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1988 “PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO” E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR “PRECAUTIONARY PRINCIPLE” AND CONSUMER PROTECTION Roberto Grassi Neto RESUMO Ambientalistas e entidades de consumidores têm questionado veementemente o emprego de novas tecnologias, especialmente no âmbito da agricultura, com relação à formação de cultivares a partir do emprego de sementes modificadas geneticamente a fim de reduzir ou eliminar a utilização de agrotóxicos. Ambas as técnicas de produção das sementes transgênicas atualmente comercializadas prestam-se a controvérsias, quer sejam produzidas pelo sistema denominado Roundup Ready (RR), que propõe a substituição de toda uma gama de pesticidas por uma única substância, o glifosato, quer pela técnica “Bt”, que modifica geneticamente a semente mediante inserção de genes de uma bactéria de solo para que passem a produzir “toxinas” letais aos insetos que delas se alimentem. Teme-se que a modificação genética possa não apenas acarretar prejuízos à saúde humana, como contaminar outros organismos pela alteração de sua herança genética, ou mesmo ensejar o surgimento de espécimes daninhos cada vez mais resistentes ao glifosato. É em meio a essa preocupante conjuntura que vem ganhando força a idéia de “precaução”, concebida como princípio jurídico com incidência direta tanto na área ambiental como no concernente ao consumidor, segundo o qual se deve assegurar elevado nível de proteção preventiva quanto à qualidade de produtos, nos casos em que os dados científicos disponíveis ainda não permitam uma completa avaliação de risco à saúde ao qual esteja ele sujeito. Embora o “princípio da precaução” tenha fundamento na Constituição Federal que assegura tanto a proteção ao consumidor como a mantença de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, os órgãos governamentais o tem ignorado na prática, mediante a edição de complexo normativo que perigosamente reputa “suficientes” mecanismos revelados, na prática, pífios na proteção ao consumidor e ao meio ambiente. O pragmatismo irônico dos raciocínios nos altos escalões governamentais tem deixado margem a dúvidas quanto à sua sinceridade, eis que considerar “a priori” alimentos geneticamente modificados na qualidade de mero mal menor diante da crise de alimentos parece mais atender aos interesses das multinacionais do que aos dos consumidores. Caberá ao Judiciário estabelecer limites, não apenas por via de efetiva reparação a danos eventualmente constatados, como pela imposição de sanções mais enérgicas a ações ou omissões governamentais lesivas ou, ainda, com âmbito conseqüencial mais amplo, mediante o reconhecimento formal de que diversos dispositivos da legislação atentam contra princípios basilares constitucionalmente assegurados. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP)

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1988

“PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO” E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

“PRECAUTIONARY PRINCIPLE” AND CONSUMER PROTECTION

Roberto Grassi Neto

RESUMO

Ambientalistas e entidades de consumidores têm questionado veementemente o emprego de novas tecnologias, especialmente no âmbito da agricultura, com relação à formação de cultivares a partir do emprego de sementes modificadas geneticamente a fim de reduzir ou eliminar a utilização de agrotóxicos. Ambas as técnicas de produção das sementes transgênicas atualmente comercializadas prestam-se a controvérsias, quer sejam produzidas pelo sistema denominado Roundup Ready (RR), que propõe a substituição de toda uma gama de pesticidas por uma única substância, o glifosato, quer pela técnica “Bt”, que modifica geneticamente a semente mediante inserção de genes de uma bactéria de solo para que passem a produzir “toxinas” letais aos insetos que delas se alimentem. Teme-se que a modificação genética possa não apenas acarretar prejuízos à saúde humana, como contaminar outros organismos pela alteração de sua herança genética, ou mesmo ensejar o surgimento de espécimes daninhos cada vez mais resistentes ao glifosato. É em meio a essa preocupante conjuntura que vem ganhando força a idéia de “precaução”, concebida como princípio jurídico com incidência direta tanto na área ambiental como no concernente ao consumidor, segundo o qual se deve assegurar elevado nível de proteção preventiva quanto à qualidade de produtos, nos casos em que os dados científicos disponíveis ainda não permitam uma completa avaliação de risco à saúde ao qual esteja ele sujeito. Embora o “princípio da precaução” tenha fundamento na Constituição Federal que assegura tanto a proteção ao consumidor como a mantença de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, os órgãos governamentais o tem ignorado na prática, mediante a edição de complexo normativo que perigosamente reputa “suficientes” mecanismos revelados, na prática, pífios na proteção ao consumidor e ao meio ambiente. O pragmatismo irônico dos raciocínios nos altos escalões governamentais tem deixado margem a dúvidas quanto à sua sinceridade, eis que considerar “a priori” alimentos geneticamente modificados na qualidade de mero mal menor diante da crise de alimentos parece mais atender aos interesses das multinacionais do que aos dos consumidores. Caberá ao Judiciário estabelecer limites, não apenas por via de efetiva reparação a danos eventualmente constatados, como pela imposição de sanções mais enérgicas a ações ou omissões governamentais lesivas ou, ainda, com âmbito conseqüencial mais amplo, mediante o reconhecimento formal de que diversos dispositivos da legislação atentam contra princípios basilares constitucionalmente assegurados.

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP)

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PALAVRAS-CHAVES: DIREITO DO CONSUMIDOR; DIREITO AMBIENTAL; CONSUMIDOR; MEIO AMBIENTE: PRINCÍPIOS DE DIREITO; PRINCÍPIO DE DIREITO DO CONSUMIDOR; PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO; RESPONSABILIDADE CIVIL DO FORNECEDOR; ACIDENTE DE CONSUMO; ALIMENTOS GENETICAMENTE MODIFICADOS

ABSTRACT

Environmentalists and consumer entities have questioned the use of new technologies vehemently, especially in agriculture, with regard to the formation of new cultivars as a result of the employment of genetically modified seeds to reduce or eliminate the use of pesticides. Both techniques of transgenic seed manipulation currently commercialized are controversial, whether produced according to the so-called Roundup Ready (RR) system that proposes the substitution of an entire array of pesticides for a single substance, glyphosate, or under the “Bt” technique that genetically modifies the seed upon the insertion of soil bacteria genes so that they start to produce “toxins” that are lethal to the insects that feed from them. The fear is that such genetic modification may not only result in damages to human health, but also contaminate other organisms due to its altered genetic inheritance, or even give rise to harmful specimens increasingly resistant to glyphosate.In this concerning scenario the legal “precautionary” idea has gained strength, since it was conceived as a principle with reflexes both in the environmental area and consumption relations, and whereby the highest level of preventive protection should be warranted to consumers regarding product quality in such situations where available scientific data do not yet allow for a complete assessment of the risks to which consumers’ health are subject. Although the precautionary principle is grounded on the Brazilian Federal Constitution that warrants protection to consumers as the right to an ecologically balanced environment, governmental agencies practically ignore it upon issuing complex rules that considers deceptively sufficient mechanisms that, in practice, are innocuous. The contemptible pragmatism in the reasoning of the high governmental ranks has given rise to doubts about their sincerity, since considering, a priori, genetically modified food as a minor evil before the global food crisis seems to address the interests of multinational companies rather than consumers.The Judiciary will be incumbent on setting forth limits, not only by the effective redress of damages contingently ascertained, but by the imposition of severe repression to harmful actions or inactions already perpetrated by the government or other entities, even jointly, or by the formal declaration that several legal provisions contradict bedrock principles warranted by the Constitution.

KEYWORDS: CONSUMER RIGHTS; ENVIRONMENTAL LAW; CONSUMER; ENVIRONMENT; LEGAL PRINCIPLE; PRINCIPLE OF CONSUMER RIGHTS; PRECAUTIONARY PRINCIPLE; SUPPLIER LIABILITY; CONSUMPTION ACCIDENT; GENETICALLY MODIFIED FOOD PRODUCTS

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01) O problemático emprego da tecnologia transgênica: panacéia segura contra pragas das lavouras ou solução inconseqüente que expõe consumidor e meio ambiente a riscos desnecessários?

O surgimento de novas tecnologias, especialmente no âmbito da agricultura, tem ensejado acalorados debates, tanto por parte de ambientalistas como de entidades de consumidores, com relação à formação de cultivares[1] a partir do emprego de sementes que teriam sido geneticamente modificadas a fim de reduzir ou eliminar a utilização de agrotóxicos.

As sementes transgênicas atualmente comercializadas são produzidas em função de dois escopos diversos. O primeiro deles é permitir a substituição de toda uma gama de pesticidas por um único agrotóxico, o glifosato. Mencionada técnica interventiva é denominada Roundup Ready (RR), sendo adotada em cerca de 75% da produção mundial de transgênicos. A segunda modalidade operacional, denominada “Bt”, é empregada em 17% dos transgênicos produzidos, e pretende a redução do uso de agrotóxicos pela produção de “plantas inseticidas”. Os restantes 8% das plantas transgênicas empregam uma combinação dos dois sistemas.

A denominação decorre do fato das plantas, após o recebimento dos genes de uma bactéria do solo mediante emprego de engenharia genética, passarem a produzir toxinas que causam a morte por envenenamento dos insetos que delas se alimentem.

Mencionados benefícios são largamente contestados tanto por ambientalistas, como pelos próprios agricultores.

No âmbito do consumo alimentar há a preocupação de que os genes de bactérias introduzidos nos transgênicos possam ser prejudiciais à saúde humana[2].

Do ponto de vista ambiental, tem-se associado a necessidade de maior uso de herbicida ao surgimento de ervas daninhas tolerantes ao glifosato, fenômeno presente nos cultivos convencionais de soja e que é potencializado nas lavouras transgênicas. Igualmente preocupantes são a constatação da inveracidade das afirmações no sentido de que o glifosato seria biodegradável[3] e a possibilidade de ocorrência do chamado fluxo gênico, fenômeno pelo qual os genes introduzidos em transgênicos se espalham, contaminando outros organismos pela alteração de sua herança genética.

Sob o prisma dos agricultores que empregam sementes transgênicas, a maior crítica consiste no fato de ficarem à mercê de empresas detentoras da tecnologia empregada, como Monsanto e Syngenta[4]. Para os demais produtores, que utilizam sementes convencionais, os perigos são a contaminação e a possibilidade de serem obrigados ao pagamento de royalties quando a safra não é segregada ou quando há erros nos testes de transgenia[5].

Em meio à preocupante conjuntura acima descrita, vem ganhando força a noção de “precaução”, erigida a princípio jurídico cuja relevância é de tal ordem que tem sido objeto de estudos, especialmente no âmbito da preservação do meio ambiente e da proteção ao consumidor.

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02) Noção de Princípios de Direito

A abordagem da noção e do alcance do denominado “princípio da precaução”, bem como de sua correlação com a produção de alimentos geneticamente modificados, não poderia ser efetuada a contento sem que, antes, fosse procedida à análise da problemática dos Princípios de Direito, magnificamente sintetizada por Norberto BOBBIO em torno de três questões, cujas respostas assumirão contornos completamente diversos, consoante a escola de pensamento a que se filie o intérprete da lei: 1a.- os princípios gerais são normas jurídicas? 2a.- originam-se dentro ou fora do sistema? 3a.- qual a autoridade de que são investidos diante das outras normas do sistema?[6]

Pela ótica Jusnaturalista, princípios de direito não são normas. Tendo sua origem no Direito Natural, estariam eles situados em um plano superior, fora do sistema normativo, sendo passíveis de aplicação meramente supletiva, na medida em que houvesse omissão legislativa[7].

A doutrina Positivista, por sua vez, assevera que princípios de direito são normas. Tendo sua origem no sistema, diferenciar-se-iam das demais normas – denominadas regras – pela sua natureza mais genérica e indefinida, bem como por seu caráter diretivo[8].

Consoante a Escola Pós-positivista, por fim, os princípios não são normas; embora integrem a estrutura do sistema normativo, conferindo-lhe coesão, os princípios não se confundiriam com as normas, dado o fato de sua natureza jurídica ser diversa, desempenhando, consoante a elegante terminologia de Larenz[9], a função de “pautas diretivas de normação jurídica”.

No Brasil despontam sob o prisma pós-positivista conceitos de princípios como o proposto por TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR, que afasta, de imediato, sua natureza normativa: “tratam-se não de normas, mas de princípios. Ou seja, não são elementos do repertório do sistema, mas fazem parte de suas regras estruturais, dizem respeito à relação entre as normas no sistema, ao qual conferem coesão” [10].

Não menos precisa, a apurada proposição de CELSO A. BANDEIRA DE MELLO considera o princípio de direito como sendo o “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” [11].

A diversidade dos enfoques de cada corrente é de tal ordem que, mesmo em análise meramente superficial, é possível constatar ter sido a previsão contida no art. 4° da LICC elaborada em obediência à concepção jusnaturalista de Direito — predominante em 1942, mas atualmente considerada ultrapassada —, segundo a qual os princípios de direito são concebidos enquanto fonte meramente supletiva ao legislador, a incidir tão

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somente se o intérprete não encontrar a solução para determinada situação dentro do sistema.

A partir de meados do século XX, com efeito, passou a prevalecer de modo geral a visão positivista, segundo a qual os princípios são normas diretivas fundamentais de caráter cogente, genérico, indefinido e indireto, que desempenham papel de primazia sobre as demais. Atualmente mencionada concepção vem dando lugar ao pensamento dito pós-positivista, segundo o qual mais adequado seria dizer-se simplesmente que os princípios desempenham papel de primazia sobre as normas — e não sobre outras normas —, dada sua natureza não normativa, de elemento aglutinador que apenas formalmente integra o sistema.

03) Princípios de Direito do Consumidor

No Brasil, as relações de consumo vêm reguladas basicamente na Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, denominado “Código de Defesa do Consumidor”, que “dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências”.

Considerado no mundo todo como verdadeiro paradigma em sua área, o C.D.C. brasileiro é diploma legal dos mais modernos, cujo texto – ao contrário do ocorrido com outros existentes na legislação comparada, como o Code de la Consommmation francês, mera compilação de textos legais procedida por determinação da então Ministra do Consumo – decorre de vontade expressa manifestada pela Assembléia Nacional Constituinte no sentido de ser realizado efetivo trabalho de codificação dispondo de modo abrangente sobre a matéria.

A proteção ao consumidor é abordada sob enfoques diversos pela Constituição Federal Brasileira em três passagens distintas: na primeira delas, a proteção ao consumidor vem relacionada em meio a vasto rol de direitos fundamentais (art. 5º, XXXII, da C.F. de 1988). É ela igualmente considerada como sendo um dos princípios gerais da atividade econômica, constantes do capítulo I, do Título VII, que trata da ordem econômica e financeira (art. 170, V, da Constituição Federal). O tema foi, por fim, objeto do artigo 48 das Disposições Transitórias, no qual ficou previsto que o Congresso, no prazo de cento e vinte dias contados da promulgação da Constituição, elaboraria um Código de Defesa do Consumidor.

É por tal razão que a melhor doutrina tem considerado a “defesa do consumidor” como sendo “Princípio Normativo Fundamental Expresso na Constituição", ou simplesmente “Princípio Fundamental Expresso na Constituição", se adotarmos a visão pós-positivista.

A proteção ao consumidor é princípio “fundamental” na medida em que, por um lado, não está lastreado em outros princípios ou normas de caráter axiológico que lhe sejam superiores; o adjetivo, por outro lado, decorre do fato de que se prestam, ao mesmo tempo, a direcionar, inspirar e servir de fundamento axiológico para as normas que integram o sistema[12].

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Seu caráter “expresso”, por sua vez, advém da circunstância de vir formulado explicitamente em dispositivo constitucional, podendo ser obtido mediante emprego de simples hermenêutica[13]. Observe-se, outrossim, ser irrelevante o fato de vir ou não sob a rubrica formal de “Princípio de Direito” para ser como tal considerado, bastando, para tanto, que possa ser encontrado em dispositivo específico do corpo normativo.

Com fundamento em mencionado “Princípio Fundamental de Defesa do Consumidor”, inúmeros outros princípios são passíveis de serem extraídos do sistema normativo infraconstitucional. São os denominados “princípios decorrentes”, “princípios derivados” ou “princípios imanentes”, na medida em que se destinam à implementação de dito princípio constitucional e dele obter sua força normativa.

Mencionados princípios de Direito do Consumidor serão princípios decorrentes expressos se corresponderem a elementos aglutinadores do microssistema do Consumidor, de caráter genérico e diretivo, e forem estatuídos de modo explícito em sede infraconstitucional[14].

Terão, contudo, natureza implícita se, apesar de não virem formalmente explicitados no microssistema do Consumidor, mantiverem sua função de elementos de aglutinação, retirando sua força imperativa do fato de decorrerem de outros princípios expressos ou do próprio sistema positivo. Sendo basicamente construídos pelo intérprete[15], os princípios implícitos podem, pois, ser extraídos de elementos “fragmentados”, contidos em disposições diversas e elaborados indutivamente[16].

Os Princípios de Direito do Consumidor por nós qualificados como “decorrentes” podem ser organizados de modo sistemático em sete grupos, obedecendo, para tanto, a critério que mescla a afinidade dos temas entre si com parâmetros cronológicos no natural evoluir da relação de consumo[17].

Dentre os princípios jurídicos pertinentes à fase anterior à formação do contrato nas relações de consumo, tem ganhado destaque o que traduz a idéia de “precaução”, normalmente associada mais à proteção do meio ambiente do que às relações de consumo, que decorre do reconhecimento da necessidade em serem tutelados diversos direitos extrapatrimoniais do consumidor, dentre os quais sua segurança e sua saúde.

04) Hierarquia dos Princípios no Microssistema normativo do Consumidor

Uma vez tendo sido superadas as discussões versando a conceituação dos princípios, sua respectiva relevância e natureza jurídica, resta-nos abordar, ainda que de modo sucinto, o problema relativo à extensão de sua imperatividade no seio do sistema jurídico.

Independentemente de desempenharem a função de elemento aglutinador do sistema ou de serem considerados normas genéricas de caráter “diretivo”, fato é que os “Princípios de Direito” impõem-se imperativamente, não mais sendo aceitável a idéia de sua utilização com caráter meramente subsidiário, quando da ocorrência de “lacuna”.

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Conquanto possa parecer paradoxal, o problema que ora se apresenta oferece particular relevância atual na realidade de países contemporâneos, nos quais a questão da eficácia dos princípios dentro do sistema normativo pode, por vezes, transbordar os limites dos campos da doutrina e da jurisprudência aplicada ao caso concreto, servindo antes como verdadeiro limite à atividade do legislador ordinário.

A questão é, de modo ilustrativo, suscitada por CLÁUDIA LIMA MARQUES que indaga, com propriedade — sem, porém, dar resposta peremptória — , se determinado princípio legal, por ser intrínseco ao sistema jurídico, seria passível de revogação por meio de simples norma ordinária: “podem normas legais, elaboradas sob o interesse de determinados grupos econômicos e agentes no mercado, realmente autorizar a atuação conforme a má-fé objetiva, na esperança de prejudicar o co-contratante que, por exemplo, esquecerá de inscrever seu filho exatamente um mês antes do nascimento ou simplesmente não poderá fazê-lo por acaso da natureza? Basta estipular por lei um caso de abuso do direito e este potencial abusivo desaparece, tomando-se jurídica a atuação objetivamente abusiva? Será possível submeter o Judiciário e os aplicadores da lei a dar aplicação e eficácia a estas novas normas legais, mesmo se contrárias aos princípios de nosso sistema, aos próprios princípios constitucionais da atividade econômica (art. 170 CF/88) e aos direitos básicos do cidadão (art. 5°, XXXII, CF/88)?” [18].

É lapidar a ponderação de MELLO a respeito do tema, no sentido de ser o desrespeito ao princípio “a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, consoante o escalão do princípio atingido, exatamente por representar insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada”.[19]

É com base em mencionada interação existente entre normas constitucionais e preceitos da Lei de Defesa do Consumidor que sustentamos dever repugnar à consciência jurídica eventual pretensão legislativa ordinária que porventura restrinja direito do consumidor, ainda que sob o pretexto de relevante interesse público; tal repugnância será ainda maior se a providência vier ex post facto e por medida provisória, destinada a atender interesses específicos, nem sempre especificados[20].

Por tal razão, correta a tese sustentando que o legislador ordinário pode apenas ampliar direitos previstos na Constituição Federal e na Lei de Defesa do Consumidor e nunca restringi-los.

O tema pareceria óbvio não fosse o lamentável suceder de situações de flagrante desrespeito à proteção do consumidor nos mais diversos setores, muitas das quais mediante vulneração ao princípio da precaução: assim ocorre com a segurança no transporte aéreo de passageiros; com a permissão de uso de pesticidas altamente tóxicos já banidos em países mais adiantados[21] ou com a liberação do plantio e comercialização da soja e do milho geneticamente modificados[22].

05) Noção de precaução enquanto princípio jurídico

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Em sua acepção vulgar, o vocábulo “precaução” [23] corresponde à providência antecipada que visa a prevenir um mal. Encontrada no direito alemão desde os anos 70 do século passado (Vorsorgeprinzip), a “precaução”, enquanto princípio jurídico, traduz a idéia, já àquela época magistralmente desenvolvida por juristas do porte de Eckard Rehbinder, da Universidade de Frankfurt, e de Gerd Winter, da Universidade de Bremen, de que não basta a proteção contra o perigo concreto, sendo imprescindível também a proteção contra o simples risco que, se não pode ser completamente excluído — por restar sempre a probabilidade lógica de um dano — deve ser minimizado[24].

Consoante ensinamento de TERESA ANCONA LOPEZ, “princípio da precaução” é “aquele que trata das diretrizes e valores do sistema de prevenção de riscos hipotéticos, coletivos ou individuais, que estão a ameaçar a sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes com o fito de prevenir o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza”[25].

No estrito âmbito do Direito do Consumidor, o “princípio da precaução” pode ser conceituado como sendo a diretriz normativa assecuratória de elevado nível de proteção preventiva ao consumidor quanto à qualidade de produtos, nos casos em que os dados científicos disponíveis ainda não permitam uma completa avaliação de risco à sua integridade física e à sua saúde[26].

O “princípio da precaução”, ora enfocado, foi reconhecido em várias convenções internacionais e figura designadamente no Acordo relativo às disposições sanitárias e fitossanitárias (SPS) concluído no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).

O “princípio da precaução”, conquanto não definido pelo legislador comunitário, é mencionado ao menos uma vez no Tratado CE (artigo 174), no título destinado a disciplinar a proteção ao meio ambiente. É entendimento pacífico, todavia, ser seu âmbito de aplicação, na prática, muito mais vasto, especificamente quando uma avaliação científica objetiva preliminar indica que há motivos razoáveis para suspeitar que efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou à proteção vegetal podem ser incompatíveis com o elevado nível de proteção escolhido para a Comunidade [27].

Na inexistência de definição legal, quer no Tratado CE, quer em outros textos comunitários, o Conselho da União Européia, por resolução de 13 de abril de 1999, solicitou à Comissão que elaborasse diretrizes claras e eficazes tendo em vista a sua aplicação. Como resposta, foi emitida a Comunicação da Comissão, de 02 de Fevereiro de 2000, que avalia respectivamente os fatores que desencadeiam o recurso ao princípio da precaução e as medidas que dele resultam.

Trata-se de documento cujo valor transcende os limites da União Européia, revestindo-se o conteúdo de seu texto de inegável relevância doutrinária, mesmo em países não-europeus, na medida em que a Comissão Européia procedeu a minuciosa análise na qual são identificados os fatores que desencadeiam o recurso ao princípio de precaução e são estabelecidas as medidas a serem tomadas, bem como as diretrizes que o norteiam.

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Ao cuidar dos fatores que desencadeiam o recurso ao “princípio da precaução”, a Comissão Européia entendeu que tal situação se inscreve no quadro geral de análise do risco; exigiu avaliação, gestão e comunicação do gravame possível, dando especial destaque à chamada “gestão do risco”, expressão eventualmente lastreadora da decisão a ser tomada.

Sublinhando que o “princípio da precaução” só pode ser aplicado na hipótese de razoável risco potencial, a Comissão, procurando evitar a eventual adoção de medidas arbitrárias, estipulou três condições a serem preenchidas: a) identificação dos efeitos potencialmente negativos, b) a avaliação dos dados científicos disponíveis, e c) a extensão da incerteza científica.

Relativamente às medidas resultantes do recurso ao princípio de precaução, a decisão de agir ou de não agir depende de opção política a ser adotada em função do nível de risco “aceitável” pela sociedade que tem que suportá-lo. Na hipótese da resposta adequada consistir em um agir sem esperar por mais informações científicas, poderão as autoridades competentes determinar a forma de ingerência estatal, dispondo, inclusive, sobre o financiamento de programa investigativo, sobre informação do público quanto aos efeitos negativos do produto, ou mesmo quanto a eventuais riscos inerentes ao procedimento do fornecedor.

A Comunicação da Comissão prevê, ainda, que três cautelas específicas deverão guiar o recurso ao princípio de precaução:

a) deverá basear-se numa avaliação científica tão completa quanto possível, determinando em cada fase o grau de incerteza científica;

b) a decisão de agir ou de não agir deverá ser precedida de avaliação do risco e das potenciais conseqüências da não ação;

c) os interessados deverão ter a possibilidade de participar do estudo com a maior transparência possível, tão logo os resultados da avaliação científica e/ou da avaliação do risco estejam disponíveis.

Além dessas cautelas específicas, aplicam-se seis diretrizes normativas gerais inerentes a uma boa gestão dos riscos sempre que o princípio de precaução seja invocado[28]:

a) proporcionalidade entre as medidas tomadas e o nível de proteção procurado;

b) isonomia, isto é, não-discriminação na aplicação das medidas (situações comparáveis não devem ser tratadas de forma diversa e situações diferentes não devem ser tratadas da mesma maneira);

c) coerência das medidas com as já tomadas em situações similares ou que utilizem abordagens similares;

d) exame das vantagens e desvantagens resultantes da ação ou da não ação;

e) reexame, à luz de possível evolução científica, das orientações similares anteriormente consagradas;

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f) capacidade para exigir que a introdução de produtos considerados perigosos no mercado dependa de autorização governamental, invertendo-se o ônus da prova, de modo a considerá-los a priori perigosos até que as empresas desenvolvam o trabalho científico necessário para demonstrar que são seguros.

A liberação intencional no ambiente de organismos geneticamente modificados[29] é atualmente regida, no âmbito europeu, pela Diretiva 2001/18/CE (revogada a Diretiva 90/220/CEE do Conselho), com a redação dada pela Diretiva 2008/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008[30].

A Diretiva 2001/18/CE foi posteriormente complementada pela edição do Regulamento (CE) n° 178/2002, de 28 de Janeiro de 2002, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu. Mencionado Regulamento contém princípios e normas gerais da legislação alimentar, “para garantir um elevado nível de proteção da saúde humana e dos interesses dos consumidores em relação aos gêneros alimentícios” (art. 1°); estabelece procedimentos em matéria de segurança dos gêneros alimentícios e; prevê, ainda, a criação da Autoridade Européia para a Segurança dos Alimentos. De acordo com o texto, esta última é objetivamente responsável por danos causados por si ou por seus agentes, sendo competente para dirimir eventual litígio o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias [31].

06) O princípio da precaução na legislação brasileira

No plano constitucional, apesar de não vir inscrito de modo expresso na Constituição Federal Brasileira de 1988, o “princípio da precaução” decorre tanto do Direito à Saúde como dos princípios de proteção ao consumidor e de proteção ao meio ambiente.

O direito à saúde vem expressamente previsto no artigo 6° da Constituição Federal Brasileira de 1988 que traz o rol dos denominados direitos sociais, decorrendo a proteção ao consumidor, como vimos anteriormente, do quanto disposto no seu art. 5°, XXXII.

A preocupação com a proteção ambiental contida na Constituição pátria, contudo, é meramente genérica. Reza o art. 225 da CF[32] que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbindo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para as presentes e futuras gerações, na medida em que se trata de bem de uso comum do povo, essencial à saúde e à qualidade de vida[33].

Em plana infraconstitucional, a disciplina do princípio da precaução é incompleta, embora venha expressamente mencionado pela nova lei de biossegurança (Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005), que regula a liberação de organismos geneticamente modificados no meio ambiente [34].

Consoante o novo texto legal, a elaboração de normas de segurança e a concepção de mecanismos de fiscalização concernente ao descarte de organismos geneticamente modificados deverão ter como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de

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biossegurança e biotecnologia; a proteção à vida e à saúde do homem, dos animais e das plantas; bem como o princípio da precaução, no que concerne à proteção do meio ambiente[35].

A Lei nº 11.105/2005 proíbe a destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados que estejam em desacordo com as normas nela estabelecidas, com aquelas editadas pela CTNBio ou com as emanadas dos órgãos e entidades de registro e fiscalização competentes[36]. No âmbito de atividades de pesquisa, a liberação no meio ambiente de OGM, ou de seus derivados, fica na dependência de decisão técnica favorável da CTNBio; nos casos de liberação comercial, de parecer técnico favorável da CTNBio; na hipótese da CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, de prévio licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável; em tendo havido avocação do respectivo processo, de prévia aprovação pelo Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS [37].

É prevista como infração administrativa toda ação ou omissão que importe na inobservância aos preceitos em tal diploma estabelecidos [38], constituindo, por sua vez, crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, a liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização [39].

Não há dúvida de que, mesmo à época da vigência da antiga lei de biossegurança, a “precaução” , como princípio, já havia ingressado em nosso sistema normativo, com força de lei federal, uma vez que Convenções internacionais concernentes à tutela do meio ambiente, subscritas e ratificadas pelo Brasil, a adotavam expressamente.

Nesse sentido, temos a “Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, a “Convenção da Diversidade Biológica” e a “Convenção Quadro sobre a mudança do Clima“. O texto da primeira — “Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” — estipula que “com o fim de proteger o meio ambiente, os Estados deverão aplicar amplamente o critério de precaução conforme suas capacidades”. Acrescenta, ainda, que, quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de certeza jurídica absoluta não deverá ser argüida como razão para postergar a adoção de medidas eficazes a impedir a degradação do meio ambiente[40].

No campo dos direitos do consumidor, todavia, diversamente do que ocorre no âmbito do direito ambiental, o acolhimento do “princípio da precaução” pelo legislador teria se dado de modo meramente implícito.

As relações de consumo foram certamente objeto de abordagem tanto pela lei de biossegurança de 1995, como pela de 2005. Em ambos os diplomas legais, contudo, a associação do conceito de “precaução” à idéia de proteção ao consumidor dá-se sempre de modo meramente indireto. Nesse aspecto, a nova lei de biossegurança é inclusive mais abrangente do que a legislação revogada, mas o novo texto está ainda longe de poder ser considerado satisfatório. Ampliou-se, por exemplo, seu âmbito de incidência, fazendo-se constar do art. 1° que as normas ali estabelecidas têm como propósito, dentre outros, disciplinar a segurança e os mecanismos de fiscalização sobre o consumo não apenas de organismos geneticamente modificados – OGM, como também de seus derivados. Leitura mais desavisada do mesmo dispositivo, contudo, pode prestar-se a equívocos extremamente graves. Com efeito, a menção expressa ao “princípio da

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1999

precaução”, introduzida pelo legislador de 2005, deu-se de modo infeliz, para dizer o mínimo, pois empregou redação que pode dar margem à falsa idéia de que se cuida de princípio cuja aplicação estaria limitada tão somente ao âmbito da preservação do meio ambiente.

A preocupação ambiental é certamente o foco central adotado pela lei de biossegurança, mas o “princípio da precaução” não deixa de corresponder igualmente a noção sempre subjacente à proteção do consumidor, uma vez que visa a resguardá-lo preventivamente contra a exposição de sua vida ou de sua saúde a riscos desnecessários, nos casos em que os estudos científicos existentes não sejam ainda conclusivos a respeito da segurança dos produtos a ele ofertados[41].

Não se pode, ainda, olvidar que o próprio Código de Defesa do Consumidor, mesmo não referindo expressamente o “princípio da precaução”, traz uma série de dispositivos que a ele são evidentemente relacionados ao enfocar a saúde e a segurança do consumidor. Reza o artigo 6° do Código de Defesa do Consumidor serem-lhe, dentre outros, direitos básicos: a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.

Do artigo 8° do CDC, consta que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo “não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores”, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição. Em qualquer hipótese, devem, porém, os fornecedores explicitar as informações necessárias e adequadas a respeito, em especial se tais produtos e serviços forem potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou à segurança (artigo 9°).

É possível, ainda, entender que o acolhimento do “princípio da precaução” ter-se-ia dado no bojo do artigo 10 do Código de Defesa do Consumidor que veda ao fornecedor colocar no mercado de consumo produto ou serviço que “sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança”. É, ainda, instituído o dever de cautela ao fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento de periculosidade que apresentem, devendo ele comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários (artigo 10, § 1°, do Código de Defesa do Consumidor).

Não obstante a óbvia presença da idéia de cautela, entendemos não corresponder tal previsão ao acolhimento, em toda sua extensão, da “precaução” enquanto princípio expresso, ou diretriz a ser adotada pela política dos consumidores.

A precaução nas relações de consumo tem um âmbito muito mais amplo do que aquele que redundaria da simples aplicação dos preceitos supra enunciados. Decorre necessariamente do sistema como um todo, razão pela qual, no Direito do Consumidor brasileiro, acaba atingindo considerável área principiológica implícita.

07) O princípio da precaução e a produção de alimentos transgênicos

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2000

Em que pese seja evidente, como acima demonstrado, o reconhecimento da existência do “princípio da precaução” em nosso direito, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) — entidade vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, criada após a entrada em vigor da Lei 8.974/95 e mantida no texto de 2005 — o tem simplesmente ignorado na edição de seus pareceres.

Como primeira ilustração, podemos destacar o fato de que todos os pedidos formulados a partir de 1996 por empresas de biotecnologia, solicitando autorização para liberação no meio ambiente de espécies transgênicas, em caráter experimental, foram aprovados pela Comissão sem qualquer avaliação efetiva dos riscos potenciais ao meio ambiente ou à saúde dos consumidores.

Em 15 de junho de 1998, as empresas Monsanto do Brasil e Monsay Ltda. apresentaram à CTNBio o primeiro pedido de autorização para “o livre registro, uso, ensaios, testes, plantio, transporte, armazenamento, comercialização, consumo, importação, liberação e descarte” de um organismo geneticamente modificado (OGM), a soja Roundup Ready.

As associações de defesa do consumidor de todo o país reagiram imediatamente e, em seu Encontro Nacional, lançaram “campanha pela qualidade dos alimentos”, na qual alertavam para os riscos dos transgênicos.

Em 15 de setembro de 1998, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) intentou ação cautelar, tendo obtido liminar contra a liberação da soja Roundup Ready[42]. A CTNBio, não obstante a decisão, convocou reunião extraordinária para 29 de setembro e emitiu parecer conclusivo favorável ao pedido, desde que as empresas Monsanto do Brasil e Monsay Ltda. realizassem acompanhamento e monitoração dos resultados [43]. Com a revogação da liminar, em 26 de novembro de 1998, a proibição do plantio deixou de existir [44], tendo a Monsanto recebido autorização para realizar o cultivo em escala comercial, em 14 de maio do mesmo ano[45].

Em outra ação que tramitou pela 6a. Vara do Distrito Federal, a comercialização e o cultivo da soja transgênica no país foram novamente sobrestados em 18 de junho de 1999, por força de decisão liminar, posteriormente confirmada por sentença de 10 de agosto de 1999, até se procedesse à devida regulamentação da matéria e ao prévio Estudo de Impacto Ambiental. Em 26 de março de 2003, o governo federal editou Medida Provisória, posteriormente convertida na Lei n. 10.688/03, liberando a comercialização da soja transgênica do Rio Grande do Sul. No dia 08 de setembro de 2.003, foi dado provimento a agravo regimental contra decisão que inicialmente atribuía efeito suspensivo a apelação interposta, mas no julgamento final, em 28 de junho de 2004, o TRF da 1ª. Região deu provimento à apelação, por entender que a edição dos Decretos 3.871/2001 e 4.680/2003, estabelecendo a rotulagem, e impondo a correta informação ao consumidor, teria atendido as exigências estabelecidas pela decisão de primeiro grau, no sentido de serem elaboradas normas relativas à segurança alimentar, comercialização e consumo de alimentos transgênicos[46]. A 14 de outubro de 2004, o governo federal deflagrou, ainda, nova crise com ambientalistas e entidades de proteção ao consumidor, ao enviar outra Medida Provisória ao Congresso Nacional (MP 223/2004, que posteriormente seria convertida na Lei n° 11.092, de 2005) liberando a comercialização da soja transgênica da safra de 2005.

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2001

A polêmica foi renovada com o advento da nova lei de biossegurança, Lei nº 11.105/2005, tendo o Procurador Geral da República, acolhendo representação do IDEC, proposto, em 20 de junho de 2005, Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, em que se questionou a constitucionalidade de diversos dispositivos pelos quais atribui-se à CTNBio poder discricionário para deliberar se o OGM é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente.

A alegação é de que a Lei nº 11.105 inverteria, de forma absurda, a lógica edificada a partir do princípio da precaução (art. 225, caput, §1°, III, da Constituição), dispensando, “por decisão unilateral, mas considerada última e definitiva da CTNBio, a apresentação de EIA/RIMA para cultivo de sementes transgênicas no País”.

A discussão a respeito da aplicação do “princípio da precaução” ao plantio e comercialização de produtos transgênicos, contudo, não se limita à soja, atingindo igualmente outros OGMs de expressão econômica no agronegócio, como o milho[47], cuja liberação comercial, vedada em países da Europa (como França - 2008, Áustria - 2007 e Hungria – 2006), foi aprovada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), e confirmada, em fevereiro de 2008, pelo Conselho Nacional de Biossegurança, que não acolheu os recursos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

08) O princípio da precaução e a responsabilidade civil por danos ao meio ambiente e ao consumidor

O “princípio da precaução” não pode, certamente, prestar-se a abusos ou ser utilizado como pretexto para ações protecionistas. Sua incidência deve, antes, dar-se apenas nas hipóteses em que a adoção de medidas efetivas seja considerada necessária, ainda que para vir a dirimir dúvidas quanto à agressividade potencial do produto ou do serviço.

A reiteração de ações ou omissões lesivas perpetradas já pelo governo, já por outras entidades, todavia, faz que seja necessária a adoção de medidas concretas, mediante a imposição de limites efetivos, materializados não apenas pela efetiva reparação a danos eventualmente constatados, como pela imposição de severa repressão, sob pena da noção de precaução acabar se resumindo a estéril abstração teórica.

Cuida-se, na prática, de princípio que encontra aplicação, sobretudo, em casos de saúde pública, nos quais freqüentemente torna-se imperativo impedir a distribuição ou mesmo impor a retirada do mercado de produtos potencialmente perigosos para a saúde.

A Comissão Européia, ao elaborar a já mencionada Comunicação de 02 de fevereiro de 2000, efetuou importante contribuição de natureza processual no âmbito da responsabilidade civil, ao prever dentre as diretrizes normativas gerais inerentes a uma boa gestão dos riscos, que determinada ação desenvolvida sob a égide do princípio da precaução pode, em situações específicas, analisadas caso a caso, atribuir o ônus da prova ao produtor, ao fabricante ou ao importador.

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2002

No Brasil, uma das inovações mais festejadas trazidas pelo legislador do CC de 2002 foi a introdução da “cláusula geral de responsabilidade civil fundada no risco”, prevista em seu art. 927, parágrafo único[48].

Considerada por muitos como sendo a solução ideal para a hipótese dos danos decorrerem de atividade normalmente desenvolvida pelo seu autor, o dispositivo é vivamente criticado por doutrinadores de escol, como TERESA ANCONA LOPEZ[49] e JOSÉ AGUIAR DIAS[50], em virtude de seu caráter demasiadamente aberto. A regra seria fruto de desvirtuamento provocado por emenda parlamentar à redação originalmente elaborada por AGOSTINHO ALVIM para o Projeto, segundo a qual, a exemplo do que é previsto nas legislações italiana e portuguesa, estabelecia-se mera presunção de culpa, passível de ser afastada mediante produção de prova em sentido contrário.

Em análise detalhada sobre a matéria, a professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo propôs a revisão do mencionado dispositivo, mediante reinserção da parte final do texto original de referido Anteprojeto, extirpada ao longo do processo legislativo, de modo a limitar mencionada “cláusula geral de responsabilidade civil fundada no risco”, temperando-a com a possibilidade de exclusão de culpa mediante inversão do ônus probatório. Ademais, seria de melhor técnica que a regra não viesse prevista em mero parágrafo, dispositivo necessariamente vinculado ao conteúdo de seu “caput”, pois isso poderia induzir o intérprete a concluir erroneamente que se trata de exceção à regra ali contida. Emenda, ainda, com propriedade, inferir-se do texto que mencionada cláusula geral incidiria tão somente na inexistência de texto legal dispondo sobre a situação do caso que estiver sendo julgado, não sendo aplicável, por exemplo, às relações de consumo, que são disciplinadas em legislação especial[51].

A discussão perde relevância, todavia, ao ser constatado que as agressões ao meio ambiente e seus reflexos sobre o consumidor vem disciplinadas no artigo 14, §1°, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n° 6.938/81[52]), segundo o qual responde objetivamente aquele que causar danos tanto ao meio ambiente como a terceiros afetados por sua atividade, ficando obrigado a indenizá-los ou repará-los. No CDC, por sua vez, impera igualmente a responsabilidade objetiva enquanto regra.

O teor do dispositivo indica tratar-se de outra “cláusula geral de responsabilidade civil”, não tendo o legislador dado azo à possibilidade de isenção de culpa mediante inversão do ônus probatório.

Na medida em que se estabelece que todo agente causador de danos ao meio ambiente ou a terceiros deva arcar com as conseqüências de sua conduta, mediante pagamento de montantes indenizatórios, dá-se margem a que seja atribuída responsabilidade tanto ao proprietário do imóvel, como a eventuais parceiro-outorgado e arrendatário.

À matéria aplica-se, ainda, a determinação contida no art. 13, III, da Lei n° 4.947, de 06 de abril de 1964, no sentido de deverem os contratos agrários obedecer, dentre outros preceitos de Direito Agrário, a obrigatoriedade de cláusulas irrevogáveis visando à conservação de recursos naturais. Cuida-se, contudo, de preceito extremamente genérico e insuficiente para assegurar, quer a preservação ambiental, quer a proteção à saúde do consumidor, na hipótese da exploração da terra ser procedida por arrendatário ou parceiro-outorgado.

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2003

No âmbito da responsabilidade civil, a regra geral sempre foi no sentido de que a obrigação de responder por eventuais danos que tenham ocorrido deva ser atribuída àquele que os causa. Assim sendo, parece-nos lógico caber tal ônus a quem explore a terra, direta ou indiretamente, que serão respectivamente o proprietário, ou o arrendatário, ou, ainda, o parceiro-outorgado.

A exemplo do que ocorre com relação ao mau uso dos agrotóxicos, sustentamos, todavia, que, mesmo na vigência de contrato de arrendamento ou de parceria, o proprietário do imóvel também poderá ser excepcionalmente responsabilizado por danos porventura infligidos a terceiro ou ao meio ambiente, que sejam decorrentes da produção ou da comercialização de OGM, ainda que seu autor tenha sido o arrendatário ou o parceiro-outorgado.

Na hipótese do arrendatário ou do parceiro-outorgado, todavia, incorrerem em eventual insolvência, parece-nos que a responsabilidade civil por danos poderá ser perfeitamente estendida ao outro contratante, no caso o proprietário, sob o argumento de culpa in eligendo ou mesmo in vigilando, não cabendo aplicação subsidiária da previsão de solidariedade contida no CC (art. 942). Ademais, o vínculo de solidariedade não pode ser presumido, devendo sempre vir previsto em lei[53].

Observe-se que o proprietário da terra, pois, tem igualmente legítimo interesse à resilição do contrato de parceria ou de arrendamento se o produtor agropecuário que com ele contratou expuser os consumidores a riscos desnecessários ou causar danos ao meio ambiente, ao neste liberar organismos geneticamente modificados.

09) Conclusões

O desrespeito à proteção do consumidor, lamenta-se, tem se repetido de modo relativamente constante nos mais diversos setores, como, nas autorizações concedidas para a comercialização de safras de soja geneticamente modificada, em franca violação ao princípio da precaução. Assim ocorreu, por exemplo, com a já mencionada Lei n° 11.092/2005 (originada da conversão de Medida Provisória) que, alterando a Lei no 10.814/2003, permitiu a liberação da safra de 2005, como se fosse suficiente à defesa do consumidor a existência de previsão legal (art. 5°) instituindo responsabilidade objetiva, integral e solidária dos produtores de soja geneticamente modificada por danos eventualmente causados ao meio ambiente e a terceiros, inclusive quando decorrentes de contaminação por cruzamento. Assim continua ocorrendo, por exemplo, com a liberação para cultivo em solo pátrio inclusive de espécimes cujo plantio está proibido em outros países, como é o caso de diversas sementes de milho transgênico.

Conquanto simplista, não se tem obtido sucesso no questionamento a priori do pragmatismo irônico dos raciocínios dos altos escalões governamentais, no sentido de que os riscos envolvidos na produção de alimentos geneticamente modificados correspondem a um mal menor diante da crise de alimentos, devendo ser suportados em nome da segurança alimentar.

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2004

Isso não significa, porém, que tais questionamentos não devam ser renovados, inclusive perante nossos Tribunais, nem que seja para que prevaleça ao menos o direito à reparação dos danos, tanto em termos de reintegrar interesses vulnerados como de sancionar ações ou omissões lesivas perpetradas pelo governo, ao qual não há como legítima ou moralmente reconhecer-se unilateral auto-concessão de verdadeiro bill de indenidade.

Ilustrativa intervenção do Judiciário, assegurando a proteção ao consumidor, ocorreu na recente crise no setor aéreo, deflagrada a partir do advento de sucessivos acidentes de grandes proporções, na qual a ineficiência dos órgãos governamentais, aparentemente subservientes à cupidez das empresas aéreas, encontrou freios apenas em decisão monocrática do TRF da Terceira Região.

Proferida segundo os ditames do “princípio da precaução”, a liminar concedida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, estabeleceu restrições à utilização da pista do aeródromo de Congonhas-SP, visando a garantir minimamente a integridade e a saúde do usuário de transportes aéreos.

Também no âmbito da produção de alimentos transgênicos, tem-se destacado a atuação do Poder Judiciário no estabelecimento de limites, não apenas pela efetiva reparação a danos eventualmente constatados, como pela sanção a ações ou omissões lesivas perpetradas pelos órgãos governamentais, ou, ainda, pelo reconhecimento de que diversos dispositivos da legislação atentam contra princípios basilares constitucionalmente assegurados.

Em apertada síntese, o princípio da precaução existe em nossa sistemática jurídica desde sua introdução pela Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e, mais recentemente, pela nova Lei de Biossegurança. Entidades de natureza governamental — e não governamental — a quem incumbiria implementá-lo concreta e específicamente, todavia, não têm primado por respeitá-lo de modo efetivo, procurando, antes, normatizar a matéria lançando mão de textos que estabelecem critérios insatisfatórios de segurança e atribuindo poderes de fiscalização a entidades de duvidosa credibilidade, que são, no mais das vezes, facciosas, por compromissadas com agentes econômicos detentores do poder de fato.

Parece-nos efetivamente que tanto o meio ambiente como os consumidores encontram na conjugação dos esforços das entidades não-governamentais, com as atuações do Ministério Publico, enquanto fiscal da lei, e do Judiciário, enquanto seu aplicador, o último bastião face aos ataques cúpidos contra eles lançados, que lamentavelmente ganham força diante das condutas omissivas — ou mesmo comissivas, em determinadas situações quase criminosas — dos órgãos governamentais.

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[1] Denomina-se “cultivar” qualquer variedade de planta que tenha sido produzida mediante o emprego de técnicas de ingerência humana em sua estrutura básica, alterando a que lhe seria naturalmente congênita. Consoante o artigo 2.2 do Código Internacional de Nomenclatura de Plantas Cultivadas (ICNCP), “cultivar” é o “conjunto de plantas que foi seleccionado tendo em vista um atributo particular, ou combinação de atributos, e que é claramente distinto, uniforme e estável nas suas características e que, quando propagado pelos métodos apropriados, retém essas características". Sob o ponto de vista jurídico, considera-se “cultivar” (art. 3º, IV, da Lei nº 9.456/97 “a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos".

[2] Estudos procedidos em camundongos alimentados com batatas transgênicas, às quais foi acrescentado o gene do Bacillus thuringiensis, apontaram a possibilidade de dano às células intestinais de mamíferos (FARES, Nagui H., EL-SAYED, Adel K. Fine Structural Changes in the Ileum of Mice Fed on -Endotoxin-Treated Potatoes and Transgenic Potatoes. Natural Toxins. v. 6, Novembro/Dezembro de 1998, p. 219-233).

[3] Em junho de 1997, com base no § 63(15) da Executive Law, o representante do Ministério Público de Nova York obrigou a Monsanto a retirar campanhas publicitárias que afirmavam que o Roundup era biodegradável e que respeitava o meio ambiente. Segundo o Departamento de Saúde Pública da Universidade da Califórnia, o glifosato seria a terceira causa de doenças ligadas aos pesticidas entre os agricultores (MONBIOT, Georges. Des contrats qui mettent les exploitants sous servage, in Courrier Internationnal, n° 381, 25 de fevereiro de 1998, p. 8).

[4] Durante os primeiros anos de comercialização da soja Roundup Ready (RR) nos EUA, a Monsanto chegou inclusive a impor aos produtores que assinassem contrato pelo qual se comprometiam a não guardar sementes de um ano para outro. Mencionado contrato previa igualmente a imposição de limite de produção por hectare, de acordo com o cultivo e a região do produtor. A partir do ano de 2000, apesar de ter sido mantida a proibição quanto à venda, à guarda ou ao plantio das sementes colhidas no ano anterior, a idéia de vinculação contratual deu lugar a sistema de pagamento de royalties diretamente na compra do produto pelo agricultor, que acaba tendo que comprar sementes novas para cada safra, para não infringir a lei. No Brasil, embora a Lei de Cultivares (Lei nº 9.456/97) assegure ao produtor o direito de reproduzir sementes e guardá-las de um ano para outro, o direito de cobrar royalties pelo uso da tecnologia é garantido à empresa pela Lei de Propriedade Industrial.

[5] A existência de lavoura transgênica certamente deixa o agricultor que emprega sementes convencionais sujeito à contaminação involuntária de seu produto, que pode ocorrer tanto nas máquinas de cultivar, plantar e colher, nos caminhões empregados no transporte, como nos silos de armazenamento. Trata-se de possibilidade concreta que, associada à hipótese de erro nos testes de transgenia, submete o produtor que emprega sementes não transgênicas aos riscos indevidos de ver-se compelido a arcar com o pagamento de royalties às empresas detentoras das patentes, ou de ficar impossibilitado

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de vender sua produção convencional para as cooperativas, que pagam preços melhores pelo produto não transgênico. Caso deseje evitar a contaminação, o produtor convencional terá, ainda que suportar o custo extra com a limpeza do maquinário e com a separação entre sementes transgênicas e não-transgênicas para a comercialização da safra.

[6] BOBBIO, Norberto. Principi Generali di Diritto. In: NOVISSIMO Digesto Italiano, v. 13.

[7] Um dos maiores expoentes do jusnaturalismo, Giorgio DEL VECCHIO (DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, p. 380), conceitua os princípios gerais do Direito como sendo “as próprias exigências naturais do Direito que, introduzidas pela reflexão filosófica consoante uma tradição ininterrupta, tendem cada vez mais à busca de esclarecimento. Tais exigências formam um subsídio e um guia para sua compreensão e representam a fonte a que se deve recorrer quando de casos não contemplados de fato pelo legislador”. Dentre as legislações de inspiração jusnaturalista, podemos apontar o Código Civil austríaco (1811, que em seu art. 7° os denomina “princípios de Direito natural”); o Código Civil Albertino (1837, que em seu art. 15 emprega a seguinte fórmula: “princípios de Direito concernentes a todas às circunstâncias do caso”); o Código Civil Italiano (1865, que emprega em seu art. 3°, § 2° a expressão “principi generali di diritto”); pelo Código Civil Argentino (1869); pelo Código Civil Uruguaio (1914); e pelo direito brasileiro, na antiga Introdução ao Código. Civil (1916), que adotou a denominação “princípios geraes de direito”, mantida na atual Lei de Introdução ao Código Civil (1942).

[8] NORBERTO BOBBIO (op. cit., p. 890-1), um dos maiores representantes da escola positivista, conceitua princípios de Direito como sendo “normas fundamentais do sistema (sem aqueles, este não se sustentaria em uma sociedade), mais genéricas, de caráter diretivo (indicam um ideário ético-político ao qual o sistema aspira) indefinidas (comportam uma série também indefinida de aplicações) e indiretas (determinam o conteúdo de outras normas)”.

[9] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 674.

[10] FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao Estudo do Direito, p. 223-4.

[11] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, p. 408-9.

[12] “Si dicono fondamentali quelle norme che danno fondamento assiologico ad altre norme, senza essere a loro volta fondate su norme assiologicamente superiori”. (GUASTINI, Riccardo. Norma giuridica (tipi e classificazioni). In DIGESTO delle Discipline Privatistiche. Sezione Civile, v. XII, p. 161).

[13] “Sono principi espressi quelli che sono esplicitamente formulati in una apposita disposizioni costituzionale o legislativa, dalla quale possono essere ricavati (come qualsiasi altra norma) mediante interpretazioni”. (GUASTINI, Riccardo. Principi di Diritto. In DIGESTO delle Discipline Privatistiche. Sezione Civile, v. XIV, p. 367).

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[14] Cumpre ressaltar que, embora tais princípios expressem (a exemplo daqueles contidos na Constituição) diretrizes jurídicas com notável carga política, e venham imbuídos de marcante opção ideológica, não entendemos possam eles receber o mesmo denominativo de “fundamentais” na medida em que são meros desdobramentos daqueles inscritos no texto constitucional, sobre eles fundando-se. Por essa razão cremos perigosa a importação, pelo direito material, de alguns conceitos adotados pelos estudiosos do direito processual, ciência que ganhou sua autonomia em grande parte dada a noção do processo como ramo da ciência dotado de princípios próprios. Os processualistas ao encamparem a célebre classificação de Mancini que contrapõe “princípios fundamentais” aos ditos “princípios informativos”, obviamente não emprestaram ao atributo “fundamental” a mesma conotação por nós acima empregada e tampouco se valeram da denominação “instrumental” como oposição a “programático” (GRASSI NETO, Roberto. Princípios de Direito do Consumidor: elementos para uma Teoria Geral, p. 78-9).

[15] Segundo GUASTINI - que observa ser a expressão “privi di disposizione” de Crisafulli (Lezioni di diritto costituzionale. II. L’ordinamento costituzionale italiano. Le fonti normative. La corte costituzionale, 1984) – “principi inespressi” são aqueles “non esplicitamente formulati in alcuna disposizione costituzionale o legislativa, ma elaborati o ‘costruiti’dagli interpreti”. (Riccardo GUASTINI. Principi …, p. 367).

[16] GUIDO ALPA, Principi generali, in DIGESTO delle Discipline Privatistiche. Sezione Civile, v. XIV, p. 362. Observe-se que mencionado autor os denomina princípios “reconstruídos”, empregando, com todo respeito, uma prótese verbal inadequada. Se o princípio é implícito, a ele se chega mediante um processo lógico de elaboração, de “construção”. Para falarmos em “reconstrução”, teríamos que partir da ficção de que o legislador elaborou um princípio expresso para, em seguida, dispersá-lo, implicitamente, numa multiplicidade fragmentária.

[17] Análise minudenciada foi por nós procedida em estudo específico sobre o tema (GRASSI NETO, Roberto. Princípios de Direito do Consumidor: elementos para uma Teoria Geral). Para não fugir à sua natureza, limitamo-nos no presente trabalho a esboçar a proposta de classificação: 1) Princípios Gerais pertinentes à fase anterior à formação do contrato nas relações de consumo: tutela aos direitos extrapatrimoniais do consumidor; precaução; harmonização dos interesses dos participantes nas relações de consumo; compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico; adequação dos serviços às necessidades de seus destinatários; 2) Princípio da adequação dos serviços públicos e respectivos sub-princípios específicos pertinentes à fase anterior à formação do contrato de prestação de serviços públicos: universalização, eficiência, segurança, continuidade, atualidade (melhoria) e cortesia; 3) Princípios gerais pertinentes à fase de formalização do vínculo contratual nas relações de consumo: vulnerabilidade do consumidor; tutela à vulnerabilidade qualificada pela hipossuficiência; igualdade real nos contratos; relatividade da autonomia da vontade; boa-fé objetiva; transparência; vinculação contratual; proibição de estipulação de cláusulas abusivas; proibição da adoção de práticas abusivas; 4) Princípios referentes à publicidade nas relações de consumo: duplo controle da publicidade (administrativo e judicial); identificação de sua natureza; veracidade; vedação à publicidade abusiva; vinculação contratual pela publicidade; correção ao desvio publicitário; 5) Princípios gerais pertinentes ao adimplemento das relações de consumo: boa-fé objetiva; interpretação das cláusulas contratuais no sentido

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mais favorável ao consumidor; conservação do contrato; retratabilidade nos contratos; reparação integral pelo dano causado; responsabilidade objetiva, de regra, como norma de ordem pública nas relações de consumo; solidariedade legal entre os causadores de dano ao consumidor; responsabilidade subjetiva em casos específicos de relações de consumo; desconsideração da personalidade jurídica; 6) Princípios de direito processual nas relações de consumo: A) facilitação, ao consumidor, na defesa de seus direitos mediante: a) acesso simplificado à justiça e aos órgãos de administração; b) inversão incondicionada dos ônus da prova, quanto à correção e à veracidade em matéria publicitária; c) inversão condicionada dos ônus da prova, presentes conjunturas de verossimilhança ou hipossuficiência; B) coexistência das tutelas individual e coletiva do consumidor; 7) Princípios relativos à aplicação da lei nas relações de consumo: cogência; incidência intertemporal; subsidiariedade do direito comum em relação ao microssistema normativo do consumidor.

[18] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 637-8.

[19] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 408-9.

[20] GRASSI NETO, Roberto. Princípios de Direito do Consumidor: Elementos para uma Teoria Geral, p. 220.

[21] O problema faz-se presente mesmo no âmbito da União Européia: a 11 de Agosto de 2008, a organização não governamental holandesa Natuur en Milieu e a rede PAN Europe (Pesticide Action Network) apresentaram uma queixa junto ao Tribunal Europeu de Justiça contra a nova legislação (Regulamento 149, de março de 2008) que visa a harmonizar os níveis de segurança alimentar na União Européia. A Comissão Européia teria não apenas estabelecido limite legal muito acima do desejável, como deixado de avaliar os efeitos cumulativos dos pesticidas na saúde humana.

[22] Em diversas ocasiões, a violação, apesar de igualmente grave, não se relaciona com riscos à saúde ou à integridade física do consumidor, concernindo a direitos outros, não contemplados no princípio da precaução. Ilustra tal situação decisão do Colendo Supremo Tribunal Federal que deixou de reconhecer, em essência, gravíssimas lesões aos direitos dos consumidores brasileiros, em sua condição de usuários da energia elétrica, ao respaldar o teor de Medida Provisória do Executivo Federal – ainda em vigor por força da EMC 32, de 11/09/2001 – prevendo a possibilidade de cortes de energia, quando da crise no respectivo setor, ocorrida nos anos de 2001 e 2002.

[23] Consta que o vocábulo “precaução”, derivado do latim praecautionem, teria sido empregado pela primeira vez em língua portuguesa na 5a. parte da coleção Monarquia Lusitana, de autoria de Francisco Brandão em 1650 (HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

[24] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 619.

[25] LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da Responsabilidade Civil. Tese (Titularidade em Direito Civil). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 90.

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[26] GRASSI NETO, Roberto. Princípios de Direito do Consumidor: elementos para uma teoria geral. 2. ed. Santo André: Esetec, 2007, p. 88.

[27]EUROPA. COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Comunicação da Comissão relativa ao princípio da precaução Bruxelas, 2.2.2000 COM(2000) 1 final. Disponível em < http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2000:0001:FIN:PT:PDF >. Acesso em 26 de setembro de 2008, p. 03.

[28] EUROPA. COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Comunicação da Comissão relativa ao princípio da precaução Bruxelas, 2.2.2000 COM(2000) 1 final. Disponível em < http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2000:0001:FIN:PT:PDF >. Acesso em 26 de setembro de 2008, p. 04.

[29] Art. 2°, n° 3, da Diretiva 2001/18/CE: “Libertação deliberada, qualquer introdução intencional no ambiente de um OGM ou de uma combinação de OGM sem que se recorra a medidas específicas de confinamento, com o objectivo de limitar o seu contacto com a população em geral e com o ambiente e de proporcionar a ambos um elevado nível de segurança”.

[30] Consoante consta de seu considerando n° 16, a legislação comunitária neste domínio deverá ser complementada por normas que abranjam a responsabilidade por diferentes tipos de danos ambientais em todas as zonas da União Européia. Para o efeito, a Comissão comprometeu-se a apresentar uma proposta legislativa sobre a responsabilidade ambiental até ao final de 2001, proposta que cobrirá também os danos decorrentes de OGM.

[31] Art. 47, n° 2, do Regulamento (CE) n° 178/2002: “Em matéria de responsabilidade extracontratual, a Autoridade deve indenizar, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros, os danos causados por si ou pelos seus agentes no exercício das suas funções. O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias é competente em qualquer litígio relativo à reparação desses danos”.

[32] Seus incisos, tampouco, contêm qualquer menção expressa ao “princípio da precaução”, ali apenas subentendido.

[33] O “princípio da precaução”, conquanto não encontre guarida expressa na Constituição brasileira, pode ser subentendido dos incisos do dispositivo mencionado. O texto, com efeito, indica os valores a serem tutelados, prevendo o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético; dispõe, ainda, sobre o controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e substâncias que importem em risco para a vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente.

[34] Embora a antiga Lei n° 8.974, de 05 de janeiro de 1995 não o mencionasse expressamente, o princípio da precaução podia ser dessumido de seu texto, na medida em que as normas de segurança e os mecanismos de fiscalização para liberação e

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descarte de organismo geneticamente modificado (OGM) deveriam ser estabelecidos sempre visando à proteção ao meio ambiente.

[35] Art. 1° da Lei nº 11.105/2005: “Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente”.

[36] Nos termos do art. 16 da Lei nº 11.105/2005, são os órgãos e entidades de registro e fiscalização do Ministério da Saúde, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Ministério do Meio Ambiente, e da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República.

[37] O legislador brasileiro de 1995 estabelecia ser vedada até mesmo a introdução no Brasil de organismos geneticamente modificados (OGMs), ou de produtos contendo OGM, destinados à comercialização ou industrialização, sem parecer prévio conclusivo da CTNBio e sem a autorização do órgão de fiscalização competente. Nesse tocante, ainda que mais flexível que a anterior, a atual legislação brasileira é muito mais avançada e rigorosa do que a européia. Excetuando-se alguns produtos — tais como os medicamentos, os pesticidas ou os aditivos alimentares – a legislação comunitária européia não prevê um sistema de autorização prévia à colocação dos produtos no mercado. Na maioria dos casos, compete, pois, ao consumidor, ou às associações de consumidores, demonstrar o perigo associado a um procedimento ou a um produto após este ter sido colocado no mercado.

[38] Eventuais infrações administrativas são passíveis de punição com as seguintes sanções: advertência; multa; apreensão de OGM e seus derivados; suspensão da venda de OGM e seus derivados; embargo da atividade; interdição parcial ou total do estabelecimento, atividade ou empreendimento; suspensão de registro, licença ou autorização; cancelamento de registro, licença ou autorização; perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo governo; perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em estabelecimento oficial de crédito; intervenção no estabelecimento, e; proibição de contratar com a administração pública, por período de até 5 (cinco) anos (art. 21 da Lei nº 11.105/2005).

[39] Órgãos e entidades de registro e fiscalização do Ministério da Saúde, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Ministério do Meio Ambiente, e da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República ficaram incumbidos, assim, de, observado o necessário e prévio parecer técnico conclusivo da CTNBio e as deliberações do CNBS: (a) exercer a fiscalização das atividades de pesquisa de OGM e seus derivados; (b) proceder ao registro e fiscalizar a liberação comercial de OGM e seus derivados; (c) emitir autorização para a importação de OGM e seus derivados para uso comercial; (d) manter atualizado no SIB o cadastro das instituições e responsáveis técnicos que realizam atividades e projetos relacionados a OGM e seus derivados; (e) tornar públicos, inclusive no SIB, os registros e autorizações concedidas; (f) aplicar as penalidades de que trata esta Lei; (g) subsidiar a CTNBio na

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definição de quesitos de avaliação de biossegurança de OGM e seus derivados (art. 16 da Lei nº 11.105/2005).

[40] PRINCIPIO 15, Declaração do Rio sobre Meio ambiente e Desenvolvimento: “Con el fin de proteger el medio ambiente, los Estados deberán aplicar ampliamente el criterio de precaución conforme a sus capacidades. Cuando haya peligro de daño grave o irreversible, la falta de certeza científica absoluta no deberá utilizarse como razón para postergar la adopción de medidas eficaces en función de los costos para impedir la degradación del medio ambiente.”

[41] Outra remissão ao consumidor pelo legislador de 2005 é, ainda, estabelecida no art. 21, § 4o, da nova lei, segundo o qual, na hipótese de eventual violação constituir crime ou contravenção e importar em lesão à Fazenda Pública ou ao consumidor, incumbirá à autoridade fiscalizadora promover a necessária representação junto ao órgão competente para apuração das responsabilidades administrativa e penal.

[42] A liminar contra a liberação da Roundup Ready pela juíza Raquel Fernandez Perrini, da 11a Vara Federal de São Paulo, foi concedida na véspera da data marcada para o anúncio da liberação da Roundup Ready pela CTNBio. Na decisão, entendeu a Magistrada existirem indícios suficientes de que a Comissão pretendia liberar a soja da Monsanto sem normas que garantissem a segurança alimentar e a rotulagem do produto, além de não ter solicitado o estudo de impacto ambiental, requisitos obrigatórios por lei.

[43] O parecer da CTNBio, emitido sem qualquer base legal, foi no sentido de ser autorizada a liberação provisória para plantio e comercialização de produto potencialmente nocivo enquanto são realizadas pesquisas para avaliar os riscos apresentados. O absurdo é patente, pois se mencionados riscos estão presentes — e no caso em tela a determinação de monitoramento posterior é demonstração inequívoca de razoabilidade de sua existência —, não podiam as autoridades permitir que o consumidor, como que transmutado em cobaia de experimento científico, expusesse a risco suas vida e saúde. Antes deviam as autoridades, com base no princípio da precaução, vedar preventivamente não apenas sua comercialização, mas também o seu plantio. A questão foi amplamente debatida nos painéis referentes às “Teses independentes” do 5º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor (Painéis D, F, G, H), tendo sido aprovado por unanimidade como conclusão de n° 1 o entendimento no sentido de que o “parecer favorável à liberação comercial de Alimentos Geneticamente Modificados no Brasil, elaborado pela CTNBio, fere direitos básicos dos consumidores”. A respeito do tema, foram aprovados ainda os seguintes enunciados: 2- “O direito à informação sobre a característica transgênica do alimento não se restringe aos produtos pré-embalados, atingindo, inclusive, os elaborados em restaurantes e os alimentos in natura não embalados. (aprovada por unanimidade)”; 3 -“A informação sobre a origem do alimento, além de direito básico do consumidor, é importante instrumento para rastreabilidade do dano, tornando-se imprescindível quando tratar-se de Alimento Geneticamente Modificado. (aprovada por unanimidade)”; por derradeiro: “A normalização prevista no item 1.1 da Portaria do Ministério da Justiça é imprescindível para a comercialização de Alimentos Geneticamente Modificados no Brasil” (aprovada por unanimidade).

[44] O juiz Antônio Oswaldo Scarpa, da 6a Vara Federal do Distrito Federal, para a qual o processo fora redistribuído, revogou a liminar concedida ao Instituto Brasileiro de

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Defesa do Consumidor no que diz respeito à suspensão do cultivo da soja, mas exigiu sua segregação e rotulagem, bem como determinou à Monsanto que informasse à Justiça quem viesse a comprar essa soja. No mês subseqüente, o Greenpeace e a Monsanto ingressaram na ação como partes interessadas, o primeiro, ao lado do IDEC; e a segunda, ao lado da União (CTNbio).

[45] Mesmo com a revogação da liminar, a Monsanto havia optado por retirar, em março de 1999, o pedido de registro da soja Roundup Ready, admitindo falta de informações técnicas. Em que pese não houvesse estudo de impacto ambiental, o então ministro interino da Agricultura, Benedito Rosa do Espírito Santo, de modo preocupante, antecipou-se e declarou na ocasião que, assim que a empresa Monsanto reapresentasse o pedido, receberia autorização para o cultivo em escala comercial, o que efetivamente ocorreu, mediante ato do Serviço Nacional de Registro de Cultivares (SNRC) do Ministério da Agricultura, em 14 de maio do mesmo ano.

[46] Apelação Cível 1998.34.00.027682-0/DF. Os desembargadores Selene Maria de Almeida e Antônio Ezequiel votaram pela liberação dos transgênicos sem o EIA/RIMA, enquanto o desembargador João Batista Moreira votou contra.

[47] A liberação abrange as variedades de milho Liberty Link e MON 810, produzidas pela Bayer e pela Monsanto, respectivamente.

[48] Art. 927 do CC: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Parágrafo único. “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

[49] LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da Responsabilidade Civil. Tese (Titularidade em Direito Civil). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 147-8.

[50] DIAS, J. de A. Da responsabilidade Civil, 11. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 635

[51] LOPEZ, Teresa Ancona. op. cit., p. 152.

[52] Artigo 14, §1°, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n° 6.938/81): “Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”.

[53] O CC de 2002 prevê responderem objetiva e solidariamente pela prática de ato ilícito apenas as pessoas relacionadas no art. 932, nas quais não se encaixam a figura do arrendador ou do parceiro-outorgante. Entendemos, ainda, não ser automaticamente aplicável à espécie a regra do art. 942, segundo a qual, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Isso porque, estando a terra

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arrendada, por vezes não estará ao alcance de seu proprietário impedir a conduta danosa do arrendatário. Por tal razão, acreditamos ser descabido considerá-lo automaticamente como “co-autor” do dano, ressalvada evidentemente a hipótese de sua conduta concorrendo para o evento danoso ter natureza comissiva. A responsabilização do proprietário por comportamento meramente omissivo diante de proceder lesivo do arrendatário, certamente poderá ocorrer, mas não será solidária, ficando, antes, condicionada à demonstração efetiva de ter obrado com culpa.