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A INCÓGNITA AMBIENTAL DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO PEDRO SAMPAIO MINASSA

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A INCÓGNITA AMBIENTAL DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

PEDRO SAMPAIO MINASSA

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A incógnita ambiental do princípio da precaução Pedro Sampaio Minassa

Resumo. A tônica desta investigação é expor como o princípio da precaução, em sede de vários suportes legais nacionais e internacionais, pode ser questionado à luz da eficácia e utilidade ao escopo tutelar do Direito Ambiental. Para tal, serve-se de um enquadramento do princípio em leis internas, de alguns países latino-americanos e europeus, bem como de documentos internacionais, os quais figuram como palco da gênese da precaução enquanto princípio. Analisa-se também, a perspectiva de paradigma ambiental da precaução, lançando mão de referências à teoria do risco e do cotejo com o princípio da prevenção ambiental e culmina-se, por fim, com uma sustentação do princípio da precaução no caráter de incógnita patente, em meio ao ramo jurídico presente. Palavras-chave. Princípio da precaução, incógnita ambiental, risco, dano ambiental, perigo. Abstract. The focus of this research is to expose as the precautionary principle in several national and international legal supports, can be questioned in the light of the effectiveness and usefulness for the tutelary scope of Environmental Law. To this end, it serves as a framework for the principle in the internal laws of some Latin American and European countries, in addition to international documents, within this stage of the genesis of precaution as a principle. The perspective of the environmental paradigm of precaution was also analyzed, using reference to the theory of risk and the comparison with the principle of environmental prevention and culminated in the support of the precautionary principle as an incognito patent in the branch of law in question. Keywords. Precautionary principle, environmental ingonito, risk, environmental damage, danger.

1. Breve introdução paradigmática

Para lançar bases a uma abordagem do princípio da precaução na seara ambiental, cumpre primeiro, fazer um breve panorama do paradigma ambiental e em que altura o citado princípio aparece engendrado no contexto do Direito Ambiental. O paradigma ambiental vem se alargando na doutrina jurídica, como um ramo do direito progressivamente em ascensão, seja pela urgência que clama sua temática norteadora, seja pelo reconhecimento da insuficiência exclusiva do mundo jurídico para resolver problemas, mais que litígios, que atingem a todos indistintamente e que exige respostas interdisciplinares conjuntas às incertezas científicas, caracterizadoras deste campo.

Para melhor compreendermos em que status se encontra o direito ambiental atualmente e em termos gerais, devemos recorrer a uma retrospectiva já consagrada em matéria de direitos fundamentais que é a escala das dimensões (para os simpatizantes da teoria dimensional) ou das gerações de direitos fundamentais, ideia gerada pelo jurista Karel Vasak, em 1979, e posteriormente expandida e defendida por grandes nomes da doutrina constitucionalista, com destaque para o aprofundamento dado pelo brasileiro Professor Paulo Bonavides. Sugere Bonavides, tais direitos serem procedentes de “três gerações

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sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e quantitativo”1, ou seja, os direitos de primeira dimensão (liberdade), de segunda (igualdade) e de terceira (fraternidade). Em síntese, a tríade clássica dos movimentos liberais que se iniciaram na França do final do século XVIII e que se disseminaram pelo mundo, sendo os lemas cernes das posteriores ondas do constitucionalismo.

Os direitos da personalidade se sustentaram nos pilares da primeira dimensão, tendo seu grande expoente na tutela da individualidade e dignidade da pessoa humana e daí, toda a derivada esfera privada. Em sede da segunda dimensão, a igualdade obteve sua materialização com a ascensão da defesa dos direitos sociais, em muito impulsionados pelas teorias surgidas no século XX, manifestas resistências ao modelo industrial em expansão, que colocava em cheque a lógica hierárquica e degradante do trabalho.

Por fim e não menos importante, senão este o ponto mais relevante desta breve introdução, colocam-se os direitos de terceira dimensão, com fulcro na fraternidade, um conceito aberto, encarado geralmente sob uma forte carga emotiva, e que sempre, desde a sua gênese na Revolução Francesa, apareceu inócuo semanticamente, posto ali ao fim da tríade (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) com um aparente encargo de completar o espaço vago, propondo não mais que uma virtude bem vista e quista pela utópica burguesia.

Entretanto, a fraternidade, outrora, um valor com seu pouco ou nenhum destaque na tríade expressa, vem paulatinamente protagonizando, no cenário atual, a apoteose de um clamor virtuoso global, o único, e não mais, o último lema, capaz e cabível de guiar o paradigma ambiental. A terceira dimensão, hodiernamente, aparece travestida com outras roupagens, mantendo, porém, sua essência, como a solidariedade e a meta-individualidade, fixando no solo doutrinário do direito ambiental a nova bandeira a se reverenciar: o altruísmo, a síntese da virtude fraterna ambiental.

O paradigma antes de um conceito, é uma elucubração, e por isso, situar o meio ambiente num paradigma significa pô-lo no foco da ruminação intelectual, aquela mesma concepção que uma vez aludiu Friedrich Nietzsche. O paradigma ambiental é aquele que nos dizeres de Ricardo Luis Lorenzetti, “reconhece como sujeito a natureza, que é um bem coletivo, define-o como escasso ou em situação de perigo e está disposto a limitar os direitos individuais”2, por isso, os direitos de terceira dimensão, para além de estabelecerem um novo miradouro analítico do direito ambiental, surgem também como um limite, um limiar exigente de ponderação frente aos direitos individuais.

Portanto, Bonavides ao explicar que as gerações de direito percorrem um processo cumulativo e quantitativo, remonta justamente a essa compreensão de que os direitos não são excludentes, mas cumulativos, mesmo que nessa compilação de direitos o princípio da proporcionalidade deva gerir seus liames. O paradigma ambiental é, deste modo, o estudo do objeto do direito ambiental (o meio ambiente enquanto macrobem, definido,

1 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p. 563 2 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 19.

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por exemplo, pela Lei 6.938/81, Art. 3°, I)3 como o gerador de interesses difusos, coletivos e metaindividuais, ultrapassando e estabelecendo limites aos demais interesses dispostos na teoria dimensional ou geracional dos direitos fundamentais.

1.1.Etimologia da palavra precaução e seu lugar na história geral

Etimologicamente, a palavra precaução é o resultado da conjugação latina do sufixo cautio que denota “cuidado, prevenção”, estando intrinsecamente relacionado ao verbo cavere que consiste em estado de alerta ou de guarda, com o prefixo, também latino, prae, o qual remete a uma posição “antes, à frente”. Dessarte, precaução em linhas mais simples é a uma posição anterior à caução ou garantia de algo, ou como, propõe a estrutura latina, precaução é estar num ponto decisório antes da prevenção, elemento este que também tem seu espaço enquanto princípio do direito ambiental e que será abordado com mais minúcia no tópico cinco.

À primeira vista, então, concluímos que precaver é uma atitude que presume a ocorrência de algo supostamente danoso, daí o estar alerta ou em guarda, mas sem se ter a certeza ou a prova da concretização desse algo. Precaver não é, antes de tudo, sinônimo de prevenir, pois entre os termos, aquele aparece como um termo a priori, enquanto este último trata-se de um vocábulo a posteriori. Quem previne, não precisa mais, pois, de precaver, mas do contrário, age-se com a justificativa de ansiar prevenir. Logo, a precaução é, em princípio e em suma, a reunião do seguinte binômio: incerteza fática e ação profilática.

Merece atenção o binômio, porque é dele que emerge a incógnita ambiental do princípio que é título e escopo deste trabalho. A incerteza fática aponta para o estado de “cegueira” perante a ocorrência de um possível dano ambiental, observe que esta incerteza é dada pelo nível evolutivo de resposta posto pela ciência, isto é, uma incerteza fruto de uma insuficiência científica de provar o nexo de causalidade entre o fato e o suposto dano ambiental.

O binômio, no entanto, só se torna completo se atentarmos para o elemento ação profilática, pois é aqui que reside o enigma da esfinge da precaução no direito ambiental. Sendo o estado de incerteza científica um pressuposto para a aplicação do debatido princípio, este se externa através de ações ou atos profiláticos e a profilaxia que aqui referimos, não é propriamente a mesma difundida e promulgada pelo campo médico, cuja concepção é a de ser medida para atenuar ou prevenir doenças, pois, neste caso, a prevenção é a diretriz aplicada e não a precaução, uma vez já ter sido anteriormente provada a iminência da patologia. Assim, profilaxia a que nos reportamos é a sua acepção etimológica que derivada do grego pro (antes) e phylaxis (guarda, proteção), designando uma proteção adiantada ou antecipada, e antecipação, desde logo, é a pedra fundamental da precaução.

Na história global, o princípio da precaução veio a ser utilizado algumas vezes indireta ou diretamente, expressa ou tacitamente, como pressuposto para processos de rupturas democráticas, principalmente pelo seu caráter aberto e sugestivo, capaz de sustentar a tomada de posturas políticas radicais. Uma vez invocada a precaução, esses regimes tenderam a promover eventuais proibições e restrições, sem a aparente necessidade de 3 Lei 6.938/81, Art. 3°, I quando define meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física química e biológica, que permite reger a vida em todas as suas formas”.

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motivações ou justificações às camadas populares. A incerteza do princípio acaba, pois, por ser a motivação per si para a tomada de ações discricionárias, sem necessidade de qualquer tipo de controle externo.

A título breve de exemplo na história mundial, temos a ascensão dos regimes totalitários nazifascistas e suas crias políticas, como o salazarismo em Portugal e o franquismo na Espanha, bem como em outros modelos globais identicamente distantes do Estado Democrático de Direito, como o stalinismo russo, para não falar de todos os movimentos militares ditatoriais que dominaram a América Latina no século XX4. Indistintamente, governos de direita ou esquerda, tendo outrora pautado seus programas de poder em medidas marginais ao neoconstitucionalismo, acabaram por cair na falácia discursiva e entraram pela porta sempre aberta do princípio da precaução, deixando como legados maculados as marcas do corporativismo, da censura e repressão, tudo isso, com o escudo precautório frente às supostas ameaças nacionais.

1.2. A Sociedade de Risco (ambiental)

O risco aparece como o principal elemento causador para manter edificado o princípio da precaução no direito ambiental e, por este motivo, discorreremos sem delongas sobre como a expressão “sociedade de risco” vem angariando atenção pelas diversas áreas do conhecimento humano, do qual não se afasta o Direito. Como o foco de análise do presente trabalho é o espaço ocupado pelo princípio na tela panorâmica do direito ambiental, nos concentraremos em entender a sociedade de risco (ambiental).

O tema da sociedade de risco tem ganhado tanta atenção, sobretudo pelas Ciências Sociais, que o sociólogo alemão Ulrich Beck, ainda no século XX publicou a obra “Sociedade de risco: a caminho de uma nova modernidade”, que detalhava as características transformativas pelas quais a sociedade moderna passava e com previsões de continuidade. Beck buscou principalmente nos riscos tecnológicos inerentes às práticas sociais, a justificação para a criação de uma teoria para o arquétipo social que vinha se amoldando progressivamente. O sociólogo aponta que neste processo, tanto agentes públicos quanto particulares, estariam vinculados à noção de sociedade de risco e que a inoperância, sobretudo estatal, não permitia administrar os riscos e promover políticas de implementação de estudos sobre tais, a fim de evitar sua eclosão.

Ingo Wolfgang e Tiago Fensterseifer, ao dedicarem estudo mais detalhado sobre a teoria da sociedade de riscos de Beck, elucidam que o alemão já constava a expansão teórica ao campo ambiental, “de acordo com a análise proposta por Beck, evidencia-se a incapacidade das instituições (públicas e privadas), na sua configuração atual, de enfrentarem e darem a devida resposta diante dos riscos ambientais gerados pela sociedade contemporânea, de modo especial, pelo fato de que a esfera pública do atual Estado de Direito tem sido, em geral, incapaz de se articular adequadamente contra o

4 Vide diversos estudos históricos que comprovam a relação entre a instituição de regimes ditatoriais no séc. XX, na América Latina, e às supostas ameaças comunistas (face de aplicação do princípio da precaução): “Foi o discurso de defesa da nação contra a ameaça comunista que Brasil e Argentina utilizaram para ocultar diversos interesses envolvidos e (...) assim instituírem através da força militar aliada com o poder de legitimação das leis, um novo regime de governo”. Trecho da obra Autoritarismo e Direito no Brasil e na Argentina, de Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci (org.).

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aumento de riscos e incertezas.”5 O que se tem observado, portanto, é que a curva tendencial de riscos - não mais apenas aqueles oriundos de ordem natural, mas proeminentemente dos derivados da ordem antrópica - cresce em desproporção a capacidade, ou melhor, vontade dos agentes de criarem ferramentas para prevê-los e, assim, combatê-los.

O risco é um conceito mais afeiçoado à esfera das sociedades empresariais, em que sua percepção e controle implicam diretamente na trilogia “produção, rentabilidade e lucro”, por isso, é da iniciativa privada, onde a experiência em lidar com os riscos é mais antiga, que se deveria buscar potenciais técnicas de gestão de riscos, inclusive os que atingem, outrossim, o âmbito do exercício público, como é o caso dos riscos ambientais. Testifica esta percepção o Professor Guido Fernando Silva Soares que “entende que a introdução de dimensões normativas vinculadas a medidas de precaução nas relações entre os Estados esteja ligada ao surgimento de esquemas copiados das atividades empresariais, sobretudo nas virtudes de uma boa gerência (...)”.6

Atualmente a lógica não tem sido a da gestão técnica da análise de riscos na maioria dos Estados - mormente os custos elevados que norteiam o tema -, mas sim a da inércia, que espera o risco crescer e se tornar perigo, para invocar alguma iniciativa pública. Fala-se, então de uma socialização de riscos (o que implica uma posição a posteriori) e não em um gestão pública de riscos (posição a priori). Mecanismos legais e institucionais, públicos e privados, devem estar cada vez mais presentes nas pautas internacionais, pois falar em risco é inevitavelmente tocar na insuficiência científica, na incerteza que dela deriva.

Beck ainda na esteira de sua teoria, alude a existência de um caráter antidemocrático proveniente dessa socialização ou má distribuição dos riscos ambientais, colocando o problema também no picadeiro dos direitos sociais, pois “refere que determinados grupos sociais, em razão do seu baixo poder aquisitivo, encontram-se mais vulneráveis a certos aspectos de degradação ambiental”, assim, “a crise ecológica agrega novos fatores de desigualdade e discriminação social no âmbito das relações sociais.”7

Gerir os riscos socioambientais é mais que simplesmente tê-los na ótica ab initio, em que, antes, por exemplo, de se permitir instalar uma rede elétrica perto de um conjunto residencial deva se realizar vários estudos técnicos para saber o nexo de causalidade entre os supostos danos à saúde humana e as ondas eletromagnéticas e sua incidência no organismo vivo, isto é, ainda na fase de avaliação técnica saber se os riscos eclodirão, pois, por mais relevante que essa perspectiva de risco seja, prima-se também administrar os riscos que podem surgir de situações fáticas pré-fixadas, por exemplo, saber a vulnerabilidade de um reator nuclear já instalado numa determinada área. Desta forma, a gestão de risco ambiental numa sociedade eminentemente cativa deste, há de ser, em

5 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Ambiental: introdução, fundamentos e teoria geral – São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p. 99. 6 LEMOS, Patrícia Faga Iglesias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção do meio ambiente – São Paulo, 3 ed.: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 177 7 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Ambiental: introdução, fundamentos e teoria geral – São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p. 101.

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última análise, uma constante ação de monitoramento, não bastando o prisma ab initio para um objeto em que o dano é um desconhecido imprevisível.

2. O histórico de aparecimento jurídico do princípio

O princípio da precaução em face ao princípio da prevenção ainda é recente, no acervo jurídico internacional, aquele data seu nascimento e crescimento na década de 1980, enquanto este já estava em expansão e utilização desde as primeiras décadas do século XX. A par dessa questão cronológica, o princípio da precaução aparece explícita ou implicitamente citado nos ordenamentos internos de muitos países, incluindo em algumas Cartas Constitucionais que datam do período de ascensão da precaução como princípio de direito (ambiental) e possui grande visibilidade no direito convencional (considerado pela doutrina “otimista” como hard law) e de sobremaneira, no soft law.

Diferentemente de outros ramos do direito, os princípios de direito ambiental incorporados pelos ordenamentos jurídicos internos, em sua grande maioria, decorrem de construções do Direito Internacional ambiental, sendo importados e, infelizmente, às vezes, mal entendidos, por prejuízos interpretativos, como o global e simultaneamente frívolo, princípio do desenvolvimento sustentável, o qual inclusive apareceu pela primeira vez no cenário internacional, no Relatório Nosso Futuro Comum (1987), no âmbito da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas e a partir de então, se disseminou como epidemia principiológica pelos quatro cantos jurídicos do mundo. Em que pese o princípio da precaução, dividiremos seu histórico de aparecimento em dois subtópicos: legislações internas e documentos internacionais.

2.1.Nas legislações internas

Embora a precaução seja uma noção milenar nas comunidades da antiguidade, a doutrina marca a gênese do princípio da precaução, no Direito Ambiental alemão, com a expressão Vorsorgeprinzip. O governo federal alemão em 1971, implantou-o em seu programa ambiental e confirmou-o, em 1976, no Relatório Ambiental. Dizia o trecho do programa ambiental alemão: “Política ambiental preventiva também exige que as bases naturais sejam protegidas e exploradas de modo econômico e sustentável”, sobre tal enunciado, é de Ana Gouveia e Freitas, o entendimento de que o citado princípio data do “início da década de 70, como fundamento de uma política intervencionista e centralizadora na área da poluição atmosférica.”8 Do direito alemão, em que pela lição de Patrícia Faga Iglecias, o princípio foi “adotado como direcionador ambiental” tratando-se de uma formulação de “precaução contra risco, que é anterior ao perigo”9, foi este posteriormente difundido por outros suportes normativos ao redor do mundo. Registro doutrinário raro aponta ainda que o princípio teria aparecido em sede de proteção ambiental, numa anterior lei sueca de 1969, o que não substitui o entendimento majoritário na doutrina de enquadrar seu berço legislativo interno, no direito alemão da década de 1970.

2.1.1. Da América Latina

8 MARTINS, Ana Gouveia e Freitas. O princípio da precaução no direito do ambiente. Lisboa: AAFDL, 2002, p.25. 9 LEMOS, Patrícia Faga Iglesias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção do meio ambiente – São Paulo, 3 ed.: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 177.

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Na América Latina, região que clama alto por um Direito ambiental eficaz, o princípio chegou a várias legislações, principalmente aquelas ditas de Base ou Gerais do Meio Ambiente, dentre as quais destacaremos três países, adiantando que os dispositivos legais respeitosos ao Brasil, devido a sua importância neste trabalho, merecerão um destaque específico neste tópico. No entanto, cumpre ressaltarmos, antes, uma acepção de Lei de Base do Ambiente, essa ideia de generalidade que aparece nestas legislações, refere-se ao raio de aplicação de seus dispositivos, ou seja, tanto é de base uma lei, quanto mais ela irradiar seus efeitos estruturais sobre os demais corpos normativos específicos presentes num sistema jurídico. Destarte, as Leis Gerais ou de Base ambientais são tão somente os alicerces de um edifício maior e mais complexo de outras legislações e regulamentos ambientais específicos.

Na Argentina, a “Ley General del Medio Ambiente”, que instituiu a Política Ambiental Nacional, determinou dentre os “princípios de la politica ambiental” em seu Artigo 4, o “principio precautorio: cuando haya peligro de daño grave o irreversible la ausencia de información o certeza científica no deberá utilizarse como razón para postergar la adopción de medidas eficaces, en función de los costos, para impedir la degradación del medio ambiente”10, observa-se que o termo utilizado pelo diploma argentino foi perigo de dano grave e irreversível, qualificação que se repetirá em outros sistemas e que tem sua origem no âmbito internacional. Além disso, coloca a incerteza científica como um não-fator para postergar a adoção de medidas eficazes, mesmo que os custos para impedir o dano ambiental sejam consideráveis.

A Costa Rica, com a “Ley de Biodiversidad” seguiu uma linha um pouco diferente das demais legislações sobre o tema, ao colocar a precaução, não como um princípio geral (mesmo havendo um título reservado para tal), mas como um critério de aplicação da lei e, mais, associando-o alternativamente ao critério do “in dubio pro natura”, ipsis litteris: “Cuando exista peligro o amenaza de daños graves o inminentes a los elementos de la biodiversidad y al conocimiento asociado con estos, la ausencia de certeza científica no deberá utilizarse como razón para postergar la adopción de medidas eficaces de protección”.11

O legislador costa-riquenho utilizou o termo perigo, ao lado de ameaça (sinônimo de risco, elemento irmão da precaução) para classificar os danos graves ou iminentes (outra característica da precaução), especificando que a tutela que se dá, é aos elementos exclusivamente bióticos e finalizando como o diploma argentino, remetendo-se à Declaração do Rio de Janeiro de 1992. Colocar a precaução como um critério de aplicação legal foi um aspecto inovador desta lei, porém associá-la ao princípio do “in dubio pro natura”, ao menos na doutrina ambiental, não é de um todo novidade, pois como explica Ingo Wolfgang, “impõe-se uma atuação do Estado e dos particulares lastreada no princípio da precaução, movimentando-se, ambos, na lógica do in dubio pro natura, ou seja, diante da incerteza quanto a possíveis danos ao ambiente e à proteção ambiental, deve prevalecer e ser proibida ou retardada (até um melhor domínio da técnica) determinada prática potencialmente degradadora dos recursos naturais.”

10 Ley n. 25.675/2002, Ley General del Medio Ambiente de la Republica Argentina. 11 Ley n. 7.788/1998, Ley de Biodiversidad de la Republica de Costa Rica.

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No Estado do Peru, a “Ley General del Ambiente” em seu Artigo VII estabelece que o princípio precautório refere-se a seguinte situação: “cuando haya peligro de daño grave o irreversible, la falta de certeza absoluta no debe utilizarse como razón para postergar la adopción de medidas eficaces y eficientes para impedir la degradación del ambiente”12, expondo que o perigo deve ser também de dano grave ou irreversível ao mesmo modo que a letra da lei argentina o faz, mas caracterizando que a falta de certeza científica deva ser absoluta e quando mesmo assim o for, não caberá pressuposto para postergação de medidas eficazes e eficientes. O legislador peruano ainda destaca no corpo do texto legal, que se em outras disposições legais ambientais peruanas aparecerem termos como “critério de precaución” ou “critério precautorio”, devem estes serem interpretados à luz do que dispõe a Lei Geral13, uma amostra de que se trata de uma lei estrutural, cuja irradiação deva se estender a todo o sistema jurídico ambiental nacional.

2.1.1.1. Do Brasil

O Brasil, país sede de algumas das mais emblemáticas conferências ambientais do último século, cabe destacar, dentre as quais, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), documento que deu amplo alavanque para o espargimento do princípio da precaução internacionalmente. Não sendo de se ignorar a vultuosa atividade legiferante ambiental, o Brasil, direta ou indiretamente, passou a adotar o referido princípio como um dos corolários da guinada política ambiental nacional.

A doutrina e a jurisprudência nacionais, no entanto, desde antes da incorporação da precaução ao seu acervo principiológico, já a colocavam como aceite. Antes de 1992, leis como a instituidora da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81) faziam alguma referência implícita14 ao conteúdo do preceito, o qual somente viria expresso em diplomas posteriores. Entretanto, é com a Lei n. 11.105/2005 que a precaução fora definitivamente posta no altar da legislação ambiental nacional, ao lado dos cânones fundamentais expressos. Mesmo havendo menções indiretas ainda anteriores à exposta lei, vide a Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais, é somente com aquela, que ocorre a glorificação da precaução, por aparecer expressamente como princípio, não sendo à toa que nesta norma tenha-se dado sua primeira aparição, como veremos a seguir.

A Lei n. 11.105/2005 surge ao tempo de grandes debates mundiais sobre a questão da biossegurança e suas inerentes dúvidas científicas e é desta agitação e anseio internacionais por aprofundamento do tema, que o legislador brasileiro propôs o dispositivo, com o fito de estabelecer “normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM) e derivados”, para além de criar órgãos a nível federal para regular a questão. Assim, no pós-92, depois de receios legislativos de tornar a precaução um princípio interno, o tema da biossegurança foi o estopim para a sua abordagem expressa no ordenamento jurídico

12 Ley n. 28.611/2005, Ley General del Ambiente de la Republica de Perú. 13 Vide trecho da Lei n. 28.611/2005, que confirma a afirmação: “De conformidad con el Artículo 2 de la Ley N° 29050, publicada el 24 junio 2007, se adecúa el texto del presente Artículo, y el de todo texto legal que se refiera al “criterio de precaución”, “criterio precautorio” o “princípio de precaución” a la definición del Princípio Precautorio que se establece en el artículo 5 de la Ley Nº 28245, modificado por el artículo 1 de la citada Ley.” 14 Deriva do Art. 2°, V, da Lei 6.938/81 o entendimento de existência de uma prévia menção indireta ao princípio da precaução: “o controle e zoneamento das atividades potencial ou efetivamente poluidoras”.

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brasileiro, essencialmente, por causa de sua ligação íntima com a noção de risco. Dispôs, a lei, logo em seu Artigo 1°, dando o tom interpretativo de todo restante suporte legal: “esta lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização (...) tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para proteção do meio ambiente” (sublinhados nossos).

Nota-se, nesta altura, que a legislação foi clara ao situar a necessidade de observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente (e consequentes direitos subjetivos, como proteção à vida e à saúde humana) ladeada com a necessidade de se obter estímulo ao avanço científico. Com a propositura de uma noção de incerteza científica que, neste caso em especial, caracteriza a manipulação de OGMs, esta disposição tomou o rumo do disposto por outras normas aqui já elencadas, reportando necessariamente a Declaração do Rio de 1992, quando da leitura de seu princípio 15, diz: “(...) a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.”

O estímulo ao avanço científico aparece uma única vez citado na lei e somente como mais uma cláusula aberta, a qual não importou na materialização do que seria o princípio da precaução, uma vez que não explica o modo de estímulo e, pior, não aponta quem seria(m) o(s) agente(s) na promoção do avanço contra a corrente da incerteza. Portanto, a Lei n. 11.105/05 proporcionou a expressão da precaução no ordenamento legal, mas não se preocupou em resolver a incógnita ambiental que ronda o princípio, isto é, como todas as legislações posteriores, a Lei de Biossegurança foi suficientemente expressa na forma e insuficientemente tácita na busca de um conteúdo para o princípio da precaução.

Uma vez aberta a janela do princípio, outras leis ambientais também se deixaram banhar pela precaução, não se importando tampouco na explicação da eficácia da mesma, simplesmente reproduzindo-a. Citamos, exempli gratia, a Lei da Mata Atlântica (Lei n. 11.428/2006)15 e a Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC (Lei n. 12.187/2009)16, que em suas respectivas temáticas, os legisladores acharam conveniente inserir o princípio para dar termo ao rol tradicional de princípios, pondo-o frequentemente ladeado ao princípio da prevenção, o que não expurga a aridez persistente no seu manuseio.

Verifica-se, além do mais, autores que defendem (ou forçam) uma existência implícita do princípio da precaução na Constituição Federal brasileira. Sendo a Carta Magna de 1988, anterior à ascensão e consagração da precaução como princípio, ao menos no espaço jurídico brasileiro (pós-Declaração do Rio de 1992), como enquadrá-lo como um mandato constitucional? Com a devida vênia, não me parece acertado afirmar que “a matriz constitucional do princípio da precaução está contida no Art. 225, §1°, IV e V, ao exigir o estudo prévio de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade

15 O princípio aparece no Art. 6°, parágrafo único, da Lei n. 11.428/06: “Na proteção e na utilização do Bioma Mata Atlântica, serão observados os princípios da função socioambiental da propriedade, da equidade intergeracional, da prevenção, da precaução (...)”. 16 O princípio também aparece no Art. 3° da Lei n. 12.187/09: “A PNMC e as ações dela decorrentes, executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observarão os princípios da precaução, da prevenção (...)”. Faça-se notar que a precaução aparece geralmente ladeada pela prevenção.

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potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente (inciso IV), bem como ao determinar a obrigação do Estado de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (inciso V)”17.

O advérbio potencialmente ou o termo risco utilizados pelo legislador constitucional, não devem ser consideradas justificativas suficientes para se afirmar caber um princípio da precaução em termos constitucionais, o que seria mais acertado, no tema do estudo de impacto ambiental, seria a assunção do princípio da prevenção. É reconhecido o caráter cidadão e o contexto histórico plural, inclusive em raias ambientais, que impulsionaram a Assembleia Constituinte de 1988, no entanto, afirmar a existência de um princípio da precaução no plano constitucional, o qual só foi posteriormente difundido, é no mínimo, uma interpretação extensiva (ostensiva). Mesmo quando a ameaça de “risco” seja relativamente certa não se estará diante de uma precaução por excelência, mas sim de uma prevenção por ocorrência.

Coadunam-se com essa última compreensão, as preleções de José Rubens Morato Leite que indica estar “no direito brasileiro, a prevenção estabelecida no Art. 225, §1°, V, da Constituição Federal”18 e de Patrícia Faga Iglecias: “o estudo prévio de impacto ambiental atua como medida preventiva principalmente, visando evitar danos ao meio ambiente, ou, ao menos, minorá-los”19 (sublinhados nossos). Ambas confirmam se tratar, quando do assunto de avaliação prévia de impacto ambiental, a aplicação do princípio preventivo e não precautório, preceitos os quais, como já afirmado, muitas vezes aparecem cindidos ou confundidos por algumas doutrinas e jurisprudências, o que se justifica pelo grau de penumbra que os diplomas, nacionais e internacionais, atribuem aos princípios, colocando-os geralmente em uníssono.

2.1.2. Da Europa e do direito eurocomunitário

Consoante já explanado, o princípio aparece pela primeira vez no direito alemão, “impondo às autoridades alemãs a obrigação de agir diante de uma ameaça de dano irreversível ao meio ambiente, mesmo que os conhecimentos científicos até então acumulados não confirmassem tal risco (...) e a obrigação de instaurar um sistema de pesquisa que permita detectar riscos para o ambiente, mas também para a saúde pública (Vaqué et alii, 1999:85)”20. No entanto, a nível de legislações internas europeias, nos ateremos a portuguesa e a francesa especificamente.

Em Portugal, a Lei de Bases do Ambiente (Lei n° 19/2014) é o principal suporte legal ambiental em que aparece o princípio da precaução, como um corolário dos princípios materiais do ambiente (Art. 3°, c: “Da prevenção e da precaução, que obrigam à adoção de medidas antecipatórias com o objetivo de obviar ou minorar, prioritariamente na fonte – princípio da correção na fonte do Art. 192, TFUE – os impactos adversos no ambiente,

17 SARLET, Ingo Wolfgang. Princípios do Direito Ambiental – São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p. 166 18 LEITE, José Rubens Morato (org.). Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial: teoria e prática – 4 ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 54 19 LEMOS, Patrícia Faga Iglesias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção do meio ambiente – São Paulo, 3 ed.: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 181 20 DALLARI, Sueli Gandolfi. O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: dever do Estado ou protecionismo disfarçado? – São Paulo em Perspectiva, Vol. 16, n.2, São Paulo, 2002;

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com origem natural ou humana, tanto em face dos perigos imediatos e concretos como em face de riscos futuros e incertos...” (sublinhados nossos). Como se certifica, o princípio da precaução aparece em uma alínea concomitantemente ao princípio da prevenção. A força normativa do princípio da precaução é tão inócua, que o legislador português preferiu pô-lo ao lado de um princípio destacável, o que nos gera a dúvida se a atividade legiferante foi guiada por um inocente enquadramento, derivado de uma suposta similitude conceitual entre os princípios, ou por um próprio reconhecimento da insuficiência do princípio da precaução em termos substanciais, frente ao princípio da prevenção.

Com o trecho “perigos imediatos e concretos”, o legislador provavelmente pretendeu referir a aplicação sistemática do princípio da prevenção, que tem lógica de ser, visto que o ato de prevenir implica a existência de atividade eminentemente danosa e, sobretudo, com possibilidade certa ou concreta de ocorrência. No entanto, para justificar o surgimento do princípio da precaução na apontada alínea, o diploma seguiu no sentido de vincular sua aplicabilidade a “riscos futuros e incertos”. A vagueza da expressão é proporcional à expressão da vagueza, que nutre o presente princípio, pois considerando que em uma sociedade em que os riscos são característicos de seu funcionamento interno, fica difícil demonstrar a utilidade da precaução, por ser igualmente complexo definir o que é risco, e mais, definir diante de palavras como futuro e incerto.

A Professora Doutora Carla Amado Gomes elucida que o citado princípio, conquanto não apareça expresso na Constituição Portuguesa (1976), vem acolhido por algumas leis, como “o Artigo 3°/1/e da Lei da Água ou o Artigo 4°, e, do Decreto Lei 142/2008, sobre o Regime de proteção da natureza e da biodiversidade, exatamente com a mesma definição: as medidas destinadas a evitar o impacto ambiental negativo de uma ação sobre o ambiente devem ser adotadas, mesmo na ausência de certeza científica da existência de uma relação causa-efeito entre eles”.21

Outra perspectiva parte do direito interno francês, o qual em sua “Carta de L’environnement” (Constituição de 2005) precisa: “quando a ocorrência de um dano, inclusive que incerto frente ao estado de conhecimentos científicos, possa afetar de modo grave e irreversível o meio ambiente, as autoridades públicas providenciarão através da aplicação do princípio da precaução nas áreas de suas atribuições, a implementação de procedimentos de implementação de riscos e a adoção de medidas provisórias e proporcionais com a finalidade de evitar a realização do dano”22 (sublinhados nossos). O législateur, no contexto pós-1992, enaltece o princípio da precaução, a estilo de outras legislações, colocando-o ao lado de expressões como « dano grave e irreversível, procedimento de implementação de riscos e evitar a realização do dano », porém inovando e sendo mais claro e explicativo na determinação do agente responsável pela aplicação do princípio (as autoridades públicas nas áreas de suas atribuições) e na maneira de materialização do cânone em seu país, através da « adoção de medidas provisórias e proporcionais com a finalidade de evitar a realização do dano ».

21 GOMES, Carla Amado. Introdução ao Direito do Ambiente – Lisboa, 2 ed., AAFDL, 2014, p. 90. 22 A versão francesa da Carta de L’envioronnement: Art. 5. Lorsque la réalisation d'un dommage, bien qu'incertaine em l'état des connaissances scientifiques, pourrait affecter de manière grave et irréversible l'environnement, les autorités publiques veillent, par application du principe de précaution et dans leurs domaines d'attributions, à la mise en oeuvre de procédures d'évaluation des risques et à l'adoption de mesures provisoires et proportionnées afin de parer à la réalisation du dommage.

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No âmbito da União Europeia, as Diretivas da Comissão Europeia que regulam assuntos ambientais, vinculam todos os Estados-membros sob pena de uma perseguição sancionadora da referida Comissão ao Estado descumpridor de alguma medida. Sobre o princípio da precaução, para além das diretivas, o Tratado da União Europeia (acrescido pelo Tratado de Maastricht) fincou o preceito no seu Artigo 130, R/2: “A política da Comunidade no domínio do ambiente (...) basear-se-á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente, e do poluidor-pagador. As exigências em matéria de proteção do ambiente devem ser integradas na definição e aplicação das demais políticas comunitárias.” Afora as similitudes com os demais diplomas discutidos, o legislador eurocomunitário associa o princípio da precaução também ao princípio da correção na fonte, o qual se traduz na política de mitigação do dano em sua nascente e não no seu post mortem, reduzindo, pois, maiores impactos ao ambiente.

2.2. Nos Documentos internacionais

O uso da locução “documentos internacionais” tem o intuito de abarcar tanto o arcabouço do soft law, quanto do hard law (o dito direito convencional). O presente caso é uma prova viva de que o soft law, apesar da sua suavidade no quesito eficácia e vinculação pelos Estados, funcione como as “sandálias” do desenvolvimento, no caminho do direito internacional ambiental, como uma vez afirmou a Professora Doutora Carla Amado Gomes, “o soft law de hoje, pode ser o hard law de amanhã”. Afirma-se isso, porque foi em uma declaração internacional, que apareceu pela primeira vez o princípio da precaução. Ao contrário do que a doutrina majoritariamente considera, é da Declaração Ministerial de Bergen sobre desenvolvimento sustentável da Região da Comunidade Europeia, de 1990, a primazia: Artigo 7 – “para alcançar o desenvolvimento sustentável, as políticas devem ter como fundamento o princípio da precaução. As medidas para o meio ambiente devem antecipar, prevenir e combater as causas de degradação ambiental. No caso de risco de danos graves e irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para postergar a adoção de medidas que tenham como objetivo prevenir a degradação ambiental” (sublinhados nossos).

Entretanto o marketing internacional do princípio ficou a cargo da Declaração do Rio de Janeiro, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), que em seu princípio 15 basicamente reproduziu o que a declaração de dois anos antes já havia estabelecido, com um pouco mais de suavidade, aquela típica do soft law: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.” Como adverte Lorenzetti, a potencialidade do movimento para o campo do hard law a partir de 1992, é verificada pela “inserção em vários instrumentos internacionais: a Convenção de Bamako 1991, a Convenção sobre a proteção e utilização dos cursos d’água transfronteiriços e de lagos internacionais, Helsink (1992), (...) o Protocolo de Oslo de 1994 em matéria de poluição atmosférica”, acrescido, ainda, do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que instituiu a noção de avaliação de risco.

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A proliferação do princípio por documentos internacionais, mais que setoriais, foi intensa e pode-se dizer que chegou definitivamente para ficar, com a adoção da precaução no rol da Convenção Quadro das Nações Unidas (1992)23, seguida pela Convenção sobre a Diversidade biológica (1992), pelo Tratado de Maastricht (1992) e pelo Protocolo de Montreal (1997). Sem embargo, a difusão do princípio não foi seguida pela busca da explicação de sua essência conceitual, panfletou-se a forma (risco, incerteza científica, danos graves e irreversíveis), mas em nenhum dos documentos listados, o princípio foi esmiuçado e, portanto, passível de materialização.

Antes de finalizar a inserção jurídica e histórica do princípio da precaução, cumpre ressaltar ainda que a problemática do princípio nasceu com ele próprio, na Declaração do Rio de 1992 e dali, contaminou os subsequentes documentos internacionais. O princípio 15 do diploma, na primeira assertiva, coloca que a finalidade do princípio da precaução é a cláusula aberta “proteger o meio ambiente”, não se importando durante o corpo do texto em explicar os mecanismos tutelares e sua relação com a precaução. Vai mais além, utiliza a locução verbal “deverá ser observado”, seguido de um advérbio generalizante, “amplamente”, como um suposto imperativo de aplicação do princípio pelos Estados, porém volta atrás, já na linha seguinte, suavizando o então imperativo (nada categórico) com um “de acordo com as suas capacidades.” Ordena e, depois, adoça, como um bom soft law que é.

Finaliza o princípio 15 em condições piores, colocando como injustificado o não cumprimento do princípio por “mero” desconhecimento ou falta de domínio da técnica científica para identificar o risco, enquanto dano grave ou irreversível (observe a alternância que incorre o legislador ao propor que o dano ou é grave, ou irreversível, logo, deduz-se não caber a precaução para danos graves e irreversíveis), e conclui em alto e bom tom condicionante, que as medidas devem ser economicamente viáveis aos Estados signatários, pesando o nome da Declaração mais para o lado do Desenvolvimento do que propriamente do Meio Ambiente – termo que aparece como inicial na nomenclatura de 1992 – com a intenção de “prevenir a degradação ambiental”, colocando o intérprete diante de um princípio diverso ao que enuncia o próprio enunciado do número 15, surgindo, talvez, daí, o grande celeuma doutrinário e jurisprudencial entre a prevenção e a precaução.

3. A Incógnita Ambiental

A incógnita ambiental do princípio da precaução concerne ao fato de sua essência ser a de uma cláusula aberta e essas acabam por causar um prejuízo intransponível, qual seja, o extremismo interpretativo resultante de sua vagueza conceitual e incerteza jurídica. Na linguagem matemática, incógnita indica uma grandeza ou quantidade desconhecida, mas que se pretende descobrir para resolver o problema, no entanto, mais adequado ao caso é considerar o conceito de incógnita, enquanto adjetivo: “algo não conhecido, que não se dá a conhecer, que toma um nome suposto, uma pessoa desconhecida, que não revela seu

23 Segundo a Professora Patrícia Iglecias em Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção do meio ambiente (p. 176), “a referência ao princípio da precaução foi matéria geradora de polêmica na Convenção sobre Mudanças Climáticas de 1992, e o texto, na versão final, estabeleceu limites quanto à aplicação do princípio, mencionando a necessidade de ameaça de danos sérios ou irreversíveis e por meio da vinculação de compromissos com incentivos à tomada de medidas economicamente viáveis”.

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nome e sua identidade”. Aqui sim, reside o princípio da precaução, o desconhecido ou ignoto no direito ambiental, que não revela sua identidade nos documentos que aparece e uma grandeza que se pretende descobrir para resolver o problema de sua indefinição. Nesses temos, a precaução se configura como uma incógnita ambiental.

Nesta esteira, o mestre Ricardo Lorenzetti afirma que “o princípio da precaução gera sua própria incerteza quando se dirige ao cérebro das pessoas, apelando a suas razões”, visto que para mais de uma cláusula aberta, a precaução aparece munida de carga emotiva, daí que sua implementação torna-se duvidosa se analisarmos as posturas doutrinárias a despeito disso: “Em um extremo, há quem sustente que o princípio é uma pura declaração exortativa, mas sem um campo de aplicação prático. No outro, se argumenta a proibição de todo o empreendimento de risco ambiental, até que se demonstre algo que é quase indemonstrável.”24 Arremata Lorenzetti com brilhantismo, que “o princípio da precaução ganha consenso quando se dirige ao coração das pessoas. A adesão emocional serve para enunciação, mas não avança demais na implementação, com o qual se deixa um flanco demasiadamente amplo para objeções”25.

Destarte, o princípio enquanto cláusula aberta gera interpretações dúbias e distorcidas que levam igualmente a aplicações questionáveis sobre o paradigma da boa-fé e é por estas e outras razões, que Cass R. Sustein em “Laws of fear: beyond precautionary principle” elucida que o Estado tem dado uma resposta cega aos temores públicos, levando a implantação de verdadeiras leis do medo, derivadas da falta de clareza científica que o princípio suscita e a consequente insegurança jurídica para o sistema. Sustein é catedrático quando ilustra que “the precautionary principle posits that the absence of decisive evidence of harm is not a reason to refuse to regulate”26 para os entes públicos, e prossegue propondo que o princípio é inconsistente sob a ótica do risco, o qual existe e existirá em qualquer situação social, por isso, a precaução “gives no clear policy direction”.

A controvérsia levantada por Sustein consiste no fato de o princípio não ser uniformemente aplicado a todos os riscos, estabelecendo, assim, um método de como os órgãos reguladores podem usar a análise do custo-benefício para ajudar na materialização do princípio. Dessa análise, Lorenzetti propõe que “devemos ser precavidos com relação a precaução, porque as percepções públicas sobre o risco podem ser errôneas ou manipuláveis por interesses econômicos, pelo qual não são seguras”.27

O enigma ambiental do princípio da precaução não se restringe a sua aparição nas legislações internas, pois como deduz Philippe Sands o significado do princípio e seu status no direito internacional é questionável, não havendo “consenso entre Estados e outros membros da comunidade internacional quanto ao significado.”28 Tendo como 24 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 73 25 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 73 26 BOODHOO, Bryan. "Book Review: Laws of Fear: Beyond the Precautionary Principle, by Cass R. Sunstein, p. 744. 27 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 73 28 LEMOS, Patrícia Faga Iglesias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção do meio ambiente – São Paulo, 3 ed.: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 176.

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parâmetro a noção de cláusula geral do Direito Civil que é “uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado”29, poderíamos analogicamente enquadrar neste conceito, o princípio da precaução, por sua vagueza dogmática e consequente efeito jurídico indeterminado pela incerteza científica, em suma, é “uma linguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou vaga, caracterizando-se pela ampla extensão de seu campo semântico”30.

Dentro desta mesma escola civilista, temos que em oposição às cláusulas gerais, aplica-se a técnica casuística “utilizada nos textos normativos marcados pela especificação ou determinação dos elementos que compõem a fattispecie. Em outras palavras, nas normas formuladas casuisticamente, percebe-se que o legislador fixou, do modo o mais possível completo, os critérios para aplicar uma certa qualificação aos fatos normados”31, não seria essa uma saída para a materialização do princípio da precaução, como propôs a “Comissão da União Europeia, em uma comunicação de 2 de fevereiro de 2000 sobre as condições de aplicação do princípio da precaução, esclarecendo que não propõe a inversão do ônus da prova como regra geral, mas que prevê como uma possibilidade que deverá ser examinada caso a caso”32? Lorenzetti acredita que sim, pois como um princípio não é uma regra, a qual pode-se basear num pressuposto de fato genérico, ele “carece desta característica e deve ser aplicado em cada caso com base em um juízo de ponderação.”33

3.1.Incerteza: um limiar entre o Direito e a Ciência

A precaução mora no limiar entre o Direito e a Ciência e estas áreas possuem implicações diretas e recíprocas quando o assunto é a incerteza. Essa incerteza que nutre o princípio da precaução remonta à teoria da sociedade de riscos de Beck, encontrando-se associada a ideia de domínio da (melhor) técnica disponível e é nesse sentido que adentramos no campo científico. A precaução pauta-se na existência de um risco de dano grave ou irreversível, que uma determinada atividade pode causar ao meio ambiente, entretanto, o risco não se constitui de elementos que lhe deem precisão ou certeza de eclosão, e é, por este motivo, que se diz que para a tomada de uma ação de risco, deve se buscar ao máximo o conhecimento científico que comprove que ele não é simplesmente risco, mas é sobretudo um perigo iminente.

A Ciência atua, portanto, neste âmbito, como a baliza que enquadra o que é dano grave ou irreversível, como comprovado ou especulado. Sim, a precaução carrega também um sentido de especulação. Uma vez comprovado pelos meios técnico-científicos que há dano ambiental na situação fática, ou seja, que há nexo de causalidade, cabe ao Direito a tomada de medidas restritivas à atividade de impacto. Observe que o Direito, aqui, atua no fim da linha de um processo que o protagonismo médio (do meio) incumbe à Ciência, o que se comprova com o fato de que identificar o nexo de causalidade, nestes termos, 29 DIDIER JUNIOR, Fredie. Cláusulas Gerais Processuais. 30 DIDIER JUNIOR, Fredie. Cláusulas Gerais Processuais. 31 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9ª ed. J. Baptista Machado (trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 228-229. 32 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 85 33 Nota de rodapé de LORENZETTI, Ricardo Luis, em Teoria Geral do Direito Ambiental p. 85

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não é função precípua do operador jurídico, mas sim, do agente científico, isto é, o nexo etiológico de que se fala é aquele técnico, minimamente provado (entre o risco da conduta e o dano grave ou irreversível do resultado).

É confesso e consensual que no ramo do direito ambiental devido ao seu sistêmico modus operandi, a incerteza científica paire sobre os institutos e preceitos, entretanto, determinar a precaução como um princípio que regerá todo um sistema jurídico, com base no maior obstáculo a ser transposto pelo próprio ramo, é antes de mais nada, um contrassenso ontológico. Destaca-se que a incerteza quando do assunto em análise, pode possuir várias facetas, mas a que nos detivemos neste tópico é àquela referente ao campo técnico-científico, isto é, que se pauta nos elementos: risco de dano grave ou irreversível e relação causal.

Dito isso, podemos, agora, nos direcionar à incerteza em seu âmbito temporal, a qual ocupa o centro dos holofotes do tema, a incerteza “no momento da decisão”, uma expressão utilizada por alguns doutrinadores, como o mestre Ricardo Lorenzetti para designar que a comprovação de ausência de certeza científica deve se dar ao tempo da tomada de decisão, por exemplo, por um parecer administrativo favorável à instalação de um parque industrial numa determinada zona. A necessidade de se ter a incerteza no ato decisório, surge com o fato de ela poder caducar com o tempo, tornando-se pela ciência, uma comprovada certeza de impacto ambiental, corroborando, por fim, com a ideia de que dificilmente em se aguardando ou almejando a ascensão probatória de um conhecimento científico, ter-se-á uma ação ambiental efetiva.

Na hipótese de não se saber se determinada atividade implicará ou não um dano grave, é que se julga entrar em cena a precaução, todavia, “deve haver um ponto de acesso ao princípio da precaução, já que do contrário se poderia argumentar no sentido de que qualquer atividade num futuro próximo ou distante causará dano. (...) A incerteza requer que seja determinado se, ao momento da decisão, existe falta de conhecimento científico sobre a probabilidade do dano”. Assim, a incerteza científica que paira sobre o princípio, acaba por pesar também na incerteza terminológica do mesmo e consequentemente, em seus efeitos jurídicos (ou falta deles), consubstanciados na (in)utilidade prática e eficácia duvidosa que o rondam.

3.2. (In)utilidade prática e eficácia duvidosa do princípio da precaução

Buscando na Ciência Econômica um conceito para utilidade, vê-se evidente conexão semântica com o potencial nível de rentabilidade de algo ou satisfação obtida perante o uso de algo. Trazendo essa ideia para o mundo jurídico, cabe afirmar que a utilidade figura como uma espécie de resultado de eficácia, o que analogicamente na linguagem dos economistas sugere o termo rentabilidade, ou seja, tanto mais útil é um conceito (princípio) no plano jurídico, quanto mais é possível discernir sua via de eficácia pragmática. Aquilo que não é útil, logo, por antagonismo e - até um pouco de redundância -, é desprovido de utilidade, de eficácia, rentabilidade ou satisfação, um conceito que, por mais que exista enquanto paradigma, não obtém êxito na materialização de seus fins, e por isso, torna-se obsoleto e inoperante. Assim, se contraditória é a posição que a precaução ocupa em sede doutrinária, é já de se imaginar sua (in)utilidade prática.

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Os princípios aparecem como meios para a realização de determinados fins. Neste ponto, em que medida tem sido o princípio da precaução um meio para realização de um objetivo ambiental? E mais, qual é a teleologia do princípio? Tomando por base os elementos fulcrais que guiam o princípio, temos que o principal é o risco de dano grave ou irreversível, no entanto qual é o grau de risco que se deve ter para se dar o start precautório? Pois uma vez comprovado minimamente o risco, já não se estará mais diante de um caso de precaução, mas sim de prevenção.

Além disso, e mais grave, é a incongruência que o princípio cria para si mesmo, ao exigir observar a obrigatoriedade na comprovação de um dano, o qual concomitantemente deva ser incerto, cientificamente, para configurar a atitude de precaução. É pressuposto da precaução a busca da comprovação do risco enquanto dano, mas também o é, para ser precavida a ação, que haja incerteza científica, assim o risco como fator para aplicação deste princípio acaba por ser um não-fator? Aqui reside substancialmente a sua (in)utilidade prática, pois na primeira hipótese em que o dano seja comprovado, não haverá mais incerteza, aplicando-se, então, a prevenção e, na segunda hipótese, só havendo o risco e não havendo certeza, não faz sentido exigir que esta exista e que se demonstre o nexo causal, porque novamente a saída se daria pela prevenção.

A Professora Carla Amado Gomes ensina com maestria que essa situação de eficácia duvidosa do princípio pode ser constatada pela análise de suas versões modulares: a versão fraca de precaução comete na ausência de operabilidade (utilidade), pelo fato de não haverem atualmente “certezas e adotar tal postura seria retrocesso civilizacional intolerável” diante da proibição de determinados comportamentos sob a justificativa de incerteza, e a versão forte que deve ser mitigada, porque o custo de “minimizar um risco cuja existência e intensidade se desconhece quase em absoluto é incomensurável”, e, a que mais nos interessa, a versão média (situada entre a fraca e a forte) que, segundo Gomes é a que consta do princípio 15 da Declaração de 1992, a qual supõe “uma análise sopesando o custo-benefício das medidas”, acabando a precaução por corresponder “ao cabo e ao resto, à prevenção modulada pela proporcionalidade”34.

Na mesma linha da renomada jurista portuguesa, porém sob outro prisma tipológico, o jurista argentino Ricardo Lorenzetti estabelece uma distinção entre versões do princípio da precaução, se contendo a expor o seu modo fraco (“consiste em afirmar que é uma declaração de natureza meramente exortativa e que é uma opção de política pública de aplicação voluntária”) e forte (“leva a sustentar que é uma norma jurídica que obriga a optar pela mais precavida das opções que se tenham à disposição”35). Enfim, é sob a lupa do princípio da proporcionalidade e somente através dela, que se torna possível amenizar o problema da incógnita ambiental do princípio da precaução, pois este acaba por gerar “um campo de tensão que (só) se resolve mediante um juízo de ponderação, que consiste em medir o peso de cada princípio no caso concreto”.36

4. O princípio, a carga emotiva e a inversão do ônus da prova

34 GOMES, Carla Amado. Introdução ao Direito do Ambiente – Lisboa, 2 ed., AAFDL, 2014, p. 90 35 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 78 36 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.81

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Legado doutrinário deixado por Robert Alexy em sua icônica “Teoria dos direitos fundamentais” e que, mesmo assim, não restou imune a interpretações dúbias, gerando, ainda hoje, grande dúvida nas doutrinas e hermenêuticas jurídicas mais bem conceituadas do globo, o modelo dúplice coloca a manifestação das normas ora como princípios, ora como regras. Os princípios, nesta conjuntura, devem ser compreendidos como mandatos de otimização, ordenando um fazer algo “na maior medida possível”, sem necessariamente deles derivar uma sanção proibitiva ou restritiva, como ocorre com as regras. E é aqui, que Lorenzetti diferencia os princípios, dos valores, “o valor expressa um juízo comparativo (compara um valor com outro), e nisso se diferencia do princípio (mandato de otimização), (...) neste aspecto os valores ambientais começam a exercer uma função, porque pretendem ser comparados com outros valores e ter prioridade.”37

A carga emotiva na linguagem da Semiótica do Direito é um elemento configurador do corpo dos princípios, pois estes vêm geralmente carregados de catarse interpretativa que acabam por matar a essência ou a pretensão de materialização do escopo originário destes dispositivos jurídicos, “é de se ver que a palavra “princípio” é dotada de vagueza, em razão da dificuldade de se traçar seu conceito; ambiguidade, podendo ser encarada como norma, enunciado jurídico, fonte do direito; e carga emotiva, que confere aos princípios função heroica na sistematização do direito”.38

Na área ambiental é preciso, antes de uma produção eloquente de princípios diante de qualquer carga emotiva, uma precisão do norte que os guiará rumo aos seus meios possíveis de materialização, é um ramo que clama por respostas concretas e não cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados. Corre-se o risco de desenhar demais um direito pouco eficiente, perdendo-se no caminho do sollen (mundo do dever ser) para o sein (mundo do ser), acabando com a ratio essendi do contencioso ambiental. O “panprincipialismo” que ilustrou o jurista brasileiro Lênio Streck (crítico da concepção dos princípios enquanto mandados de otimização)39 deve o quanto mais se distanciar do direito ambiental, um ramo que “nem sempre se encontra imune a excessos de perfil até mesmo fundamentalista ou, pelo menos, o que é mais frequente, de uma dose de voluntarismo que procura se legitimar mediante invocação genérica – e, por vezes, mesmo panfletária – do discurso dos princípios.”40

A precaução, enquanto princípio pode ser caracterizada pela antecipação, pelo risco anterior ao perigo e pela consequente inversão do ônus da prova. A inversão do ônus da prova talvez seja o principal canal de materialização de um princípio pouco útil ao direito ambiental, pois alguma doutrina tem afirmado que é este princípio o fundamento em nível processual que “justifica a inversão do ônus da prova, (...) fazendo recair sobre o suposto poluidor (causador do dano) o ônus de provar a segurança ambiental da técnica, atividade

37 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 33 38 MAIOLI, Leonardo Miranda. Interpretação e a existência de princípios no sistema jurídico: olhar hermenêutico, p.17 39 Em Verdade e consenso, Lênio Streck critica a forma como os princípios são utilizados pelos hermeneutas brasileiros, o que se confirma em: “é equivocada a tese de que os princípios são mandatos de otimização e de que as regras traduzem especificidades (em caso de colisão, uma afastaria a outra, na base do “tudo ou nada”), pois dá a ideia de que os “princípios” seriam “cláusulas abertas”, espaço reservado à “livre atuação da subjetividade do juiz”. 40 SARLET, Ingo Wolfgang. Princípios do Direito Ambiental – São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p. 18.

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ou empreendimento impugnado”41. Segue também nesta linha o Professor Doutor Ricardo Luis Lorenzetti ao enunciar que “Em virtude do princípio da precaução, o ônus probante se inverte, (...) impondo-se a carga probatória a quem propõe a atividade potencialmente danosa, a quem se beneficia com ela, ou a quem tem tido acesso à informação.”42

No entanto, o que cabe discutir é como encontrar a melhor técnica de segurança ambiental quando o assunto em análise é a incerteza científica que nutre o risco, como exigir do particular um conhecimento técnico que possivelmente não é de acesso a nenhuma ciência disponível? É fato que diante de um perigo, ou seja, diante de uma circunstância em que se tenha certeza científica ou ao menos mínima comprovação lógica de um nexo etiológico, a inversão do ônus da prova caiba, porque a parte tem a seu dispor recursos científicos probantes que sustentem sua defesa.

Quando o assunto é risco e, logo, princípio da precaução, como exigir draconianamente da parte uma comprovação que nem as escolas científicas são capazes de dar? Para além deste entendimento, reforça Lorenzetti que as consequências desse enigma do princípio da precaução também podem ser as seguintes: “no plano jurídico leva a uma ausência de coisa julgada, posto que não há decisões definitivas, senão parciais, experimentais, adaptativas, reorientadoras da atividade.”43 Portanto, o princípio da precaução deve ser balizado pelo juízo de ponderação devido a sua natureza movediça basilar.

5. Prevenção e precaução: complementariedade ou excesso?

Lorenzetti estabelece que é com o grau de incerteza científica que é possível notar a principal diferença entre os princípios da prevenção e da precaução, pois na “primeira se age frente a uma ameaça certa, mas, se não se prova essa certeza não se age. Por outro lado, na precaução tomam-se medidas ainda frente a uma ameaça incerta.”44 A prevenção é um princípio historicamente anterior à precaução tendo sido consagrado desde 1930, e estando presente em praticamente todos os documentos internacionais e legislações nacionais ambientais, desde então. Diz muito apropriadamente o dito popular que “é melhor prevenir que remediar” e dele podemos entender o ambiente de certeza científica que nutre este preceito, ao contrário da precaução, pois só há remédio regulado para problemas que já foram pesquisados e comprovados que existam e, mais, o remédio adequado é determinado, não determinável. Portanto, na prevenção não há risco integral, o que há é perigo lato sensu (inclusive riscos relativos).

O Professor Paulo Afonso Leme Machado ao afirmar que “em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou de incerteza, também se deve agir prevenindo”45, acaba sugerindo justamente essa ideia de que a precaução, quando aplicável, não é precaução, é prevenção. 41 SARLET, Ingo Wolfgang. Princípios do Direito Ambiental – São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p.168 42 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 87 e 88 43 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 88 44 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 83 45 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.75.

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Dessa forma, entre esses dois princípios, ladeados em praticamente todos os documentos legislativos listados neste trabalho, a relação não é de mera complementariedade, senão de confusão e excesso.

Na prevenção, previne-se, na precaução, antecipa-se ao dano. Para melhor compreendermos a distinção entre os princípios em voga, cumpre sabermos a distinção entre risco e perigo, que são conceitos distintos, porém conexos em certa medida. Na doutrina alemã, perigo é um termo que fomenta o mandado de proibição, pois sua ocorrência é certa e previsível, enquanto risco, dirige-se a um mandado mais aberto, de tolerância ou até mesmo permissão. Como propõe Carla Amado, perigos são todos aqueles fatos com probabilidade científica de ocorrer, já os riscos são fatos que residem na possibilidade (não cientificamente comprovada) de eclodir. Dessarte, falar em perigo é cair no templo da prevenção, dizer risco é entrar no santuário duvidoso da precaução.

Na busca por uma clara distinção entre o que pretende cada princípio, nenhuma lição foi mais ilustradora do que a do Professor Lorenzetti que traça o perfil do sujeito precavido em comparação com o prevenido, ipsis litteris: “Suponhamos que um funcionário público ou um juiz receba uma petição de um grupo de cidadãos para limitar uma atividade que poderia causar um dano grave ao meio ambiente, sem que existam provas científicas concludentes. Um prevenido sustentaria que não há fundamento jurídico para limitá-la, argumentando a) Que há que prevenir toda lesão grave ao meio ambiente; b) Que é preferível agir antes a não fazer nada, mas sempre há que respeitar os direitos dos demais, e a segurança jurídica; c) Que no caso não há uma prova da relação causal. Um precavido poderia limitá-la argumentando: a) Que há que prevenir toda lesão grave ao meio ambiente; b) Que é preferível agir antes a nada fazer; c) Que a falta de certeza não é uma desculpa admissível”46 (sublinhados nossos).

6. Conclusão: a precaução como uma incógnita ambiental

Um dos critérios que devem ser utilizados para se aplicar o princípio da precaução é ter uma avaliação científica tão completa quanto possível ao tempo da disponibilidade temporal dos estudos. Neste sentido, aponta o Prof. Dr. Rüdiger Wolfrum que o princípio da precaução incorre necessariamente, para ter alguma eficácia, numa obrigação de fazer uso da melhor tecnologia disponível ao tempo do sugestivo dano ambiental, como se observa em: “A noção da melhor tecnologia disponível requer que se tomem ações para a proteção ambiental, com o uso dinâmico da tecnologia protetora moderna. No entanto, o padrão de proteção é indicado pelo desenvolvimento técnico.”47

Depois de uma ampla discussão sobre os riscos e perigos que caracterizam os princípios da precaução e prevenção, distinguindo-os nesta medida, chegamos a um questionamento maior: para além deste conceito de risco, não estaria o panprincipialismo também carcomendo a eficácia do direito ambiental? Se a incerteza científica dos riscos é certa, a

46 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.75 47 WOLFRUM, Rüdiger. Coleção Direito Ambiental em debate – Princípio da Precaução; organizadores Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau. – Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, p. 33.

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certeza da incerteza doutrinária e da falta de segurança jurídica causadas por princípios como o da precaução, é mais que comprovada.

O Professor Ricardo Luiz Lorenzetti, após longa análise sobre o princípio da precaução e suas causas e efeitos no mundo prático e jurídico, diversamente do que defendemos, posiciona-se a favor do enquadramento do princípio no rol do Direito Ambiental, porém com uma condicionante, ao recomendar: “No estado atual do paradigma ambiental, estimamos que deva se aceitar o princípio da precaução, mas devemos avançar para a fase de implementação, para fazer dele uma realidade possível e não uma mera declaração politicamente correta, mas inaplicável (...) a questão é difundir o princípio, mas também indagar sobre o modo em que se instrumentaliza: o que significa ser precavido?”48

Das motivações, desde a análise histórica até a diferenciação com o princípio da prevenção, o princípio da precaução foi lastreado pela incógnita ambiental no presente trabalho, isto é, o enigma que o domina e que se prolifera por outros princípios nesta área. Não há consenso doutrinário se a precaução deveria ou não ser enquadrada como princípio geral de direito ambiental, mas o fato é que ela já o foi, por diversos documentos internacionais e legislações internas, assim, incumbe, agora, aos intérpretes e operadores do direito, pautados na boa-fé que deve reger o mundo jurídico, analisar casuisticamente se é ponderado e proporcional aplicar o princípio da precaução com vistas ao resguardo do bem em foco, o meio ambiente.

Por fim, dos muitos doutrinadores que já escreveram sobre o tema, alguns referenciados aqui, julgo ser honesto destacar duas posições conclusivas: a da Professora Doutora Carla Amado, que observa o fenômeno da incógnita ambiental da precaução, como uma “desubstancialização do princípio (que) reforça a tese da sua consunção pela prevenção”49 e do Professor Doutor Ricardo Lorenzetti, que conclui seu capítulo sobre o tema ponderando: “a precaução é mais intensa em casos em que há riscos de origem humana, não renováveis, com uma incerteza que supera o cálculo de probabilidades e a difusão racional do custo.”50

Ao fim e ao cabo, mais que clara é a nossa posição sobre o tema da falta de rentabilidade, satisfação ou utilidade do princípio da precaução ao que o campo latente do meio ambiente requer, e como epílogo desta investigação, questionamos, mesmo que retoricamente, aos idealizadores deste princípio, a seguinte máxima do poeta pré-modernista brasileiro, Augusto dos Anjos: (E a precaução...) “De onde ela vem?! De que matéria bruta vem essa luz, que sobre as nebulosas cai de incógnitas criptas misteriosas, como as estalactites duma gruta?”

48 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 74 49 GOMES, Carla Amado. Introdução ao Direito do Ambiente – Lisboa, 2 ed., AAFDL, 2014, p.91 50 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental; tradução de Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 99

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