Constitucionalismo Social Paulo Bonavides

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1 CONSTITUCIONALISMO SOCIAL E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 1. O constitucionalismo social em breve trajetória histórica: da doutrina ao direito positivo. 2. As Cartas da Venezuela e do México, precursoras desse constitucionalismo. 3. O constitucionalismo socia l na idade média do contra- humanismo. 4. A crise do constitucionalismo social no Brasil. 5. O constitucionalismo social e a democracia participativa: uma receita para o tratamento da crise brasileira. 6. A democracia, direito da quarta geração, e a decadência das formas representativas. ____________________________ Paulo Bonavides* 1. O constitucionalismo social em breve trajetória histórica: da doutrina ao direito positivo . O constitucionalismo social tem uma trajetória que vai da doutrina ao texto legislativo, da idéia ao fato, da utopia à realidade, do abstrato ao concreto. De modo habitual, ele se acha impregnado de valores ou princípios que lhe fazem historicamente a legitimidade. Em verdade, a esfera teórica onde se desenvolveu a base de tal constitucionalismo é aquela em que prepondera o pensamento de igualdade vinculado a uma noção de justiça. Nessa base se combinam elementos doutrinários, ideológicos e utópicos cujas raízes ou nascentes remontam a pensadores do quilate de Platão e Rousseau, de Aristóteles e Althusius, de Tomás Morus e Saint-Simon, de Santo Tomás de Aquino e Proudhon, de Carlos Marx e Haroldo Laski. Já a esfera pragmática, por sua vez, começa a desenhar-se na modernidade com a Constituição francesa de 1793 que, em certa maneira, radicalizou a Revolução pelo

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História do constitucionalismo social

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    CONSTITUCIONALISMO SOCIAL E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

    1. O constitucionalismo social em breve trajetria histrica: da doutrina ao

    direito positivo. 2. As Cartas da Venezuela e do Mxico, precursoras desse

    constitucionalismo. 3. O constitucionalismo social na idade mdia do contra-

    humanismo. 4. A crise do constitucionalismo social no Brasil. 5. O

    constitucionalismo social e a democracia participativa: uma receita para o

    tratamento da crise brasileira. 6. A democracia, direito da quarta gerao, e a

    decadncia das formas representativas.

    ____________________________

    Paulo Bonavides*

    1. O constitucionalismo social em breve trajetria histrica: da doutrina

    ao direito positivo. O constitucionalismo social tem uma trajetria que vai da

    doutrina ao texto legislativo, da idia ao fato, da utopia realidade, do abstrato ao

    concreto. De modo habitual, ele se acha impregnado de valores ou princpios que lhe

    fazem historicamente a legitimidade.

    Em verdade, a esfera terica onde se desenvolveu a base de tal

    constitucionalismo aquela em que prepondera o pensamento de igualdade vinculado

    a uma noo de justia. Nessa base se combinam elementos doutrinrios, ideolgicos

    e utpicos cujas razes ou nascentes remontam a pensadores do quilate de Plato e

    Rousseau, de Aristteles e Althusius, de Toms Morus e Saint-Simon, de Santo

    Toms de Aquino e Proudhon, de Carlos Marx e Haroldo Laski.

    J a esfera pragmtica, por sua vez, comea a desenhar-se na modernidade com

    a Constituio francesa de 1793 que, em certa maneira, radicalizou a Revoluo pelo

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    tenaz empenho de seus constituintes em fazer a igualdade subir a escada das

    instituies at alcanar degrau to alto quanto o da liberdade.

    Mas o constitucionalismo social, subjacente quele estatuto revolucionrio, e

    que tem ali a certido de sua estria no campo da positividade, s toma em verdade

    compleio definida e concreta, vazada no esprito, na conscincia e na vocao da

    contemporaneidade, a partir da promulgao da Carta Poltica do Mxico, de 1917.

    Com efeito, o tratamento normativo da matria social fulge precursoramente no

    texto mexicano, a saber, em seus artigos 3, 4, 5, 25 a 28 e 123, os quais, a nosso ver,

    tm um teor qualitativo e quantitativo cujo alcance sobre-excede o da Constituio de

    Weimar promulgada em 1919, dois anos depois.

    A repercusso internacional da Carta alem foi porm imediata, contribuindo

    deveras para estabelecer, por seu reflexo ideolgico, os fundamentos do

    constitucionalismo social, com irradiao a outras Cartas, que receberam assim o

    influxo weimariano, to importante para a abertura da nova era constitucional

    inaugurada na segunda dcada do sculo XX.

    Contudo, esse constitucionalismo jaz agora debaixo da impugnao neoliberal

    depois de lograr ascendncia imperativa sobre vrias Cartas daquela poca

    constitucional.

    A sobredita ressonncia do Estatuto de Weimar, que deixou na penumbra a

    constituio do Mxico, promulgada dois anos antes, tem, a nosso parecer, uma

    explicao bvia: o peso superior da influncia e fora sugestiva da Alemanha sobre

    outros pases, nomeadamente os do Velho Mundo, cenrio de seu desenvolvimento

    poltico, militar, cultural e intelectual. Pases que contemplavam, atnitos, o quadro

    da catstrofe em que aquela nao submergira e da qual buscava erguer-se com um

    projeto democrtico e institucional deveras inovador. O projeto consistiu numa

    Constituio de bases sociais, promulgada na antevspera da grande convulso

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    ideolgica que abalaria o sculo XX com o advento do bolchevismo, do fascismo e

    do nacional-socialismo.

    So prescries da Constituio de Weimar, por onde sopra a mudana

    constitucional dirigida aos ideais de justia e concrdia de classes, aquelas constantes

    de artigos contidos no Ttulo II pertinente a direitos e deveres fundamentais dos

    alemes.

    Aqui nos reportamos parte especfica relativa a instruo e educao

    (Bildung und Schule), matria tratada em 8 (oito) artigos, que vo do 142 ao 150.

    A estes se seguem, em escala bem mais ampla, aqueles concernentes economia

    (Das Wirstschaftsleben), cuja abrangncia vai do artigo 151 ao 165, deixando-nos,

    no raro, a impresso de um casusmo exagerado. Mas isto se justifica em razo da

    relevncia e do ineditismo com que na Europa a Constituio de Weimar incorporou

    sua ordem jurdica direitos de uma nova dimenso, como so os direito sociais.

    Em rigor, o constitucionalismo do novo gnero teve afinal por centro de

    gravidade e equilbrio uma frmula sbria, a nosso parecer definitiva, e sobretudo

    reveladora da latitude, do significado e do teor democrtico e jurdico do conceito.

    Tal frmula normativa procede do artigo 20 da Lei Fundamental de Bonn que

    proclamou a Alemanha um Estado social.

    Reza este clebre artigo: A Repblica Federal da Alemanha um Estado

    federal democrtico e social (Die Bundesrepublik Desutschland ist ein

    demokratischer und sozialer Bundesstaat).

    Fundava-se com arrimo na positividade jurdica da Carta alem, a doutrina do

    Estado social.

    Ns mesmo a professamos desde a dcada de 1950 quando, concorrendo a um

    concurso de ctedra, escrevemos a tese intitulada Do Estado liberal ao Estado

    social, que foi publicada em 1958.

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    A partir da Lei Fundamental de Bonn, esse modelo de constitucionalismo, em

    sua precisa dimenso democrtica, ficou estabelecido e consagrado.

    A sntese primorosa condensava na expresso insubstituvel Estado social o

    valor de uma identidade que tanto se almeja nas regies tericas: aquela de Estado

    social e Estado de direito. Se aceitarmos tal identidade, estaremos ainda, por via de

    conseqncia, recusando a tese kelseniana de que todo Estado Estado de Direito e

    distinguindo tambm o nosso Estado social de outras supostas formas de Estado que

    nada tm que ver com Estado de direito (o Estado socialista da Unio Sovitica de

    Stalin, o Estado nacional-socialista da Alemanha de Hitler e o Estado fascista da

    Itlia de Mussolini). De tal sorte que amanh, ao cabo da maturidade do conceito,

    quem disser Estado de direito estar dizendo do mesmo passo Estado social, porque

    ambos tero o mesmo significado.

    2. As Cartas da Venezuela e do Mxico, precursoras desse

    constitucionalismo. O constitucionalismo social aquele que nas relaes do

    indivduo com o Estado e vice-versa faz preponderar sempre o interesse da sociedade

    e o bem pblico teve, em termos de positividade, o bero de sua formao, ou sua

    base precursora, conforme a histria e os textos nos relatam e atestam, em duas

    Constituies da Amrica Latina: a da Venezuela, de 1811, e a do Mxico, de 1919.

    No entanto, em pases do chamado Primeiro Mundo, essas duas grandes Cartas,

    monumentos do nosso passado constitucional, ficaram deslembradas em

    apontamentos e referncias histricas de inumerveis publicistas e autores de

    nomeada, que j escreveram sobre este tema.

    Com efeito, quando eles se ocupam das origens daquele constitucionalismo,

    mostram que no investigaram com ateno e cautela as fontes e os documentos, to

    fceis de achar e poupar-lhes o dislate.

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    Em geral, colocam por centro de gravidade daquilo que representou o advento

    de uma espcie de metamorfose, ou pelo menos uma fase importantssima de

    evoluo do constitucionalismo, a Constituio de Weimar, de 1919, que

    destacadamente dois anos posterior do Mxico.

    Tocante ao momento germinativo da transformao, ocorrido com

    singularidade h mais de um sculo, alis no auge do liberalismo constitucional, eles

    homenageiam e citam com freqncia a Constituio de Cdiz, deferindo-lhe o

    galardo precursor, quando fora mais justo e verdico outorg-lo Constituio da

    Venezuela, a saber, a clebre Carta bolivariana de 1811, promulgada no ano anterior.

    Num paralelo comparativo, em matria de constitucionalismo primognito, a

    Constituio da Venezuela esteve para a de Cdiz assim como a do Mxico para a de

    Weimar.

    3. O constitucionalismo social na idade mdia do contra-humanismo. Nesta

    caminhada histrica, nesta travessia do sculo, nesta passagem do segundo ao terceiro milnio, o

    mundo parece s vsperas de uma segunda idade mdia que nunca esteve na previso dos

    pensadores nem dos intrpretes da modernidade: a idade mdia do materialismo em substituio

    doutra, a do espiritualismo cristo.

    Esta idade mdia universaliza a f, aquela universaliza o capital; na primeira

    reina Cristo, a divindade, na segunda Bush, a malignidade; ontem Roma com seu

    imprio e sua hegemonia, hoje Washington com sua unipolaridade e seu Consenso,

    que falso e hipcrita; dantes a caridade, doravante o egosmo; outrora o holocausto,

    o sacrifcio dos mrtires, agora a perda do homem, o extravio de sua filiao divina, a

    genuflexo do sdito, sacrificado no altar de um globalismo sem crenas, sem

    fronteiras, sem rumos, sem tica, sem estandartes.

    Acaso, houve progresso? No. Houve, sim, retrocesso e decadncia. Houve

    runa de legitimidades, ruptura de compromissos, abandono da tica, queda de

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    valores, perda de esperana na regenerao de poderes, descrena na ao dos

    governos, afrouxamento dos laos de coeso social, em suma, invaso de vcios e

    erros que turvam a conduo dos negcios pblicos ou levam ao desastre as polticas

    da pblica administrao.

    Disso resulta o temor de uma tragdia. como se estivssemos j

    antevspera do cataclismo, do apocalipse, do juzo final, do colapso de civilizaes

    que decaram e perverteram a humanidade.

    como se estivssemos tambm sob o signo do aniquilamento dos valores

    morais; signo estampado qual maldio na face de Estados degenerados onde os

    poderes da vida e da morte se concentraram, acumulados como jamais na histria do

    ser humano.

    Mas primeiro que cheguemos a este remate fatal, faz-se mister, para preveni-lo,

    organizar a resistncia, erguer um dique idade mdia daquela materializao do

    capital, que caleja as fibras do corao, desterra as grandes idias sociais da

    fraternidade, apaga as noes ticas que fazem o humanismo respirar, mata a

    inspirao libertadora, afasta da alma dos povos a confiana e lhes extingue a f no

    porvir.

    A perda e ausncia de um fundamentalismo de valores sociais na ao concreta

    dos governos que regem o Terceiro Mundo, debaixo da servido e dependncia

    externa, abate os povos da periferia, os oprime, os precipita no desengano, na

    angstia, na incerteza, na dor coletiva, na solido, no desespero e inutilidade de sua

    caminhada; porque eles caminham pelas artrias da excluso, da pobreza, do

    subdesenvolvimento, da fome, da violncia, como se fossem levados da fatalidade,

    seguindo um destino donde toda a esperana cedo j se evadiu.

    Mas o futuro no ser bem assim. Assim fora se os povos do continente

    capitulassem, se desertassem o teatro de luta, se no buscassem no direito

    constitucional de resistncia que tanto apregoamos a fora reparadora das injustias

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    que padecem. Sobretudo se no achassem nesse direito, na aderncia tenaz aos seus

    princpios o escudo moral da causa justa que lhes no consente abdicar a soberania

    em proveito de seus opressores.

    O constitucionalismo social no Brasil encara com determinao, firmeza de

    nimo, discernimento dos meios de oposio, a sombria ameaa neoliberal de

    extinguir direitos que esto nas pginas da Constituio. Direitos fundamentais da

    segunda gerao, dificultosamente conquistados nos prdios sociais da segunda

    metade do sculo passado.

    Vitoriosa essa bandeira, decretar-se- o fim da idade mdia do contra-

    humanismo, nsito doutrina da globalizao neoliberal.

    4. A Crise do Constitucionalismo social no Brasil. O Brasil, pas perifrico e

    emergente, palco de uma luta que se fere desde o fim da dcada de 80, isto , desde

    o sculo passado: a luta das correntes desenvolvimentistas, nacionalistas e

    progressistas com as foras do status quo, da aliana neoliberal, cujo compromisso

    maior com a globalizao.

    As primeiras correntes se empenham em resguardar e manter a soberania da

    nao contra o diminutivo atroz que significa a tutela e sujeio a organismos

    internacionais, cada vez mais atados ao influxo e ingerncia e hegemonia das

    grandes potncias.

    As segundas, detentoras da superintendncia interna e externa das finanas

    nacionais, submetem o Pas a rgidos padres de uma poltica monetarista, vexatria,

    funesta e refratria ao interesse nacional.

    poltica que inviabiliza o desenvolvimento, inibe a expanso da indstria,

    enfrea o comrcio, reduz a criao de empregos, mantm estagnada a economia,

    eleva a taxa de juros, asfixia o mercado, diminui a produo, aumenta a carga

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    tributria, hoje alcanando alturas inadmissveis que a tornaram a mais pesada do

    mundo, segundo testemunhos estatsticos fidedignos.

    Enfim, faz gerar na sociedade, pela sujeio externa, uma vaga de pessimismo

    e amargura, que crescem entre o povo-cidado, o povo- eleitor, em razo do

    descumprimento das promessas presidenciais da candidatura antiliberalista do Partido

    dos Trabalhadores; agremiao afogada, por derradeiro, num oceano de corrupo.

    O desastre do governo e de seu partido submergiu o Brasil no desalento e na

    desesperana de construir o mais cedo possvel uma sociedade livre, justa e

    democrtica, em harmonia com as regras e princpios do constitucionalismo social;

    sociedade que todos os presidentes eleitos, desde a Constituio de 1988, juravam

    edificar ao fazerem o discurso poltico durante suas campanhas de ascenso ao poder.

    Mas o contrrio ocorreu: o aumento das dvidas interna e externa, a invaso de

    capitais especulativos estrangeiros, os enormes lucros auferidos pelos grandes

    bancos, a obedincia da poltica econmica e financeira do pas a interesses fora da

    jurisdio nacional.

    Nesse quadro efervescente e crtico a Constituio se tornou tambm outro

    campo de batalha. Ali o neoliberalismo econmico e poltico, depois de subir ao

    governo, busca apoderar-se das instituies e dar Carta Magna compleio que seja

    o reflexo e a imagem da nova ordem, a um tempo reacionria e conservadora.

    Nesse sentido j se fizeram quarenta e nove emendas constitucionais alterando

    bastante a fisionomia da Lei Maior no que concerne a seu contedo material.

    A mudana entra em contradio com o esprito, os princpios e os valores

    consagrados pelos constituintes de 1988, que os gravaram como expresso de um

    pacto de liberdade e democracia.

    A introduo de preceitos que lhe arrunam a divisa emancipatria e

    contrastam o pensamento social de justia, desenvolvimento e progresso, subjacente

    ao texto constitucional, tem sido at agora impotente para destruir a Carta Magna,

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    onde ainda refulge em toda sua inteireza normativa e acauteladora a base

    principiolgica. Foi esta a novidade suprema da Carta de 1988, o sustentculo

    inderrogvel de seu Estado de direito, suscetvel de concretizar-se sob a gide da

    democracia participativa.

    Em rigor, o constitucionalismo social a acastelado s vir abaixo,

    definitivamente, se as armas de resistncia forem arrebatadas aos seus combatentes.

    A nica via possvel e aberta que o poder neoliberal tem para alcanar esse

    resultado passa fora do processo normal de emenda Constituio.

    Tem que seguir o transverso caminho que levaria ao sacrifcio da legalidade e

    legitimidade do sistema em seu conspecto democrtico; algo porm sujeito a

    acontecer to somente por obra de um golpe de Estado. Jamais com observncia dos

    cnones insculpidos no Estatuto Supremo. Maiormente aqueles de inspirao e teor

    programtico republicano, configurativos da natureza e identidade do regime.

    A estrada da inconstitucionalidade material, guardadas as reservas formais da

    legislatio, pode todavia conduzir, como j conduziu no caso brasileiro, a fazer passar

    por constitucional e ter ingresso no universo normativo aquilo que palpvel e

    visivelmente inconstitucional e, contudo, deixa de o ser por haver sido formalmente

    incorporado, em termos de eficcia e positividade, vida do direito. Teve, por

    conseguinte, ingresso na ordem jurdica vigente e constituda, sem embargo da

    ilegitimidade que debalde se lhe possa irrogar.

    Uma conscincia pblica se forma, todavia, acerca dessa ilegitimidade que

    ofende o esprito da Constituio, e atesta o dano causado sade moral e

    credibilidade jusconstitucional do sistema.

    Fica a ordem governante, portanto, sujeita a sofrer abalos to fortes que

    inculcam o crtico das instituies a formular, como ns j o fizemos, aquela figura

    singular e sinistra, do golpe de Estado institucional.

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    Golpe extrado da observao e anlise s mudanas introduzidas e processadas

    no regime, sob o plio da Constituio de 1988; golpe que falseia e contradiz os

    fundamentos da Carta Magna; golpe de Estado de nova feio e categoria, germinado

    nas perverses cerebrais e malignas dos que buscam atropelar e confundir a ascenso

    democrtica da sociedade e da cidadania; golpe invariavelmente desferido para

    alimentar ou dar luz ditaduras em gestao, como j aconteceu na Alemanha de

    Weimar e poder acontecer ou j acontece tambm a passos lentos no Brasil de

    Color, Fernando Henrique e Lula. O golpe de Estado institucional gera a ditadura

    constitucional, a saber, a mais refinada forma de fraude Constituio, que prepara

    na sombra e no silncio dos bastidores a queda da liberdade e da repblica.

    Esse estado de apreenso a que se chegou no Brasil, tocante ao porvir dos

    direitos sociais, deriva grandemente dos frgeis alicerces sobre os quais se levanta a

    realidade econmica do pas e seu edifcio de Estado social.

    O brao executivo do neoliberalismo conspira contra a Constituio com a

    cumplicidade do legislativo, com a indiferena das classes sociais, com o alheamento

    dos partidos, com a complacncia da cpula judiciria cativa s presses

    presidenciais.

    A Constituio acabar sendo na prtica a vontade do governo, porquanto um

    judicirio politizado no desempenha com rigor, independncia e imparcialidade, o

    controle jurisdicional dos atos normativos, designadamente quando o poder de quem

    governa extravaza, sem freio, os limites de sua competncia e autoridade.

    5. O constitucionalismo social e a democracia participativa: uma receita

    para o tratamento da crise brasileira. Do nosso ponto de vista, a democracia

    participativa nos pases perifricos , em tese, a guardi poltica do

    constitucionalismo social; o meio, por excelncia, de prevenir a runa dos direitos

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    fundamentais da segunda gerao em face da ameaa supressiva que lhe faz o

    neoliberalismo.

    E o em razo do significativo teor e elevadssima dose de legitimidade que

    possui por ser rgo direto de expresso da vontade do povo manifestada com a fora

    e pureza de sua origem, incontaminada pela intermediao de terceiros. Vontade,

    portanto, soberana, que afasta a presena e interferncia, no raro nociva, do

    elemento representativo em questes decisivas nas quais se joga, com freqncia, o

    destino, a conservao, a sobrevivncia, o amparo do interesse nacional, agredido e

    vulnerado em matria de soberania.

    A democracia participativa, tema central destas reflexes, se une ao

    constitucionalismo social como receita para o tratamento da crise brasileira, em

    virtude de ser a forma poltica mais convizinha da democracia direta, onde a

    legitimidade tem o seu domiclio na teoria perifrica do Estado contemporneo.

    Sem liquidar o pluralismo partidrio, sem abolir tampouco as modalidades

    representativas, como equivocadamente se inculca, a democracia de participao ,

    perante a crise dos partidos, das casas congressuais, dos Executivos autoritrios e

    arrogantes, transgressores dos limites constitucionais de autoridade, competncia e

    poder, a resposta certa, a soluo cabvel, o modelo adequado; enfim, o caminho que

    ainda se conserva livre, aberto e desobstrudo.

    Pelo menos este, o entendimento de sua aplicao ao caso brasileiro.

    No Brasil, o paradoxo da atualidade apresenta, por centro da crise, a

    governana contraditria do Presidente Lula, que ostenta duas faces distintas.

    A primeira, na rbita externa, faz transparecer vagamente a imagem potencial

    de uma poltica mediadora do conflito de posies que, de ordinrio, as repblicas do

    continente tm com os Estados Unidos. Sem embargo dessa poltica, o Presidente h

    manifestado a simpatia do Pas pela causa dos governos de esquerda instalados na

    Argentina, Bolvia, Venezuela e Uruguai.

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    A segunda face, na esfera interna, contrasta, todavia, em todos os sentidos, com

    o movimento pendular de opinio plebiscitariamente expresso durante a eleio

    presidencial de 2002, o qual se movia na direo de mudanas substanciais da

    poltica econmica.

    Com efeito, Lula adotou de forma extremamente rgida uma poltica que

    reproduz e aprofunda o modelo neoliberal da gesto de Fernando Henrique Cardoso,

    da qual o seu governo veio a ser a cpia, a continuidade, o prolongamento.

    Isto aconteceu para espanto, mgoa e desespero das correntes nacionalistas,

    que choram aquilo que se lhes afigura um desastre: o desvio de rumo do Presidente

    eleito, que segue, sanciona e executa com mais rigor o modelo repulsado nas urnas.

    Discute-se se houve traio. Mas em meio a onda de escndalos que abalam o

    regime e pem a nu a corrupo do governo, uma certeza se colhe: as esquerdas no

    Brasil padeceram o mais duro revs da sua histria. Afetadas na ordem moral,

    buscam refazer-se da vitria de Pirro que foi a ascenso do Partido dos Trabalhadores

    ao poder.

    As esquerdas sobreviventes catstrofe, alojadas na oposio, ainda avistam

    uma luz e um caminho pela frente, por onde se pode chegar regenerao do sistema:

    o caminho da democracia participativa.

    Ela constitui em verdade a derradeira linha de resistncia no campo de batalha

    onde as correntes de esquerda podero no Brasil ganhar ou perder a guerra da

    recolonizao. Guerra sem trgua aos parciais do neoliberalismo e da globalizao.

    A par da crise poltica ostensiva, lavra tambm no Pas uma crise

    constitucional latente: a crise do constitucionalismo social.

    das piores porque perdura desde muito sem soluo vista. Vamos aos

    elementos histricos que lhe explicam a origem.

    Nesta repblica onde um Presidente queria resolver a questo social nas

    delegacias de polcia, a lei trabalhista foi obra da Revoluo de 30 que derrubou a

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    Ptria Velha e fez daquele problema uma das preocupaes do novo regime. As

    medidas de proteo ao trabalho, iniciadas durante a primeira ditadura de Vargas,

    tiveram prosseguimento normativo com a efmera Carta de 1934, que assinalou o

    advento do constitucionalismo social no Brasil. Este emerge ali de vrios artigos

    consagrados ao trabalho, educao, sade, todos na mesma linha traada pelos

    constituintes mexicanos de 1917 e pelos autores da Carta de Weimar de 1919.

    O liberalismo social brasileiro atravessou a seguir o interregno ditatrio de

    1937 a 1945, ressurgindo, em sede constitucional, de forma menos programtica com

    a Constituio de 1946.

    Efetivamente, tocante ao grau de progresso em matria social, poder-se- dizer

    que a Carta brasileira de 1946 esteve para a de 1934 assim como a Lei Fundamental

    alem de 1949 ficou para a Constituio de Weimar de 1919.

    Nela se observa, com efeito, um constitucionalismo social mais brando e mais

    tmido, menos abrangente e menos irreal, em rigor, mais objetivo, mais conciso, mais

    concreto, mais perto da realidade.

    Teve a Carta promulgada um 1946 seu ponto culminante com o preceito que

    determinava a participao do trabalhador nos lucros das empresas; disposio que

    at o naufrgio da Constituio, cerca de vinte anos depois, no lograra aplicao

    mngua de lei reguladora.

    Finalmente, a cognominada Constituio cidad de 1988 condensou o

    progresso e as conquistas antecedentes do nosso constitucionalismo social. Tomou

    feio vanguardeira por colocar, a nosso ver, os direitos sociais na categoria daqueles

    que, em seu mnimo essencial, no podem ser objeto de emenda constitucional

    supressiva.

    Auferem assim a garantia suprema que o constituinte outorga matria

    constante do pargrafo 4 do art. 60 da Constituio, quando disps que no ser

    objeto de deliberao a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de

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    Estado, o voto direto, secreto, universal e peridico, a separao dos Poderes, os

    direitos e garantias individuais.

    esta derradeira clusula ptrea, pertinente a direitos e garantias individuais, o

    abrigo constitucional inviolvel onde os hermeneutas da Carta Magna podero

    tambm dar asilo ao constitucionalismo social.

    A didtica normativa da Carta de 1988 consolidou, com clareza e propriedade,

    os direitos sociais declarados e protegidos num dos Captulos do Ttulo II da

    Constituio, que versa sobre Direitos e Garantias Fundamentais.

    6. A Democracia, direito da quarta gerao, e a decadncia das formas

    representativas. Impugnando a globalizao poltica do neoliberalismo, o seu

    empenho em perpetuar o status quo de dominao, o seu menosprezo aos valores,

    salvo aqueles que servem de amparo material ordem capitalista, fizemos h algum

    tempo as seguintes reflexes:

    H, contudo, outra globalizao poltica que ora se desenvolve, sobre a qual

    no tem jurisdio a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos

    fundamentais. A nica que verdadeiramente interessa aos povos da periferia.

    Globalizar direitos fundamentais equivale a universaliz-los no campo

    institucional. S assim aufere humanizao e legitimidade um conceito que,

    doutro modo, qual vem acontecendo de ltimo, poder aparelhar unicamente a

    servido do porvir.

    A globalizao poltica na esfera da normatividade jurdica introduz os direitos

    da quarta gerao, que, alis, correspondem derradeira fase de

    institucionalizao do Estado social.

    So direitos da quarta gerao o direito democracia, o direito informao e o

    direito ao pluralismo. Deles depende a concretizao da sociedade aberta do

    futuro, em sua dimenso de mxima universalidade, para a qual parece o mundo

  • 15

    inclinar-se no plano de todas as relaes de convivncia (...). Enfim, os direitos

    da quarta gerao compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de

    todos os povos. To-somente com eles ser legtima e possvel a globalizao

    poltica (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 17 edio, So

    Paulo, 2005, pgs. 571/572).

    Essas consideraes se completam com aquelas que fizemos no Prefcio 7

    edio do livro Do Estado Liberal ao Estado Social, tese do nosso concurso de

    ctedra em 1958 e do qual extramos o seguinte excerto sobre a democracia, direito

    da quarta gerao:

    Um direito alis em formao, mas cuja admissibilidade deve ser, de

    imediato, declarada porquanto j se vislumbra com a mesma impresso de

    certeza objetiva que os direitos da terceira gerao, aqueles referentes ao

    desenvolvimento, paz, fraternidade e ao meio ambiente.

    A esta altura no posso deixar de volver s palavras por mim proferidas, em

    Foz do Iguau, ao ensejo do discurso de despedida e encerramento da XV

    Conferncia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1994, quando ousei

    enunciar e teorizar aquele direito. E o fiz, entre outras consideraes, com os

    seguintes comentrios:

    Tendo por contedo a liberdade e a igualdade, segundo uma concepo integral

    de justia poltica, o direito democracia, apangio de toda a Humanidade, ,

    portanto, direito da quarta gerao, do mesmo modo que o desenvolvimento, por

    sua remisso concreta e material aos povos do Terceiro Mundo, direito da

    terceira gerao. Com efeito, tomando por base a sua titularidade, os direitos

    humanos da primeira gerao pertencem ao indivduo, os da segunda ao grupo,

    os da terceira comunidade e os da quarta ao gnero humano.

    Em rigor na era da tecnologia e da globalizao da ordem econmica e da

    convivncia humana, no h direito de natureza poltica mais importante que a

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    democracia, que deve ser considerada um direito fundamental da quarta gerao

    ou dimenso, conforme j assinalamos.

    E justamente por ser enunciado como direito fundamental, isto significa que ela

    principia a ter ingresso na ordem jurdica positiva, a concretizar-se em mbito

    internacional, a possuir um substrato de eficcia e concretude derivado de sua

    penetrao na conscincia dos povos e dos cidados, donde h de passar ao texto

    das constituies e letra dos tratados.

    Em suma, a norma democracia, tendo por titular o gnero humano, , por

    conseguinte, direito internacional positivo em nossos dias. E o porque se

    transforma a cada passo numa conduta obrigatria imposta aos Estados pelas

    Naes Unidas para varrer do poder, de forma legtima, os sistemas autocrticos

    e absolutistas que, perpetrando genocdios e provocando ameaas letais paz

    universal, se fazem incompatveis com a dignidade do ser humano.

    O conceito de democracia, enquanto direito da quarta gerao emerge pois da

    grande revoluo democrtica da cidadania, levada a cabo com a universalizao dos

    direitos humanos, debaixo do reconhecimento de que estes j no so unicamente

    direitos fundamentais, conforme entendimento em voga, por lograrem insero

    normativa no corpo da Constituio de um Estado, mas tambm por se lhes

    reconhecer, ao mesmo passo, uma ascenso gradativa de positividade e postulao

    direta, numa ordem jurdica superior, que a de direito internacional.

    Ontem, este era apenas um direito dos Estados, hoje tende a ser, numa

    ampliao de horizontes, alm de direito dos Estados, tambm dos cidados.

    Demais disso, medida que aquela fundamentalidade cresce e avulta na

    conscincia contempornea das sociedades democrticas, ocorre uma associao

    conceitual dos direitos fundamentais ao conceito de democracia, at fazer desta, no

  • 17

    curso de uma evoluo de sentido, a mais apurada forma de direito fundamental, a

    saber, direito da quarta gerao, que a dignidade da pessoa humana ampara e alarga.

    Como se v, a democracia caminha, a largos passos, para deixar de ser apenas

    forma de governo, de Estado, de repblica, de convivncia humana e social, de

    regime, ou de sistema poltico, para subir a um grau superlativo de princpio, de valor

    e de normatividade, derivado de sua proclamao e reconhecimento como direito da

    quarta gerao.

    Enfim, na escalada da legitimidade constitucional, o sculo XIX foi o sculo do

    legislador, o sculo XX o sculo do juiz e da justia constitucional universalizada,

    enquanto o sculo XXI est fadado a ser o sculo do cidado governante, do cidado

    povo, do cidado soberano, do cidado sujeito de direito internacional, conforme j

    consta da jurisprudncia do direito das gentes. Ou ainda, do cidado titular de direitos

    fundamentais de todas as dimenses; sculo, por fim, que h-de de presenciar nos

    ordenamentos polticos do Terceiro Mundo o ocaso do atual modelo de representao

    e de partidos. o fim que aguarda as formas representativas decadentes. Mas

    tambm a alvorada que faz nascer o sol da democracia participativa nas regies

    constitucionais da periferia.

    * Membro do Comit de Iniciativa que fundou, em Belgrado, a Associao Internacional de Direito

    Constitucional, Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa e Professor Emrito da Universidade

    Federal do Cear, Brasil.