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I. Da fotografia alegórica à fotografia composta O surgimento da fotografia propôs uma série de desafios à prática artística tradicional, desde a redefinição dos conceitos de arte e artista até a disputa de um mercado cada vez mais interessado na verossimilhança que o novo meio podia proporcionar numa escala até então desconhecida. Se o convite a discutir – com base em novos parâmetros – as noções de autoria e de originalidade não é aceito de imediato pelos artistas, o confronto com a imagem técnica leva-os, contudo, a buscar novos modos de visualização que lhes permitiam demarcar um território próprio num panorama mais e mais dominado pela “fidelidade” fotográfica. Por isso, a pintura, sobretudo a partir do impressionismo, acaba enveredando pelo que Valéry denominará a “abstração do artista”, ou seja, a autorreferencialidade, a libertação dos significados relacionados com a tradição humanista 1 , lançando mão, não raro, de possibilidades inerentes à imagem fotográfica. A fotografia, ao contrário, ao longo do século XIX, irá frequentemente escamotear suas qualidades fundamentais, tentando emular a pintura inclusive no campo da alegoria. O primeiro representante dessa tendência é o americano John Mayall, que, em 1845, ilustra o Pai nosso com dez daguerreótipos, cujos modelos foram senhoras da alta sociedade de Filadélfia. Em 1851, apresenta na Exposição Universal de Londres vários trabalhos descritos no catálogo como “fotografias em daguerreótipo para ilustrar a poesia e o sentimento”: O sonho do soldado, O venerável Beda abençoando Capítulo I 17 Na encruzilhada: arte e fotografia no começo do século XX 1. Charles Altieri. Painterly Abstraction in Modernist American Poetry. University Park: The Pennsylvania State University Press, 1995, p. 167.

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I. Da fotografia alegórica à fotografia composta

O surgimento da fotografia propôs uma série de desafios àprática artística tradicional, desde a redefinição dos conceitosde arte e artista até a disputa de um mercado cada vez maisinteressado na verossimilhança que o novo meio podiaproporcionar numa escala até então desconhecida. Se oconvite a discutir – com base em novos parâmetros – asnoções de autoria e de originalidade não é aceito de imediatopelos artistas, o confronto com a imagem técnica leva-os,contudo, a buscar novos modos de visualização que lhespermitiam demarcar um território próprio num panoramamais e mais dominado pela “fidelidade” fotográfica.Por isso, a pintura, sobretudo a partir do impressionismo,

acaba enveredando pelo que Valéry denominará a “abstraçãodo artista”, ou seja, a autorreferencialidade, a libertação dossignificados relacionados com a tradição humanista1, lançandomão, não raro, de possibilidades inerentes à imagemfotográfica. A fotografia, ao contrário, ao longo do séculoXIX, irá frequentemente escamotear suas qualidadesfundamentais, tentando emular a pintura inclusive no campoda alegoria.O primeiro representante dessa tendência é o americano

John Mayall, que, em 1845, ilustra o Pai nosso com dezdaguerreótipos, cujos modelos foram senhoras da altasociedade de Filadélfia. Em 1851, apresenta na ExposiçãoUniversal de Londres vários trabalhos descritos no catálogocomo “fotografias em daguerreótipo para ilustrar a poesia e osentimento”: O sonho do soldado, O venerável Beda abençoando

Capítulo I

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Na encruzilhada: arte e fotografiano começo do século XX

1. Charles Altieri. Painterly Abstraction in Modernist American Poetry. University Park:The Pennsylvania State University Press, 1995, p. 167.

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uma criança, Baco e Ariadne. Os ensaios de Mayall não são bemaceitos pela crítica, como comprova um artigo publicado pelarevista The Athenaeum:

A nós essas fotografias parecem um erro. No melhor dos casossó podemos esperar obter um rendimento meramente naturalista.O ideal é inacessível e a imaginação é suplantada pelo fato real.2

Mayall acaba por abandonar a fotografia, talvezconvencido da justeza das críticas, mas seu exemplo seráseguido por uma série de fotógrafos desejosos de receber otítulo de artistas. É notável, na década de 1850, odesenvolvimento da fotografia alegórica, cujo objetivo éconferir à imagem técnica a mesma função social e culturalda pintura e conseguir seu reconhecimento como artemaior. Em 1862, a Sociedade Fotográfica de Londresprotesta contra os comissários da Exposição Internacional,que tinham relegado a fotografia aos utensílios demarceneiro e aos instrumentos agrícolas. Guiada pelavontade de promover a fotografia em relação às ciências e àsartes, a Sociedade Fotográfica não deixa de estabelecer umclaro paralelo com a pintura:

(…) seus membros interessam-se pelo aparelho fotográfico apenase do mesmo modo pelo qual um Rafael ou um Reynolds escolhiame usavam o cavalete mais adequado, os melhores pincéis ou astintas mais apropriadas e mais duradouras.3

Os fotógrafos partidários da fotografia “de alta qualidadeartística” enveredam francamente pelo caminho da alegoria,da imitação da pintura holandesa e inglesa, das expressõescontemporâneas, compondo naturezas-mortas, cenas degênero e religiosas e buscando inspiração em poemas efiguras literárias, lendárias e heroicas. Se os fotógrafos seempenham nesse tipo de produção à procura do status quelhes era negado pelo sistema artístico, a crítica, por sua vez,não exibe mais a hostilidade experimentada por Mayall.Elogia aqueles que buscam temas mais elevados do que a

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2. Apud Helmut Gernsheim.Historia gráfica de la fotografía. Barcelona: Omega, 1967,p. 161.3. Apud Aaron Scharf. Art and Photography. Harmondsworth: Penguin, 1974, p. 157.

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“mera reprodução da realidade”. Para pôr a fotografia asalvo da acusação de ser uma “arte mecânica”, a críticaincentiva os fotógrafos a representarem temas históricos,literários e anedóticos, por serem ricos de imaginação. Umartigo contemporâneo é bem enfático nesse sentido:

A fotografia tem novos segredos a conquistar, novas madonas ainventar e novos ideais a imaginar. Existirão possivelmentefotógrafos Rafael e fotógrafos Ticiano.4

Helmut Gernsheim atribui a expansão desse tipo defotografia a artistas de segunda linha, que se convertem ànova imagem – da qual desconhecem tanto as funções quantoas limitações –, atraídos pelos ganhos que ela poderiaproporcionar. Um dos primeiros a destacar-se nessa vertenteé o aquarelista William Lake Price, autor de obras comoA festa do barão (1854), Dom Quixote em seu gabinete (1854) eUma cena na torre (1856), inspiradas na pintura acadêmica doperíodo. Os trabalhos despertam a atenção do príncipe

1. Adolphe Braun,Estudo de flores, 1857.George Eastman House, Rochester.

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4. Apud Helmut Gernsheim.Op. cit., p. 161.

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Alberto, levando Price a dar prosseguimento a esse tipo deprodução com uma série de ilustrações para As aventuras deRobinson Crusoe, e a escrever um manual em que era dadodestaque aos aspectos estéticos da fotografia5.Uma das mais famosas fotografias alegóricas é Os dois

caminhos da vida (1856), do pintor sueco Oscar GustavRejlander. A obra tem o tamanho de um quadro de cavalete(78 x 40) e é apresentada na Exposição dos TesourosArtísticos de Manchester (1857). Era a primeira vez que anova imagem era exposta em pé de igualdade com a pintura ea escultura, o que permite a Rejlander demonstrarpublicamente a existência de fotografias comparáveis àsproduções das artes “maiores”. O tema obedecia àiconografia da pintura acadêmica, imitada até mesmo na posedas figuras que lembravam estátuas greco-romanas. Duasobras pictóricas parecem ter servido de inspiração para

2.William Lake Price,Dom Quixote em seu gabinete, 1854.The Metropolitan Museum of Art,Nova York.

3.Oscar Gustav Rejlander,Os dois caminhos da vida, 1856.George Eastman House, Rochester.

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5. Helmut Gernsheim. The Rise of Photography: 1850-1880.The Age of Collodion.Londres: Thames & Hudson, 1987, p. 36.

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Os dois caminhos da vida: a Escola de Atenas (1509-1511), deRafael, cuja contraposição entre Filosofia e Ciência pode tersugerido aquela entre Trabalho e Dissipação; e Os romanos dadecadência (1847), de Thomas Couture6.A alegoria representa um ancião que aponta a dois jovens

os caminhos da vida: um, calmo e tranquilo, volta-se para aReligião, a Caridade e o Trabalho; outro, dissoluto, persegueo Jogo, o Vício e a Dissipação que levam ao Suicídio,à Loucura e à Morte. No centro da composição está a figurado Arrependimento com o Símbolo da Esperança. Paracompor a fotografia Rejlander lança primeiramente mãodo desenho. A seguir contrata a companhia da senhoraWharton, especializada em tableaux-vivants derivados deobras de arte, e a fotografa em pequenos grupos e emdistâncias variadas, adequadas à perspectiva a partir da qualseriam vistos pelo espectador. O fundo é constituído porampliações de detalhes de decorações miniaturizadas e pelopórtico do jardim de um amigo. A composição consta detrinta negativos sobrepostos num papel sensibilizado, tendolevado seis semanas para ser executada.A obra é admirada e adquirida pela rainha Vitória, mas

sofre uma série de críticas e até mesmo censura pelarepresentação realista dos nus. É o que acontece em 1858 emEdimburgo, onde é só parcialmente exposta: por exigência daSociedade Fotográfica da Escócia, a parte dedicada àDissipação é coberta por um tecido.Para defender-se dos ataques, em 6 de abril de 1858

Rejlander lê um discurso sobre a “composição fotográfica”(termo com o qual designava seu trabalho) perante aSociedade Fotográfica de Londres, presidida por RogerFenton. Com o título “Sobre a composição fotográfica”,o discurso é publicado por The Liverpool and ManchesterJournal em 15 de abril de 1858. Na primeira parte do texto,o fotógrafo explicita suas concepções e suas diretrizes:advoga para a composição fotográfica o estatuto de obraelaborada e complexa; pretende demonstrar que ela podeauxiliar os artistas interessados em temas ideais; justifica suaadoção pelo desejo de conferir profundidade perspética ànova imagem.

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6. Ibid., p. 38; Naomi Rosenblum. AWorld History of Photography. Nova York/Londres/Paris: Abbeville Press, 1997, p. 229.

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Em seguida, responde ao escândalo suscitado por Os doiscaminhos da vida com dois argumentos que deveriam assinalara superioridade da fotografia. Esta pode ser considerada artese é capaz de excitar a fantasia do espectador; e é maisverdadeira do que a técnica tradicional se o que é aceitonormalmente na pintura provoca escândalo quando éadotado por ela:

Não consigo entender como um quadro com o mesmo tema,excetuando-se a cor, possa ser mais real e verdadeiro do que umafotografia, uma vez que ambos não passam de representações. Aindaassim a diferença favorece a fotografia, que, tendo passado por umnúmero menor de mediações, é necessariamente mais verdadeira.7

Rejlander usa um segundo argumento em favor de seutrabalho. A fotografia não difere da pintura em termos deconcepção e composição. As duas operações “exigem osmesmos procedimentos mentais, o mesmo tratamentoartístico e uma elaboração esmerada”, visto que lançam mãode recursos idênticos – busca de expressões diferenciadas,disposição dos costumes e dos panejamentos, distribuiçãodas sombras e das luzes8.Ao negar o caráter espontâneo e imediato da fotografia e

ao considerá-la um produto artificial como todas as demaisartes, Rejlander advoga para o fotógrafo a liberdade deescolha temática, embora não deixe de reconhecer que aespecificidade da nova imagem estabelece limites para afantasia. Isso, no entanto, não constitui um obstáculo. Se arealidade exterior é um referente obrigatório, se a imagempossui uma naturalidade “transcendental”, é possívelescamoteá-las lançando mão dos truques propiciados pelafotografia: simulação, ampliação, etc. Desse modo – comoescreve Francesca Alinovi – Rejlander percebe que a verdadeda fotografia está no truque e que um excesso de verdadepode fazer surgir a suspeita da ficção9.Marc Mélon propõe uma leitura ideológica para Os dois

caminhos da vida. A composição simétrica, a orientação e a

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7. Apud Francesca Alinovi. “I padri dell’illusionismo fotografico: Rejlander e Robinson”.In: Francesca Alinovi; Claudio Marra. La fotografia: illusione o rivelazione? Bolonha:Il Mulino, 1981, p. 27.8. Id., ibid.9. Ibid., p. 28.

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oposição das linhas de força, o recorte das figuras, a pose dosmodelos, a construção do lugar e a escolha dos acessórioslevam a um domínio do real que permite a afirmação daideia moral:

Manipular a fotografia, retocá-la e fragmentá-la para reconstituí--la numa ordem artificial manifesta equivale a manipular o própriomundo e a domar sua desordem. Esse trabalho de fragmentação doreal e de reordenação das figuras no conjunto da imagem pode serassimilado ao trabalho da lei moral que separa o bem do mal e salvao mundo ao submetê-lo a uma ordem nova. Assim o quadro deRejlander ilustra o poder da lei moral ao mesmo tempo que seapresenta como seu produto.10

Se Rejlander parte de considerações estéticas para aprática da fotografia composta, existem também razõestécnicas que obrigam os fotógrafos daquele período arecorrer a ela. A chapa de colódio não permitia fotografar aomesmo tempo uma paisagem e um céu porque o azul seimprimia mais rapidamente, contaminando as outras cores:isso explica, por exemplo, o uso da impressão composta naspaisagens marítimas que Gustave Le Gray executa na décadade 1850. As lentes fixas, por outro lado, não permitiam obtera nitidez de imagem buscada por Rejlander e posteriormentepor Henry Peach Robinson. Rejlander acreditava que o olhohumano percebe tudo nitidamente e que a lente deveria teruma captação ainda mais nítida e distinta, o que só seriaproporcionado pela lente móvel, inexistente naquelemomento11.As críticas feitas a Os dois caminhos da vida levam Rejlander

a abandonar o gênero alegórico, embora ainda produza obrascomo Judite e Holofernes, A cabeça de São João Batista (doisnegativos) e Lar, doce lar (oito negativos). Dedica-se àsacademias de nus femininos; envereda pela fotografia“espírita” (Tempos difíceis, 1860); executa vinte e quatroretratos para o livro de Charles Darwin, A expressão dasemoções no homem e nos animais (1872), nos quais a

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10. Marc Mélon.“Au-delà du réel, la photographie d’art”. In: Jean-Claude Lemagny;André Rouillé (orgs.).Histoire de la photographie. Paris: Bordas, 1986, pp. 82-3.11. Beaumont Newhall. The History of Photography: from 1839 to the Present. NovaYork: The Museum of Modern Art, 1988, pp. 73-4. Francesca Alinovi.Op. cit., p. 30.

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espontaneidade é, mais uma vez, fruto do artifício, ou seja,de uma pose sabiamente estudada.Autor de fotografias compostas é também Henry Peach

Robinson, um artista amador que se torna famoso em 1858com Os últimos instantes, uma combinação de cinco negativos– um para cada um dos quatro personagens e um para ofundo. Fruto de encenação, a imagem é totalmente construídano estúdio, como se fosse um tableau vivant teatral. Criticadapor seu “sentimento mórbido”12, a obra foi alvo de censura,pois não se admitia que um tema tão sublime como a mortepudesse ser tratado por um meio mecânico. Apesar disso, acomposição é adquirida pelo príncipe Alberto, que reserva deantemão toda a produção futura do fotógrafo inglês.Se a obra de Robinson suscita uma atitude negativa, não se

pode esquecer, no entanto, que ele, imbuído das teorias deJoshua Reynolds e John Ruskin, defende a existência de leisimutáveis na arte, pouco importando a natureza intrínseca dotema tratado. São as leis de equilíbrio, contraste, unidade,repetição, repouso e harmonia e a sujeição da composição àlinha diagonal e à pirâmide13, como o autor escreve emPictorial Effect in Photography [Efeito pictórico na fotografia],publicado em 1869.Depois das críticas suscitadas pela composição de 1858,

Robinson deixa de lado os temas sublimes e ideais, comexceção de A senhora de Shalott (1861), inspirado no quadroOfélia (1851-1852) do pintor pré-rafaelita John Everett Millais,e de Aurora e crepúsculo (1885). Neste, trabalha com trêsnegativos, nos quais representa os três momentosfundamentais da vida humana – nascimento, maturidade evelhice –, abordando indiretamente a temática da morte.Como a cena não podia ser fotografada no estúdio, Robinsonmanda construir uma casa de campo de papelão e tijolos enão poupa detalhes realistas na composição da cena.A chaminé, por exemplo, era feita de tijolos e alimentada comum fogo real.A produção de Aurora e crepúsculo leva o fotógrafo a

defrontar-se com um contraste ineludível na imagem técnica,

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12. Helmut Gernsheim. The Rise of Photography: 1850-1880. The Age of Collodion.Op. cit., p. 40.13. Henry Peach Robinson.“Propósito pictorial en fotografía”. In: Joan Fontcuberta(org.). Estética fotográfica: una selección de textos. Barcelona: Gustavo Gili, 2003, p. 58.

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o que opõe a ideia ao dado concreto. Tendo concebido umavisão risonha do nascimento, é obrigado a realizar mais dedez imagens da criança que servia de modelo, uma vez queesta não se decidia a sorrir à figura materna. Esseprocedimento respondia à crença de que “uma fotografiaproduzida mediante o sistema de impressão composta deveser profundamente estudada em cada detalhe”, já que “nenhumdesvio da natureza real deverá ser descoberto pelo exame maiscuidadoso. Não devem ocorrer numa fotografia duas coisasque não possam ocorrer simultaneamente na natureza. Se éacrescentado um céu a uma paisagem, a luz que recai sobre asnuvens, assim como a que incide sobre a terra, deverá teruma mesma origem e uma mesma direção”14.Embora Robinson faça frequentemente referência à

“verdade perfeita” da natureza, sua concepção da composiçãofotográfica traz as marcas inequívocas de uma visão artísticaafeita às regras da Academia. Em busca do efeito pictórico,isto é, da sujeição da câmara aos conceitos formaisconsagrados na pintura, o fotógrafo elabora vários esboços eapontamentos gráficos até chegar ao estudo preliminar, noqual já está determinada a composição, devendo a imagemfinal responder a ele. A descrição da metodologia utilizada emO outono (1863) mostra como ele tenta conjugar numa únicadimensão realidade e idealidade:

Fez-se primeiro um esboço da ideia, sem levar em conta apossibilidade de realizá-la. Foram feitos outros pequenosapontamentos modificando o tema para adaptá-lo às figurasdisponíveis como modelos e aos cenários acessíveis sem ter queesforçar-se para encontrá-los. A partir desses apontamentos fez-seum esboço mais elaborado da composição, mais ou menos como avemos atualmente e na mesma medida (…).15

O recurso à impressão composta, nome dado porRobinson ao próprio método de trabalho, não visa apenascompensar a pouca plasticidade dos materiais fotográficos.Sua intenção é clara: para criar “grandes obras fotográficas”, énecessário “evitar o mesquinho, o simples e o feio”; paraelevar os temas, é indispensável “evitar as formas grosseiras e

4.Henry Peach Robinson,Os últimos instantes, 1858.Science Museum, Londres.

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14. Ibid., p. 63.15. Ibid., p. 61.

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corrigir o que não é pitoresco”. A descrição do processotécnico dissipa qualquer dúvida sobre essa vontade deidealização do real por intermédio do artifício:

O meio para obter tais imagens é o da Impressão Composta,um método que permite ao fotógrafo representar objetos emdistintos planos dentro de um foco apropriado, e manter averdadeira relação linear e atmosférica de diferentes distâncias.Graças à impressão composta uma fotografia pode ser dividida empartes separadas para sua execução; em seguida essas partespositivadas são reunidas num único papel, permitindo que ooperador dedique toda sua atenção a uma figura isolada ou a umgrupo secundário ao mesmo tempo, de tal forma que, se poralguma razão uma parte fosse imperfeita, esta poderia sersubstituída por outra, sem prejudicar toda a fotografia, comoacontece quando se positiva numa única operação. Dedicando,desse modo, atenção às partes individuais, independentemente dasoutras, pode-se obter maior perfeição nos detalhes, tais como noarranjo de cortinados, no refinamento da pose e na expressão.16

Essa descrição não dá conta de todo o processo técnicoenvolvido na produção da impressão composta. Tendo comodiretriz o desenho preliminar, Robinson fotografa figuras ougrupos posteriormente colados numa única folha de papel,havendo uma distinção entre os que deveriam ocupar o fundoe o primeiro plano. As junturas de separação são retocadas eo conjunto é fotografado para a versão final. A esse processomais simples (colagem), o fotógrafo prefere um maissofisticado: a sobreposição dos vários negativos numa únicafolha, estando vedadas com veludo negro as partes que nãodeveriam ser reproduzidas17.Nem sempre a impressão composta é determinada por

razões técnicas. Detectando em Robinson a que lhe pareceser uma obsessão pela confecção de um quadro porintermédio da fotografia, Gernsheim lembra quecomposições como Quando o trabalho do dia está feito (1877) eCantando alegremente (1887) poderiam ter sido realizadas demaneira convencional18.

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16. Ibid., pp. 58-60; apud Beaumont Newhall.Op. cit., p. 78.17. Henry Peach Robinson.Op. cit., pp. 60-2; Francesca Alinovi.Op. cit., p. 47.18. Helmut Gernsheim. The Rise of Photography: 1850-1880. The Age of Collodion.Op. cit., p. 44.

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O exemplo de Robinson foi seguido por muitos fotógrafosque desejavam conferir ao novo meio o mesmo status dastécnicas tradicionais. Se Pictorial Effects in Photography, porpregar o uso de todo tipo de truque, se tornou uma espéciede bíblia para os que buscavam conferir artisticidade àimagem técnica, Robinson, contudo, em várias ocasiões, seinterrogou sobre a possibilidade de esta ter acesso a todos osaspectos da criação já experimentados pela pintura. Numaobra de 1890, Art Photography in Short Chapters [A fotografiaartística em capítulos breves], não só afirma que a fotografianão pode representar figuras irreais [anjos, querubins efantasmas] como bane de seu campo de ação os temashistóricos, mitológicos e alegóricos, por serem ideais eliterários. Em Picture Making in the Studio by Photography[A feitura da imagem no ateliê pela fotografia, 1892], acabapor condenar recursos técnicos como o retoque e odesfocamento, pois acredita que não deve existir diferençaentre as “ficções” criadas pela fotografia e a “verdade”fenomênica19.

II. A contribuição de Emerson

Uma nova voz no debate sobre o caráter artístico dafotografia havia começado a erguer-se em 1886. Cansado daartificialidade das obras dos seguidores de Rejlander eRobinson, que nada mais produziam do que imagens degênero eivadas de sentimentalismo e, por isso mesmo,distantes do encontro (artístico) direto com a vida, ofotógrafo inglês Peter Henry Emerson expõe suas ideias naconferência “A fotografia, uma arte pictórica”. Com base nasteorias de Hermann von Helmholtz sobre a visão humana,acredita que o objetivo do artista é a imitação dos efeitos danatureza sobre o olhar, apontando como exemplos aescultura grega, Leonardo da Vinci, John Constable,Théodore Rousseau, Jean-Baptiste-Camille Corot, Jean--François Millet e Jules Bastien-Lepage, pioneiros da “escolanaturalista”. Embora considere a fotografia superior aodesenho a carvão e à gravura, Emerson não deixa de apontar

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19. Francesca Alinovi.Op. cit., p. 53.

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suas limitações: colorido e tradução dos valores relativos.Isso não lhe impede, porém, de definir a fotografia como umaobra de arte, pois, do mesmo modo que o pintor, o fotógrafoseleciona, toma decisões, recorre à pose20.O que Emerson entende por fotografia de raízes naturalistas

é evidenciado em Life and Landscape in the Norfolk Broads [Vida epaisagem nos campos de Norfolk, 1886], realizado em parceriacom o pintor T. F. Goodall. Colocando-se sob a égide dapintura naturalista francesa e da tradição inglesa da reportagemregional, Emerson traça um painel sensível da vida rural na EastAnglia, no qual exibe “uma terra de neblinas, águas refletidas ehorizontes planos, habitada por pescadores, cortadores dejuncos, pequenos fazendeiros e barqueiros”.21

O naturalismo apregoado pelo fotógrafo não se confundecom o realismo, que ele considera descritivo, embora as duasvertentes tenham como pressuposto a fidelidade à natureza eo uso de modelos reais. O que Emerson persegue é uma“impressão” verdadeira22, isto é, uma reprodução do real e danatureza enraizada na visão e, logo, no princípio de seleção.Essa concepção guia claramente o conjunto de imagenspublicado em 1886, que não deixa de evidenciar a presençade modelos pictóricos precisos – Bastien-Lepage, Millet eJules Breton –, cuja idealização heroica da vida camponesa étransposta para a realidade britânica.Em 1889, Emerson publica Naturalistic Photography for

Students of the Art [Fotografia naturalista para estudantes dearte], no qual expõe uma sequência rigorosa de princípios:1. a fotografia é um meio “independente”, que não necessitade empréstimos ou imitações de outras artes; 2. a câmaraexpressa, sem nenhuma ajuda, uma visão individual;3. o conteúdo emotivo reside na imagem em si; 4. não épermitida nenhuma manipulação ou “combinação” denegativos; 5. a composição nada tem a ver com fórmulas outeorias místicas23.

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20. Peter Henry Emerson.“Photography, a Pictorial Art”. In: Beaumont Newhall (org.).Photography: Essays and Images. Nova York: The Museum of Modern Art, 1980,pp. 159-62.21. Ian Jeffrey, Photography: a Concise History. Nova York/Toronto: Oxford UniversityPress, 1981, p. 68.22. Peter Henry Emerson.Op. cit., p. 162.23. Douglas Davis.“Un bagliore della luce del sole”. In: La foto d’arte. Milão: Fabbri,1983, v. I, p. 14.

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Tomada de posição radical contra o artificialismo dafotografia artística e da impressão composta, o livro tomanovamente como ponto de partida as teorias de VonHelmholtz, que lhe permitem definir os limites físicos da visãofotográfica: unicidade do ponto de vista do sujeito e distânciaque o separa do objeto visualizado. A partir dessa premissa, oautor estabelece uma clara distinção entre o aparelhofotográfico – que capta unilateralmente todos os elementosexteriores que compõem uma paisagem – e o olho humano,que elabora uma seleção desses mesmos elementos,obedecendo a imperativos psicológicos e não meramentefisiológicos. Como a única imagem legítima é a retiniana,Emerson estaria, segundo Marc Mélon, propondo um debatenovo sobre a representação do real e abrindo caminho para afotografia moderna. O que, de fato, importa numa fotografianão é o real em si, mas um real transformado em imagempelo olho e captado como uma “impressão” pelo sujeito24.

5. Peter Henry Emerson,A colheita do feno no pântano.Prancha de Life and Landscape in theNorfolk Broads, 1886.

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24. Marc Mélon.Op. cit., p. 84.

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Se isso já havia sido evidenciado em Life and Landscape inthe Norfolk Broads, é também o eixo fundamental de Pictures ofEast Anglian Life [Imagens da vida em East Anglia, 1888], para oqual Emerson remete o leitor de Naturalistic Photography forStudents of the Art, que havia sido publicado sem ilustrações.Uma vez que o elemento básico de uma fotografia é a

impressão e não a descrição literal da natureza, Emersonpropõe a adoção do foco diferencial, considerando falsostanto o alto contraste quanto a definição muito nítida daimagem. Como o campo visual não seria inteiramenteuniforme – a área central seria claramente definida, mas omesmo não aconteceria com as margens, mais ou menosmanchadas –, a adoção do desfoque permitiria suavizar oscontrastes e a nitidez da imagem:

(…) foco apenas no objeto principal e todo o resto sem nitidez;e mesmo o objeto principal não deve estar perfeitamente nítidocomo faria uma lente óptica normal.25

Alvo de muitas críticas, mas seguido por inúmerosfotógrafos que começam a pautar-se pelo estilo“impressionista”, Emerson repudia as próprias ideias emThe Death of Naturalistic Photography [A morte da fotografianaturalista, 1891], aconselhado pelo pintor James Whistler,que lhe mostra ser falaciosa a confusão entre arte e natureza;e sob o impacto das pesquisas dos químicos Ferdinand Hurtere Vero Charles Driffield que provavam que o controle dasrelações tonais na revelação era mais rígido do que elepensava. Isso o leva a definir a fotografia como “uma artemuito limitada”, uma vez que os valores verdadeiros nãopodiam “ser alterados à vontade na revelação”. Se a fotografiase fundamenta na interpretação da beleza da natureza graçasa valores tonais verdadeiros, sua artisticidade não poderiadeixar de ser contestada: ela retirava sua definição de umatradução alicerçada no estabelecimento de relaçõesquantitativas entre as intensidades luminosas, que asdescobertas científicas vinham relativizar26.

32

25. Apud Regina Maurício da Rocha. A poética fotográfica de Paul Strand. São Paulo:Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,1997, p. 20 (mimeo.).26. Ibid., pp. 21-3.

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Essa conclusão desalentadora leva-o a trocar o últimocapítulo de Naturalistic Photography for Students of the Art naterceira edição, publicada em 1898. “Fotografia, uma artepictórica” torna-se “Fotografia – Não arte”, uma vez que ela éreferida ao campo da ciência e comparada a um instrumentofuncional. A separação entre arte e fotografia não poderia sermais radical:

A arte é pessoal, as fotografias, ao contrário, são bens deconsumo feitas a máquina, bens utilitários como o são os utensíliosdomésticos.27

III. A fotografia pictorialista

O repúdio de Emerson não é suficiente porque muitosfotógrafos, inspirados por suas ideias, deixam de lado ospressupostos da fotografia artística e tomam como modelopreferencial a imagem indistinta. Consequentemente, aimagem nítida começa a ser deixada de lado, por ser sem vida,e toma corpo uma vertente denominada “fotografiapictorialista”. Os fotógrafos pictorialistas utilizam umalinguagem peculiar, caracterizada por tons sombrios, texturagranulada, efeitos decorativos e falta de perspectiva.Adotando novas técnicas de positivo, podem alterar a imagemfotográfica e torná-la semelhante a um quadro, sobretudo se aexposição havia sido feita sobre tecido. Alguns, como FrankEugene, raspavam os negativos para que suas fotografias seassemelhassem a pontas secas. Outros, como Constant Puyo,Robert Demachy e Heinrich Kühn, ampliavam as imagensreenquadrando-as e lançavam mão da goma bicromatada paradar-lhes um aspecto pictórico.Essa técnica, inventada por Rouillé Ladevèze em 1894,

consistia em revestir o papel com uma substância orgânicacomo o carvão ou outro pigmento, usando um pincel.O carvão, misturado ao bicromato, endurecia sob a ação daluz. A imagem aparecia quando o papel era lavado com águamorna. A revelação era feita, em geral, com um pincel ou comuma mistura de pó de serra e água quente. Graças a ela e ao

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27. Apud Francesca Alinovi.Op. cit., p. 103.

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bromóleo (que permite branquear as zonas sombrias de umaprova em papel de brometo para pintá-las com um pigmentooleoso), os fotógrafos pictorialistas conseguem alterarprofundamente a fotografia direta, controlando tonalidades,introduzindo luzes e sombras, obscurecendo e removendodetalhes demasiado descritivos. Muitos desses efeitos sãoconseguidos pelo uso dos dedos, de gravetos, lápis, pincéis,de instrumentos de gravura ou pela impressão da imagem emvários tipos de papéis artísticos28.Demachy torna-se um divulgador entusiasta da goma

bicromatada, que explica e defende em vários artigos e nolivro Photo-aquatint, or the Gum-bichromate Process [Água-tintafotográfica ou o processo da goma bicromatada, 1897],escrito em colaboração com Alfred Maskell. Aos que ocriticavam dizendo não ser fotografia mas depender dahabilidade manual, respondia que seu procedimento era ooposto daquele do pintor: removia o pigmento em vez deaplicá-lo. Afirmava ainda que se limitava a revelar a imagemcom o uso do pincel, alterando apenas valores e tons29.Dois outros procedimentos técnicos são utilizados pelos

fotógrafos pictorialistas: a platinotipia e a heliogravura.O primeiro, cuja patente foi registrada na França em 1878 porWilliamWillis Jr., proporcionava uma imagem ao mesmotempo exata e difusa, e uma extrema delicadeza na gradaçãodos valores do negativo, que será considerada como umaderivação da pintura de Whistler. A técnica da heliogravura –já utilizada por Nicéphore Niepce nos primórdios da imagemtécnica – é aperfeiçoada e simplificada por Karel Klíc em1880. A imagem que dela derivava era precisa e refinada,tendo sido utilizada sobretudo na divulgação das obraspictorialistas nas publicações especializadas30.No afã de defender a importância das manipulações

fotográficas, Demachy apresenta o pictorialismo como umquestionamento e uma correção do dispositivo fotográfico.Por isso, atribui o surgimento da tendência à “insatisfaçãogeneralizada dos fotógrafos artísticos com os errosfotográficos da prova direta”: tradução de falsos valores;

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28. Naomi Rosenblum.Op. cit., p. 298.29. Beaumont Newhall.Op. cit., p. 147.30. Françoise Heilbrun.“1900. La photographie pictorialiste: tradition ouavant-garde?”. In: 1900. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 2000, pp. 40-1.

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falhas na transposição por igual de detalhes importantes esem importância; registro monótono de texturas diferentes;manchas exageradamente brilhantes. A esse tipo de imagem,que não passava de uma cópia mecânica da realidade, opõe oresultado obtido pelo pictorialismo, fruto da “transcriçãopessoal da natureza” e, por isso mesmo, obra de arte, isto é,expressão particular de um artista31.Ao defender a intervenção no processo fotográfico,

Demachy não está simplesmente se posicionando contra umaconcepção de fotografia que havia se tornado dominante

6. Robert Demachy,Contrastes, 1904.Publicada em CameraWork, n. 5, 1904.

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31. Robert Demachy.“On the Straight Print”. In: Nathan Lyons (org.). Photographers onPhotography: a Critical Anthology. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1966, pp. 55-60.

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desde 1839. Sua atitude deve ser situada num contexto maisamplo, que engloba tanto o surgimento das chapas secas, dascâmaras portáteis e dos filmes de rolo, que popularizam afotografia e propiciam a expansão do mercado amador,quanto a insatisfação com a poética realista e com areprodutibilidade da imagem técnica, consideradas entraves àexpressão da individualidade do fotógrafo e à promoção deseu trabalho a obra de arte.A própria escolha do termo “pictorialismo” é significativa;

deriva da expressão inglesa “pictorial photography”, na qualo adjetivo remete a “picture”, ou seja, imagem ou quadro.A presença do termo “picture” na denominação inglesa domovimento lembra de imediato seu objetivo: dar a conhecer afotografia como imagem entre as demais imagens. Isso implicauma transformação profunda na natureza da fotografia, quepassa a ser vista como uma imagem feita à mão, julgada porsua artisticidade e sua capacidade de evocar sentimentos32,distante do tradicional estatuto realista a ela associado.Com o intuito de mostrar ao público que a fotografia era

arte, são tomadas várias iniciativas, como a fundação defotoclubes e a organização de exposições especializadas. Em1889, é realizada uma grande exposição em Berlim paracelebrar o cinquentenário da invenção da fotografia. Doisanos mais tarde, o Club der Amateur-Photographien, deViena, organiza uma mostra de seiscentas fotografias,selecionadas de um total de quatro mil por um júri integradopor pintores e escultores. A composição do júri geraprotestos, mas o precedente aberto – julgar a fotografia porsua qualidade estética – ganha adeptos. A mostra torna-se ummodelo para eventos anuais, cujos epicentros serão Bruxelas(1892), Londres (1893), Hamburgo (1893) e Paris (1894).O Salão Fotográfico de Londres, inaugurado em 1893, é

guiado pelo objetivo de declarar a completa emancipação dafotografia pictorialista, desligando-a das vertentes científicas etécnicas que haviam caracterizado por muito tempo o novomeio, defender seu desenvolvimento como arteindependente e propor novas possibilidades de promoção. Asopiniões da crítica dividem-se perante a iniciativa. Enquantoo primeiro número de The Studio publica artigos como

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32. Marc Mélon.Op. cit., p. 87; Naomi Rosenblum.Op. cit., p. 298.

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“O nascimento da arte na fotografia” e “A câmara é amiga ouinimiga da arte?”, com comentários de John Everett Millais,Lawrence Alma-Tadema e Walter Crane, o crítico de TheStar’s nega que a fotografia possa ser classificada entre as artesgráficas33.No mesmo ano, a Kunsthalle de Hamburgo hospeda a

Primeira Exposição Internacional de Fotógrafos Amadores,abrindo o espaço de um museu à fotografia. O diretor dainstituição, Alfred Lichtwark, que vê na exposição umapossibilidade de revitalização para uma arte moribunda comoo retrato, oferece ao público alemão uma ampla amostra danova vertente: seis mil obras realizadas por quatrocentos ecinquenta fotógrafos das mais variadas proveniências.Um fato merece ser destacado na organização dessas

várias exposições: reconhecida como imagem, a fotografia émostrada ao público como uma obra autossuficiente eindependente, pondo fim à tendência de acumular umtrabalho sobre o outro, típico das mostras e das feirasrealizadas até então. O novo estatuto alcançado pelafotografia pode ser aquilatado pelo cuidado que cercou amostra realizada em Turim em 1902. Além de ter sidoprojetada uma galeria que atendia às necessidades da novaimagem, os organizadores voltam sua atenção para ailuminação mais conveniente e, até mesmo, para o tipo demoldura mais adequado à valorização dos trabalhos emexposição34.Se o papel das exposições anuais é importante na

consolidação do movimento pictorialista, não menosimportante é a fundação de associações específicas entre 1891e 1910 – Wiener Kamera Klub (Viena), The Linked RingBrotherhood (Londres), Photo-Club de Paris, AssociationBelge de Photographie (Bruxelas), Gesselschaft zur Förderungder Amateur Photographie (Hamburgo) e Photo-Secession(Nova York), só para lembrar as de maior destaque.A associação mais importante é The Linked Ring

Brotherhood, fundada em Londres em 1892 por Henry PeachRobinson, Henry Herschel Hay Cameron, George Davison,Lionel Clark, Alfred Horsley Hinton, Alfred Maskell, entre

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33. Beaumont Newhall.Op. cit., p. 146.34. Paolo Costantini. “La Fotografia Artistica”. 1904-1917: visione italiana e modernità.Turim: Bollati Boringhieri, 1990, p. 20.

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outros. Inspirada no New English Art Club, a associaçãoé concebida como um grêmio masculino, passando aadmitir mulheres em 1900. Voltada exclusivamente para“o desenvolvimento da mais elevada forma de arte de que afotografia é capaz”35, The Linked Ring Brotherhood contaentre seus sócios com as figuras mais importantes dafotografia britânica ( James Craig Annan, Frederick H. Evans eFrank M. Sutcliffe) e estrangeira (Alfred Stieglitz, EdwardSteichen, Clarence White, Demachy, Puyo, René Le Bègue,Kühn), o que permite apresentar o pictorialismo como ummovimento consolidado, apesar das diferenças estéticas quecaracterizavam os vários artistas.Craig Annan, Evans e Sutcliffe, à diferença de Demachy, são

partidários da fotografia direta e confiam à própria relaçãocom o aparelho a evocação de sentimentos e atmosferaspoéticas. Craig Annan demonstra um interesse particular pelafotografia instantânea, sendo atraído pelos aspectosextraordinários e pouco usuais da realidade. Adota, aprincípio, o naturalismo de Bastien-Lepage e Emerson paraaderir posteriormente ao simbolismo, que lhe permite situarsuas visões momentâneas em cenários evocadores designificados mais gerais. Evans é célebre pelas paisagens, nasquais se demonstra atento a ritmos sutis e a repetições, epelas fotografias de catedrais inglesas e francesas,caracterizadas por jogos de luz e sombra que conferemordem e clareza à composição. Sutcliffe confia ao controle darelação entre as tonalidades do fundo e do primeiro plano asugestão de atmosferas etéreas36.Se The Linked Ring Brotherhood se opõe à Royal

Photographic Society, o Photo-Club de Paris, fundado em1894 por Maurice Bucquet, representa uma alternativa àSociété Française de Photographie. Entre seus membrosdestacam-se Demachy, Le Bègue e Puyo, adeptos daintervenção nos negativos. Os fotógrafos francesescaracterizam-se pela militância na divulgação do pictorialismopor intermédio da publicação de artigos e livros. O mais ativoé Demachy, mas não pode ser esquecido o papel de Puyo,autor de Objectifs d’artiste [Objetivas de artista, 1906], escrito

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35. Apud Naomi Rosenblum.Op. cit., p. 309.36. Ian Jeffrey.Op. cit., pp. 98-103; Naomi Rosenblum.Op. cit., p. 309.

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em colaboração com outro integrante do grupo, Jean Leclercde Pulligny. Para definir o que é uma fotografia artística, osdois autores valem-se das concepções de arte correntes noperíodo e estabelecem uma distinção entre o fotógrafoclássico, que se limita a intervir na composição da imagem, eo fotógrafo pictorialista, que imprime no seu trabalho a marcadecisiva de sua personalidade. A fotografia, nessa óptica,deixa de ser “um puro procedimento de reprodução” paraconverter-se num “meio de expressão”, sendo facultada aooperador a possibilidade de corrigir os defeitos próprios daimagem técnica, sobretudo a precisão exacerbada e a rigidezde contornos. À análise propiciada pela câmara fotográfica,Puyo e de Pulligny contrapõem a síntese alcançada pelopictorialismo graças à intervenção da personalidade criadorado fotógrafo37.A figura de maior destaque do Photo-Club de Paris é

Demachy, cujas obras se parecem mais com litografias quecom fotografias em virtude do uso da goma bicromatada.Seus temas preferenciais são o nu, apresentado em posesconvencionais e frias, de derivação acadêmica; o paisagismo,por vezes próximo de Claude Monet; cenas de balé, queevocam os desenhos de Edgar Degas, dos quais nãoconseguem, porém, emular os “exercícios de movimento”,como escreve a revista Photography em 190338.Um papel particular na divulgação da estética pictorialista é

desempenhado por revistas como Amateur Photography,Photogram, La Revue Photographique, Photographische Kunst, LaFotografia Artistica, Camera Notes e CameraWork. Ao mesmotempo, a fotografia ganha espaço em jornais e revistas gerais,nos quais se discute com frequência seu possível estatutoartístico. No fim do século XIX multiplicam-se os livrosdedicados à fotografia artística, entre os quais Photography as aFine Art [A fotografia como uma das belas-artes, 1901], docrítico norte-americano Charles Caffin39.Determinando a existência de duas vertentes para a

fotografia – utilitária, voltada para o registro dos fatos,

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37. Maria Teresa Bandeira de Mello. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no Brasil.Rio de Janeiro: Funarte, 1998, pp. 56-8.38. Apud Beaumont Newhall.Op. cit., p. 147.39. Charles Caffin.“La fotografía como una de las bellas artes”. In: Joan Fontcuberta(org.).Op. cit., pp. 92-7.

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e artística, interessada na expressão da beleza –, Caffinapresenta a segunda como próxima da atitude de Corot, quebuscava a expressão das emoções que a realidade produzianele. Seu objetivo é, pois, registrar “a realidade, mas nãocomo realidade; chega até mesmo a ignorar a realidade seesta interferir com a concepção que foi visualizada”. Emboratrabalhe com as limitações impostas pelo caráter mecânico dacâmara fotográfica, o fotógrafo “avançado” não se diferenciado pintor. Tal como ele, deve ter imaginação, conhecer as leisda composição e da distribuição de luzes e sombras, distinguirvalores, possuir um “sentido instintivo” da beleza da linha, daforma e da cor. Se o pintor obtém uma síntese pelaeliminação dos elementos não essenciais e pelo agrupamentodaqueles importantes, o fotógrafo atua quase da mesmamaneira:

Estuda a paisagem até encontrar o ponto de vista que mais oimpressiona; descobre logo a hora do dia e as condiçõesatmosféricas mais adequadas à impressão que deseja plasmar. (…)Tendo tomado o negativo, pode, durante o processo da revelação eda impressão, controlar os resultados, reforçando uma parte oureduzindo outra até conseguir que os planos de sua fotografiapareçam autênticos e conseguir sua síntese.

Dotado de individualismo artístico, o fotógrafo “avançado”tinha condições de produzir obras que, exceto na cor,“possuem as características de um belo quadro”. Esse últimoaspecto assinalado por Caffin – a semelhança da fotografiaartística com uma obra de arte – constitui um dos ângulosmais polêmicos do pictorialismo. Muitas obras, de fato,conseguem erradicar as características próprias da fotografia,parecendo-se com desenhos, litografias e gravuras. A situaçãochega a tal ponto que o crítico Karl Voll escreve:

Desde a introdução da cópia a goma, os resultados não têmmais nada em comum com o que se conhecia como fotografia. Poresse motivo, pode-se dizer com orgulho que esses fotógrafosromperam com a tradição da reprodução artificial da natureza.Libertaram-se da fotografia.40

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40. Apud Helmut Gernsheim.Historia gráfica de la fotografía.Op. cit., p. 178.

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Omovimento pictorialista, que começa a entrar em criseno momento da eclosão da Primeira Guerra Mundial,consegue uma divulgação tão ampla graças às diferentesassociações, que não só promovem a causa da fotografiaartística como estabelecem uma rede de intercâmbios entresi, chegando a conquistar importantes espaços públicos.Além dos salões especializados, o pictorialismo divulga seusprodutos nas exposições universais (Paris, 1889 e 1900;Antuérpia, 1894; Liège, 1905) e em empreendimentos como aMostra Internacional de Arte Decorativa Moderna, realizadaem Turim em 1903. Importantes instituições museológicas daEuropa e dos Estados Unidos começam a expor trabalhosfotográficos desde 1893: a Academia Real de Berlim, aKunsthalle de Hamburgo e as galerias norte-americanasAlbright, Carnegie e Corcoran. Três anos mais tarde, oMuseu Nacional dos Estados Unidos adquire fotografias parasuas coleções, enquanto o governo belga cria um MuseuFotográfico como anexo dos Museus Reais de Arte eHistória.Outro passo importante na aceitação da fotografia como

arte é dado no final do século XIX, quando a Secessão deMunique expõe trabalhos fotográficos ao lado de quadros(1898). Seu exemplo é seguido pela Exposição Internacionalde Artes e Indústria, realizada em Glasgow em 1901. No anoseguinte, a fotografia pictorialista não só é aceita como éjulgada com os mesmos critérios reservados às artestradicionais na mostra organizada pela Secessão de Viena. SeAlfred Stieglitz, a partir desses episódios, sublinha a recepçãofavorável que a fotografia estava conseguindo como “meio deexpressão artística sério e original”41, não se pode deixar delevar em conta um acontecimento de signo oposto, do qual éprotagonista o norte-americano Edward J. Steichen. Tendosido aceito no Salão do Campo de Marte (Paris, 1902) comum quadro, seis desenhos a carvão e dez fotografias, temproibida a exibição dessas últimas – inscritas como gravuras –,quando o júri se dá conta de sua verdadeira natureza.O status alcançado pela fotografia leva os adeptos do

pictorialismo a buscarem uma história para a nova imagem, na

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41.Alfred Stieglitz.“Modern Pictorial Photography”. In: Richard Whelan (org.). Stieglitzon Photography: his Select Essays and Notes. Nova York: Aperture, 2000, p. 144.

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qual se destacam como marcos fundamentais David OctaviusHill, redescoberto por Craig Annan em 1890; Julia MargaretCameron, da qual Robert de la Sizeranne divulga trechos deAnnals of my Glass-house [Crônicas de minha estufa]; Emersone Robinson. Hill e Cameron apontam para a busca de umavisualidade alicerçada em qualidades plásticas evidentes e,sobretudo, na capacidade de criar uma luminosidade queemerge da escuridão (Hill) e de lançar mão da imagemdesfocada para abrandar os efeitos de realidade (Cameron).Emerson e Robinson representam a vertente teórica dopictorialismo, embora suas posturas sejam divergentes. DeEmerson, o pictorialismo retira sobretudo a ideia da imagemindistinta, congenial à opção por alguns parâmetros plásticos– impressionismo e Whistler, arauto da doutrina da arte pelaarte, cuja obra se caracterizava pela busca de sugestões sutis,da tradução de valores e da criação de atmosferasparticulares – e à escolha estilística de um Demachy, de umPuyo, de um Dubreuil. Robinson interessa pela proposta daequivalência entre a composição fotográfica e as regrastradicionais da pintura, da qual deveria brotar uma sensaçãode prazer para o espectador, e pela busca da idealização doreal graças a truques e manipulações, capazes de expressar opensamento e a personalidade do artista.Ao buscar inspiração na pintura, o pictorialismo olha tanto

para artistas individuais (Diego Velázquez, Eugène Delacroix,Constable, Rousseau, Corot, Millet, Bastien-Lepage, Whistler,Arnold Böcklin, Monet) quanto para alguns movimentoscontemporâneos (pré-rafaelismo, impressionismo, tonalismoe simbolismo). Os temas utilizados são, de preferência, osconsagrados pela tradição pictórica – paisagens, figurasfemininas idealizadas, nus, alegorias, retratos, naturezas--mortas – em mais uma demonstração da vontade deequiparar a fotografia à arte maior da pintura, embora a faltade colorido a aproximasse muito mais das artes gráficas.

IV. Stieglitz e a Photo-Secession

Stieglitz, que havia estudado fotoquímica na Alemanha comHermann Wilhelm Vogel, confere novo rumo ao debate sobrea fotografia artística nos Estados Unidos, a partir de 1890.

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Encorajado por Vogel, começa a fotografar em 1883-1884,demonstrando, de início, interesse por temas pitorescos,perseguidos em viagens pela Europa. Se a produção desseperíodo remete a um léxico realista, próximo da pintura degênero então em voga, em obras como Raios de sol – Paula,Berlim (1889), o fotógrafo denota a busca de efeitospictóricos, visíveis sobretudo no contraste arrojado entre luze sombra, que lhe permite definir os detalhes da composição.De volta aos Estados Unidos em 1890, engaja-se na

causa da fotografia artística para contrastar o domínio da“ideologia Kodak”, cujos efeitos considerava deletériospara o desenvolvimento da nova imagem. Converte-se,entretanto, à câmara manual após ter visto o trabalho deWilliam B. Post, membro do Amateur Photographers of NewYork. Com ela realiza Inverno – 5a. Avenida (1893) e O terminal(1893), cujos resultados atribui a uma “espera paciente”, quelhe possibilita captar “o momento em que tudo está emequilíbrio”42.Partidário da fotografia direta, lança mão de delicadas

gradações tonais que resultam numa imagem não de todonítida, pois deseja aproximar a própria visão da pictórica. Seusmodelos são Emerson e George Davison: em seu nome atacao “absolutamente distinto”, tendo como parâmetro artísticoa crença na verdade da natureza43. No fim dos anos 1890realiza algumas experiências com a goma bicromatada, quedefine “um meio de expressão ilimitado”44.A defesa dos processos de manipulação não pode ser

dissociada da busca de um estatuto artístico para a fotografia,na qual o conhecimento técnico comungava com osentimento e a inspiração. Para retirar da fotografia a pechade trabalho mecânico, Stieglitz torna-se um ativo divulgadordos processos técnicos que envolvem a produção de umaimagem, demonstrando a necessidade de habilidadesequivalentes à criação de uma pintura. Uma vez que taisprocessos deixaram de ser mecânicos e automáticos e setornaram “instrumentos maleáveis nas mãos do artista para

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42.Alfred Stieglitz.“The Hand Camera. Its Present Importance”. In: Richard Whelan(org.).Op. cit., p. 68.43.Alfred Stieglitz.“The Joint Exhibition at Philadelphia”. In: Richard Whelan (org.).Op. cit., pp. 41-2.44.Alfred Stieglitz.“The Progress of Pictorial Photography in the United States”.In: Richard Whelan (org.).Op. cit., p. 97.

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levar adiante suas ideias”, não haveria razão para nãoconsiderar a fotografia como um meio de expressão artística:

O fotógrafo moderno, graças à introdução de um sem-númerode métodos de impressão aperfeiçoados, tem a possibilidade dedirigir e moldar, a seu prazer, virtualmente cada estágio daprodução de sua imagem. Pode completar, corrigir ou eliminar;pode mesmo introduzir cor ou algumas combinações de cor porintermédio de impressões sucessivas – semelhantes àquelasutilizadas na litografia – para produzir quase todo efeito que seugosto, habilidade e conhecimento ditarem.45

A fim de divulgar a fotografia artística, que distingue dafeita por ignorantes (que não contribui em nada para aafirmação da nova imagem) e da puramente técnica46, edita, apartir de 1892, The American Amateur Photographer. Cincoanos mais tarde, passa a dirigir Camera Notes, órgão de TheCamera Club, que surge da fusão entre o AmateurPhotographers of New York e o New York Camera Club.Publicação trimestral, que continha em cada número duasfotogravuras, às quais competia ilustrar “o desenvolvimentode uma ideia orgânica, a evolução de um princípio interno”,ser “um quadro e não uma fotografia”47, Camera Notes torna--se rapidamente a mais importante revista especializadanorte-americana. Além de reproduzir artigos e ensaios derevistas europeias, Stieglitz encomenda matérias a fotógrafose incumbe os críticos Sadakichi Hartmann e Charles Caffin dediscutir as relações entre fotografia e arte. Os fotógrafosdivulgados por Camera Notes são todos de orientaçãopictorialista: George Sealey, Gertrude Käsebier, Steichen,Clarence White, Fred Holland Day.Em fevereiro de 1902, ao ser convidado por Charles de

Kay, diretor do National Arts Club, a organizar umaexposição de fotógrafos americanos, Stieglitz propõe o termo“Photo-Secession”, com o qual passará a ser conhecido umgrupo integrado por Frank Eugene, Gertrude Käsebier,Joseph Turner Keiley, Steichen, White, William B. Dyer, AlvinLangdon Coburn, Paul Haviland, Karl Strauss, entre outros.

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45.Alfred Stieglitz.“Modern Pictorial Photography”.Op. cit., pp. 144-5.46.Alfred Stieglitz.“Pictorial Photography”. In: Richard Whelan (org.).Op. cit., p. 103.47. Apud Regina Maurício da Rocha.Op. cit., p. 9.

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Num artigo de 1903, no qual estabelece um contrapontoentre o “ultraconservantismo” das massas e o “entusiasmofanático” dos revolucionários, Stieglitz atribui o nascimentoda Photo-Secession ao protesto destes contra aquelas.Tomada de posição contra as concepções corriqueiras, aPhoto-Secession tinha como objetivo o reconhecimento dopictorialismo não como “servo da arte, mas como um meiodistinto de expressão individual”48.Se o termo “secessão” apontava para um afastamento

decidido da “ideia corrente do que constitui uma fotografia”,havia um elemento simbólico na escolha, sublinhado pelopróprio Stieglitz: a Photo-Secession inspirava-se nos modelos

7. Alfred Stieglitz,Setembro, 1899.Publicada em CameraWork, n. 12,1905.

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48.Alfred Stieglitz.“The Photo-Secession”. In: Beaumont Newhall (org.).Op. cit., p. 167.

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de ruptura com o mundo oficial da arte propostos pelasSecessões alemãs e austríacas49. Uma vez que o termoeuropeu se aplicava explicitamente às realizações plásticas, aoapropriar-se dele, Stieglitz demonstra seu desejo de afirmar afotografia como uma forma moderna de arte, próxima doespírito de rebeldia que caracterizava as mais novasmanifestações criadoras:

Como todas as secessões, a Photo-Secession nada mais é doque um protesto ativo contra o conservantismo e o espíritoreacionário daqueles cuja autocomplacência os imbui da ideia deque as condições existentes estão próximas da perfeição (…)O objetivo da Photo-Secession não é, como geralmente se supõe,o de impor suas ideias, ideais e padrões ao mundo fotográfico, maso de insistir sobre o direito de seus membros de seguirem aprópria salvação como eles a concebem, junto com a esperançaque, pela força de seu exemplo, outros também consigam por sipróprios ver a verdade como eles a veem. Essa esperança nuncaserá realizada pela aceitação débil de padrões nos quais não seacredita, nem pelo compromisso (…).50

O empenho com que Stieglitz defende a Photo-Secession eo fato de conseguir reunir rapidamente os melhores fotógrafospictorialistas em volta de seu empreendimento podem seranalisados à luz de uma hipótese de Françoise Heilbrun.O grupo norte-americano, embora sob a égide deimpressionismo e simbolismo, não demonstraria a mesmasujeição dos pictorialistas europeus em relação a umatradição artística ainda viva. Por isso, acreditava estarparticipando da fundação de uma arte nacional na mesmamedida dos artistas plásticos51.O interesse pela definição de uma arte norte-americana

explica, de fato, a exposição conjunta da Photo-Secession comos pintores que integravam o grupo The Eight (cujo núcleoinicial é conhecido como Ash Can School) em janeiro de1908. Stieglitz havia demonstrado estar próximo do interesse

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49.Alfred Stieglitz.“The Origin of the Photo-Secession and How it Became 291 (I)”.In: Richard Whelan (org.).Op. cit., p. 120.50.Alfred Stieglitz.“The Photo-Secession – Its Objectives”. In: Richard Whelan (org.).Op. cit., p. 157.51. Françoise Heilbrun (org.).“ ‘Camera Work’. Defense et illustration d’une certainephotographie”. In: CameraWork. Paris: Centre National de la Photographie, 1983, s.p.

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dos artistas da Ash Can School pela vitalidade da culturapopular e pela definição de novos temas na arte norte--americana, derivados sobretudo da vivência urbana, na épocada realização das cenas nova-iorquinas da década de 1890.O espírito que animava os secessionistas era, contudo, bemdiferente do que estava na base da pintura de Robert Henri,John Sloan, William Glackens, George Luks e Everett Shinn,e só a atitude antiacadêmica do grupo e a busca de temasenraizados na cena americana explicam a confluênciamomentânea de duas concepções de arte que, em 1908,eram profundamente dicotômicas.Declaradamente socialista, Henri buscava uma arte capaz

de dirigir-se às massas, na qual os aspectos vitaisprevalecessem sobre os estéticos. De acordo com taispressupostos, elege como temas preferenciais a vida urbana eo homem comum, considerados vulgares por uma crítica quetinha como referencial absoluto os temas sublimes e oacabamento exaustivo da pintura acadêmica. Sua rebeliãocontra as normas impostas pela Academia deita raízessobretudo em ideais éticos de caráter progressista edemocrático, que o levam a privilegiar o individualismo e umaarte próxima do cotidiano, capaz de expressar uma realidadeem transformação. Nem por isso adere às propostasestéticas da vanguarda francesa em sua primeira viagem aParis (1888-1891). Partidário do credo realista, impressiona-secom a habilidade técnica de William-Adolphe Bouguerau ecom a paleta sombria e a pincelada rápida do Édouard Manet“espanhol”, vindo a interessar-se posteriormente por FranzHals, Velázquez, Francisco Goya, Honoré Daumier, PaulGavarni, Jean-Louis Forain e Constantin Guys.Defensor de uma arte americana, isto é, sincera, direta,

imediata, alheia à sofisticação, ao artifício e a um acabamentoexaustivo, Henri não poderia concordar com o queconsiderava o traço fundamental de Stieglitz: umultramodernismo novidadeiro e, por isso mesmo,antidemocrático. O fotógrafo, à diferença de Henri,propugnava a configuração de uma arte americana e modernaao mesmo tempo. Se a captação da cena americana eraimportante, não menos importante era a concepção dafotografia como expressão de uma necessidade interior, deuma visão própria, não obrigatoriamente em sintonia com os

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valores e os objetivos da sociedade52, como comprovam suasdeclarações sobre a Photo-Secession e a concepção deimagem que estava na base do grupo.A ideia da fotografia como uma arte americana e moderna é

defendida por Coburn, que propõe um confronto com a pinturaa partir dos modos de configuração da imagem. Enquanto napintura a imagem se forma de maneira lenta e gradual, nafotografia ela corresponde a “um impulso mental instantâneo,concentrado, seguido por um período de fruição mais longo”.Fruto da era do aço, a fotografia pictorialista é particularmenteadequada às estruturas gigantescas dos Estados Unidos. Entreseus melhores representantes, Coburn destaca o Stieglitz deInverno – 5ª. Avenida, obra que considera resultado da“combinação de conhecimento e segurança de visão”, imbuídadaquela qualidade instantânea que é própria da vida53.A contribuição norte-americana à renovação da fotografia,

sem a intermediação das escolas artísticas de Paris, é tambémlembrada por Paul Strand, que confere ao grupo da Photo--Secession um papel pioneiro nesse contexto. Na visão deStrand encontra-se a confirmação da hipótese de FrançoiseHeilbrun: a força da fotografia dos Estados Unidos deve serbuscada na ausência de qualquer fórmula fotográfica ougráfica e na despreocupação com qualquer definição sobre anatureza da arte. Imagem técnica e cena americana caminhamparalelas. O espírito que preside a construção do arranha-céuestá também presente nas imagens de Stieglitz, que soubecaptar como ninguém “a tremenda energia e a força potencialde Nova York”. Ou no seu reverso especular – na sugestãosensível da “calma simplicidade” da vida das pequenas cidades,da qual são testemunhas as primeiras obras de White.Alicerçadas em valores nacionais, tais realizações alcançamuma expressão universal, pois demonstram “um intensointeresse pela vida”, que as torna parte do patrimônio comumda humanidade54.Os argumentos de Strand remetem a um momento

posterior no debate fotográfico estadunidense, quando a

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52. Barbara Rose. American Art since 1900: a Critical History. Londres: Thames &Hudson, 1967, pp. 33, 38-9.53.Alvin Langdon Coburn.“The Relation of Time to Art”. In: Nathan Lyons (org.).Op. cit., p. 52.54. Paul Strand.“Photography”. In: Alfred Stieglitz. CameraWork: the CompleteIllustrations: 1903-1917. Colônia: Taschen, 1997, p. 781.

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estética pictorialista começa a ser contestada em nome daobjetividade da imagem. A fotografia, concebida comoexpressão viva, pressupõe duas operações paralelas: orespeito pelo objeto e a utilização das qualidades potenciaisdo meio. Graças a elas, o fotógrafo pode expressar o“próprio sentimento a respeito do mundo”, não comodescrição de “estados interiores do ser”, mas comotranscendência da visão individual. O que significa que eledeve subsumir no interesse que a humanidade tem pela vidada qual participa55.Os nomes apontados por Strand merecem algumas

considerações ulteriores, com exceção de Stieglitz, o qual,salvo aquele pequeno intervalo em que fez experiências comas técnicas de manipulação, é um assertor convicto dafotografia direta. White, mesmo não usando processosmanipuláveis, é o verdadeiro protótipo do fotógrafo

8. ClarenceWhite,Paisagem – Inverno, 1908.Publicada em CameraWork, n. 23,1908.

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55. Apud Regina Maurício da Rocha.Op. cit., p. 69.

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pictorialista. Aberto ao diálogo com várias expressõesartísticas – pré-rafaelismo, art nouveau, arte japonesa,Whistler, William Merrit Chase, John Singer Sargent –,caracteriza-se pelo interesse demonstrado pela luz e suasimbologia, pela desfocalização da imagem e pela criação decenas cotidianas imbuídas de qualidades líricas ecuidadosamente posadas. Quanto aos demais fotógrafoscitados no artigo de 1917 – Steichen, Eugene e Käsebier –,é patente um recorte temático interessado em afirmar aforça da fotografia norte-americana. Não por acaso, éenfatizada sua produção retratística, caracterizada pela“originalidade” e pela “penetração de visão”56, deixandode lado o recurso constante a temas simbólicos e técnicasde manipulação.A Photo-Secession, na realidade, apresenta duas vertentes

em seu interior: uma que explora temas e texturasefetivamente fotográficos, na qual Sadakichi Hartmanninscreve Stieglitz e White; outra, representada por Steigen eEugene, que se voltam para um tratamento e para temaspictóricos na esteira de Demachy. Embora Hartmann defendao pictorialismo em sua totalidade, por opor-se ao carátermecânico e imitativo de boa parte da arte contemporânea,não deixa de conferir um destaque particular para a novidadeengastada nas cenas urbanas de Stieglitz e Coburn:

São os homens que preferiram as ruas da cidade, oimpressionismo da vida e os aspectos anticonvencionais danatureza em termos de indumentária e pose, que enriqueceramocasionalmente nosso patrimônio de impressões pictóricas. Emmuitos momentos, descobriram e conquistaram motivos novos einéditos e improvisaram em relação às leis da composição com ahabilidade de verdadeiros virtuoses.57

A existência de duas linhas de atuação no âmbito daPhoto-Secession é também apontada por Marius De Zayas,que usa como parâmetros as figuras de Steichen e Stieglitz.Atribuindo ao fotógrafo-artista a capacidade de usar anatureza para expressar a própria individualidade, De Zayaslocaliza em Steichen a “perfeita fusão do sujeito e do objeto”.

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56. Paul Strand. In: Alfred Stieglitz.Op. cit., p. 781.57. Sadakichi Hartmann.“What Remains”. In: Alfred Stieglitz.Op. cit., pp. 558-60.

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Stieglitz, ao contrário, pauta-se pela “eliminação do sujeito naForma representada, em busca da pura expressão do objeto.Ele está tentando fazer sinteticamente, com os meios de umprocesso mecânico, o que alguns dos artistas mais avançadosdo movimento moderno estão tentando fazer analiticamentecom os meios da Arte”58.O paralelo proposto pelo caricaturista mexicano não

responde apenas aos requisitos de uma nova visão que estavase configurando nas imagens de Stieglitz. Dá conta também daatividade de divulgador da arte moderna que o fotógrafochamara a si a partir de 1907. As Pequenas Galerias da Photo--Secession, fundadas em novembro de 1905, não se limitam aexpor trabalhos de Steichen, Käsebier, Keiley, White, Dyer,Coburn, David Octavius Hill, Evans, Craig-Annan, do barãoAdolph De Meyer, dos membros do Trifolium (Heinrich Kühn,Hugo Henneberg, Hans Watzek), além do próprio Stieglitz.A partir de 1907, com a exposição dos desenhos da artistasimbolista norte-americana Pamela Colman Smith – que seinspirava no grafismo de Aubrey Beardsley e no estetismo dematriz botticelliana dos pré-rafaelitas –, Stieglitz dá início aum intenso trabalho de divulgação da produção artísticamoderna, tanto internacional quanto nacional. À mostra deColman Smith seguem-se, em 1908, as exposições deAuguste Rodin e Henri Matisse, com as quais se inaugura umapolítica de difusão das tendências artísticas mais recentes nosEstados Unidos, antes mesmo do polêmico empreendimentodo Armory Show (1913).Após a transformação das Pequenas Galerias em 291

(1908), as exposições de arte moderna se intensificam: Henride Toulouse-Lautrec (1909), Matisse (1910, 1912), o DouanierRousseau (1910), Paul Cézanne (1911), Pablo Picasso (1911,1914), Francis Picabia (1913), Constantin Brancusi (1914),Georges Braque (1914), Gino Severini (1917). Fiel ao espíritoprimitivista da arte moderna, Stieglitz expõe, pela primeiravez no país, trabalhos de crianças (1912, 1914, 1915, 1916),organiza uma grande mostra de escultura africana59 e outra decerâmica arcaica e gravuras mexicanas (1914).

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58. Marius de Zayas.“Photography and Artistic-Photography”. In: Alfred Stieglitz.Op. cit., p. 711.59.A organização dessa exposição evidencia que Stieglitz pretende apresentar aescultura africana numa óptica diferente da dos expressionistas, pois valoriza os

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Dedica também um espaço considerável à arte modernanorte-americana, abrigando as exposições de Alfred Maurer(1909), John Marin (1909, 1910, 1911, 1913, 1915, 1916, 1917),Marsen Hartley (1909, 1912, 1914, 1916, 1917), MaxWeber(1911), Arthur G. Dove (1912), AbrahamWalkowitz (1912, 1913,1916), Oscar Bluemmer (1915), Elie Nadelman (1915), GeorgiaO’Keeffe (1916, 1917) e Stanton MacDonald-Wright (1917). Asescolhas do fotógrafo não são casuais, pois denotam o que eleentendia por arte moderna americana. Tratava-se de uma arteem sintonia com as mais recentes pesquisas europeias, umavez que incluía pintores de viés fauvista (Maurer, Bluemmer),cubista (Weber), primitivista (Walkowitz), os primeirosabstracionistas (Marin, Hartley, Dove, O’Keeffe) e o fundadordo sincronismo (Macdonald-Wright).O contato com os artistas plásticos provoca uma profunda

modificação nos rumos de 291, que, entre 1910 e 1917, sórealiza quatro exposições fotográficas, e na política editorialde CameraWork, revista fundada no final de 1902. A aberturada revista à discussão da arte moderna, a partir de 1910, gerauma perda progressiva de leitores e assinantes, que nãoconcordam com a divulgação de trabalhos não fotográficosnuma publicação especializada. Stieglitz defende suas escolhasem vários momentos, como comprova o editorial da ediçãodedicada a Rodin (abril-julho de 1911), no qual arrola trêsordens de fatores: apresentação da arte moderna;demonstração das possibilidades da reprodução fotográfica,quando guiada por “sentimento artístico e conhecimentotécnico”; divulgação das atividades da Photo-Secession e desua galeria60. Não consegue, porém, convencer o público darevista, que se sente definitivamente desnorteado com onúmero especial dedicado a Matisse e Picasso (agosto de1912), do qual não constava nenhuma reprodução fotográfica.Stieglitz admite ter sido convertido à arte moderna pelos

artistas que patrocinou. Weber e Walkowitz ajudam-no acompreender os alcances das novas poéticas. Marin, Hartley,Dove, O’Keeffe, que lançam mão daquele que Barbara Rose

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aspectos formais, a simplicidade plástica e o caráter estilizado e “abstrato” dasmáscaras exibidas. Cf. Michela Vanon.“Introduzione”. In: Michela Vanon (org.). CameraWork: un’antologia.Turim: Einaudi, 1981, p. 28.60. Apud Pam Roberts.“Alfred Stieglitz, 291 Gallery and Camera Work”. In: AlfredStieglitz.Op. cit., p. 25.

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define como um método simbolista, baseado na busca deequivalentes naturais para os próprios estados emocionais,fazem com que ele perceba a autonomia da pintura e passe aconceber a fotografia como um meio abstrato, apto asimbolizar as forças produtoras da natureza61.Se existe um elo dialógico entre Stieglitz e os novos

artistas norte-americanos, não se pode esquecer que ofotógrafo tem condições de entrar em contato direto com asexperiências modernas europeias graças às várias viagens querealiza entre 1904 e 1911. Conta ainda com a assessoria deSteichen, que o coloca a par das últimas novidades de Paris eserve de intermediário nas exposições de Rodin e Matisse.Em virtude desses contatos, Stiegliz acaba por conferir umnovo significado ao trabalho da Photo-Secession: sua tarefaprimordial fora provar que a fotografia se igualava às artes queadotavam uma atitude fotográfica; num segundo momento,cabia-lhe apoiar aqueles artistas que se dissociavam de talvisão “em favor da representação da forma”62.Esse argumento, apresentado em 1910, não é de todo

verdadeiro. A Photo-Secession não se guia por uma atituderealista, como demonstram os fotógrafos arregimentados e apolítica seguida por CameraWork. A revista pode serconsiderada uma continuação do trabalho realizado emCamera Notes em vários níveis: conta com os mesmoseditores associados (Joseph Keiley, Dallett Fuguet, JohnFrancis Strauss); defende, a princípio, a causa dopictorialismo; divulga artigos sobre a relação entre fotografiae artes plásticas, frequentemente de autoria de Caffin eHartmann; publica reproduções (principalmente emfotogravura) de fotógrafos americanos e europeus,executadas quase sempre com a supervisão pessoal deStieglitz. Após a abertura das Pequenas Galerias, a revistafunciona como um catálogo para as principais exposições,embora Stieglitz pretendesse manter os doisempreendimentos separados.A concepção de fotografia que guia CameraWork é

claramente explicitada no editorial do primeiro número:

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61. Barbara Rose.Op. cit., pp. 40-1, 47. Sobre a relação de Stieglitz com a estéticasimbolista, ver : Allan Sekula.“On the Invention of Photographic Meaning”. In: VictorBurgin (org.). Thinking Photography. Houndmills: Macmillan, 1990, pp. 97-103.62. Apud Regina Maurício da Rocha.Op. cit., p. 34.

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Apenas amostras daquela obra que dê evidências deindividualidade e valor artístico, não importando sua escola, ou quecontenha algum aspecto excepcional de mérito técnico, ou queexemplifique algum tratamento digno de consideração, terãoreconhecimento nessas páginas. Não obstante, o pictórico será oaspecto dominante da revista.63

Pictórico é sobretudo sinônimo de Photo-Secession, emboraa revista não deixe de acolher imagens dos pioneiros dafotografia artística (Hill e Julia Cameron) e de representantesdo pictorialismo europeu (Craig-Annan, Davison, Demachy,Evans, Henneberg, Hinton, os irmãos Hofmeister, Kühn,Le Bègue, Puyo).O extremo requinte das reproduções que acompanhavam

cada número de CameraWork é analisado de maneira bemcrítica por Allan Sekula. A revista é considerada uma peçaartística, uma espécie de recipiente monumental para obrassubordinadas a uma concepção totalmente determinada porStieglitz: a afirmação da autonomia da imagem fotográfica. Otratamento dado às reproduções, o pequeno número deimagens em cada edição, seu agrupamento ao longo da revista,os títulos e as legendas impressos em separado constituem, aosolhos do autor, índices de uma concepção da fotografia comoobjeto precioso, como produto de um artesanato extraordinário,imbuído de uma retórica romântica e simbolista64.O diagnóstico de Sekula deve ser recebido com cautela.

Não há dúvida de que a visão de fotografia que guia o grupoda Photo-Secession apresenta pontos de contato com aestética do simbolismo e de que o apuro das imagens secoloca em oposição direta aos processos de reproduçãotécnica que estavam se difundindo na imprensa desde os anos80 do século XIX. Não se pode desconhecer, porém, que, aolongo da trajetória de CameraWork, Stieglitz vai ajustando seufoco, do que resulta um afastamento progressivo da visãopictorialista e da própria fotografia, à medida que vai seenvolvendo na causa da arte moderna.Um fato merece ser destacado nesse contexto: o envio de

fotogravuras a várias exposições parece atenuar aquela

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63.Alfred Stieglitz et al. “An Apology”. In: CameraWork: the Complete Illustrations:1903-1917, p. 104.64.Allan Sekula.Op. cit., pp. 92-7.

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ideologia antitécnica que Sekula atribui a Stieglitz. Tal atitudedemonstraria não haver um conflito insolúvel com a naturezareprodutível da imagem fotográfica, por mais requintada quefosse sua feitura. Embora a revista tratasse as imagensderivadas de negativos como gravuras originais, é necessárioatentar para as diferenças trazidas pelos processos dereprodução em termos de textura, cromatismo e escala65, quegeravam uma espécie de equivalência entre poéticasprofundamente individuais e dificilmente redutíveis a umdenominador comum.A última grande mostra da Photo-Secession, organizada

por Stieglitz para a Galeria Albright de Buffalo (novembro de1910), é a prova cabal de que a diferença entre a fotografiacomo registro e a fotografia como expressão individual eraum dado de fato. O sucesso alcançado pela exposição podeser aquilatado por dois índices: a aquisição de cinquentatrabalhos pela Galeria Albright e a aceitação da estéticapictorialista por parte de órgãos muito críticos como arevista American Photography. Isso não impede, porém, adesagregação da Photo-Secession a partir de 1911. Enquantouma parte de seus membros investe numa carreira individual,outros criam novos grupos como o Pictorial Photographersof America. Tais iniciativas não alcançam grande sucesso, umavez que o pictorialismo começa a entrar em declínio nãoapenas nos Estados Unidos, mas também na Europa, comodemonstra a crise pela qual estava passando The Linked RingBrotherhood desde 1907.Na mostra da Galeria Albright, Stieglitz havia exposto um

conjunto de imagens realizadas nas ruas e no porto de NovaYork, que se destacavam por suas qualidades estritamentefotográficas. O pictorialismo estava sendo superado de vezem prol de uma concepção de fotografia alicerçada na plenaaceitação das propriedades químicas e mecânicas do meio.Começa a configurar-se, assim, uma nova forma de realismo,que tem como pressuposto uma relação profunda e empáticaentre sujeito e objeto. Na edição de janeiro de 1911 deCameraWork, Paul Haviland destaca a importância da mostrade Buffalo ao afirmar que a fotografia representava “a únicacontribuição original da América à arte, o único campo

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65.A esse respeito, ver : Pam Roberts. In: Alfred Stieglitz.Op. cit., pp. 14-6.

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artístico no qual os Estados Unidos foram um guia e nãoepígonos da tradição europeia”. O papel de Stieglitz nesseprocesso não deixa de ser enfatizado pelo autor, que estabeleceuma linha de demarcação entre os fotógrafos europeus enorte-americanos. Em vez de tentar transformar a fotografianuma “serva das artes maiores”, os norte-americanos“tinham aberto um novo caminho graças ao desenvolvimentodas qualidades intrínsecas do meio fotográfico”66.As páginas de CameraWork trazem o testemunho desse

novo momento, que pode ser enfaixado nas figuras de DeZayas e Strand. O caricaturista mexicano, que havia declaradoque a fotografia não poderia ser considerada “nem mesmouma arte”, por estar sob o signo da natureza e não da ideia67,afirma posteriormente a possibilidade de uma fotografia quepoderia ser transformada em Arte. Ciência experimental daForma, a fotografia é dividida por De Zayas em duastendências – pura e artística. A primeira, longe de ser umnovo sistema de representação, é a negação de todos ossistemas anteriores; é o modo pelo qual o homem alcança “aevidência da realidade”. Processo de indigitação, a fotografiapura permite representar algo que está fora do homem; éuma pesquisa livre e impessoal, que almeja a pura objetividadee o conhecimento. A fotografia artística, por sua vez, lançamão da objetividade da Forma para expressar uma ideiapreconcebida, de maneira a produzir uma emoção. Meio deexpressão, permite ao homem representar algo que estádentro dele: a própria individualidade. O artista-fotógrafoenvolve a objetividade com uma ideia, “vela o objeto com osujeito”, pois é seu objetivo proporcionar o prazer68.Se De Zayas não estabelece nenhuma distinção qualitativa

entre fotografia pura e fotografia artística, Strand, aocontrário, faz derivar a principal qualidade da imagem técnicade uma característica que lhe é peculiar, uma “objetividadeabsoluta e irrestrita”. Em seu nome, Strand assume umaatitude moderna: defende a pureza do uso dos meios

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66. Paul Haviland.“La mostra all’Albright Gallery. Fatti, figure e note”. In: Michela Vanon(org.).Op. cit., pp. 141-2.67. Marius de Zayas.“Photography”. In: Allan Trachtenberg (org.). Classic Essays onPhotography. New Haven: Leete’s Island Books, 1980, p. 125.68. Marius de Zayas.“Photography and Artistic-Photography”. In: Alfred Stieglitz.Op.cit., p. 709.

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fotográficos e se mostra crítico em relação àqueles produtoshíbridos, nos quais “a introdução do trabalho manual e daintervenção é simplesmente a expressão de um desejoimpotente de pintar”. A crítica explícita ao pictorialismo éacompanhada pela enumeração pontual das característicasfundamentais da fotografia – honestidade e intensidade devisão como pré-requisitos de uma expressão viva. O ato defotografar requer do indivíduo “um verdadeiro respeito pelacoisa à sua frente, expressa em termos de claro-escuro (cor efotografia não têm nada em comum) por uma gama quaseinfinita de valores tonais que ultrapassam a habilidade da mãohumana. A mais plena realização disso é conseguida semtruques de processo ou manipulação, graças ao uso demétodos fotográficos diretos”. A busca de um novo realismoexplicita-se claramente na ideia da organização daobjetividade fotográfica. Como a imagem que dela derivanão é um mero registro, mas o resultado de uma relaçãocomplexa entre a aparência do mundo exterior e apersonalidade do sujeito, Strand faz repousar o atofotográfico numa concepção formal anterior à tomada,nascida das emoções, do intelecto ou de ambos.A objetividade pode ser organizada de duas maneiras: osobjetos tanto podem “expressar as causas de que são efeito”quanto “ser usados como formas abstratas, para criar umaemoção que não se refere à objetividade como tal”69.A objetividade defendida por Strand implica uma

manipulação do mundo pelo aparelho fotográfico, sem queisso signifique uma distorção da realidade. Interessado embuscar seus temas no mundo real, o fotógrafo usa recursos deiluminação, escolhe novos ângulos de visão, aproxima-se doobjeto de modo a obter close-ups, com o objetivo de proporum realismo inerente ao aparato e sintonizado com osalcances da arte moderna, sobretudo cubismo eprecisionismo. Essas mesmas qualidades são detectadas nasimagens de Stieglitz, que usa a câmara como um instrumentode conhecimento intuitivo, conseguindo resultados que nãopodem ser oferecidos por outros meios:

Encontramos, em primeiro lugar, no trabalho desse homem umsentido espacial e formal que, em vários momentos, alcança uma

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69. Paul Strand.“Photography”. In: Alfred Stieglitz.Op. cit., p. 780.

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síntese de objetividade tão pura quanto a que pode ser encontradaem qualquer outro meio. Vemos (…) um registro monocromáticode valores tonais e táteis tão mais sutil do que o que a mão humanapode registrar. Descobrimos igualmente a realidade de uma novasensibilidade da linha, tão finamente expressiva quanto a que a mãohumana pode desenhar. E notamos que todos esses elementostomam forma graças a uma máquina, a câmara, sem que se recorraao uso imbecil do foco suavizado ou de lentes defeituosas, ou aprocessos nos quais pode ser introduzida a intervenção manual.(…) No trabalho de Stieglitz há sempre uma aceitação plena dacoisa à sua frente, a objetividade que o fotógrafo deve controlar enunca evitar.70

Em nome dessa qualidade intrínseca da fotografia, Strandataca os fotógrafos que são atraídos pelos “aspectossuperficiais de Whistler, estampas japonesas, trabalhosmenores de paisagistas ingleses e alemães, Corot, etc.”.Ao usarem métodos e materiais extrínsecos, eles ameaçama expressividade inerente aos processos propriamentefotográficos: o pigmento anula a diferenciação de texturasproporcionada apenas pela fotografia, bem como toda sutilezatonal; a lente de foco suavizado não só reforça esses aspectos,ao criar uma linha difusa, como destrói a solidez das formas,atenuando a realidade exterior71. O fotógrafo, contudo, nãodeixa de ter uma visão histórica do fenômeno pictorialista.Se o considera superado, reconhece, porém, que o uso dosmétodos extrínsecos tenha sido talvez necessário “enquantoparte de uma experimentação e clarificação fotográfica”.Nessa abordagem crítica, insere-se sua própria trajetória,uma vez que Strand lembra seus exórdios pictorialistas naconferência proferida em 1923 na escola de fotografia dirigidapor Clarence White:

Fiz impressões a goma, cinco delas, e dei uma de Whistler coma lente de foco suavizado. Não há por que me envergonhar disso.Tive que fazer essa experiência pessoalmente numa época em queo verdadeiro significado da fotografia não havia se cristalizado, nemera definido tão nitidamente como hoje em dia, uma cristalização

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70. Paul Strand.“Photography and the New God”. In: Nathan Lyons (org.).Op. cit.,pp. 141-2.71. Paul Strand.“The Art Motive in Photography”. In: Nathan Lyons (org.).Op. cit.,pp. 147-8.

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que, diga-se de passagem, é resultado não de discursos e teorias,mas de um trabalho efetivamente realizado.72

Strand descobrira a fotografia como meio de expressãonuma visita feita à galeria da Photo-Secession em 1908, e suasprimeiras referências foramWhite e Gertrude Käsebier, aquem mostrou seus trabalhos, sem receber grandesincentivos. Tratava-se de obras totalmente vazadas novocabulário pictorialista. Caracterizadas por formas pouconítidas, sombras poderosas, jogos de reflexos, inscreviam-seno âmbito das evocações simbólicas prezadas pelo New YorkCamera Club, do qual o jovem fotógrafo era sócio e no qualestava aperfeiçoando seus conhecimentos da linguagemfotográfica, iniciada com Lewis Hine na Ethical Culture School.Uma vez que as imagens posteriores, reproduzidas em

CameraWork em duas ocasiões – outubro de 1916 e junho de1917 –, não eram datadas, é difícil estabelecer a cronologiaexata das primeiras obras modernas de Strand. NaomiRosenblum sugere o ano de 1913 para a transformação do seuestilo, alimentada pelo Armory Show, pelas exposições da 291e pelo contato com Steichen, Marin e Charles Sheeler.Posteriormente, o fotógrafo estreita laços com Stieglitz –que, em 1915, abre a Modern Gallery e se engaja na publicaçãode 291 – e conhece Morton Schamberg, Marcel Duchamp ePicabia73. Os artistas com os quais Strand entra em contatosão bem significativos para explicar o abandono dopictorialismo e a busca de uma nova linguagem fotográfica. SeStieglitz o leva a deixar de lado o foco suavizado, é nocubismo que descobre a possibilidade de uma organização doespaço em termos de unidade e de inter-relacionamento dasformas, de maneira a manter o olho do espectador nointerior da superfície pintada74. A partir de tais pressupostos,tem condições de compreender as propostas dosprecisionistas Morton Schamberg e Charles Sheeler, cujasformas puras, de perfis nítidos e geométricos simples,apresentavam evidentes pontos de contato com a capa

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72. Ibid.73. Naomi Rosenblum.“The Early Years”. In: Maren Stange (org.). Paul Strand: Essayson his Life andWork. Nova York: Aperture, 1990, p. 36.74.Ver declaração de Strand em: William Innes Homer. Alfred Stieglitz and theAmerican Avant-garde. Boston: New York Graphic Society, 1977, p. 246.

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concebida por Picabia para 291 (Jovem americana em estado denudez, 1915) e comMoedor de chocolate nº. 2 (1914), deDuchamp, publicado na capa de Blind Man em 191775.As seis imagens publicadas em CameraWork em 1916 são,

com uma única exceção, cenas urbanas, situadas pela críticaentre 1915 e 191676. Em três delas faz-se presente um dosmotivos caros à arte moderna – a rua animada portranseuntes e veículos –, permitindo a Strand propor umavisualização heroica de Nova York. Mesmo tratando-se deimagens realistas, o fotógrafo está empenhado em sublinharformas retilíneas e curvilíneas, jogos de claro-escuro, corposgeométricos sólidos. A visualização da cidade modernaespraia-se em várias direções: Strand é fascinado tanto peloestatismo tenso que emana dos edifícios, apresentados comoum puro jogo de linhas verticais, horizontais, transversais nocaso da paisagem com neve, quanto pelo dinamismo dostranseuntes, que gera sucessivos momentos de intersecção(Prefeitura), ou reforça a ideia de movimento produzida pelasrodas de carros e carruagens (NovaYork).A falta da linha do horizonte, presente em algumas dessas

imagens, é também o traço distintivo da mais famosa delas, aque tem como palco Wall Street. Strand propõe uma imagemdeterminada por uma série de contrastes: a geometrização, ogigantismo e o estatismo do edifício Morgan se contrapõemao aspecto diminuto e móvel dos transeuntes; o jogo decinzas e pretos da estrutura arquitetônica contrasta com asuperfície clara pontilhada de manchas escuras da parteinferior da composição. A regularidade rítmica das janelasnegras, que serve de contraponto ao “movimento físicoexpresso pelas manchas abstratas das pessoas e formas”77,conduz o olho do espectador à percepção de umaespacialidade única, contínua, realçada pelo extremoachatamento da imagem.O princípio de abstração, que estava na base de alguns dos

trabalhos divulgados em 1916, é reiterado nas “fotografiasabstratas puras”, publicadas no último número de Camera

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75. Barbara Rose. Op. cit., pp. 101-2.76.Ver : William Innes Homer. Op. cit., p. 249; Naomi Rosenblum.“The Early Years”. Op.cit., pp. 37-8; Nancy Newhall.“Paul Strand”. In: Paul Strand: Photographs 1915-1945.Nova York:The Museum of Modern Art, 1945, p. 4.77. Apud Naomi Rosenblum.“The Early Years”.Op. cit., p. 38.

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9. Paul Strand,NovaYork [Wall Street], 1916.Publicada em CameraWork, n. 48, 1916.

Work (junho de 1917), ao lado de retratos realistas e de cenasurbanas caracterizadas por um tratamento que evoca ocubismo (bidimensionalidade e geometrização da imagem,unidade espacial). Também no caso desses conjuntos adatação não é unânime: as “fotografias abstratas puras”oscilam entre 1914 e 1916; os retratos são situados entre1915 e 191678. Configura-se o perfil de um fotógrafo queexperimenta simultaneamente as várias possibilidadesproporcionadas pela câmara, sem pautar-se por aquela lógicaevolutiva que, nas artes plásticas, havia caracterizado apassagem do realismo à abstração.O editorial do último número de CameraWork, totalmente

dedicado a Strand, não estabelece diferença nenhuma entre asonze imagens reproduzidas num papel mais grosso e com uma

78.Ver : William Innes Homer.Op. cit., pp. 246-9; Naomi Rosenblum.“The Early Years”.Op. cit., pp. 39-40; Regina Maurício da Rocha.Op. cit., p. 45; Susan A. Harris.“PaulStrand’s Early Work: a Modern American Vision”. Arts Magazine, Nova York, v. 59, n. 8,abr. 1985, p. 117; Nancy Newhall.Op. cit., p. 4.

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tinta mais densa para melhor enfatizar “o espírito de suabrutal imediação”. A novidade de um trabalho, que não seconfundia com nenhuma experiência realizada na Europa enos Estados Unidos, é primeiramente relembrada a partir dotexto de apresentação de Strand no número anterior darevista. Nele Stieglitz afirmava:

Seu trabalho está enraizado na melhor tradição da fotografia.Sua visão é potencial. Seu trabalho é puro. É direto. Não conta comtruques de processo. Em tudo o que ele faz há inteligência aplicada.Na história da fotografia só há poucos fotógrafos que, sob o pontode vista da expressão, realizam realmente trabalhos de algumaimportância. E por importância entendemos trabalhos que têmalguma qualidade relativamente duradoura, esse elemento que dáreal significado a toda arte.

Tais qualidades ganham reforço com os últimos trabalhos,que

(…) representam o verdadeiro Strand. O homem que, realmente,faz algo a partir de dentro. O fotógrafo que acrescentou algo aoque foi feito antes. O trabalho é brutalmente direto. Destituído defrivolidade; destituído de adornos e de todo ismo; destituído dequalquer tentativa de mistificar um público ignorante, incluindo ospróprios fotógrafos. Essas fotografias são a expressão direta dehoje (…) representam a essência de Strand.79

As experiências abstratas são exemplificadas comAbstração: sombras do alpendre e Abstração: tigelas, nas quaisStrand adota alguns dos princípios fundamentais do cubismo,sem perder de vista um resultado eminentemente fotográfico.Os objetos são captados em suas formas estruturais, pois sãosubtraídos a toda visão sentimental; as texturas de suassuperfícies são claramente evidenciadas; as repetiçõesrítmicas das massas e das linhas luminosas constituem o cernedas imagens. Se em Abstração: tigelas o que se impõe deimediato é a composição determinada pela sobreposição dosquatro objetos, que gera vários pontos de vista num espaçounitário, em Abstração: sombras do alpendre, o que maischama a atenção é o emprego da luz com um fim intrínseco.

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79.Alfred Stieglitz.“Our Illustrations”. In: Richard Whelan (org.).Op. cit., p. 223.

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O branco, o preto e os cinzas desempenham o papel deformas numa obra que se destaca pela unidade dacomposição. A adoção da poética cubista responde a umobjetivo preciso: entender os princípios subjacentes àorganização do espaço pictórico de Picasso e seuscompanheiros e a unidade proporcionada por essa estrutura,além de resolver o problema de conferir um carátertridimensional a uma área bidimensional80.O diálogo com o cubismo cede lugar àquele com a

tradição de Hill – de quem o fotógrafo norte-americanoadmira a franqueza, a acuidade perceptiva e um“extraordinário sentimento pelas pessoas” –, no caso dosretratos. Para evitar o artificialismo da pose, Strand fotografafurtivamente seus modelos, uma vez que deseja captar sua“verdade interior”81. Se o resultado conseguido se distinguepor uma expressividade pouco usual na arte do retrato, nãose pode deixar de notar que esta não é devida apenas aosmodelos. Deve ser tributada igualmente ao partidocompositivo adotado pelo fotógrafo – uso de tonalidadesescuras, continuidade entre figura e fundo, aparição abruptados modelos, opção pela dimensão do busto que conferemonumentalidade às imagens. Tais recursos emprestam umasóbria harmonia à composição e uma profunda dignidade aosretratados, captados quase sempre em momentos deensimesmamento.Não deixa de ser significativo que Stieglitz encerre a

publicação de CameraWork com o número especial dedicadoa Strand, apresentado como o reverso do pictorialismo.A revista, que havia patrocinado a causa da fotografia artísticae incorporado a discussão sobre a arte moderna, pareciaperder sua razão de ser no momento em que despontava umfotógrafo capaz de realizar imagens enformadas por umaartisticidade próxima daquela da pintura, mas que não seconfundia com ela como resultado. Sua estrutura unificada emtermos de linha, forma, tom e ritmo era obtida com recursospropriamente fotográficos. Assim como era fotográfica sua

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80. Regina Maurício da Rocha.Op. cit., pp. 44-5; Susan A. Harris.Op. cit., p. 117; MichelaVanon.Op. cit., p. 38; Bonnie Yochelson.“Cubism and American Photography,1910-1930”. Artforum, Nova York, v. XXI, n. 4, dez. 1982, pp. 82-3.81. Paul Strand.“Photography and the New God”.Op. cit., p. 140; apud ReginaMaurício da Rocha.Op. cit., p. 95.

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principal qualidade: uma objetividade (mesmo nas abstrações),impossível de ser encontrada nas outras formas de arte, quenão excluía uma visão pessoal, e que a diferenciava daquelaprodução de um registro factual, quase sempre associada àfotografia não pictorialista.

V. Reavaliando o pictorialismo

O papel que Stieglitz atribui a Strand na superação daestética pictorialista é redimensionado por Marc Mélon.O autor, de fato, detecta numa obra como O edifício Flat-Iron(1902-1903), de Stieglitz, a presença simultânea dos preceitospictorialistas (ênfase nas tonalidades cinzas) e de uma novavisualidade, marcada por uma série de contrastes(massa/leveza, plano/linha) e por uma relação formal inédita.Ao escolher uma árvore que se subdivide em dois ramos,Stieglitz constrói uma relação de forças entre as duas partesda imagem, que se contrapõem e se complementam porintermédio da forma triangular, presente tanto no primeiroquanto no segundo plano. O jogo simbólico entre a árvore eo edifício estrutura uma imagem tensionada, caracterizadapelo conflito entre suas partes principais. É neste que reside anovidade de Stieglitz: ao buscar um enquadramento peculiar,o fotógrafo dá mostras de estar preocupado com aconfiguração de uma imagem que se justifica por si, e não porsua relação com a realidade exterior82.A análise dessa imagem leva Mélon a propor uma

diferenciação entre a primeira e a segunda geração defotógrafos pictorialistas. Negando o processo de identificaçãocom o real, que esteve na base da fotografia desde 1839, ofotógrafo pictorialista da primeira geração realiza um ato deconfrontação, por adotar um conjunto de técnicas dedistanciamento. Esses recursos desdobram-se em váriasdireções: desfocamento, uso particular da luz e do claro-escuro,despojamento de um excesso de realidade e de um excedentede matéria, ou, ao contrário, exacerbação da matéria. Se, graçasa eles, o pictorialismo cria um conflito com o real, não deixa deutilizá-los a favor da harmonia interna da imagem, ao trabalhar a

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82. Marc Mélon.Op. cit., p. 100.

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10. Alfred Stieglitz,O edifício Flat-Iron, 1902-1903.Publicada em CameraWork, n. 4, 1903.

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escala de valores, o tom e o contraste, o que lhe permite atingiruma dimensão pictórica. Essa harmonia interna é colocada emxeque por Stieglitz, que liberta a imagem do eixo visual que regesua construção e da relação conflitual na qual foi produzida,abrindo caminho para a fotografia moderna83.A contribuição da estética pictorialista para a fotografia

moderna é também lembrada por Françoise Heilbrun, que aconsidera uma etapa decisiva na história da imagem técnica.Mesmo que tenha dado lugar a muitas obras medíocres,assegurou o reconhecimento da fotografia como meio deexpressão plástica ao reivindicar a primazia da visão pessoaldo operador e ao enfatizar um aspecto contraditório, masimportante como o imaginário84.Uma visão mais matizada dos alcances do pictorialismo é

apresentada por Helouise Costa e Renato Rodrigues, queassinalam seus aspectos ambivalentes. Se, de um lado, opictorialismo pode ser visto como uma reação de ordemromântica, “que visava destruir o caráter revolucionário doseu meio de expressão”, pauta-se, de outro, por umquestionamento profundo da fotografia graças a seuexperimentalismo centrado na técnica85.Produção ambígua, que procura, não raro, escamotear o

caráter originário da imagem, o pictorialismo talvez possa seranalisado à luz de uma categoria como a “mestiçagem” porcolocar uma interrogação sobre a natureza e a legitimidade dafotografia. Descontentes com a concepção de fotografia queimperava no final do século XIX, os pictorialistas não hesitamem romper aquele pacto com o real que era considerado otraço essencial da imagem técnica. À pureza instrumentaldo meio, contrapõem uma reescritura86 da fotografia, tantorevendo o conceito de imagem fotográfica – não maissinônimo obrigatório de um real dominado – quantoresgatando figuras como Hill e Julia Cameron, que haviamdemonstrado as possibilidades artísticas da nova imagem desdeseus primórdios.

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83. Ibid., pp. 96-100.84. Françoise Heilbrun (org.).“ ‘Camera Work’. Defense et illustration d’une certainephotographie”.Op. cit., s.p.;“1900. La photographie pictorialiste: tradition ouavant-garde?”.Op. cit., p. 45.85. Helouise Costa; Renato Rodrigues da Silva. A fotografia moderna no Brasil.São Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 26-7.86. François Laplantine; Alexis Nouss. Le métissage. Paris: Flammarion, 1997, pp. 102-3.

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Lançando mão de técnicas que obliteram o caráter deregistro fiel conferido à fotografia pela sociedade oitocentista,os fotógrafos alinhados ao pictorialismo colocam, a partir dopróprio ponto de vista, uma questão central para a filosofia ea história da arte: a distinção entre o real (verdadeiro) e ailusão (imagem). Trata-se de um questionamento já propostopor Emerson, que havia feito passar para o segundo plano aproblemática da representação do real, ao legitimar tãosomente a imagem retiniana. A partir dele – de acordo comMarc Mélon –, a fotografia deixa de ser um problema derepresentação para tornar-se um problema de adequação,de equivalência87.Ao enfatizarem a natureza plástica dos processos

fotográficos, os pictorialistas não se limitam a negar que elessejam puramente mecânicos, requerendo “pouco ou nenhumpensamento”88. Buscam bem mais, pois lhes interessa definiruma esfera autônoma para a fotografia que a resgate da visãomecânica e lhe outorgue um estatuto artístico. Isso éevidenciado não apenas pelas obras fotográficas, mas tambémpelo debate constante sobre a (possível) natureza artística danova imagem, que pontua várias revistas e é um traçocaracterístico de CameraWork.Mesmo usando termos como hibridismo, mistura, impureza,

André Rouillé89 não se inscreve na lógica da “mestiçagem”,apresentando uma visão negativa do pictorialismo. Detectanele um paradoxo básico – ser uma arte fotográficaantifotográfica –, patente em vários níveis: nos modos de ver,entre a objetiva e o olho; nas maneiras de fazer, entre amáquina e a mão; nas formas, entre o nítido e o indistinto; napostura, entre a imitação e a interpretação; nos materiais,entre os sais de prata e a goma bicromatada; na tecnologia,em que o confronto entre duas lentes – uma convergente,outra divergente – é responsável pelo efeito de indistinção.O aspecto fundamental do pictorialismo reside, segundo o

autor, na abolição do motivo em favor da interpretação, ouseja, na ruptura de qualquer elo entre imagem e referente, da

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87. Ibid., p. 109; Marc Mélon.Op. cit., p. 84.88.Alfred Stieglitz.“Pictorial Photography”. In: Richard Whelan (org.).Op. cit.,pp. 103-4, 107.89.André Rouillé. La photographie: entre document et art contemporain. Paris:Gallimard, 2005, pp. 328-45.

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qual se gera o afastamento do caráter precípuo da fotografia.Ao deixar de lado o registro, o automatismo e a objetividade,a estética pictorialista produz uma aliança singular entre amáquina da fotografia e a mão do fotógrafo-artista,concebidas como entidades indissociáveis e antagônicas.A aliança máquina-mão, que deveria assegurar “a passagemda imitação servil à interpretação artística”, leva a concebera arte fotográfica como uma mistura de princípiosheterogêneos, como uma “arte necessariamente impura”,baseada na intervenção. Opondo-se à verdade documental,derivada da mecânica, da nitidez, da inumanidade e daobjetividade do procedimento, o pictorialismo defende “umregime de verdade baseado no indistinto, na interpretação, nasubjetividade, na arte. A verdade pictorialista estabelece-seno procedimento do misto: não é a imaginária do desenho eda pintura, não é a analítica da fotografia, mas a sintética daarte fotográfica”.Embora os defensores do pictorialismo tentem

demonstrar a existência de um paralelismo perfeito entrefotografia e pintura em termos de composição, é possívelquestionar tal postura a partir do prisma do sincronismo,proposto por Philippe Dubois:

Ali onde o fotógrafo corta, o pintor compõe; ali onde a películafotossensível recebe a imagem (mesmo que seja latente) de uma sóvez por toda a superfície e sem que o operador nada possa mudardurante o processo (apenas no tempo da exposição), a tela a serpintada só pode receber progressivamente a imagem que vemlentamente nela se construir (…), com a possibilidade de o pintorintervir e modificar a cada instante o processo de inscrição daimagem. Para o fotógrafo, há apenas uma opção a fazer, opção única,global e que é irremediável. Pois uma vez dado o golpe (o corte),tudo está dito, inscrito, fixado. Ou seja, não é mais possível intervirna imagem que se está fazendo. Se são possíveis manipulações –cf. os pictorialistas –, estas ocorrerão depois do golpe (do corte) ejustamente tratando a foto como uma pintura (…).90

O equívoco de vários pictorialistas reside justamente natentativa de igualar fotografia e artes plásticas em termos de

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90. Philippe Dubois.O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. bras. Marina Appenzeller.Campinas: Papirus, 1998, p. 167.

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composição e textura, tomando como modelo obras queremetiam à tradição acadêmica, ou apropriando-se dosefeitos das que articulavam uma proposta moderna. Aobuscarem uma totalidade, na qual o código fotográfico éfrequentemente obliterado, tais fotógrafos ensaiam asubstituição de uma identidade indesejada por uma identidadefictícia. Aqueles que, ao contrário, não buscam uma sínteseperfeita, mas exibem fissuras, passagens (mesmo quemínimas) entre uma linguagem e outra91, ou que constroem aprópria obra a partir de características próprias da fotografia,acabam por determinar a configuração de uma novavisualidade.Um dos elementos constitutivos dessa visão inovadora é

justamente o corte lembrado por Dubois. Ele está presenteno trabalho de vários fotógrafos desse período, que deixamde lado o enquadramento global da pintura – e, logo, a noçãoclássica de composição – em favor do recorte seco doreferente exterior: Pierre Dubreuil, o Demachy das cenas derua, Stieglitz, o Strand dos retratos urbanos e das máquinas.A problemática do corte não se esgota na dimensão

temporal. Para compreendê-la melhor, é necessário recorrera outro aspecto do pensamento de Dubois, relacionado coma construção espacial. Se o espaço pictórico corresponde adeterminado quadro, sendo fornecido de antemão e devendoser preenchido paulatinamente com signos, o espaçofotográfico não é nem determinado nem construído poradjunção. Ao contrário, é um espaço que deve ser capturadoou deixado de lado, uma subtração realizada em bloco. Emtermos espaciais, não cabe ao fotógrafo “colocar dentro”,mas “arrancar tudo de uma vez, (…) qualquer que seja aconstrução preliminar da qual a ‘cena’ foi objeto e quaisquerque sejam os arranjos e manipulações depois do golpe (corte)(reenquadramento, ampliação, montagem, etc.)”92.Quem coloca mais radicalmente a questão do corte

fotográfico é Stieglitz na série Equivalências (1923-1932). Nasdiferentes imagens de nuvens, que se configuram comoformas abstratas, apesar de serem resultado de tomadasdiretas e definidas, Stieglitz pretende demonstrar que suas

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91. François Laplantine; Alexis Nouss.Op. cit., pp. 79, 84-5.92. Philippe Dubois.Op. cit., pp. 177-8.

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fotografias não dependem do tema nem de qualquer fatorpictórico ou representativo. Se, por se “parecerem” comfotografias, as primeiras obras da série não foramconsideradas artísticas por alguns fotógrafos pictorialistas93, éporque elas eram regidas por uma concepção de imagem quenão se confundia com a pictórica. O que caracteriza a série éuma ideia de composição fortuita, imprevista, na qual osentido da imagem é dado pelo corte. Graças a esse gesto,que fragmenta o referente exterior, Stieglitz propõe umatransformação radical da realidade e estrutura um espaçoautônomo que, pela falta da linha do horizonte, destrói todosentido de orientação94.Se, ao lembrar a origem da série, o fotógrafo faz referência

à procura de um estado musical para a imagem, é necessáriolevar em conta que a concepção da fotografia como umcampo de relações formais é bem anterior à década de 1920.Uma de suas obras mais famosas, O alojamento de terceiraclasse (1907) é evocada por ele em termos absolutamenteformais:

A cena toda me fascinava. (…) Um chapéu de palha redondo, achaminé inclinada para a esquerda, a escada pendendo para adireita, a passarela branca com suas grades de correntes circulares– suspensórios brancos cruzando-se nas costas de um homem noalojamento de terceira classe lá embaixo, formas arredondadas domaquinário de ferro, um mastro cortando o céu, criando umaforma triangular. Fiquei fascinado por um momento, sem conseguirparar de olhar. (…) Via formas relacionadas umas com asoutras (…).95

A percepção da realidade por formas que se inter--relacionavam para dar vida a uma composição equilibrada éreforçada no relato de Stieglitz pela preocupação queacompanha o intervalo entre a visão da cena e a procura dacâmara fotográfica. A imagem estaria perdida, se a relação deformas desejada por ele tivesse sido alterada…

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93.Alfred Stieglitz.“How I came to Photograph Clouds”. In: Richard Whelan (org.).Op. cit., p. 237.94. Rosalind Krauss. Le photographique: pour une théorie des écarts. Paris: Macula, 1990,pp. 134-6; Philippe Dubois.Op. cit., pp. 206-9.95.Alfred Stieglitz.“How The Steerage Happened”. In: Richard Whelan (org.).Op. cit.,pp. 194-5.

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O que é importante sublinhar em O alojamento de terceiraclasse é o sentido compositivo proporcionado pelo recortefotográfico, para além do voluntarismo presente na descriçãoda cena, o qual pode ser reportado a uma reconstituição aposteriori (o relato data de 1942). Stieglitz organiza a cena emtermos puramente formais: ela se desdobra num eixodiagonal, que divide a imagem em duas metades, gerando umasensação de equilíbrio. A percepção geométrica do conjunto– formas redondas e circulares, jogos de diagonais, verticais evários outros cruzamentos de linhas – não faz, contudo,passar para um segundo plano o interesse pelos aspectosrepresentativos da cena. Como o próprio fotógrafo declara,O alojamento de terceira classe é “uma imagem baseada emformas relacionadas e no mais profundo sentimentohumano”. O que explica a ênfase dada às linhas de forçageradas pelo inter-relacionamento das formas, das quais sedesprende uma impressão de vitalidade96.Por ter levado a um grau de excelência “as qualidades

autênticas” da imagem técnica, Stieglitz é considerado porStrand a encarnação – ao lado de Hill – da “verdadeiraexpressão fotográfica”. Se Strand valoriza em Stieglitz oselementos intrínsecos da fotografia – formas dos objetos,valores cromáticos relativos, texturas e linhas –, nem por issodesconhece a experimentação levada a cabo por pictorialistascomo Henneberg, Watzek, os irmãos Hofmeister, Kühn,Steichen. Sua avaliação do episódio não deixa de serambivalente. Reconhece a importância histórica dopictorialismo, que ajudou a fotografia a descobrir suaverdadeira natureza, mas lhe imputa ter considerado osmeios fotográficos como “um atalho para a pintura”97.A ambivalência de Strand diante do pictorialismo pode ser

considerada a própria ambivalência do movimento, que acabapor gerar um intenso debate sobre as possibilidades dafotografia para além de usos estritamente pragmáticos,negando, muitas vezes, os aspectos de fato peculiares da novaimagem. Sem a experimentação de novas técnicas, entretanto,a fotografia teria demorado provavelmente muito mais tempo

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96. Ibid., p. 195; Regina Maurício da Rocha.Op. cit., pp. 39-41.97. Paul Strand.“The Art Motive in Photography”. In: Nathan Lyons (org.).Op. cit.,pp. 144, 146-7, 151-2.

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para descobrir suas qualidades expressivas intrínsecas: umnovo sentido de composição proporcionado pelo corte,valores tonais, texturas peculiares, entre outros.Ao tentar ir além da fotografia, o pictorialismo obriga os

fotógrafos a se confrontarem com as especificidades daimagem técnica e a tomarem consciência de uma tradição deviés experimental graças a empreendimentos como CameraWork. É por um caminho tortuoso que a fotografia se deparacom a problemática da própria autonomia em relação às artesplásticas. Parte delas, de seus métodos, de sua ideia decomposição, para finalmente descobrir as qualidadesexpressivas do aparelho, como demonstram de maneira cabalStieglitz e Strand no começo do século XX, e como haviamdemonstrado no passado Hill, Julia Cameron e o injustamenteesquecido Nadar.

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