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    APONTAMENTOS DE PSICOLOGIA III

    O presente escrito um resumo, realizado pelos assistentes, das explicaes que Silo deu em Palmas deCanrias no princpio de Agosto de 1978, realizado pelos assistentes.

    1. CATARSES, TRANSFERNCIAS E AUTOTRANSFERNCIAS. A AO NO MUNDOCOMO FORMA TRANSFERENCIAL

    Devemos considerar dois circuitos de impulsos que terminam por dar registro interno. Um circuitocorresponde percepo, representao, nova dose de representao e sensao interna. E outro circuitonos mostra que, de toda ao que lano no mundo, tenho tambm sensao interna. Essa dose deretroalimentao, a que nos permite aprender fazendo as coisas. Se no houvesse em mim uma dose deretroalimentao dos movimentos que estou fazendo, jamais poderia aperfeio-los. Eu aprendo a escreverno meu teclado por repetio. Quer dizer, vou gravando atos entre acertos e erros. Mas, s posso gravar osatos se os realizar.

    Desde o meu fazer, tenho registro. Existe um preconceito grande, que s vezes tem invadido o campoda pedagogia, e o preconceito segundo o qual as coisas se aprendem simplesmente por pens-las. Semdvida, algo se aprende, porque tambm do pensar se tem a recepo do dado. Apesar disso, a mecnicados centros nos diz que estes se mobilizam quando chegam imagens at eles, e a mobilizao dos centros uma sobrecarga que dispara sua atividade no mundo. Deste disparo de atividade h uma dose deretroalimentao que vai memria e, por outro lado, vai conscincia. Esta dose de retroalimentao aque nos permite dizer, por exemplo, errei a tecla. Assim vou registrando a sensao do acerto e do erro,assim vou aperfeioando o registro de acerto, e a vai se uidicando e automatizando a correta ao deescrever mquina, por exemplo. Estamos falando de um segundo circuito que me entrega o registro dao que produzo.

    Em outra ocasio1

    vimos as diferenas existentes entre os atos chamados catrticos e os atostransferenciais. Os primeiros se referiam, basicamente, s descargas de tenses. Os segundos permitiamtransladar cargas internas integrar contedos e ampliar as possibilidades de desenvolvimento da energiapsquica. sabido que ali, onde existem ilhas de contedos mentais, de contedos que no se comunicamentre si, ocorrem diculdades para a conscincia. Se, por exemplo, se pensa numa direo, se sente emoutra e nalmente se atua em outra, ocorrem diculdades para a conscincia. Se, por exemplo, se pensanuma direo, se sente em outra e nalmente se atua em outra, ocorre um registro de desencaixe, umregistro que no pleno. Parece que, unicamente, quando temos pontes entre os contedos internos, ofuncionamento psquico se integra e podemos avanar uns passos mais.

    Conhecemos os trabalhos transferenciais entre as tcnicas de Operativa. Mobilizando determinadasimagens e fazendo percorridos com ditas imagens, at o ponto de vista da resistncia, podemos vencerestas ltimas. Ao vencer essas resistncias provocamos distenses e transferimos as cargas a novoscontedos. Essas cargas transferidas (trabalhadas em elaboraes ps-transferenciais), permitem a umsujeito integrar algumas regies de sua paisagem interna, de seu mundo interno. Conhecemos essastcnicas transferenciais e outras como as autotransferenciais, nas quais no se requer a ao de um guiaexterno, seno que, internamente, guia-se a si mesmo, com determinadas imagens anteriormentecodicadas.

    Sabemos que a ao, e no somente o trabalho das imagens que viemos mencionando, pode operarfenmenos transferenciais e fenmenos autotransferenciais. No ser o mesmo um tipo e outro de ao.Haver aes que permitem integrar contedos internos e haver aes tremendamente desintegradoras.Determinadas aes produzem tal carga de pesar, tal arrependimento e diviso interna, tal profundo

    desassossego que jamais se quereria repeti-las. E, no obstante, tais aes j caram fortemente aderidas aopassado. Ainda que no se volte, no futuro, a repetir tal ao, ela seguir pressionando desde o passado, sem

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    resolver-se, sem permitir que a conscincia translade, transra, integre seus contedos e permita ao sujeitoessa sensao de crescimento interno to estimulante e liberadora.

    Est claro que no indiferente a ao que se realiza no mundo. Existem aes das quais se temregistro de unidade e aes que do registro de desintegrao. Se estudarmos isso da ao no mundo, luzdo que sabemos sobre os procedimentos catrticos e transferenciais, car muito mais claro o tema da

    integrao e do desenvolvimento dos contedos da conscincia. J voltaremos sobe isto, depois de dar umaolhada geral sobre a nossa Psicologia.

    2. ESQUEMA DO TRABALHO INTEGRADO DO PSIQUISMO

    Ns apresentamos o psiquismo humano como uma espcie de circuito integrado de aparelhos e de impulsos, ondealguns aparelhos, chamados sentidos externos, so os receptores dos impulsos do mundo externo.Tambm existem aparelhos que recebem impulsos do mundo interno, do intracorpo, aos quais chamamossentidos internos. Estes sentidos internos, muito numerosos, so, para ns, de grande importncia edevemos destacar que tm sido muito descuidados pela Psicologia ingnua. Tambm observamos queexistem outros aparelhos, como os da memria, que tomam todo sinal que chega desde o exterior ou desde

    o interior do sujeito. Existem outros aparelhos que so os que regulam os nveis de conscincia e, porltimo, os aparelhos de resposta. Todos esses aparelhos, em seu trabalho, vo utilizando a direo, s vezes,de um sistema central ao que chamamos conscincia. A conscincia relaciona e coordena ofuncionamento dos aparelhos mas, pode faz-lo, graas a um sistema de impulsos. Os impulsos vm e vode um aparelho para outro. Impulsos que percorrem o circuito a enormes velocidades, impulsos que setraduzem, se deformam, se transformam, e em cada caso vo dando lugar a produes altamentediferenciadas de fenmenos de conscincia.

    Os sentidos, que esto, continuamente, tomando amostras do que acontece no meio externo e interno, esto

    sempre em atividade. No h sentido que esteja quieto. Ainda quando uma pessoa dorme e tem asplpebras fechadas, o olho est tomando amostras desse telo escuro; o ouvido est recebendo impulsos do

    mundo externo e assim acontece com os clssicos e escolares cinco sentidos. Mas, tambm, os sentidosinternos, esto tomando amostras do que vai acontecendo no intracorpo. Sentidos que tomam dados doPh do sangue, da alcalinidade, da salinidade, da acidez; sentidos que tomam dados da presso arterial, quetomam dados do acar no sangue, que tomam dados da temperatura. Os termoceptores, baroceptores eoutros, continuamente, esto recebendo informao do que acontece no interior do corpo, enquanto que,simultaneamente, os sentidos externos tambm tomam informao do que acontece no exterior do corpo.

    Todo sinal que vo recebendo os introceptores passa memria e chega conscincia. Melhor dizendo, estessinais do intracorpo se desdobram e, tudo o que vao tomando de amostra, vai chegando, simultaneamente, memria e conscincia (aos distintos nveis de conscincia que se regulam pela qualidade e intensidadedestes impulsos). Existem impulsos muito dbeis, subliminares, no limite da percepo. Por outro lado,

    existem impulsos que se fazem intolerveis porque, precisamente, chegam ao limiar de tolerncia, por cimado qual, aqueles impulsos perdem a qualidade de simples percepes de um dado sentido, paraconverterem-se numa percepo homognea, venha do sentido que venha, entregando uma percepodolorosa. Existem outros impulsos que deveriam chegar memria, conscincia e, apesar disso, nochegam porque houve um corte num sentido interno ou externo. Tambm acontece que outros impulsosno cheguem conscincia, no porque exista um corte no receptor, seno porque algum fenmeno,desafortunado, produziu um bloqueio em algum ponto do circuito. Podemos ilustrar com alguns casos decegueira, conhecidos como somatizaes. Examina-se o olho, se examina o nervo ptico, se examina alocalizao occipital, etc. Tudo funciona bem no circuito e, sem embargo, o sujeito est cego, e est cegono a partir de um problema orgnico seno que de um problema psquico. Outro sujeito ca mudo, ousurdo, sem embargo, tudo funciona bem no circuito no qual faz as suas conexes e localizaes... mas algo

    bloqueou o percorrido dos impulsos. O mesmo acontece com os impulsos que provm do intracorpo e istono to reconhecido, mas de suma importncia porque, acontece que existem numerosas anestesias,

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    por assim cham-las, de impulsos do intracorpo. As mais freqentes so as anestesias que correspondemaos impulsos do sexo, de modo que muita a gente que por algum tipo de problema psquico no detectaadequadamente os sinais que provm deste ponto. Ao haver-se produzido um bloqueio e no se detectaresses sinais, o que normalmente deveria chegar conscincia (seja em seu campo atencional mais notrio,ou seja nos nveis subliminares), sofre fortes distores, ou no chega. Quando um impulso proveniente de

    sentidos externos ou internos no chega conscincia, est faz um trabalho como se tratasse de recomporessas ausncia pedindo emprestados impulsos a memria, compensando a falta do estmulo quenecessitaria para sua elaborao. Quando, por alguma falha sensorial, externa ou interna, ou simplesmentepor bloqueio, algum impulso no chega desde o mundo externo ou interno, ento a memria lana seutrem de impulsos tratando de compensar. Se isto no acontece, a conscincia se encarrega de tomarregistro dela mesma. Um trabalho estranho que faz a conscincia, que como se uma lmadora de vdeose colocasse frente a um espelho e v, agora, na tela um espelho dentro de um espelho, e assim seguindo,em processo multiplicativo de imagens, onde a conscincia, reelabora seus prprios contedos, e se torturatratando de tirar impulsos de onde no existem. Esses fenmenos obsessivos, so um pouco, a lmadora de vdeo em frente a um espelho. Assim como a conscincia compensa tomando impulsos de outro ponto,assim tambm, quando os impulsos do exterior ou do intracorpo so muito fortes, a conscincia se defende

    desconectando o sentido, como se tivesse suas vlvulas de segurana. Alm disso, sabemos que os sentidosesto em contnuo movimento. Quando se dorme, por exemplo, os sentidos correspondentes ao rudoexterno abaixam seu limiar. Ento muitas coisas que seriam percebidas em viglia, ao fechar-se o limiarno entram, mas de todo modo os sinais esto sendo captados. E, normalmente, os sentidos estoabaixando e levantando seu limiar de acordo com o rudo de fundo nesse momento. Claro, este otrabalho normal dos sentidos, mas quando os sinais so irritantes e os sentidos no podem eliminar oimpulso abaixando o limiar, a conscincia tende a desconectar o sentido globalmente. Imaginemos o casode uma pessoa submetida a continuadas irritaes sensoriais externas. Aumenta-se o rudo da cidade,aumenta-se a estimulao visual, aumenta-se toda essa confuso de notcias do mundo externo, ento,nessa pessoa pode produzir-se uma espcie de reao. O sujeito tende a desconectar seus sentidosexternos e dirigir-se para dentro. Comea a estar merc dos impulsos do intracorpo, a desconectar seumundo externo num processo de rarefao (estranhamento) da conscincia. Mas a coisa no todramtica, trata-se de uma entrada em si mesmo ao tentar eludir o rudo externo. Neste caso, o sujeito quedesejava diminuir o rudo sensorial, vai encontrar-se, nada menos, do que com a amplicao dos impulsosdo intracorpo, porque assim, como existe uma regulao de limites em cada um dos sentidos externos einternos, assim tambm, o sistema de sentidos internos compensa o sistema de sentidos externos. Podemosdizer que, em geral, quando abaixa o nvel de conscincia (para o sono), os sentidos externos abaixam seuslimiares aumentando o limiar da percepo dos sentidos internos. Inversamente, quando sobe o nvel deconscincia (para o despertar), no sujeito comea a baixar o limiar de percepo dos sentidos internos e seabre o limiar de percepo externa. Mas, ocorre que, ainda na viglia, no exemplo anterior, os limiares desentidos externos podem reduzir-se e o sujeito entrar em situao de fuga frente irritao que o mundo

    lhe produz .Seguindo com a descrio dos grandes blocos de aparelhos. Observamos os trabalhos que efetua a

    memria ao receber impulsos. A memria sempre toma dados e assim formou um substrato bsico desde a primeira infncia. Com base a esse substrato, se organizaro todos os dados de memria que se vo acumulando.Parece que so os primeiros momentos da vida, os que determinam, em grande medida, os processosposteriores. Mas a memria antiga, vai cando cada vez mais afastada da disponibilidade viglica daconscincia. Sobre o substrato vo se acumulando os dados mais recentes at chegar aos dados imediatosdo dia. Imaginem vocs as diculdades que existem nisso de resgatar contedos de memria muito antigosque esto na base da conscincia. difcil chegar at l. H que enviar sondas. Por cmulo, essas sondasque se lanam so, s vezes, rechaadas por resistncias. Ento, devem utilizar-se tcnicas bastante

    complexas para que, estas sondas, possam chegar a tomar sua amostra da memria, com a inteno dereacomodar esses contedos que, em alguns casos, desafortunados, estavam mal encaixados.

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    Existem outros aparelhos, como os centros, que fazem um trabalho bastante mais simples. Os centros trabalham

    com imagens. As imagens so impulsos que, provindo da conscincia, disparam at os centroscorrespondentes e, estes centros, movem o corpo em direo ao mundo. Vocs conhecem o funcionamentodo centro intelectual, emotivo, motriz, sexual, vegetativo, e sabem que para mobilizar a qualquer deles sernecessrio que se disparem imagens adequadas. Poderia acontecer tambm que a carga, a intensidade do

    disparo, fora insu

    ciente. Em tal caso, o centro em questo se moveria com debilidade. Tambm poderiaacontecer que a carga fosse excessiva e ento, no centro se provocaria um movimento desproporcionado.Por outra parte, esses centros, que tambm esto em contnuo movimento e que trabalham em estrutura,ao mobilizar cargas at o mundo, tomam energia dos centros contguos. Uma pessoa tem algunsproblemas que se reetem em sua motricidade intelectual, mas seus problemas so de natureza afetiva.Assim, as imagens prprias da motricidade do intelecto esto contribuindo para que se reordenemcontedos, mas no se resolve o problema emotivo por essa reelaborao de imagens desenfreadas ou porum ruminar imagens fantsticas. Se essa pessoa, no lugar de abandonar-se a seus devaneios, se pusesse dep e comeasse a mover o corpo trabalhando com sua motricidade, succionaria as cargas negativas docentro emotivo e a coisa mudaria. Mas, normalmente, se pretende manejar todos os centros desde o centrointelectual e isto traz numerosos problemas porque, aos centros, como temos estudado no seu momento,

    os manejamos desde abaixo (desde onde h mais energia e velocidade) e no desde acima (desde ondese transforma a energia psquica em tarefas intelectuais). Enm, que todos os centros trabalham emestrutura, que todos os centros ao lanar sua energia para o mundo succionam energia dos outros centros.s vezes, um centro se sobrecarrega e ao transbordar seu potencial, tambm energetiza os outros centros.Estes transbordamentos nem sempre so negativos porque, se bem que um tipo de transbordamento possaser encolerizar e desatar aes reprovveis, em outro tipo de transbordamento, pode-se alegrar e essasobrecarga energtica do centro emotivo pode terminar distribuda muito positivamente por todos osoutros centros. s vezes, por outro lado, produz-se uma grande carncia, um grande vazio, uma grandesuco do centro emotivo. O sujeito comea a trabalhar no negativo com o centro emotivo. Numaimagem, como se houvesse produzido um buraco negro que concentra matria, que contrai o espao eabsorve tudo para ele. Nosso sujeito se deprime; suas idias se obscurecem e tambm vai baixando seupotencial motriz e, inclusive, vegetativo. Dramatizando um pouco, agregamos que, at suas defesas vegetativas diminuem e, ento uma quantidade de respostas que seu organismo d normalmente,encontram-se, agora, atenuadas; seu organismo agora mais propenso enfermidade.

    Todos os aparelhos trabalham com maior ou menos intensidade de acordo com o nvel de conscincia. Se nossosujeito est viglico, est desperto, passam coisas muito diferentes do que quando est dormindo. Claro queexistem muitos estados e nveis intermedirios. Existe por a, um nvel intermedirios de semisono, queresulta de uma misturana entre viglia e sono. Existem tambm diferentes nveis dentro do prprio sono.No o mesmo um sono paradoxal, um sono com imagens, do que um sono profundo, vegetativo. Nestesono vegetativo, profundo, a conscincia toma dados, pelo menos no seu campo central; um sono que separece com a morte, que pode durar bastante tempo e se, ao acordar no passou pelo sono paradoxal, tem a

    sensao de contradio no tempo. como se no houvesse passado o tempo porque o tempo daconscincia relativo existncia dos fenmenos que nela existem, de modo que, no havendo fenmenos,no h tempo para a conscincia. Neste sono onde no h imagens, as coisas acontecem rpido demais.Mas isto no completamente assim, porque quando se deita para dormir algumas horas, o que aconteceu,em realidade, que houveram muitos momentos de ciclos. Assim passou pelo sono paradoxal, depois pelosono profundo, depois pelo paradoxal, depois pelo profundo, e assim seguindo. Se despertarmos o sujeitoquando est no sono profundo, sem imagens (que podemos comprovar desde fora graas ao E.E.G. e aoM.O R), possvel que no se lembre de nada dos trens de imagens que apareceram na etapa do sonoparadoxal (na qual se observa desde fora o Movimento Ocular Rpido sob as plpebras daquele quedorme); enquanto que, se o despertamos no momento em que est sonhando com imagens, possvel que

    lembre do sonho. Por outra parte, para aquele que despertou, parece que o tempo encolheu porque nolembra tudo o que aconteceu em diferentes ciclos do sono profundo. Nos nveis baixos de conscincia,

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    como nos nveis de sonho paradoxal, onde os impulsos do intracorpo trabalham com maior soltura. E onde tambm trabalha a memria com muita atividade. Acontece que quando se dorme, o circuito serecompe: aproveita, no apenas para eliminar as toxinas como tambm para transferir cargas, cargas decontedos da conscincia, de coisas que durante o dia no foram bem assimiladas. O trabalho do sono intenso. O corpo est quieto, mas h trabalhos intensos da conscincia. Reordena-se contedos

    rebobinando a

    lmagem e adiantando-la, classi

    cando e ordenando de outro modo os dados perceptuaisdo dia. Durante o dia vai se acumulando uma desordem perceptual muito grande porque os estmulos sovrios e discordantes. No sono, ao contrrio, produz-se uma ordem muito extraordinria. Classicam-se ascoisas de um modo muito correto. Por suposto que para ns a impresso do contrrio, de que o quepercebemos durante o dia muito ordenado e que no sonho que h uma grande desordem. Na realidadeas coisas podem estar muito bem ordenadas, mas as percepes que temos das coisas so extremamentefortuitas, so muito aleatrias, enquanto que o sonho, em sua mecnica, vai reelaborando e colocando osdados em seus cheiros. O sonho no faz apenas essa tarefa extraordinria, seno que, alm disso, tratade recompor situaes psquicas que no foram solucionadas. O sonho trata de lanar cargas de um ladopara outro, de produzir descargas catrticas porque existem sobrecargas. No sono solucionam-se muitosproblemas de carga, produzem-se distenses profundas. Mas, tambm no sono produzem-se fenmenos

    transferenciais de cargas que vo se dispersando de uns contedos para outros e destes para terceiros numclaro processo de deslocamento energtico. Muitas vezes as pessoas experimentam, depois de um belosonho, a sensao de que algo encaixou bem, como se houvesse produzido uma transferncia emprica,como se o sonho tivesse feito sua transferncia. Mas tambm, esto os sonhos pesados e se desperta coma sensao de que um processo interno no est bem digerido. O sonho est fazendo sua tentativa dereelaborar contedos, mas no consegue e, ento, o sujeito sai desse nvel com uma sensao muito ruim.Sem dvida que o sonho est, sempre, a servio da recomposio do psiquismo.

    3. A CONSCINCIA E O EU

    O que faz a conscincia enquanto os diferentes aparelhos trabalham incansavelmente? A conscincia

    conta com um diretor de suas funes e atividades que conhecido como o eu. Vejamos, assim: de algum modoeu me reconheo a mim mesmo e isto graas memria. Meu eu se baseia na memria e noreconhecimento de certos impulsos internos. Tenho noo de mim mesmo, porque reconheo alguns demeus impulsos internos que esto sempre ligados a um tom afetivo caracterstico. No apenas mereconheo como eu mesmo por minha biograa, por minha forma particular de compreender. E setirssemos os sentidos, onde estaria o eu? O eu no uma unidade indivisvel, seno que resulta da soma eda estruturao dos dados dos sentidos e dos dados da memria.

    Um pensador, faz umas centenas de anos, observou que podia pensar sobre seu prprio pensamento.Ento, descobriu uma atividade interessante do eu. No se tratava de lembrar coisas, nem se tratava de queos sentidos dessem informao. mais: esse senhor que advertia sobre esse problema, muito

    cautelosamente tratou de separar os dados dos sentidos e os dados da memria; tratou de fazer umareduo e car com o pensamento do seu pensar e isto teve enormes conseqncias para odesenvolvimento da Filosoa. Mas agora estamos preocupados em entender o funcionamento psicolgico doeu. Nos perguntamos: o eu, ento, pode funcionar ainda que tiremos os dados da memria e dossentidos?. Vejamos o ponto com cuidado.

    O conjunto de atos pelos quais a conscincia pensa a si mesma depende de registros sensoriais interno, ossentidos internos do informao do que acontece na atividade da conscincia. Esse registro, da prpriaidentidade da conscincia est dado pelos dados dos sentidos e pelos dados da memria alm de umapeculiar congurao que outorgam conscincia, a iluso de identidade e permanncia, no obstante ascontnuas mudanas que nela se vericam.Essa congurao ilusria de identidade e permanncia o eu.

    Comentemos algumas provas realizadas na cmara de silncio. Algum colocou-se ali e ps seu corpoimerso, digamos a uns 36 centgrados (quer dizer, colocou-se num banho onde a temperatura do meio

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    igual temperatura da pele). O recinto est climatizado para conseguir que os pontos do corpo queemergem estejam umedecidos e a mesma temperatura do lquido. Suprimiu-se todo som ambiente; todorastro de cheiro; de luz, etc. O sujeito comea a utuar na escurido e com pouco tempo comea aexperimentar alguns fenmenos extraordinrios: uma mo parece crescer notavelmente e seu corpo perdeos limites. Mas algo curioso se produz quando diminumos ligeiramente a temperatura do recinto.

    Quando diminumos em um par de graus a temperatura do meio externo em relao temperatura dolquido, o sujeito sente que sai pela cabea ou pelo peito. Em determinados momentos, o sujeito comeaa experimentar que seu eu no est em seu corpo, mas fora dele. E este estranhamento extraordinrio dalocalizao espacial do seu eu devido, precisamente, modicao dos impulsos da pele em pontosprecisos (do rosto e do peito), sendo que o resto deles est totalmente indiferenciado. Mas se voltamos auniformizar a temperatura do lquido com a do recinto, comeam a ocorrer outros fenmenos. Ao faltardados sensoriais externos, a memria comea a jogar trens de dados, compensando essa ausncia, e pode-se comear a recolher dados de memria muito antigos. O mais notvel que esses dados de memria, s vezes no aparecem como normalmente acontece quando recordamos imagens da vida, seno queaparecem fora da cabea. Como se essas lembranas viessem de l, de fora de si, como alucinaesprojetadas numa tela externa. claro, no se tem muita noo de onde termina o corpo; ento, tampouco

    se tem muita referncia de onde esto situadas as imagens. As funes do eu so percebidas fortementealteradas. Produz-se uma espcie de alterao das funes do eu, pelo simples expediente da supressosensorial externa.

    4. REVERSIBILIDADE E FENMENOS ALTERADOS DE CONSCINCIA

    Neste esquema que estamos redescrevendo, o aparelho de conscincia trabalha com mecanismos dereversibilidade. Isso quer dizer que assim como percebo um som, mecanicamente, involuntariamente,tambm posso colocar a ateno na fonte do estmulo, nesse caso, minha conscincia tende a levar aatividade para a fonte sensorial. No o mesmo perceber e aperceber. Aperceber ateno mais percepo.No o mesmo lembrar, quer dizer, isto que agora passa pela minha mente e chega desde minha memria

    (onde a conscincia passivamente recebe o dado), que evocar, onde minha conscincia vai at a fonte damemria, trabalhando por singulares procedimentos de seleo e descarte. Assim a conscincia dispe demecanismos de reversibilidade que trabalham de acordo com o estado de lucidez no qual se encontra aconscincia nesse momento. Sabemos que diminuindo o nvel, cada vez mais difcil ir s fontes dosestmulos voluntariamente. Os impulsos se impem, as lembranas se impem, tudo isso com uma grandefora sugestiva vai controlando a conscincia enquanto ela, indefesa, se limita a receber impulsos. Abaixe onvel de conscincia, diminui a crtica, diminui a autocrtica, diminui a reversibilidade com todas as suasconseqncias. Isso no acontece somente nas quedas do nvel de conscincia, mas tambm nos estadosalterados da conscincia. preciso no confundir nveis e estados. Podemos estar, por exemplo, no nvel deconscincia viglico, mas em estado passivo, em estado atento, em estado alterado, etc. Cada nvel de

    conscincia admite diferentes estados. So diferentes, no nvel de sono paradoxal, os estados de sonotranqilo, de sono alterado e de sono sonamblico. Pode, tambm, cair a reversibilidade em algum dosaparatos de conscincia por causa de estados alterados e no porque o nvel tenha abaixado.

    Poderia acontecer que uma pessoa estivesse viglica e, sem embargo, por uma circunstncia especial,sofresse fortes alucinaes. Observaria fenmenos que, para ela, seriam do mundo externo, quando narealidade estaria projetando externamente algumas de suas representaes internas. Estaria fortementesugestionado por esses contedos, por essas alucinaes, do mesmo modo que uma pessoa ca em plenosono, fortemente sugestionada por seus contedos onricos. Apesar disso nosso sujeito estaria desperto, eno dormindo. Tambm por uma febre muito alta, pela ao de drogas ou de lcool, sem haver perdido onvel de conscincia viglico, se encontraria num estado alterado de conscincia, com a conseqenteapario de fenmenos anormais.

    Os estados alterados no so to globais, seno que podem afetar determinados aspectos da reversibilidade.

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    Podemos dizer que uma pessoa qualquer, em plena viglia, pode ter bloqueado algum aparato dereversibilidade. Tudo funciona bem, suas atividades dirias so normais, uma pessoa convencional. Tudoanda s mil maravilhas... menos num ponto. Quando se toca nesse ponto, o sujeito perde o controle. Existeum ponto de bloqueio de sua reversibilidade. Quando se toca nesse ponto, diminui o sentido crtico eautocrtico, diminui o controle de si mesmo e estranhos fenmenos internos se apoderam de sua

    conscincia. Mas isso no to dramtico e acontece com todos ns. Em maior ou menos medida, todostemos nossos problemas com algum aspecto dos mecanismos de reversibilidade. No dispomos, to anosso gosto, de todos os nossos mecanismos. Pode acontecer, ento, que nosso famoso eu, diretor daorquestra, no o seja tanto, quando alguns aspectos da reversibilidade so afetados, no momento em queocorrem disfunes entre os distintos aparelhos do psiquismo. O exemplo da cmara de silncio muitointeressante, nele compreendemos que no se trata de uma queda de nvel de conscincia, seno dasupresso de impulsos que deveriam chegar at a conscincia, e ali, a prpria noo do eu se altera, seperde. Tambm se perdem faixas de reversibilidade, de sentido crtico e ocorrem alucinaescompensatrias.

    A cmara de silncio nos mostra o caso da supresso de estmulos externos e poucas vezes ocorrem alifenmenos de real interesse se no se eliminam todas as referncias sensoriais. Ocorre, s vezes, a falta, ouinsucincia de impulsos provenientes dos sentidos internos. A esses fenmenos chamamos,genericamente, de anestesias. Por algum bloqueio, os sinais que deveriam chegar, no chegam. O sujeitose estranha, seu eu se distorciona, bloqueiam-se alguns aspectos de sua reversibilidade. Assim que o eu pode ver-se alterado por excesso de estmulos ou por carncia deles. Mas, em todo caso, se nosso eu, diretor, se

    desintegra, as atividades de reversibilidade desaparecem.

    Por outro lado, o eu dirige as operaes utilizando um espao e segundo se situe nesse espao, a direo dos

    impulsos mudar. Falamos do espao de representao (diferente do espao de percepo).2 Neste espao derepresentao, do qual tambm toma amostras o eu, vo se situando impulsos e imagens. De acordo com aprofundidade ou o nvel do espao de representao a que uma imagem seja lanada, sai uma resposta aomundo diferente. Se para mover minha mo, imagino-a visualmente, como se a visse de fora, imagino-adeslocando-se at um objeto que quero pegar, no por isso que minha mo, realmente, se deslocar. Estaimagem visual externa no corresponde ao tipo de imagem que deve ser disparada para que a mo semexa. Para que isto ocorra necessrio que eu utilize outros tipos de imagens: uma imagem cenestsica(baseada na sensao interna) e uma imagem cinestsica (baseada no registro muscular e de posio que vai tendo a minha mo ao mover-se). Poderia acontecer que logo eu me equivocasse no tipo e nalocalizao da imagem ao mundo. Eu poderia Ter sofrido um certo trauma, como gostavam de dizer emoutras pocas, e ento, ao querer levantar-me da cadeira em que me encontro, me equivocasse nalocalizao da imagem no espao de representao. Ou ento, confundisse o tipo de imagem. O que estariame passando? Eu estaria dando sinais, estaria me vendo levantar-me da cadeira, mas poderia acontecerque no estivesse disparando as imagens cenestsicas e cinestsicas corretas, que so as que movem meu

    corpo. Se me equivocasse no tipo de imagem ou na localizao dela, meu corpo poderia no responder ecar paralisado. Poderia, ao contrrio, acontecer que esta pessoa que est paralisada desde aquele famosotrauma e que no pode situar corretamente sua imagem, recebesse um forte impacto emotivo de umxam curandeiro ou de uma imagem religiosa e como resultado desse fenmeno de f (de um forte registroemotivo cenestsico), reconectasse a correta localizao ou discriminasse corretamente a imagem(cenestsica) do caso. E seria bastante vistoso o fato de que algum , frente a esses estranhos estmulos,rompesse sua paralisia e sasse caminhando. Poderia acontecer, se pudesse reconectar corretamente aimagem. E assim como existem muitas somatizaes, podem existir tambm muitas des somatizaes deacordo com os jogos de imagens que temos comentado. Empiricamente, isto aconteceu muitas vezes eesto devidamente registrados numerosos e diversos casos.

    Este assunto das imagens no uma questo menor. A est nosso eu disparando imagens e cada vezque uma imagem vai, um centro se mobiliza, e uma resposta sai ao mundo. O centro mobiliza uma

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    atividade, seja para o mundo externo ou seja par o intracorpo. O centro vegetativo, por exemplo, mobilizaatividades de disparo para dentro do corpo e no para a motricidade externa. Mas, o interessante destemecanismo, que, uma vez que o centro mobiliza uma atividade, os sentidos internos tomam amostradessa atividade que se disparou para o intracorpo ou para o mundo externo. Ento, se movo o brao, tenhonoo do que fao. A noo que tenho do meu movimento no est dada por uma idia, seno que, por

    registros cenestsicos prprios do intracorpo e por registros cinestsicos de posio, entregues pordiferentes tipos de introceptores. Acontece que, segundo movo o brao, vou tendo o registro de meumovimento. Graas a isso que posso ir corrigindo meus movimentos at encontrar justo com o objeto.Posso ir corrigindo-o com maior facilidade do que um beb, porque o beb, todavia, no tem a memria, aexperincia motriz para realizar movimentos to usuais. Posso ir corrigindo meu movimento porque, decada movimento que fao, vou tendo sinais correspondentes. Claro que isso vai a grande velocidade e, decada movimento que produzo, tenho sinal do que vai acontecendo, num circuito contnuo deretroalimentao, que permite corrigir e, alm disso, aprender os movimentos. Assim, pois, de toda aoque mobiliza um centro ao mundo, tenho uma dose de retroalimentao que volta ao circuito. E, esta dosede retroalimentao, que volta ao circuito, mobiliza por sua vez, diferentes funes de outros aparelhos daconscincia. Sabemos que existem formas de memria motriz, por exemplo, algumas pessoas quando

    estudam, o fazem melhor caminhando do que sentadas. Em outro exemplo, algum interrompe seudilogo com outra pessoa com a qual debatia enquanto caminhava porque esqueceu o que estava por dizer.Apesar disso, ao voltar ao lugar em que perdeu o o do seu discurso, pode recuper-lo completamente. E,para terminar com isto, vocs sabem que, quando esquecem algo, se repetem os movimentos corporaisprvios ao momento do esquecimento, podem retomar a seqncia esquecida. Em realidade, h umaretroalimentao complexa do ato que sai: tomam-se amostras do registro interno, se reinjecta no circuito,vai at a memria, circula, associa-se, transforma-se e traduz-se.

    Para muitos, sobretudo para a Psicologia clssica, a coisa termina quando se realiza um ato. E pareceque a coisa recm comea quando algum realiza um ato, porque este ato se reinjeta e essa reinjeodesperta uma grande cadeia de processos internos. Assim vamos com nossos aparatos, conectando-os entre

    si por meio de complexos sistemas de impulsos. Estes impulsos de deformam, se transformam e sesubstituem uns por outros. Assim, portanto, e segundo alguns exemplos que foram dados em seumomento, essa formiga que percorre meu brao rapidamente reconhecida. Mas, esta formiga quepercorre meu brao enquanto durmo, no facilmente reconhecida, seno que esse impulso de deforma, setransforma e s vezes se traduz, suscitando numerosas cadeias associativas, segundo a linha mental queesteja trabalhando neste momento. Complicando um pouco mais as coisas: quando meu brao esta mallocalizado, me dou conta disso e me movo. Mas, quando estou dormindo e meu brao est mal localizado,essa soma de impulsos que chegam tomada pela conscincia, traduzida, deformada e associada de modosingular. A acontece que imagino um exrcito de vespas que atacam meu brao e ento essas imagenslevaro carga at meu brao e o brao se mover num ato de defesa (que conseguir uma reacomodao) eseguirei dormindo. Essas imagens servem, precisamente, para que o sono continue. Esto disposio,

    essas tradues e deformaes de impulsos, da inrcia do nvel. Estas imagens do sono esto servindo adefesa do prprio nvel. Existem muitssimos estmulos internos que do sinal durante o sono. Ento, nomomento do sonho paradoxal, estes impulsos aparecem como imagem. Acontece que h uma tenso visceral profunda, por exemplo. O que acontecer? O do brao, mas por dentro. Esta tenso visceralprofunda envia um sinal e ele se traduz como imagem. Suponhamos algo mais fcil: uma irritao visceralenvia o sinal que se traduz como imagem. O sonhador agora se v dentro de um incndio e se o sinal demasiado intenso, o incndio terminar rompendo a inrcia do nvel, ento o sujeito se despertar etomar algum digestivo ou algo do tipo. Mas, se no for assim, se manter a inrcia do nvel e seassociaram outros elementos que contribuiro par ir diluindo a situao, porque a prpria imagem podetrabalhar disparando-se para dentro e provocando distenses. Nos sonhos, continuamente, esto sendo

    recebidos impulsos de distintas tenses internas, esto sendo traduzidas imagens correspondentes e estasimagens que mobilizam centros, tambm mobilizam o centro vegetativo que d respostas de distenso

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    interna. De maneira que, as tenses profundas vo dando sinais e, as imagens vo rebotando par dentro,provocando as distenses equivalentes s tenses que foram disparadas.

    Quando o sujeito era beb, recebeu um forte choque. Ficou fortemente impressionado por uma cena.Contraram-se muitos de seus msculos externos. Tambm se contraram algumas zonas musculares maisprofundas. E cada vez que recorda aquela cena, produz-se o mesmo tipo de contrao. Agora acontece que

    essa cena est associada (por similitude, contiguidade, contraste, etc.) com outras imagens que,aparentemente, no tem nada que ver. Ento, ao evocar essas imagens, saltam as primigenias e produzem-se as contraes. Acontece, por ltimo, com o passar do tempo, que se tenha perdido na memria antiga aprimeira imagem, que era a que produzia a tenso. E, agora, inexplicavelmente, ao receber um impulso esoltar-se uma imagem, produzem-se essas contraes. Acontece que, frente a certos objetos, ou situaes,ou pessoas, despertam-se no sujeito fortes contraes e um estranho temor, ao qual no se encontra relaocom aquilo que passou na infncia. Foi apagada uma parte e caram outras imagens. Cada vez que, emseus sonhos soltam-se imagens que pe em marcha essas contraes e, delas se tomam amostras que voltam a traduzir-se em imagens, est se realizando na conscincia, uma tentativa por distender e portransferir as cargas que esto xadas a uma situao no resolvida. No sonho est se tratando de resolver,com o disparo de imagens, as tenses opressivas e, alm disso, est se tratando de deslocar cargas de certoscontedos para outros, de menor potencial, a m de que se separe, ou se redistribua, a carga dolorosaprimitiva.

    Tendo em conta o trabalho emprico catrtico e transferencial que se realiza durante o sonho, as tcnicas de

    Operativa podem seguir o processo de tomar impulsos e disparar imagens aos pontos de resistncia. Mas, necessrio fazer aqui umas breves digresses em torno da classicao das tcnicas de Operativa, aosprocedimentos gerais e ao objetivo de tais trabalhos.

    Agrupamos as distintas tcnicas de Operativa3 do seguinte modo. 1. Tcnicas catrticas: sondeo catrtico,catarse de realimentao, catarse de climas e catarse de imagens. 2. Tcnicas transferenciais: experincias guiadas4;transferncias e transferncias exploratrias. 3. Tcnicas autotransferenciais.

    Nas transferncias se situa o sujeito num particular nvel e estado de conscincia, num nvel de semi-sonoativo no qual vai baixando e subindo pela sua paisagem interna; vai avanando ou retrocedendo; vaiexpandindo ou vai contraindo e ao faz-lo assim, nosso sujeito vai encontrando resistncias emdeterminados pontos. Essas resistncias que encontra so para quem guia a transferncia, indicadoresimportantes de bloqueio, xao, ou contrao. O guia vai procurar que as imagens do sujeito cheguem,suavemente, a essas resistncias e as superem. E, dizemos que quando se pode superar uma resistncia, seproduz uma distenso ou se produz uma transferncia de carga. s vezes estas resistncias so muitograndes e no se pode acomet-las de frente porque se produzem reaes, ou rebotes e o sujeito no vai sesentir animado a novos trabalhos se sofre algum fracasso ao tratar de vencer suas diculdades. Assim, pois,com as grandes resistncias, o guia no avana frontalmente, seno que, melhor, retrocede e dando voltas

    chega novamente a elas, mas, conciliando contedos internos, e no atuando com violncia. O guia vaiorientando-se pelas resistncias, sempre com o procedimento das imagens. Trabalha no nvel do semisonopor parte do sujeito, para que ele possa apresentar um conjunto de alegorias conhecidas e manejveis.Trabalhando com alegorias no nvel do semisono ativo, o guia pode mobilizar imagens, vencer resistnciase liberar sobrecargas.

    O objetivonal dos trabalhos de Operativa o de integrar contedos que estejam separados, de maneira que

    esta incoerncia vital que algum percebe em si mesmo, possa ser superada. Estes mosaicos de contedos que noencaixam bem; estes sistemas de ideao onde se reconhecem tendncias contraditrias; estes desejos queno se quer desejar; estas coisas que passaram e no se quer repetir; essa complicao enorme de contedosno integrados; essa contradio contnua, o que se pretende ir superando com o apoio das tcnicastransferenciais de integrao de contedos. E, conhecendo bem as tcnicas, interessa incursionar emdiversos tipos de trabalhos autotransferenciais, nos quais j se prescinde de um guia externo, utilizando umsistema de imagens codicado para orientar o prprio processo. Nas autotransferncias resgatam-se

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    contedos biogrcos que no esto conciliados e se podem trabalhar temores e sofrimentos imaginriossituados num presente ou num futuro psicolgico. Os sofrimentos que se introduzem na conscincia emseus distintos tempos e por suas distintas vias, podem ser modicados mediante a utilizao de imagensautotransferenciais disparadas ao nvel e ao mbito adequados do espao de representao.

    Temos orientado nossos trabalhos na direo da superao do sofrimento. Tambm temos dito que o

    ser humano sofre pelo que acredita que aconteceu na sua vida, pelo que acredita que acontece, e pelo queacredita que acontecer. E sabemos que esse sofrimento que o ser humano tem pelo que acredita, umsofrimento real ainda que no seja real o que ele acredita. Trabalhando sobe si mesmo, pode-se chegar aessas crenas dolorosas, reorientando a direo da energia psquica.

    5. O SISTEMA DE REPRESENTAO NOS ESTADOS ALTERADOS DE CONSCINCIA

    Nos deslocamentos pelo espao de representao, chegamos a seus limites. medida que as representaesdescem, o espao tende a escurecer-se e, inversamente, para cima, vai aumentando a claridade. Estasdiferenas de luminosidade profundidades y alturas, seguramente tm que ver com a informao dememria que, desde a primeira infncia, vai associando a gravao de luminosidade aos espaos altos.

    Tambm se pode comprovar a luminosidade maior que tem qualquer imagem situada ao nvel dos olhos,enquanto sua denio diminui medida que se situe fora desse nvel. Logicamente, o campo de visoabre-se com mais facilidade a frente e para cima dos olhos (para a cspide da cabea) do que para frente epara baixo (para o tronco, as pernas e os ps). No obstante o dito, alguns pintores de zonas frias enebulosas nos mostram nos planos baixos de suas telas ema iluminao especial, nas quais,freqentemente, esto os campos nevados, assim como uma crescente escurido at os espaos altos quepodem aparecer cobertos de nuvens.

    Nas profundidades ou nas alturas, aparecem objetos mais ou menos luminosos, mas, ao representar taisobjetos no se modica o tom geral da luz que possa existir nos distintos nveis do espao derepresentao.

    Por outro lado e somente em determinadas condies de alterao de conscincia, produz-se umfenmeno curioso que irrompe iluminando todo o espao de representao. Este fenmeno acompanha asfortes comoes psquicas que entregam um registro emotivo cenestsico muito profundo. Esta luz queilumina todo o espao de representao se faz presente de tal maneira que, ainda que o sujeito suba oubaixe, o espao permanece iluminado, no dependendo isto de um objeto particularmente luminoso, senoque todo o ambiente aparece agora afetado. como se pusesse a tela da TV com o brilho mximo. Emtal caso, no se trata de uns objetos mais iluminados do que outros, seno que do brilho geral. Em algunsprocessos transferenciais, e logo aps registrar esse fenmeno, alguns sujeitos saem para a viglia com umaaparente modicao da percepo do mundo externo. Assim, os objetos parecem mais brilhantes, maisclaros e com mais volume, segundo as descries que se podem fazer nesses casos. Ao produzir-se esse

    curioso fenmeno de iluminao do espao, algo passou com o sistema de estruturao da conscincia queagora interpreta de um modo diferente a percepo externa habitual. No que se tenham depurado asportas da percepo, seno que se modicou a representao que acompanha a percepo.

    De um modo emprico e por meio de diversas prticas msticas, os devotos de algumas religies tratamde se pr em contato com um fenmeno transcendente percepo e que parece irromper na conscinciacomo luz. Por diferentes procedimentos ascticos ou rituais, por meio do jejum, da orao, ou darepetio, pretende conseguir o contato com uma espcie de fonte de luz. Nos processos transferenciais enos processos autotransferenciais, seja por acidente no primeiro caso, ou de modo dirigido no segundo, setem a experincia destes curiosos acontecimentos psquicos. Sabe-se que estes podem produzir-se quandoo sujeito recebeu uma forte comoo psquica, quer dizer, que seu estado , aproximadamente, um estado

    alterado de conscincia. A literatura religiosa universal est repleta de numerosos relatos acerca destesfenmenos. Tambm interessante advertir que esta luz, em algumas ocasies, se comunica e at

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    dialoga com o sujeito, tal como est ocorrendo nestes tempos com as luzes que se vem nos cus e quechegando aos temerosos observadores, lhes do suas mensagens de outros mundos.

    Existem muitos outros casos de variaes de cor, qualidade e intensidade lumnica, como acontece comcertos alucingenos, mas esses casos no tem nada a ver com o comentado anteriormente.

    Segundo se descreve em muitos textos, algumas pessoas que aparentemente morreram e voltaram vida, tiveram a experincia de abandonar seu corpo e ir orientando-se para uma luz cada vez mais viva,sem poder relatar bem se eram eles que avanavam at a luz, ou a luz que avanava at eles. O fato queos protagonistas vo se encontrando com semelhante luz que tem a propriedade de comunicar-se e at dedar indicaes. Mas para poder contar essas histrias, ter que receber um choque eltrico no corao, oualgo do estilo, e ento, nossos heris se sentiro retrocedendo e afastando-se da famosa luz com a queestavam por tomar um interessante contato.

    Existem numerosas explicaes acerca destes fenmenos, explicaes pelo lado da anoxia, daacumulao de dixido de carbono, da alterao de certas enzimas cerebrais. Mas, para ns, como costume, no nos interessam tanto as explicaes, que hoje so umas, amanh so outras, seno que nosinteressa o sistema de registros, a situao afetiva que padece o sujeito e essa espcie de grande sentidoque parece irromper sorpresivamente. Aqueles que acreditam ter voltado da morte, experimentam umagrande mudana pelo fato de haver registrado um contato com um fenmeno extraordinrio que de logoemerge e do qual no se alcana compreender se um fenmeno de percepo ou de representao, masque parece de grande importncia j que tem aptido para mudar, subitamente, o sentido da vida humana.

    Sabes-se, alm do mais, que os estados alterados de conscincia podem dar-se em distintos nveis e, por suposto,no nvel viglico. Quando algum se encoleriza, produz-se, em viglia, um estado alterado. Quando algum,de repente, sente euforia ou uma grande alegria, tambm est roando um estado aletardo de conscincia.Mas quando se fala de estado alterado, pode-se pensar em algo infraviglico. Sem embargo, os estadosalterados so freqentes, acontecem em diferentes graus e com diferentes qualidades. Os estados alteradossempre implicam no bloqueio da reversibilidade de alguns de seus aspectos. Existem estados alterados de

    conscincia ainda na viglia, como so os estados produzidos pela sugestionabilidade. Todo mundo estmais ou menos sugestionado pelos objetos que mostra a publicidade ou que gloricam os comentaristasmediticos. Muita gente no mundo acredita nas bondades dos artigos que, repetidamente, vo sendopropostos nas diversas campanhas. Esses artigos podem ser objetos de consumo, valores, pontos de vistasobre diferentes tpicos, etc. A diminuio da reversibilidade nos estados alterados de conscincia, estpresente em cada um de ns e a cada momento. Nos casos mais profundos de susceptibilidade, j nosencontramos no transe hipntico. O transe hipntico trabalha no nvel de conscincia viglica, ainda que ocriador da palavra hipnose tenha pensado que era uma espcie de sono. O sujeito hipnotizado caminha,vai, vem, anda com os olhos abertos, efetua operaes e, tambm, durante o efeito ps-hipntico o sujeitosegue atuando em viglia, mas cumprindo com o mandato que lhe deram no momento da sesso

    hipntica. Trata-se de um forte estado alterado de conscincia.Existem os estados alterados patolgicos nos quais se dissociam importantes funes da conscincia.

    Tambm existem estados no patolgicos nos quais, provisoriamente, se podem cindir, dividir as funes.Por exemplo, em certas sesses espritas algum pode estar conversando e, ao mesmo tempo, sua mo sepe a escrever automaticamente e comea a passar mensagens sem que o sujeito repare no que estacontecendo.

    Com os casos de diviso de funes e de cises de personalidade, poderia se organizar uma listagembastante extensa dos estados alterados. Muitos estados alterados acompanham fenmenos de defesa que sepem em marcha quando ocorrem disparos adrenalnicos frente a um perigo e isto produz sriasmodicaes na economia normal da conscincia. E, sem dvida, assim como existem fenmenos muito

    teis na alterao da conscincia, existem tambm fenmenos muito negativos.Por ao qumica (gases, drogas e lcool), por ao mecnica (giros, respiraes foradas, opresso de

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    artrias) e por ao da supresso sensorial, podem produzir-se estados alterados de conscincia. Tambmpor procedimentos rituais e por um colocar-se em situao graas a condies musicais especiais, danase operaes devocionais.

    Existem os chamados estados crepusculares de conscincia, nos quais existem o bloqueios dareversibilidade geral e, um posterior registro de desintegrao interna. Distinguimos, tambm, alguns

    estados que podem ser ocasionais e que, bem poderiam ser chamados estados superiores de conscincia.Estes podem ser classicados : xtase, arrebatamento e reconhecimento. Os estados de xtase, podem seracompanhados por suaves concomitncias motrizes e por uma certa agitao geral. Os de arrebatamento,so mais de fortes e inefveis registros emotivos. Os de reconhecimento, podem ser caracterizados comofenmenos intelectuais, no sentido em que o sujeito acredita, por um instante, compreender tudo; porum instante no ter diferenas entre o que ele e o que o mundo, como se o eu tivesse desaparecido. Aquem no aconteceu alguma vez que, de repente, experimentou uma alegria enorme sem motivo, umaalegria sbita, crescente e estranha? A quem no ocorreu, sem causa evidente, uma cada em conta doprofundo de profundo sentido, na qual se fez evidente que assim so as coisas?

    Tambm pode-se penetrar num curioso estado de conscincia alterada pela suspenso do eu. Isto se

    apresenta como uma situao paradoxal, porque para silenciar o eu necessrio vigiar sua atividade demodo voluntrio, o que requer uma importante ao de reversibilidade que robustece, novamente, aquiloque se quer anular. Assim que a suspenso se alcana unicamente por caminhos indiretos, deslocando,progressivamente, o eu de sua localizao central de objeto de meditao. Este eu, soma de sensao ememria, comea, logo, a silenciar-se, a se desestruturar. Tal coisa possvel porque a memria pode deixarde entregar dados, e os sentidos, (pelo menos os externos) tambm podem deixar de entregar dados. Aconscincia, ento, est em condies de encontrar-se sem a presena desse eu, numa espcie de vazio. Em tal

    situao, experimentvel uma atividade mental muito diferente da habitual. Assim como a conscincia senutre dos impulsos que chegam do intracorpo, do exterior do corpo e da memria, tambm se nutre dasrespostas que d ao mundo (externo e interno) e que, re-alimentam, novamente, a entrada no circuito. E,por esta via secundria, detectamos fenmenos que se produzem quando a conscincia capaz deinternalizar-se at o profundo do espao de representao. O profundo (tambm chamado si mesmo emalguma corrente psicolgica contempornea) no , exatamente, um contedo da conscincia. Aconscincia pode chegar ao profundo por um trabalho especial de internalizao. Nesta internalizaoirrompe aquilo que sempre est escondido, coberto pelo rudo da conscincia. no profundo onde seencontram as experincias dos espaos e dos tempos sagrados. Em outras palavras, no profundoencontra-se a raiz de toda a mstica e de todo sentimento religioso.

    NOTAS

    O DEVANEIO E A AO

    Madrid, praa de Colombo. Entre rvores, guas e ores, dois protagonistas hierticos e distanciadospropem seu contraponto. Enquanto o Monumento ao Descobrimento da Amrica se assentacentralmente, a esttua de Cristvo Colombo ocupa um espao lateral. E na noite, quando o tumultourbano silenciou, um mundo de calculados labirintos, de contradies apenas esboadas, ganhaimportncia . O monumento iluminado por potentes colunas de luz branca impe o peso de sua massa aotempo que a silhueta do clebre navegante se ergue longnqua e fantasmagrica. Assim, o observador ca

    preso em uma situao onrica em que os objetos lhe parecem estranhos. A esttua, em una esquina dapraa, no pode ser apreciada com justia porque est de costas. Tampouco se pode chegar ao monumento

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    e descobrimentos. "A Sagrada Escritura testemunha que Nosso Senhor fez o Paraso Terrenal e nele ps arvore da vida, e dele sai uma fonte de onde resultam em este mundo quatro rios principais." Esse lugar seencontra no ponto mais alto do mundo e por mar vai- se subindo medida que se avana para o sul. "Ebem que o parecer de Aristteles fosse que o plo Antrtico ou a terra que debaixo dele seja mais altaparte do mundo e mais prxima ao cu." E mais adiante comenta que o mundo "... da forma de uma praque seja toda muito redonda, salvo ali onde tem o mamilo que tem ali mais alto, ou como quem tem uma

    bola muito redonda e num lugar d'ela fosse como uma teta de mulher ali posta, e qu'esta parte d'estemamilo seja a mais alta e mais propcia do cu".(9) claro que a idia de Colombo (em quanto a que hum lugar mais alto que todos os demais na esfera do mundo e que nessa zona a gua tambm mais alta),responde a crenas que j haviam sido desvirtuadas desde sculos anteriores. A respeito, se deve recordar oque Dante escreve em 1320: "A gua no tem corcova alguma que sobressaia de sua circunfernciaregular", e tambm: "Este argumento arranca de uma falsa imaginao pois os marinheiros no marimaginam que no divisam a terra desde o barco por ser o barco mais alto que a terra; mas isto no assim, seno que mais bem sucederia todo o contrrio, pois divisariam um panorama muito mais largo queo que vm. A causa consiste em que o raio direto da coisa visvel se rompe entre o objeto e o olho pelaconvexidade da gua, pois como a gua tem necessariamente por todas partes forma redonda arredor deseu centro, da provem que, a certa distancia, a gua forma um obstculo ao olhar com sua prpriaconvexidade".11 Se bem Dante refuta as idias sobre as partes mais altas das guas no globo, sustenta queno hemisfrio sul se encontra a gigantesca montanha sobre a qual est localizado o Paraso Terrenal. Estasimagens mescladas com a concepo geocntrica de Ptolomeu vo a seguir inamando a imaginao dosnavegantes at avanado o S. XVII.12

    Nesse primeiro bloco se l uma profecia que parece haver nascido em terras de Amrica antes da chegadados europeus. A inscrio diz: "A distancia de um grito, a distancia de uma jornada esto j, oh, pai!Recebei a vossos hspedes os homens barbados, os de oriente, os que trazem o sinal de Ku, a divindade". Acitao est atribuda ao livro maia de Chilam Balam de Chumayel,13 uma das pedras angulares daliteratura indgena americana.14 Mas a frase est composta com dois pargrafos diferentes: O 11 Ahaudiz: "...Do oriente vieram quando chegaram a esta terra os barbudos, os mensageiros do sinal dadivindade, os estrangeiros da terra, os homens rubicundos." o 12 Ahau diz: "...Recebei a vossos hspedes;a distancia de uma jornada, a distancia de um grito vem j." Tudo isto se entende melhor quando lemos o13 Ahau que diz: "Os Ah Kines, Sacerdotes-do-culto-solar, profetizaram porque compreenderam como

    haveriam de vir os estrangeiros espanhis; os leram nos signos de seus papis e por isso comearam adizer: 'Verdadeiramente os faremos amigos nossos e no lhes faremos guerra', dizendo ademais: 'A eles selhes pagar o tributo'." Por certo, estes textos so posteriores conquista. O assunto muito claro j desdeo 1 Ahau no qual se "profetiza" logo de passados os acontecimentos: "...Ao trmino do katun, do Coraodo Monte receber sua esmola, sua parte, Csar Augusto (Carlos V), em mortes por fome, em zopilotes nas casas."

    A partir de 1930 comearam a circular escritos da cultura maia traduzidos s diferentes lnguas europias.O caso particular das profecias ainda tema de discusso entre llogos e historiadores e serviu deinspirao a escritores e artistas, como ca bem claro neste primeiro bloco do monumento.15

    Por outra parte, a seqncia de blocos nos leva a reetir sobre as fantasias que Colombo elaborou e queno caram s em sua mente seno que terminaram atuando nas interpretaes de alguns autores quetrabalharam em recriar sua vida. Muitas daquelas imagens inuram naqueles que tomaram ao Navegante

    como modelo de descobridor extraordinrio, como um tipo de aventureiro sempre atual no obstante opassar dos sculos. Ainda hoje podemos apreciar isto em alguma criao cinematogrca na que o diretor(e produtor) no provem do campo da arte seno da Astronutica.16

    Atravs do monumento da praa de Colombo se intui o universo de imagens que impulsionou aoNavegante ao longo de sua vida. Seus projetos foram, sobretudo, grandes vos imaginrios, e sua aoresultou conseqente com esses arrebatos. Depois de tudo, h casos nos que alguns devaneios poucopossveis terminam orientando a vida do protagonista e, no jogo de foras histricas, se chegam aconverter em fatores decisivos. Algo disto ocorreu com alguns projetos de Cristvo Colombo. Ele mesmodescartou vrios planos por irrealizveis17 enquanto outros, errados na concepo bsica, terminaram, noentanto, acertando no branco.

    Agora se chega a compreender porque se produziu uma separao, se diria que um choque, entre a esttua

    de Colombo e o Monumento ao Descobrimento. Tudo o que aparece como surpreendente e contraditriona praa , em realidade, um reexo do que foi o mundo dividido daquele sonhador e homem de ao.

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    NOTAS A O DEVANEIO E A AO

    1. Em muitas praas e passeios se encontram esttuas dedicadas a Colombo. Uma delas, a deBarcelona, particularmente signicativa. A que nos ocupa, de 3 metros de altura, se deve a A. Mlida y J.Suol que a concluram em 1885. Em 1892 esteve situada sobre uma coluna de 17 metros no centro da

    Castelhana. Terminado o Monumento ao Descobrimento da Amrica foi localizada na praa no seu lugaratual. Depois de uma restaurao, l aforam acrescentados coluna outros 3 metros.

    2. No Palcio Municipal de Gnova se conserva uma carta dirigida a Nicol Oderigo, embaixador deGnova na Espanha. Est fechada em Sevilha em 21 de Maro de 1502. Colombo rma como "Cristoferens."

    3. Segundo uma lenda Sria do sculo III, um homem tinha o ocio de facilitar aos viajantes ocruzamento de uma torrente caudalosa. Para realizar seu trabalho colocava aos passageiros sobre seusombros e caminhando sobre o leito do rio os descarregava na outra margem. Costumava avanarapoiando-se em um basto de madeira . Certo dia apareceu um menino que pediu seus servios. metadedo rio o menino adquiriu um peso to enorme que o homem comeou a desfalecer. No meio do perigoaquele revelou que era Jesus Cristo e ento o homem assombrado pelo prodgio se converteu aocristianismo tomando o nome de Christforos (latim. Christus, Cristo y gr. Foros, portador). Cristvopassou a ser o santo protetor dos viajantes. Na Idade Media se desenvolveu a estaturia dos So Cristvocolossais que ainda se conservam em numerosas catedrais. A princpios do S. XV na Alemanha e nosPases Baixos se zeram estampas impressas que circularam por toda Europa y que tinham o poder deproteger nas desgraas. Na poca de Colombo, a lenda era muito conhecida popularmente. Um poucomais adiante, em 1584 e na catedral de Sevilha, Mateo Prez de Alesio pintou um So Cristvo quepassava os nove metros de altura. Em pinturas e esttuas religiosas aparece So Cristvo cruzando um rioenquanto leva a Jesus sobre seus ombros. Na mo direita o menino leva, a sua vez, ao globo do mundorematado por uma cruz. Em base a essa representao circulou na ustria desde h vrios sculo, um aditado burlo: "Cristvo levava a Cristo, Cristo levava ao mundo, onde apoiava seus ps Cristvo?"

    4. Foi inaugurado pelo alcaide de Madrid em 15 de Maio de 1977 diante do rei e vinte alcaides dascapitais dos pases de Amrica.

    5. Diz o notvel arquiteto italiano A. Sartoris que "Vaquero Turcios fez uma arquitetura esculpida,fracionada em segmentos com concavidades e articulaes de volumes... Sobre estes volumes, sobre asfortssimas e audazes sacadas lanadas no vazio, as guraes foram escavadas e os textos das inscriesencaixados gracamente, maneira de grandes desenhos e grates. Formas esvoaantes de cartermonoltico. Monumento narrativo. Primeira obra de Arte Construda, realizada a escala urbana." Por suavez, O. Guayasamin opina sobre a obra que: "Observada desde o ponto de vista esttico, ela atinge nveisde alta poesia. As massas arquitetnicas que podem parecer estticas demais no primeiro momento,adquirem uma grande leveza e equilbrio. O monumento ao mesmo tempo a cordilheira dos Andes e asvelas dos barcos. Quero dizer com isto, que macio como uma rocha e leve como a vela de um veleiro. ,por m, o monumento de maior envergadura realizado na Europa nos ltimos tempos, e o de maiorrmeza.-Vaquero Turcios e a Arte Construda-. Monumento ao Descobrimento da Amrica. A. Sartoris.Madrid. Abaco. 1977.

    6. Medeia. Sneca. Madrid. Gredos, 1997. Ato segundo par. 375. O texto que possivelmente usouColombo foi o da Editio priceps de Ferrara de 1484, o qual (como se suponha at a pouco tempo comrespeito s edies de Martinus Herbipolensis de Leipzig ou a de Carolus Fernandus de Pars das que noconsta ano de produo mas que s foram conhecidas em 1492) aparece como da mesma data dasTragoediae Senecae cum duobus commentariis de Marmita que este publicou em Veneza em 1493. Comrelao ao texto que nos ocupa diz o tradutor e comentarista das obras de Sneca, Jesus Luque Moreno:"Desde h sculos (Abraham Oertel, p. exemplo), esta passagem foi interpretada como o anncio profticofeito por um espanhol sobre o descobrimento do Novo Mundo que seria logo levado a cabo pelaEspanha". Hernando Coln, o lho do descobridor, escreveu na margem desta passagem em seu exemplardo teatro de Sneca: "haec prophetia expleta est per patrem meum Christoforum Colon almirantem anno1492" (esta profecia foi cumprida por meu pai, o almirante Cristvo Colombo, no ano 1492).

    7.Biblioteca Colombina, Sevilla.

    8. Dirio. Relaes de viagens. C. Coln. Madrid. Sarpe, 1985. Na nota introdutria deste livro sesustenta que "do autor se conservam relativamente poucos documentos e, em qualquer caso, boa parte de

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    eles chegou at ns graas a cpias de frei Bartolom De las Casas, que manteve uma estreita amizadecom Diego Colombo.Isto lhe permitiu ter acesso direto ao arquivo e aos livros do descobridor. Assim,graas a uma cpia autografada de Las Casas, se conserva o resumo dos Dirios da primeira e terceira viagens. Isto faz pensar que o texto original dos Dirios pode haver sido alterado substancialmente. Noentanto, investigadores posteriores foram polindo as cpias de imprecises e alteraes, e as verses atuaisresultam altamente conveis.A falta de originais se une a outra diculdade nas obras colombinas: o

    debatido problema da lngua usada pelo autor... Colmbo antes de tudo um homem de mar. Portanto,este marinheiro est acostumado a navegar mil lguas sem lograr expresar-se bem em nenhuma. A dirio edurante seus anos de moo, o Almirante haver de entender-se com seus companheiros na linguagem queento se chamava 'levantisca' , isto , do Levante, do Mediterrneo .

    9. "Eu sempre li que o mundo, terra e gua era esprico e as autoridades e experincias que Ptolomeo etodos os outros que escreveram d'este sitio davam y amostravam para isso, assim por eclipses da lua eoutras demonstraes que fazem de Oriente at Ocidente como da elevao do plo de Septentrin noAustro. Agora vi tanta disformidade como j disse; y por isto me pus a ter isto do mundo, e falheique noera redondo na forma que escrevem, salvo que da forma de uma pra que seja toda muito redonda, salvoali onde tem o mamilo que tem ali mais alto, ou como quem tem uma bola muito redonda e em um lugard'ela fosse como uma teta de mulher ali posta, e qu'esta parte d'este mamilo seja a mais alta e maisprxima ao cu, e seja debaixo da lnha equinocial, e neste mar Oceana, em m do Oriente (chamo eu

    m de Oriente onde acaba toda a terra e ilhas). E para isto alego todas as razes sobreescritas da raia quepassa ao Ocidente das ilhas dos Aores cient lguas de Septentrin em Austro, que em passando de ali aoPoniente, j vo os navos alndo-se ao cu suavemente..." Op. cit. Relao da terceira viagem .

    10. Disputa sobre a gua e a terra. Dante Alighieri. O. C. Madrid. BAC. 1973, par. 8. La Quaestio de situaquae et terrae, nega a teora sustentada por Plinio, Sneca e So Basilio segundo a qual o mar ocupa umlugar mais alto que a terra.

    11. Op. Cit., par. 82.

    12. O que em el Dante poesa, para muitos de seus leitores termina sendo a descrio de uma realidadefsica que se encontra nos mares do sul. O vate relata: "I'mi volsi a man destra, e posi mente a l'altro polo,e vidi quattro stelle non vista mai fuor ch'a la prima gente. Goder pareva il ciel di lor ammelle: ohsettentrional vedovo sito, poi che privato se'di mirar quelle!" ("Me virei direita, reparando no outro

    polo, e vi quatro estrelas nunca vistas desde os primeiros humanos. Gozar parecia o cu com seusresplendores. Oh septentrin, que triste lugar eres, pois que te ves privado de ver-las!"). O Purgatorio,Canto I. A Divina Comedia. Para Dante, a Terra, segundo o sistema de Ptolomeo, est imvil. A seu redorgiram as esferas celestes e com elas o Sol, os planetas e as estrelas. No poema estas so as direes domundo: ao norte, Jerusalm sobre o abismo infernal; ao sul, nas antpodas de Jerusalm, a montanha dopurgatrio; ao este, o Ganges; ao oeste, o estreito de Gibraltar. O inferno e o purgatrio esto na Terra,um em forma de abismo, o outro em forma de montanha, em cuja cspide est o paraso terrenal. Aimagen Tolomeica seguir vigente ainda depois da publicao de Revolutionibus orbium coelestium, deCoprnico en 1543. Como este negava que a Terra fosse centro do universo, sua concepo foi resistida vigorosamente. Em 1609 Galileu introduziu a lente astronmica e conrmou a teoria heliocntrica deCoprnico, mas ainda passaram vrias dcadas para que se cimentara a nova viso da realidade.

    13. "O Chilam Balam de Chumayel. Procede do povo de Chumayel, Yucatn. Foi propriedade do Sr.

    Obispo Crescencio Carrillo e Ancona. En 1868, sendo 'ja propiedade deste, foi copiado a mo pelo Dr.Berendt e em 1887 foi fotografado por Teoberto Maler. George B. Gordon, diretor do Museu daUniversidade de Pennsylvania, o fotografou e editou em forma facsimilar em 1913. Passou BibliotecaCepeda de Mrida em 1915 donde foi substrado juntamente com outros manuscritos, antes de 1918. Em1938 apareceu a venda em Estados Unidos, pela soma de sete mil dlares. Mais tarde, foi de novooferecido para venda ao Dr. Sylvanus G. Morley pela soma de cinco mil dlares. Partes dele foramtraduzidas e publicadas desde 1882, mas a primeira traduo completa foi a que publicou Antonio MdizBolio em Costa Rica em 1930, em espanhol. A segunda, em ingls, foi feita por Ralph L. Roys quem apublicou em 1933." O Livro dos Livros de Chilam Balam. Mxico. Fundo de Cultura Economica. 1963,p. 13.

    14. "Os chamados Livros de Chilam Balam formam uma das seces mais importantes da literaturaindgena americana. Foram redigidos depois da conquista espanhola, e por isso sua escritura e sua formamaterial so europeias. Quer dizer, sua escritura a que os frades espanhois adaptaram fonologa dalingua maya de Yucatn e o papel usado -pelo menos nas cpias agora existentes- tambm europeu,

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    formando cadernos. Alguns, seno todos, tiveram capas de couro... Como se ve, a diversidade de seucontedo abarca todas as fases culturais pelas que foi passando o povo maya de Yucatn at que esses livroscessaram de compilar-se... induditvel que uma grande parte de seus textos religiosos e histricospuramente nativos provem dos antigos livros hieroglfos... No sabemos desde quando vieram a sechamar Livros de Chilam Balam. Atualmente este nome no consta como ttulo original de nenhum livro,ainda que Po Prez assenta em uma de suas transcries: 'At aqu termina o livro intitulado

    Chilambalam que se conservou no povo de Man... (cdice Prez, Ms., p. 137)'. De todos modos, o nome j a denominao tcnica aceita para designar este tipo de livros yucatecos... Supomos que os Livros deChilam Balam chegaram a organizar-se e multiplicar-se, assim: Algum sacerdote (ou vrios sacerdotessimultneamente) receberiam instrues dos frades, aprendendo a ler e escrever na sua prpria lingua.Aproveitando esta nova adquisio de sua cultura, transcreveriam textos religiosos e histricos contidos emseus livros hieroglcos incluindo os das predies de Chilam Balam. De uma ou vrias fontes sairiamcpias que passariam a mos dos sacerdotes nativos de outros povos, vindo assm a incluir em suadenominao o nome do lugar de procedncia: Chumayel, Man, Tizimn, etc. O tempo destruiria oslivros materialmente e destruiria tambm o entendimento que seus curadores deveram ter de seucontedo, ao modicar sua propria cultura. Assim que as cpias hoje existentes no so as originais dosculo XVI em seus textos de fundo, seno cpias de cpias muito posteriores, algumas do sculo XVII eoutras ainda do presente sculo. Grande parte destes textos, que chamamos: de fundo, aparecem repetidosuma ou mais vezes nos Livros, mas em cada ocasio as verses no so idnticas, pelas razes apontadas".Op. Cit. p. 9 e sgs.

    15. So muitos os estudiosos, pensadores e cientstas que se inspiraram nos ensinamentos da historia. Isto,nos escritores de ciencia-cco foi particularmente notvel. Basta um exemplo: Ray Bradbury.Seguramente, este autor, ao escrever suas Crnicas Marcianas recebeu a inuncia de vrios escritores decontos fantsticos. Tambm so muito claros nele os impactos dos grandes descobrimentos martimos eterrestres. Bradbury se preocupou em seu livro por mostrar as consequencias perniciosas do encontroentre culturas (em seu caso entre a marciana e a terrquea), inspirndo-se nos fatos como os acontecidosem Guatemala logo da chegada dos europeos, quando uma epidemia de varola dizimou aos grupos mayasde uma rea importante, situao esta que o novelista recria como a praga de variola que, levada pelosterrqueos, acaba com os marcianos (diferente enfermidade terrestre que mata aos marcianos invasoresna La Guerra dos Mundos, de H. G. Wells). A primeira edio dee Martian Chronicles de 1946,

    posterior em treze anos traduo completa ao ingls dos livros de Chilam Balam. O sonho profticoreferido por um dos marcianos anunciando a chegada dos primeiros seres humanos, faz recordar os dizeresdas profecas mayas supostamente registradas antes do descobrimento de Amrica por parte dos europeus.Tanto os mayas como os marcianos anunciam em suas profecas que os estrangeiros esto muito prximos,a uma jornada de distncia e tambm em ambos os casos se discorre sobre as caractersticas fsicas dosinvasores. Os estranhos livros sonoros que "lem" os marcianos lembram os livros pintados ou livroshieroglcos dos mayas. Por ltimo as mscaras, s que so adeptos os miembros de ambas culturas,conrmam o jogo de imgens de Bradbury inspirado pela literatura maya.

    16. Referncia ao lme "Christopher Columbuse Discovery", produzido e dirigido em 1992 por JohnGlen.

    17. Colombo havia imaginado que era possivel levantar 50.000 soldados e 5.000 cabalos para o resgate doSanto Sepulcro, chegando a pedir permisso aos reis de Espaa para formar uma cruzada que expulsaria

    aos musulmanos de Jerusalm. Com o tempo ele foi abandonando essa idia para concentrar-se na ltimaetapa de sua carreira de descobrimentos. Na quarta e ltima viagem para Amrica, partiu de Cdiz em 9de Mayo de 1502.

    O BOSQUE DE BOMARZO

    Bomarzo.1 A Opera.

    Antes de correr-se o telo, a voz do menino pastor inunda a sala:

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    "No me troco, em minha pobreza, pelo duque de Bomarzo. Tem rebanho de rochas e de ovelhas meurebanho. Com o que meu me basta, com esta paz de Bomarzo, a doce voz do arroio, das cigarras ocanto..."

    H um ato I, cena III, chamado "O horscopo". Mais adiante, a cena de "A alquimia" e, por ltimo, a de"O parque dos monstros" onde aparece uma enorme e grotesca cara talhada em pedra. Ento, um bartonodene a situao nesta estrofe:

    " noite para amar, como nenhuma. Para morrer tambm, pois tudo treme com o mistrio das horasnicas. E os monstros enormes que meu irmo manda esculpir em pedras taciturnas, (3) aproximam-se aquem ouse andar pela espessura."

    Noticias sobre o parque

    Perto de Viterbo, a cem kilmetros de Roma, existe um bosque hoje publicitado como "Parco dei Mostri".chegam a visitar-lo diversos tipos de turistas. No falta quem se acerque atrado pela mstica do lugar, jque em algum momento chegou at eles um rumor fomentado por comentrios boca a boca, artigos jornalsticos e programas televisivos. O ncleo de idias mais ou menos este: "O bosque sagrado deBomarzo foi criado por um senhor Orsini no S. XVI. A concepo do parque netamente esotrica e

    quem sabe caminhar ordenadamente entre seus monumentos, realiza uma transformao interna similar que efetuaram os alquimistas em seus laboratrios."

    O Sacro Bosco de Vicino Orsini passa, em 1645, para a famlia della Rovere. Daquela poca s seconservam alguns desenhos sem comentrios (4). Depois de um silencio que dura at 1845, reaparece oparque em mos da famlia Borghese. Em 1953 um artigo jornalstico chama a ateno sobre o Bosque.Em 1955 se publicam vrios estudos. Em 1954 Giovanni Bettini adquire o prdio, fazendo importantesmodicaes ao tirar as muralhas limtrofes, esboar caminhos internos e modicar as posies dosmonumentos (as esnges, os obeliscos e outros). Logo de restaurar algumas esculturas, o parque habilitado ao pblico. Em 1955 um grupo de professores da Facolt di Architettura di Roma faz umainvestigao de arquivos e um trabalho de campo, com levantamento de planos. Em 1958 Mujica Lainezvisita o lugar e em 1962 publica sua novela Bomarzo, que d lugar ao livreto da pera homnima escritaem colaborao com Ginastera e estreada em 1967. A partir desse momento, numerosos artigos, livros e

    lmes comeam a difundir uma imagem estereotipada do Sacro Bosco. claro que aparte dos trabalhosencarados com seriedade cientca, aparecem as fantasias que, inspirndo-se na novela e pera Bomarzo,foram interpretaes apoiadas em um tipo de Psicologia profunda que foi popular na dcada de '70.

    O lugar

    O Sacro Bosco se encontra ao p do povoado de Bomarzo. Franqueando uma entrada se apresenta ante osolhos um bosque conservado em estado "selvagem", matizado por algumas conferas e umas poucasespcies cultivadas. Seguramente, este bosque na poca de Orsini se apresentava muito parecido ao deNemi, bastante prximo, no qual se levantava o santurio de Diana Nemorensis ou Diana do Bosque.Como o de Nemi, mostrava numerosos robles salpicados com o sagrado murdago do qual Eneas cortouum ramo dourado para poder entrar aos infernos. Mas h mais que variedade arbrea, arroios, vales,construes e pedras esculpidas. H, sobretudo, um ambiente que est regido pela esttica maneirista na

    que o jardim renascentista despersonalizado j no tem lugar. Aqui, agora realada a experincia pessoal.Neste bosque a unidade visual e a coerncia do espao se esfumaaram. Pe-se no mesmo nvel deimportncia os lugares que ocupam posies opostas na imaginaria da poca. Deste modo, cus e infernospodem coexistir com toda naturalidade. Isto se faz manifesto na estaturia que deriva de guras esculpidasno lugar, aproveitando as rochas que j existem. O artista tomar os elementos que esto mo eaproveitar as condies topogrcas para desenhar seu jardim. Ficar de manifesto uma contnuaalegorizao inspirada em mitos e lendas que causam "maravilha" e assombro no espectador. Aqui mudouo sistema de ideao relacionado ao geometrismo, o equilbrio e a racionalidade que poucos anos antesdominava nos passeios, jardins e vilas da Europa cultivada.

    Para quem esteja interessado em compreender a formao e o processo de imagens mticas profundasoriginadas a partir do Humanismo ocidental e que chegam at nossos dias, este bosque resultarparadigmtico. Haver que resgatar as fontes de inspirao nas que abrevaram Vicino Orsini e os artistas

    que trabalharam em Bomarzo para compreender os signicados de esnges, ogros, semideuses e animaisfabulosos que povoam o lugar.

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    Antecedentes bibliogrcos

    Uma primeira noticia bibliogrca da conta das cartas cruzadas entre Pierfrancesco Orsini e o alquimistafrancs, Jean Drouet. Os correspondentes eram conhecedores de Amadigi, de Bernardo Tasso y OrlandoFurioso, de Ariosto. Mas aqueles homens consideraram por sobre toda outra literatura, esse estranho livrointitulado Hypnerotomachia Polili e que foi uma das fontes mais importantes de uma profusa produoliterria, pictrica e escultrica. Ademais, sua inuncia vai se fazer sentir em numerosas produesarquitetnicas e at no desenho de jardins. Devemos ter em conta a primeira edio veneziana de 1499,um in-folio ilustrado com 171 gravados em madeira nos que se pode observar a representao plstica dasdescries do texto. Tomando o primeiro captulo do Sonho de Polilo (luta de amor em sonhos dePollo), ilustrado pelo primeiro gravado, vemos a gura do protagonista entrando no bosque. O texto vemem nossa ajuda: "...duras encinas silvestres, fortes robles e encinas cheias de belhotas e de ramas toabundantes que no permitiam chegar completamente os gratos raios do sol ao solo coalhado de orvalho".Assim vai continuando a abarrotada descrio do livro, at chegar a interminveis encontros (ilustradospelos gravados), com construes abandonadas, pirmides ao estilo egpcio, cpulas, torres e pantees,templos e obeliscos. Tambm aparecem grandes nforas e vasos gigantes; rvores maravilhosas, mquinas eengenhos incompreensveis. bvio que elefantes, cavalos alados e drages no deixam de apresentar-se.As procisses, cerimnias e rituais se sucedem mostrando donzelas e efebos dispostos prtica dareligiosidade pag e aos lances amorosos. claro que tambm esto os transformismos do sonho de

    Polilo, que apresenta a sua amada Polia nas opostas facetas da mstica e da criminalidade.Tambm jogam um importante papel os hierglifos que so comentados extravagantemente. Eis aqui umexemplo: "Quando por m regressei praa, vi um pedestal de prdo, dignssimamente cinzeladoarredor, estes hierglifos: primeiro um bucrneo com dois instrumentos agrcolas amarrados aos chifres; eum altar sustentado sobre dois ps de um macho cabro e com uma chama ardente encima, e em sua frenteum olho e um abutre, logo uma jofaina e umaguamanil... eram estes hierglifos escrituras realizadas emtima escultura. Meditei sobre estas antiqssimas e sagradas escrituras e as interpretei assim: EXLABORE DEO NATVRAE SACRIFICA LIBERALITER, PAVLATIM REDVCES ANIMVMDEO SVBIECTUM. FIRMAM CVSTODIAM VITAE TVAE MISERICORDITERGVBERNANDO TENEBIT, INCOLVMENQVE SERVABIT".14

    Se bem o Sonho de Polilo a fonte bibliogrca imediata que serve de inspirao aos artces do bosque

    de Bomarzo, a imaginria desse livro tem, a sua vez, antecedentes muito longnquos. Com respeito aoshierglifos comentados mais acima, devemos destacar que j em 1422 se havia comeado a difundir osHieroglyphica constituindo-se em uma moda escrever, pintar e esculpir nesse estilo carregado de alegoriase de signos, em muitos casos indecifrveis. Tal vez uma das melhores expresses da arte hieroglca quepodamos encontrar seja "O Arco Triunfal de Maximiliano" gravado em madeira por Durero em 1515.Assim pois no Sonho de Polilo, como em tantas obras at entrado o sculo XIX (e ainda hoje nos textosocultistas), seguiram tendo-se em conta as interpretaes hieroglcas baseadas nos Hieroglyphica quecaram em total desprestgio quando se decifrou efetivamente a linguagem egpcia em 1822.

    A bibliograa inspiradora dos artces do Sacro Bosco, muito extensa e, no se limita ao Sonho dePolilo seno que est ligada indissoluvelmente s produes dos humanistas do sculo XV inuenciadospelo pensamento bizantino e pelo redescobrimento do acervo alexandrino do sculo III. Por outra parte,no somente concorre aqui uma abundante literatura seno uma tradio oral que passa atravs dos

    arquitetos, desenhistas e escultores.O bosque

    Temos em nossas mos um catlogo, quase um inventrio, que d conta dos objetos "maravilhosos" doBosque. Ali se menciona a umas esnges; ao monumento Tripla Luz; Gigantomaquia; s harpias; atartaruga gigante; o co Cerbero; o elefante rematado em uma torre; o Pgaso e o drago fazendo frente auma fera. Tambm se mencionam os lugares sagrados: a fonte de Netuno; a torre inclinada de meditao;a caverna das ninfas; a fonte da vida. Nesse material preparado para orientar a ordem das fotograas quedeve tomar o turista, tambm se discorre sobre a luz do lugar; sobre a vegetao;os arroios; os planosascendentes e descendentes; as escadarias; as grutas articiais os passeios das nforas alinhadas... Bem valea pena destinar uma manh a ver com cuidado esse esforo realizado h mais de quatrocentos anos. Tambm ser interessante seguir a um grupo de visitantes enquanto escuta ao guia que disserta sobre ascerimnias mgicas que se realizavam no lugar, sobre os alquimistas que, fazendo um recorrido inicitico,terminavam adquirindo um conhecimento inefvel.

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    Chegaremos ao bosque bordejando um arroio. Apresentar-se um rio, uma ponte e uma porta almenadaque ostenta o escudo dos Orsini. Entraremos ao espao que Pierfrancesco chamou em vrias de suascartas, "El Sacro Bosco".

    Duas "esnges ginocfalas" enfrentadas recebem ao visitante. As criaturas fabulosas, repousando sobreseus pedestais, apresentam suas adivinhaes escritas em pedra. Mas eis aqui nossa primeira surpresa. Nose trata das clssicas adivinhaes que apresentam esses monstros. No so marcados de profundidadeseno como de cartazes publicitrios redigidos com o gosto e estilo da poca. Uma esnge nos invita aresponder a seu exigente reclamo: "TU CH'ENTRI QUI CON MENTE PARTE A PARTE ETDIMMI POI SE TANTE MARAVIGLIE SIEN FATTE PER INGANNO O PUR PER ARTE".(19) A inscrio da outra esnge diz: "CHI CON CIGLIA INARCATE ET LABRA STRETTENON VA PER QUESTO LOCO MANCO AMMIRA LE FAMOSE DEL MONDO MOLISETTE". Trata-se de uma reconveno e um reclamo feito "seriedade". De passo, se menciona s setemaravilhas do mundo deixando que associemos com a oitava. Respiramos aliviados ao compreender queh ali um humor desmanhado, no isento de petulncia, mas distanciado da pesada solenidade. Vendo isto,nada melhor que seguir buscando as mensagens que nos d, diretamente e sem intermediao de teoriasinterpretativas, o artce do Bosque.

    Encontrando a "luta entre gigantes", lemos em uma esteira de pedra colocada esquerda do monumento:"SE RODI ALTIER GIA FU DEL SUO COLOSSO PUR DE QUEST IL MIO BOSCO ANCO SIGLORIA E PER PIU NON POTER FO QUANTO POSSO". Um caso mais de autogloricao.

    No chamado "ninfeo", encontramos uma inscrio, desafortunadamente muito apagada pelo passo dotempo. Somente podemos resgatar estas palavras: "L'ANTRO LA FONTE IL LI... D'OGNI OSCURPENSIER...".

    E buscando novas inscries chegamos ao "teatro" que, como em todo jardim romano importante nopodia faltar. No proscenio se pode ler com diculdade: "PER SIMIL VANITA MI SON AC...(CORDA)...TO D'ONORARE...". Ao p desse cenrio foram colocadas partes de dois obeliscos queforam desenterrados recentemente. Um deles diz: "VICINO ORSINO NEL MDLII". O outro anuncia"SOL PER SFOGARE IL CORE".

    Em uma urna prxima "fonte de Netuno" uma inscrio diz: "NOTTE ET GIORNO NOI SIAM

    VIGILI ET PRONTE A GUARDAR DOGNI INGIURIA QUESTA FONTE". E em outra:"FONTE NON FU TRA CHINGUARDIA SIA DELLE PIU STRANE BELVE".

    Chegando ao "Orco", ao ogro, vemos no lbio superior do monstro, esta lenda: "OGNI PENSIEROVOLA".

    H por ali uma "banca etrusca" que em seu espaldar diz: "VOI CHE PEL MONDO GITEERRANDO, VAGHI DI VEDER MARAVIGLIE ALTE ED STUPENDE VENITE QUA, DOVESON FACCIE HORRENDE ELEFANTI, LEONI, ORSI, ORCHI ET DRAGHI". um convitepara ver um parque de diverses.

    Uma inscrio na "rotonda" reitera a publicidade escancarada do Bosque: "CEDAN ET MEMPHI EOGNI ALTRA MARAVIGLIA CH EBBE GIAL MONDO IN PREGIO AL SACRO BOSCOCHE SOL SE STESSO ET NULL ALTRO SOMIGLIA".(31)

    As inscries nos permitiram compreender as intenes dos artces de Bomarzo. No mnimoentendemos as mensagens diretas de Pierfrancesco Orsini. Mas, assim exposto o interesse desta visita,camos ante um vazio de signicado...

    No incursionamos na imaginria deste Bosque porque aquela no de seu exclusivo patrimnio senoque se trata da paisagem comum em que se expressa a mstica do Renascimento. Uma mstica s vezesapenas esboada e s vezes, como neste caso, apresentada claramente.

    Se por necessidade epocal, ou por dar relevo engenhosa personalidade do senhor do lugar, os arquitetos,desenhistas e escultores, apelaram a temas alqumicos, astrolgicos e mistricos, no por isso podemospretender que aqueles artces soubessem cabalmente com que signicados estavam tratando. De todasmaneiras, as expresses dessa mstica esto a frente a nossos olhos e entre numerosos absurdos seacumulam materiais valiosos como sucede em alguns pores abandonados. Seguramente, crescer a

    informao (ou melhor, a desinformao) sobre o Bosque de Bomarzo. Poderemos consultar as bibliotecas virtuais, poderemos folhear os livros que desordenadamente falaro dos astros, da pedira losofal, at do

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    inconsciente coletivo, mas nada disso facilitar o acesso a um ambiente cultural complexo que comeou aforjar-se no sincretismo helenstico da antiga Alexandria.

    NOTAS AO BOSQUE DE BOMARZO

    1. Ao p do povoado de Bomarzo se encontra o Sacro Bosco criado pelo duque Pierfrancesco Orsini,apelidado Vicino (1523-1585). "Bomarzo" signica aproximadamente "Bom Marte". A denominao de"Sacro Bosco", foi acunhada depois da morte de Orsini.

    2. A pera Bomarzo, de Alberto Ginastera, sobre textos de Manuel Mujica Lainez, estreou a 19 deMaio de 1967 no Lisner Auditorium de Washington. Em conseqncia disso, em 18 de Julio de 1967, aMunicipalidade da cidade de Buenos Aires emitiu um decreto que excluiu a obra do repertrio do teatroColn, onde devia ser estreada poucos dias depois. Os termos do decreto foram estes: "Esta IntendnciaMunicipal recm pode tomar conhecimento cabal dos aspectos caractersticos de dito espetculo, emcujos quinze quadros se adverte permanentemente a referncia obsessiva ao sexo, violncia alucinao,acentuada pela posta em cena, a massa coral, os decorados, a coreograa e todos os demais elementosconcorrentes. O argumento da pea e sua posta em cena revelam achar-se renhidos com elementaresprincpios morais em matria de pudor sexual". Semelhante decreto foi celebrado por humoristas dedistintas latitudes e isso contribuiu a propagar a fama da obra. Estas iniciativas comunais, como porexemplo a resoluo da Municipalidade de Florncia que em 1910 decidiu vestir com uma folha deparreira ao David de Miguel Angel, costumam ser logo muito festejadas. Em 1970, A pera foiapresentada na pera de Kiel e de Zurich, dirigida pelo eminente Ferdinan Leitner. A partir dessas datas ,comea a crescer o interesse pelo parque de Bomarzo.

    3. Este o canto de Girolamo, irmo maior de Pierfrancesco Orsini. Em quanto aos "monstros enormesque meu irmo mandou esculpir" se sabe quem tomaram parte nas duas fases dos trabalhos escultricosque comearam em 1552 sendo logo interrompidos para ser retomados em 1564 at sua concluso em1573. Ainda no est sucientemente esclarecido quem foi o desenhista geral do parque. Em todo casohouve um encargo para o arquiteto Pirro Ligorio (recordado por seu projeto em 1550 dos jardins da vilad'Este em Tvoli).

    4. Se conservam duas tintas: uma, conhecida como "Buon Martio" (Vienna. Graphische Albertina.

    Portale e Urna. Cat. n. 27