogo, como para a necessidade da repetição 12para a aprendizagem dacooperação. Assim, diante de uma gestão que pretende não só ultrapassar os limites dos diversos

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tipos de grupos de pressão envolvidos, como também ser discutida mais amplamente por toda asociedade civil, as abordagens teóricas apresentam ao Estado desafios para o incremento de futurosprogramas governamentais, quer na esfera da conscientização ambiental, quer sob o prisma dofortalecimento institucional, mas também no campo de incentivos individuais para a participação nogerenciamento dos recursos hídricos.

Já do lado do Comitê da Bacia Hidrográfica, verifica-se também que a capacidade e o poder denegociação, no sentido de aplicar caminhos alternativos de gestão para os mananciais, estãofortemente vinculados com seu grau de trânsito entre as populações (rurais, principalmente) e suasredes próprias de interações locais, onde as estruturas política, econômica e social se mostram, senão determinantes, ao menos bastante influentes para que uma ação integrada entre a sociedadecivil e o Estado, via instituições intermediárias (e os CBHs seriam uma delas) possa ocorrer commaior ou menor dificuldade.

Nesse sentido, MELUCCI (2001) ressalta a necessidade da presença de uma identidade coletiva (um"nós" com o qual é preciso se identificar) como condição para se calcular os custos e os benefíciosda ação na resolução de conflitos. 13Vale destacar que ainda há muito que fazer para a construçãoda identidade coletiva em torno da bacia hidrográfica no Brasil, pois a figura da bacia, como afirmaCARDOSO (2003), não faz parte do imaginário geográfico das pessoas, já que elas visualizam maiscomumente apenas o rio que está próximo, e também as divisões políticas, representadas pelaslinhas demarcatórias entre municípios e Estados.

Assim, para a construção de uma identidade coletiva em torno da bacia hidrográfica é crucial que seleve em conta a especificidade da sub-região na qual ela se encontra, sob pena de a proposta daexistência de fóruns consultivos e deliberativos perder seu sentido e sua eficácia mediante adesconsideração do tecido micro-social (THEODORO, 2002). Faz-se importante, conseqüentemente,que o trabalho de captação e sistematização das informações geradas em cada bacia não se atenhasomente aos aspectos técnicos de monitoramento, mas que também haja um constante trabalho deentendimento do contexto histórico, social e institucional.

Os estudos por nós efetuados acerca das características institucionais e legais da gestão dosrecursos hídricos demonstraram a importância de que a pretendida descentralização administrativana definição das prioridades para a gestão seja realizada via implantação e consolidação de comitês,em todas as suas escalas de ação. O que tornou mais clara a premência deste viés de intervençãofoi a identificação de que os CBHs se portam, de fato, como organismos intermediários entre asdeliberações governamentais e as demandas sociais e que, entretanto, sua dinâmica precisa sercada vez mais sofisticada em sua capacidade de inserção em ambos, pois o sucesso dessesComitês está diretamente concatenado com suas condições gerais (políticas e de infra-estrutura)para interagir com as outras instituições.

O baixo índice de institucionalização de setores municipais e regionais é, no nosso entender, um dosmaiores obstáculos ao fortalecimento do modelo de gerenciamento de recursos hídricos proposto,pois seus programas de planejamento (Planos Diretores) podem ficar insuficientemente sustentados,institucional e socialmente, para a ação. Há, pois, a necessidade do fortalecimento dos CODEMAS(Conselhos Municipais de Meio Ambiente) enquanto unidades do Poder Público mais próximas dascomunidades do entorno das bacias hidrográficas, sendo essa uma das ações governamentais maisurgentes no processo de democratização da gestão ambiental.

6. Conflitos e participação da sociedade civil na instalação do CBH-Doce

6.1 A bacia do Rio Doce

A Bacia Hidrográfica do Rio Doce possui 83.400 quilômetros quadrados, sendo que 86% desta áreaestão em Minas Gerais e os restantes 14% estão no Espírito Santo. Ela é formada por 228municípios, sendo 202 em Minas Gerais e 26 municípios no Espírito Santo. A extensão do Rio Doceé de 897 quilômetros. Na área da Bacia do Rio Doce existem atualmente mais de 3.600 indústrias euma população de 3 milhões e 500 mil habitantes. Antes da instalação de núcleos de povoamento ecolonização, grande parte de sua extensão era coberta por uma floresta exuberante, com árvores deaté 35 metros de altura, compondo uma das maiores biodiversidades da Terra, representada pela

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Mata Atlântica.

Durante o Império, o Rio Doce e seus afluentes eram as "estradas" dos bandeirantes e sua principalreferência nos constantes deslocamentos. No início do século passado, a construção da Estrada deFerro Vitória-Minas impulsionou a ocupação da bacia do Rio Doce e também veio gerar novos danosambientais, pois passou a transportar minério de ferro extraído das montanhas de Minas, comdestino ao exterior (CAMPOS & COELHO, s.d).

As atividades econômicas mais importantes atualmente desenvolvidas na bacia são: 1)agropecuária, que abriga centenas de milhares de famílias trabalhando nas culturas tradicionais, nacriação de gado leiteiro e de corte, suinocultura, cultura do café e cana-de-açúcar; 2):reflorestamento (eucalipto); 3) agroindústria: açúcar e álcool; 3) mineração: ferro, ouro, bauxita,manganês, pedras preciosas; 4) indústria: siderurgia, 14celulose, turismo, alimentos e laticínios; 5)setor terciário: comércio e serviços (apoio aos complexos industriais); 6) geração de energia elétrica15(AGENDA RIO DOCE, versão 3, 2003).

O Rio Doce nasce com o nome de Rio Piranga. A nascente fica na Fazenda Morro Queimado,Município de Ressaquinha-MG, situado na Serra das Vertentes, onde as Serras da Mantiqueira e doEspinhaço se encontram (PÊGO, 2003).

Na região onde nasce o Rio Doce, muitas pessoas desconhecem que o Rio Piranga seja o próprio rioprincipal. 16Durante a realização deste trabalho, em conversas com diversas pessoas que não estãoligadas diretamente à questão dos recursos hídricos, ficou nítido o desconhecimento de que estaregião seja pertencente à bacia do Rio Doce.

Os primeiros aventureiros subiram o Rio Doce, ainda no século XVI, atraídos pelas notícias de quehavia ouro e pedras preciosas na região das cabeceiras do rio. A descoberta de ouro em áreaspróximas aos locais onde hoje estão as cidades de Ouro Preto e Mariana precipitou o chamado Ciclodo Ouro (CAMPOS & COELHO, s.d). Os garimpeiros usavam uma prática hidráulica perversa para alavagem dos aluviões, onde se fazia o desvio dos rios, que se tornavam lamacentos e "era umaxioma entre esses mineradores que uma montanha de ouro nada vale sem água" (DEAN, 1996:113).

A descoberta do ouro e diamantes resultou no aumento da população neo-afro-européia na MataAtlântica, incentivando a produção de alimentos para esse contingente populacional. Isso se deuatravés de lavouras itinerantes em regime de derrubada e queimada. Segundo DEAN (1996), essemodo de produção foi impulsionado devido à política fundiária colonial, que apresentava um custoexcessivo dos títulos de terra e imposição de coleta de impostos, deixando a terra fora de alcancedos lavradores simples (a maioria composta por mulatos e mestiços, chamados de caipiras,caboclos, termos Tupi pejorativos).

Nesta época, a Coroa Portuguesa se preocupou em evitar os "descaminhos do ouro" que, ao longodos rios, chegariam ao mar. Tal façanha só seria alcançada atravessando as densas matas do RioDoce, povoadas pelos índios Botocudos e infestadas de malária. A grande porção do médio curso dorio manteve-se então praticamente intocada, como uma barreira verde servindo aos interesses daCoroa (FERNANDEZ, 2003).

A partir do final do século XVIII, o ouro e o diamante davam sinais de escassez. ConformeFERNANDEZ (2003), entradas e bandeiras foram organizadas em busca de novas jazidas, forçandoo desbravar da parte mais central da bacia, habitada pelos índios genericamente chamados deBotocudos. A Coroa, acusando-os de "bárbara antropofagia", declarou-lhes guerra. As doenças,principalmente a malária e a febre amarela, também provocaram reações contraditórias;primeiramente, as florestas deviam ficar desocupadas devido às descrições funestas da doença, eposteriormente, a segunda reação, incentivada pelos interesses da Coroa, era derrubar as florestaspara espantar as febres (DEAN, 1996).

Durante a navegação pelo rio em 1916, por ocasião da construção da EFVM, ALMEIDA (1959)descreve as matas do Rio Doce demonstrando a diversidade da flora e fauna ainda existentes:salsas da praia (próximo à foz), guriris, castanheiras, gruximameiras, pitangueiras, almesqueiras,aroeiras, ingás-mirins, enfim, árvores de caules volumosos de troncos seculares.

No Século XX, com o intenso desmatamento, surgiram inúmeros invasores dos cultivos (roedores,

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pragas, formiga cortadeira), o que levou a um ciclo vicioso, com o abandono das áreas paradesmatar e queimar mais à frente. O uso do fogo propiciou a proliferação de plantas daninhas ehouve também uma intensa disseminação de capins africanos. Já nas últimas décadas houve umaintensificação do desmatamento para a produção de carvão para as siderúrgicas, assim como umforte inchamento populacional no Vale do Aço e em Governador Valadares e um esvaziamento docampo. Mas, adverte PAULA (1997, apud FERNANDEZ, 2003), apesar da relativa urbanização, aBacia do Rio Doce, em sua porção mineira, na última década, teve um saldo migratório líquidonegativo de 615.259 habitantes, caracterizando-se como a região que mais perdeu população emMinas Gerais.

Após a euforia na introdução de pastagens, que produziu várias manchas desertificadas nos solospodzólicos, houve o abandono das terras, o que, segundo FERNANDEZ (2003) tem dado à naturezaa sua chance de regeneração. "Se hoje há um processo de recuperação da vegetação na Bacia, istose deve à forte incapacidade de investimento dos produtores rurais" (idem: 382).

Diante desse histórico, DEAN (1996) chega à conclusão de que a destruição das florestas não setransformou em capital localmente acumulado. Segundo esse autor, a questão mais complexa queestá em jogo é considerar o mundo natural como algo mais do que um conjunto de utilidadesdisponíveis, igual a um patrimônio inerentemente valioso mesmo quando não transformado einexplorado.

Resumindo os dados das fontes históricas que abordam a ocupação da Bacia do Rio Doce, pode-seconcluir que o avanço de novas populações sobre o território não se deu sem conflito; ao contrário,esse processo foi construído pela sobreposição de novos interesses econômicos e políticos queresultaram no enriquecimento desigual de algumas parcelas da região, no desaparecimento dequase todas as tribos indígenas e no empobrecimento persistente dos pequenos produtores rurais.Alguns desses conflitos, que se arrastam ao longo do tempo, podem encontrar, como veremosadiante, um campo propício de atualização no Comitê da Bacia, mesmo porque a água tem sido,historicamente, um elemento de disputa mais antigo entre vários dos atores sociais que hoje estãoenvolvidos com sua gestão.

6.2 Mobilização para a criação do CBH-Doce

No período de 1989 a 1993, o Governo Federal, por intermédio do Ministério das Minas e Energia, daCPRM (Companhia de Pesquisa em Recursos Minerais) e o Governo da França desenvolveram oProjeto de Cooperação Brasil-França (AGENDA RIO DOCE, 2003), que pretendia implantar omodelo francês de comitês para o Brasil, iniciando por dois locais, a bacia do Rio Doce e a bacia doParaíba do Sul. Ainda neste período foram realizadas "descidas ecológicas" para a mobilização dapopulação.

Como um desdobramento do Projeto de Cooperação Brasil-França, no período de julho de 1996 ajulho de 1998, entrou em funcionamento a ADOCE (Agência Técnica do Rio Doce), cuja sede era emBelo Horizonte-MG. Segundo consta no texto da Agenda do CBH-Doce, a instituição da ADOCE,pelo seu caráter pioneiro e pela efetividade de suas ações, foi talvez uma das experiências maisimportantes na gestão de recursos hídricos no País, que por razões inexplicáveis foi interrompida.

De janeiro de 1998 a dezembro de 2000, com o encerramento da ADOCE, o Ministério do MeioAmbiente/Secretaria de Recursos Hídricos colocou em funcionamento, em Ipatinga, o Escritório daBacia do Rio Doce, que desenvolveu um trabalho de mobilização social na região, principalmente noapoio técnico e logístico à criação e organização dos Comitês das Bacias dos rios Caratinga,Piracicaba e Santo Antônio (AGENDA RIO DOCE). A estratégia baseou-se na interação, motivação einformação das pessoas que habitam a bacia (FERNANDEZ, 2001).

Os integrantes do Escritório Rio Doce optaram por mudar de estratégia, passando a cogitarprimeiramente na formação de Comitês em Sub-Bacias, que se configurariam em "alicerces" para oComitê Rio Doce. Formaram-se então os Comitês nas sub-bacias dos rios Caratinga (em 1999),Piracicaba (em 2000) e Santo Antônio (em 2001).

Dentro dessa nova estratégia, o Escritório Rio Doce organizou uma expedição denominada"Expedição Piracicaba 300 anos Depois", na qual a equipe de mobilização social que a acompanhou

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teve como objetivos centrais compreender as formas de articulação social e política (ou suaausência) em torno da questão ambiental na bacia e identificar os fatores sociais, econômicos,políticos e institucionais que se configuravam como obstáculos e/ou possibilidades ao processo deconstrução do Comitê da bacia hidrográfica do Rio Piracicaba (MUNIZ, MENDES & FERREIRANETO, 2001).

O Movimento Pró-Rio Doce (MPRD) em Governador Valadares, instituído como ONG em 1992, tinhacomo objetivo unir as entidades e pessoas que trabalhavam com o meio ambiente na bacia do RioDoce. Após um período de desarticulação, o Movimento Pró-Rio Doce se reestrutura em 2000, esegundo os membros deste movimento, a reativação ocorreu para a formação do comitê, que era oobjetivo que se mantinha ainda presente nas suas aspirações. Em junho de 2001 foi encaminhada adocumentação necessária à ANA e em novembro, em Aracaju, o CBH-Doce foi aprovado peloConselho Nacional de Recursos Hídricos.

Em abril do mesmo ano, o MPRD firmou o Convênio 02/2002 com a ANA, no valor de R$617.634,00, para execução do Plano de Trabalho para instalação do CBH-Doce, sendo consideradocomo Unidade Operadora. Foram ainda contratados pela unidade operadora (MPRD), conformedeterminação da ANA, 7 (sete) coordenadores regionais e 22 (vinte e dois) mobilizadores. Osprimeiros eram responsáveis pelos eventos e coordenação das atividades dos mobilizadores ecolaboradores (voluntários que, junto com os mobilizadores, tinham a função de ajudar a motivar ascomunidades locais como parte ativa do processo de instalação do comitê). Os mobilizadores foramchamados de "ponta de lança do processo" pelos organizadores e tinham a mesma função doscolaboradores, só que eram remunerados (verbas repassadas pela ANA ao MPRD). Foramrealizadas sete Oficinas de Formação de Colaboradores e 17 (dezessete) Encontros Regionais,entre agosto e setembro de 2002, em diferentes municípios de Minas Gerais e Espírito Santo. Após arealização desses encontros, abriram-se as inscrições para o cadastramento da sociedade civilorganizada, usuários e poder público municipal.

No segmento de organizações civis ou sociedade civil organizada se inscreveram 200 entidades emMinas Gerais. A Assembléia Geral para a eleição deste segmento foi realizada no município deCoronel Fabriciano, em dezembro de 2002. Já no Espírito Santo, cerca de 32 entidades sehabilitaram e a Assembléia Geral ocorreu em novembro de 2002, em Colatina. No segmento deusuários as assembléias foram realizadas em Governador Valadares, em dezembro de 2002, e noEspírito Santo, em Colatina, em novembro de 2002.

Pôde-se constatar que muitas pessoas não participaram da mobilização para a instalação do comitêpor falta de recursos e o tempo de 06 (seis) meses não foi adequado para atingir uma parcela maiorda população. Então, nesse processo, ficou comprometida a oportunidade para a populaçãoaprender a testar e repetir as regras da cooperação. Por isso, o CBH-Doce pode e precisa buscarpropiciar essa inclusão de agora em diante, e antes de trazer mudanças que potencialmente estãoelencadas em lei, o comitê e demais organismos responsáveis pela gestão de águas não podemunilateralmente impor os instrumentos de gestão dispostos pela lei, pois se corre o risco deineficácia, falta de transparência e legitimidade social. Antes de tudo, a mobilização social deveacontecer para as tomadas de decisão, pois, pensando-se nas perspectivas de OSTROM (1998) eLEVI (1998), os indivíduos estão dispostos a cooperar, mas antes disso acontecer eles vão efetuaruma análise da probabilidade de cooperação dos outros ("reciprocidade" para Ostrom) e de quehaverá punição para aqueles que não cumprirem as regras.

6.3 Principais conflitos pelo uso da água na bacia do Rio Doce

Durante o estudo de campo da pesquisa de mestrado realizada por FARIA (2004) foramentrevistadas algumas entidades civis participantes e não participantes do CBH-Doce em MinasGerais e no Espírito Santo. Esses entrevistados estão identificados nos quadros 1 e 2. Houveindagação quanto aos conflitos na bacia, resultando em três categorias de respostas.

Primeiro, houve resposta afirmando que não existem conflitos pelo uso da água na bacia do RioDoce, formulada pelos representantes da etnia Krenak 17e da Cooperativa dos Produtores de Café deCaratinga-MG e região (Coopercafé 18) no CBH-Doce. Também quando perguntados com que outrosintegrantes fariam aliança ou teriam conflitos, esses representantes responderam que o interesse ali

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é comum, que todos teriam o mesmo objetivo de melhorar as condições ambientais de toda a regiãoe de revitalizar o Rio Doce.

Contudo, ao responder outras questões, o representante Krenak discorreu sobre os problemasgerados com a construção de hidrelétricas na bacia, configurando-se em conflito, apesar de oentrevistado não reconhecê-lo como tal. O primeiro problema é o retalhamento do rio, principalmentedevido a uma cerimônia no Rio Doce que os Krenak realizam todo 1.º de janeiro. Nessa cerimônia,todos os materiais que eles usam são jogados na água e, para eles, o Rio Doce tem que ser correnteaté desembocar no mar.

O representante Krenak admite ainda que, além da perda da qualidade do próprio recurso hídrico, aconstrução de represas a partir da atuação do Estado e de empresas, implica para eles em outrasexternalidades negativas, como a extinção de alguns peixes (corvina, por exemplo) e a diminuição deoutras espécies.

Ainda nessa linha, formada por aqueles que, ao menos em princípio, não vêem a possibilidade deconflitos, está o representante da COOPERCAFÉ, que se mostrou preocupado com a cobrança parao setor agrícola, afirmando que se houver irrigação, haverá conflito.

Já os representantes da Associação dos Pescadores Amadores de Manhuaçu e região (APAM), 19doMovimento dos Atingidos por Barragens (MAB), 20da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)21e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Colatina-ES 22configuram uma segunda vertente queapontam a existência de conflitos. Para a APAM, o MAB e a UFES, a construção das hidrelétricas éo principal conflito.

Ainda segundo o assessor do MAB, a longo prazo esse conflito vai interferir na concepção da bacia,até mesmo em relação ao comitê, que deverá buscar dirimir os embates. O conflito, na percepção doassessor do MAB, pode aumentar o poder de participação e fortalecer a identidade dos múltiplosusuários. A democratização acirraria os conflitos em torno do problema energético.

Para a representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Colatina-ES, a irrigação é o principalconflito na sua região. Cita alguns exemplos, como o caso que ocorreu no município vizinho, SãoRoque do Canaã, no Rio Santa Maria, onde o Ministério Público teve que intervir e fazer uma escalade irrigação. Trata-se principalmente de irrigação de café e de tomates.

O representante da UFES, além da construção das hidrelétricas, citou outros conflitos, como aimpossibilidade de uso do rio para o lazer devido à poluição pelos esgotos, indústrias e mineração.

O terceiro e último tipo de resposta, na verdade, foi uma previsão dos conflitos latentes dentro docomitê, de acordo com a configuração atual deste. Para os representantes do Movimento Pró-RioDoce (MPRD) 23e da Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina (CFLCL), 24os conflitossurgirão quando da definição do quanto irá se cobrar pelo uso da água, quem irá pagar e adestinação dos recursos arrecadados. Outro conflito latente levantado pelo representante do CentroMineiro para a Conservação da Natureza (CMCN) 25é em relação às outorgas de água.

Mas apesar de afirmar que ainda não há conflito, o representante da CFLCL, quando perguntadosobre os problemas gerados pelas hidrelétricas, respondeu que os pescadores causam maisproblemas por pescarem fora de época, como também o setor de saneamento, por usar a água edevolvê-la suja ao rio.

Os conflitos também são fortemente apontados de acordo com os principais interesses dosrepresentantes. Isso confirma aquilo que BECK (1997) chamou de conflitos de distribuição demalefícios da sociedade industrial, advindos dos riscos sobre a produção de bens e serviços.

Por isso, o comitê envolve vários segmentos sociais com a pretensão de se chegar a umaconstrução social e cognitiva do perigo e das soluções. Mas, como enfatiza ALONSO & COSTA(2002), não se pode desconsiderar a possibilidade de institutos de intenções democratizantesgerarem efeitos indesejados, como a elitização do processo decisório. Ou também, podem serinstitutos que não influam efetivamente na definição das políticas públicas, funcionando apenas emtorno dos assuntos dos quais já há um consenso prévio. Podem falhar tanto em eficácia quanto emlegitimidade quando têm que lidar com conflitos.

Após o exame das entrevistas, FARIA (2004) conclui que o CBH-Rio Doce, dentro da estrutura em

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que se apresenta, tem potencial para influir nas políticas públicas, mas isso vai depender de intensanegociação por parte do setor da sociedade civil (que se encontra em menor número) e de incentivogovernamental. Mesmo assim, haverá um paradoxo, pois sendo um organismo criado para, dentreoutras funções, dirimir os conflitos dentro da bacia, poderá gerar conflitos ao invés de consensos e,isso já é previsto pelos próprios representantes do comitê.

Como forma de melhor visualizar os conflitos dentro da bacia e do comitê foram construídos osquadros abaixo, que mostram tanto a situação atual, onde há dissidências e/ou acusações, comotambém uma projeção de conflitos futuros que estarão condicionados basicamente pela cobrança epelo número de outorgas para o uso de água.

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6.4 A representação dos segmentos no comitê

Rebecca Abers, citada por CARDOSO, ao tratar dos problemas que impedem a implementação depolíticas participativas, afirma que uma das estratégias de resistência à criação de espaçosparticipativos é não negar frontalmente a participação, "(...) mas miná-la através de subterfúgios quevisam destituir de poder os espaços participativos, tais como colocar uma maioria de participantes daesfera pública, não convocar para reuniões (...)" (2003: 80).

Confirmando essa tendência no CBH-Doce, a representante do MPRD no CBH-Rio Doce, conformeFARIA (2004), entende que a representação da sociedade civil organizada no comitê é muitopequena, em face dos 40% do poder público; segundo a entrevistada, a esfera pública já tem opoder em si, "não precisa nem estar lá para ter 40%".

A representação no CBH-Doce é uma das fragilidades apontadas, devido a uma "proporcionalidadedesproporcional" (expressão usada por DEL PRETTE, 2000), problema recorrente em praticamentetodos os comitês. O mesmo autor, ao analisar a participação no CBH-Tietê/SP, afirmou que amedida da intensidade da participação é tomada em função mais da participação da sociedade civilque dos próprios órgãos do Estado e das Prefeituras Municipais. Isso quer dizer que a participação éconsiderada, em geral, como um 'atributo' desejável proveniente da sociedade civil, ao passo que oenvolvimento dos órgãos públicos não é necessariamente visto como tal, isto é, participativo,podendo ser apenas o cumprimento de uma obrigação do órgão e seu representante. Desse modo,pode-se dizer que a sociedade civil 'participa' e o poder público 'atua' (idem).

Dentro do campo de recursos hídricos, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 26

encontra-se à margem, seja por sua postura de oposição à política pública (sendo um dos marcos deconstrução do movimento), seja por concentrar sua atuação na discussão do modelo energético, oque permite a criação de um ambiente favorável ao debate e à participação (CARDOSO: 2003). Aocontrário do MAB, o setor energético tem estado, historicamente, em posição decisória nas políticasconcernentes à água no Brasil.

O MAB-Alto Rio Doce seguiu essa tendência do movimento nacional e não participou do processo deinstalação do comitê, apesar de ter comparecido a duas reuniões iniciais. O assessor do movimentoafirmou que após uma discussão interna, concluiu-se que "A participação poderia justificar um montede decisões que o comitê poderia tomar depois, e naquele momento, faltavam condições departicipar e acompanhar pra valer". (FARIA, 2004).

Essa justificativa usada pelo assessor do MAB parece ser uma atitude que visa prevenir aquilo queABERS (apud CARDOSO 2003), denomina de problemas de cooptaçã o, onde programas ou

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instâncias participativas, em lugar de serem espaços de controle cidadão sobre o governo, tornam-seum meio de dar legitimidade pública e apoio popular na formulação de políticas públicas,desmobilizando e desestabilizando lideranças comunitárias. CARDOSO (2003) afirma que há umrisco potencial de que isso aconteça nos Comitês, principalmente quando são criados com ummandato político, seguindo ritmos que não são aqueles que a sociedade necessita para se organizara fim de poder participar dessa instância colegiada. "Juntar um grupo de entidades, com ou semlegitimidade na comunidade, criar um Comitê para realizar determinadas ações e dizer que oprocesso foi participativo, é uma estratégia bastante fácil de ser realizada". (CARDOSO, 2003: 81).

O assessor do MAB afirma que mesmo uma igualdade numérica (33% para cada segmento) quepretende "igualar os diferentes, é muito injusto". Nas suas palavras, "você coloca pra lutar umgatinho com um leão, então a parte fraca tem que ter a parte maior para poder ter poder deinterferência".

A representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Colatina-ES adverte que no segmentosociedade civil organizada, foram colocadas lado a lado as entidades ambientalistas e as entidadesrepresentantes dos usuários, como é o caso do referido sindicato, apesar de afirmar que este temuma preocupação agroecológica. Essa questão levantada pela entrevistada é apresentada porCARDOSO (2003) como uma das grandes fragilidades do sistema representativo, qual seja, adificuldade de se determinar o que é "sociedade civil" e o que é "usuário", visto que os termos muitasvezes se confundem e não delimitam categorias bem definidas e conflitantes entre si. Associaçõesde classe ou mesmo empresariais, por exemplo, podem ser consideradas tanto sociedade civil comousuário, dependendo da manobra que se faça para dirigir os interesses.

Dentro dessas considerações, torna-se pertinente a abordagem de VIOLA & LEIS (1995), queafirmam ter o ambientalismo a partir de meados da década de 80 se transformado num movimentomultissetorial e complexo. No caso específico do CBH-Rio Doce, essa multissetorialidade resultou,conforme a entrevistada, em uma sobreposição de setores representados, levando aoenfraquecimento da própria representação política. Portanto, a representante do Sindicato dosTrabalhadores Rurais, uma entidade se classificaria como sócio-ambientalista, quis ressaltarprincipalmente o reduzido número reservado às entidades ambientalistas stricto sensu.

A representante do MPRD levantou a questão da desigualdade das condições de participação dasociedade civil. Essa desigualdade é chamada por ABERS, citada por CARDOSO (2003), de"problemas de iniqüidade", que surgem quando grupos em desvantagem social e econômicaapresentam menores probabilidades de participar, por diversas razões: falta de tempo disponível,escassez de recursos financeiros para viagens, falta de educação formal e possível capacidadelimitada para entender questões políticas complexas (pela falta de prática em participar de instânciaspolíticas) e argumentos técnicos, que são às vezes apresentados de forma hermética para não gerardiscussão.

Já o representante do CMCN entende como adequada a distribuição das vagas, pois ele considera osetor de usuários como um setor importante, também considerado sociedade civil. Apesar desseentendimento, o Centro Mineiro para a Conservação da Natureza (CMCN) optou em não participar,incisivamente, e não concorreu a uma vaga no comitê. Nas palavras do representante do CMCN, ocomitê vai precisar de pessoas que sejam capazes de trabalhar sem remuneração e tenhamdisponibilidade de tempo; o CMCN tem essas características apontadas, mas não procurou integraro comitê por ser uma ONG de finalidade técnica. No caso específico do CMCN, se decidisseparticipar e propugnar por uma vaga no comitê, deveria entrar num processo político que talvez nãointeresse à instituição, assim como se conseguisse uma vaga, também teria que estar num processopolítico constante de negociação para a tomada de decisões. A fala do representante do CMCNchama a atenção por dois aspectos: o temor dos técnicos em ter seu "comportamento alterado" - oque poderia implicar em uma perda de identidade? - e o fato de "dar lições técnicas" ser interpretadocomo atitude autoritária. Assim, nota-se que o comportamento "técnico" ainda não dispõe deflexibilidade suficiente para suportar os questionamentos e as negociações que são próprias de umaarena política.

O representante da Coopercafé também analisa que foi adequada a divisão das vagas no comitê,mas que quaisquer distorções, caso hajam, podem ser corrigidas.

6.5 Falhas no processo de instalação

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A representante do MPRD relata que o tempo para a mobilização social da bacia do Rio Doce foimuito curto, pois foi firmado um prazo de apenas 06 meses com a ANA. Para ela, seria necessáriopelo menos um ano. Esse é um ponto crucial, já que a bacia hidrográfica é um território desprovidode imagem e identidade social. Como afirma CARDOSO (2003), é um bem simbólico quase queexclusivo do campo de recursos hídricos. Então, essa identidade social tem que ser construída, oque, pelo menos nesse processo de instalação do CBH-Doce, foi dificultado pelo curto espaço detempo.

Vale ressaltar que o processo de ocupação da Bacia do Rio Doce foi marcado por períodosdiferentes de penetração de população não indígena e também pelo desenvolvimento diversificadode atividades econômicas. Isso faz com que a população e as atividades desenvolvidas em toda abacia constituam hoje em um mosaico composto por múltiplos atores sociais e interesses na maioriadas vezes divergentes. A própria extensão da bacia, aliás, é um fator que dificulta a construção daidentidade coletiva, na medida em que impede que cada habitante do Alto Rio Doce tenhaconhecimento ou se sensibilize com os problemas que afetam a população que ocupam a outraponta da bacia e vice-versa.

Além disso, na própria Agenda do Rio Doce 27há o reconhecimento de que as Políticas Nacional eEstaduais de Recursos Hídricos ainda são novidades para os diferentes segmentos sociais:usuários, poder público e entidades da sociedade civil (AGENDA RIO DOCE 2003).

O que se conclui é que ainda é necessário um grande esforço no sentido de divulgar as PolíticasNacional e Estaduais de Recursos Hídricos e seus respectivos Sistemas de Gerenciamento, discutirseus fundamentos, objetivos, diretrizes de ação e, principalmente, seus instrumentos de gestão,tanto técnicos quanto institucionais (AGENDA RIO DOCE, 2003). Este é um trabalho lento e difícil,mas considerado de maior importância, uma vez que a partir daí o CBH Rio Doce, em parceria comos Comitês das Bacias tributárias do Rio Doce, as Comissões Pró-Comitês, a ANA, a SEMAD/IGAMe a SEAMA/IEMA, terá condições de iniciar suas atividades de forma bem alicerçada (AGENDA RIODOCE, 2003).

A falha apontada no processo de instalação é o que ABERS, citada por CARDOSO, sintetiza comoum dos problemas de implementação de políticas participativas, em que as necessidades daburocracia de atingir objetivos rapidamente, de medir sucessos através da eficiência econômica,"dificilmente, proporcionam uma flexibilidade que permita a mobilização dos participantes em seupróprio tempo" (2003: 79). OSTROM (1998) insere também a necessidade de repetição para que osindivíduos possam aprender a participar de ações cooperativas, o que o espaço curto de tempo dainstalação do comitê não propiciou, ainda mais por se tratar de um locus ao qual a maioria dapopulação ainda não atribui uma identidade coletiva.

Outra questão relativa ao processo de instalação, relatada pelo representante do CMCN, foi acontratação de facilitadores em toda a bacia, sendo que o MPRD em convênio com a ANA gastou"uns 500 mil reais na mobilização social". Segundo o representante do CMCN, se deveria incluir omunicípio neste processo para que o sistema realmente funcionasse.

Essa sugestão de se usar o agente local, ao invés de facilitadores, também poderia auxiliar naconstrução da identidade social da bacia, que é um processo contínuo e longo e facilitaria acomunicação face-a-face, definida por OSTROM (1998) como um elemento essencial para acooperação na governança de recursos comuns e escassos.

Percebemos que, após um ano de instalação, o comitê ainda não conseguiu obter visibilidade ereconhecimento no cenário das águas na bacia, seja por falta de recursos, seja por falta de maioracesso à mídia, mas principalmente, pela desestruturação do próprio comitê que, após o processoeleitoral de escolha dos membros, não atualizou o seu site, dificultando o acesso à informação.Algumas informações podem ser encontradas no site do Jornal Watu (Jornal do MPRD) e, mesmoassim, às vezes com certo atraso. OSTROM (1998) já havia salientado a importância dadisponibilidade de informação para obter a cooperação, mas o que de fato se constata é que noCBH-Doce esse quesito não está estruturado, criando um vazio que pode comprometer a visibilidadee a transparência do comitê, inclusive, para a população mais ampla.

7. Conclusões.

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Após a análise das entrevistas e da análise documental e bibliográfica o trabalho identificou aimportância de um direcionamento da gestão institucional ambiental no Brasil e na bacia do Rio Docepara o surgimento e consolidação de novos mecanismos de controle da qualidade ambiental, e nãosimplesmente o aparecimento de novas instituições. A inclusão da sociedade civil é de fundamentalimportância para que as instituições ambientais sejam mais bem compreendidas e consigam adquirirresultados operacionais satisfatórios.

Dentro desse modelo de gestão que pretende ser alternativo (que priorize aspectos sociais eambientais até então negligenciados), se inserem os Comitês de Bacias Hidrográficas, e maisespecificamente, o CBH-Doce.

Os conflitos na bacia do Rio Doce levaram à participação da sociedade civil organizada namobilização pela instalação do CBH-Rio Doce, mas constatou-se que alguns atores ativos, como oMAB-Alto Rio Doce, preferiram não participar por não terem vislumbrado elementos que os levassema acreditar que iriam realmente exercer alguma influência nas decisões do comitê; assim, após umcálculo da situação, preferiram não participar para não correrem o risco de legitimar decisões futurasdo comitê que seriam comprometedoras para eles.

Outros atores, como o Movimento Pró-Rio Doce (MPRD), também admitem que há desigualdades naparticipação, mas acreditam na negociação e na preparação para atingirem resultados positivos, semnegar a dificuldade de alcançá-los. O representante da UFES acredita que a mobilização social queocorreu durante o processo de instalação, e que se repetirá de dois em dois anos para a eleição dosmembros do comitê, seja a peça-chave para o envolvimento e a participação da sociedade de modogeral.

A representação no CBH-Doce é uma das grandes fragilidades apontadas, problema recorrente emquase todos os comitês. Aliás, há uma grande facilidade de usuários se configurarem comosociedade civil organizada. Portanto, não podemos afirmar que o comitê é constituído de trêscategorias bem definidas, conflitantes e antagônicas entre si.

Além dos conflitos, a lei também impulsionou a participação no comitê, principalmente no segmentode usuários, em que a maioria demonstra receio com a aplicação de instrumentos de gestão como acobrança, a outorga, o zoneamento e também em função da competência do comitê para arbitrarsobre os conflitos na bacia. Assim, os usuários buscam participar mais por uma questão econômicae menos pela questão ambiental propriamente dita. Esses usuários acreditam que o comitê iráinfluenciar a política de recursos hídricos na bacia e essa crença leva à participação.

Quanto à indagação sobre a eficácia do Comitê para a redução dos conflitos, constatou-se que,paradoxalmente, a tendência é de se acentuarem os conflitos em torno da cobrança e a aplicaçãodos recursos, como os conflitos com os municípios em função do plano diretor e enquadramento,assim como no que tange às outorgas. Essa conclusão de que os conflitos poderão aumentar não éuma concepção negativa sobre o funcionamento do comitê, pois o pior seria um suposto consensoem uma arena que por si só é conflituosa. A ausência de conflitos pode ocorrer se o comitê forineficaz e agir somente em situações em que já há um consenso pré-estabelecido.

Alguns desafios estão postos ao CBH-Doce como o de conseguir construir uma identidade coletivaem torno da bacia do Rio Doce e do comitê. 28Trata-se de uma tarefa árdua, pois a bacia é muitogrande, e há um desconhecimento muito grande sobre a história da mesma.

A interação com os comitês das sub-bacias também é imprescindível, assim como a busca poragentes locais (pela facilidade de comunicação face-a-face, conhecimento local) nos municípios quepoderão fazer o elo entre o comitê e a população. A mobilização social deve continuar, sob pena deo comitê se constituir ou em um grupo elitista que vai decidir em nome de todos, ou em um gruposem qualquer poder político.

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1 O CBH-Doce engloba os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

2 Nos Estados Unidos, os estados do Texas, Oklahoma, Kansas e Colorado têm reduzido sua áreairrigada há duas décadas, devido à depleção do aqüífero de Ogallala (SETTI, 2001).

3 Neste sentido, as avaliações sobre a necessidade do reconhecimento do espaço local, via"organizações intermediárias", propostas por ESMAN & UPHOFF (1989) são bastanteesclarecedoras.

4 Para um maior entendimento sobre as diferenciações sobre descentralização/desconcentração depoderes institucionais e/ou administrativos, ver DULCI (1999).

5 As prefeituras se unem para otimizar os escassos recursos de cada município para propor políticascomuns; são compostos por entidades civis de direito privado sem fins lucrativos, e não determinamas políticas públicas, apenas as influenciam. Conforme a Lei das Águas de 1997 podemdesempenhar o papel de executora até a criação das Agências de bacia. Existem 31 consórciosintermunicipais no Brasil, ligados à gestão de águas. Ex: Consórcio intermunicipal de SantaMaria-Jucu, no Espírito Santo e do Rio Piracicaba-Capivari, em São Paulo (CARDOSO, 2003).

6 www.mma.gov.br/port/srh/sitema/comites.html, em 12.01.2004.

7 Não é obrigatória nos Comitês de Bacias de rios sob domínio estadual; essa participaçãodependerá do que os regimentos internos desses comitês dispuserem (art. 39, § 4.º, Lei 9.433/97).

8 Na Espanha já existe há séculos o Tribunal de Águas de Valência, que se reúne em praça públicae agiliza os julgamentos, em procedimento oral (MACHADO, 2003).

9 O Poder Judiciário poderá anular a delegação se os requisitos da lei não forem cumpridos.

10 Segundo GIDDENS (1997), a modernidade moderna é permeada de interações tão diversificadas

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do Comitê da Bacia do Rio Doce

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e, por vezes, assimétricas, que existe um risco iminente de as instituições não satisfazerem asdemandas às quais se incumbem de responder.

11 Outra solução, para OLSON (1999), seria a diminuição do Estado, por meio de privatizações ecortes de gastos, uma vez que não há formas de diminuir a ação dos grupos de lobbies.

12 Nas situações concretas, os indivíduos tendem a usar a heurística ("regras do polegar"), ou seja,as regras que eles têm aprendido com o passar do tempo, considerando aquelas respostas que têmdado para eles bons resultados em tipos particulares de situações. A repetição leva a melhoresestratégias com melhores respostas.

13 Um conflito supõe a luta de dois atores pela apropriação de recursos valorizados por ambos. Énecessária a existência de uma aposta em jogo, à qual ambos os adversários se referem implícita ouexplicitamente (MELUCCI, 2001). Segundo este autor, alguns elementos devem ser considerados noprocesso que leva os indivíduos a agirem em conjunto buscando a solução dos conflitos: potencialde mobilização, redes de recrutamento (teias de relações presentes no tecido social que tornammenos onerosa a ação coletiva; como por exemplo, as networks) e motivação para participar(construída e consolidada na interação).

14 Na sub-bacia do Rio Piracicaba encontra-se a região denominada Vale do Aço - o maior pólosiderúrgico do país, onde está localizada a USIMINAS, a ACESITA e também a Companhia Vale doRio Doce.

15 Atualmente há na FEAM 35 pedidos de licenciamento para a instalação de novas hidrelétricas nabacia (www.watu.com.br, em 11.01.2004).

16 No Município de Ponte Nova, o Rio Piranga se encontra com o Rio do Carmo e passa a sechamar Rio Doce (PÊGO, 2002). Essa região é chamada de Alto Rio Doce. É nela que o Rio Docevai se avolumando à medida que recebe seus afluentes, os rios Casca, Matipó, Sacramento e, maisao norte, o Rio Piracicaba. No Médio Rio Doce, o Rio Doce aumenta de volume com a contribuiçãodos rios Santo Antônio, Corrente, Suaçuí Pequeno, Suaçuí Grande, Santa Helena, Caratinga, Emê eManhuaçu. Daí por diante, chega-se no Baixo Rio Doce, no Espírito Santo, onde recebe as águasdos Rios Guandu, Santa Joana, Pancas e São José, próximo à sua foz. O Rio Doce deságua noOceano Atlântico, no Município de Linhares - Distrito de Regência (ES). A foz do Rio Doce é umdelta, sendo que o braço norte está seco, e o braço sul, antes navegável, atualmente está tomadopor grandes bancos de areia.

17 Segmento "Sociedade Civil Organizada" - Setor "Comunidades Indígenas" (01 vaga)/ suplente:representante da etnia Pataxó.

18 Segmento "Usuários" - Setor "Irrigação e uso agropecuário".

19 Não é membro do CBH-Doce. Atualmente, encontra-se como uma das associações maisfortemente envolvidas na criação do sub-comitê do-Rio Manhuaçu.

20 Também não é membro do CBH-Doce.

21 Membro do CBH-Doce, Segmento "Sociedade Civil Organizada", setor "Organizações técnicas deensino".

22 Membro do CBH-Doce, Segmento "Sociedade Civil Organizada", Setor "ONG's de defesa deinteresses coletivos".

23 Membro do CBH-Doce, Segmento "Sociedade Civil Organizada", Setor "ONG's de defesa deinteresses coletivos". Foi a ONG contratada para ser a mobilizadora do processo de instalação docomitê.

24 Membro do CBH-Rio Doce, Segmento "Usuários", setor "hidroeletricidade".

25 Não é membro do CBH-Rio Doce.

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26 O Movimento atua em duas vertentes: a primeira, para resistir à construção de novas barragensporque alegam que há sobra de energia; a segunda, na "luta pelos direitos do atingido".

27 Agenda elaborada por Rodrigo Flecha, assessor da ANA, aprovada pelo CBH-Doce. Prevê asações imediatas na bacia até a configuração do Plano previsto para 2006.

28 Após quase um ano de funcionamento, contata-se que o CBH-Doce enfrenta problemas deimplementação, pois depende da FIEMG e da prefeitura de Governador Valadares para manter ummínimo de estrutura física (computador, uma sala, telefone). Para que possa receber algum recurso,necessita da criação da agência de bacia (que deve ser auto-sustentável), sendo que para a criaçãodessa agência precisaria atender inúmeros requisitos que demandam recursos. O comitê, até acriação dessa agência, vai delegar os poderes desta para o MPRD. Ao governo federal, através daANA e CNRH, cabe auxiliar o comitê nesse processo. O CBH-Doce necessita, ainda, de maiorvisibilidade na bacia (quase ninguém sabe o que está se fazendo) e também disponibilizar maioresinformações na Internet e nos jornais.

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