Gadelha, Rosa_da Dança Fantasmata_caleidoscópio Do Corpo

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação – UFC 1 | Dez 2011 | vol 2 | DA DANÇA FANTASMATA: CALEIDOSCÓPIO DO CORPO Rosa Cristina Primo Gadelha, doutora em Sociologia pela UFC Nos primeiros meses do ano de 2003 uma vídeo-instalação de Bill Viola, intitulada Passions, no Getty Museum de Los Angeles, deslocou o espectador de uma intervenção meramente retiniana, para ser vivenciada com o corpo. Viola havia trabalhado sobre o tema da expressão das paixões, codificadas no século XVII por Charles Le Brum e retomadas no século XIX sobre as bases científicas-experimentais de Duchenne de Boulogne e Darwin. À primeira vista, as imagens no écran pareciam imóveis, mas alguns segundos depois elas começavam quase imperceptivelmente a se moverem. O espectador se dava conta, então, que na realidade as imagens estavam sempre em movimento e que a extrema lentidão da projeção, dilatando o momento temporal, fizeram com que parecessem imóveis. O tempo, que tão eloqüentemente se desvenda nesse “registro cinético”, exige uma atenção na qual não somos mais habituados. Se, como mostrou Walter Benjamim, a reprodução da obra de arte se contenta com um espectador distraído, o vídeo de Viola força ao contrário o espectador a uma espera e a uma atenção singular, na qual o corpo solicita um estado de presença diferenciada, intensa, concentrada, amplificada. Tanto assim que um espectador ausente desse corpo, certamente se sentirá obrigado a rever o vídeo desde o começo. Aquilo que escapa à percepção trivial, aquilo que a visão comum mal chega a notar, parece instalar-se aí no centro de Passions: irradiando da infinidade de pequenas percepções vibrações de uma evidência macroperceptiva; fazendo o espectador mergulhar num mundo de escala ampliada onde o infinitesimal e o intersticial se tornam tangíveis e imediatos. Em Passions o passado e o futuro, a impermanência e o permanente, a irreversibilidade e o que sempre retorna não são dimensões contraditórias e incompatíveis. O tempo entra em cada momento do tempo que passa. Com efeito, cada instante, cada imagem em Passions, parece antecipar virtualmente seu desenvolvimento futuro e recordar os gestos precedentes num movimento que comporta em si a força do tempo: um tempo como forma inalterável do que muda. Talvez por isso

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    1 | Dez 2011 | vol 2 |

    DA DANA FANTASMATA: CALEIDOSCPIO DO CORPO

    Rosa Cristina Primo Gadelha, doutora em Sociologia pela UFC

    Nos primeiros meses do ano de 2003 uma vdeo-instalao de Bill Viola, intitulada

    Passions, no Getty Museum de Los Angeles, deslocou o espectador de uma interveno

    meramente retiniana, para ser vivenciada com o corpo. Viola havia trabalhado sobre o tema

    da expresso das paixes, codificadas no sculo XVII por Charles Le Brum e retomadas no

    sculo XIX sobre as bases cientficas-experimentais de Duchenne de Boulogne e Darwin.

    primeira vista, as imagens no cran pareciam imveis, mas alguns segundos depois elas

    comeavam quase imperceptivelmente a se moverem. O espectador se dava conta, ento, que

    na realidade as imagens estavam sempre em movimento e que a extrema lentido da projeo,

    dilatando o momento temporal, fizeram com que parecessem imveis.

    O tempo, que to eloqentemente se desvenda nesse registro cintico, exige uma

    ateno na qual no somos mais habituados. Se, como mostrou Walter Benjamim, a

    reproduo da obra de arte se contenta com um espectador distrado, o vdeo de Viola fora

    ao contrrio o espectador a uma espera e a uma ateno singular, na qual o corpo solicita um

    estado de presena diferenciada, intensa, concentrada, amplificada. Tanto assim que um

    espectador ausente desse corpo, certamente se sentir obrigado a rever o vdeo desde o

    comeo.

    Aquilo que escapa percepo trivial, aquilo que a viso comum mal chega a notar,

    parece instalar-se a no centro de Passions: irradiando da infinidade de pequenas percepes

    vibraes de uma evidncia macroperceptiva; fazendo o espectador mergulhar num mundo de

    escala ampliada onde o infinitesimal e o intersticial se tornam tangveis e imediatos. Em

    Passions o passado e o futuro, a impermanncia e o permanente, a irreversibilidade e o que

    sempre retorna no so dimenses contraditrias e incompatveis. O tempo entra em cada

    momento do tempo que passa.

    Com efeito, cada instante, cada imagem em Passions, parece antecipar virtualmente

    seu desenvolvimento futuro e recordar os gestos precedentes num movimento que comporta

    em si a fora do tempo: um tempo como forma inaltervel do que muda. Talvez por isso

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    Giorgio Agamben tenha proposto uma definio especfica para os vdeos de Viola a partir da

    insero do tempo nas imagens, e no ao contrrio, a partir da insero das imagens no tempo.

    Como uma imagem pode carregar em si o tempo? Que relao existe entre o tempo e

    as imagens? Partindo dessas questes, Agamben chega dana atravs de Domenico da

    Piacenza, mestre da corte italiana que por volta dos anos de 1435 e 1436 escreveu um dos

    primeiros tratados, intitulado De arte saltandi et choreas ducendi (sobre a arte de danar e

    dirigir coros), no qual invoca a autoridade de Aristteles para pensar a dana como um duplo

    de esforo e inteligncia. No tratado Domenico enumera seis elementos fundamentais da arte:

    mtrica, memria, comportamento, percurso, aparncia e fantasmata. Este ltimo

    elemento, Agamben identifica como sendo absolutamente central e o define como uma parada

    sbita entre dois movimentos, contraindo virtualmente em sua prpria tenso interna a medida

    e a memria da srie coreogrfica inteira. (AGAMBEN, 2004: 40).

    Apesar da dificuldade em compreender a origem desse elemento constitutivo da

    dana, levando historiadores a suprimirem fantasmata como Paul Bourcier, que assinala

    apenas cinco elementos no tratado de Domenico tal concepo deriva da teoria aristotlica

    sobre a memria e reminiscncia, que teve influncia determinante na Idade Mdia e no

    Renascimento. Nela, Aristteles v a filosofia ligada estreitamente memria e imaginao,

    fazendo-o afirmar que s as criaturas vivas que so conscientes do tempo podem lembrar, e

    elas fazem isso com aquela parte que consciente do tempo, ou seja, com a imaginao .

    (AGAMBEN, 2004: 41). A memria, nesse sentido, no possvel sem uma imagem

    (fantasma), que uma afeco, um phatos da sensao ou do pensamento. Nesse sentido,

    Agamben ressalta que a imagem mnemnica sempre carregada de uma energia capaz de

    mover e perturbar o corpo.

    A dana ento, para Domenico, essencialmente uma operao conduzida pela

    memria, uma composio de fantasmas numa srie temporalmente e espacialmente

    ordenadas. Com efeito, o lugar da dana, segundo Agamben, no no corpo e em seu

    movimento, mas na imagem como pausa no imvel, juno de memria e energia dinmica.

    Isto significa que a essncia da dana no mais o movimento mas o tempo.

    (AGAMBEN, 2004: 42).

    Essa teno dinmica, cuja imagem carrega em si o tempo, remonta origem do

    cinema, nas fotos de Marey e de Muybridge. Como tambm nos direciona a Walter Benjamin,

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    cuja concepo de experincia histrica se faz pela imagem, e as imagens so elas mesmas

    carregadas de histria. As rugas e dobras do corpo so inscries deixadas pelas paixes. No

    passado do corpo, o presente prefigurado, assim como no presente h um tanto de passado.

    Em se tratando do corpo do bailarino, uma temporalidade provisria produz uma outra

    temporalidade provisria. A primeira caracterstica engendra outra. Ele se constitui segundo

    os elementos que os faz e desfaz, os transformando sem cessar. Trata-se de um conjunto de

    elementos heterogneos que se reencontram, se interferem ao redor, com o corpo e pelo

    corpo. O agenciamento-dana opera na maquinaria de cada corpo: junto s praticas que fazem

    dana contempornea criao contnua de novas estratgias temporais.

    Em dana, movimento, imagem, forma do corpo se agenciam sobre um mesmo plano.

    As imagens tocam os corpos porque elas intervm sobre o plano dos corpos. Esse plano no

    uma espcie de superfcie corporal. Ele ao contrrio, profundo, denso, espesso. O plano

    dos corpos indica uma perspectiva do corpo diferenciado do plano de representao dos

    corpos. O plano de representao dos corpos distante do corpo. o caso, por exemplo, do

    esquema anatmico, que instaura um plano de representao dos corpos constitudo sobre o

    modelo do cadver.

    O corpo anatmico, decomposto de maneira objetiva reduzido a uma simples soma

    ou agenciamento mecnico de partes, um agregado articulado de rgos. Com efeito, o plano

    de representao fixa e organiza o corpo. J o plano do corpo um plano de consistncia que

    ignora as diferenas de nveis. Ignora toda diferena entre artificial e natural. Ignora a

    distino de contedos e de expresses. O plano dos corpos imanente, constitudo de

    relaes de movimento e repouso, de rapidez e lentido entre os elementos formados. um

    plano no estruturado e organizado, um plano de proliferao, de povoamento, de contgio

    onde se reencontram as multiplicidades intensivas que produzem essas mesmas relaes de

    movimento/repouso, de rpido/lento...

    Nesse sentido, todo agenciamento de dana se coloca a priori na imanncia dos

    corpos. O meio a partir do qual pulsa o agenciamento da dana o plano dos corpos que

    imanente e primeiro com relao aos esquemas de representao. A dana salto, corrida,

    impulso e suspenso, volta e inverso do corpo. Ela se manifesta concretamente nos msculos

    tensos, no peso, nas massas corporais tnicas ou descontradas. As articulaes se dobram, a

    coluna vertebral serpenteia. Para Jos Gil, a dana trabalha com tenses, rupturas, lentido,

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    rapidez, cruzamento e modulaes de intensidades, dobraduras, choques e conjunes

    espaciais. Assim, podemos considerar uma coreografia como uma dramaturgia de foras. Para

    que haja movimento, necessrio foras em presena. Trata-se de um plano de foras e de

    relaes de foras. Essas foras entram em relao de composio.

    Todo movimento danado se constitui e se d a ver atravs de um campo dinmico de

    foras corporais. Michel Bernard em sua anlise da sensao em dana contempornea

    enfatiza que o movimento executado do bailarino sempre o prolongamento ou a fora

    visvel, a parte emergida do que produz e trabalha o processo imanente do sentir.

    (BERNARD, 2001: 120). Pelo movimento danado, a produo das sensaes torna-se

    visvel, nos mostrando o jogo de foras subjacentes e imanentes aos corpos-danantes. Para

    Laurence Louppe, a dana contempornea realiza o trabalho inconcebvel de dar existncia ao

    invisvel, a rede impalpvel das relaes entre os corpos. Criar, nessa tica de agenciamento

    da dana contempornea, pois tornar visvel as foras do corpo no corpo: no tornar o

    visvel, mas tornar visvel, segundo a frmula de Paul Klee: no apresentar o visvel, mas

    tornar visvel.

    Se a dana contempornea tem a particularidade de explicitar o trabalho das foras,

    possvel generalizar essa caracterstica a todo agenciamento da dana. nesse caso que

    podemos compreender a afirmao de Deleuze: em arte, na pintura, como na msica, no se

    trata de reproduzir ou de inventar as formas, mas de captar as foras. (DELEUZE, 1969: 57).

    Contudo, dana clssica e dana contempornea no so somente dois estilos que

    fazem danar de diferentes maneiras quem seriam semelhantes. Trata-se de dois

    agenciamentos de dana diferentes que colocam em jogo corpos-danantes diferentes. Uma

    bailarina clssica no tem o mesmo alinhamento postural que uma bailarina contempornea.

    Mais ainda: a prtica das pontas transforma a musculatura e desloca sensivelmente o eixo do

    corpo. Existe, pois, um corpo danante clssico e um corpo-danante contemporneo.

    Encontramos essa idia em Laurence Louppe que descreve corpo-Humphrey, o corpo-

    Graham, o corpo-Holm atravs das diferentes tcnicas pontuadas por esses coregrafos:

    Doris Humphrey, Martha Graham, Hanya Holm. Os historiadores consideram a dana

    moderna ou contempornea comeando sempre pela inveno de um corpo singular,

    irredutvel. (LOUPPE, 2004: 71).

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    Frdric Pouillaude, em um texto onde discute a contemporaneidade da dana, revela

    uma temporalidade do corpo danante como um presente da eternidade (POUILLAUDE,

    2004:12) uma interioridade. Ou seja, presenciar um corpo danante nos leva a uma

    experincia intratemporal, uma compreenso imediata do tempo sobretudo o tempo em sua

    dimenso de contemporaneidade, que no designa aqui uma figura histrica, uma poca,

    mas estrutura temporal: uma simultaneidade neutra e uma coexistncia contingente

    (POUILLAUDE, 2004:11). Nesse sentido, mesmo em repetio, o corpo danante aparece

    cada vez como primeira vez, cada vez como a ltima, cada vez como primeira-ltima vez.

    Detidos no instante, a parada sbita entre dois movimentos conforme a definio

    fantasmata de Agamben enuncia sempre um acontecimento por vir, portanto ausente.

    Porque no foi visto, tornou-se imaginao (fantasma), espao de imagem que abre a

    passagem do dentro ao fora (do corpo na dana e em Passions), atribuindo, assim, ao espao

    interno, agora retido, a funo de meio de todas as passagens e articulaes de espaos

    internos e externos. O fantasma como sombra branca, pelcula quase transparente encobrindo

    o visvel retido no instante, paradoxalmente condio de possibilidade da viso: imagem

    como pausa jamais imvel, tornando visvel as foras do corpo em corpo.

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