BAUMAN, Z. Et Al. O Papel Da Cultura Nas Ciencias Sociais

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  • mente deixar de se convencer de que muito frequentementeos mesmos sentem ento como insuficincia o fato de nopoderem falar, insuficincia essa que j impossvel reme-diar dada a excessiva especializao dos seus rgos vocais.Mas quando existe um rgo adequado, essa incapacidadedesaparece, dentro de certos limites. Os rgos bucais dospssaros so extraordinariamente diferentes dos do homem;mas, no entanto, os pssaros so os nicos animais queconseguem falar e precisamente o que tem a voz maisdetestvel, o papagaio, que melhor fala. E que no se digaque no se percebe o que ele diz. Pelo simples prazer defalar ou para estar em companhia do homem, capaz depalrar durante horas a fio, repetindo sem cessar o seu voca-bulrio. Mas, dentro dos limites do seu campo de repre-sentao, consegue tambm compreender o que diz. Ensine--se um papagaio a proferir injrias, de forma a que adquiraa noo do seu significado (uma das distraes preferidasdos marinheiros que regressam das regies tropicais);quando irritado, depressa se verificar que sabe utilizaras suas injrias to corretamente como uma vendedeira dehortalias de Berlin. O mesmo verificaremos se lhe ensinar-mos a pedir guloseimas.

    Primeiro o trabalho, e depois em simultneidade comele, a linguagem; eis os dois principais estmulos sobcuja influncia o crebro do macaco se foi, pouco a pouco,transformando em crebro humano, que, a despeito de~odas as semelhanas, o supera de longe, quer em dimenso,quer em perfeio. Paralelamente ao desenvolvimento docrebro, efetuou-se o aperfeioamento dos seus maisimediatos instrumentos, os rgos dos sentidos. Assimcomo a linguagem, no seu desenvolvimento progressivo, acompanhada de um adequado aperfeioamento dorgo da audio, assim tambm o desenvolvimento do

    crebro provoca o aperfeioamento de todos os sentidos.A guia consegue ver muito mais longe do que o homem,mas o olho humano v muito melhor que o da guia.O co tem um olfato muito mais apurado que o homem,mas no distingue uma centsima parte dos odores que,para o homem, so caractersticas definidas de diferentescoisas. E o sentido do tato que existe, no macaco, apenassob forma muito rudimentar, s com a mo do homem,pelo trabalho, se desenvolveu.

    O desenvolvimento do crebro e dos sentidos que lheesto subordinados, a crescente clareza da conscincia,o aperfeioamento da capacidade de abstrao e de racio-cnio influenciaram o trabalho e a linguagem e forneceram--lhes constantemente estmuios sempre renovados nosentido do seu contnuo aperfeioamento. Este aperfeioa-mento no terminou no momento em que o homem sediferenciou definitivamente do macaco; muito pelo contr-rio, continuou a partir desse momento. Com progressosdiferentes, em grau e em direo, de povo para povo,de regio para regio, interrompido mesmo, por vezes,por uma regresso temporria e local, prosseguiu sempre asua grandiosa marcha, recebendo, por um lado, um novoe poderoso impulso, por outro, uma direo mais definidade um novo elemento que surgiu com o aparecimento dohomem acabado: a sociedade.

    Tero passado seguramente centenas de milhares deanos - o equivalente na histria da terra a um segundo navida do homem (1) - antes que, de um bando de macacosque trepavam s rvores, surgisse uma sociedade de seres

    (1) Ver Jan Schepansfli, Conceitos lemntares da sociologia, Mos-cou , 1969, pp. 38-40 (edio russa).

  • humanos. Existia, finalmente. E que voltamos a encontrarcomo diferena caracterstica entre aquele bando de ma-cacos e a sociedade humana? O trabalho. O bando demacacos contentava-se em colher os alimentos existentesna rea que lhe era determinada pela situao geogrficaou pela resistncia de bandos vizinhos; errava de local emlocal ou entrava em luta com os bandos vizinhos com o fimde conquistar uma nova rea rica em alimentos, mas eraincapaz de extrair do seu domnio mais do que a naturezalhe oferecia, com exceo para o fato de o adubar in-conscientemente com os seus excrementos. Quando todosos territrios susceptveis de fornecerem alimentos aosmacacos estivessem ocupados, era impossvel haver qual-quer aumento da sua populao. O seu nmero podia,na melhor das hipteses, manter-se estacionrio. Mas todosos animais desperdiam alimentos e destroem, para almdisso, os rebentos quando germinam. O lobo no respeita,como o caador, a cabra que lhe dar, no ano seguinte,os cabritos; na Grcia, as cabras que devoram o tojorecente, tornaram ridas as montanhas desse pas, Estaeconomia de saque levada a cabo pelos animais desem-penha um importante papel na progressiva transformaodas espcies, obrigando-as a adaptarem-se a uma alimen-tao que no a habitual, em consequncia do que o sangueadquire uma nova composio qumica e toda a constitui-o fsica se modifica, pouco a pouco, enquanto que asespcies definitivamente fixadas se vo extinguindo. No.resta dvida de que esta devastao contribuiu poderosa-mente para a transformao dos nossos antecessores emhomem. Numa raa de macacos muito mais avanadaque as outras, quer em inteligncia quer em capacidade deadaptao, esta prtica teria tido como resultado o au-mento do nmero de plantas que entravam na sua ali-

    mentao, o aumento do nmero de partes dessa plantaque eram consumidas, uma alimentao mais variada,em resumo, e, ao mesmo tempo, a criao, por parte dosnovos elementos introduzidos no organismo, das condiesqumicas necessrias passagem do macaco ao homem.Tudo isto, porm, no constitua, ainda, trabalho propria-mente dito. O trabalho comea com a fabricao de ferra-mentas. E, quais so as mais antigas que conhecemos?Que forma tomam os primeiros instrumentos, a julgarpelos vestgios deixados pelos homens pr-histricos epelo modo de vida dos primeiros povos da histria e dosatuais selvagens mais primitivos? So instrumentos decaa e de pesca, servindo, os primeiros, tambm de armas.Mas a caa e a pesca pressupem a passagem da alimenta-o exclusivamente vegetariana ao consumo simultneoda carne: um novo passo no sentido da humanizao.A alimentao carnvora contm, sob forma quase completa,todos os elementos essenciais de que o corpo necessitapara o seu metabolismo; sendo mais curta a digesto,torna-se menor o tempo requerido pelos outros processosvegetativos, correspondentes ao processo da vida dasplantas, ganhando, assim, tempo, mais substncia e mai~rfora para a vida animal, propriamente dita. Quanto maISo homem em formao se afastava dos vegetais, mais seelevava ao do animal. Assim como o hbito da alimentaoassociada carne transformou o gato e o co em servido-res do homem, assim tambm o hbito da alimentaocarnvora associada aos vegetais, contribuiu essencial-mente para dar ao homem em formao a fora fsica eindependncia. Mas o mais importante neste tipo de ali-mentao foi a sua ao sobre o crebro, que recebia assubstancias necessrias sua alimentao em quantidadesmuito mais abundantes do que anteriormente e que por

  • conseguinte, se pde desenvolver com maior rapidez eperfeio, de gerao em gerao. Com a permisso dosvegetarianos, o homem s atingiu a sua completa formaodepois de adotar uma alimentao carnvora, e apesardesse regime de alimentao ter conduzido, neste ou na-quele perodo, em todos os povos que conhecemos, aocanicalismo (os antepassados dos berlinenses, os vite-lenses, em pleno sculo X, comiam os seus prprios pais),isso no nos pode j preocupar.

    A alimentao carnvora conduziu a dois novos pro-gressos de importncia decisiva: o uso do fogo e a domes-ticao de animais. O primeiro abreviou ainda mais oprocesso digestivo na medida em que os alimentos eramlevados boca j semi-digeridos, por assim dizer; a segundatornou o regime alimentar base de carne mais abundante,ao criar paralelamente a caa uma nova e mais regularfonte de alimentos, fornecendo-lhe, com o leite e seusderivados, um novo alimento de valor, pelo menos, igualao da carne, devido sua composio. Estes dois progressostornaram-se, assim, j de modo direto, em novos meios deemancipao do homeni; entrar em pormenores sobre osseus efeitos indiretos levar-nos-ia demasiado longe, ape-sar da sua enorme importncia para o desenvolvimentodo homem e da sociedade.

    Assim como o homem aprendeu a comer tudo o queera comestvel, assim se tornou tambm capaz de viveremtodos os climas. Espalhou-se por toda a superfcie habit~vel da terra, como nico animal capaz de o fazer por sprprio. Os outros animais que se acostumaram a todos osclimas, no o fizeram por si prprios, mas sim em compa~nhia do homem: os animais domsticos e os vermes. Eapassagem da temperatura constante do clima da sua p-tria primitiva para as regies mais frias, em que o ano se

    dividia em vero e inverno, criou novas necessidades:a habitao e o vesturio, para se proteger do frio e daumidade , abrindo assim caminho a novos tipos de tra-balho e a novas atividades que iam afastando, cada vezmais, o homem do animal.

    Graas ao conjugada da mo, dos rgos da falae do crebro, no s em cada indivduo, como tambm nasociedade, os homens foram-se tornando capazes de rea-lizar operaes cada vez mais complexas, de fixar e de al-canar objetivos cada vez mais elevados. O prpriotrabalho se ia tornando, de gerao para gerao, maisperfeito e mais variado. caa e criao de gado, junta-sea agricultura, e a esta a fiao, a tecelagem, os trabalhoscom metais, a navegao, a olaria. Ao lado do comrcioe da indstria surgiram, finalmente, a arte e a cincia; astribos transformaram-se em naes e em. Estados; a pol-tica e o direito desenvolveram-se, e, a um mesmo tempo,o reflexo fantstico das coisas humanas: a religio. Em facede todas estas criaes, que se apresentavam primeiravista como produtos do crebro do homem e que pareciamdominar as sociedades humanas, os produtos mais modes-tos do trabalho das mos passaram para segundo plano;e isto tanto mais que o esprito queestabeleciao plano detrabalho podia j, mesmo nos primrdios do desenvolvi-mento da sociedade (na famlia primitiva, por exemplo),fazer executar, por outras mlos, o trabalho planejado.Foi ao esprito, ao desenvolvimento do crebro que seatribuiu todo o mrito do rpido desenvolvimento dasociedade; os homens habituaram-se a explicar os seusatos como resultado do seu pensamento, e no como conse-quncia das suas necessidades (que refletindo-se no seucrebro, se tornam conscientes), e foi assim que surgiucom o decorrer do tempo a concepo idealista do mundo

  • que, sobretudo a partir do dec1nio da antiguidade, temdominado os espritos. Ela reina ainda a tal ponto que nemsequer os prprios estudiosos materialistas da escola deDarwin conseguem ter ainda hoje uma idia clara sobre aorigem do homem, uma vez que, sob a influncia destaideologia, no reconhecem o papel desempenhado pelotrabalho nesta evoluo.

    Como j foi indicado, os animais, tal como o homem,modificam, ainda que em menor grau, o meio ambienteatravs da sua atividade:, e essas transformaes por elesproduzidas, atuam, por sua vez, como j vimos, sobre oselementos causais, transformando-os. Isto porque na na-tureza nada acontece isoladamente. Cada fenmeno atuasobre um outro, e vice-versa, e na maior parte dos casospor esquecerem este movimento e esta ao recprocauniversais que os nossos estudiosos ficam impossibilitadosde ver com clareza as coisas mais simples. J vimos comoas cabras constituem obstculo ao reflorescimento naGrcia; na Ilha de Santa Helena, as cabras e os porcosdesembarcados pelos primeiros navegadores vela que aaportaram, destruiram quase totalmente a antiga vegeta-o da ilha e, assim, prepararam o terreno onde mais tardeproliferaram as plantas para ali levadas ulteriormentepelos navegadores e colonos. Mas quando os animaisexercem uma influncia duradoura sobre o seu meio am-biente, isso verifica-se independentemente da sua vontadee , para eles prprios, um fato puramente casual.O homem, porm, quanto mais se afasta dos animais,mais a sua ao sobre a natureza toma o carter de umaatividade preme&itada, metdica, visando fins determi-nados, anteriormente conhecidos. O animal destri a vege-tao de uma determinada regio, sem saber o que esta fazer. O homem destri-a para semear no solo, assim

    limpo, cereais, para plantar rvores ou vinhas, que elesabe que produziro muitas vezes mais do que os que elesemeou. Transporta plantas teis e animais domsticosde um pas para outro, modificando assim a flora e a faunade continentes inteiros. Mais ainda, atravs da seleoartificial, plantas e animais so transformados pela modo homem de tal forma que se tornam irreconhecveis.As plantas silvestres, de que procedem os nossos cereais,so hoje procuradas em vo. Continua-se a investigar deque animal selvagem procedero os nossos ces, que soextremamente diferentes entre si, bem como as raas decavalos.

    No nos ocorre, evidentemente, negar aos animais apossibilidade de agirem metdica e premeditadamente.Antes pelo contrrio. Onde quer que se encontre proto-plasma, albumina viva, reagindo, isto , matria com movi-mentos determinados, por mais simples que seja, comoresposta a determinadas reaes exteriores, existe, emgrmen forma de atividade metdica. Uma tal reao ve-rifica-se mesmo onde no existe ainda uma clula, ou muitomenos mesmo do que uma clula nervosa. O modo peloqual as plantas insetvoras se apoderam das presas surgeigualmente, em certa medida, como metdico, ainda queinconscientemente. Nos animais, a faculdade de agir demodo consciente, metdico, desenvolve-se medida queo sistema nervoso se desenvolve tambm, e, nos mamferos,atinge j um grau elevado. Na caa raposa, tal como sepratica em Inglaterra, podemos observar diariamentecom que habilidade a raposa utiliza o seu grande conhe-cimento do terreno para escapar aos seus perseguidores,procurando, por todos os meios, interromper o seu rastro.Entre os nossos animais domsticos, que a sociedade doshomens desenvolveu ainda mais, pode-se observar, a cada

  • passo, manifestaes de astcia que se situam absoluta-mente ao mesmo nvel das que observamos nas crianas.Assim como a histria do embrio humano no ventre da suame mais no representa do que uma repetio abreviadada histria de milhes de anos da evoluo fsica dosnossos antepassados animais, a comear pelo verme,assim tambm a evoluo intelectual da criana uma re-petio, ainda mais abreviada, da evoluo intelectualdos seus antecessores, pelo menos dos mais recentes.Todavia, o conjunto da atividade metdica de todos osanimais no conseguiu deixar a marca da sua vontade.S o homem o conseguiu.

    Em resumo, o animal utiliza apenas a natureza e asmodificaes que nela provoca so apenas aquelas quedecorrem da sua presena; o homem, ao introduzir-lhemodificaes, serve-sedela para fins determinados, domina-a. nisto que consiste a ltima diferena essencial entre ohomem e o resto dos animais, e , mais uma vez, ao tra-balho que o homem a deve.

    TRANSIOPARA A HUMANIDADE

    o problema da ligao entre o homem e os restantesanimais tem sido tema constante nas cincias humanas.A partir de Darwin, deixou-se praticamente de duvidar daexistncia de tal relao. Mas no que respeita naturezadesta relao e especialmente ao seu grau, o debate temsido muito mais amplo e no completamente esclarecedor.Alguns estudiosos, em particular aqueles que se dedicams cincias biolgicas - zoologia, paleontologia, anatomiae fisiologia -, revelaram a tendncia de dar demasiadonfase ao parentesco existente entre o homem e aquilo aque nos damos ao luxo de chamar animais inferiores:consideram a evoluo como um fluxo relativamente inin-terrupto do processo biolgico, e tm tendncia a olharpara o homem apenas como uma das mais interessantesformas em que a vida se manifesta, tal como fazem com osdinossauros, com os ratos brancos e com os golfinhos.O que lhes prende a ateno a continuidade, a unidade detodo o mundo orgnico, a generalidade incondicionaldos princpios sob os quais ele prprio se forma. No entanto,se bem que os estudiosos das cincias sociais - psiclogos,

  • socilogos, especialistas em cincias polticas - no ne-guem a natureza animal do homem, revelaram a tendn-cia de o considerar nico no seu gnero, diferente, comosvezes eles mesmos dizem, no s de grau, mas tambmde qualidade. O homem um animal que conseguefabricar ferramentas, falar e criar smbolos. S ele ri; sele sabe que um dia morrer; s ele tem averso a copularcom a sua me ou a sua irm; s ele consegue imaginaroutros mundos em que habitar, chamados religies porSantayana, ou fabricar peas de barro mentais a queCyril Connolly chamou arte. Considera-se que o homempossui, no s inteligncia, como tambm conscincia;no s tem necessidades, como tambm valores. no sreceios, como tambm conscincia moral; no s passado,como tambm histria. S ele - concluindo maneirade grande sumrio - possui cultura.

    A conciliao destes dois pontos de vista no temsido fcil, especialmente numa disciplina como a antro-pologia, que, pelo menos nos Estados Unidos, sempre setem relacionado com ambos os campos. Por um lado, osantroplogos tm sido os principais estudiosos da evo-luo fsica dos seres humanos; seguiram os vestgios dasetapas no decurso das quais surgiu o homem modernodestacando-se da categoria geral dos primatas. Por outrolado, os antroplogos tm sido os estudiosos por exceln-cia da cultura, mesmo quando no sabiam exatamenteo que exprimir por esse termo. Ao contrrio do que acon-tecia com alguns bilogos, no podiam ignorar a vidacultural do homem, situando-a no domnio das artes,para l dos confins das cincias. E ao contrrio de algunsespecialistas das cincias sociais, no podiam igualmentemenosprezar a histria fsica do homem como irrelevantepara a compreenso da sua condio atual. A consequn-

    cia de tudo isto que o problema da origem da cultura- pouco importa as vezes que foi ignorado por se consi-derar pouco importante, ou que se ridicularizou conside-rando-se sem soluo - tem chamado cada vez mais anossa ateno medida que, fragmento aps fragmento,se foi reconstruindo o processo da evoluo do Homosapiens.

    Durante cerca da ltima m~tade do sculo XIX, asoluo que prevalecia quanto ao problema da origem dacultura foi o que se poderia chamar a teoria do pontocrtico. Este termo, que foi adotado pelo decano daantropologia norte-americana, Alfred Kroeber, recente-mente falecido, postula que o desenvolvimento da capaci-dade de adquirir cultura foi uma conquista repentina, deum momento para o outro, tipo salto quntico, na filo-genia dos primatas: num dado momento da histria dahominizao - isto , da humanizao de um ramo dalinha dos primatas - se produziu uma alterao orgnicaprodigiosa ainda que provavelmen.te pe,5luena em term~sgenticos ou anatmicos. Esta modlficaao, que se podenasupor ter tido lugar na estrutura cortical, tornou poss.velque um animal cujos progenitores no tinham conseguIdoum desenvolvimento superior, se tornasse apto, segundo aspalavras de Kroeber, a comunicar, .aprender,. ensinar,generalizar a partir de uma nfima cadela de sentImentos eatitudes diferentes. Com ele comearia a cultura e, umavez iniciada, estabelecer-se-ia sobre o seu prprio cursode tal modo que o seu desenvolvimento seria completamenteindependente da ulterior evoluo orgnica do homem.Todo o processo de criao da capacidade do homem mo-derno de produzir e de utilizar a cultura foi definido comouma transformao quantitativa marginal que deu lugara uma diferena qualitativa radical. Kroeber empregou

  • o exemplo da congelao da gua, cuja temperatura sepode reduzir grau a grau sem que o lquido perca fluidezat que, de repente, se solidifica a 0 C. Outro antroplogocomparou o processo ao decolar de um avio, que vaiaumentando de velocidade ao longo da pista at chegar aomomento em que comea a voar. Um antroplogo fsico. . 'ao cntIcar esta noo, referiu-se-Ihe sucintamente apre-sentanto o esquema do aparecimento do homem como umapromoo militante, como se tivesse sido de repente pro-movido de coronel a brigadeiro. A humanidade do homemtal como o fogo no fsforo, comeou a existir repentina~mente.

    Foram trs as consideraes fundamentais que con-duziram a esta opinio geral e lhe serviram de apoio.Em primeiro lugar havia o enorme abismo aparente entreas capacidades mentais do homem e as dos seus parentesvivos mais prximos, os grandes smios. O homem podefalar, fazer smbolos, fabricar ferramentas, etc. Nenhumoutro animal contemporneo pode sequer aproximar-sede tais conquistas. Um casal de primatlogos impos-sea tarefa de levar a cabo a herica experincia de criar umchimpaz no seu lar como se tratasse de um irmo adotivoda sua filha, oferecendo-lhe, dentro das medidas do pos-svel, a mesma educao e ateno do que criana. No en-tanto, apesar do animal ter aprendido um grande nmerode coisas bem inslitas para um chimpaz - tais comomanipular uma pistola de gua, abrir latas com um abre--latas, e, num momento culminante, puxar um brinquedoimaginrio com uma corda tambm imaginria, nem come-~0.u a aprender a falar. Sendo incapaz de falar, depressatOl ultrapassado pela sua irm humana, a qual se podesupor ter continuado a avanar at chegar a elaborarcomplexas teorias sobre a unicidade da condio humana.

    Em segundo lugar, a linguagem, a simbolizao, aabstrao, etc., pareciam ser, do ponto de vista puramentelgico, assuntos de extremos, ou sim ou no. Fala ou nofala, fabrica ou no fabrica ferramentas, imagina dem-nios ou no os imagina. As meias religies, meias artes,meias lnguas no podiam sequer ser concebidas, uma vezque o processo essencial que est por detrs destas capa-cidades - isto , a imposio realidade de uma estruturaarbitrria de significado simblico - no constituia otipo de atividade de que existissem verses parciais.O progresso, desde a atividade reflexa simples at aopensamento simblico, foi considerado como uma sriede saltos e no como um continuum ascendente. Entre aconcepo da relao natural nuvem escura-chuva at aoestabelecimento da relao arbitrria nuvens escuras--desespero no havia, segundo se cria, etapas intermdias.

    E, em terceiro lugar, havia o problema ainda maisdelicado daquilo a que comumente se conhece pela uni-dade psquica da humanidade. Isto est relacionado com atese - que muito poucos antroplogos atualmente pemem dvida - que defende que no existem diferenasimportantes na natureza do processo do pensamentoentre as diferentes raas humanas atuais. Se se supuserque a cultura surgiu plenamente desenvolvida num dadomomento, e no perodo anterior ao incio da diferenciaoracial, ento esta tese fica implicitamente demonstrada pordeduo. Defender a possvel existncia de diferenashistricas entre as diferentes espcies de homindeo - ouseja, entre as diferentes classes de homens, atuais eextintos - parecia apoiar a citada afirmao relativamentes diferentes raas do homem moderno. Uma vez que aevidncia emprica contradiz de forma retundante as taisdiferenas entre os diferentes grupos do Homo sapiens,

  • a. hiptese parecia refutada de antemo. Assim, a psicolo-gIa .co~para~a, a semntica e a etnologia convergiam noapOIO a teona do ponto crtico da origem da cultura.Apesar. disso, havia um ramo da antropologia que no~Ond?ZIa ao mesmo resultado: a paleontologia humana,Isto e, o estudo da evoluo humana atravs da descobertae anlise de restos fsseis. Desde que o estranho mdicoholands Eugene DuBois encontrou o casco do crniodo Pithecanthropus erectus, o homem smio- eretonum leito fluvial de Java em 1891, a antropologia fsic~tem acumulado sem cessar provas que tornam cada vez maisdifcil traar uma linha definida entre o homem e o no--?omem sob ~ ponto de vista anatmico, Apesar de algumastenues tentatIvas de estabelecer um Rubico cerebral- um tamanho cerebral crtico, a partir do qual nasce jdesenvolvida a capacidade de se comportar corretamentede modo humano, como Atenas da fronte de Zeus -a~ ~esco?ertas paleontolgicas suavizaram, fragmento d~fossI1 apos fragmento, a curva da ascendncia do homemat ao ponto em que as simples afirmaes sobre o que humano e o que o no , tomaram um lamentvel ar dea~bitrariedade. As mentes e almas humanas surgiro ouna~ de modo gradual; mas no h dvida que com os corposaSSIm acontece.

    As descobertas de fsseis que maior perplexidadecausaram, ,n~ste sentido, foram as dos vrios tipos dehomens-s,nn~os au~t~ralopitecus que tm vindo a apa-recer na Afnca mendIOnal e oriental desde que, em 1924Raymond Dart desenterrou o primeiro no Transval.De fato, estes fsseis cuja idade oscila entre 750000 e1?5? ?OO anos so as descobertas mais importantes dahIstona da paleontologia humana; mostram um con-trastante mosaico de caractersticas morfolgicas primiti-

    vas e avanadas, cujos traos mais particulares so umaformao da plvis e da perna assustadoramente parecidacom a do homem moderno, e uma capacidade cranianapouco maior do que a dos grandes smios atuais. A ten-dncia inicial foi considerar esta desconcertante conju-gao num mesmo animal de um sistema locomotorbpede semelhante ao do homem e de um crebro se-melhante aos dos smios, como indcio de que os austhro-lopithecus constituiam uma linha de desenvolvimentoaberrante, mal-aventurada, separada tanto da linha humanacomo da dos grandes smios; era prefervel ser completa-mente macaco do que meio-homem, como disse uma vezErnest Hooton. Mas o consenso atual de que representaas mais antigas formas conhecidas do processo evolutivo,as quais, com o andar dos tempos, deram origem ao homemmoderno a partir de algum tronco smio geral. Estes es-tranhos semi-homens constituem as razes da nossa huma-nidade.

    O nosso interesse pelos austhralopithecus deriva dassuas implicaes com a teoria do ponto crtico da origemda cultura. Estes proto-homens semi-eretos, de crebropequeno, cujas mos estavam livres das funes de locomo-o, fabricavam ferramentas, e provvel que tenham ca-ado animais pequenos, pelo menos alguns deles. Mas bastante improvvel que tenham tido uma cultura desen-volvida comparvel, digamos, dos aborgenes austra-lianos, ou que possuissem uma lngua, no sentido modernodo termo, contando com um crebro cujo tamanho eraapenas um tero do nosso. Ao que parece no authralopi-thecus temos, por conseguinte, um tipo de homemque era evidentemente capaz de adquirir alguns elementosde cultura (fabricao de ferramentas simples, caa peri-dica, e talvez algum sistema de comunicao mais avanado

  • que o dos grandes smios atuais e menos avanados doque a lngua verdadeira), mas apenas estes, situao estaque projeta como que uma sombra sobre a teoria doponto crtico. Aquilo que parecia pouco provvel, oumesmo logicamente impossvel, surge como empiricamentecerto: tal como no homem, a capacidade de adquirir cul-tura apareceu contnua e gradualmente, pouco a pouco,durante um perodo de tempo bastante longo.

    Mas a situao ainda mais desesperada, porquantose os austhralopithecus possuam uma forma de culturaelementar (aquilo a que um antroplogo chamou proto-cultura), com um crebro cujo tamanho era apenas umtero do do homem moderno, daqui se infere que a maiorparte da expanso cortical humana seguiu, e no prece-deu, o incio da cultura. Na teoria do ponto crticoconsiderava-se o homem j mais ou menos completo,pelo menos neurologicamente, antes de se iniciar o desen-volvimento da cultura, uma vez que a capacidade biolgicade adquirir cultura era uma questo de tudo ou nada.Uma vez alcanada esta totalmente, o resto foi uma meraadio de novos costumes e desenvolvimento de outrosmais antigos. A evoluo orgnica prosseguiu at chegara um certo ponto, e ento, uma vez franqueado o Rubicocerebral, inciou-se a evoluo cultural, processo aut-nQmo por si s, e independente de ser ou no produtor dealteraes posteriores do sistema nervoso. O fato de assimno ter acontecido, segundo se julga, do desenvolvimentocultural se verificar muito antes de terminar o desenvolvi-mento orgnico, tem uma importncia fundamental paraa nossa noo da natureza do homem. Ele converte-seagora, j no s no produtor de cultura, mas tambm,num sentido biolgico especfico do termo, no seu pro-duto.

    Isto assim porque as presses do padro de seleodurante as fases finais da evoluo do animal humanoeram parcialmente determinadas pelas fases iniciais dodesenvolvimento cultural humano, e no simplesmentepor fatores do meio ambiente natural. A depend~cia. dofabrico de ferramentas, por exemplo, confere maIOr Im-portncia tanto destreza manual como previso. Nu~aaldeia de austhralopithecus, um indivduo um pouco maISdotado dessas caractersticas teria uma vantagem sele -tiva sobre um outro indivduo um tanto menos dotado.A caa de pequenos animais, com o uso de armas primiti-vas, requer, entre outras coisas, grande persistncia epacincia. O indivduo que possuisse em maior grau .es~assbrias virtudes, teria vantagem sobre um outro maIS 1l1-constante e menos dotado. Todas estas capacidades,aptides, disposies ou como se lhes queira chama~,dependem, por sua vez, evidentemente, do desenvolvI-mento do sistema nervoso. Deste modo, a introduo daelaborao de ferramentas e a caa deve ter' atuado, detal modo que as presses da seleo modificaram-se efavoreceram o rpido crescimento do crebro anterior,assim como, muito provavelmente, determinaram os pro-gressos na organizao social, comunicao e normaomoral, que - tudo leva a crer - teriam tido lugar duran~.teeste perodo de interrelacionao entre a transformaaobiolgica e a cultural.

    Como natural, grande parte das conjeturas nestecampo so, apesar de tudo, de ndole especulativa, e e~-tamos mais a comear a pr questes do que acontesta--Ias. Assim por exemplo, o estudo sistemtico da condutados primatas sob condies naturais descrito por DeVare, e que tem atualmente um grande impacto nas nossasconcepes da vida social do homem primitivo, tem,

  • salvo raras excees, uma escassa dcada. O arquivo defsseis aumenta de dia para dia e os processos de determi-nao cronolgica aperfeioam-se com tal rapidez, que sos imprudentes tentariam estabelecer opinies definitivassobre determinadas matrias. Mas, deixando de lado por-menores, provas e hipteses especficas, verificamos que oponto essencial que a constituio inata, genrica dohomem moderno (aquilo a que, de uma maneira maissimples, se costuma chamar natureza humana) pareceser um produto tanto cultural como biolgico. Seriaprovavelmente mais correto, escreveu o antroplogofsico Sherwood Washburn, considerar uma grande parteda nossa estrutura (fsica) como o resultado da cultura,em vez de imaginar homens iguais a ns do ponto de vistaanatmico, e descrever, assim, a cultura lentamente.A expresso o homem faz-se a si prprio tem atualmenteum significado mais literal do que antes se supunha.

    A era glacial, com as suas rpidas e radicais variaesclimticas nas formaes terrestres, e na vegetao, reconhecida desde h muito tempo como um perododurante o qual as condies foram timas para o acele-rado e eficiente desenvolvimento evolutivo do homem. Jul-ga-se tambm atualmente que ter sido um perodo em que omeio ambiente cultural ter substitudo gradualmente omeio ambiente natural no processo de seleo, de talmodo, que acelerou ainda mais o ritmo evolutivo do homemfazendo-o atingir uma velocidade sem precedentes.

    Ao que parece, no foi apenas um perodo de retro-cesso dos seios frontais e de diminuio dos maxilares,mas foi tambm um perodo no decorrer do qual se for-jaram todas aquelas caractersticas da existncia do homemque so mais humanas: o seu sistema nervoso, dotado deum bom encfalo; a sua estrutura social baseada no incesto

    como tab, e a sua capacidade de criar e de utilizar sm-bolos. O fato destas diferentes caractersticas da humani-dade terem surgido a um mesmo tempo, numa complexainterao e no sucessivamente, como se sups durantemuito tempo, de excepcional importncia para a inter-pretao da mentalidade humana, uma vez que sugereque o sistema nervoso do homem no s lhe permite adqui-rir cultura, como tambm necessrio que o faa para quepossa funcionar. Em lugar de considerar a cultura apenasna sua funo de suprir, desenvolver e aumentar capaci-dades com base orgnica, geneticamente anteriores a ela,dever-se-ia consider-Ia como integrante das mesmas ca-pacidades. Um ser humano desprovido de cultura no seriaprovavelmente um grande smio intrinsecamente dotadode talento ainda que no-realizado, mas uma monstruosi-dade carecente de psique e por conseguinte irrealizve1.Como a couve - a que tanto se assemelha - o crebrodo Homo sapiens, que surgiu dentro do contexto da culturahumana, no seria vivel fora do mesmo.

    As implicaes gerais desta opinio revista sobre atransio para a humanidade so imensas, e apenas al-gumas podem aqui ser consideradas. Por um lado, levoua que se efetuasse uma reinvestigao e reformulao dasconsideraes tericas que serviam de base tese do pontocrtico. Por exemplo, a argumentao baseada na psi-cologia comparada dos primatas, como se pode verificaratualmente, estabelecia no tanto a unicidade do homemmoderno, mas mais o carter distintivo de toda a linhahomindea num perodo de 5 a 25 milhes de anos, da qualo homem no mais do que o representante mximo e,de fato, o nico vivo; mas inclui um nmero maior declasses diferentes de animais, todos eles extintos, muitomais prximos do homem do que qualquer dos grandes

  • slmlOs atuais. O fato dos chimpanzs no falarem aomesmo tempo interessante e importante; mas extrair destefato a concluso de que a fala um fenmeno de tudoou nada, sera como supor que sendo a girafa o nicoquadrpede vivo que possui um pescoo muito longo, oteria adquirido mediante algo comparvel a um saltoquntico. Os grandes smios podem ser os parentes vivosmais prximos do homem; mas o prximo , por assimdizer, um termo relativo. Se se considerar uma escalacronolgica realista, no so certamente to prximos,uma vez que o ltimo antepassado comum viveu, pelomnimo, 50 000 sculos ou mais, naquilo a que os gelogosdenominam de plioceno.

    No que respeita ao raciocnio lgico, podemos dizerque tambm isto foi posto em dvida. O crescente interessepela comunicao como um processo geral, que caracte-rizou durante as duas ltimas dcadas disciplinas que vodesde a engenharia etnologia, reduziu a linguagem,por um lado, a um s mecanismo - com grande flexi-bilidade e eficincia reconhecidas - para a transmissode significados entre muitos interlocutores e, por outrolado, ofereceu um contexto terico em cujos termos se podeconceber uma srie gradual de passos conducentes linguagem verdadeira. Esta questo no pode ser aquianalisada; mas, como exemplo, um linguista comparouoito sistemas diferentes de comunicao, que compreen-diam desde a dana das abelhas, o cortejo dos peixese o canto dos pssaros at aos gritos dos gibes, a msicainstrumental e a linguagem humana. Em vez de concentrartoda a sua anlise volta da simples e j bastante penosadiferenciao de sinal versus smbolo, distingue trezeaspectos fundamentais da linguagem, e tenta, baseando-senestes, analisar com maior preciso a diferena existente

    entre a comunicao humana e sub-humana e construir umalinha possvel de desenvolvimento, gradual na era glacial,da linguagem verdadeira a partir da protolinguagem.Tambm este tipo de investigao se encontra na comeo;mas, segundo parece, aproxima-se o fim da etapa em que anica coisa de til que se podia dizer sobre a origem dalinguagem, era que todos os humanos a possuam porigual e que, do mesmo modo, todos os no-humanos a nopossuam.

    Por ltimo, o fato comprovado da no existnciade diferenas significativas na capacidade mental entre asraas atuais do homem no negado e, em ltima instn-cia, apoiado e aprofundado pelo postulado da existn-cia de diferenas na capacidade de adquirir cultura entreas vrias formas de homens pre-sapiens. A diversidadefsica das raas humanas , evidentemente, algo de muitorecente; ter-se- verificado h talvez apenas 50 000 anos,ou,segundo as estimativas mais conservadoras, menos de umacentsima parte da durao de toda a linha homindea,isto , da formao do homem. Portanto, a humanidadeno s passou a maior parte da sua histria envolvida numprocesso evolutivo comum, como se julga hoje em diater sido precisamente este o perodo durante o qual seforjaram as caractersticas fundamentais da sua humanidade.

    As raas modernas so apenas isto: modernas. Elasrepresentam adaptaes muito tardias e secundrias nacor da pele, estrutura facial, etc., devidas, provavelmente,em primeiro lugar, a diferenas climticas, medida que oHomo sapiens se foi estendendo por todo o planeta atfinais da era glacial. Estas adaptaes so, por conseguinte,inteiramente posteriores aos processos formativos bsicosdo desenvolvimento nervoso e anatmico que teve lugarentre o estabelecimento da linha homindea e o apareci-

  • mento, h 50-150 milnios, do Homo sapiens. Mentalmente,o homem formou-se na era glacial, e a fora modeladorarealmente decisiva na produo da sua unicidade - ainterao das fases iniciais do desenvolvimento culturale as fases culminantes da formao biolgica - faz parteda herana comum de todas as raas modernas.

    Deste modo, a opinio de que a capacidade de detercultura no floresceu num dado momento, mas que foielaborada nas oficinas de ferramentas do paleolticoinferior, durante um perodo de tempo prolongado, longede enfraquecer a doutrina da unidade psquica, explica-ae especifica-a; confere-lhe uma base histrica de que care-cia anteriormente.

    Mais importante ainda do que a reviso ou reinterpre-tao das antigas teorias, que o conceito sincrnico e noo conceito de sequncia da relao entre a evoluo daanatomia humana e o nascimento da cultura humanarequeria, so as suas implicaes no novo modo de pensara prpria cultura. Se o homem cresceu, por assim dizer,dentro do contexto de um meio ambiente cultural em de-senvolvimento, ento necessrio considerar esse meioambiente cultural apenas como uma mera amplificaoextra-somtica, uma espcie de extrapolao artificial dascapacidades inatas j conferidas, mas como parte integranteda existncia dessas mesmas capacidades. O fato patentedas etapas finais da evoluo biolgica do homem teremtido lugar depois das etapas iniciais do crescimento dacultura implica, como j foi assinalado, que a naturezahumana bsica, pura, ou no condicionada, nosentido da constituio inata do homem, to incompletado ponto de vista funcional que se torna impraticvel.As ferramentas, a caa, a organizao familiar, e, maisa arte, a religio e uma forma primitiva de cincia,

    moldaram o homem somaticamente, e so, portanto,no s necessrias para a sua sobrevivncia, como tambmpara a sua realizao existencial. certo que sem homensno existiriam manifestaes culturais. Mas igualmentecerto que sem manifestaes culturais no haveria homens.

    A trama simblica formada por crenas, expressoe valores, em cujo interior vivemos, prov-nos dos meca-nismos necessrios a uma conduta ordenada; nos animaisinferiores, ao contrrio do que acontece conosco, estesmecanismos no se encontram geneticamente instaladosno corpo. A unicidade do homem costuma exprimir-seem termos de quanto e quantas coisas diferentes capazde aprender. E assim , embora o fato de chimpanzsjogarem com objetos imaginrios nos possa pr momen-taneamente algumas dvidas. Mas o que tem talvez aindamaior importncia terica saber quanto pode o homemaprender. Sem os padres guias da cultura humana, a vidaintelectual do homem no seria mais do que uma confusobarulhenta e estrondosa, como disse William James.O conhecimento no homem, ao contrrio do que acontececom os smios, depende da existncia de modelos simb-licos da realidade, objetivos e externos. Emocionalmente,a situao a mesma. Sem o guia das imagens exteriori-zadas, dos sentimentos falados no ritual, os mitos e a arte,no saberamos, de fato, como sentir. Tal como o pr-prio crebro anterior desenvolvido, as idias e as emoesso artefatos culturais do homem.

    O que isto anuncia, creio eu, uma reviso fundamentalda prpria teoria da cultura. Nas prximas dcadas consi-deraremos os padres de cultura menos em termos domodo em que estes limitam a natureza humana, e cadavez mais na forma em que, para bem ou para mal, a atua-lizam; cada vez menos como uma acumulao de mecanis-

  • mos engenhosos para alargar as capacidades inatas pre-existentes, e cada vez mais como parte das tais capacidades;cada vez menos como uma massa supra-orgnica de cos-tumes, e cada vez mais, como nas vivas palavras do defuntoClyde Kluchhonh, desenhos para viver. O homem o nicoanimal vivo que necessita de tais desenhos, uma vez que onico cuja histria evolutiva se desenvolveu de tal formaque o seu ser fsico se modelou em grau significativo pelaexistncia dos mesmos, e , por conseguinte, os pressupe.A tenso existente entre a concepo do homem comosimples animal dotado de talento e do homem comoestranhamento nico no seu gnero evaporar-se-, assimcomo os conceitos tericos que lhes deram origem, aomomento em que se reconhea o alcance total deste fato.

    As grandes batalhas da nossa poca so as batalhaspelo bem-estar dos homens, pela libertao do homem detodas as formas de opresso e de escravido.

    por isso que o problema do homem assume nosnossos dias um sentido especial, sendo atualmente paramilhes e milhes de pessoas um problema de atuao.A importncia de uma abordagem verdadeiramente cien-tfica deste problema , portanto, cada vez maior.

    A cincia, se verdadeira, constitui a bssula que indicacorretamente ao homem a senda do progresso. No entanto,a cincia s pode cumprir esta misso se se despir das con-cepes e preconceitos falsos. Entre as concepes erradas,pseudocientficas, sobre o homem, sobre o seu desenvolvi-mento e cultura, h que incluir, antes de mais, aquelasque pressupem que a maioria esmagadora da populaodo nosso planeta est predestinada por natureza a viver atrabalhar, com carncias e sem direitos, enquanto que outrafrao , a dos eleitos, tem por misso governar essa maioriae usufruir de todos os bens materiais e espirituais.

    Conhecemos perfeitamente a que consequncias mons-truosas podem conduzir estas idias. Foram precisamente

  • A concepo de que o homem se distingue radicalmentemesmo dos animais mais altamente desenvolvidos, con-tinua, entretanto, a manter-se firmemente na cincia.Como diferentes autores consideram estas diferenas e asexplicam, outro problema.

    Consideramos que no vale a pena determo-nos emtodas as idias expostas nesta direo.

    Deixaremos sem examinar, de um modo geral, asidias que tm por base a aceitao do princpio claramenteespiritual, religioso, que segundo este critrio, constituia origem e a essncia especial do homem. A aceitao desteprincpio no depende da cincia, mas da f; este princpiofoge do quadro da cincia.

    As discusses cientficas mais importantes giraram volta das propriedades e particularidades biolgicas ehereditrias do homem. A ponderao hbil da sua im-portncia serviu de base terica s mais reacionrias eracistas concepes biolgicas.

    A posio oposta a este tipo de solues do problema,posio desenvolvida pela cincia progressita, parte, pelocontrrio, do homem como ser social por natureza; de queaquilo que no homem humano engendrado pela vidaem sociedade e pela cultura criada pela humanidade.

    J no sculo passado, imediatamente aps o apareci-mento do livro de Charles Darwin, A origem das espciespor meio da seleo natural, F. Engels, ao mesmo tempoque apoiou a idia da origem animal do homem, demons-trou que este, diferenciando-se profundamente dos seusantecessores animais, se humanizou ao passar pela vidasocial, baseada no trabalho; que este passo transformoua sua natureza e estabeleceu o incio do desenvolvimento,que, ao contrrio do dos animais, no se determina j

    estas idias que suportaram teoricamente o racismo e ali-ceraram descaradamente o direito escravizao e exter-mnio de povos inteiros.

    Mas nos nossos dias, estas falsas concepes perde-ram fora e afundam-se cada vez mais sob a presso cres-cente dos triunfos dos movimentos nacionais pela indepen-dncia, a igualdade e a liberdade; triunfos que em apenasalgumas dcadas transformaram pases, antes quase anal-fabetos, em pases com uma intelectualidade tecnicamenteavanada, com os seus cientistas, literatura, teatros emuseus. Estas transformaes, rpidas e inesperadas,no deixam lugar para teorias sobre o destino fatal doschamados povos atrasados e das massas exploradas.

    Estas concepes erradas caem sob a presso do avanoda cincia do homem. Dispomos atualmente da possibi-lidade de compreender muito melhor a verdadeira naturezado homem, as suas capacidades, foras e condies de quedepende o seu desenvolvimento.

    Dedico, pois, a minha exposio anlise destesproblemas.

    Desde tempos imemoriais que se considera o homemum ser especial, qualitativamente diferente dos animais.A acumulao de conhecimentos concretos de biologiapermitiu a Charles Darwin fundamentar a sua conhecidateoria sobre a evoluo. Esta teoria confirmou a idia deque o homem um produto do desenvolvimento gradualdo mundo animado e que aquele provm deste.

    Desde ento, a anatomia, a paleontologia, a embrio-logia e a antropologia comparada, tm recolhido novos enumerosos fatos que confirmam o anteriormente afirmado.

  • por leis biolgicas, mas pelas novas leis do desenvolvi-mento social histrico.

    luz dos modernos dados da paleontologia, o pro-cesso em que decorre a passagem dos animais para ohomem realiza-se, em poucas palavras, do seguinte modo:

    Esta passagem realizou-se mediante um longo pro-cesso que compreende uma srie de estdios. O que deter-mina a preparao biolgica do homem constitui o pri-meiro deles. Inicia-se no perodo tercirio j avanado econtinua at aos comeos do quaternrio. Os representantesdeste estdio, os chamados Australopithecus, eram ani-mais que vi\.iam em grupos e que se distinguiam pela suaposio ereta; utilizavam instrumentos toscos, no for-jados, e dispunham provavelmente de meios simples decomunicao. Nesta fase as leis biolgicas prevaleciam to-talmente.

    Ao segundo grande estdio, formado por uma sriede etapas longussimas, pode-se chamar o estdio da pas-sagem ao homem. Estende-se desde o aparecimento doPithecantropus erectus at poca do Homo neandertha-lensis, inclusive. Esta fase importante porque nela quesurge a preparao de utenslios e aparecem as primeirasformas, ainda que em estado embrionrio, de trabalho esociedade. Neste estdio continuaram a prevalecer na for-mao do homem as leis biolgicas, isto , manifestavam-secomo anteriormente em transformaes anatmicas quese transmitiam por herana de gerao em gerao. Mas,neste estdio, aparecem, ao mesmo tempo, coisas novasno desenvolvimento. As transformaes da estrutura ana-tmica do homem, do crebro, dos sentidos, mos e r-gos vocais, realizavam-se j sob a influncia do desenvol-vimento do trabalho, e da comunicao oral por ele in-centivada.

    Em poucas palavras, o desenvolvimento biolgico dohomem realizava-se sob a influncia do desenvolvimentoda produo. Mas a produo desde o princpio um pro-cesso social, que avana segundo as suas prprias leis obje -tivas, leis social-histricas; eis porque a biologia comeoua registrar na estrutura anatmica do homem o incioda histria da humanidade.

    Deste modo o homem, convertido em sujeito do pro-cesso social, depende da ao de duas leis: primeiro, daao das leis biolgicas, em virtude das quais os seusrgos se adaptaram s condies e exigncias da produo;e segundo, atravs destas leis, das leis social-histricas,que regulam o desenvolvimento da produo e dos fen-menos que ela engendra.

    H que assinalar que muitos autores modernos consi-deram toda a histria do homem como um processo subme-tido a esta dupla condio. Crem, como Spencer, que odesenvolvimento da sociedade, ou como eles preferem dizer,o desenvolvimento do meio supra orgnico, isto ,social, cria apenas para o homem condies de existn-cia particularmente complexas s quais se adapta biolo-gicamente. Esta verso, no entanto, carece de base. De fato,a formao do homem passa por outra etapa, um terceiroestdio, em que os fatores biolgicos e sociais da formaoda sua natureza se modificam de novo.

    Este o estdio do aparecimento do homem moderno,fiomo sapiens. Esta etapa representa uma viragem radicalno desenvolvimento do homem, que se liberta completa-mente da sua anterior dependncia das modificaesbiolgicas, inevitavelmente lentas, transmitidas heredita-riamente. As leis social-histricas so as nicas que dirigemagora o desenvolvimento do homem.

  • Y.Y. Roguinski, destacado antroplogo sovitico,descreve esta viragem do seguinte modo: Para alm doslimites, isto , no perodo da formao do homem, a suaatividade. laboral estava intimamente ligada sua evoluomorfolgica. Para c daqueles limites, isto , no homemmoderno, j completamente formado, a ativiGade labo-ral decorre sem qualquer relao com o seu progressomorfolgico.

    Isto significa que o homem, definitivamente formado,possui todas as propriedades biolgicas necessrias ao seuposterior desenvolvimento social-histrico ilimitado. Poroutras palavras, a passagem do homem para uma vidacultural mais elevada no exigia j a transformao dasua natureza biolgica e hereditria. O homem e a humani-dade tinham sacudido, segundo a expresso de Vandell,odespotismo hereditrio e podiam desenvolver-se a umritmo jamais visto no reino animal. Efetivamente, duranteas trs, quatro ou cinco dcadas milenrias que nos sepa-ram dos primeiros representantes da espcie Homo sapiens,produziram-se as condies histricas e modus vivendidas pessoas, transformaes inesperadas e sem paralelo,tanto pelo seu significado como pelo seu ritmo crescente.No entanto, as particularidades biolgicas e de espcie nomudaram; mais precisamente, estas transformaes noforam para alm dos limites das variantes que na vidasocial tm significado considervel.

    No queremos com isto dizer que as leis evolutivas ehereditrias deixem de atuar completamente no processode formao do homem, e que a natureza do homem, umavez conduda, em nada se modifique. O homem, efetiva -mente, no escapa ao das leis biolgicas. No se tratadisso; trata-se de que as transformaes biolgicas, trans-mitidas hereditariamente, no condicionam o desenvolvi-

    mento social-histrico do homem e da humanidade; que oprocesso de desenvolvimento movido por outras forase no pela ao das leis da evoluo biolgica e here-ditria.

    K.A. Timiriazev, o conhecido bilogo, no seu livrodedicado teoria evolucionista, expressou esta idia comas seguintes e magnficas palavras: A teoria sobre a lutapela existncia - escreveu - detm-se nos umbrais dahistria da cultura. Toda a atividade racional do homem uma luta contra a luta pela existncia. Isto , uma luta paraque todas as pessoas da nossa terra possam satisfazer asnecessidades, para que no conheam carncias, fome ouextenuao ...

    Assim, o processo de humanizao, processo de trans-formaes essenciais na organizao fsica do homem,completou-se no incio da era da histria social da humani-dade. Hoje esta idia j no parece paradoxal. Bastadizer, por exemplo, que num colquio cientfico sobre estetema recentemente realizado em Paris, esta idia foi defe-dida pela maioria dos especialistas que nele participaram.

    No entanto, como decorre neste caso o desenvolvi-mento do homem e qual o mecanismo deste processo?Pois, no devir da histria da humanidade as condies devida dos homens e os prprios homens continuaro a mo-dificar-se. Para alm disso, os valores do desenvolvimentoacumulados transmitir-se-o de gerao em gerao,pois s isso pode assegurar a continuidade do processohistrico.

    O que foi anteriormente afirmado demonstra que estesprogressos se consolidaram. Mas, se, tal como vimos,no se puderam afirmar pela ao biolgica e hereditria,como se consolidaram, ento? Afirmaram-se de uma forma

  • completamente especial, que surgiu uma s vez na socie-dade humana, sob a forma de fenmenos exteriores de,fenmenos da cultura material e espiritual.

    Esta forma particular de consolidao e de transmissodos progressos do desenvolvimento s geraes seguintessurgiu devido ao fato da atividade dos homens, ao con-trrio da dos animais, ser criadora, produtiva. Esta ,portanto, e antes de mais, a atividade fundamental dohomem, o trabalho.

    Na sua atividade, os homens, no se adaptam, sim-plesmente, natureza. Modificam-na, correspondendo ssuas crescentes dificuldades. Criam objetos que satis-fazem as suas necessidades e os meios para a produodesses objetos, isto , instrumentos, e depois mquinasmais complicadas, Constroem habitaes, produzem ves-turios e outros valores materiais. Ao mesmo tempo quea produo de bens materiais progride desenvolve-se acultura espiritual dos homens; o caudal de conhecimentossobre o mundo circundante e sobre o prprio homemenriquece-se, e desenvolvem-se as cincias e as artes.

    Para alm disso, no processo de atividade dos homens,as suas capacidades, conhecimentos e aptides crista-lizam-se de determinada maneira nos produtos dessa ati -vidade, nos produtos materiais e espirituais, nos seus ideais. por isso que cada novo passo no aperfeioamento, porexemplo, dos instrumentos de trabalho, pode ser consi-derado neste sentido como uma encarnao de um novoescalo no desenvolvimento histrico das aptides motrizesdo homem; a diversificao da fontica, nas lnguas, podeser considerado como a personificao dos progressos naarticulao dos sons e no aperfeioamento do aparelhoauditivo; o processo na arte pode considerar-se como a

    encarnao do desenvolvimento esttico, e assim sucessi-vamente.

    Deste novo modo, cada nova gerao comea a suavida no mundo dos objetos e fenmenos criados pelasgeraes precedentes. Participando no trabalho, na pro-duo e nas diferentes formas da sua atividade social,ela apropria-se das riquezas deste mundo, desenvolvendonos homens as aptides especificamente humanas quese haviam j cristalizado e encarnado neles. A capacidadede articulao, inc1usivamente, forma-se nos homens decada gerao apenas no processo de apropriao da lnguahistoricamente estabelecida e na dependncia das suasaptides objetivas. O mesmo acontece no desenvolvimentodo pensamento e na aquisio de conhecimentos. Nenhumaexperincia pessoal, por mais rica que seja, pode conseguirpensar de maneira lgica, abstrata ou matemtica, e indi-vidualmente estabelecer um sistema de idias. Para seconseguir isto necessrio no uma vida, mas milhares.Na realidade, o pensamento e os conhecimentos de cadagerao formam-se apropriando-se dos progressos jalcanados pela atividade cognoscitiva das geraesanteriores.

    Os dados suficientemente verdicos de que a clenciadispe atualmente demonstram que em determinadoscasos de crianas que desde a mais tenra idade se desen-volvem margem da sociedade e dos fenmenos que elaengendra, no passam do nvel de desenvolvimento dosanimais (R. Zingg). Estas crianas no s desconhecem afaculdade de pensar e de falar, como inc1usivamente osseus movimentos em nada se parecem com os dos homens;ser suficiente dizer que eles nem sequer chegam a dominara posio ereta, prpria dos homens. Conhecemos outros

  • fatos, decerto modo contrrios, em que crianas perten-centes por nascimento a comunidades que se encontramnum grau inferior de desenvolvimento cultural e econ-mico, que passam a viver desde muito cedo num meiocultural elevado, e em que obtm todas as aptides neces-srias para viverem plenamente nesse meio cultural. Cita-rei, por exemplo, o caso mencionado por A. Pieron.

    No Paraguai existe a tribo guayaquili, que pertences mais atrasadas das conhecidas atualmente. civili-zao dos guayaquili d-se o nome de melosa, pois queum dos meios de subsistncia consiste em recolher o meldas abelhas silvestres. Estabelecer contato com eles dificlimo, uma vez que no vivem num local permanente.logo que algum desconhecido se aproxima deles fogempara a floresta. Uma vez conseguiu-se atrair uma crianade sete anos desta tribo; pode-se assim conhecer a sualngua que se verificou ser extremamente primitiva.Noutra ocasio, num acampamento abandonado destatribo encontrou-se uma criana com uns dois anos. O etn-grafo francs Vellard, que a encontrou, entregou-a educao da sua me. Passados vinte anos (1958) no sedistinguia em nada, pelo seu desenvolvimento intelectual,das mulheres europeias cultas. Fala francs, espanhol eportugus, e dedica-se etnografia.

    Estes fatos e muitos outros demonstram claramenteque as capacidades. e aptides especficas do homem nose transmitem por herana biolgica, mas que se formamdurante a vida, no processo de apropriao da culturacriada pelas geraes anteriores. Todos os homens con-temporneos (tendo em conta os casos normais), indepen-dentemente de pertencerem a este ou aquele grupo tnicopossuem, pois, os grmens criados no perodo de formao

    do homem, os quais, existindo as condies necessrias,permitem um progresso nunca visto no reino animal.

    Pode dizer-se que cada homem aprende a ser homem.Aquilo que a natureza lhe deu nascena no sufi-ciente para viver em sociedade. Tem de assimilar tudoo que o desenvolvimento histrico da sociedade humanaalcanou.

    Diante do homem surge um oceano de riquezas acumu-ladas durante sculos de inmeras geraes humanas,constitudas pelos nicos seres do nosso planeta que pos-suem a faculdade de criar.

    As geraes humanas desaparecem e substituem-seuma s outras, mas aquilo que por elas foi criado transmite--se gerao seguinte, a qual, nos seus trabalhos e lutas,multiplica e aperfeioa estas riquezas, d um passo em frentena continuidade progressiva da humanidade.

    O fundador do socialismo cientfico. Karl Marx,analisou pela primeira vez teoricamente a natureza socialdo homem e o seu desenvolvimento social-histrico. Cadauma das relaes humanas com o mundo - escreveuKarl Marx - vista, ouvido, olfato, gosto, tato, pensa-mento, contemplao, sensao, vontade, desejos, ati-vidade, amor, numa palavra, tudo o que constitui a suaindividualidade ... , existe em funo dos rgos sociais e,a sua relao objetiva., ou as suas relaes com os objetos,no so mais do que a apropriao deste ltimo, a apro-priao da realidade humana.

    Desde ento, altura em que estas linhas foram escri-tas, at hoje, passaram j mais de cem anos, mas as idiasque elas encerram continuam ainda hoje a constituir aexpresso mais profunda da verdadeira natureza dascapacidades humanas, ou como disse Marx, a expressodas for.as da essncia humana.

  • tempo objeto social em que se encarnou e afirmou o re-sultado histrico das experincias laborais.

    A existncia deste contedo simultaneamente sociale ideal, cristalizado nos instrumentos humanos, distingue--os dos instrumentos dos animais. Os chamados ins-trumentos animais realizam tambm determinadas ope-raes: por exemplo, os macacos, aprendem, como sesabe, a utilizar o pau para alcanar os frutos. Mas nosinstrumentos animais, estas operaes no se fixam,e eles, os instrumentos, no se convertem em meios exe-cutores estveis dessas operaes. Quando o pau nas mosdo macaco cumpre a sua funo converte-se de novo numobjeto que lhe indiferente. por isso que os animaisno guardam os seus instrumentos e estes no se trans-mitem de gerao em gerao. Por conseguinte, eles, osinstrumentos, no so capazes de cumprir este desenvol-vimento acumulativo da funo prpria da cultura (JohnBernal). isto que explica o fato de no existir entre osanimais o processo de assimilao do instrumento; a uti-lizao do instrumento no forma neles novas operaesmotrizes. O instrumento submete-se aos movimentosnaturais do animal, instintivos na sua base; ao sistema demovimentos em que se integra.

    Uma relao oposta caracteriza o emprego dos ins-trumentos pelo homem. A sua mo, em contrapartida,passa a fazer parte do sistema social-histrico de operaesencarnadas no dito instrumento e submete-se a elas.Deste modo, o homem, ao assimilar os instrumentos res-trutura os seus movimentos naturais e instintivos e durantea sua vida formam-se nele capacidades motrizes novas esuperiores. A apropriao de um determinado conjuntode instrumentos de produo - escreveu Marx - equi-

    O problema do desenvolvimento do homem relativa-mente ao desenvolvimento cultural da sociedade levantauma srie de questes que tentarei expor em seguida.

    Antes de mais, trataremos do que representa em sie de como decorre o processo anteriormente descrito deassimilao individual dos progressos do desenvolvimentohistrico da humanidade.

    Como vimos, a experincia social-histrica da humani-dade concentra-se sob a forma de fenmenos exterioresdo mundo objetivo que circunda o homem. Este mundo,o mundo da indstria, da cincia e da arte, exprime a ver-dadeira histria da natureza do homem, o resultado da suaformao histrica. Este mundo conduz o homem aohumano.

    No entanto, em que consiste o processo de assimila-o deste mundo, que ao mesmo tempo processo deformao das capacidades especficas do homem?

    H que sublinhar que este processo no que respeitaao sujeito um processo ativo. Para conhecer os objetosou fenmenos, produto do desenvolvimento histrico, necessrio realizar em torno dos mesmos uma determinadaatividade, isto , uma atividade que reproduza os traos

    essenciais daquela (atividade), encarnada, acumulada,no citado objeto.

    Para explicar esta idia utilizarei um exemplo simplis-sssimo, a assimilao dos instrumentos.

    O instrumento um produto da cultura material quede forma absolutamente ilustrativa e sensvel exprime ostraos tpicos da criao humana. No se trata apenas deum objeto que possui determinada forma e que tem deter-minadas propriedades fsicas. O instrumento ao mesmo

  • vale ao desenvolvimento de determinado conjunto decapacidade nos prprios indivduos.

    Assim, o homem, ao apoderar-se dos instrumentos,assimila as operaes motoras a eles ligadas. Este processo ao mesmo tempo um processo de formao no homem,ao longo da sua existncia, de novas capacidades superio-res, as chamadas funes psicomotoras, que humanizama sua esfera motora.

    O mesmo se passa quando se tenta assimilar os fen-menos da vida cultural. O domnio de uma lngua no apenas um processo de assimilao das operaes compalavras que historicamente se afirmaram nos seus signi-ficados; tambm a posse da fontica da lngua, que de-corre no processo de assimilao das operaes que for-jam a permanncia do sistema fonolgico objetivo damesma. precisamente atravs destes processos que ohomem elabora as funes de articulao e audio, bemcomo a atividade central do crebro a que os fisilogoschamam segundo sistema de sinais (I.P. Pavlov).

    Que todas estas particularidades fisiolgicas formamno homem precisamente a lngua que aprende, e que nodomina na altura do nascimento, de tal modo claro,que conhecendo as caractersticas de uma determinadalngua se pode com segurana descrever algumas destasparticularidades mesmo antes de fazer qualquer inves-tigao. Assim, por exemplo, se se souber que a lnguaverncula do grupo de homens em causa pertence stonais, podemos estar certos de que possuem um ouvidotnico-oral desenvolvido (Taylor, Leontiev, e Guippen-reitor).

    Deste modo, a principal particularidade do processode apropriao por ns examinado, assimilao oupossesso, consiste em criar no homem novas capacidades,

    novas funes psquicas. Nisto consiste a diferena doprocesso de formao dos animais. Enquanto que nestesltimos representa o resultado da adaptao individualda espcie s modificaes e complexas condies de exis-tncia, a assimilao no homem um processo de repro-duo nas particularidades do indivduo, das particula-ridades e capacidades historicamente estabelecidas dognero humano (espcie).

    Falando do papel da assimilao no desenvolvimentodo homem, o autor de uma obra contempornea de-dicada a este problema, assinala, e muito justamente,que enquanto os animais ficam satisfeitos com o desen-volvimento da sua natureza, o homem constri a suanatureza (T. Chatuen).

    No entanto, como fisiologicamente possvel esteprocesso e como se realiza? Estamos perante um problemabastante difcil. Por um lado, os fatos demonstram que ascapacidades e funes que se desenvolvem no perododa histria social da humanidade no se fixam no crebrodos homens e no se transmitem segundo as leis da heredi-tariedade. Por outro lado, absolutamente claro que qual-quer capacidade ou funo s se pode realizar pela ativi-dade de um rgo determinado ou de certos orgos.

    A soluo desta contradio, nascida da comparaodestas duas posies igualmente indiscutveis, constituium dos mais importantes triunfos das investigaes fisio-lgicas e psicolgicas do nosso sculo.

    G. Wundt exprimiu j a idia de que o carter espe-cfico das atividades se explica tendo em conta que na suabase se encontram no as funes elementares e fisiol-gicas do crebro, mas a sua unio que surge no decorrerdo desenvolvimento individual.

  • A descoberta do princIpIO da sistematizao, porPav10v, no funcionamento dos grandes hemisfrios cere-brais, representou um novo e decisivo passo no desen-volvimento desta idia.

    Por outro lado, um dos grandes contemporneosde Pav10v, A.A. Ujtomski, delineou a idia da existnciade orgos particulares, fisiolgicos e funcionais, do sis-tema nervoso. Habitualmente o nosso pensamento rela-ciona com a idia rgo algo de morfo10gicamenteconstante ... Parece-me que tal no se verifica necessaria-mente, e particularmente para o esprito da nova cincia,seria mais adequado no ver nisto qualquer relao ne-cessria.

    O que so os rgos funcionais do crebro? Sorgos que funcionam como os rgos especiais e morfo-10gicamente constantes; no entanto, distinguem-se destesltimos por representarem uma nova formao surgi dano processo de desenvolvimento individual (ontognico).Representam um substrato material das capacidades efunes especficas que se formam no decorrer do processode apropriao por parte do homem do mundo dos objetose fenmenos, criaes da cultura, forjados pela humani-dade.

    Hoje em dia conhecemos suficientemente as particula-ridades e mecanismos da formao destes rgos paracriar no homem os seus modelos experimentais delaboratrios.

    Por outro lado, vemos com maior clareza o que signi-ficou precisamente humanizar o crebro humano, que crioua possibilidade de submeter o ulterior desenvolvimento dohomem ao das leis social-histricas, acelerando-oincomensuravelmente: isto traduziu-se na converso do

    crtex do crebro humano, de 15000 milhes de clulasnervosas, num rgo capaz de formar outros rgos.

    At este momento examinamos o processo de assimi-lao como resultado da influncia ativa do indivduorelativamente aos objetos e fenmenos do mundo cir-cundante, criado pelo desenvolvimento da cultura humana.

    Sublinhamos que esta atividade deve ser adequada,isto , deve reproduzir os traos da atividade dos homensque se encontra cristalizada, acumulada, nos ditos objetose fenmenos, mais exatamente, nos sistemas por elesformados. Poderemos, no entanto, aceitar que esta ati-vidade adequada se forma no homem, na criana, sob ainfluncia desses objetos ou fenmenos? A inconscin-cia desta posio bvia.

    O homem, em geral, no se encontra s frente aomundo que o circunda. As suas relaes com ele so sempremedidas pelas suas relaes com as outras pessoas. A suaatividade faz sempre parte destas relaes, mesmo nos casosem que exteriormente est s. A relao social na sua formaexterior original, sob a forma de atividade conjunta ou decomunicao oral, ou mesmo apenas no pensamento,constitui a condio necessria e especfica da vida dohomem em sociedade. A relao social constitui tambma condio necessria formao da criana, e em cada ho-mem, da atividade adequada quelas (atividades - NT)que, segundo parece, contm em si os objetivos e os fen-menos que traduzem os progressos do desenvolvimentoda cultura espiritual e material da humanidade. Destemodo, a relao social constitui a segunda condio obri-gatria da assimilao, o seu mecanismo, por assim dizer.

    Por outras palavras, os progressos do desenvolvimentohistrico das capacidades humanas no se transmitemao homem apenas atravs dos fenmenos objetivos da

  • cultura material e espiritual, apesar de se encontraremapenas nestes fenmenos. Para alcanar estes progressos,para convert-Ios em capacidades prprias, em rgosda sua individualidade, a criana, o homem, deve rela-cionar-se com o mundo circundante atravs dos outroshomens, isto , relacionar-se com elas. Neste processo,a criana, o homem, aprendem a agir adequadamente.Deste modo, este processo pela sua funo um processode educao.

    Compreende-se que este processo possa ter, e tem,de fato, variadssimas formas: inicialmente, nas primeirasetapas do desenvolvimento da humanidade, assim como nascrianas mais pequenas, tem o carter de simples imitaodas aes das pessoas que esto sua volta, decorrendo,no entanto, sob seu controle e interveno; depois torna-semais complexo e especializa-se, surgem as formas de en-sino e educao escolar, diferentes formas de instruosuperior e finalmente a auto-instruo. Mas o fundamental,o que h que sublinhar, que este processo deve ser per-manente, pois de outra forma a passagem dos progressosdo desenvolvimento social-histrico gerao seguinte seriaimpossvel, e, portanto, a continuidade do processo his-trico seria travada.

    Para explicar esta idia usaremos um exemplo tiradodo livro de A. Pieron, j anteriormente citado. Se se desseno nosso planeta uma catstrofe e sobrevivessem apenas ascrianas, desaparecendo toda a populao adulta, apesardo gnero humano no deixar de existir, no entanto, a his-tria da humanidade ficaria inevitavelmente cerceada.Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente,mas no haveria ningum que os desse a conhecer s gera-es seguintes. As mquinas deixariam de funcionar, oslivros deixariam de se ler e as obras de arte perderiam o

    seu valor esttico. A histria da humanidade teria de come-ar de novo.

    Portanto, o movimento histrico impossvel sem atransmisso ativa s novas geraes dos progressos dacultura humana, sem a sua educao.

    Quanto mais a humanidade se desenvolve, mais ricosso os resultados acumulados pela prtica social-histrica,tanto mais cresce o peso especfico da educao e tanto maiscomplexas se tornam as tarefas que se apresentam ao longodo seu desenvolvimento. por isso que cada nova etapano desenvolvimento da humanidade, assim como no desen-volvimento de certos povos, implica inevitavelmente umanova etapa no desenvolvimento da educao da geraoseguinte, aumenta o tempo que a sociedade dedica aoensino, surgem novas instituies docentes, o ensino adquirenovas formas de especializlo e relacionado com isto aprofisso do educador, do professor, se diferencia; os pro-gramas de ensino so cada vez mais completos, os mtodospedaggicos aperfeioam-se e desenvolvem-se a pedagogia.Esta ligao entre o progresso histrico e o progreso nocampo da educao to ntima, que pelo nvel geral dodesenvolvimento histrico da sociedade podemos determi-nar, inequivocamente, o nvel de desenvolvimento da edu-cao e, inversamente, pelo nvel de desenvolvimento daeducao, determinar igualmente o nvel de desenvolvi-mento econmico e cultural da sociedade.

    A educao, o ensino ou a instruo, a sua histria,so particularidades e exigncias que a poca modernaapresenta, tudo isto, constitui um tema especial e extrema-mente longo. A nossa tarefa consiste apenas em indicar afuno que a educao, no seu mais amplo sentido, exerceno desenvolvimento da humanidade. Mas evidente queo problema da cultura e do homem no se esgota com isto.

  • a acumulao dos conhecimentos que penetram nos se-gredos mais zelosamente guardados do universo, as pro-dues de arte que destacam poderosamente os seus sen-timentos. Mas estas conquistas estaro ao alcance de todosos homens? No, sabemos perfeitamente que tal assimno acontece, que estas conquistas do desenvolvimentose encontram margem dos prprios homens. Relativa-mente a este ponto devemos referir de novo a comparaoentre a evoluo biolgica e o progresso histrico, porum lado, e a natureza dos animais e dos homens, por outro.

    A perfeita adaptao dos animais ao meio, a sabe-doria, a riqueza e a complexidade dos seus instintos e oseu comportamento so assombrosos. Tudo isto soconquistas do seu desenvolvimento e acumulao de expe-rincias enquanto espcie. Embora nfimos comparadoscom os progressos do desenvolvimento histrico doshomens, se nos abstrairmos dos desvios individuais queso secundrios, constituem, no entanto, um progressopara todos os representantes da dita espcie e bastarque o naturalista estude um ou alguns dentre eles, paraconseguir uma representao justa de toda a espcie noseu conjunto.

    Um outro quadro completamente diferente se nosdepara quando examinamos o homem. A unidade daespcie humana parece no existir, e tal acontece, no porquehaja entre os homens diferenas de cor, diferentes formasdos olhos ou outros traos manifestamente exteriores,mas devido grande diferena existente de condies devida, de riqueza de atividade material e espiritual, e denvel de desenvolvimento das suas aptides e capacidadesintelectuais.

    Se um ser de outro planeta visitasse a terra e desco-brisse as capacidades fsicas, intelectuais e estticas, as

    Este problema levanta novas questes, entre as quaisse destaca a desigualdade cultural das pessoas.

    Vou passar em seguida a abordar esta questo.

    At aqui examinamos o desenvolvimento do homemcomo indivduo. Este chega ao mundo indefeso e desarmado,dotado de nascena de uma nica faculdade que o distinguefundamentalmente dos seus antepassados animais, a fa-culdade de formar capacidades especificamente humanas.Se no for privado de algumas particularidades inatas queo individualizam e deixam traos no seu desenvolvimentoisto manifestar-se- no atravs do contedo ou do nvel,de possveis progressos da sua vida espiritual, mas emapenas alguns traos fundamentais e particularmentedinmicos da sua atividade e personalidade; tais sopor exemplo, a influncia dos tipos de atividade nervosasuperior inata.

    Por outro lado, surge diante de ns a fonte efetivae nica do desenvolvimento no homem das foras e capa-cidades, produtos do desenvolvimento social-histrico. Soos objetos e fenmenos que encarnam a atividade dasgeraes anteriores, o resultado do desenvolvimentoespiritual da espcie humana, o resultado do desenvolvi-mento do homem como ser genrico (Marx). Mas nestamesma idia se encerra uma abstrao cientfica, talcomo nos conceitos de humanidade, cultura humanae gnio humano.

    Ns podemos, evidentemente, conceber as descobertasinesgotveis do desenvolvimento humano: a tcnica criadapelo homem, tcnica que elevou em dezenas de milhar devezes a potncia das foras fsicas e intelectuais do homem;

  • qualidades morais e particularidades de comportamentodos homens, pertencentes a diferentes classes e estratos so-ciais, que vivem nas diversas regies e pases do nossoplaneta, poderia pensar que se tratassem de representa-tes de espcies diferentes.

    No entanto, esta desigualdade entre os homens nodepende de diferenas naturais ou biolgicas. criada peladesigualdade econmica e de classe das relaes que li-gam os homens, aos progressos que so a personificaodo conjunto das foras ou capacidades da natureza humana,formada no processo do desenvolvimento histrico.

    O fato destes progressos se refletirem nos produtosobjetivos da atiVidade humana modifica radicalmente,como vimos, o tipo de desenvolvimento. Esta circunstncialiberta o homem da subordinao s leis biolgicas, ace-lera-o e abre-lhe perspectivas que seriam inconcebveisno processo evolutivo sujeito s leis da mutao e da here-ditariedade.

    Mas esta mesma circunstncia leva a que tais progressosdo desenvolvimento histrico possam separar-se dos pr-prios homens que forjam este desenvolvimento.

    Esta distanciao d-se, antes de mais, na prtica, soba forma de alienao econmica dos meios e produtos dotrabalho dos produtores diretos, surge com o aparecimentoda diviso social do trabalho e, simultaneamente, com odesenvolvimento provocado pela troca de produtos, asformas de propriedade privada e a luta de classes. Porconseguinte, esta distncia surge pela ao das leis obje -tivas do desenvolvimento da sociedade, independente-mente da conscincia e da vontade dos homens.

    A diviso social do trabalho converte o produto dotrabalho em objeto destinado a troca, o que modificaradicalmente a relao entre o produtor e o produto por

    ele produzido. Este ltimo, apesar de continuar, natural-mente, a ser o resultado da atividade do homem, perde,no entanto, o carter concreto da atividade daquele,adquire um carter completamente impessoal e inicia,independentemente do homem, a sua vida especial, a vidade mercadoria. Ao mesmo tempo a diviso social do tra-balho leva a que a atividade material e espiritual, a satis-fao e o trabalho, a produo e consumo, se separem unsdos outros e correspondam a homens diferentes. porisso que quanto mais rica e multiface a atividade doshomens, mais a atividade que corresponde a indivduosisolados adquire um carter unilateral e se empobrece.Este carter unilateral, este empobrecimento, pode chegar,como se sabe, a graus extremos quando, por exemplo, osoperrios gastam todas as suas foras na execuo de umaoperao que se repete milhares de vezes seguidas.

    Na produo capitalista, especialmente, esta ativi-dade limitada, unilateral, aliena-se do homem e perde oseu contedo objetivo.

    As mquinas que os operrios constroem, os prdiosque levantam, os livros que imprimem, nada disto fazempara eles prprios: para eles s produzem o salrio. Destemodo, as mquinas, os prdios, os livros, etc., convertem-separa os trabalhadores apenas numa determinada quanti-dade de objetos de primeira necessidade.

    Por outro lado, o mesmo acontece no polo socialoposto, no polo do capital. Mesmo para o capitalista, aempresa que possui no tem sentido enquanto empresa deproduo de tais ou tais objetos, mas enquanto empresaque d rendimento. por isso que ele est disposto a produ-zir seja o que for, mesmo as mais horrveis armas de des-truio, cuja ao nele prprio se pode repercutir.

  • Em tais condies, tudo o que existe tem para oshomens um duplo aspecto. Tem um duplo sentido no so mundo dos fenmenos que circunda os homens e que foicriado por eles prprios, mas tambm a sua prpria ati-vidade, a sua conscincia, que adquire traos unilaterais,desintegrantes. Ao concentrarem-se as riquezas materiaisnas mos da classe dominante, nela se concentra tambma cultura espiritual, embora as criaes dessa cultura pareaexistir para todos; no entanto, s uma minoria ntimatem possibilidades materiais e tempo para satisfazer osseus anseios de instruo para completar sistematicamenteos seus conhecimentos e dedicar-se s artes: ao mesmotempo, as massas, especialmente a populao rural, de-vem contentar-se com um mnimo de desenvolvimentocultural, o mnimo indispensvel para que possam realizar,dentro dos limites traados para os operrios, a atividadeprofissional e a produo de valores materiais.

    Como a minoria dominante no possui apenas osmeios de produo material, mas tambm a maior partedos meios de produo da cultura espiritual e da sua di-fuso, e tende a p-Ia ao servio dos seus interesses, surgea diferenciao da cultura. Se na esfera da cincia se fa-cilita o aperfeioamento tcnico e se se acumulam rapi-damente conhecimentos positivos, noutra esfera, na esferadas representaes sobre o homem e a sociedade, sobre anatureza e a essncia, sobre as foras motrizes e o seufuturo, na esfera dos ideais morais e estticas, o desen-volvimento decorre em duas linhas radicalmente diferentes.Por um lado, na linha de acumulao de valores espirituais- representaes, conhecimentos e ideais - que encaI-nam o autenticamente humano no homem e iluminam ocaminho do desenvolvimento histrico; esta linha refleteos interesses da maioria. Por outro lado, a linha da criao

    de representaes cognoscitivas, morais e estticas qu~ se~-vem os interesses das classes dominantes, tendem a JustI-ficar e a eternizar a ordem social existente, afastar as mas-sas da luta pela justia, pela igualdade e pela liberdade,narcotizar e paralizar a sua vontade. O choque destas duaslinhas engendra a chamada luta ideolgica.

    Assim, o processo de alienao produzido pelo desen-volvimento da diviso do trabalho e pelas relaes de pro-priedade privada, no s conduz separao das massasda cultura espiritual, como tambm a diferenciao dosseus elementos componentes, avanados uns, isto , demo-crticos, que servem o progresso da humanidade, e retr-grados outros, cuja penetrao nas massas impede o pro-gresso. Estes ltimos formam o contedo da cultura de-gradada das classes reacionrias da sociedade, o que fictcio, transitrio, na cultura da humanidade.

    A concentrao e diferenciao da cultura no severifica s nos limites das naes e dos povos. A desigual-dade cultural no desenvolvimento dos homens manifesta--se, demodomais radical, se considerarmos o mundo todo,toda a humanidade.

    Esta desigualdade serve precisamente de base, antesde mais, para a diviso dos homens em representantes deraas inferiores e superiores. Tm-se feito e continuam--se a fazer grandes esforos especialmente nos pases cujasclasses dominantes tm um especial interesse na justifi-cao ideolgica do direito de submeter outros po:os,atrasados no seu desenvolvimento cultural e econmICO.No foi por acaso, pois, que o pas em que se fizeram asprimeiras tentativas de fundamentar cientificamente, aidia de que estes povos se encontram num outro mvelde desenvolvimento biolgico e pertencem a uma classehumana especial (subespcie) foi a Inglaterra (Lawrens,

  • G. Smith e, na segunda metade do sculo passado, J. Kente os seus discpulos).

    No foi por acaso, por exemplo, que se verificou umrecrudescimento radical da doutrinao racista nos EstadosUnidos, no incio da libertao dos negros. N. Chernis-hevski, democrata revolucionrio russo (1828-1889), es-creveu: Quando os proprietrios de plantaes dos es-tados do sul se alarmavam devido s suas possessesescravagistas, elaboraram rapidamente todo um sistema deargumentao em defesa da escravatura; havia necessi-dade de refutar as idias do partido que se tinha tornadoum perigoso inimigo dos escravagistas... , e empregaramnesta luta no terreno da eloquncia, da imprensa e da cin-cia, grandes foras, tal como fizeram depois no campo mi-litar. (Citado de Y. Roguinski e M. Levin.).

    Sabe-se tambm que na altura em que cresciam aspretenes colonialistas da Alemanha, o racismo convertia--se cada vez mais na ideologia dos crclos militares, pas-sando depois sua forma mais aguda, o fascismo.

    Para fundamentar cientificamente as afirmaes sobrea suposta imperfeio das chamadas raas inferioresserviram-se, como se sabe, de dois tipos de argumentos:morfolgico e gentico-comparativo.

    As tentativas repetidamente levadas a cabo no sentidode demonstrar a existncia de diferenas anatmicas nocrebro dos homens de diferentes raas, fazem parte doprimeiro tipo. No entanto, estas tentativas fracassaraminevitavelmente. Por exemplo, a capacidade mdia docrebro de certas tribos negras verificou-se, depois deinvestigaes minuciosas, ser inclusivamente superior capacidade cerebral dos brancos (escoceses). O mesmosucedeu com os resultados das investigaes da estruturaparticular e delicada do crebro. Neste aspecto, O. Kleine-

    berg, psiclogo, usa no seu livro sobre psicologia dadoscaractersticos. Bean, colaborador do Instituto de Ana-tomia da famosa universidade norte-americana JohnHopkins, publicou no seu tempo dados que demonstra-vam que o desenvolvimento da parte frontal do crtexcerebral dos negros era relativamente infelior aos dosbrancos e que o crebro dos primeiros possuiam particula-ridades de estrutura que correspondiam ao fato compro-vado, segundo Bean, de deficincia nos negros. Como aMaU, diretor do instituto, os dados apresentados porBean lhe pareceram pouco convincentes, repetiu a inves-tigao num mesmo numero de crebros, mas, contraria-mente ao que fizera Bean, realizou seu estudo comparativosem saber, de antemo, quais eram os crebros que perten-ciam aos brancos e quais pertenciam aos negros. Depoisde MaU e os seus colaboradores terem dividido os crebrossegundo os ndices estabelecidos por Bean, em dois grupos,e depois contarem quantos crebros de raa branca e negrahavia em cada um deles, verificou-se que se haviam dis-tribuido pelos grupos de modo quase idntico; a conclusode Bean ficou deste modo refutada. Como assinala Klein-berg a este respeito, Bean esperava, por certo, encontrarndices de subdesenvolvimento nos negros, e conhecendopreviamente a procedncia dos crebros submetidos a inves-tigao, viu entre eles diferenas que na realidade noexistiam.

    Vejamos agora os argumentos genticos. A sua anlisetem um grande e especial interesse, uma vez que tocadiretamente o problema da desigualdade de desenvolvi-mento da cultura nos diferentes povos. A base destes argu-mentos constituda pela chamada hiptese do poligenismo.O sentido desta hiptese reduz-se ao fato das raas huma-nas terem tido origem independente, isto , procederem

  • de diferentes antepassados. Assim se explicam as diferen-as irrefutveis, segundo eles, entre os povos, tanto pelonvel alcanado como pelas possibilidades de ulteriordesenvolvimento. No entanto, medida que os conheci-mentos paleontropolgicos iam aumentando, esta hiptesetornava-se cada vez mais improvvel e a maioria dos inves-tigadores modernos mantm posies opostas, posiesque reconhecem a comunidade de origem de todas as raas,que, do ponto de vista biolgico, mais no representam doque variaes de uma espcie nica, a espcie do Homo-sapiens. Isto demonstrado, antes de mais, pelo fato dotraos raciais serem muito variveis, devido s fronteirasentre as diferentes raas serem de certo modo enganado-ras, caracterizadas por transies imperceptveis. Os dadosmodernos demonstram que certos traos raciais, em deter-minadas condies, nas deslocaes para outras regiesgeogrficas, poderem modificar de modo bem sensvelno decurso de apenas uma gerao. Outra prova daorigem comum das raas humanas constituda pelofato dos traos individuais, cujo conjunto define os tra-os raciais, se encontrarem sob a forma de diferentes com-binaes entre os representantes de diferentes raas. E fi-nalmente, e que particularmente importante, as caracte-rsticas principais do homem moderno, j acabado,tal como o elevado desenvolvimento cerebral e a corres-pondente correlao entre a parte frontal e a parte posteriordo crnio, a estrutura caracterstica das mos, as particula-ridades do esqueleto adaptado posio ereta e a mar-cha em posio vertical, o dbil desenvolvimento capilarno corpo e outras, so prprias de todas as raas humanassem exceo.

    Somos levados a acreditar que as diferenas raciaissurgiram devido antiga humanidade se ter estendido pela

    terra fracionando-se em grupos isolados, tendo cadaum dos quais continuado o seu desenvolvimento sob ainfluncia de condies de vida desiguais, adquirindo,sob esta influncia, certas particularidades que s tmimportncia adaptativa relativamente aqueles fatoresnaturais que atuam diretamente (por exemplo, a pigmen-tao da pele que se verifica sob a ao dos raios solares);para alm disso, o isolamento destes grupos reforou,naturalmente, a acumulao hereditria deste tipo departicularidades biolgicas, uma vez que, como sabemos,a ao das leis hereditrias no cessa, geralmente, senono que respeita consolidao e transmisso das conquistassocial-histricas da humanidade. E precisamente nodomnio destas ltimas que se verificam as maiores di-ferenas.

    certo que o isolamento relativo, a desigualdade decondies no progresso econmico e social poderiam tercriado, nos grupos humanos, habitantes de diferentesregies do nosso planeta, uma determinada desigualdadeno seu desenvolvimento. No entanto, a grande diferenaque existe entre o nvel cultural e espiritual dos diferentespases e povos no se pode explicar apenas pela ao dosmencionados fatores. Com efeito, no desenvolvimentoda humanidade surgiram, e comearam a desenvolver-serapidamente, os meios de comunicao e as relaes econ-micas e culturais entre os povos; e isto ter exercido umainfluncia em sentido inverso, isto , ter atuado no sen-tido de uma nivelao no desenvolvimento dos diferentespases, levando os povos atrasados a alcanar o nvel dosavanados.

    Assim, se a concentrao da cultura mundial, pelocontrrio, se reforou ainda mais, de tal modo que algunspases se converteram nos seus representantes prximos

  • enquanto que noutros era subjugada, porque as relaesentre os pases se no desenvolveram sob os princpios daigualdade, colaborao e ajuda mtua, mas sob o princpiodo domnio do mais forte sobre o mais fraco.

    A conquista de territrios, o saque e a submisso es-cravagista da populao indgena dos pases atrasados ea converso destes territrios em colnias, representoupara eles um muro de contentao e de retrocesso nodesenvolvimento e plOgresso da sua cultura. E isto noaconteceu apenas porque os povos subjugados eram pri-vados da maioria esmagadora das suas componentes, emesmo das condies materiais indispensveis ao seuprogresso cultural, mas tambm porque se levantavam bar-reiras artificiais que os afastavam da cultura mundial.Ainda que os opressores colonialistas mascarassem osseus fins egostas com frases sobre a sua misso culturale civilizadora, na realidade lanaram povos inteiros namisria espiritual, e se importaram valores culturais, esteseram sobretudo valores fictcios, no os portadores de umaverdadeira cultura, mas de alguns aspectos que s super-ficialmente se manifestavam.

    Portanto, a concentrao e a alienao da cultura dohomem no se verifica s na histria dos vrios pases,mas tambm, e sob formas mais agudas, na histria dahumanidade no seu conjunto.

    Esta alienao da cultura teve como consequncia oaparecimento de um abismo entre as enormes capacidadesalcanadas pela humanidade, por um lado e, por outro,a misria e o carter desigual do desenvolvimento, em quese encontram - ainda que em grau diferente - determi-nados homens. Este abismo, no entanto, no eterno,como no so eternas as relaes scio-econmicas que oengendraram. A sua completa eliminao forma o contedo

    do problema das perspectivas do desenvolvimento dohomem.

    O problema do ulterior desenvolvimento do homem uma das questes que interessam tanto aos antroplogose psiclogos, como aos socilogos. Na sua soluo, chocam--se entre si os mesmos pontos de vista co