Apontamentos sobre os impactos socioambientais e ... · considerar os indígenas como seres apenas...

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Apontamentos sobre os impactos socioambientais e econômicos da soja nas comunidades do Parque Indígena do Xingu e da Terra Indígena Paresi ONG Repórter Brasil Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis Novembro de 2011 Autores: Marcel Gomes (coordenador) Verena Glass Antonio Biondi

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Apontamentos sobre os impactos socioambientais e econômicos da soja nas comunidades do Parque

Indígena do Xingu e da Terra Indígena Paresi ONG Repórter Brasil Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis Novembro de 2011 Autores: Marcel Gomes (coordenador) Verena Glass Antonio Biondi

1) Aspectos gerais

A vida das populações indígenas brasileiras, formadas por 818 mil indivíduos segundo o

Censo de 2010, é regulada por uma série de marcos legais. O mais importante é a

Constituição Brasileira de 1988, promulgada após o final da Ditadura Militar (1964-

1985).

A constituição rompe com a tradição marcante da política indigenista do país de

considerar os indígenas como seres apenas "relativamente capazes"[1], o que serviria de

justificativa para a tutela estatal dessas populações. O texto constitucional determina a

igualdade e a não discriminação, como pode ser visto nos trechos a seguir:

"Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-

se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade..."

Fundada na igualdade entre os brasileiros, a constituição também reserva um capítulo

particular para os índios, em que reconhece seus direitos específicos, inclusive a

respeito da demarcação de terras, como disposto no trecho a seguir:

"CAPÍTULO VIII

Dos Índios

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,

crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente

ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus

bens.

§ 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em

caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à

preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a

sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse

permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos

lagos nelas existentes.

§ 3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a

pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados

com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-

lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4.º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos

sobre elas, imprescritíveis.

§ 5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do

Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua

população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso

Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por

objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a

exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,

ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei

complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações

contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação

de boa-fé.

§ 7.º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3.º e 4.º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para

ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério

Público em todos os atos do processo."

O que guia o texto constitucional neste trecho sobre a demarcação das terras é o

reconhecimento de que a sobrevivência física e cultural dos indígenas depende da

ocupação de seu território original. É lá que esses indivíduos obtêm água, comida e

medicamentos para suas comunidades, e encontram o espaço para o exercício de suas

tradições culturais e religiosas. Segundo a constituição, as comunidades possuem a

posse inalienável da área e o usufruto de suas riquezas naturais.

Ainda que regularização das terras indígenas não tenha começado em 1988 – o Parque

Indígena do Xingu, um dos objetos analisados no presente estudo, foi a primeira terra

indígena homologada na história do país, em 1961 –, a Constituição tem o mérito de dar

o impulso ao reconhecimento de que o elemento indígena não sobreviveria à ausência

de seu território.

Atualmente, as bases legais do processo administrativo de demarcação das terras

indígenas estão definidas na Lei nº 6.001, de 19/12/1973, que é conhecida como

Estatuto do Índio, e no Decreto nº 1.775, de 08/01/1996. Esta legislação atribui à Funai

o papel de tomar a iniciativa, orientar e executar a demarcação dessas terras, atividade

que é executada pela Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF). Há anos o Parlamento

brasileiro discute o projeto de um novo Estatuto do Índio, mas sem avanços recentes.

A conquista da terra por uma população indígena depende de um longo processo

administrativo. O procedimento prevê etapas de identificação e delimitação,

demarcação física, homologação e registro de terras. Após o registro, a Funai torna-se

responsável pela proteção da área, com poder para pleitear a extrusão dos possíveis não-

índios ocupantes das terras administrativamente reconhecidas como indígenas.

Os dois territórios indígenas analisados no presente estudo – o Xingu, já citado, e o

Paresi – estão localizados no Estado do Mato Grosso e sofrem a pressão dos vetores

econômicos que incidem da região, em especial aqueles ligados ao agronegócio.

1.1) Caracterização do Estado de Mato Grosso

O Mato Grosso, terceiro maior Estado do Brasil com 906.807 km2 (10,59% do território

nacional), situa-se na região Centro-oeste do país, fazendo fronteira a oeste com a

Bolívia. Um dos estados brasileiros onde a agropecuária e a agroindústria expandem-se

com mais intensidade, o Mato Grosso também abriga o maior número de etnias

indígenas do país.

O Estado possui um conjunto de três ecossistemas principais, que o diferenciam de

todos os demais Estados do país: o Pantanal (10% da área), a maior planície inundável

do mundo, a sul; o cerrado (40% da área), a chamada savana brasileira; e as florestas

(50% da área, que inclui a floresta amazônica e a vegetação de transição entre cerrado e

Amazônia), no centro-norte. E é no cerrado e na zona de transição com a Amazônia que

se expandiu, vertiginosamente e de forma desordenada, o grosso da atividade

agropecuária estadual.

Majoritariamente constituído por bosques abertos, com árvores contorcidas de pouca

estatura (entre oito e doze metros), extensões de grama natural e nascentes d'águas

circundadas por campos ralos e palmeiras (as chamadas veredas), o Cerrado detém uma

biodiversidade extremamente rica, estimada em cerca de doze mil espécies vegetais, 70

espécies de mamíferos, 840 tipos de aves, 120 de répteis e 150 de anfíbios.

Apesar de considerado a savana mais rica em biodiversidade do mundo, o Cerrado é o

bioma com menor proteção legal do país – segundo a lei, os agricultores podem

desmatar 80% de sua área e preservar apenas 20%; na Amazônia é o inverso: 80%

devem ser protegidos e 20%, explorados.

Em função de sua geografia plana e regime de chuvas rígido, o cerrado do Mato Grosso

passou a ser extremamente valorizado pela pecuária e pela agricultura extensiva e

mecanizada, principalmente a partir da década de 1970, quando houve uma maior

intervenção da União na região. Ainda sob a ditadura militar, o governo federal

incentivou a migração de agricultores do sul do país para o Centro-oeste, dando início a

uma história de invejável desenvolvimento econômico e catastrófica degradação

ambiental.

De acordo com dados da Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso divulgados no

final de 2009, até meados de 2007 cerca de 175 mil km² de floresta amazônica e 150 mil

km2 de cerrado foram desmatados no Estado, o que representa aproximadamente 35% e

42% das respectivas áreas originais.

No mesmo ritmo do desmatamento, o Estado dobrou a sua produção agropecuária nos

últimos dez anos. Atualmente a cultura de maior destaque no Mato Grosso, a soja

cresceu, em produção, 8% ao ano em média, saltando de 8,8 milhões de toneladas no

início da década para 18,2 milhões de toneladas em 2010, segundo a Associação dos

Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT).

1.2) Expansão da soja e impactos em territórios indígenas

O aumento da produção de soja no Mato Grosso foi acompanhado de perto pelo

aumento da área plantada. De acordo com o levantamento da produção nacional de

grãos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a área de soja no Mato

Grosso mais que dobrou entre os anos de 2000 e 2010, saltando de 2,9 milhões de

hectares para 6,2 milhões. É o Estado com maior área plantada do país, com

praticamente 25% de toda a área brasileira do grão.

Dos 141 municípios do Mato Grosso, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, apenas 44 (ou 31,2%) não cultivam soja ou não

tinham registro da cultura. No mesmo ano, 58 cidades (ou 41,1%) tinham entre 10 mil e

608 mil hectares de soja. O avanço rápido do grão no Mato Grosso não deixou de afetar

as populações indígenas. Das 78 Terras Indígenas (TIs) listadas pela Fundação Nacional

do Índio (Funai), ao menos 30 ficam em municípios com mais de 10 mil hectares do

grão.

A expansão da soja nas cercanias das Terras Indígenas não necessariamente resulta em

relações entre as partes ou impactos sobre os índios, mas reforça uma preocupação já

manifestada pelo movimento indígena do cerrado.

Em documento resultante de reunião realizada no final de 2008, a organização

Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC) afirmou que "o Estado do Mato

Grosso é o maior produtor de soja do Brasil, sendo esta atividade uma das principais

causas do desmatamento no cerrado e da degradação ambiental nas cabeceiras dos rios

que drenam as terras indígenas, colocando em risco a segurança alimentar, a cultura e a

vida física e espiritual das comunidades indígenas".

De modo geral, como é um dos maiores vetores de desmatamento do Cerrado, grande

consumidora de agrotóxicos, consolidadora do modelo monocultor e introdutora da

transgenia no Centro-oeste, a soja vem acompanhada de uma grande carga de impactos

sobre o ambiente onde está inserida.

Degradação, erosão, empobrecimento e desertificação do solo, destruição das matas

ciliares, contaminação de cursos d’água disseminação das queimadas (que anualmente

vitimam milhares de animais silvestres e causam graves doenças respiratórias

principalmente em crianças), pulverização de venenos sobre pequenos agricultores,

indígenas e suas plantações, introdução de um novo paradigma de consumo capitalista

entre as populações tradicionais e aprofundamento do preconceito e do racismo contra

os indígenas são alguns "efeitos colaterais" da sojicultura e de sua proposta de

desenvolvimento.

Particularmente em relação às Terras Indígenas, a soja tem impactado diversas

comunidades de diferentes formas. No caso da Terra Indígena Paresi, a comunidade se

engajou em parceria com fazendeiros para a produção de soja dentro da própria área

demarcada, dividindo os indígenas entre pró e contra a soja. No caso do Parque

Indígena do Xingu, as comunidades que o habitam procuram manter distância da

produção de soja que circunda a área, mas é indiretamente afetada por ela, sobretudo

pela poluição de agrotóxicos que chegam ao parque pelos rios.

Não são os únicos casos no Mato Grosso. Há denúncia já investigadas pela Repórter

Brasil como a da Terra Indígena Maraiwatsede, em Alto da Boa Vista e Bom Jesus do

Araguaia, ocupada pelos Xavantes, onde a soja ocupa, como invasora, a terra dos índios

e tem liderado os rankings de multas por desmatamento na região. Já no caso da Terra

Indígena Sangradouro (também dos índios Xavante), no município de Poxoréo, as

invasões da área indígena são de pequeno porte, mas constantes, de acordo com

denúncia do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Segundo o padre Luis Silva Leal, que vive na região de Poxoréu, os sojicultores, além

de incorporarem anualmente pequenas parcelas de 10 a 20 hectares de terras indígenas

às suas áreas, fizeram várias tentativas de acordar arrendamentos de parcelas maiores de

terra indígena. "A última tentativa de arrendamento ocorreu em 2009, mas no final os

Xavantes recuaram. Eles não são grandes agricultores, e têm muito medo de serem

explorados", explica Leal.

Em relação à questão ambiental, o padre relata que a TI Sangradouro ainda tem

extensões de mata preservada, o que possibilita minimamente a manutenção da cultura

de caça e pesca pelos Xavantes. "Mas os arredores da área já foram todos devastados.

Nas primeiras chuvas do ano, o veneno utilizado pelos sojeiros tem contaminado rios

como Sangradouro, Água Azul e Pindaíba, que chegam a ficar cobertos de peixes

mortos", diz Leal.

Por fim, segundo, ele a aldeia de Volta Grande ainda vive uma disputa de terras com

fazendeiros de soja, e ocupa apenas 11 mil dos 33 mil hectares originalmente

pertencentes aos índios. "Há uma área que está em litígio. Lá os fazendeiros plantam

soja, e acabam pagando um dinheiro aos indígenas por isso, que aceitam para evitar

maiores conflitos".

Outras etnias, como os Paresi, Irantxe e Nambikwara, optaram por fazer parcerias com

grandes fazendeiros, o que tem suscitado uma complexa discussão jurídica sobre a

legalidade dos acordos e causado impactos diversos sobre grupos e etnias, como será

apresentado à frente, em estudo de caso.

A pressão do desmatamento sobre o ecossistema do cerrado, sua biodiversidade e seus

rios tem levado as autoridades brasileiras a rediscutir critérios de proteção do bioma,

mas ainda pouco foi feito para concretizar um marco legal efetivo de preservação.

Um dos principais problemas – a destruição de áreas de preservação, cursos e fontes

d’água e suas matas ciliares –, no entanto, tem levado uma série de organizações

ambientalistas a buscar soluções alternativas numa das regiões mais afetadas pela

devastação: a cabeceira do Xingu, um dos mais importantes rios do Mato Grosso e do

Pará, e de cuja preservação depende toda a população da maior Terra Indígena do

Brasil: o Parque Indígena do Xingu.

Em 2004, várias organizações ambientalistas, indígenas, de agricultores, empresariais e

governamentais participaram do lançamento da campanha ‘Y Ikatu Xingu – palavras

que significam "Salve a água boa do Xingu", na língua kamaiurá. A iniciativa, que é

conduzida por entidades como o Instituto Socioambiental (ISA) e Instituto Centro de

Vida (ICV), já conseguiu convencer sojicultores a recuperarem áreas degradadas,

através de novas técnicas de reflorestamento que usam sementes, e não mudas.

Além disso, a campanha tenta ampliar seus impactos através de acordos com governos

de municípios localizados na região do parque indígena. O objetivo é usar políticas

públicas municipais para apoiar produtores rurais que desejem voluntariamente

recuperar áreas degradadas em suas fazendas.

2) Descrição das transformações

2.1) Parque Indígena do Xingu (PIX)

O Parque Indígena do Xingu (PIX), criado em 1961, é a mais importante Terra Indígena

brasileira. Localizado na divisa entre os Estados do Mato Grosso e Pará, no centro do

país, o PIX é um território de 2.825.470 hectares, formado pelas áreas contíguas das

terras indígenas Parque Indígena do Xingu (com 2.642.003 hectares), Batovi (5.159 ha),

Wawi (150.328 ha) e Pequizal do Naruvôtu (27.980 ha), que compartilham a mesma

gestão político-administrativa. Atualmente, o parque abriga 16 povos distintos - Aweti,

Ikpeng, Kalapalo, Kamaiurá, Kawaiweté (kaiabi), Kisédje (suyá), Kuikuro, Matipu,

Mehinako, Nafukuá, Naruvôtu, Tapayuna, Trumai, Waurá, Yawalapiti, e Yudjá

(juruna), totalizando uma população de cerca de 5.220 pessoas.1

A diversidade socioambiental na região do rio Xingu impressiona o Brasil e o mundo há

décadas. Desde a expedição do etnólogo alemão Karl von den Steinen, em 1884, a

região do Alto Xingu revelou ao mundo um conjunto de 10 povos de diferentes línguas

e origens que conviviam pacificamente a partir de um complexo cultural que envolve

trocas comerciais, casamentos e a realização de festas e rituais como o Kuarup.

O PIX é uma espécie de ilha de preservação socioambiental e cultural em meio a uma

das regiões mais pressionadas pelas atividades agropecuárias do país. Com a cobertura

vegetal de transição entre os biomas Cerrado e Amazônia ainda preservada, o parque

possibilitou a manutenção das atividades tradicionais, como caça, pesca e extrativismo,

e das culturas e dos idiomas dos diversos grupos indígenas, mas não está imune ao

1 Almanaque Socioambiental Parque Indígena do Xingu – 50 anos – Instituto Socioambiental, 2011

cerco de superexploração dos recursos naturais, da terra e da água que se fecha em seu

redor.

De acordo com a ONG Instituto Socioambiental, que atual na região, a pesca e a

agricultura representam o núcleo das atividades produtivas no PIX. O peixe, o beiju e

mingaus (estes dois últimos feitos a partir do processamento da mandioca "brava")

constituem os principais itens da alimentação dos povos do sul do Parque. As etnias das

regiões norte e central comem carne vermelha e possuem uma agricultura mais variada.

No Alto Xingu, a produção de mandioca é feita em roças cultivadas pelas famílias

nucleares, mas que contam com o apoio de todo o grupo doméstico e são coordenadas

por seu líder, o chamado "dono da casa". Os homens preparam a roça e as mulheres

retiram a mandioca do solo. Na aldeia, a mandioca é processada pela mulher, que dela

extrai a poupa e o polvilho, ambos ingredientes fundamentais para o preparo do beiju.

“Entre os outros povos do Parque, os Kaiabi destacam-se por uma agricultura

sofisticada, cultivando diversas espécies de amendoim, macaxeira, cará, batata-doce,

mangarito e banana. Além de produzir outros tipos de beiju, os Kaiabi também fazem

grande variedade de mingaus com produtos da roça e frutas. Os Yudjá, a seu turno, são

conhecidos pela produção do caxiri (mingau de mandioca fermentada), que atualmente

também é consumido pelos Kaiabi, Kisêdje e Trumai. Entre estes quatro povos e os

Ikpeng há um maior consumo de caça, incluindo animais como o porco e a anta, que

não são consumidos pelos alto-xinguanos”2.

O artesanato – feito com materiais nativos, como madeira, embira, fibra de buriti e

algodão – representa ainda uma importante alternativa econômica de comércio para fora

do Xingu. Além das iniciativas familiares, a Associação Terra Indígena do Xingu

(Atix), parceira do ISA, ajuda a definir estratégias para a venda dos produtos e a

preservação das matérias-primas.

Há ainda projetos de alternativas econômicas voltados para o mercado externo. Dois

exemplos são os projetos de apicultura e de produção de óleo de pequi, ambos em

parceria com o ISA. Um dos projetos trata-se da Cooperativa do Mel, em que

participam as aldeias kisêdje, trumai, ikpeng, yudjá e kaiabi. Cada uma produz e colhe o

mel, que é enviado para uma casa "Central do Mel", no posto Diauarum, onde é

embalado e enviado para o município de Canarana, de onde é comercializado para o Rio

de Janeiro e São Paulo. Em média, a produção resulta em duas toneladas de mel por

ano.

Outro projeto trata-se da produção de óleo de pequi, envolvendo as aldeias ikpeng,

trumai, kamaiurá, yawalapiti, kalapalo, wauja, kisêdje, matipu, nahukuá, kuikuro e

mehinako. A venda desse produto ainda é local, mas o objetivo dos indígenas e do ISA

é aumentar a produção, sem perder o caráter artesanal, e vendê-la para a indústria de

cosméticos.

22 Almanaque Socioambiental Parque Indígena do Xingu – 50 anos – Instituto Socioambiental, 2011

Apesar da proximidade geográfica, os indígenas procuram se manter distantes da

economia externa. Canarana e outros municípios da região, como Paranatinga, São Félix

do Araguaia, São José do Xingu, Gaúcha do Norte, Feliz Natal, Querência, União do

Sul, Nova Ubiratã e Marcelândia, todos circundando o Parque do Xingu (e sobre os

quais o PIX incide parcialmente), já foram grandes produtores de gado até a década de

1990. Com a ascensão da sojicultura no Estado, maior produtor do grão do Brasil,

porém, a partir de 1994 a região começou a sofrer uma gradativa mudança do perfil

econômico, e onde antes se estendiam enormes áreas de pasto, o boi foi cedendo à soja.

Conforme o Almanaque Socioambiental Parque Indígena do Xingu – 50 anos,

publicado em 2011 pelo Instituto Socioambiental, na região das cabeceiras do Xingu, o

bioma Amazônia representa 79,69% e o Cerrado 20,31% da bacia, cuja paisagem

dominante é a Floresta de Transição. O tipo de solo, a topografia plana e o regime de

chuvas são atributos muito favoráveis à expansão da soja, o que acelera o processo de

ocupação na região. O perfil de ocupação regional é de concentração fundiária,

predominando médias e grandes propriedades que respondem por aproximadamente

70% da sua extensão. Com o PIX, a região engloba 16 terras indígenas que abrigam 19

etnias, cuja extensão representa 24,09% da área das cabeceiras do Xingu. As unidades

de conservação estaduais são pouco representativas, respondendo por apenas 1,13% do

território. Quarenta e seis assentamentos rurais de reforma agrária, cujas áreas ocupam

3,55% de toda a bacia em Mato Grosso, também precisam ser levados em conta.

De acordo com Nhokomberi Suyá, atual coordenador regional do Xingu, responsável

pelo PIX na Funai, esta mudança trouxe três problemas graves: o aumento dos

desmatamentos, principalmente das matas ciliares, o assoreamento das fontes,

cabeceiras e do próprio curso dos rios que formam o rio Xingu, e a contaminação das

águas e dos peixes com agrotóxicos usados nas lavouras.

Em primeiro lugar, é importante apontar que, dos dez municípios que cercam o PIX, de

acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) oito são

grandes produtores de soja, como mostra a tabela abaixo.

Municípios com soja no entorno do PIX

Nome do município

TIs incidentes no município

Área de soja em ha

Canarana

- PIX

- TI Pequizal do Naruvôtu

- TI Pimentel Barbosa

81.050

Feliz Natal

- PIX 35.850

Gaúcha do Norte

- PIX

- TI Batovi,

- TI Ikpeng

- TI Pequizal do Naruvôtu,

47.000

Nova Ubiratã

- PIX 230.000

Paranatinga

- PIX

- TI Bakairi,

- TI Hu’uhi,

- TI Marechal Rondon

63.000

Querência

- PIX

- TI Wawi 168.000

São Félix do Araguaia

- PIX

- TI Cacique Fontoura

- TI Maraiwatsede

13.730

Grande parte destes municípios tem ou tiveram graves problemas de desmatamento. Na

lista dos 41 municípios com maior índice de desmatamento no primeiro trimestre de

2011, oito – Confresa, Feliz Natal, Gaúcha do Norte, Nova Ubiratã, Marcelândia,

Peixoto de Azevedo, Vila Rica e São Félix do Araguaia – estão na Bacia do Xingu.

Destes, Feliz Natal, Gaúcha do Norte, Nova Ubiratã, Marcelândia e São Félix do

Araguaia cercam o Parque Indígena do Xingu. Se tomarmos os municípios campeões de

desmatamento dos anos passados, temos ainda Paranatinga, que ficou em quarto lugar

na lista dos 20 maiores desmatadores do cerrado entre os anos de 2002 e 2008, e Nova

Ubiratã, que ficou em 8o lugar. Querência, que esteve no topo da lista dos desmatadores

até 2009, foi retirada da relação em 2011 por ter adotado medidas de controle dos

crimes ambientais.

2.1.1) A soja que suja os rios

A aldeia Mirassol, de Nhokomberi Suyá, é uma das mais próximas dos limites do

parque no município de Canarana, e está “localizada a apenas 4 km da soja”, como

explica o servidor da Funai. Segundo ele, já foi o tempo em que havia disputas entre

indígenas e fazendeiros pelo território. Atualmente, a relação é estável, deste ponto de

vista, e inexistente nos demais aspectos. Ou seja, não há trabalhadores indígenas nas

lavouras de soja nem algum tipo de relação econômica, mas a expansão do grão

continua sendo uma ameaça à vida dos habitantes do PIX na medida em que afetam os

rios que correm para dentro do parque e formam o grande rio Xingu.

De acordo com as últimas estimativas do governo, cerca de 33% das 22.525 nascentes

do rio Xingu perderam a cobertura vegetal original. Entre os rios mais importantes na

formação do Xingu, que afluem no interior do PIX e que são a base das atividades de

pesca das populações indígenas do parque, grande parte passa por mais de um dos

municípios com graves problemas de desmatamento e grandes áreas de soja. Deste, é

importante listarmos:

Rio Suiá Miçu - nasce em Canarana e atravessa Querência

Rio Sete de Setembro – Canarana

Rio Coluene – nasce em Paranatinga e atravessa Gaúcha do Norte

Rio Curisevo – nasce em Paranatinga e atravessa Gaúcha do Norte

Rio Arraias – nasce em Feliz Natal e passa por Santa Carmen, União do Sul e

Marcelandia

Rio Von den Steinen – nasce em Sta. Rita do Trivelato, passa por Nova Ubiratã e Feliz

Natal

Rio Ronuro – nasce em Sta. Rita do Trivelato, passa por Nova Ubiratã e Feliz natal

Rio Manitsauá-miçu – nasce em Nova Ubiratã, passa por Vera, Santa Carmen, Claudiae

Marcelandia

Segundo Nhokumbere, os impactos nos rios se dão de diversas formas, a começar pela

crescente pressão do desmatamento sobre as matas ciliares, uma vez que são poucas as

propriedades que respeitam as Áreas de Preservação Permanete (APPs, que, pela

legislação ambiental brasileira, incluem a manutenção de no mínimo 30 a 500 metros de

vegetação nativa nas margens dos rios, a depender da sua largura).3

“Há uma grande diferença entre o tempo em que havia pecuária nessa região, e hoje,

com a soja. Na época do gado, não havia essa necessidade de derrubar qualquer pé de

árvore. Quando a soja chegou, começaram a limpar tudo. Ano após ano, a soja vai

crescendo e a floresta vai diminuindo”, afirma Nhokumbere.

Segundo ele, outra diferença entre as duas atividades se refere ao uso do solo. “No

tempo das pastagens, a grama ainda segurava minimamente o solo. Com a soja, ele é

revolvido anualmente, e a planta não protege a terra. Assim, quando chove forte, tudo é

levado para os rios, que estão cada vez mais assoreados. Nossos rios já mudaram de cor,

estão correndo mais lentamente e isso tem um enorme impacto sobre os peixes”, explica

o líder indígena. Segundo ele, as mudanças químicas, de temperatura, de velocidade e

de nutrientes têm afetado a reprodução e a sobrevivência dos peixes, vitais na dieta das

comunidades do PIX.

O impacto mais nocivo advindo da expansão da soja, no entanto, é a contaminação dos

rios e cursos d’água pelos agrotóxicos, cujo uso na soja tem aumentado anualmente. De

acordo com uma das lideranças mais jovens do PIX, Ianuculá Kaiabi, as aplicações de

veneno por terra já são potencialmente contaminantes, mas quando são utilizados os

aviões para o despejo dos agrotóxicos sobre a lavoura, a ação do vento duplica a

velocidade da contaminação.

De acordo com as lideranças indígenas, ainda não foi feito nenhum levantamento

científico sobre a extensão dos efeitos nocivos da crescente infiltração de agrotóxicos

nos cursos d’água, mas entre os moradores do PIX tem aumentado relatos de alergias,

dores de cabeça, enjôos e até câncer. “Não temos como fazer a relação direta entre as

doenças e o peixe que comemos ou a água que tomamos, saber se estão contaminados

com agrotóxicos, mas sabemos que isso acontece e que está ficando pior”, diz Ianuculá.

3 De acordo com a legislação brasileira, as APPs, ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água deverão ser compostas de: 30 metros para os cursos d'água de menos de 10 metros de largura; 50 metros para os cursos d'água que tenham de 10 a 50 metros de largura; 100 metros para os ursos d'água que tenham de 50 a 200 metros de largura; 200 metros para os cursos d'água que tenham de 200 a 600 metros de largura; 500 metros para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 metros.

2.1.2) ‘Y Ikatu Xingu: a luta contra a corrente

Em 2004, um grupo de organizações não governamentais, como Instituto

Socioambiental (ISA) e Instituto Centro de Vida (ICV), lideranças indígenas, empresas

privadas, organizações de agricultores e representantes do poder público criaram uma

campanha de conscientização contra o desmatamento, e de reflorestamento, das matas

ciliares da Bacia do Xingu. A campanha ‘Y Ikatu Xingu – palavras que significam

“Salve a água boa do Xingu”, na língua kamaiurá – defende que a recuperação da

qualidade da água beneficiará não apenas os indígenas que vivem no PIX, mas toda a

população da bacia do rio Xingu, estimada em 500 mil pessoas.

“A questão da água era um fator que permitia que todos caminhassem juntos na

campanha, indígenas e produtores rurais, porque todos dependem dela para viver”,

explica Rodrigo Junqueira, coordenador do ISA no município de Canarana.

Desmatamento próximo a nascentes no Mato Grosso. Foto: André Villas Boas/ISA Os projetos de recuperação de matas ciliares, que contam com apoio de produtores

locais, foram iniciados em 2006 e já atingem mais de dois mil hectares. É pouco diante

dos 300 mil hectares que precisam ser recuperados, mas os coordenadores da ‘Y Ikatu

Xingu lançaram novas estratégias para acelerar o processo. A primeira delas foi

chamada de Rede de Sementes do Xingu. Através do desenvolvimento de um novo

modelo de recuperação de áreas degradadas através de sementes nativas, e não mais de

mudas, foi possível reduzir o custo de R$ 6 mil para R$ 2 mil por hectare, em média.

A nova técnica ajudou a enfraquecer um dos principais discursos dos fazendeiros da

região – o de que, por mais que quisessem, jamais teriam recursos financeiros para

recolocar a mata de onde ela jamais deveria ter sido retirada. Além disso, permite que

pequenos produtores, menos capitalizados, também possam bancar, ainda que com mais

dificuldade, a recuperação das áreas degradadas em suas fazendas. O ISA avalia que

existam na bacia do Xingu pelo menos quatro mil propriedades rurais, entre pequenos,

médios e grandes produtores, a maioria destinada à soja e à pecuária.

Além de apoiar fazendeiros com a nova técnica, a Rede de Sementes mobiliza 300

coletores, seis comunidades indígenas, como os Ikpeng e os Kĩsédje, e dez

assentamentos rurais de 16 municípios da região. Eles são responsáveis por coletarem

na mata as sementes que mais tarde formarão a vegetação das áreas recuperadas. Com

esse trabalho de coleta, geram renda para si e para suas comunidades, uma vez que se

criou um sistema de venda de sementes para os fazendeiros participantes do projeto.

Um desses fazendeiros é Luiz Carlos Castelo, grande pecuarista e ainda pequeno

produtor de soja no município de São José do Xingu. Sua propriedade, com cerca de 10

mil cabeças de gado, faz fronteira com o PIX e possui 13,5 mil hectares, dos quais 340

entraram em recuperação. Castelo compra sementes da rede e tornou-se um exemplo de

que é possível recuperar as matas do Xingu. "O diálogo com os índios é difícil, muitas

vezes há desacordo quanto ao tipo de sementes e quantidades", admite Castelo. "Mas

com apoio dos coordenadores da campanha as coisas ficam mais fáceis", conclui ele.

Uma outra estratégia para acelerar os resultados da campanha ‘Y Ikatu Xingu é o

engajamento do poder público dos municípios que ficam ao redor do parque. O objetivo

é que Prefeitura, Câmara de Vereadores, organizações de fazendeiros e instituições

ambientalistas locais assinem acordos para difundir a cultura agroflorestal e estipular

metas de recuperação de áreas degradadas. Querência e São José do Xingu, em 2009, e

Santa Cruz do Xingu, em 2010, já firmaram compromisso de recuperar 100% de suas

matas ciliares em uma década. Canarana, ainda que não tenha assinado um documento

específico, já tem uma série de iniciativas e firmou parcerias para fortalecer a

campanha.

Projeto de reflorestamento em Canarana. Foto: Fernanda Bellei/ISA

De acordo com a secretária de Agricultura e Meio Ambiente de Canarana, Eliane

Felten, a Prefeitura possui um viveiro de mudas e é capaz de fornecer 50 mil delas a

cada ano para quem deseje reflorestar trechos desmatados. O produtor voluntário recebe

assistência técnica gratuita, mas tem de arcar com o custo do isolamento da área e da

mão-de-obra necessária para o plantio. Canarana possui 50% de sua cobertura vegetal

preservada, seja no PIX ou em reservas particulares obrigatórias. Segundo a Prefeitura,

o município possui 1,087 milhões de hectares, com 140 mil sob exploração agrícola e

30 mil de matas ciliares a serem recuperados.

2.2) Os índios sojeiros do Mato Grosso

A Terra Indígena em que vivem os paresi é um território de matas, campos e cerrados

no município de Tangará da Serra, região do médio-norte do Mato Grosso. Sua

população está estimada em mil e trezentas pessoas. Tanto os Paresi quanto os

Nambikwara e Irantxe têm uma história antiga de contato com os brancos, mas são os

paresis que mais se adaptaram à cultura não índia. Sua relação com o modelo

civilizatório capitalista data do século XVII, quando parte dos indígenas foi escravizada

pelos bandeirantes.

Ainda no século XIX, segundo a Funai, os Paresi serviram de guias nos seringais e da

Comissão Rondon – o projeto conduzido pelo militar e sertanista Candido Mariano da

Silva Rondon, que, entre o final do século XIX e início do XX, mapeou a Amazônia e

levou as linhas de telégrafo à região. Entre 1950 e 1960, os Paresi tiveram contato com

missões católicas e protestantes.

Mas foi a expansão da fronteira agrícola no Mato Grosso que marcaria seu destino.

Esses índios sofreram com a abertura da rodovia BR-364, que atravessava o território

dos indígenas. Além de perderem parte de suas terras, passaram a ser aliciados para

trabalharem como peões nas fazendas.

Em 1970, essa tendência se acentuou. Agricultores incentivados por programas federais

de expansão agropecuária fixaram-se em definitivo nas terras Paresi, usando o cerrado

para grandes plantios e pastagem, fazendo surgir cidades como Tangará da Serra,

Sapezal, Campo Novo do Pareci e outros, todas em suas áreas.

A criação da Terra Indígena Paresi, na década seguinte, evitou que a comunidade se

dizimasse – restavam apenas 200 pessoas. A política indigenista do governo federal

ajudou a levar saúde e preservar parte das tradições dos paresi, mas não era capaz de

desvincular a comunidade do trabalho na fronteira agrícola mato-grossense. Isso não

ocorreria apenas com os paresi, mas com outras etnias que vivem nos arredores.

Entre 2004 e 2006, três povos indígenas da região sudeste do Mato Grosso, um dos

grandes pólos sojicultores do estado, implementaram um polêmico projeto de

coprodução de soja em parceria com fazendeiros locais. Paresis, Manoki e

Nambikwaras das Terras Indígenas Paresi, Rio Formoso, Utiariti (Paresis), Tirekatinga

(Nambikwara) e Manoki (Irantxe) firmaram 19 contratos de parceria, envolvendo 41

aldeias, para a co-produção de soja em áreas de 50 a 1000 hectares no interior das TIs,

com validade até a safra de 2011/2012.

Os acordos, formalizados com diversos fazendeiros e empresas agropecuárias da região,

prevêem que os indígenas forneçam a terra e a mão-de-obra, e os parceiros

empresariais, insumos (sementes, agrotóxicos, adubos etc), financiamentos e máquinas,

sendo que o resultado da comercialização deve ser dividido igualitariamente entre as

partes.

O processo de parcerias tem sido criticado por instituições indigenistas, lideranças

indígenas e pelo próprio Ministério Público Federal (MPF), que considera os acordos

uma forma velada de arrendamento de terras indígenas. Segundo a Constituição

brasileira, as Terras Indígenas são usufruto exclusivo das populações tradicionais, o que

leva muitos a constataram a presença de sojicultores não-índios nas áreas, ainda que

autorizados pelos indígenas. Além disso, o Estatuto do Índio (de 1973) não permite que

elas sejam arrendadas, proibição reforçada pela Instrução Normativa número 3 de 2006

da Funai.

O fato de que fazendeiros se beneficiam com 50% dos lucros advindos do plantio de

soja em terras indígenas é um dos principais problemas nestas relações, avalia o MPF.

Na mesma direção, o movimento indígena do Mato Grosso considera que os contratos

de parceria representam uma forma de driblar a lei. "Eles são apenas outro nome do

arrendamento. Os tratores são do branco, os lucros também", argumenta o coordenador

da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (Mopic), Hiparidi-Xavante.

Historicamente, o cotidiano da população paresi é moldado pelos ciclos econômicos que

marcaram o sudeste mato-grossense: eles trabalharam na coleta da seringa e da poaia –

erva de cujas raízes se extrai a emetina, usada como princípio ativo em medicamentos –,

como guarda-fios e guias das comissões telegráficas no início do século XX, como

vendedores de artesanato na beira da BR-364 – construída em 1961, cortando o

território paresi de leste a oeste – e, a partir da década de 70, com a expansão da

fronteira agrícola por colonos do sul do país, como mão-de-obra barata na

implementação das fazendas.

A relação próxima com os fazendeiros deu aos paresis um conhecimento dos processos

produtivos e da economia ocidental que acabou reproduzindo uma certa divisão de

classes no interior das comunidades, com poucos que se beneficiam de muito e muitos

que se beneficiam de pouco, avalia André Lopes, indigenista da organização Operação

Amazônia Nativa (Opan). A instituição abandonou os trabalhos com o grupo em 2004,

quando foram firmados os primeiros acordos com os fazendeiros.

De acordo com Lopes, o mesmo não ocorreu com os Irantxe, cuja adoção do modelo

capitalista de produção de soja é uma fonte de renda sim, mas, dentre outros motivos, se

deu como um tipo de defesa contra a discriminação e o preconceito por parte da

sociedade não indígena, cujo discurso "existe muita terra para pouco índio" ou "para

que tanta terra aos índios, se eles não fazem nada com ela?" é recorrente. "Os Irantxe

fizeram, para além de uma opção econômica, uma escolha política quando adotaram a

soja.

O significado desta alternativa passa também por um desejo de contradizer o estigma

local de que são ‘preguiçosos’ e ‘improdutivos’, maneira como são rotulados os

indígenas da região. Eles sabem que é uma contradição com a luta pela terra tradicional,

e que acabaram fazendo uma aliança com o ‘inimigo’. Mas este é um preço que

resolveram pagar", explica o indigenista.

De acordo com a OPAN, os Irantxe disponibilizaram cerca de mil hectares para o

plantio de soja em parceria com uma fazenda vizinha. Uma pequena parte da renda fica

para a associação do povo e o restante é distribuído igualitariamente entre os membros

da comunidade, mecanismo que impede uma certa estratificação social, perceptível

entre os paresis, por exemplo. "Para os paresis, a soja oferece uma perspectiva de

geração de renda e status social. Na minha opinião, as lideranças paresis desejam se

relacionar trocando "de igual para igual" com os fazendeiros da região, e com a

sociedade não indígena em geral.

No contexto rural, caracterizado pelo sistema produtivo da monocultura para

exportação, existem basicamente duas camadas sociais: os fazendeiros e os peões de

fazenda. Nessa perspectiva, os paresis se equiparam à elite local. Por outro lado, os

Irantxe, por trabalharem como mão-de-obra mais braçal nas fazendas vizinhas, acabam

sendo incorporados na relação com a sociedade envolvente como membros das camadas

menos favorecidas da população", avalia Lopes.

Com a chegada da energia elétrica nas aldeias, a renda da soja potencializou o consumo

de bens duráveis, modificando certos padrões de sociabilidade dos Irantxe. Camas,

geladeiras, móveis, eletrodomésticos em geral, motocicletas e outros elementos da

cultura ocidental foram rapidamente absorvidos de acordo com a lógica local. No

entanto, o que causou maior impacto foram as antenas e televisores, que acabaram

interferindo principalmente nas noites das aldeias, desvalorizando os espaços públicos.

Agora, como cada família tem a sua televisão, os encontros e locais comuns perderam

espaço. Sem contar o assédio e na sedução que a mídia traz para o cotidiano das aldeias,

criando novas necessidades.

"Não se pode negar que o dinheiro da soja traz melhorias do ponto de vista indígena,

mas na verdade ele não seria necessário, do ponto de vista material. Toda a infra-

estrutura básica, bem como grande parte da renda dos indígenas, advém de recursos

públicos, como aposentadorias, bolsa família e empregos na área de saúde e educação.

O que passa a ocorrer nas aldeias é uma grande influência que a soja traz com o seu

modelo de produção e consumo. Nessa relação assimétrica de poder com a ‘sociedade

da soja’, como os jovens passam a construir suas perspectivas de futuro, seu ‘projeto de

povo’? Há uma preocupação interna com o efeito que isto poderá trazer para as novas

gerações. A obtenção de renda, se não estiver de acordo com os padrões locais de

divisão social, pode agravar os conflitos internos de uma comunidade ou criar novas

tensões sociais", pondera Lopes.

2.2.1) Caso Paresis

No caso dos Paresi, apesar de algumas críticas internas na comunidade sobre a distorção

na geração e distribuição de renda, a soja tem cumprido um papel importante no

desenvolvimento econômico das três TIs que adotaram o grão. Aceita a contragosto pela

Funai e pelo MPF, a lavoura mecanizada nas terras paresis não pode se expandir além

dos 15.500 hectares já ocupados, divididos em 17 lavouras não contínuas. A localização

de cada lavoura levou em conta preocupações ambientais, como distância adequada de

cursos d´água e das aldeias.

Ainda assim, o desmatamento nessas áreas não foi autorizado pelo Instituto Brasileiro

do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que agora cobra da Funai a

regularização ambiental. A região onde vivem esses três povos indígenas é considerada

um berço de águas: lá nascem os rios Paraguai e Guaporé, além dos principais afluentes

do rio Juruena.

Em 2011, os paresis colheram a sexta safra de soja desde que se iniciaram os contratos

de parceria entre a sua Associação Waymaré e uma empresa da região. São os indígenas

que trabalham na lavoura, inclusive na operação das máquinas, graças à experiência

adquirida como funcionários das fazendas e aos cursos ministrados pelo Serviço

Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). O pagamento dessa mão-de-obra, assim

como o fornecimento de adubo, semente, veneno, combustível e aluguel das máquinas

agrícolas, é bancado pelo parceiro não-indígena.

A receita líquida é dividida de forma igual entre o fazendeiro e a associação indígena,

que até 2010 depositava metade da verba em uma conta no Banco do Brasil e destinava

o restante a aquisições coletivas e à divisão entre as famílias de cada aldeia envolvida

com a respectiva lavoura. Em 2010, a Funai chegou a conclusão de que não havia

justificativa jurídica para a manutenção da conta e recomendou a distribuição total dos

recursos entre os indígenas. As famílias receberam recursos suficientes para comprar

trator, caminhonetes e cabeças de gado.

"Deu para eu construir minha casa", conta uma das moradoras, que possui uma casa de

madeira avarandada – estilo arquitetônico que domina a paisagem da aldeia, ao lado das

malocas de palha usadas para rituais e, em menor escala, como moradia. "As pessoas

falam que deixamos de fazer festas tradicionais. A gente não faz mesmo festa para a

soja, porque não é da nossa cultura. Mas fazemos oferta para o milho, o arroz", afirmou

o coordenador de lavoura da aldeia Bacaval, Arnaldo Zunizakae, mais conhecido como

Branco. "Hoje já não vivemos só da caça e da pesca, e isso tem custo. Para fazer festa

hoje, a gente precisa de dinheiro", argumentou, acrescentando que, graças à lavoura da

soja, os 52 moradores de Bacaval voltaram a plantar milho (mas já de forma

mecanizada, na chamada safrinha, cuja produção também é comercializada).

Para Branco, "cultura que não muda é a que está no museu". "A gente estava passando

fome, só comendo beiju, farinha, carne de caça e pesca. Hoje, no nosso prato tem carne

de boi, café, pão, fruta, uma alimentação mais equilibrada", defende ele, que há menos

de um ano também trabalhava como coordenador de saúde da Associação Indígena

Halitinã – conveniada com a Fundação Nacional de Saúde, a Funasa, para o

atendimento dos 1.584 paresis que vivem em nove terras indígenas no Mato Grosso,

todas elas já demarcadas.

Nos anos 60, segundo dados da Funai, os paresis eram apenas 360 pessoas. A taxa de

crescimento atual desse povo é alta: 7,2% ao ano. Branco foi o primeiro paresi a

trabalhar com agricultura mecanizada dentro do território indígena, ainda em 1997, após

ser funcionário de uma fazenda durante nove anos. "Quando saí de lá, meu ex-patrão me

doou uma plantadeira velha e me emprestou um trator. O combustível, eu conseguia

com a prefeitura de Sapezal", revelou. De início, ele plantou 45 hectares de arroz. Na

safra seguinte, foram 60 hectares. No terceiro ano, em 1999, quando a área da lavoura

mecanizada atingiu 90 hectares, o arroz já dividia espaço com a soja. Em 2000, a soja já

era a cultura principal dos 150 hectares plantados pela família Zunizakae.

Casas novas e bens de consumo vieram com dinheiro da soja – foto Thais Brianezi

Os benefícios da agricultura comercial, porém, não são unanimidade entre os paresis.

As críticas mais contundentes, em geral, vêm dos mais velhos. "Para mim a soja trouxe

divisão. No meu ponto de vista, o povo ficou muito individual, olhando só para o que é

dele", afirmou Carmindo André Orezu, que também mora na TI Utiariti, na aldeia Salto

da Mulher, comunidade responsável por uma área de 500 hectares de lavoura. A mulher

dele, Emília Zolazokero, ainda faz "roça de toco", a agricultura familiar dos paresis,

baseada em tubérculos (especialmente a mandioca).

"Eu tenho cabaça de chicha [bebida tradicional], faço beiju e carne moqueada no centro

da maloca. Quando era pequena, não tinha outra comida e eu não achava falta de nada.

A gente comia isso de manhã, no almoço, à noite e estava satisfeito. Hoje a criança

acorda para ir pra escola e se não tiver leite, bolacha e bolo, não come nada", contou ela.

O sonho dos sojicultores paresis é que, em 2012, a comunidade tenha economizado

dinheiro suficiente para conquistar a independência dos nove fazendeiros com quem

mantêm contratos atualmente. Mas existem pendências ainda não solucionadas, explica

o líder Branco.

Soja trouxe desenvolvimento para os pareci, defende Branco – foto Thais Brianezi

Atualmente, toda a comercialização da soja é feita pelos fazendeiros, porque os paresis

não têm a documentação necessária para vender a produção. Também os financiamentos

são tomados pelos parceiros, já que os indígenas não têm como fornecer garantias aos

bancos. "Quando um banco financia um fazendeiro, geralmente toma a terra dele como

garantia. Como nossa terra pertence à União, não temos como pegar financiamentos, e

por isso o nosso lucro é pequeno", diz Branco. Por outro lado, o fato de que a soja

Paresi vem de terras indígenas com pendências ambientais impede a ampliação de

mercados.

De acordo com Branco, 60% dos desmatamentos ocorridos nas áreas de soja foram

feitos há cerca de 15 anos, sendo que os outros 40% de mata foram derrubados entre

2000 e 2003. "Eu adoraria dizer que estamos exportando nossa produção, mas não é

verdade. O Blairo Maggi [ex-governador do Mato Grosso e dono de uma das maiores

tradings brasileiras de soja, a Amaggi] é meu amigo pessoal e não compra um grão da

nossa soja, porque sabe que pode dar problema. Nossa soja hoje vai para produção de

ração", explica Branco.

O índio empreendedor reconhece, no entanto, que a maioria das comunidades

envolvidas na agricultura mecanizada deve investir em fontes de renda mais familiares à

sua cultura tradicional, como a produção e a venda de artesanato. A Associação

Halitinã, inclusive, usou parte do lucro já disponível da soja como contrapartida para a

criação de peixes em tanques-rede, com apoio da Secretaria Nacional de Aqüicultura e

Pesca. Além disso, desenvolve o projeto Kani – Sustentabilidade e Geração de Renda na

Extração do Pequi, com financiamento do programa Petrobrás Fome Zero. "Estamos

pensando em investir em outras culturas comerciais, como eucalipto, reflorestamento.

Mas com o preço da soja, é ela que continuará sendo a cultura principal", diz Branco.

Segundo Joelson Kinizokemaece, paresi que é coordenador técnico da Funai na região,

nos últimos tempos as benfeitorias proporcionadas pela renda da soja têm feito o apoio

ao grão aumentar. “Minha opinião pessoal é que não haveria como ter acesso a essa

renda de outra maneira”, diz ele.

Kinizokemaece diz que no final de novembro de 2011 haveria uma reunião entre

membros da comunidade para discutir a renovação do contrato com os fazendeiros por

mais cinco anos. Ele diz que parte da comunidade já seria capaz de produzir e

comercializar o produto sem auxílio externo, mas parte ainda não. “O gargalo é a

comercialização”, afirma. A área de produção seria mantida em 15,5 mil hectares.

O coordenador da Funai diz ainda que, por conta das contradições da lei brasileira, os

indígenas não conseguem vender seu produto ao mercado externo, o que o valorizaria.

Dessa maneira, os fazendeiros ainda fazem o papel importante de auxiliar o escoamento

do grão, destinado à fabricação de ração animal.

3) Análise comparada e tendências

A relação das comunidades indígenas brasileiras com a “economia exterior” é bastante

heterogênea e determinada por uma série de fatores, como pôde ser visto anteriormente.

Passa pela antiguidade do contato com o elemento não-índio, que a que tipos de

atividades produtivas os indígenas tiveram contato, a questões subjetivas relacionadas

ao status social do índio, à disponibilidade de ações de políticas públicas e projetos de

organizações não-governamentais.

No Parque Indígena do Xingu, milhares de indígenas mantêm-se à distância da

economia sojeira que os circunda, certamente beneficiados pelo fato de seu território ter

sido o primeiro a ser oficialmente criado na história do país, em 1961. Isso deu a essas

comunidades um grau de proteção não experimentado por outros grupos. No entanto,

mesmo no interior do parque, os indígenas não ficam imunes ao que se passa no

exterior, sendo pressionados pela poluição levada pelos rios para o interior do território.

As ações de organizações não-governamentais tentam dirimir esse drama.

No extremo oposto está a comunidade Paresi. Com uma história centenária de contato

com o elemento não-indígena e a economia do agronegócio, e território com

demarcação mais recente, os paresi aprenderam técnicas modernas de cultivo e

decidiram participar da sociedade mato-grossense buscando status social ao lado dos

fazendeiros não-índios.

O poder público continua atuando na comunidade com políticas públicas, mas respeita

os projetos da comunidade com a soja, apesar de impasses jurídicos. Organizações não-

governamentais, porém, abandonaram projetos com a comunidade, por acreditarem que

eles decidiram abdicar da cultura tradicional paresi para adotar o modelo de vida dos

não-índios, inclusive no que diz respeito à espoliação dos recursos naturais.

No plano macropolítico, o assunto é mais grave. O Mato Grosso, onde vive grande parte

dos indígenas brasileiros, receberá investimentos em infra-estrutura para explorar ainda

mais seu potencial agrícola, com novas hidrovias, portos, asfaltamento de rodovias e

construção de ferrovias. O Congresso brasileiro entrou, em 2011, na fase final de

discussão de um Novo Código Florestal para o país, que, na prática, enfraquecerá a

legislação ambiental para facilitar a expansão agropecuária. O atual código é de 1965.

Desde 1991 – portanto há 20 anos – o Congresso também discute um Novo Estatuto do

Índio para substituir o vigente, de 1973. Não há perspectiva que o projeto avance, por

desinteresse do governo, pressão contrária dos parlamentares que representam o setor

ruralista e falta de organização política das comunidades indígenas. Nesse sentido, a

tendência é que Mato Grosso torne-se cada vez mais um eldorado para o agronegócio,

enquanto projetos que ampliam as salvaguardas das comunidades indígenas dormem

nas gavetas do Congresso.

3.1) Mato Grosso: eixo do agronegócio brasileiro

Se Mato Grosso é um dos principais pólos do agronegócio do país, outras regiões da

Amazônia brasileira, repletas de comunidades indígenas, são responsáveis pela logística

de transporte dos produtos. Os portos mais importantes para as exportações da soja

produzida na região Amazônica são Itacoatiara (AM) e Santarém (PA) – ambos fluviais,

localizados no rio Amazonas –, e Itaqui (MA), que é marítimo. Por essas três origens,

foram embarcados para o exterior 3,65 milhões de toneladas de soja entre janeiro e

setembro de 2010, o equivalente a 13,29% das exportações brasileiras do grão naquele

período. Como se pode detectar na tabela a seguir, a inauguração do porto graneleiro da

Cargill em Santarém, em 2003, foi peça fundamental para elevar a importância da

logística amazônica nas exportações brasileiras de soja.

Principais portos exportadores de soja em grão no Brasil (em milhões de toneladas) 2010

(jan-set)

2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 2002

Santos (SP) 8,20 8,66 7,15 4,52 6,96 7,34 5,62 5,69 5,06 Paranaguá (PR) 4,95 4,81 4,18 4,50 4,09 5,20 5,13 5,73 5,09 Rio Grande (RS) 4,26 4,65 3,35 5,27 3,39 0,48 2,31 3,73 1,79 São Francisco do Sul (SC)

2,96 2,12 2,27 2,41 3,07 2,48 1,13 0,84 0,81

Vitória (ES) 2,14 2,80 2,41 2,48 2,71 2,84 2,20 1,64 1,05 São Luís (MA) 1,69 1,75 1,75 1,44 1,78 1,67 1,16 0,88 0,64 Manaus/Itacoatiara (AM)

1,19 1,50 1,44 1,55 1,58 1,40 0,95 0,79 0,80

Salvador (BA) 1,17 1,11 0,70 0,38 0,04 0,00 0,00 0,00 0,00 Santarém (PA) 0,77 0,93 1,08 0,83 0,95 0,78 0,45 0,28 0,00 Outros 0,13 Total 27,46 28,54 24,49 23,72 24,94 22,42 19,23 19,88 15,96 Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Brasil

Quando se analisa o destino das exportações de soja realizadas por cada porto brasileiro,

percebe-se a importância da infra-estrutura amazônica para os compradores europeus.

Entre janeiro e setembro de 2010, 50,19% da soja embarcada para a Europa teve origem

nos portos de Itaqui, Itacoatiara e Santarém, justamente aqueles que servem à logística

amazônica. Esses três portos foram também responsáveis por 49,50% da soja enviada a

Holanda entre janeiro e setembro de 2010. As duas tabelas a seguir trazem mais

detalhes sobre esse tema.

Portos exportadores de soja em grão do Brasil para União Européia (em milhões de toneladas) 2010 (jan-set) 2009 2008 Santos (SP) 0,850 1,684 1,691 Paranaguá (PR) 0,467 1,428 1,342 Rio Grande (RS) 0,180 0,430 0,655 São Francisco do Sul (SC) 0,191 0,339 0,677 Vitória (ES) 0,388 0,951 0,744 São Luís (MA) 1,106 1,078 0,930 Manaus/ Itacoatiara (AM) 0,684 1,188 1,214 Salvador (BA) 0,432 0,629 0,544 Santarém (PA) 0,777 0,933 1,088 Outros Total 5,114 8,664 8,909 Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Brasil Portos exportadores de soja em grão do Brasil para Holanda (em milhões de toneladas) 2010 (jan-set) 2009 2008 Santos (SP) 0,182 0,557 0,459 Paranaguá (PR) 0,151 0,692 0,507 Rio Grande (RS) 0,042 0,000 0,069 São Francisco do Sul (SC) 0,108 0,081 0,196 Vitória (ES) 0,161 0,236 0,227 São Luís (MA) 0,197 0,255 0,000 Manaus/ Itacoatiara (AM) 0,080 0,130 0,304 Salvador (BA) 0,015 0,000 0,024 Santarém (PA) 0,379 0,412 0,623 Outros Total 1,325 2,366 2,413 Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Brasil

Os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Brasil (MDIC)

permitem ainda conhecer a origem da soja embarcada nos portos. O Pará, por exemplo,

exportou 151 mil toneladas de soja em grãos entre janeiro e setembro de 2010, sendo

71,5 mil a partir do porto de Santarém e 79,9 a partir do porto de São Luís. No mesmo

período, Tocantins exportou 627 toneladas de soja em grão, sendo 605 mil através do

porto de São Luís, 6,9 mil através do porto de Salvador e 14,4 mil através do porto de

Vitória; e Rondônia exportou 348,3 mil toneladas de soja em grão, sendo 223,5 mil

através de Santarém 124,7 através de Manaus/Itacoatiara.

Maior produtor de soja do Brasil, Mato Grosso também utiliza a logística amazônica

para exportar parte de sua produção. Entre janeiro e setembro de 2010, o Estado

exportou 8,402 milhões de toneladas de soja em grão, sendo 5,091 milhões através de

Santos, 1,065 milhão através de Manaus/ Itacoatiara, 830,3 mil através de Vitória, 532,0

através de Paranaguá, 482,7 através de Santarém, 314,6 através de São Francisco do

Sul, e 85,7 mil através de São Luís. Apesar da diversidade de rotas, há grande interesse

do agronegócio da soja mato-grossense em fortalecer as rotas amazônicas, sobretudo

porque ela está baseada em hidrovias e ferrovias, o que pode reduzir custos de frete em

pelo menos 20% na comparação com o modal rodoviário.

De acordo com o estudo “A logística de exportação da soja em grãos de Mato Grosso”,

de Jorge Pasin4, publicado pelo BNDES, até meados da década de noventa, a maior

parte da soja produzida no Mato Grosso e voltada à exportação era embarcada através

dos portos de Santos e Paranaguá. Mas em um cenário de aumento dos preços da soja

no mercado externo e, conseqüentemente, avanço da área plantada no Brasil, foi

necessário buscar rotas alternativas. O modal ferroviário rumo ao Sudeste apresentava

dificuldades em expandir sua capacidade de carga, e havia conflitos entre as

concessionárias sobre a integração das rotas.

Uma das opções foi a rota norte pela BR-163 (rodovia Cuiabá-Santarém). Esse corredor

é hoje explorado por tradings como Cargill, que utilizam a rodovia para acessar o porto

de Santarém (PA). A outra opção foi o corredor hidroviário do rio Madeira. Nesse caso,

os carregamentos seguem pela rodovia BR-364 até Porto Velho (RO). Lá são

embarcados em conjuntos de empurradores e barcas e levados, através do rio Madeira,

até o rio Amazonas, onde ocorre o transbordamento para terminais de armazenamento.

4 Pasin, Jorge A. B. A logística de exportação da soja em grãos de Mato Grosso. Revista do BNDES, v.

14, n. 27, 2007.

A etapa seguinte é o carregamento dos grandes navios graneleiros, que seguem rumo ao

oceano.

Segundo Pasin, a exploração desta via de transporte é feita desde 1997 pela trading

Amaggi, através de sua subsidiária Hermasa, para escoar a soja do noroeste do Mato

Grosso, colhida na região da Chapada dos Parecis, e de Vilhena (RO). A soja segue em

barcas do porto de Porto Velho até Itacoatiara, onde é embarcada em graneleiros. Outras

tradings utilizam os serviços da Hermasa. A Cargill também utiliza a hidrovia do rio

Madeira, mas as barcas levam a soja até o porto de Santarém, onde são levadas aos

graneleiros. Cerca de 95% do total exportado pela Cargill através do porto de Santarém

chega ao terminal pela hidrovia do rio Madeira. Ali, a empresa conta com um silo de 60

mil toneladas de soja, e planeja instalar uma nova estrutura capaz de levar a capacidade

total para 90 mil toneladas.

Em outro estudo do BNDES, “Logística para os agronegócios brasileiros, o que é

realmente necessário”5, publicado no ano 2000, discutem-se quais medidas seriam

necessárias para facilitar o escoamento da soja brasileira rumo ao exterior, inclusive

através da região amazônica. Quatro projetos são considerados importantes:

1) Ampliação do corredor Ferronorte, da América Latina Logística (ALL). A ferrovia já

escoa parte da produção do Mato Grosso através do porto de Santos. O projeto é

estender os trilhos até Cuiabá, Porto Velho, Uberlândia e Santarém;

2) Melhorias na rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163) para facilitar o escoamento através

do porto de Santarém;

3) Implantação da hidrovia Araguaia-Tocantins, embargada por questões ambientais. A

soja seguiria pelo rio Araguaia até Xambioá, e dali de rodovia até Estreito (MA). Desse

município partiria pelas ferrovias Norte-Sul e Carajás até o porto de Itaqui (MA). Mas a

competição desse modal com o setor de minérios pode dificultar a exploração por

empresas de soja;

5 Lima, E. T.; Faveret, P.; Paula, S. R. L. “Logística para os agronegócios brasileiros, o que é realmente

necessário”. BNDES Setorial, n. 12, 2000

4) Construção da hidrovia Teles Pires-Tapajós. A soja produzida no norte do Mato

Grosso seguiria por rodovia até a fronteira com o Pará, e dali pelos rios Teles Pires e

Tapajós até Santarém.

Boa parte destes projetos está contemplado no Plano Nacional de Logística e

Transportes (PNLT), divulgado pelos ministérios dos Transportes e da Defesa do Brasil

em novembro de 2009. O PNLT tem a pretensão se ser a referência para as políticas

públicas naquelas áreas a médio e longo prazo (de 2008 a 2023), orientando

investimentos em infra-estrutura e projetos da iniciativa privada. O plano divide o Brasil

em vetores logísticos, sendo que dois deles – Amazônico e Centro-Norte – tem

diretamente relação com a região amazônica, como se pode ver na imagem a seguir.

Vetores logísticos de organização espacial brasileira (PNLT, 2009)

Entre as obras previstas no PNLT que podem beneficiar o escoamento da soja, algumas

que se destacam no vetor amazônico são:

1) A construção da rodovia transoceânica, ligando o Atlântico ao Pacífico e com

investimentos previstos de R$ 10,2 bilhões até 2023, dos quais R$ 1,02 bilhão seria

aplicado até 2011. A ferrovia teria 5.570 quilômetros quando finalizada, sendo 55%

contida no vetor amazônico, passa pelo litoral norte do Rio de Janeiro, Muriaé (MG),

Ipatinga (MG), Paracatu (MG), Brasília (DF), Uruaçu (GO), Cocalinho (MT), Ribeirão

Cascalheira (MT), Lucas do Rio Verde (MT), Vilhena (RO), Porto Velho (RO), Rio

Branco (AC), Cruzeiro do Sul (AC) e chegaria à fronteira do Brasil com o Peru.

2) Em termos de hidrovias, está previsto o investimento de R$ 4,9 bilhões até 2023,

para implantar e melhorar a navegação nos rios Acre (AC), Guamá-Capim (PA), Içá

(AM), Juruá (AC), Madeira (RO), Negro (AM), Solimões (AM) e Teles Pires (MT).

3) Na área dos portos, os investimentos programados são de R$ 1,01 bilhão até 2023,

para obras de ampliação e modernização dos portos de Manaus (AM), Santarém (PA),

Porto Velho (RO) e Cachoeira Rasteira (MT).

4) Na área de rodovias que servem de rota para a soja, a BR-163 deve receber

investimentos de quase R$ 2 bilhões, e a BR-242, no Mato Grosso, de pelo menos R$

460 milhões. Os investimentos totais em rodovias no vetor amazônico são estimados em

R$ 28,39 bilhões até 2023.

Já no vetor centro-norte, algumas das obras de destaque para o agronegócio da soja que

guardam relação com a Amazônia são:

1) Ferrovia Norte-Sul, com investimentos previstos de R$ 3,74 bilhões e 2.462 km.

Passa por Belém (PA), Açailândia (MA), Porto Franco (MA), Estreito (MA), Araguaína

(TO), Colinas do Tocantins (TO), Guaraí (TO), Porto Nacional (TO), Alvorada (TO),

Porangatú (TO), Uruaçú (TO), Ouro Verde de Goiás (GO), Anápolis (GO), Rio Verde

(GO), Aparecida do Taboado (MS), Santa Fé do Sul (SP) e Panorama (SP).

2) Quanto a hidrovias, estão previstos investimentos de R$ 4,68 bilhões até 2023, com

obras nos rios Araguaia e Tocantins.

3) Na áreas de infra-estrutura portuária, devem receber investimentos os portos de

Santana (AP), com cerca de R$ 460 milhões, inclusive para a implantação de terminal

graneleiro, e o porto de Itaqui (MA), que será modernizado e ampliado com

investimentos estimados de quase R$ 2 bilhões.

4) Em termos de rodovias, os destaques são os investimentos de R$ 400 milhões na BR-

158, peça fundamental para escoamento da soja na região de Ribeirão Cascalheira

(MT), e na pavimentação da rodovia BR-080, que liga a BR-158 a BR-163, cujos

investimentos previstos são de R$ 465 milhões.

Os mapas a seguir, divulgados no Plano Nacional de Logística e Transportes, indicam o

potencial desses novos corredores logísticos.

Os investimentos em infra-estrutura promovidos entre 2010/2011na Amazônia

brasileira reforçam os principais corredores de exportação existentes na região, trazendo

perspectivas para um crescimento de fôlego nas vendas da soja local para outros países.

Ao mesmo tempo em que irão melhorar as condições de transporte e a integração dos

municípios e Estados da região, os investimentos trazem o risco de novos impactos na

Amazônia, ou de ampliação dos já existentes – exigindo, assim, um acompanhamento

de como as obras serão realizadas e das conseqüências que cada uma delas irá gerar.

As exportações por meio do porto de São Luís (MA) ganharão importante reforço com a

expansão da Ferrovia-Norte Sul, cujos 1.574 km entre Açailândia (MA) e Anápolis

(GO), receberam R$ 1,89 bilhão em 2010. Os recursos destinam-se especialmente ao

trecho entre Palmas (TO) e Anápolis, e dizem respeito aos investimentos realizados até

meados de novembro. Os dados são da Valec, estatal do governo federal ligada ao

Ministério dos Transportes e que coordena as obras de construção da ferrovia.

Em Acailândia, a Norte-Sul vai se interligar à Estrada de Ferro Carajás, operada pela

Vale, uma das maiores mineradoras do mundo, em região que já enfrenta importantes

impactos decorrentes das atividades de mineração no Pará. E em Anápolis a Norte-Sul

se interligará à Ferrovia Centro Atlântica, reforçando a produção de grãos em Goiás.

Posteriormente, a Norte-Sul deve ser prolongada até Belém (PA) e, ao Sul, até Porto

Murtinho (MS).

Correndo paralelamente à Ferrovia Norte-Sul, um pouco mais ao Oeste, a Hidrovia

Tocantins-Araguaia foi contemplada com investimentos de R$ 33,6 milhões em 2010,

segundo informações do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de

Transportes), órgão do governo federal. O valor deve ser ampliado em quase oito vezes

em 2011, quando os melhoramentos no canal de navegação da hidrovia no Pará devem

receber R$ 253,6 milhões. A obra é vista com preocupação quanto aos impactos que irá

gerar sobre as bacias dos rios Araguaia e Tocantins. A primeira ainda está

razoavelmente preservada, e a segunda já bastante impactada pela implementação de

diversas hidrelétricas ao longo de seu curso.

As perspectivas de crescimento da soja na região próxima aos rios Tocantins e Araguaia

são geradas, ainda, pelos recursos destinados à pavimentação da rodovia BR-158. No

trecho mato-grossense que vai de Ribeirão Cascalheira à divisa com o Pará, passando

por Porto Alegre do Norte, a BR-158 foi contemplada com investimentos de 120 R$

milhões em 2010. Do total previsto no Orçamento do governo federal, R$ 110 milhões

haviam sido empenhados até meados de novembro, e R$ 15,2 milhões liquidados, de

acordo com o DNIT.

Apesar de os municípios citados ainda não serem grandes produtores de soja, a região

conta com um forte pólo do grão, o município de Querência, um dos campeões do

desmatamento no Mato Grosso. O avanço da soja na área, caso não conte com intensa

fiscalização dos órgãos competentes e da sociedade civil, pode ampliar os impactos

sobre as nascentes do rio Xingu. E a Terra Indígena Maraiwatsede, que já se encontra

em boa parte ocupada por sojeiros e criadores de gado, pode enfrentar pressões que

levem até a inviabilizar a vida do povo Xavante em seu território.

Outra obra de grande destaque na Amazônia é a rodovia BR-163, uma das prioridades

do governo federal na região e que representa uma canal fundamental de comunicação

entre o Mato Grosso e o Pará. O trecho da BR-163 entre Cuiabá (MT) a Santarém (PA),

é também uma via crucial no escoamento da soja mato-grossense, desembocando no

porto de Santarém, para onde segue rumo à Europa e outras regiões do globo. Em 2010,

o governo federal previu investir cerca de R$ 530 milhões nos trechos da BR-163 no

Mato Grosso e Pará. Até meados de novembro, segundo o DNIT, cerca de R$ 408,6

milhões haviam sido empenhados, e R$ 114 milhões liquidados.

Em sua travessia, a rodovia é promessa de mudanças importantes e crescentes no Norte

do Mato Grosso e Oeste do Pará. Uma região que apresenta, ao mesmo tempo, áreas

lindas e intocadas, ao lado de outras em que a destruição da floresta amazônica é brutal.

Em Santarém, o Porto da Cargill é o principal local de recebimento e embarque da soja

que chega pela BR-163, e enfrenta ações na Justiça que questionam os estudos de

impactos ambientais elaborados sobre o porto.

O governo federal ainda pretende destinar cerca de R$ 5 milhões em 2011 para os

estudos e projetos relativos à Hidrovia Teles Pires-Tapajós. Junto à hidrovia, o governo

pretende implementar uma série de hidrelétricas nesta região. Após a construção da

usina de Belo Monte, no rio Xingu, em Altamira (PA), as bacias do Teles Pires (MT) e

Tapajós (PA) devem ser o principal alvo dos investimentos e respectivos impactos da

geração de energia nos rios da Amazônia.

A integração gerada pelos investimentos ora elencados será percebida não somente em

relação às regiões citadas e ao comércio para outros continentes, mas deve ser

fortalecida também no continente Sul-Americano. Neste sentido, salta à vista o projeto

da Ferrovia Transcontinental, prevista para ir do litoral do Rio de Janeiro à divisa do

Brasil com o Peru, no Acre, num percurso total de mais de 4,4 mil km.

A Ferrovia Transcontinental (EF-354) deve ter seu primeiro trecho entre a Ferrovia

Norte-Sul, no município de Campinorte (Goiás), e Lucas do Rio Verde, no Mato

Grosso. Para a construção desse primeiro trecho, de 1.040 km, a Valec, responsável pela

administração da ferrovia, prevê investir R$ 4,1 bilhões de 2011 a 2014. O segundo

trecho previsto da ferrovia irá de Lucas do Rio Verde até Vilhena (598 km), no Cone-

Sul de Rondônia. Os investimentos previstos para o segundo trecho são de 2,3 bilhões.

Nesse trecho, a Transcontinental receberá o nome de Ferrovia de Integração do Centro-

Oeste (FICO), e a expectativa do governo federal é de que potencialize a produção de

grãos, açúcar, álcool e carne. Existe a perspectiva de que ela também reduza custos no

transporte de cargas, amplie o acesso a portos e atraia investimentos, gerando empregos,

renda e melhoria da qualidade de vida em Rondônia, Mato Grosso, Pará e Amazonas.

Lucas do Rio Verde, importante centro de produção de soja no Mato Grosso, conta com

áreas de vegetação típicas do Cerrado, assim como do bioma Amazônica e de transição

entre os dois. E apresenta sensíveis problemas de destruição da floresta nativa. A

construção da EF-354 entre Lucas e Vilhena, pólo sojeiro de Rondônia, deve certamente

potencializar a produção de soja local e a integração em suas várias facetas entre

importantes regiões dos dois Estados. Os impactos ambientais e fundiários já

verificados, por exemplo no entorno de Vilhena (ver capítulo Impactos Socioambientais

da soja em Rondônia), tendem também a se acentuar.

A ampliação dos canais de comunicação entre Mato Grosso, Rondônia e Acre e do

Noroeste brasileiro com os países vizinhos receberá importantes investimentos também

na rodovia BR-364. A principal rota entre as capitais Cuiabá (MT), Porto Velho (RO) e

Rio Branco (AC) tem na BR-364 uma de suas vias mais importantes. Em 2010, o

orçamento federal previu uma dotação de quase R$ 800 milhões na rodovia nesses três

Estados. Desse total, o DNIT destaca que R$ 675,3 milhões haviam sido empenhados e

R$ 444 milhões liquidados até meados de novembro.

Em seu trajeto, a rodovia atravessa a Chapada dos Parecis, região do Mato Grosso com

solos, topografia e clima muito propícios ao plantio da soja. O cenário é tão favorável à

produção do grão que diversos povos indígenas locais estão se envolvendo com a

atividade, a olhos preocupados e atentos da Funai, MPF e organizações indigenistas.

Por fim, a Hidrovia do rio Madeira é outro foco importante dos projetos de infra-

estrutura na Amazônia que possuem diálogo direto com a produção da soja na região.

Em 2011, o governo federal pretende investir R$ 14,3 milhões na hidrovia. O

empreendimento deve trazer avanços relevantes em termos da integração do Brasil com

Bolívia, Peru, Venezuela e posteriormente Oceano Pacífico, ao mesmo tempo que

favorecerá de forma substancial o escoamento de grãos ao longo dos rios da Amazônia

em direção ao Oceano Atlântico, EUA e Europa.

A viabilização da hidrovia guarda direta relação com a construção das grandes

hidrelétricas do Madeira em Rondônia – Santo Antônio e Jirau. As obras de ambas

avançam em ritmo frenético, gerando impactos preocupantes no ordenamento da capital

Porto Velho e municípios vizinhos. Além do crescimento desordenado, as duas

barragens tem promovido a expulsão das populações ribeirinhas de suas áreas

tradicionais (em certos casos inclusive sem indenização correta) e ameaçam vários

povos indígenas isolados, entre outros importantes impactos sociais e ambientais. E as

obras das usinas foram palco até de ocorrência de trabalho escravo, conforme

denunciado em reportagens da Agência Repórter Brasil de Notícias.

O DNIT, em seu informe 18 (setembro de 2010) publicou a matéria “Brasil e Holanda

firmam parceria técnica para incremento do transporte hidroviário”. A matéria explica o

estabelecimento do Acordo de Cooperação entre a República Federativa do Brasil e o

Governo dos Países Baixos, destacando que o “Intercâmbio entre técnicos visa integrar

experiência holandesa ao potencial hídrico brasileiro”. Mais uma demonstração de que

os governos do Brasil e Holanda no momento apresentam interesses convergentes não

somente na ampliação do transporte de carga pelos rios brasileiros, mas também na

produção e exportação da soja e do biodiesel dela produzido.

A cooperação entre os Ministérios dos Transportes brasileiro e holandês teve início no

Seminário Internacional Brasil-Holanda sobre Hidrovias, realizado em março de 2009

em Brasília. Na ocasião, autoridades holandesas e brasileiras ligadas ao setor de

transportes, sobretudo à navegação interior, bem como representantes da iniciativa

privada dos dois países discutiram temas como regulamentação e sistema legal para o

uso de hidrovias, monitoramento, controle e implantação de terminais hidroviários,

estabilidade dos canais de navegação, entre outros.

3.2) O Novo Estatuto do Índio

O Novo Estatuto do Índio, há 20 anos em tramitação no Congresso, traz elementos

positivos como estabelecer o fim da tutela. Atualmente, como explica Márzio Ricardo

Gonçalves de Moura, no caso de haver índios e comunidades indígenas ainda não

integrados ou em integração à comunhão nacional, a lei requer que estes fiquem sujeitos

a regime tutelar. Para aqueles considerados integrados e portanto emancipados, a

capacidade civil é plena e será regida completamente pelas disposições do Código Civil.

A titularidade da tutela é da União, que a exercerá por intermédio da Funai6.

Márcio Santilli, ex-presidente da Funai, defende que o fim da tutela é um divisor de

águas na história dos direitos indígenas. Segundo ele, o fim da tutela não significa o fim

da assistência nas áreas de saúde e educação, nem um nivelamento de direitos e deveres

em relação ao restante da sociedade. No novo Estatuto, afirma, os índios serão

respeitados em seus costumes e valores, porém passam a ser considerados plenamente

responsáveis por seus atos e capazes de gerir suas terras e seus próprios recursos. Diz o

atual estatuto:

“CAPÍTULO I I

Da Assistência ou Tutela

Art.7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não itegrados à comunhão nacional

ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido nesta Lei.

§1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e

as normas da tutela do direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da

especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução

real ou fidejussória.

6 UMA ANÁLISE ATUAL DA SITUAÇÃO DA CAPACIDADE CIVIL E DA CULPABILIDADE PENAL DOS SILVÍCOLAS BRASILEIROS, de Márzio Ricardo Gonçalves de Moura , 2009 https://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:cOjtpdxzFIMJ:www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewFile/1166/1261+estatuto+do+indio+tutela&hl=pt-BR&gl=br&pid=bl&srcid=ADGEESjM1of1GbPqI1lssnVzKQwJB3Qt94GulwNrz7210DTJ5GmOPYi09Al4se5sCNRdFZLMrZpfefpIgDjKstI7FFuwntPLqwYvCsAveEtqNSBLlSeAAgBHk5zAtjS25gzqeTTO_kJB&sig=AHIEtbQuxIhfx4HiMH7T2Hl_f8pdrRkZ5Q

§2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de

assistência aos silvícolas.”

Para Santilli, o princípio da tutela é o de que os índios são incapazes até que eles

deixem de ser índios. Por trás da idéia da tutela viria a noção de provisoriedade da

condição indígena e dos direitos dos índios, que os índios vão deixar de ser índios e

então eles serão capazes.

Ele afirma ainda que o projeto avança nos direitos econômicos dos indígenas. Isso se dá

quando o novo estatuto define três níveis de conceito: "índio", que é a pessoa indígena,

"comunidade", que entra como sinônimo de aldeia, e "sociedade", ou "povos", que é o

conjunto de comunidades. Para ele, é importante trabalhar com estes três níveis para

estabelecer adequadamente a articularidade de direitos.

“No caso de algum tipo de atividade econômica, de exploração de recursos naturais, tem

direito a comunidade que habita aquele determinado território. Não é qualquer

comunidade indistintamente nem um povo como um todo. Então a expressão

"comunidade" como sinônimo de aldeia é aplicada para estabelecer a titularidade dos

direitos econômicos, afirmou.7

O trecho do projeto de lei do novo estatuto deixa isso claro:

“CAPÍTULO I

Do patrimônio indígena

Art. 16. Integram o patrimônio indígena:

I os direitos originários sobre terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a posse

permanente dessas terras e das reservadas;

7 http://www.socioambiental.org/website/parabolicas59/artigos/marcio4.htm

II o usufruto exclusivo de todas as riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos

existentes nas terras indígenas, incluídos os acessórios e os acrescidos e o exercício de

caça, pesca, coleta, garimpagem, faiscação e cata;

III os bens móveis e imóveis das comunidades indígenas, que vierem a adquirir na

forma da legislação civil;

IV o direito autoral e sobre obras artísticas de criação das próprias comunidades

indígenas, incluídos os direitos de imagem;

V os direitos sobre as tecnologias, obras científicas e inventos de criação das

comunidades indígenas;

VI os bens imateriais concernentes às diversas formas de manifestação sócio-cultural

das comunidades indígenas;

VII outros bens e direitos que sejam atribuídos às comunidades indígenas.

Art. 17. São titulares do patrimônio indígena:

I a população indígena do País, no tocante aos bens pertencentes ou destinados aos

índios e que não se caracterizem como sendo de comunidades indígenas determinadas;

II a comunidade indígena determinada, no tocante aos bens localizados na terra

indígena que ocupe, ou àqueles caracterizados como a ela pertencentes.

Parágrafo único. Os bens adquiridos com recursos oriundos da exploração do

patrimônio indígena pertencem à comunidade indígena titular do patrimônio

explorado, independentemente de estarem registrados em nome de um ou mais de seus

membros ou representantes.

Art. 18. Cabe à comunidade titular do patrimônio indígena a administração dos bens

que o constituem.

Parágrafo único. O órgão federal indigenista administrará os bens de que trata o

inciso I do art. 16, e manterá o seu arrolamento permanentemente atualizado,

procedendo à fiscalização rigorosa da sua gestão.

Art. 19. Cabe ao órgão federal indigenista habilitar e oferecer meios para que a

comunidade indígena exerça a administração do seu patrimônio.”

A lei atual sequer garante como patrimônio do indígena sua moradia. Diz o atual

estatuto:

“Art.41° Não integram o Patrimônio Indígena:

I - as terras de exclusiva posse ou domínio do índio ou silvícola, individualmente

considerandos, e o usufruto das respectivas riquezas naturais e utilidades;

II - a habitação, os moveis e utensílios domestico, os objetos de uso pessoal, os

instrumentos de trabalho e os produtos da lavoura, caça, pesca e coleta ou do trabalho

em geral dos silvícolas.”

Em encontro realizado em abril de 2011, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

(APIB) criticou o mandato do presidente Lula e alegou que ele não atendeu a contento

as demandas e perspectivas do movimento indígena, permitindo que as políticas

voltadas ao setor continuem precárias ou nulas, ameaçando a continuidade física e

cultural das comunidades.

Em nota oficial, o grupo pediu que o presidente da Câmara dos Deputados incluísse na

ordem do dia o projeto de lei 2057/91, do Novo Estatuto do Índio, e criasse a Comissão

Especial para analisar a proposta. Defendeu ainda que os indígenas necessitam de

ampliar sua influência e autonomia política. Para isso, seria necessário aprovar o projeto

de lei 3.571/2008, que cria o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI),

instância deliberativa, normativa e articuladora de todas as políticas e ações atualmente

dispersas nos distintos órgãos de governo.

A Apib pediu ainda que a atual presidenta brasileira, Dilma Rouseff, agilize a assinatura

do decreto de criação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras

Indígena, e a sua devida implementação, para assegurar as condições de

sustentabilidade das comunidades e a proteção dos territórios indígenas. Outra

reivindicação é a de que o governo assegure a participação dos nossos povos e

organizações no processo de elaboração do Plano Plurianual 2011-2014, que organiza

os investimentos em infra-estrutura em todo o país, e que garanta a participação das

organizações e lideranças indígenas no processo de discussão dos ajustes ao decreto da

reestruturação da Funai, na formulação de seu regimento interno, na composição e

localização das coordenações regionais e coordenações técnicas locais e em todo o

processo de implementação e controle social deste processo.

Por fim, conclama a presidente Dilma a garantir a aplicabilidade da Convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Constituição Federal, respeitando o

direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada, sobre os distintos

assuntos que os afetam, tal como a implantação de grandes empreendimentos em suas

terras (exemplo: hidrelétrica de Belo Monte, Hidrelétricas do Santo Antônio e Jirau,

transposição do Rio São Francisco, Pequenas Centrais Hidrelétricas-PCHs, possíveis

usinas nucleares, portos e estradas).

Expediente

Repórter Brasil

Organização de Comunicação e Projetos Sociais

Coordenação geral

Leonardo Sakamoto

Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis

Marcel Gomes (coordenação)

Verena Glass

Antonio Biondi

Colaboração

Thais Brianezi

Suporte administrativo

Fabiana Garcia

Mapas

ICV e ISA

Agradecimentos

- Conselho Indigenista Missionário (CIMI) MT

- Instituto Centro de Vida (ICV)

- Instituto Sociambiental (ISA)

- OPAN

- Funai

- Ministério Público Federal