Crónicas da Cidade Que Sopra

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    CRÓNICAS DA CIDADE QUE SOPRA

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    CRÓNICAS DA CIDADE QUE SOPRAAutor: Ivar Corceiro

    ISBN: 978-989-20-4003-5www.ivarcorceiro.net

    Aveiro 2013

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    Por trás dos panos

    Sandra acordou hoje com a sensação que tem trocado a vida por algo innitamente menor. Pensaque foi ontem que reparou nisso, ao chegar a casa, quando a vizinha do lado a tentou esmurrarcom um misto de pena e de raiva. Que ela é que anda bem de vida, que não faz contas ao dinheironem aos casamentos que desmancha, que é uma galdéria e uma desavergonhada. Sandra colocou achave na fechadura apenas à terceira tentativa, mesmo mantendo uma calma aparente, e depois

    entrou fechando a porta sem sequer responder às injúrias. A voz da vizinha, que não falava paraela mas sim para todas as outras vizinhas daquela rua de casas térreas, diminuiu de intensidademas não se apagou. Ficou a roçar as madeiras velhas da porta como um cão sedento de um lar,e Sandra não saiu mais durante todo o dia. Ficou a ver um concurso qualquer na televisão atéadormecer no sofá vencida pelo cansaço, e agora, já o m de tarde respira sôfrego, acordou coma sensação que tem trocado a vida por algo innitamente menor.

    A cidade que sopra pinta-se como uma velha meretriz, pensa um homem invisível, mas nãodisfarça as rugas que penteiam o seu corpo de mulher, conclui sorrindo para dentro. Só lhe sobrauma réstia de orgulho, à urbe, e o homem caminha só desaando-a por entre um nevoeiro quesussurra a um m de tarde estéril. Os seus olhos investigam todos os bares da baixa, que vãoabrindo lentamente com uma luz áspera até pousarem numa nova sentença: talvez a cidadeseja assim, tímida, porque passa os dias a ver-se ao espelho. Depois acende um cigarro absortoe entra num botequim que parece não ter nome. Tem apenas idade. Muita. Senta-se ao balcãodepois de pendurar a gabardina num cabide que ameaça cair da parede, a peça de roupa encobrea única abertura por onde as cortinas vermelhas do bar deixam entrar uma réstia de luz. Não estáninguém a atender. Espera.

    Os vidros da janela da casa de Sandra empalidecem as cores da rua mais do que nos outros dias.É a hora de forçar um sorriso em frente ao espelho e plasticá-lo na face. É um sorriso falso masforte, uma imensa represa de lágrimas. Uma mulher não chora, repete três vezes. Alisa as calças

    apertadas na zona das ancas, ajeita os seios aprisionados num sutiã vermelho enquadrando-oscom o decote. Sai de casa. O cão de ontem adormeceu, mas algumas mulheres de xaile espreitam-na por trás das cortinas de renda. As cortinas de renda são as burkas desta cidade, pensa Sandra,e por um momento sorri sem esforço. Apressa o passo. Uma mulher não chora, uma mulher nãochora, uma mulher não chora.

    Debaixo duma arcada alguns homens engraxam sapatos a outros homens, e a ausência passeia-se entre os transeuntes como um cão rejeitado pela matilha. Sandra só hoje percebe que elesexistem mesmo, que não são uma invenção dela quando passa ali de madrugada ao regressar acasa. É m de tarde e eles estão ali na mesma. Um deles tem a tenda decorada com a bandeira

    amarela e negra duma equipa de futebol qualquer, e discute arduamente qualquer coisa com ocliente que se distrai com o corpo dela. Parece que ele rompeu a gabardina no prego que serve decabide. Ela sente o olhar dele a esvoaçar à volta do seu corpo como uma borboleta ferida. Apressao passo. Os saltos altos  pianam  sobre as pedras do passeio tocando ritmadas notas musicais.Sandra nunca foi a um jogo de futebol, pensa, e depois continua pululando a mente por todos ossítios na cidade que nunca visitou. Talvez também ela seja um animal rejeitado. Talvez não. Eratão bom que um jogo de futebol chegasse para a fazer feliz. Talvez não.

    Uma mulher de trás do balcão sacode o braço do homem invisível três vezes até ele acordar. Ocigarro ardeu sem ser fumado, e a sua cinza forma uma espécie de galho torto que cai sobre ascalças. Ela pergunta-lhe o que é que ele quer, que se ele quer dormir não é ali o sítio indicado.Então um uísque novo, responde ele. Depois xa os olhos num televisor que também acaboude acordar, e revela as córneas avermelhadas em nos traços de sangue. Sandra, que acaba deentrar no bar, acha que são olhos de álcool, aqueles, e senta-se também ao balcão mantendoestrategicamente dois bancos de distância do homem. A mulher que sacode braços surge de trás

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    dum cortinado vermelho e pergunta-lhe o que é que ela quer, que se é para andar ao engate nãoé ali o sítio indicado. Então um uísque novo, responde Sandra. Depois xa os olhos no televisorque transmite um jogo de futebol. Um equipa veste de amarelo e negro. A outra não. Talvez sejaa mesma do engraxador de sapatos, conclui ela, e dá um gole no uísque onde aproveita paraafogar o pensamento por uns instantes. Lá fora um homem vê o jogo numa montra duma loja deeletrodomésticos, e os seus gritos ocupam esporádica e violentamente a rua.

    A cidade que sopra descansa agora, numa espécie de apneia duma caixa torácica enfraquecida,e espera pacientemente a noite que parece não querer cair. Há, no entanto, um golo qualquerque interrompe esta acalmia. Outro uísque, pede o homem invisível, ou melhor, dois, que um épara a senhora. Sandra endireita-se no banco o olha o homem que acaba de impedir que o seupensamento se afogue. Tem uma boca, tem um nariz, tem dois olhos, como todos os outros quecomeçam por lhe pagar um copo de uísque, ou uma cerveja, ou uma cola, ou outra coisa qualquer.É invisível, portanto, mas fala e pergunta-lhe se ela tem que fazer depois do jogo. Que depende,diz ela, que é oportuno falar de dinheiro.

    A mulher que sacode braços esconde-se atrás da burka  vermelha do bar, ele desloca-seestrategicamente dois bancos e ca ao lado dela. Põe-lhe uma mão numa anca. O cabide cai

    e a gabardina estende-se no chão deixando perceber que, lá fora, o homem que vê o jogo numtelevisor da montra ainda festeja o golo e é o engraxador. Está sentado na sua caixa de trabalho.Faz muito barulho e o homem invisível ri-se. Sandra também. Talvez não. A gabardina estárota. Daqui a pouco ambos entrarão na casa dela, ladeando os olhares sedentos por trás doscortinados, das burkas, dos panos, do que lhe quiserem chamar. Mais um homem invisível numanoite innitamente pequena de Sandra. Por trás dos panos.

    Páginas de silêncioPágina por página, talvez alguém tenha tido um sonho estranho durante a noite, com cadáveressemeando ores em extensões de campos estéreis. Ao acordar, Helena sentiu-lhes o aroma querareava serpenteando as artérias da cidade, e saiu da cama mais depressa do que o habitual.Costuma car entre os lençóis com o sossego que foge das ruas e se vem deitar na cama dela.Normalmente nem fazem amor, cam só a olhar para o débil e silencioso baile dos cortinados depano branco sujo. É áspera a luz lá fora, vai pensando suavemente, e o silêncio concorda. Agoraque se levantou precipitada, vê-se ao espelho ainda nua e consegue achar-se um bocadinho bonita,apesar do ar cansado e envelhecido. Talvez depois de ir ao psiquiatra passe numa loja e compre

    um frasco de tinta para o cabelo. Talvez isso a possa fazer feliz, pensa. O silêncio concorda denovo e conforta-a, diz-lhe que o sonho não passou disso mesmo: um sonho. Helena gosta de ir aopsiquiatra por dois motivos: porque pode reinventar os seus sonhos e porque pode nada dizer. Àsvezes sabe bem estar com alguém a quem se pode nada dizer.

    Página por página, um homem com sotaque do leste folheia em voz alta os últimos dias da suavida, numa avenida desatenta, mas as suas palavras vão fraquejando entre os olhares utuantese ombros embrutecidos que passam. Sente-se um barco à deriva, o homem, e procura um farolalgures entre a multidão. Diz que tem trabalhado para um construtor civil qualquer que não lhepaga, que tem lhos à espera numa garagem dum bairro da cidade que sopra, que implora mais

    alguns dias de vida. Que tem fome. Depois desiste. Deita-se embalado pela sombra duma árvoreda avenida. Helena passa por ele sem reparar na sua mão ainda aberta.

    As árvores sabem que ele decidiu morrer atirando-se à ria e que, mesmo assim, vai tomar umcafé com açúcar. Sabem que ele apertará os atacadores dos sapatos várias vezes, até sentir

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    que os mesmos estão justos aos pés. Nem demasiado apertados nem demasiado largos. Depois,penteará ainda o seu reexo na abundante montra duma pastelaria da cidade. As árvores sabemque ele agirá assim em silêncio, e estenderam um tapete vermelho e outonal que ele vai percorrerdevagar, fascinado pela luz que se alonga ao horizonte. Desviar-se-á dum automóvel que nãorespeitou uma passadeira para peões, antes de esperar, junto à ria, que um autocarro pare edespeje uma dezena de pessoas silenciosas. As árvores sabem que agirá assim para não morrerantes de se matar.

    Helena está na sala de espera. Ainda não decidiu de que cor vai pintar o cabelo quando sair dali,talvez porque assim possa continuar a ocupar o espírito com essa preocupação mínima. Não lheapetecia nada chorar outra vez quando começar a contar os seus dias ao psiquiatra, página porpágina. Página por página vai lendo, de trás para a frente, uma revista que tirou à sorte dummonte. São só caras, pensa ela, caras empacotadas em fatos e vestidos caros, caras rotuladas porsorrisos torpes, caras sem mais nada. Só caras. Pousa a revista numa das cadeiras vazias ao seulado. Há várias cadeiras assim e lembra-se de como cresceu dividindo um quarto com mais umacama vazia. A mãe dizia-lhe que era para quando a família aumentasse, o que nunca chegou aacontecer. Nunca teve ninguém ao seu lado, pensa. Por isso viveu sempre em silêncio. Reprimeum esgar de choro.

    Vermelho, vai pintar o cabelo de vermelho. Sorri.

    Uma morrinha parece segredar qualquer coisa à cidade. Helena nunca desvenda esse segredo,mas tenta encontrar nele qualquer coisa de bom. Às vezes consegue, numa criança que se esticano balcão duma pastelaria para escolher um bolo, num automóvel que para para deixar atravessarpeões que nem sequer estão numa passadeira, num guarda-chuva que se esforça em vão porabrigar mais do que uma pessoa. Às vezes noutra coisa qualquer. Quando consegue agarra essemomento e guarda-o bem na memória, explica ao psiquiatra, que lhe pergunta se ela se sentemais otimista ou pessimista do que na consulta anterior. Pessimismo? Otimismo? Não sabe o que é,diz ela. As coisas são o que são, vai-se vivendo página por página. Depois emudece durante cinco,

    dez, talvez quinze minutos. Levanta-se, despede-se e sai. Hoje não chorou.

    Há páginas que são um erro e se devem rasgar, há outras que se rasgam sozinhas, mesmo quando nãoqueremos. Helena caminha compreendendo o seu silêncio amante, mas sorri-lhe distanciando-se.Que não quer pensar nisso. Um grupo de pessoas agita-se junto a um dos canais da ria que, comosangue, percorre a cidade transportando algum oxigénio. O corpo dum homem oscila ali entre asmãos de dois médicos do INEM, e começa a expulsar alguma água suja pela boca. Já mexe, dizalguém. Que é ucraniano, conclui outro alguém. Que rasgue depressa da sua vida a página dodia de hoje, deseja Helena. Depois sorri. Vai pintar o cabelo de vermelho, como o vermelho dasfolhas que despiram as árvores. As árvores estão nuas mas conseguem achar-se bonitas, conclui.

    Em silêncio.

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    Um café e uma nata

    Já o sol atravessa um homem invisível com severas lâminas de luz. Já o homem colige, numcarrinho de mão, embalagens de cartão deixadas a monte nas traseiras dos supermercados. Jádormiu, já sonhou com o corpo duma mulher com quem foi ao cinema na noite anterior, jáacordou. Já tem fome.

    Um café e uma nata. Com exceção dos clientes, Sandra nunca tocou ninguém na intimidade, eestabelece mentalmente um paralelismo entre a sua vida e o pequeno-almoço. Entre o doce e oacre, entre a infância e o presente. Acabou agora de ler o jornal ao balcão duma pastelaria naentrada dum centro comercial decrépito, e cou a saber que um grupo de adolescentes espancoue assaltou um professor numa das mais movimentadas avenidas da cidade. Sabe também que opreço da gasolina vai tornar a subir, que um jovem ator duma série qualquer da televisão morreunum acidente de automóvel, que uma orista foi violada dentro da própria loja por alguém quecomprava ores para um funeral.

    Um café e uma nata. Sandra vive num dos bairros decadentes dos subúrbios da cidade, e hojepercorreu as ruas daquele cemitério com a sensação que a espreitavam por trás das cortinas sujasde cada janela. As burkas da cidade, pensa. Por isso ainda analisa discretamente o seu ténuereexo no balcão da pastelaria, a ver se está tudo bem. Não sabe, nem nunca soube, o que é estartudo bem, mas sabe certamente ver se está tudo bem. Ri para dentro engolindo o pensamento ealguma amargura. Um café e uma nata.

    Lá fora um homem escreveu nos restos mortais duma caixa de cartão, com o escasso negrumeduma esferográca em m de vida, que plastica documentos. Mas não, não plastica. Está feitoestátua e foi a manhã que o plasticou a ele, esculpindo-lhe ausência na face. A quietude dos seusolhos adormeceu no homem que amontoa cartão velho, que ele já não plastica nada há váriosdias e tem de arranjar maneira de viver. Talvez também ele devesse colher cartão para vender,

    pensa. Para comer, conclui.

    Um café e uma nata. Sandra sabe que talvez seja hoje e deseja-o. Ontem foi ao cinema com ohomem invisível e ele adormeceu encostado ao seu ombro. Ela petricou o corpo e o coraçãopara não o acordar, levantando apenas, de vez em quando, o braço do lado oposto para ajustar osóculos ao nariz e conseguir ler as legendas. Acha que foi a noite mais feliz da sua vida de adulta.Não se lembra muito bem do lme, mas lembra-se que o homem cheirava bem e que no m dasessão lhe agradeceu o abraço com um obrigado e um beijo na testa. Só na testa, infelizmente.Depois foram a um café que ainda tinha a porta entreaberta àquela hora e ela bebeu um café ecomeu uma nata. Sentia-se doce e acre, criança e adulta. Ele bebeu uma água tónica. No m não

    zeram amor, não deram as mãos nem trocaram sorrisos comprometedores. No entanto, o homeminvisível levou-a a casa e esperou, lá em baixo, que ela subisse e lhe viesse dizer adeus à janela.Acabou por seguir devagarinho pelo passeio até ser engolido pela noite.

    Um café, uma nata, um número de telefone num bilhete de cinema e um lençol frio, foi tudoo que restou depois. Sandra sabe que ele a abordou na rua para ter sexo. Só. Que, segundo elemesmo, perdeu a coragem quando iam a entrar para uma pensão no bairro velho da cidade, quefoi ele quem lhe propôs a ida ao cinema. Que lhe pagava na mesma, insistiu, e foram. A um lmequalquer, numa sala qualquer, num shopping qualquer. No m Sandra não aceitou o pagamento,trocando o dinheiro pela promessa duma nova visita que cou marcada já para hoje.

    O homem que plastica documentos tem um rádio rouco. Entra com ele ligado no café e apoia-seno balcão. É só ruído, mas esse ruído parece ser a sua melhor companhia e por isso ninguém seincomoda. O ruído parece ser indissociável do homem, e todos os clientes plasticam uma posede quem está acima daquela relação. Ele pergunta quanto custa um croissant, apontando-o.

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    Noventa, responde-lhe a voz impaciente da empregada, e insiste que ele indaga o preço todos osdias e nunca consome. Ele torna a sair e a sentar-se na mesa do passeio. Não leva o croissant, masleva o olhar de Sandra que ainda esvoaça pelo resto dos clientes como uma borboleta excitada.Ninguém reage. Apenas uma cliente, que ancorou o olhar nas ores de plástico da parede, repetepara dentro que elas são de plástico: são de plástico, são de plástico, são de plástico. Sandrareconhece-a da notícia do jornal: é a orista. Depois volta ao homem. Compra e leva-lhe lá foraum croissant e um leite com chocolate de pacote. Ele agradece quebrando a sua face empedernidacom um sorriso dócil. Que talvez ela queira plasticar qualquer coisa, diz-lhe. Talvez, respondeSandra, e tira um cartão antigo com a fotograa a preto e branco duma menina sardenta esorridente. A menina é ela e ela sabe-o. Só não compreende essa assunção. Que vai mostrar ocartão a uma pessoa especial hoje à noite, confessa. Faz-se silêncio e o silêncio cresce durante aplasticação.

    O Sol já subiu um pouco e está menos agressivo. Sandra reentra para pagar e acredita que logo ànoite vai ser melhor que ontem. Também o homem que plastica documentos deteta felicidadeno homem invisível, que passa agora assobiando uma música qualquer, e acredita que pode fazero mesmo. Lá dentro a mulher ainda repete baixinho que as ores são de plástico: são de plástico,são de plástico, são de plástico.

    Glóbulo branco

    Devagar, Sandra lava os dentes à sua imagem reetida no espelho, sustendo uma anormal quietudeno olhar com reforçada e instintiva incidência nos da frente. Estão podres, os dentes da frente,e continua com uma cautelosa inspeção a qualquer migalha que possa ter escapado à operação,tateando com a língua todos os orifícios que sente existentes. Um hálito pútrido solta-se devagar,uma tristeza cresce devagar, um sorriso frágil desenha-se devagar, com os dois lábios contrariandoa sua separação natural com a força dum íman. É assim que Sandra sai de casa e que reparaque deixou a chave lá dentro, mas como se estivesse a sair duma cela onde habitara prisioneiradurante uma vida, nem se importa. Sente a alma tão podre quanto os dentes.

    Devagar, do outro lado da cidade que sopra, num quarto alugado a partir duma cabine telefónicaalguns dias antes e ainda com algumas malas velhas por abrir, um homem invisível faz a barba quelhe rareia a face como erva daninha e que parece há anos não ver ninguém, não sentir ninguém,não ser beijada por ninguém. Corta-se no lábio superior com a ferrugem da lâmina e abre umaferida que não quer coagular. Por isso estanca-a com um pedaço de papel higiénico. Depois sai,

    para em frente ao elevador durante uns segundos como se arrumasse ideias prostradas ao acasonas suas memórias, revista os bolsos com ambas as mãos e volta a entrar para pegar no telemóvel.Ao descer os quatro andares com o objeto sacudindo um bolso da frente das calças, e porquetem fome, decide parar no primeiro café que encontrar. Tem dois dias para arranjar emprego.Estabelece mentalmente a meta.

    Lá fora coagulam as artérias da cidade com o trânsito da manhã, onde ainda deambula lentoo cadáver da última noite sangrando. Sangra em latas vazias de cerveja que adormeceram nabeira do passeio, num sem-abrigo que ainda dorme numa ponte que tange um centro comercial,em crianças autómato que vendem pensos nos semáforos vermelhos, em homens que distribuem

    papéis publicitando miraculosas ciências ocultas. O homem invisível gostava de estancar estaferida como fez na sua face, pensa, mas é apenas um enfraquecido glóbulo branco. Tem fome.Tem dois dias para arranjar emprego.

    Sandra acha-se disforme e acabou de adoçar o café do pequeno-almoço com dois pacotes de

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    açúcar, como se pudesse adoçar assim o impossível. Sobre a mesa tem um guardanapo abertocom os restos mortais de algumas bolachas proteicas que trouxe de casa. Ontem recusaram-lheali emprego. Um homem visível, limpando os ouvidos com a unha comprida do dedo mindinhoesquerdo, disse-lhe que não quer ali joaninhas da noite a trabalhar. Depois riu-se, procuroucompreensão no resto do pessoal e não encontrou. Calou-se.Joaninha da noite nem é muito feio, pensa agora Sandra que está na única mesa ocupada apenaspor uma pessoa, e vê, por isso, o mesmo homem levantar a chávena ainda com um resto de café.Diz-lhe que não pode comer ali produtos que não são da casa, que pague e que saia. Não pedepor favor. O homem invisível entra e pergunta-lhe tugindo se se pode sentar. Que sim, respondeSandra acenando armativamente com a cabeça, de olhos divagando por todo o espaço menos porele. O empregado reaproxima-se e avisa-o que, no canto, uma mesa está quase livre. Sandra tapao sorriso amargo da boca com a palma da mão e torna a ondular o olhar por sítios nunca dantesnavegados. Ele insiste que ca ali, se a senhora não se importar. Sandra não se importa. Nem semlembra do que é importar-se com alguma coisa.

    O homem invisível toma o pequeno-almoço em silêncio. Sandra não se sente bem nessa ausênciade ruído, mas não se levanta, que sente não ter melhor lugar para ir. É náufraga num rochedoenvolto em mar revolto. Ele sorri com as bochechas cheias do último pedaço de torrada e levanta-

    se. Vai lá fora e volta com um papel que estava preso na montra, passando por ela em direçãoao balcão e pedindo-lhe por gestos que não se vá já embora. Depois regressa e senta-se de novo.Era o papel que pedia um empregado e ele diz-lhe que a partir de amanhã começa a trabalharali, que gostava de lhe oferecer o seu primeiro pequeno-almoço, que espera por ela de manhã.Sorri. Sandra sorri também, desta vez sem tapar a boca. Pousa a cabeça na palma da mão que,como o cume duma torre ao vento, vacila sobre o braço débil e trémulo. Pousa os olhos tristes nochão, fechando-os com a brandura duma ave de rapina e ausenta-se levando o pensamento parao minuto que acaba de passar. Talvez volte a casa e tente de alguma forma recuperar a chave. háde safar-se. Tem os dentes podres, mas a alma não.Dia de folga

    Um autocarro aproxima-se e para chiando. Vomita alguns passageiros e prepara-se para ingeriroutros. Está ofegante. Lá dentro vem a desilusão com várias faces coladas ao vidro das janelasembaciadas. Dois gatos, que comiam uma refeição quente num prato arranjado por duas idosas,fogem com o chio. As idosas protestam. A desilusão é uma Hidra, pensa Helena, corta-se-lhe umacabeça e nasce outra. Na cidade que sopra, a luta com a Hidra é uma constante, e agora engoleHelena duma só vez, para daqui a alguns minutos a vomitar também.

    Hoje a cidade respira rouca. Foi há tanto tempo que Helena a costumava percorrer, de mão dadaao pai, dando pequenos saltos para acompanhar o seu apressado passo, desde casa a um café que

    era famoso por ter uns enormes candeeiros que oscilavam aparentemente sós. Lembra-se queestava assombrado, ou pelo menos era o que diziam algumas pessoas aparentemente felizes aoutras, também aparentemente, sós. Cresceu a pensar que isso era verdade.

    Hoje a cidade acordou sem a autorização dum homem só, que ainda dorme sob os seus olhospesados e febris. Desde que chegou há alguns meses dum país do leste, onde se despediu, talvezpara sempre, duma mulher a quem chamava isso mesmo. Abraça-o uma felicidade apática. Achaque o pior de varrer ruas de manhã à noite não é ganhar mal ou chegar ao m do dia suado e sujo.O pior de varrer as ruas é aperceber-se qual o tipo de vómito das cidades, aquele que ele limpa,e é nele que o vómito se vai desfazendo numa lenta agonia urbana. Ontem, por exemplo, limpouos restos dum almoço fast-food  numa rua onde se habituou a ver um sem-abrigo alimentar-se de

    refeições roubadas aos gatos. Uma vez duas idosas viram-no a fazer isso e protestaram. Que nãoera delicado roubar comida a animais, que fosse trabalhar. Hoje o emigrante e invisível homemestá febril e a cabeça treme-lhe. Nunca roubou comida a gatos.

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    Dentro do monstro de várias cabeças, Helena também encosta a cabeça no vidro trémulo. Oautocarro percorre tortuoso a cidade. O café assombrado é agora um banco qualquer. As pessoasaparentemente sós ainda lá estão. As aparentemente felizes também, mas apenas em cartazespublicitários de sorrisos e abraços petricados, como se fossem peças de museu. São apenaslembranças, conclui Helena, e mantém a cabeça no vidro. O autocarro tornou a parar, vomitandoe engolindo uma quantidade incerta de pessoas invisíveis. As pálpebras de algumas tornam-semomentaneamente mais leves, quando as íris xam nos cartazes do banco promessas de uma vidamelhor, seja através duma viagem ao Brasil, dum automóvel novo com oferta do ar condicionado,dum computador portátil com acesso à internet ou dum apartamento rodeado de áreas verdejantes.São tantas promessas, conclui Helena, que não se consegue estabelecer uma relação direta coma face melancólica dos transeuntes. Continua com a cara colada ao vidro do autocarro, à esperade ser vomitada noutro sopro da cidade. Está ausente e a cabeça treme-lhe.

    O sopro da cidade, penetrando por uma janela que por não ter vidros nunca o chegou a ser, alivioua febre do homem invisível, mas não suavizou as contas por pagar que se acumulam em cima dumcaixote de madeira velha ngindo ser mesa. Lá fora vivem os gritos saltitantes do recreio dumaescola primária. Os gritos das crianças da cidade que sopra são iguais aos gritos da cidade ondecresceu, pensa ele, mas a vida não. Apesar de tudo a vida é menos má aqui, conclui, encontrando

    forças para se levantar e enfrentar o dia. Já se vestiu, já encontrou forma dum pão com três diasservir de pequeno-almoço, já lambeu os lábios secos para os humedecer. Já saiu para apanhar oautocarro.

    Helena sai na próxima paragem e já se levantou para serpentear entre os passageiros que parecempreencher todos os espaços do habitáculo. Suam. Já leu “funk da system” numa t-shirt  dumadolescente que deve ir para um liceu qualquer, já se desviou dum homem que a tava sem piscaros olhos desde o princípio da viagem, já conseguiu tocar a campainha que faz a Hidra parar. Ouveum silêncio intenso nos últimos metros em andamento, perverso mesmo, pensa ela, tendo emconta a proximidade física de tantas pessoas. Depois o bicho para, abrem-se duas portas, entra

    um ar fresco e suaviza o cheiro a suor. Helena é vomitada com mais faces anónimas. Outros sãoengolidos. Talvez anal hoje não suba ao escritório, talvez dê uma folga a si mesma, pensa agoraque respira de novo ar limpo.

    Um homem corre tentando chegar a tempo de entrar. Não consegue, perdendo-o poraproximadamente dois segundos. As pessoas dispersam como ratos assustados, cada uma paramais uma série de horas de automática transformação de oxigénio em dióxido de carbono.Algumas num escritório, outras numa loja dum centro comercial, outras noutro sítio qualquer.Apenas Helena e o homem invisível permanecem ali, olhando para um mesmo cartaz que se exibena montra duma loja de turismo. É de uma viagem a um país do leste e mostra várias fotograas

    duma cidade antiga. Em Helena cresce o desejo de sair da cidade que sopra por alguns dias. Nohomem invisível, que reconhece no cartaz o seu país, cresce a vontade de voltar. Talvez tambémnão vá trabalhar hoje.

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    Um único dia de maio

    Tem a barba por fazer. Tem um croissant com ambre por comer, uma dor de dentes por esquecer,alguns desgostos antigos por dizer, uma camisola suja por coser e um lugar de garagem na avenidapor ocupar. Um carro aproxima-se devagar, embalado pelo movimento de concordância do seubraço direito, até a sua mão se abrir ordenando-o que pare. Alice desliga o motor ruidoso eacompanha, como o voo duma borboleta ferida, a mão aberta do homem até esta se estender à

    sua frente. Quer ser pago pela ajuda que deu e ela procura uma moeda perdida na sua carteiradesarrumada. Depois entrega-lha deixando-a cair na palma da mão, de forma a evitar contactofísico. Reparou que o homem cheira mal e que tem a barba por fazer. Sorri para dentro, não sabemuito bem porquê, mas talvez apenas porque agora se pode afastar de mais uma chaga da cidadeque sopra.

    Octávio sente que passou a noite como a Lua. Minguante, pensa, enfrentando uma garrafa deuísque vazia onde afogou a acumulação dos dias. Também, penduradas por ímanes no frigoríco,se acumulam contas por pagar e cartas por responder. Octávio dilata assim uma morte anunciadamas que nunca mais vem, entre gritos ecoantes duma família que já não está, uma televisãosempre ligada mas que não liga a ninguém, algumas garrafas de uísque barato trazidas por umalha em part-time, e promessas políticas de aumentos de pensões para a terceira idade. Octáviojá se percebeu outonal, como uma folha de árvore caída numa branda delonga, e agora limita-sea esperar.

    Alice entra numa loja em cuja montra alguns manequins observaram a cena com o arrumador decarros, e agora repreendem-no com o olhar. Também eles, bem vestidos e perfumados, preferemmanter distância física daquele ser, mantendo-se quietos envoltos num silêncio estranho, comose fossem máquinas. Máquinas. O arrumador de carros está farto de máquinas. Passa o dia aestacioná-las, uma por uma, e sente-se tão só quanto a Lua minguante que o esteve a observartoda a noite pelo telhado inexistente das ruínas onde habita. Talvez ela o estivesse a chamar,

    pensa agora enquanto insere as duas últimas moedas ganhas numa máquina que vende alimentos.Um croissant com ambre. A máquina não lhe fala, mas também não evita o toque da sua mãoquando engole a moeda.

    Uma mulher invisível passeia-se num único dia de maio. Não é um dia qualquer, é aquele emque, ao tomar banho, reparou nalgumas gotas de água resvalando rugas na pele. Depois secou-se com uma toalha quente e escolheu um vestido que não usava há muito tempo, talvez desdeo último probo sorriso que desenhou na sua face. Passou na loja onde vende perfumes há algunsanos, aromatizou o corpo com a amostra comercial da sua fragrância preferida, aquela que afaz caminhar em bosques de cores intensas a dez centímetros do chão, e lhe permite abraçar

    continuamente o vento que a tange devagar. Depois soltou o cabelo, despediu-se das colegascom um sorriso longínquo e saiu. Agora passeia-se pela cidade num único dia de maio. Não outroqualquer, mas sim um em que decidiu recuperar um amigo de quem se afastou há muito tempo.Não se consegue lembrar porquê. Ri-se.

    Alice já saiu da loja, já comprou alguns vestidos com um cartão de crédito voraz, já decidiu quevai ainda comprar uma garrafa de uísque para dar ao pai quando o for ver, e que o vai ver duranteapenas cinco minutos para não perder o início duma telenovela que está nos últimos episódios.Será assim o dia, pensa enquanto coloca os vestidos novos, um por um, na bagageira alcatifadado seu veículo. O arrumador de carros ainda lá está, mas não arruma carros nem está sozinho, eAlice estaciona nele o seu olhar, como que perplexa por alguém o conseguir tocar nas mãos. É umamulher que o toca nas mãos, num único dia de maio.

    Do outro lado da cidade, num edifício amarrado por fraturas e instalações serôdias de gás etelevisão por cabo, Octávio ainda se sente outonal, mas lembra-se agora de como gostava dos

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    cheiros do outono, quando era menino, na cidade que sopra. Alice já entrou no carro, já ligoua ignição mas não se locomoveu. Ainda tem os olhos xos no arrumador de carros e na mulherinvisível que o toca. Talvez hoje não leve uma garrafa de uísque ao pai, talvez prolongue a suavisita por mais de cinco minutos, talvez não veja a telenovela. Hoje é um único dia de maio.

    Com a língua lambem a secura dos lábios

    Que há coisas que não lhe interessam. Que às vezes o telefone não toca, mas ele atende namesma e ca a conversar por tempo indeterminado. Que hoje viu o anúncio dela num jornalesquecido numa mesa de café e decidiu ser ele a ligar. Que não é por nada de especial, é só paraconversar também, mas sem ser com ele mesmo. Talvez, não sabe. Esfrega as mãos uma na outrae lambe a secura dos lábios com a língua. Que está calor, diz. A luz encostou-se do lado de lá dascortinas e adormeceu. Ele coça a barba que lhe rareia a face e pede a Sandra que as afaste. Elaafasta-as, justicando aquela política de enclausuramento com um vizinho que a está sempre a

    tentar expulsar do prédio. Que tem um lho e não quer ali negócios daqueles, costuma tugir nasreuniões de condomínio. Lá fora, uma enorme quietude preenche os espaços da cidade que sopra.O homem levanta-se e dirige-se à janela.

    No banco de trás dum automóvel, uma criança conduz um volante de brincar. Tem o desejo de vira conduzir realmente. Um dia quando for grande, pensa. No banco da frente um homem invisívelconduz um volante a sério e fala sozinho. Gostava de voltar a ser criança, pensa, e suspira. Coma língua lambe a secura dos lábios. Não consegue encontrar estacionamento não pago, e por issoinsiste coxeando o veículo entre as ruas que serpenteiam a cidade. A criança tremula os lábiosimitando o ruído rouco de um motor. Que se cale, pede-lhe o homem invisível num tom severo.Que está exausto e não está para a aturar.

    A cidade já foi uma cidade de pessoas, agora é uma cidade de automóveis. Por isso mesmo,Sandra estranha esta ausência de movimento urbano que circunda o edifício. Entende-a como umgesto, talvez até um convite para parar. Acabou de ver, pela janela e do outro lado da rua, duascrianças a passear o cadáver dum velho carrinho de bonecas. Lá dentro levavam alguns litros deleite, alguma fruta exageradamente madura e dois ou três pães que os dias petricaram. Talvezoferecidos pela aparente caridade de alguém. É preciso parar, pensa enquanto bate um cigarropensativo na mesa da cozinha onde sossega uma cerveja. O homem mantém-se colado à janela.

    Lá fora pararam as crianças do carrinho de bebé, entre o único lugar vago numa longa la de

    veículos estacionados, e sentaram-se na beira do passeio como guerreiros derrotados. As árvoresentendem o seu cansaço e estendem-lhes alguma sombra que baila nas pedras brancas do passeio,enquanto os seus dedos nos tentam, inutilmente, rasgar o cartão da embalagem dum litro deleite. Os manequins das lojas sentem-se incomodados com a sua presença, que não condiz coma sua forma de vestir, e mantêm a sua pose sobranceira. Sorriem apenas quando um automóvelabranda para estacionar ali e as obriga a dispersar.

    Há muito tempo, ali naquele sítio, um homem atirou com a mão um beijo a Sandra, antes deentrar num autocarro que nunca mais voltou. O beijou voou até à janela, onde ela está agora aolado dum homem que não conhece, colando-se-lhe na face para sempre. Depois disso manteve

    muitas conversas com um telefone desligado apenas do outro lado. Agora lembra-se disso, e a vozdo homem vai-se perdendo pela casa até apontar para o carro que acaba de estacionar. Que éele, o vizinho que a quer expulsar. Que se chama qualquer coisa Mendes. Que talvez seja melhorfecharem de novo as cortinas. Fecharem-se na burka por um instante.

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    As duas crianças já conduzem o cadavérico e lento carrinho de bonecas, a que vinha no carroconduz o volante de brincar enquanto corre pelo passeio. As primeiras aproximam-se do qualquercoisa Mendes, que talvez ele as possa ajudar a abrir o pacote de leite. Estão sedentas e, com alíngua, lambem os lábios secos. Ele diz que sim num suspiro, que as ajuda, mas que depois têmque se afastar. Elas concordam acenando positivamente com a cabeça e ele responde tambémcom a cabeça, mas negativamente. Que o leite já passou de prazo, que elas não podem beberaquilo. Que esperem, pede com outro suspiro, e faz sinal a Sandra na janela. Pergunta-lhe se elatem água ou leite que possa dispensar.

    Os manequins ainda observam a cena, discordantes. A cidade continua distante, como se tivessemais em que pensar do que em pessoas que lambem os lábios quando estão secos. Sandra mantém-se sozinha na janela dando lentos goles numa garrafa de cerveja. Lambe os lábios. Lá fora, ondeem tempos lhe atiraram um último beijo, dois homens reparam que estão, pela primeira vez emvários dias, a falar com alguém que não eles mesmos.

    Os manequins já se esqueceram das duas crianças do cadavérico carrinho de bonecas, que seapartam lentamente bebendo um litro de leite dentro do prazo. Lambem os lábios para aproveitaras gotas fugidias. Talvez seja apenas caridade aparente, pensa Sandra. Talvez. Fecha a burka.

    Grão a grão

    Dois faróis embrutecidos, agitadamente à deriva na noite de ontem, empurraram uma bicicletapara a valeta da avenida. Depois não pararam. Seguiram em frente coagindo a noite a engoli-losrapidamente, e a cidade que sopra esticou os seus dedos frios ao corpo dorido de Igor, que semanteve ali em sôfrega recuperação, amparado apenas pela solidão da artéria em repouso do dia.Não sabe quanto tempo permaneceu no local, mas sabe que deu um grito rouco e curto durantea queda.

    Quando acorda Helena não se diz grande coisa. Nunca. Irrita-a suavemente, no entanto, o víciode pensar que grão a grão a galinha enche o papo. Foi o que a avó lhe disse uma vez, quando erapequena, enquanto enava os magros dedos de criança nas redes dum galinheiro sobrepovoadopara dar troncos de couve lombarda aos animais. Nunca mais se esqueceu da frase, talvez por nuncater gostado dela, mas agora, desempregada e apenas amparada por uma estranha capacidade deacumular dívidas, chega mesmo a odiá-la. Grão a grão não enche nada, pensa ela enquanto dá o

    primeiro gole no café da manhã. Apenas se prolonga um sofrimento latente. O café, mesmo depoisdo açúcar, é amargo. Lembra-se agora que talvez um grito rouco lhe tenha irrompido o sono, e quenão se levantou para ir à janela averiguar qualquer situação urgente.

    Grão a grão, ponto a ponto, desenha-se uma fotograa de criança tipo passe, na carteira gastadum homem que se senta numa mesa afastada do bar. É assim que se sente Igor quando a olha:um campo abandonado onde abundam pegadas de pessoas que já não estão. Algumas não estãopresentes, outras também não estão vivas, outras não sabe. Não saber é o pior, pensa enquantodá o primeiro gole no café da manhã. Deixou uma bicicleta adormecida lá fora, no passeio, e emcurtos espaços de tempo lança-lhe um olhar de vigia pela janela. O café, mesmo depois do açúcar,

    é amargo. Tem feridas cicatrizadas na face e nas mãos. Sente-se só.

    Há muito tempo que a empregada de mesa percebeu que não é de facto empregada de mesa.É uma espécie de psiquiatra invisível que dá impercetíveis consultas de combate à lassidão dosdias. Às vezes porque se habituou a ouvir, outras vezes porque aprendeu a trocar olhares e sorrisos

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    com pessoas que não conhece. Já percebeu também que é a sua presença que adoça suavementeos cafés da manhã que serve aos clientes, e que são amargos mesmo depois do açúcar. Helenatem consciência disso, Igor também. Não sabem o nome dela, não sabem a idade, não sabem setem lhos ou não. Helena sabe que ela tem emprego e que vive grão a grão. Igor sabe que ela émais do que uma pegada num imenso campo abandonado. Sabe que está sempre presente, queserve os cafés com a mão direita enquanto equilibra a bandeja apenas com a ponta dos dedos damão esquerda, e que é simpática também. Devolve o olhar à fotograa, enquanto pensa nisso, eimagina a criança algures perdida agora num país do leste europeu.

    A cidade que sopra tem esta mania: a de ser igual às outras cidades do mundo, de ter pessoas eedifícios que lembram os outros sítios. A empregada de mesa forçou-se a um intervalo e espreitaIgor a partir dum canto recatado atrás do balcão, enquanto toma o seu próprio café. Não tempsiquiatra, pensa, ela própria se ouve a si mesma, ela própria troca sorrisos e olhares consigomesma. Grão a grão os dias vão passando, mas em vez de encherem o que quer que seja vão éesvaziando a vida. De tempo, de jovialidade, de sentido. Talvez possa arranjar um emprego quelhe ocupe menos tempo, pensa enquanto beija a chávena de café com o batom vermelhos doslábios, mas talvez não consiga. O café é amargo, talvez porque nunca lhe ponha açúcar.

    Grão a grão, página a página, frase a frase, Helena já viu todos os escassos anúncios de emprego nojornal do estabelecimento. Não acreditou em nenhum, não acredita nela, não acredita nos outros.Escreve um bilhete explicando que paga o café mais tarde e deixa-o em cima da mesa. Sai empasso apressado e capta um grito com uma anação similar à que pensa ter ouvido durante o sono.Uma criança surgiu a correr de lugar nenhum, pegou na bicicleta adormecida de Igor e acordou-a.Levou-a também para lugar nenhum. Igor ainda correu atrás, mas depois desistiu quando a estavaquase a alcançar, talvez porque as crianças da cidade que sopra lembram as crianças dos outrossítios, incluindo a sua, aquela que o calca. Logo, a pé, vai demorar mais tempo a percorrer ocaminho de regresso a casa. Pelo menos talvez ninguém o atire à valeta, pensa. Sorri.

    A psiquiatra dos cafés já tomou o seu. Viu Igor correr atrás da bicicleta e lembrou-se que ontem,ao regressar a casa depois do trabalho, quase atropelou um ciclista na estrada e não parou. Nãochegou a perceber quem era, mas não foi por mal. Foi por falta de coragem e de forças. Hoje tudoserá diferente. Sorri.Logo à noite, quando acabar o seu turno de trabalho, vai procurar a chave do automóvel em todosos bolsos das calças e vai encontrá-la num deles, junto com o bilhete de Helena, que vai deixarcair. Depois, quando estiver a conduzir e as luzes dos faróis do seu carro enquadrarem Igor naestrada, vai parar para lhe dar boleia. Ele agradecerá a amabilidade. Durante o percurso dir-lhe-áainda que o café que ela lhe serve todos os dias é muito saboroso. Depois far-se-á silêncio.

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    Contagem crescente

    A partir de hoje Sandra está a morrer. Ela sabe que não é bem a partir de hoje, que ontem eanteontem a sua vida já passava como areia ninha numa ampulheta, mas hoje chegou-lhe àsmãos o resultado dum exame médico. Ficou com a sensação que, se até agora contava o tempoduma forma crescente, a partir de hoje vai contá-lo duma forma decrescente. Está sentada numdos muros da ria que serpenteia a cidade que sopra, e que agora lhe repete ao ouvido três letras

    fantasma: HIV. Os automóveis passam, os autocarros também, as pessoas também, um grupode crianças joga à bola mesmo ali à frente, mas Sandra não ouve nada. Envolve-a um silêncioexcessivo.

    Um homem invisível caminha sem dobrar os braços. O tempo consumiu a lã da camisola que vestena zona dos cotovelos e não os dobra para não revelar os respetivos buracos. Parte da vida é umanão revelação, pensa Sandra, enquanto vê o homem estender-lhe a mão sempre com o braçoesticado. Que quer uma moeda, diz. Sandra sabe que há olhares que são um convite à conversa,outros que não. Apetece-lhe aproveitar um que sente que o será. Que é melhor pedir do queroubar, responde ignorando a mão humilde que se fecha prontamente. Ele senta-se ao lado dela.Que é verão mas tem frio, diz Sandra. Ele aproxima-se.

    Os edifícios encostaram-se às margens do rio para verem o seu reexo matinal. Parecem animaiscansados que ali vêm matar a sede de dias e que talvez fujam se surgir qualquer sinal de perigo.O homem invisível aproxima-se ainda mais de Sandra, cautelosamente para não os espantar. Quetem uma história para lhe contar sobre alguém que pedia assim, com a justicação que era melhorpedir que roubar. Chamavam-lhe o francês.

    O francês costumava pernoitar num banco de jardim, acompanhado por uma garrafa de vinho ealguns cobertores velhos. Prolongava a vida mastigando os restos que os vizinhos que não tinhamcão lhe iam dando, e costumava interromper os transeuntes que ali passavam com uma perguntada qual se adivinhava facilmente o m.

    - É melhor pedir ou roubar? - Pedir, acho. – respondiam-lhe.- Então dê-me uma moeda para eu não ter que o roubar.

    Uma vez, quando o homem invisível ainda era criança e jogava à bola, esta saltou a uma vedaçãoe só parou nos pés do francês, roçando-os insistentemente por estes se encontrarem numa suavedepressão da superfície do jardim. O francês não reagiu, e continuou a ler o jornal como se ostextos lhe chupassem a alma, assim, com os olhos vidrados e sem pestanejar. Nenhum dos miúdos

    teve coragem de ir buscá-la e por isso foi ele, que era o mais velho. Aproximou-me devagar.

    - Senhor?!−

    Deu mais três passos e aumentou a intensidade da voz e da posição conscientemente submissa.

    - Senhor?! Podia-me passar a bola? 

    Menino, cou entalado entre o seu silêncio e o olhar assustado dos seus amigos da rua, que oespreitavam do outro lado da cerca num silêncio ainda maior. Mais quieto, pelo menos. Depoisdecidiu correr e chutar a bola para longe, tirando-a fora do alcance do francês e colocando-a numsítio que, por partir antes, certamente atingiria primeiro se ele quisesse ir também atrás dela.Preparou a corrida em três passos, depois acelerou e pontapeou-a. Depois fugiu como um veadoassustado. 

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    Quando sentiu entre as mãos o troféu, que tinha rebolado até adormecer junto a um castanheiro, tou os amigos esperando o prémio dos seu olhares alegres, mas eles continuavam todos atrásda cerca na mesma posição, tando ainda mais o francês. Um impulso gélido correu-lhe então aespinha dorsal. O homem caíra na turbulência. Estava morto. Tinha morrido de frio durante anoite.

    Sandra já encostou a cabeça no peito duro do homem invisível. Que é verão mas tem frio, repete.Ele tira a camisola esburacada nos cotovelos e, com ela, abraça-lhe o pescoço e os ombros. Jáouve os automóveis que passam, os autocarros também, as pessoas também, até o grupo decrianças que joga à bola ali à frente. Há um remate mais forte e a bola sobrevoa uma cerca,adormecendo encostada aos pés de Sandra. Um miúdo aproxima-se e pede que lha atire. Porfavor, diz. Ela levanta-se e chuta a bola. Os miúdos correm, o tempo também. Talvez seja omomento de começar uma nova contagem crescente.

    Um, dois, trêsSandra, às vezes, não abre os olhos quando acorda. Enquanto não vê as coisas nem sente os cheirosque a rodeiam, é mais fácil prolongar a vida num mundo que não este, e por isso deixa-se estar.Sente-se a caminhar entre impressionistas pinceladas vivas, numa paisagem onde o céu desenhasempre o horizonte, transeuntes se desviam para a deixar passar entre sorrisos sinceros e, àsvezes, percebe que as árvores sussurram histórias a crianças soltas. Caminha a dez centímetrosdo chão e gosta. Hoje foi assim, até agora. Abre uma torneira reumática, que se queixa chiando,e deixa que algumas gotas se acumulem nas palmas das mãos até formarem um pequeno lago.Uma, duas, três...

    Diluídos traços duma tarde despovoada ainda se inscrevem na aguarela noturna da cidade quesopra, e já mulheres se tornam efémeras vedetas neste palco de alheios espectadores, atingidaspor faróis taciturnos de automóveis que coxeiam sinuosos pelas ruas. É verão mas o céu lacrimeja,e cheira à terra molhada na parte velha da cidade. Os automóveis param, elas entram, osautomóveis andam arrancando com a primeira mudança, depois a segunda, depois a terceira, atédesaparecerem na sombra cúmplice duma curva qualquer. É sempre assim o lusco-fusco.

    Na cidade que sopra há uma instituição de solidariedade social para crianças, gerida pela boaigreja católica, que não aceita meninos de etnia cigana. André não sabia muito bem que eracigano, ou melhor, sabia que era cigano mas não sabia o que isso signicava. Até agora, que um

    padre o impediu de entrar numa casa do bairro social amarelo onde habita. Ser cigano é não poderentrar naquela casa, pensa. Não é grave, conclui. Não chegou a contar bem o número de criançasque lá estavam dentro. Uma, duas, três... depois afastou-se.

    Um homem gordo afoga o olhar num copo de uísque velho, num botequim também velho. Dali,através duma janela cansada de viver, enquadra a esquina duma casa onde duas mulheres semostram como manequins. Têm o corpo encostado à parede, como soldados que perderamuma guerra e que tentam manter, ainda assim, um certo orgulho inconsistente. Sentem a almaencostada também, mas não sabem muito bem a quê. Talvez a um precipício. O homem gordosurge à tona do uísque como um peixe fora de água. Falta uma, grita para dentro. Sandra chega.

    Já lá estão todas e ele conta-as com diculdade: uma, duas, três...

    Sandra encosta-se também à parede. Traz os olhos fechados e abre-os, caindo dez centímetros.Cumprimenta as colegas de trabalho com meias palavras que não chegam a descolar da língua.A cidade venta-lhe, segreda-lhe, sopra-lhe. Ela não sente, não ouve. Bufa. Transeuntes dispersos

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    mudam de margem para as evitar. Depois olham-nas de soslaio, normalmente de desejo mascarado.Depois cochicham qualquer coisa e continuam acelerando o passo. Há risinhos que os orbitamcomo insetos sedentos. Sandra quer fechar os olhos, mas há um par de faróis que a alumia. Vaiser vedeta por uns instantes. Começa a contar o tempo, talvez assim passe mais depressa: umsegundo, dois segundos, três segundos.

    O homem gordo vê Sandra a entrar no automóvel. Descomprime o tórax como se fosse um balãoquase a rebentar. Volta a mergulhar no uísque lambendo os lábios e os pelos do bigode. Depoissente uma criança que entra no bar e empoleira-se no balcão. Quero um pão, diz ela. O homemgordo aponta a uma mulher de avental que está sentada à janela e fuma um cigarro pensativo.Que dê lá um pão ao cigano, diz-lhe. Depois vira-se para a criança e ordena-lhe que se vá embora.Os insetos sedentos que dão risinhos entraram no tasco e agora orbitam-no a ele. Conta uma piadaqualquer sobre o cigano e um ex-apresentador de concursos na televisão. Que o puto estava bemera para ele. Um, dois, três. Conta. Era só uma piada. Mergulha o nariz no uísque.

    Sandra já foi vedeta, já volta sozinha de lugar nenhum. Traz com ela algum dinheiro no bolso,uma camisa muito usada e uma lágrima no canto do olho. André, o menino cigano, passa por elae para tando-a. Pergunta-lhe se ela quer um bocado do pão que ele devora devagar. Que não,

    responde Sandra esboçando um sorriso, mas que agradece. E tu, queres que eu seja uma árvoree te conte uma história? Pergunta. Que sim. A criança empoleira-se de novo, não num balcão masnum muro da ria, não por um pão mas por uma companhia. Sandra senta-se também. Então vaicomeçar: um, dois, três.

    Nariz pica na lua

    Mais um dia que é já quase cadáver, que se consome a si mesmo num último sopro de vida. Helenacolecionou diversos ímanes de frigoríco que vinham em caixas de cereais. Todos representamum boneco qualquer diferente, e agora sorriem-lhe enquanto penduram recados escritos comuma esferográca apressada, contas domésticas no limite da data de pagamento, e um ou doisguias de tratamento impressos no consultório dum médico psiquiatra. Ela acha-os ignóbeis pora receberem assim, com um sorriso plasticado sempre que chega a horas tardias e os acordaacendendo a luz da cozinha.Octávio bate três vezes, com uma tampa de caneta roída por uns dentes hesitantes, nummicrofone desligado. Prepara-se para o ligar e dizer qualquer coisa, mas tem dúvidas que o devarealmente fazer. Tem dúvidas que alguém o ouça àquela hora tardia num qualquer aparelho de

    rádio, tem dúvidas que a sua voz acaricie alguém. Tem até dúvidas que, fora daquelas quatroparedes insonorizadas por placas de cortiça, o mundo ainda exista. A música que utua nos seusauscultadores está prestes a acabar. Tem cinco segundos para decidir se fala ou não.

    Roendo palavras tristes, um homem estendeu a Helena a mão lá em baixo, na entrada do prédio,pedindo qualquer coisa que se pudesse comer. Ela repeliu-o da mesma forma que se enxotaum rato, com um gesto brusco feito de improviso. Depois insistiu em voz alta que fosse pedirpara outro lado. Só agora, que desabafa o dia a um cigarro sôfrego, percebe que também elafaz o mesmo oito horas por dia ao balcão dum centro comercial, enquanto trabalha vendendocafés e sorrisos ngidos a clientes vãos: pede qualquer coisa que se possa comer. Ri-se. Dá mais

    uma passa, desta vez longa, e apaga a beata com o pé. Está lua cheia. Lembra-se que o pai lhechamava Nariz Pica na Lua

    Helena acredita que o lado escondido da lua é exatamente igual ao lado visível, e que ela nãoo mostra só para não nos dececionar. O pai dela fumava cachimbo todas as noites de lua cheia,

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    sentado numa cadeira que ocupava quase toda a varanda daquele apartamento, e costumavadizer-lhe isso. Quando Octávio o conheceu disse-lhe que, na sua opinião, se a lua tivesse de factodois lados iguais não seria possível saber qual deles se estava a ver. O pai de Helena sorriu-lhe eperguntou-lhe se gostava de vinho, às refeições, claro. Que sim. No dia seguinte morreu.

    Rói as unhas. Todas as noites, para Helena, apagar a luz do quarto é esconder uma derrota. Depoisdespe-se enquanto, pela janela cansada do quarto, a espreita a penumbra inquietante da cidade

    que sopra. Deita-se sempre com os dentes ainda por lavar, um banho por tomar, um rádio velhopor desligar, uma alma por serenar. São cinco segundos apenas, os que se seguem, que servempara sonhar acordada, até adormecer embalada pelo vento que desliza nas frinchas da janela elhe desmaia na face. É um desmaio, o sono bom que a parasita. Rói as unhas e cospe-as para umaalcatifa marcada com queimaduras de cigarro.

    A mão morta de Octávio já rodeia um copo deserto de vinho. Bebe muito, às vezes, porque precisaganhar coragem para falar, principalmente quando acha que ninguém o está ouvir. A outra mãoainda segura uma tampa de caneta roída. A música já acabou e o rádio está em silêncio há algumtempo. Lembra-se que um dia levou Helena a casa de táxi, ela tropeçou nos degraus da entrada

    do prédio e abraçou-se a ele. Na queda, os lábios de ambos aproximaram-se e beijaram-se. Depoisela disse-lhe que o pai estava na varanda a ver a lua, que era melhor deixá-lo mais algum temposozinho. No dia seguinte ele morreu e ela deve ter chorado. Lembra-se que ela lhe telefonoudurante vários dias e ele nunca atendeu, talvez por ter um lado escondido que não suportapreocupar-se com os outros.

    Cinco segundos apenas para falar, cinco segundos apenas para ouvir. Helena encosta as pálpebrasuma na outra, com a mesma brandura dum pardal pousando num ramo de árvore. A voz deOctávio acorda novamente o rádio e desculpa o silêncio, que não falar nem sempre é sinónimode que não se quer falar, apenas de que não se é capaz. Pede desculpa à Nariz Pica na Lua. Sóisso: desculpa. Helena adormece. Talvez os ímanes do frigoríco façam bem em sorrir, talvez o

    emprego no centro comercial não seja assim tão mau.

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    Efeito borboleta

    O parque de estacionamento do centro comercial abraça uma colmeia de abelhas. Inúmerosinsetos pululam entre o cheiro a gasolina dos automóveis até pousarem num, onde se demoramalgum tempo arrumando sacos de compras em esfaimadas bagageiras, para depois partirem numvoo sussurrante em direção a lugares incertos. É Helena quem os vê assim, enquanto contorna aangústia da manhã fumando um quieto cigarro dentro do carro: abelhas onde há pessoas, ores

    onde há automóveis, e uma enorme colmeia onde se ergue um altivo centro comercial. A colmeiadivide-se em pequenos favos, onde o voo das abelhas forma uma nuvem excitada. Depois, dessanuvem, alguns insetos pousam efémeros nos favos para ali deixarem o produto do seu trabalho.Em frente ao automóvel de Helena, um vigilante ta-a como se aquela pausa o incomodasse. Nãoé normal parar ali, pensa ele. É uma abelha soldado, pensa Helena. Dá mais uma passa.

    O dia é uma constante insistência: o telemóvel de Igor toca insistentemente no porta-luvas do seuautomóvel, o Sol bate insistentemente no para-brisas como se o quisesse incendiar, o ponteiro dossegundos gira insistentemente no relógio de pulso que traz no braço. Atrás de si, mesmo encostadoà traseira do veículo, um outro carro segue insistentemente como se o quisesse empurrar. Igorenquadra-o no espelho reetor. É uma homem magro, cujos olhos inchados e face empedernidacontrasta com um cabelo penteado até à exaustão e um fato que parece querer engoli-lo. Pareceuma formiga no carreiro, pensa Igor. Depois suspira, depois abranda um pouco, depois ri-se masnão é um riso feliz. É um riso apreensivo e nervoso. Vai atrasado para o emprego. Provavelmenteo telefone tocou por causa disso.

    Hoje Helena acordou em estado larva, assim como que ausente da cidade que sopra. Prolongoualguns bocejos matinais enrolando-os nos lençóis macios, como se de um casulo se tratasse, atéo Sol penetrar devagarinho pelos buracos da persiana e a impregnar de calor. Depois levantou-se e não tomou banho, mas manteve-se debaixo do chuveiro aberto algum tempo, molhando-se pouco a pouco por uma morna e serena quietude. Contou repetidamente os dedos dos pés.

    Esperou ver desaparecer o verniz vermelho das unhas que, no dia anterior, exibira dentro de unsdesconfortáveis sapatos de salto alto durante oito horas seguidas numa loja de perfumes. Depoisvoltou ao quarto e não vestiu o uniforme de trabalho, optando por um vestido colorido, há algumtempo esquecido num cabide do armário. Sentiu-se borboleta, por uma vez, e esvoaçou peloscampos de cimento e betão armado da cidade que sopra até pousar ali, no meio do parque deestacionamento dum centro comercial.

    Igor também demorou mais do que habitualmente a sair de casa. Quando acordou abriu ascortinas apenas o suciente para poder espreitar para o formigueiro que se atravessara na rua,como se precisasse de ganhar coragem para o integrar, e deixou-se car ali demasiado tempo.

    Para além das formigas agitadas, a cidade que sopra abrigava mais insetos. Viu algumas moscaslutarem pela moeda do condutor dum automóvel que todas diziam ter ajudado a estacionar, atéo condutor saltar como um gafanhoto para dentro dum edifício de escritórios; viu entrar na igrejada frente alguns escorpiões com o ferrão dissimulado, como se guardassem a toxicidade quetransportam para outras oportunidades; viu pulgas parasitarem as ruas com promessas de créditofácil, através de números de telefone fáceis de decorar e cartões miraculosos. Depois levantoua face e acompanhou o voo duma borboleta que rasgava o céu, como se um pincel rasgasse decor uma tela cinzenta, até desaparecer num esquivo sopro da cidade. Saiu de casa num suspiro etornou-se formiga.A abelha soldado que ta Helena agita-se. Mostra o ferrão e voa num salto aproximando-se dapresa. Bate no vidro três vezes e exibe um zumbido agressivo. Que aquilo não é sítio para estar adormir, que se ela não vai às compras dê o lugar a outro, que se vai que se despache. Depois abreas asas e levanta ainda mais a voz. Que o parque está cheio e há quem queira estacionar paraconsumir. Que então saia da frente, diz Helena ligando a ignição. Depois não chega a arrancar. Umoutro carro para mesmo em frente bloqueando a passagem e de lá de dentro sai um homem com

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    ar estafado. É Igor, que pede desculpa à abelha soldado pelo atraso, que ela se pode ir emboraque ele já está ali para o substituir, que se atrasou no trânsito intenso e não podia atender otelemóvel. O vigilante afasta-se, não sem antes denunciar que Helena está ali há demasiadotempo sem sair do automóvel. Igor espreita e Helena sorri. Ele retribui o sorriso. Ela é a borboletaque ele viu de manhã a pintar o céu da cidade, pensa. Que se deixe estar se quiser, diz depoiscomo se tivesse engolido primeiro toda a calma do mundo, mas Helena pede para a deixar passar.Que se quer ir embora.

    Octávio já não é formiga. Durante oito horas vai ser abelha soldado no parque que cerca a colmeiasedenta, mas agora, em vez de vigiar e expulsar do espaço insetos ameaçadores, sobrevoa-ocom a mente procurando Helena, seja numa cor, num cheiro, num movimento qualquer. Não avai encontrar, que ela já esvoaça noutros jardins de cimento, mas vai sentir todo o dia o efeitoborboleta que ela criou.

    In[sónia]Ontem à noite, quando chegou a casa de Igor, Sónia começou por fumar um cigarro na varanda.Estava mesmo a precisar, disse-lhe. Depois tirou da carteira um maço de SG gigante e uma caixade fósforos de cozinha, encostou-se a uma parede que tem uma gaiola onde um canário vaimorrendo devagar e começou a fumar. Devagarinho, tugiu ainda. Igor deixou-a estar. Limitou-se atirar dois copos de pé alto dum armário da cozinha, fazendo o mínimo barulho possível, para servirdois portos que ainda esperaram um quarto de hora para serem bebidos.

    Sónia reparou que o estendal da roupa tinha, entre algumas cuecas mal lavadas e meias ainda malcheirosas, uma bandeira portuguesa. Depois perguntou, num exercício de pura retórica, porque éque a bandeira estava ali. Igor respondeu, ngindo não perceber a eloquência, que se tratava deum qualquer campeonato de futebol num país estrangeiro. Aproveitou o momento para meter emcena os portos e brindar à vitória de algo que Sónia não chegou a perceber o que era. Finalmenteapagaram-se as luzes, apagou-se a cidade, apagou-se o mundo e foram para a cama.

    Poucos segundos depois de se levantar perguntou se não havia chave na porta da casa de banho.Igor já esperava que ela reparasse nisso, mas não que ela falasse nisso. Tem esta mania irritante deesconder a chave da porta daquele compartimento quando recebe alguém, e herdou-a do seu pai,que nunca gostou de ver os seus convidados demorarem muito tempo nas instalações sanitárias,e até tinha um papel colado numa das paredes com a frase: “puxar a água”. É verdade que na

    Rússia a água canalizada era coisa rara, e por isso nem por favor pedia, e desta forma, mantendoo utilizador sob pressão, impedia-o de deixar pingos de urina no tampão da sanita, de largar pelospúbicos no chão, e até o obrigava a limpar algum resto de cloaca não levada pela água.

    O seu pai tinha atenuantes. Fora barbeiro toda a vida e desenvolvera um estigma contra este tipode sujidade, desperdícios humanos, por causa dos inúmeros cabelos que varreu junto à cadeiraonde ganhara toda a vida o seu pão de cada dia. Igor não tem atenuante nenhum, já que nãopassa de um assassino contratado por uma das chamadas máas do leste, mas presta-lhe assimuma espécie de homenagem. 

    - Não está aí a chave?! Então não sei... - grita-lhe da cama.

    Ouve uma pancada. Provavelmente Sónia está com a perna esticada empurrando, com o pé, aporta. Não quer ser surpreendida sentada na sanita. Ontem chegou por volta das onze da noite,tocou timidamente a campainha e afastou-se cerca de dois metros dele, antes de ir fumar o

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    cigarro para a varanda e reparar, ironicamente, que a bandeira portuguesa ondulava ao ventoentre cuecas e meias sujas. Igor, numa gaveta cheia de preservativos, guardara também uma armaque conseguira desviar na altura em que, integrado no exército vermelho, invadira o Afeganistão.Velhos tempos, diz por vezes num diálogo surdo com uma garrafa de vodka.

    - A Sónia está de folga hoje e a agência mandou-me a mim... - desculpou-se ela sem conança.  

    Foi a primeira vez que passou uma noite com uma prostituta, e surpreendeu-o a forma comoela adormeceu sobre o seu corpo: abraçada, não como uma amante ou prostituta, mas como umlho abraça a mãe. Como se nunca na vida tivesse sido amada. Fingiu e deixou-a estar, que secalhar também ele precisava daquele abraço. Não dormiu toda a noite, cando a ver num canalda televisão, com o som no mínimo, um lme em que Sylvester Stallone ajuda os americanos alibertar o Afeganistão. Ainda soltou uma gargalhada seca.Quanto à Sónia, terá de a matar outro dia.

    É quase tudo tão pouco

    Igor acordou hoje amante deposto. Não apenas das pessoas que o tangem descaídas na rua, mastambém das coisas: dos edifícios que alcatifam o tempo e se vão desgastando lentamente, dasrevistas e jornais que lhe gritam penduradas nos quiosques, dos automóveis que calcorreiam oesgoto onde todos somos despojos. É o seu primeiro dia desempregado em muitos anos e, aocontrário do que sempre pensou vir a sentir quando isto lhe acontecesse, não está deprimidonem com medo dos dias, nem sequer comprou um diário para ver os anúncios classicados. Pelocontrário, está feliz, sente-se posto em liberdade, embora não seja uma felicidade comum estaque sente. É uma felicidade apática, como aquela que se sente queimar na ponta dum charro deerva: está a ver-lhe o m próximo, mas mesmo assim aproveita ao máximo cada dose de fumo.

    É quase tudo tão pouco. Igor assoa-se de novo. É a primeira vez em muitos dias que olha para olenço sem detetar sinais de lágrimas.

    Natasha repara, ao escrever mais uma página do seu pequeno diário, que algumas rugas povoama pele das suas mãos. Sente que esta página não é apenas mais uma, daquelas que memorizamestados de espírito vãos como quando se vai comprar pão, apanhar um autocarro ou outratrivialidade qualquer. Esta página quer-se como que um curativo, algo que consiga tapar uma

    ferida que não quer parar de sangrar, ainda que apenas pingue. Está à espera que o silêncio aconcilie com a envolvente, para que a esferográca consiga dizer o que quer, mas ele, o silêncio,continua inerte, provavelmente sentado numa outra mesa da esplanada onde ela toma café.Natasha desiste. Desenha apenas uma boneca numa página par. Com o café pediu um copo de águaque ainda não veio.

    O verão sangrou a cidade que sopra, que, cedendo ao hostil calor da tarde, não é mais do queum animal respirando sôfrego sobre alcatrão derretido. Igor, amante deposto de Natasha, suano espelho retrovisor dum automóvel que parece não ser limpo há anos, e que, para ele, parecetambém estar há anos à espera que um semáforo vermelho se apague para dar lugar ao verde.

    Ainda tenta perceber que aquilo que julgava ser importante não o é de facto, e que talvez aquiloque julgava menos importante o possa ser de facto. Vai ameaçando arrancar o automóvel beijandocom o pé o acelerador. Depois limpa o suor do pescoço com um lenço de papel. Tem sede.

    É mais um minuto, mais uma hora, mais um dia. Um romeno toca um violino para a sombra solitária

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    dum edifício triste da avenida central, esperando mais uma moeda, mais um fôlego de vida, maisuma esperança, mas as pessoas não passam e a esperança também não. Senta-se no passeiocomo um guerreiro depois da guerra. O som, mais ou menos harmonioso, do seu instrumento ésubstituído pela ânsia do motor do automóvel de Igor. Limpa o suor com um lenço sujo de ranho ede terra. Sente-se um predador caçando numa terra estéril. Tem sede.

    Que não se servem ali copos de água, que aquilo é um negócio e não uma casa de caridade, que sequer água pode comprar uma garrafa. Natasha, que também deixou de ouvir o violino cantar, ouveagora a voz exaltada do empregado do bar sem sequer olhar para ele. Continua tando a bonecaque está acabar de desenhar como se fosse a sua melhor amiga, e não sabe ainda se o último traçoa fazer, e que vai atribuir existência à boca, há de formar um sorriso triste ou um sorriso feliz. Queaquilo nem sequer é sítio para fazer desenhos, continua o empregado. Que está bem, diz Natasha,que já vai embora. Coloca várias moedas pequeninas sobre a mesa para não ter que esperar pelotroco, arruma a carteira e levanta-se.

    O romeno já se levantou, já tornou a colocar o violino ao ombro, já tornou a conseguir sorrir e apreparar-se para mais um ato de caça. Primeiro, tal como um animal faz quando se aproxima damargem dum rio, tem de beber. Toca algumas notas separadas no tempo pela hesitação e pelo

    cansaço, depois pede um copo de água ao mesmo homem que o negou a Natasha. Ele resmungatugindo mas depois vai lá dentro e traz uma caneca transbordando o líquido precioso. Natasha,que observa a cena a apenas alguns metros, distraída no meio duma passadeira para peões, nãose zanga por dentro como ela própria pensava que aconteceria. Acha que todos temos feridaspor curar, algumas doem mais, outras menos; algumas doem durante mais tempo, outras menos;algumas sangram mais, outras menos. Dar um copo de água a alguém quando se costuma recusá-loa outros talvez seja uma maneira de, naquele momento, sarar uma ferida. Desinfetá-la, insiste oseu pensamento.

    Igor pensa o mesmo sobre as feridas que unem os transeuntes da cidade que sopra: todos as têm,

    todos as tentam curar. Igor tenta curar uma bem aberta, às vezes afogando-a em copos de bagaçoservidos em bares duvidosos, às vezes em drogas leves, às vezes no corpo duma prostituta quetambém sangra. Às vezes tenta, outras vezes não. E é só isso: as nossas feridas fazem-nos duvidarde tudo, até de nós mesmos. Depois precisamos de âncoras para não nos sentirmos à deriva. É essaa diferença entre o que é importante e o que não é. Quando enfraquecemos somos todos comoa água: transparentes. Igor guarda este pensamento para o escrever logo à noite num bloco deapontamentos. Tem que ser numa página ímpar, pensa. Ainda tem sede. O sinal muda para verde.

    A cidade que sopra parece recuperar. O animal que respira sôfrego no alcatrão derretido tentalevantar-se, ainda que com alguma diculdade. Talvez porque algumas beligerantes nuvens

    tenham vindo combater o Sol, talvez apenas porque os seus raros sopros de vida parecem crescer.O violinista acelera a música, transeuntes vão saindo das portas melancólicas dos edifícios quesombreiam as ruas, Natasha assusta-se com a buzina dum automóvel a que, por ainda estar napassadeira, está a impedir a passagem. É Igor que está lá dentro e que lhe diz adeus. Natashaaproxima-se, pede-lhe para irem beber um copo de água juntos e entra no automóvel. Igor tambémtem sede, diz. Quando, daqui a pouco, estiverem os dois sentados à mesa do café, vão dizer poucoum ao outro sobre o passado que os une, mas vão estar felizes por ainda poderem estar tão perto.Natasha abrirá o diário e desenhará um sorriso feliz na sua boneca. lágrimas. Apenas uma bola deranho verde. Percorreu a pé alguns quilómetros para encontrar uma cabine telefónica e instalou-se lá dentro embrulhado num cobertor de silêncio. Ninguém lhe vai telefonar, mas se o zesseera ali que podia atender. A cabine é um oásis num deserto onde, à hora de ponta, se torna difícil

    respirar. Natasha prometeu uma vez telefonar-lhe quando tudo acabasse, pensa. Como Natasha eo emprego acabaram, tudo acabou, conclui. Depois o vidro da cabine congela-lhe os olhos. Tudoacabou

    É quase tudo tão pouco. Helena contou os degraus das escadas que ligam o seu quarto andar a

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    esta apneia: cinquenta e seis; contou as árvores que sufocam alinhadas na extensão da avenidaaté ao emprego onde, todos os dias, morre mais um pouco: cinquenta e duas; contou o númerode manequins exibicionistas armando ciladas em montras pronto-a-vestir: cinquenta e quatro;contou os carros, contou os passos, contou as nuvens, contou os pedintes. Contou, contou, contou.Perdeu-lhe a conta no ar sisudo do homem a que chama patrão. Um. Apenas um, o patrão. Agoravai contar os segundos até à hora de sair, os cafés que serve, os olhares que a invadem, as gotasque sua.

    Hoje acordou amante deposto. Ela, Natasha, deixou para trás uma chávena de café mal bebida,um rádio ruidoso continuamente à procura de um qualquer som harmonioso, e um telefone forado descanso desde sempre. Deixou-lhe algum dinheiro para tabaco em cima da mesa da cozinha,propositadamente desarrumado para parecer uma esmola, e saiu num silêncio nefasto que ocupoulentamente toda a casa, até depois se acumular atrás da porta com o cotão. Igor desligou, e rodoucento e oitenta graus na cama, de maneira a car com a barriga virada para baixo e a cabeçamergulhada na memória do seu corpo nu, a deambular pelo quarto à procura de peças de roupapara vestir. Ele conhece-o bem, o corpo, mas há muito tempo que não lhe toca, ou por causa daclássica enxaqueca, ou por causa do clássico período, ou até por sua causa. Normalmente é atépor causa dele, costuma dizer ela sem aprofundar mais a acusação.

    É quase tudo tão pouco. De repente a cidade deixou de soprar. As cinzas que chuviscam noscinzeiros cansados, as íris que vacilam em órbitas incertas de olhares vagos, os edifícios quecircundam Igor como se dele esperassem uma reação a nenhuma ação, são apenas uma prolongadaapneia. Leu em qualquer sítio na Internet que respirar não é decisivo para viver. Decisivo é chegarao momento em que se percebe que aquilo que se julgava importante não o é de facto, e quetalvez aquilo que se julgava menos importante o seja de facto. De facto, repete. Natasha talvezregresse agora, passando pela cabine telefónica antes de entrar em casa. Talvez ela ligue já quetudo acabou. Talvez. De facto.

    Igor contou o número de pessoas que, durante todo o dia, tangeram a cabine telefónica: duzentas

    e quarenta; contou os momentos em que lhe apeteceu estar com ela e abraçá-la: noventa e cinco;contou o número de peões que passaram no vermelho na passadeira em frente: trinta e três.Apetece-lhe abraçar Natasha mais vezes do que peões atravessam no vermelho, mas não tantoquantas as pessoas que o tangem. Ela passa agora, vendo-o embrulhado no manto de silêncio semo destapar. Helena passa também, que terminou a sua contagem decrescente em mais um diatépido. Que venha com ela, diz. Que lhe paga um café. Igor não tem dinheiro, diz. Que não fazmal: é quase tudo tão pouco.

    Hoje acordou amante deposto, e impressionou-o a dádiva dos cheiros que habitam os corpos dacidade. Cheirou as mãos do padeiro que termina a faina quando a cidade dá os primeiros bocejosmatinais, cheirou os sovacos da empregada do café da frente quando ela se debruçou na sua

    mesa para pousar a chávena, cheirou a noite de intenso sexo dos vizinhos que desceram consigono elevador, cheirou a ira contida do agente fúnebre que estaciona o carro negro em frente àsua varanda. Cheirou tudo o que não estava habituado a cheirar, e agora persegue o fumo damarijuana que devora em profundas porções de prazer, tentando não perder nem o seu cheironem a sua leviana toxicidade. É quase tudo tão pouco.

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    Água

    Natasha repara, ao escrever mais uma página do seu pequeno diário, que algumas rugas povoama pele das suas mãos. Sente que esta página não é apenas mais uma, daquelas que memorizamestados de espírito vãos como quando se vai comprar pão, apanhar um autocarro ou outratrivialidade qualquer. Esta página quer-se como que um curativo, algo que consiga tapar umaferida que não quer parar de sangrar, ainda que apenas pingue. Está à espera que o silêncio a

    concilie com a envolvente, para que a esferográca consiga dizer o que quer, mas ele, o silêncio,continua inerte, provavelmente sentado numa outra mesa da esplanada onde ela toma café.Natasha desiste. Desenha apenas uma boneca numa página par. Com o café pediu um copo de águaque ainda não veio.

    O verão sangrou a cidade que sopra que, cedendo ao hostil calor da tarde, não é mais do queum animal respirando sôfrego sobre alcatrão derretido. Igor, amante deposto de Natasha, suano espelho retrovisor dum automóvel que parece não ser limpo há anos, e que, para ele, parecetambém estar há anos à espera que um semáforo vermelho se apague para dar lugar ao verde.Ainda tenta perceber que aquilo que julgava ser importante não o é de facto, e que talvez aquiloque julgava menos importante o possa ser de facto. Vai ameaçando arrancar o automóvel beijandocom o pé o acelerador. Depois limpa o suor do pescoço com um lenço de papel. Tem sede.

    É mais um minuto, mais uma hora, mais um dia. Um romeno toca um violino para a sombra solitáriadum edifício triste da avenida central, esperando mais uma moeda, mais um fôlego de vida, maisuma esperança, mas as pessoas não passam e a desesperança também não. Senta-se no passeiocomo um guerreiro depois da guerra. O som, mais ou menos harmonioso, do seu instrumento ésubstituído pela ânsia do motor do automóvel de Igor. Limpa o suor com um lenço sujo de ranho ede terra. Sente-se um predador caçando numa terra estéril. Tem sede.

    Que não se servem ali copos de água, que aquilo é um negócio e não uma casa de caridade, que se

    quer água pode comprar uma garrafa. Natasha, que também deixou de ouvir o violino cantar, ouveagora a voz exaltada do empregado do bar sem sequer olhar para ele. Continua tando a bonecaque está acabar de desenhar como se fosse a sua melhor amiga, e não sabe ainda se o último traçoa fazer, e que vai atribuir existência à boca, há de formar um sorriso triste ou um sorriso feliz. Queaquilo nem sequer é sítio para fazer desenhos, continua o empregado. Que está bem, diz Natasha,que já vai embora. Coloca várias moedas pequeninas sobre a mesa para não ter que esperar pelotroco, arruma a carteira e levanta-se.

    O romeno já se levantou também. Já tornou a colocar o violino ao ombro, já tornou a conseguir sorrire a preparar-se para mais um ato de caça. Primeiro, tal como um animal faz quando se aproxima

    da margem dum rio, tem de beber. Toca algumas notas separadas no tempo pela hesitação e pelocansaço, depois pede um copo de água ao mesmo homem que o negou a Natasha. Ele resmungatugindo mas depois vai lá dentro e traz uma caneca transbordando o líquido precioso. Natasha,que observa a cena a apenas alguns metros, distraída no meio duma passadeira para peões, nãose zanga por dentro como ela própria pensava que aconteceria. Acha que todos temos feridaspor curar. Algumas doem mais, outras menos; algumas doem durante mais tempo, outras menos;algumas sangram mais, outras menos. Dar um copo de água a alguém quando se costuma recusá-loa outros talvez seja uma maneira de, naquele momento, sarar uma ferida. Desinfetá-la, insiste oseu pensamento.

    Igor pensa o mesmo sobre as feridas que unem os transeuntes da cidade que sopra: todos as têm,todos as tentam curar. Igor tenta curar uma bem aberta, às vezes afogando-a em copos de bagaçoservidos em bares duvidosos, às vezes em drogas leves, às vezes no corpo duma prostituta quetambém sangra. Às vezes tenta, outras vezes não. E é só isso: as nossas feridas fazem-nos duvidarde tudo, até de nós mesmos. Depois precisamos de âncoras para não nos sentirmos à deriva. É essa

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    a diferença entre o que é importante e o que não é. Quando enfraquecemos somos todos comoa água: transparentes. Igor guarda este pensamento para o escrever logo à noite num bloco deapontamentos. Tem que ser numa página ímpar, pensa. Ainda tem sede. O sinal muda para verde.

    A cidade que sopra parece recuperar. O animal que respira sôfrego no alcatrão derretido tentalevantar-se, ainda que com alguma diculdade. Talvez porque algumas beligerantes nuvenstenham vindo combater o Sol, talvez apenas porque os seus raros sopros de vida parecem crescer.O violinista acelera a música, transeuntes vão saindo das portas melancólicas dos edifícios quesombreiam as ruas, Natasha assusta-se com a buzina dum automóvel a que, por ainda estar napassadeira, está a impedir a passagem. É Igor que está lá dentro e que lhe diz adeus. Natashaaproxima-se, pede-lhe para irem beber um copo de água juntos e entra no automóvel. Igor tambémtem sede, diz. Quando, daqui a pouco, estiverem os dois sentados à mesa do café, vão dizer poucoum ao outro sobre o passado que os une, mas vão estar felizes por ainda poderem estar tão perto.Natasha abrirá o diário e desenhará um sorriso feliz na sua boneca.

    Não chores que ainda cá andas

    Não chores que ainda cá andas. Igor mergulhou a noite passada numa maré vazante de emoções,até o Sol acordar incrédulo com a sua insónia. Náufrago hesitante, agarrou-se a espaços a estepensamento como a uma boia salva-vidas: não chores que ainda cá andas. Agora engole, empequenas porções, um iogurte magro natural, como um animal procurando em si mesmo parcossinais de vida que lhe permitam continuar a viver. O espelho da casa banho acaba de lhe dizerque acabou de ganhar os seus primeiros cabelos brancos. Talvez seja boa ideia vestir-se e sair,talvez deva manter algum movimento. No espelho do elevador que desce três longos andares nãose reconhece: já não se penteia há vários dias, já não faz a barba há vários dias, já não se lavahá vários dias. Igor é um objeto esquecido de si mesmo, e até se lembra de como gostava de setratar quando Natasha percorria estradas do mesmo mundo que ele.

    No limite. A água que Helena acabou de beber ao balcão duma pastelaria venezuelana, enquantocomprava mais um maço de bilhetes de autocarro e outro de tabaco, soube-lhe a detergente. Noentanto bebeu-a dum trago, antes de iniciar uma corrida em passo apressado para a paragem ondevai esperar o número 13. É sempre assim que Helena se sente: no limite. Bebe água no limite,apanha o autocarro no limite, trabalha no limite. O limite é uma ninha corda bamba, e não sepode tender para nenhum dos seus lados, ou cai-se. Cai-se, repete instintivamente enquanto

    apressa o passo.

    Natasha é uma ausência constante na vida de Igor, mas esse facto não passa duma enormecoincidência. Ainda agora, que ele saiu de casa ensonado, ela não lhe disse adeus. Também, pelomenos para já, ainda não ajeitou a carteira caindo a tiracolo, não limpou o suor do pescoço comum lenço de papel daqueles que cheiram a um fruto qualquer, nem sequer lhe enviou um sms adesejar um dia feliz. Igor está a explicar ao fundo vazio da chávena de café que isso não passaduma enorme coincidência. Olha, diz-lhe ele, ainda agora mesmo ela não passou por aqui. Achaque a chávena de café o está a ouvir com muita atenção. Só por isso é que se mantém em silêncio.

    A cidade que sopra tornou-se também ausente. É uma espécie de gaiola com muitos animais dosquais já não trata há muito tempo, nem sequer vai lá espreitar para ver se estão todos bem.Talvez algumas vezes lhes atire comida e encha o bebedouro de água que sabe a detergente, masé apenas por obrigação. Já não gosta deles e abandonou-os. Se espreitasse, vericaria que algunsestão bem pior do que outros. É como se fosse uma gaiola de ratos cobaia duma experiência que

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    deixou de ter interesse.

    Helena não sabe dizer o que pensa, mas sente-se um dos ratos cobaia em pior estado. Os diasvividos no limite consumiram-lhe as palavras lentamente. Tem a sensação que, se abrisse a boca,dela sairia apenas um silêncio incómodo. O silêncio, quando se mantém a boca fechada, não étão incómodo, e por isso deixa-se ir ao sabor dos movimentos bruscos do autocarro envolvidaem si mesma. Sente-se uma espécie de jovem sereia apanhada pela exageradamente pequenamalhagem duma rede de pesca. É isso que Helena é, conclui: uma sereia presa, não um rato. Presapela hipoteca duma casa, por um emprego que nunca o chegou a ser, por dias desperdiçados emfrente a um aparelho de televisão, por abraços frios e automáticos dum homem com quem nãovive há muitos dias, mas é uma sereia. Não um rato. Helena também já se esqueceu de si, é umobjeto de que já não trata há muito tempo, pensa.

    No limite. É no limite que Igor se insinua forte, que olha para a ponta dos sapatos enquantoestes o conduzem por ruas apertadas, que se encosta a uma pessoa na la do autocarro e senteoutra, atrás de si, a encostar-se também. Não lhes vê a face, não lhes ouve a voz, mas sabe queambas estão tristes. É no limite que entra no autocarro e penetra naquele museu da ausência. Oautocarro chia e arranca, os passageiros tropeçam em silêncio tentando, entre si, nunca cruzarem

    olhares. Alguns equilibram-se no limite, outros já ganharam posição e, segurando-se bem, tentamnão a perder endurecendo os músculos. São como árvores. Dali na saem, dali não saem, dali nãosaem. Estão bem, mas também estão prisioneiros dum lugar. Igor, sempre acompanhado pelaausência de Natasha, consegue agarrar-se às costas duma cadeira. Já é uma árvore também. Dalinão sai, dali não sai, dali não sai. Helena tropeça e socorre-se dum dos seus ramos para não cair,que o seu limite é uma ninha corda bamba. Helena não pode cair e Igor segura-a. No limite. Oseu ramo é seco mas forte. Que desculpe, pede Helena, e Igor só lhe sorri.

    Agora a cidade sopra mais devagar. Agora, por um único momento, num único dia de verão, duaspessoas estranhas amam-se num autocarro. Não é para sempre, nem sequer é para este dia. É

    só até que o autocarro se canse e adormeça num terminal rodoviário, mas chega para Helenase encostar um pouco àquele tronco apetitoso e regar a sua árvore com um agradecimento.Obrigado, diz ela, que estava a ter um dia difícil, que foi bom perceber que alguém se dispôs aajudá-la, que foi bom respirar ao seu lado. Que não chore, responde-lhe Igor, que ainda cá anda.Que ainda cá anda...

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    Abismos com farol ao fundo

    Com força aperta as mãos uma na outra. O calor agarrou-se, através duma membrana de sujidadevagamente translúcida, aos vidros do automóvel onde hoje Igor almoçou. Também no automóveljá ouviu a mesma música mais de uma dezena de vezes, já encostou o banco do condutor paratrás e adormeceu, já leu os títulos dum jornal Diário e peneirou as notícias que pretende ler logomais à tardinha. Uma mosca sufoca no dióxido de carbono expelido pelos seus pulmões, batendo

    insistentemente contra o para-brisas. Com força aperta as mãos uma na outra. Chegou o momentode partir, pensa. Depois suaviza o corpo e a mente. As mãos caem sobre o tecido doce que abraçao assento, como mãos dum guerreiro cansado, antes de adormecerem de novo.

    A solidão é uma mulher: tem pernas, boca, braços e nariz; anda, gesticula e respira. Quem ogarante só tem uma perna e vive a estender a mão nos semáforos dum cruzamento central dacidade que sopra. Tem duas mãos mas estica apenas uma, que a outra ampara a muleta. No fundosó tem uma perna e um braço. O homem, que Helena ouve depois de já lhe ter dado uma moeda,enquanto espera que a luz vermelha dê lugar à verde, avisa-a ainda que é melhor não falar comela. Caso a veja, claro. Tem dois braços e duas pernas, por isso não é ele de certeza. Nem sequeré mulher, insiste, e até é muito homem, apesar de perneta. O semáforo muda de cor. Helenaarranca.

    No consultório médico há dezasseis cadeiras e oito pessoas. Todas estão sentadas com uma cadeirade intervalo entre si. Ninguém se sentou ao lado de ninguém sem reservar algum espaço ao seulado, mas Helena, cujo corpo suado chega apenas agora, já não tem nenhum lugar vazio ondepossa garantir essa distância d