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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN
CAMPUS AVANÇADO PROFª “MARIA ELISA DE A. MAIA” – CAMEAM
DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL
PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL
MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO
LINHA DE PESQUISA: TEXTO, ENSINO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS NO GÊNERO TIRA EM QUADRINHOS: UM
ESTUDO DA MULTIFUNCIONALIDADE DOS USOS DISCURSIVOS DO E NUMA
PERSPECTIVA FUNCIONALISTA
Francimeire Cesário de Oliveira
Pau dos Ferros/RN
2012
Francimeire Cesário de Oliveira
A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS NO GÊNERO TIRA EM QUADRINHOS: UM
ESTUDO DA MULTIFUNCIONALIDADE DOS USOS DISCURSIVOS DO E NUMA
PERSPECTIVA FUNCIONALISTA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Letras.
Orientadora: Profª. Dra. Rosângela Maria Bessa
Vidal
Pau dos Ferros/RN
2012
Francimeire Cesário de Oliveira
A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS NO GÊNERO TIRA EM QUADRINHOS: UM
ESTUDO DA MULTIFUNCIONALIDADE DOS USOS DISCURSIVOS DO E NUMA
PERSPECTIVA FUNCIONALISTA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, avaliada
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profa. Dra. Rosângela Maria Bessa Vidal - UERN
Presidente da Banca
__________________________________________________
Prof. Dr. Edvaldo Balduino Bispo – UFRN
Examinador
___________________________________________________
Prof. Dr. João Bosco Figueiredo Gomes - UERN
Examinador
_____________________________________________________
Profª Dra. Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa - UERN
Suplente
Pau dos Ferros
2012
De tudo ficaram três coisas...
A certeza de que estamos começando...
A certeza de que é preciso continuar...
A certeza de que podemos ser interrompidos
antes de terminar...
Façamos da interrupção um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro!
Fernando Sabino
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o
amor, estas três, mas a maior destas é o amor.
1Corintios, 13-13
AGRADECIMENTOS
Primeiro, agradeço a DEUS,
Por ter me capacitado para esta tarefa (incumbida por este trabalho) e pela força
sublime que dele ecoa em todos os momentos de minha vida, principalmente nos
decisivos;
Estendo essa gratidão,
À orientadora deste trabalho, Rosângela Vidal, com sua paciência, gentileza e
delicadeza incomparável; pelo compromisso de mediar o processo de orientação
sempre com muito carinho e sensibilidade.
Aos colegas do curso de Mestrado, com os quais cruzamos diálogos não somente
teóricos, mas outros tantos expressivos e sinônimos de alegria, amizade e
cumplicidade. Além da conquista de novos amigos e reencontro com outros. Deixo
esse agradecimento em especial à Ana Alice, contato mais intenso; também à Midiã
e Tatiane, colegas funcionalistas.
Aos colaboradores, participantes da banca examinadora, que trouxeram
contribuições significativas para este trabalho;
À Profa. Dra. Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa juntamente com o Prof.
Dr. João Bosco Figueiredo Gomes, pelas valiosas contribuições durante exame de
qualificação.
À todos os professores do Curso de Mestrado PPGL/UERN e demais funcionários;
Aos colegas de trabalho, dos quais fiquei ausente nesse período, pelo menos da
maior parte deles;
À uma colega de orientação, além de conterrânea, a aluna de graduação Telma
Patrícia, que me ajudou bastante com a parte técnica do trabalho e em tudo que
precisei;
À UERN que busca constantemente incentivar as atividades acadêmicas com
propriedade e no intuito de nos motivar a sempre evoluir, juntamente com espírito
da instituição;
À secretaria do PPGL nas pessoas de Marília e Ricardo que estão sempre aptos a
nos ajudar no setor administrativo do curso;
Ao professor Nilson Barros pela revisão do Abstract desse trabalho;
Enfim...
Levo meu agradecimento e meu carinho a todos que estiveram ao meu lado no
percurso dessa jornada, que torceram e proferiram palavras de incentivo, seja de
forma direta ou indiretamente, em direção a realização deste trabalho. Dentre tantos
especifico meu esposo Deuberto e minhas maravilhosas filhas Mariana, Marina e
Marília; meus pais Chico e Maria; minhas irmãs Meirivanda, Francimária,
Francicleide, Edneide e meu irmão Júnior.
RESUMO
As construções linguísticas por serem de natureza dinâmica, propriedade adquirida pelos usos,
possibilitam uma variedade de funções no contexto discursivo. Partindo desse aspecto da
língua, buscamos compreender como se manifesta a multifuncionalidade dos usos discursivos
do item linguístico E no gênero tira em quadrinhos, considerando suas relações de
significação e a situação de comunicação. Para tanto, adotamos os pressupostos teóricos do
funcionalismo linguístico (vertente norte-americana) como fundamentação base, apoiando-
nos principalmente nas propostas de Neves (1997); Givón (2001); Furtado da Cunha, Oliveira
e Martelotta (2003); Furtado da Cunha e Tavares (2007); Martelotta (2009). Como suporte de
fundamentação também nos apropriamos da noção de gênero discursivo na concepção
bakhtiniana. A revisão da literatura revisitou diversos trabalhos, dentre eles o de Neves
(2000), Penhavel (2009), Camacho (1999), Tavares (2007). Para constituir o corpus da
pesquisa, coletamos textos do gênero tiras em quadrinhos, on-line, do quadrinista Laerte. E a
análise foi realizada a partir de três funções discursivas de atuação do E: Sequenciamento
retroativo-propulsor, Introdução de tópico discursivo e Focalização. Essas funções também
foram observadas quanto a sua articulação textual do gênero tira em quadrinhos e quanto as
suas eminências da produção de significação consoante com a perspectiva do gênero
discursivo. A abordagem da pesquisa é de cunho predominantemente qualitativo, porém
recorremos aos aspectos quantitativos. Os resultados demonstraram como uso mais recorrente
o E na função de Sequenciamento e menos recorrente como Focalizador. No nível do
discurso, em qualquer dessas funções analisadas, ainda conserva o traço semântico de adição,
porém na condição de gradiência, constituindo um contínuo de suas funções, assim sendo, na
função de Focalizador esse traço é quase imperceptível e na função de Sequenciador é mais
perceptível e na função de Introdução de tópico discursivo se apresenta num nível
intermediário. Verificamos ainda evidências de estratégias discursivas como inferências, uso
de anáforas e catáforas, relação entre as informações dadas e não dadas, mecanismos de
coesão e progressão textual dentre outras.
PALAVRAS-CHAVE: Uso linguístico. Multifuncionalidade. Item E. Gênero tira em
quadrinhos. Significação.
ABSTRACT
Language constructs, for being dynamic in nature, a feature revealed by means of experience
in usage, allow a variety of functions in a discursive context. Through this aspect of language,
we seek to understand how multifunctionality of discursive usage of the linguistic item E
(and) expresses itself in the genre comic strip, considering its meaning relationships and the
communicative environment. To this end, we support our analysis on the assumptions of the
American linguistic functionalism, especially on the proposals of Givón (2001), Furtado and
Tavares da Cunha (2007); Furtado da Cunha, Oliveira and Martelotta. (2003); Martelotta
(2009), Neves (1997). And Bakhtin's notion of speech genre is also adopted. We revisited
several works, among them Neves (2000), Penhavel (2009), Camacho (1999), Tavares (2007).
To form the corpus, we collected texts of the genre comic strips, from Laerte, available on the
internet. And the analysis was performed from three discursive functions, retroactive
Sequencing-propellant, Introduction to topic of discourse and focusing, of E (and)
performance in text articulation of the genre comic strip. We considered also the eminence of
meaning production consonant with the perspective of speech genre. The research approach is
predominantly qualitative, however, quantitative aspects are also involved. The results
pointed out that the most recurrent use of E (and) is with the function of Sequencing and less
recurring as Focusing and that in any of these functions it still keeps the semantic feature of
addition, though at gradience levels, thus, in Focusing function it is almost imperceptible and
in the Sequencing function it is more noticeable. We also verified evidence of discursive
strategies as inferences,use of anaphora, the relationship between given and not given
information, mechanisms of cohesion and textual progression among others.
KEYWORDS: language use. Multifunctionality of E (and) Item. Genre comic strip. Meaning.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Funções discursivas – grupo dos Marcadores Discursivos.................................64
Quadro 2 – Contínuo aditivo do E e suas funções correspondentes .....................................67
Quadro 3 – Funções do conectivo E no discurso...................................................................81
Quadro 4 – Sub-funções do Sequenciamento retroativo-propulsor ................................... 109
Quadro 5 – Dados das funções discursivas e demais ocorrências do E..............................113
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
1 FUNCIONALISMO LINGUÍSTICO ............................................................................ 16
1.1 A abordagem norte-americana............................................................................................16
1.2 Concepção de gramática: aspectos linguístico-discursivos e cognitivos na confluência dos
usos ..................................................................................................................................... 23
1.3 Categorias analíticas do funcionalismo linguístico norte-americano ............................... 32
2 SIGNIFICADO E GÊNERO NAS TIRAS EM QUADRINHOS....................................41
2.1 Considerações gerais sobre os gêneros discursivos: aspectos da teoria bakhtiniana .........41
2.2 A significação nos gêneros discursivos e as possibilidades de sentidos ........................... 41
2.3 Considerações sobre os gêneros em quadrinhos ................................................................47
3 REVISÃO DA LITERATURA SOBRE O ITEM LINGUÍSTICO E.............................53
3.1 Valores semântico-discursivos do E...................................................................................53
3.1.1 As (multi)funções do E e suas relações discursivas.........................................................62
3.1.2 Breve sistematização das funções discursivas do E.........................................................66
3.2 A articulação discursiva com E...........................................................................................70
4 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA ...................................................... 74
4.1 Características da pesquisa ............................................................................................ 74
4.2 Corpus e procedimentos de coleta dos dados ................................................................. 74
4.3 Procedimentos para as formulações teóricas e para a análise dos dados ...........................77
5 ANÁLISE DA MULTIFUNCIONALIDADE DO E NO GÊNERO TIRA EM
QUADRINHOS ............................................................................................................... ...82
5.1 A multifuncionalidade dos usos do E no gênero tira em quadrinhos: relações semânticas
aditivas e produção de significados .........................................................................................82
5.1.1 Focalização.......................................................................................................................83
5.1.2 Introdução de Tópico Discursivo ....................................................................................90
5.1.3 Sequenciamento retroativo-propulsor .............................................................................97
5.1.4 Fluidez no comportamento discursivo das funções do E ..............................................108
5.2 O E na articulação discursiva ...........................................................................................113
CONCLUSÃO:......................................................................................................................119
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 123
INTRODUÇÃO
Tem sido frequente a presença de estudos que enfocam a variedade de funções,
relativas aos usos recorrentes de determinados itens lexicais e/ou gramaticais na organização
do discurso, cuja perspectiva é dar respaldo ao ambiente fluido da língua, enquanto função
comunicativa. Essa tarefa busca compreender e sugerir justificativas para o devido fenômeno
em que tais recorrências acabam por assumir uma regularidade, devido à frequência de uso.
Mesmo que, posteriormente, continuem a se modificar, o que desencadeia na necessidade de
revisão do padrão gramatical.
Esse ambiente que comunga o sistema e o uso da língua, de onde é descendente a
multiplicidade de funções e significações das formas linguísticas, pode ser nomeado a partir
de diversos pontos de vista: um processo de multifuncionalidades (NEVES, 1997) ou de
interdiscursividades (MARCUSCHI, 2008). Dessa feita, a língua assume um caráter dinâmico
apresentando, por um lado, variações e, por outro, a mudança linguística, mas de certo modo,
mantendo a estabilidade que dá equilíbrio ao sistema (MARTTELOTTA, 2003).
Esses pressupostos, pertencentes à corrente de estudos do funcionalismo linguístico
contemporâneo, ganharam foco na mediação entre teorização linguística e prática pedagógica
(OLIVEIRA; COELHO, 2003), cuja maior ênfase são os aspectos gramaticais visando à
análise de fenômenos que emergem do uso da língua (FURTADO DA CUNHA e TAVARES,
2007; OLIVEIRA e CEZARIO, 2007), com o propósito de ampliar a competência
comunicativa evidenciada no emparelhamento forma e função, por meio das relações de
motivações cognitivas e discursivas.
Esse conjunto de reflexões sistemáticas que contempla o funcionamento do sistema de
uso da língua encontra amparo sob o ponto de vista da interação verbal, que se apoia nos
seguintes aspectos:
a) Na concepção de língua como uso corrente que participa do plano de atividades
sociais e interativas;
b) Na visão de que o sistema da língua é aberto, por isso, sujeito às motivações que
interferem na interface forma e função;
c) Na intrínseca relação entre os domínios discursivo, funcional e cognitivo, os quais
inspiram os padrões gramaticais e confirmam a proximidade entre discurso e
gramática;
12
d) Na noção de gêneros textuais, como referente a materialidade de textos que
circulam em situações sociocomunicativas do cotidiano e que são definidos por
sua funcionalidade, propósitos comunicativos e seu estilo, este último, reflete as
realizações histórico-sociais.
Tendo em vista esses fatores, os mecanismos de produção de significação são muito
mais extensos do que a visão do produtor de textos, pois eles, ao serem submetidos ao plano
das funções, adquirem consistência discursiva permitida pela extensão dos usos com o
contexto, onde estão envolvidos as condições de produção, o papel que os interlocutores
exercem na cadeia discursiva, o propósito comunicativo. Essas peculiaridades resultam
também na escolha de um gênero.
Em suma, há uma certa razão quando Saussure (1995) afirma que na língua não há
objetos naturais porque todos são resultantes de um ponto de vista particular, ou como diria
Machado (2007 p. 194), “somente o posicionamento permite falar em determinação e
relatividade na enunciação discursiva.”
Assim, é comum, nas línguas em geral, que as formas linguísticas modifiquem suas
propriedades funcionais, ressurjam ou surjam a partir das já existentes para atender as funções
que exercem no discurso.
A proposta de estudo neste trabalho tem como objetivo central compreender a
multifuncionalidade dos usos discursivos do E no gênero tira em quadrinhos investigando, por
via desse, suas relações aditivas num parâmetro de gradiência, além da análise de sua
produção de significação na articulação discursiva. O prosseguimento desse objetivo foi
norteado em outras especificações que buscam:
Identificar a multifuncionalidade dos usos discursivos do E no gênero tira em
quadrinhos.
Investigar os diferentes usos do E a partir dos significados.
Verificar as contribuições do item E na articulação discursiva e na produção de
significados no gênero tira em quadrinhos.
Para tanto, partimos da abordagem tradicional, na qual a postura do E é
essencialmente gramatical e chegando a uma abordagem mais ampla, na qual assume funções
que atuam na organização do discurso e não apenas num âmbito local.
Na literatura, encontramos trabalhos com essa consideração, dentre eles estão Neves
(2000; 2010); Camacho (1999; 2001); Penhavel (2005; 2009); Tavares (2007; 2010). Em
Neves (2000), por exemplo, ao abordar diversos usos do português, considera o item E como
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um coordenador a partir de quatro aspectos que são: a natureza de sua relação, lembrando o
seu caráter de neutralidade; o modo de construção, mostrando que ele ocorre em diversos
níveis (palavra, sintagma, orações e enunciados); o valor semântico, analisa quanto à sua
distribuição (iniciando sintagmas, orações ou enunciados pode atuar na adição de unidades do
sistema de informação, de temas, de um pedido de informação, de argumentos, etc) e quanto à
sua ordenação, as construções com o coordenador E podem ser simétricas e assimétricas.
Camacho (1999) oferece uma classificação tipológica dos usos do E, observando-os
nos diferentes níveis da gramática do português falado e toma como noção de análise a
ambiguidade pragmática que implica em demonstrar que os mesmos princípios que regem a
coordenação simples e múltipla de termos e no nível da oração, aplicam-se também à
coordenação de orações no nível textual.
Em Penhavel (2009), o objetivo central é descrever, sistematizar e explicar o
funcionamento do conectivo E no português brasileiro falado, considerando desde as funções
que se relacionam num nível mais local até às funções que atuam na articulação discursiva
mais ampla, admitindo que o valor semântico aditivo é um traço persistente se manifestando
num contínuo escalar de mais para menos aditivo.
Tavares (2010) investiga o item E na função de Sequenciamento retroativo-propulsora
de informações, cuja atuação no domínio funcional é responsável por articular o enunciado no
discurso, num movimento simultâneo de continuidade e consonância com o já dado.
Tendo em vista esse respaldo, que aborda a multifuncionalidade do item linguístico E,
a principal questão que norteou esta investigação foi identificar as (multi)funções que atuam
num nível mais amplo (no discurso), além do grau aditivo que assumem em face dos valores
semânticos, para posteriormente saber como se manifestam na articulação discursiva do
discurso do gênero tira em quadrinhos. Para averiguarmos essas questões elegemos três
funções capazes de atuar no âmbito: Focalização, Introdução de Tópico Discursivo e
Sequenciamento retroativo-propulsor.
Por intermédio dessas concepções, já discorridas, a visão gramatical se relaciona ao
constante processo de mudança da língua, cujas ocorrências têm vinculação com o discurso,
dado ao estado criativo demandado pelos usuários, refletidos na e pela linguagem.
Para viabilização desta pesquisa, de cunho qualitativo com suporte quantitativo,
compomos um corpus de 174 tiras em quadrinhos e com 203 ocorrências do item E, todas de
autoria de Laerte e coletadas em mídia virtual. Desse corpus selecionamos uma amostra de 29
tiras para efetuar as análises.
14
Este trabalho está assim organizado: na introdução, apresentamos sucintamente alguns
aspectos como a situação-problema que se instara a respeito de como se manifesta a
multifuncionalidade do item E, justificando essa multiplicidade em decorrência da atuação
discursiva no texto/gênero, para tanto, desde já apontamos qual a concepção de gênero
adotada neste trabalho. Para ilustrar a multifuncionalidade elencamos alguns trabalhos que
tratam dessa questão e mediante nossos objetivos apresentamos as opções metodológicas
tanto para o desenvolvimento do trabalho quanto para suas análises. Apresenta-se ainda a
organização estrutural desse trabalho.
No primeiro capítulo, estão presentes as questões centrais da fundamentação teórica
que se baseiam na abordagem funcionalista norte-americana. Relatamos os fundamentos que
sustentam o paradigma funcionalista, como a noção de uso relacionado a conceitos como
sistema, estrutura e função; a vinculação entre discurso, gramática e os aspectos cognitivos
que se agregam nessa relação; a compreensão de língua e linguagem; além dos aspectos
fundamentais dessa corrente linguística. Os relatos deste capítulo buscam aferir sobre os
conceitos que orientam ao fenômeno de análise, tais como propósito comunicativo, língua em
uso, entre outros.
No segundo capítulo, tem-se uma visão geral sobre gêneros discursivos, tratando-os a
luz dos aspectos gerais da perspectiva bakhtiniana para demonstrar que as práticas sociais que
norteiam o ambiente discursivo dessa concepção propiciam uma percepção instável, tanto de
significações quanto de estilos e composições. A língua, nessa instância, adapta-se às
situações de uso e, por ser flexível, comporta, entre outros elementos, a expressividade, a
intencionalidade e a identidade do sujeito enunciador, cuja mediação se dá pelas práticas
dialógicas. Por essa orientação o enunciado é compreendido como a unidade que organiza as
formas linguísticas, o texto como ambiente que manifesta diversas linguagens e os gêneros
como relação dialógica que materializa essas realizações. Acrescenta-se ainda uma breve
descrição sobre os gêneros em quadrinhos, para caracterizar algumas peculiaridades próprias
desses gêneros, em especial as tiras em quadrinhos, gênero no qual é o suporte mediador das
análises neste trabalho.
O terceiro capítulo versa sobre a multifuncionalidade do item linguístico E, com o
intuito de discorrer sobre trabalhos já desenvolvidos nessa perspectiva e também que viessem
fundamentar o olhar multifuncional a ser empreendido nas análises. Para isto, abordamos
brevemente a visão tradicional que estuda E como item gramatical, empregado para
15
coordenação entre termos e sentenças, chegando a uma abordagem discursiva, na qual o E
assume funções que atuam na organização do discurso e não apenas num âmbito sintático.
O quarto capítulo está relacionado às questões metodológicas. É a etapa em que o
leitor visualiza algumas informações a respeito da caracterização geral da pesquisa, dos seus
dados e como se encaminham as discussões analíticas desenvolvidas em prol dos mesmos.
Demonstra, enfim, qual o percurso metodológico adotado, onde estão incluídos os
procedimentos conduzidos no processo de realização e constituição do corpo investigativo e
sua análise, cuja abordagem é de cunho qualitativo e o método é indutivo.
O quinto focaliza a análise dos dados e traça reflexões sobre o fenômeno em
investigação, os usos discursivos do E, ou seja, uma observação direta que dá um plano de
visualização sobre os aspectos da multifuncionalidade do mesmo. É o espaço onde fizemos a
interpretação dos dados baseando-se nos pressupostos teóricos e nos eventos discursivos
encontrados nos dados. Essa visualização passa tanto por uma observação dirigida pelos
conceitos teóricos, como por uma observação empírica, tendo em vista o fato da dinamicidade
dos eventos da língua de procedência dos usos.
Na finalização do trabalho refletimos sobre as conclusões do mesmo, de modo a
sistematizar os resultados e as contribuições às quais se pautam na ampliação do foco de
análise do item E que parte da articulação mais local (coordenador de termos e orações) para
mais global (articular unidades textuais), relevância já sinalizada por alguns teóricos
funcionalistas.
Portanto, estudar a língua por esse viés é compreender que a função mais relevante da
língua se situa num contínuo de interações entre os interlocutores, que ora atuam como
falantes, ora como ouvintes. E essas funções, por razões do trato interativo e por razões
cognitivas, também, condicionam a forma do código linguístico.
1 FUNCIONALISMO LINGUÍSTICO
Abordamos, nesse capítulo, a teoria do Funcionalismo linguístico na sua vertente
norte-americana. Suas referências, num primeiro momento, servem de base para nortear a
perspectiva teórica desse trabalho, sobre a qual traçamos, em linhas gerais, acerca de seus
principais eixos, enfatizando a perspectiva da língua em uso, a qual considera a situação de
comunicação completa. Num segundo momento, encontram-se as orientações dessa corrente
teórica para a concepção de gramática, pautada paradoxalmente na instabilidade e na
regularidade dos usos que, considera para isso, aspectos linguísticos, discursivos e cognitivos.
Posteriormente, discorrermos sobre as características fundamentais do funcionalismo norte-
americano, entre eles estão a iconicidade, o principio de informatividade e o processo de
gramaticalização.
1.1 A abordagem norte-americana
A aparente natureza hipotética dos estudos da linguagem dificultou durante toda uma
tradição científica a materialidade desses estudos em uma ciência. Isso porque o objeto em
questão, a linguagem, não era considerado como decorrente de um comportamento social
humano. Só com o estabelecimento da Linguística enquanto ciência, impulsionado por
Ferdinand Saussure, esse objeto de estudo passou a ser pontuado como uma manifestação
concreta, observável e, a partir de então, tem sido alvo de intensas e sistemáticas
investigações, cujas perspectivas, em grande parte destas, levam em conta a função
comunicativa.
Percebe-se que, mesmo antes dos pressupostos saussurianas, já se especulava uma
demanda teórica nas investigações científicas cujo intuito era de pleitear respostas para as
mais diversas manifestações da linguagem humana. Assim se reconhece que o arcabouço
teórico que tenta explicar as línguas naturais passa por contínuas etapas e cada uma elege um
paradigma, de modo que nenhum consegue abranger o todo do fenômeno linguístico, o que é
natural no percurso das pesquisas científicas.
Os estudos linguísticos pós-saussurianos tiveram grandes avanços dentro da
Linguística. Várias tendências fomentaram a ascendência desses estudos, visto que, fundada
uma base epistemológica com os estudos de Saussure publicados no Curso de Linguística
Geral (1916), a língua não seria mais apenas um aspecto dos estudos filosóficos ou retóricos
17
vista como produto do decorrer da história. Nesse sentido, a linguagem deixa de ser uma
referência no mundo e passa a ser fonte de estudos que visualizam os usos da língua, embora
essa consideração de uso venha ocorrer gradativamente culminando com as abordagens
discursivas. Sendo estabelecida como sistema de valor, como competência linguística para,
então, abranger a noção de função (relação/uso).
Assim, com a expansão da Linguística Moderna, os estudos linguísticos passaram a ser
norteados por três conceitos: sistema, estrutura e função (MARTELOTTA; AREAS, 2003), os
quais representam uma evolução nas pesquisas da área que, até então, eram tratadas pelo
parâmetro histórico-comparativo da língua, passando, a partir desse recorte, a considerar o
parâmetro descritivista.
Mesmo frente a essa consolidação, a Linguística ainda vive um grande impasse quanto
ao seu objeto de estudo (a langue), pode-se dizer “inadequadamente definido” no princípio de
seu estabelecimento, tal como um sistema de signos que se limita a um código finito existente
numa relação determinada entre significantes e significados. Nessa análise, constituída por
Saussure, as regras se comportam no interior do sistema com um caráter de autonomia, em
que esse objeto de estudo se explica por si mesmo.
Esse sistema, embora aparentemente fixo (dadas as regularidades) para um
determinado falante e num determinado momento, na verdade, é indefinido e aberto, e as
relações que nele se estabelecem, entre significantes e significados, organizam-se para
compor um ambiente de possibilidades que, conforme os contextos possíveis, atualizam as
unidades que venham a ser empregadas. Essa concepção, todavia, já representa os estágios
mais avançados do modo de conceber a língua.
Contudo, mesmo a linguagem sendo complexa, dinâmica, imprevisível, não fez com
que a Linguística fosse uma ciência mal definida. Pelo contrário, instalou-se uma
emblemática rede de ramificações que tentam suprir as lacunas quanto ao paradigma inicial.
Dentre as mais atuantes no circuito investigativo, estão as teorias do discurso e do texto. Essas
conferem linhagem às novas mudanças de concepção linguística, o que instiga a constante
renovação do modelo epistemológico e suscita a continuidade do conhecimento científico.
Nesse contexto, o funcionalismo norte-americano é tido como uma perspectiva mais
contemporânea, que se manifesta como um arcabouço teórico de grande produção atual nesse
quadro, inclusive no Brasil. Nesse processo de evolução, a teoria assimila contribuições de
outras áreas, como da cognição, sociolinguística, teoria da interação verbal e etnografia da
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comunicação, encontrando, assim, suporte para uma mudança de paradigma conceptual, cuja
notabilidade se dá na relação da língua com o seu meio de efetivação.
Nesse âmbito, o funcionalismo estuda a estrutura gramatical, tendo como referência a
situação comunicativa completa: fala, interlocutores, propósito de uso e o contexto discursivo.
Não se pode, assim, interpretar os fatos linguísticos esquecendo o contexto ao qual eles
pertençam, o que valida a postura de complementaridade entre a forma e a função. Com vistas
a isso, Nichols (1984, apud VIDAL, 2009) reforça que o uso da língua é efetivado na
articulação desses elementos, os participantes do ato da fala, os seus propósitos comunicativos
e o contexto que dá forma ao discurso.
Enfatiza-se, nesses termos, que o funcionalismo é definido neste trabalho como a linha
teórica que subsidia os aspectos fluidos relacionados aos usos. Vistos aqui pelo ângulo da
multifuncionalidade do E, haja vista, suas descrições atribuírem relevância à análise de
procedimentos e questões relacionadas com as atividades de linguagem que se processam na
interação.
A inspiração dessa vertente está na base norte-americana, cujos representantes
principais são Givón, Hopper, Thompson, Chafe, entre outros, que exploram a linguística com
foco na relação discurso/uso e gramática, consideração essa que permite observar a língua no
âmbito do contexto linguístico e da situação extralinguística.
Assim sendo, a abordagem funcionalista tem como eixo central a apreciação das
condições de produção, que buscam respaldar-se nos reflexos do funcionamento efetivo da
língua. Esse contexto culmina numa diversidade de práticas de linguagem tão plural quanto o
ambiente que alicerça esse processo, o ambiente social. Isso implica uma concepção de língua
como um fenômeno heterogêneo, desautorizando-a como um sistema autônomo, estável e
externo ao falante, preceitos esses que qualificam a imanência da língua típica da abordagem
formal.
A base teórica dos estudos norte-americanos do funcionalismo apresenta uma visão de
língua que se preocupa mais com as funções que exerce na interação verbal do que com as
características internas da língua. Assim, a gramática com perspectiva funcional difere das
gramáticas formais, pois não pretende classificar ou categorizar a língua, mas explicá-la com
base na situação comunicativa.
A efervescência dos estudos que se agregam à corrente linguística do funcionalismo,
nessa perspectiva de estudo, vem contribuir positivamente para o processo de ensino-
aprendizagem, haja vista que objetiva expandir as reflexões sobre as habilidades necessárias
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para a constituição de textos (orais e escritos) de gêneros variados, enquanto recursos que
refletem usos da língua. Nesse sentido, tem uma preocupação em contribuir com o ensino de
língua materna como forma de proporcionar um retorno social às pesquisas de orientação
funcionalista.
O funcionalismo linguístico norte-americano, nessa perspectiva contemporânea,
propõe analisar o uso regular da língua mediante estratégias discursivas e aos seus propósitos
comunicativos. A língua, nesse sentido, se direciona evidentemente a intrínseca à
possibilidade de plena participação social.
A partir de seu uso, dá-se o processo de comunicação, e é por intermédio da
linguagem que se tem acesso à informação, que se expressam e defende pontos de vista, que
se partilha e constrói visões de mundo, que se produz cultura, fazendo a mediação das
atividades dialógicas e representando o conjunto dessas, disponíveis no funcionamento da
linguagem e na comunicação de uma sociedade.
É de suma relevância observar que, para o funcionalismo, o conceito de comunicação
não se reduz à codificação e à transmissão de informação, mas abrange todos os aspectos
envolvidos no evento de fala. Por isso, o objeto de estudo do funcionalista é a língua em uso,
o que notabiliza um vínculo com a competência comunicativa e não apenas com a
competência linguística em si.
Nesse sentido, é ao considerar o nível discursivo e cognitivo, bem como o plano da
pragmática, que consegue traduzir aspectos manifestos no plano comunicativo da linguagem.
Percebe-se a íntima relação dessas demonstrações, de cunho funcionalista, como tendência
para o ensino. Ao mesmo tempo, sabemos que, para essas condições serem levadas para o
ensino, as formações de professores precisam entender a linguagem em sua complexidade, ou
seja, o professor precisa de um apoio teórico-metodológico para respaldar sua prática
pedagógica, cuja concepção de linguagem compreenda que:
A linguagem é um instrumento de comunicação social pela qual o indivíduo
exterioriza o pensamento como também mantém a intercomunicação, de forma
ativa, com vista a produzir no outro algum efeito de sentido dentro de um
contexto social, cultural e histórico numa situação específica de produção. [...]. (FURTADO DA CUNHA; SILVA, 2007, p. 80).
Tal compreensão nomeia a língua como prospecto de significados e sentidos capaz de
motivar variações e mudanças no sistema linguístico e, a ser tópico de reflexões que levam a
pensá-la numa dinâmica cadeia de atividades comunicativas. Tendo em vista a abordagem
funcionalista conceber a linguagem como instrumento de interação social, seu interesse de
20
investigação linguística se volta para além de sua estrutura gramatical, pois busca no contato
discursivo a motivação para o uso da língua.
Procura, desse modo, explicar as regularidades observadas nas relações de interação a
partir de suas situações de uso dos interlocutores presentes nos diversos contextos sociais.
Expressa um modelo de análise, segundo o qual “a língua desempenha funções externas ao
sistema linguístico em si, as funções externas influenciam a organização interna do sistema
linguístico” (FURTADO DA CUNHA, 2009, p. 158). A língua, consequentemente, é descrita
“como instrumento de uma prática social, sendo as expressões linguísticas analisadas em
circunstâncias efetivas de interação verbal”. (PEZATTI, 2007 p.179).
Conforme esses estudos, as formas linguísticas assumem funções decorrentes do
processo sócio-comunicativo, suscetíveis de mudanças e variações linguísticas.
Nessa concepção, a forma se alia a um significado que se relaciona com o uso
conforme as necessidades discursivas dos falantes e a mercê de um contexto para a
concretização dos propósitos intencionais destes falantes. Em outros termos, o falante não
desenvolve arbitrariamente o uso da língua. Para tanto, não constrói sequências novas de sons
a cada propósito comunicativo, mas apresenta uma forte tendência a aproveitar material já
existente na língua, ampliando o sentido de palavras na relação com seu contexto de uso. Caso
contrário, um processo linguístico baseado em determinações puramente arbitrárias seria
difícil para os interlocutores compreenderem que recursos utilizar para se fazerem
compreendidos.
Os pressupostos funcionalistas, conforme os postulados em sua vertente norte-
americana, revelam uma associação intensa entre conhecimento, experiência de mundo e
modo de organização das formas linguísticas, no sentido de que o conjunto de vivências de
uma comunidade contribui para construção dos padrões gramaticais ou estruturais da língua.
O que permite a língua receber os influxos dos costumes histórico-sociais das diversas
comunidades linguísticas, resultando em expressões consequentes dos usos comunicativos.
Na regularização do uso, outros aspectos se integram a esse âmbito como as
motivações, tanto de natureza discursiva como de natureza cognitiva, referentes aos processos
mentais envolvidos no uso linguístico e que são expedidos da interação. Assim, a relação
entre cognição e linguagem é evidente, e o funcionalismo não se isenta de incluí-la, pois há
vínculos cognitivos na constituição de itens linguísticos estruturais.
Tendo em vista a investigação da língua, com ênfase na função comunicativa,
devemos sempre frisar a importância do discurso e das relações contextuais, no sentido de que
21
há na língua uma competição entre motivações internas e externas, evidenciando-a como um
sistema adaptável (DU BOIS, 1985).
Isso porque é, ao mesmo tempo, um sistema parcialmente autônomo e parcialmente
apto a sofrer as pressões externas (adaptável), daí o autor usar a denominação “transparente”
ou “sincrônica” acreditando na hipótese de que as ocorrências sintáticas são resultados dos
objetivos do falante. É adaptável pelo fato de absorver coações externas ao sistema, e diz
sistema porque há regularidade das categorias gramaticalizadas, sendo que, mesmo
cristalizadas, estão sujeitas ao movimento de retorno e às modificações decorrentes do uso
(discursivização), dando continuidade de existência, e isso enfraquece a distinção rigorosa
entre sincronia e diacronia.
Admitir que haja motivações externas à língua corresponde a pensar que há alguma
relação de similaridade entre forma e conteúdo e que a sintaxe e a gramática não são
autônomas. Para tanto, há de se considerar que os padrões estruturais não devem coordenar os
usos, mas, pelo contrário, os usos devem orientar esses padrões.
Vidal (2009), fundamentada em Langacker (1998), ajuíza que na relação entre
cognição e linguagem, a linguística cognitiva tem muito a colaborar quanto à explicação dos
aspectos da linguagem humana. Nesse sentido, a autora discute sobre três pontos
fundamentais da linguística cognitiva que embasam a referida relação, que são: a não
autonomia dos fatores linguísticos na linguagem, a gramática enquanto conceitualização e o
conhecimento da língua como reflexo do uso. Estes dão aporte à relação interativa da qual
procede ao entrelaçamento entre linguagem e cognição, e, as análises dessa natureza
linguística “partem de processos reais de comunicação linguística ancorados nos conceitos de
conceptualização, categorização, processos mentais, interação e experiência individual, social
e cultural.” (VIDAL, 2009 p.49).
Nesse passo, ainda esclarece que, no campo da linguagem, as funções semiológica e
interativa podem ser compreendidas de modo complementar para pleitear uma noção de
estrutura linguística que compreende elementos como percepção, atenção e categorização.
Isso porque a primeira função é comprometida com a simbolização dos pensamentos por
intermédio dos sons, gestos ou escrita, e a segunda, como “os aspectos que dizem respeito à
comunicação, expessividade, manipulação e comunhão social”. (VIDAL, 2009 p. 46).
Pensar a linguagem por esse viés alude à agregação de proponentes como
pensamento e experiência, que vão somar-se ao ambiente sociocultural e lançar significações
22
diversas na legitimação de significados que se estabelecem nas relações homem, sociedade e
conhecimento.
Essa agregação possibilita ações vitais como “a captação de dados da experiência,
sua compreensão e seu armazenamento na memória, além da capacidade de organização,
acesso, conexão, utilização e transmissão adaptada a esses dados”. (VIDAL 2009 p. 47). Essa
postura consiste no encadeamento do conhecimento linguístico com o conhecimento de
mundo.
Nessa linha de pensamento, os processos mentais possibilitam a produção de
significações, assinalando que a linguagem não é um processo automático da mente, ou como
diz Neves (1997, p. 3), inspirada em Givón (1995), que nesse mesmo domínio articula que
tais interpretações não podem ser pronunciadas “sem referência a parâmetros como cognição
e comunicação, processamento mental, interação social e cultura, mudança e variação,
aquisição e evolução.”
Isso vem ressaltar a não arbitrariedade e invariabilidade desse sistema “pronto”, mas
endossá-lo como provisório, o que incita mudanças, dada a criatividade e a capacidade do
homem em inovar. São inovações decorridas do discurso, este faz ponte com as referências
cognitivas do mundo.
Os fundamentos da corrente funcionalista da linguagem são relevantes para explicar
as atividades de constituição de texto, sendo que isso não invalida o ensino de gramática de
ênfase morfossintática, pelo contrário, amplia e exige outro olhar a partir das regularidades do
discurso que entram na gramática compondo os textos no âmbito discursivo. Assim, o
funcionalismo defende uma gramática do texto.
A importância do discurso e das relações contextuais ganha relevo nesse campo, pois
se reconhece que a comunicação não acontece emissão de frases isoladas, mas através de
enunciados que situam discursos e organizam-se em estruturas compatíveis com o
processamento cotidiano das atividades realizadas pelos participantes de uma sociedade,
sejam formais ou informais, sejam orais ou escritas, que são os gêneros textuais (POSSENTI,
2009).
Constata-se com isso que as estruturas sintáticas que compõem cada gênero textual
estão condicionadas a uma série de fatores, desde a análise gramatical à modalidade da língua.
E elas devem corresponder ainda ao contexto comunicativo de um gênero, já que este “trata-
se de procedimentos utilizados pelos informantes que representam os modos de organização
23
da informação e as rotinas retóricas disponíveis na língua peculiares a cada estrutura
discursiva e propósito comunicativo” (OLIVEIRA; COELHO, 2003 p. 114).
Nesse sentido, o uso da língua é constituído por uma significação, que busca a
coexistência de um interlocutor real, no trato das dimensões orais e escritas, e faz uso de
instrumentos que possibilitam o funcionamento e uso da linguagem, tais como a análise
linguística e a produção textual, tomando por base a noção de texto e gênero textual. Nesse
sentido: “[...] a codificação linguística pode ser trabalhada em diversos níveis: (1) gêneros
textuais, (2) modalidade (fala e escrita) e estratificação social (uso padrão e não padrão)”.
(OLIVEIRA; CEZARIO, 2007 p. 102).
Por essa concepção as sentenças dão vida aos enunciados, que podem ser analisados e
entendidos levando em conta as motivações discursivas, isto é, a estrutura sintática é
visualizada como resultante de componentes do discursivo.
1.2 Concepção de gramática: aspectos linguístico-discursivos e cognitivos na confluência
dos usos
A gramática na ótica funcionalista tem paradigmas diferenciados da gramática
tradicional, que nos termos de Furtado da Cunha e Tavares (2007, p.14), se remete: “[...] ao
conjunto de conceitos e categorias derivados dos estudos gramaticais de tradução greco-latina
que, há alguns séculos, geração após geração, vem sendo transmitidos nas escolas de modo
degenerado, fragmentário, dogmático, prescritivo e irrefletido”.
Por outro lado, a concepção defendida por Neves (1997) de uma gramática de uso,
busca na essência, averiguar como se processa a comunicação em uma determinada língua, ou
seja, é encaminhada pela competência comunicativa. Para tanto, não se desvincula da noção
de sistema, no qual as funções exercem relações de integração entre os constituintes
gramaticais.
De modo geral, “a gramática de uma língua, para a linguística funcionalista norte-
americana, é concebida como um conjunto de regularidades que são convencionalizadas pelo
uso concreto nas diferentes situações discursivas.” (MARTINS, p. 29, 2009)
Desse modo, observa-se a relação entre estrutura e função como algo versátil,
refletindo o caráter dinâmico da língua. Considera o contexto global do discurso, e é do
interior dele que procura correlacionar forma e sentido.
Nos ditos Neves (1997 p.15):
24
por gramática funcional entende-se, em geral, uma teoria da organização
gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global
da integração social. Trata-se de uma teoria que assenta que as relações entre as unidades e as funções das unidades tem prioridade sobre seus limites e sua
posição, e que entende a gramática como acessível às pressões de uso.
Assim, a principal tarefa de uma gramática nesses termos, conforme ressalta
Beaugrande (1993, cap. III apud NEVES, 1997 p. 3) “é fazer correlações ricas entre forma e
significado dentro do contexto global do discurso”. Harmoniza desse modo, na linguagem um
caráter funcional e dinâmico, porque o sistema linguístico é preenchido pelas suas funções,
situando a língua, numa relação de instabilidade e flexibilidade entre a forma e a função,
estabelecendo um potencial ativo e empreendedor de motivações que atuam no constante
desenvolvimento da linguagem.
As orientações do aparato teórico de cunho funcionalista encaminham, como ponto
axial, a dimensão dos usos da língua, com o intuito de refletir e analisar a língua como
elemento presente nas práticas sociais e suas particularidades, a fim de apontar as
possibilidades de seu uso no cotidiano de seus falantes.Visto assim, os discursos aferidos por
meio da língua não se constituem apenas por conhecimentos linguísticos, mas também como
embasamento do desenvolvimento cognitivo do usuário.
Adicionar essas considerações na concepção de gramática significa trazer para essa
instância elementos essenciais à sua natureza, como as relações entre forma e significado.
Para tanto, é necessário reconhecer que essa caracterização perpassa por uma visão de língua
como propriedade da interação verbal.
De modo geral, a intenção do falante é fazer com que o destinatário modifique ou
acrescente novas informações à proposição inicial. Com isso, reações cognitivas são
acionadas e a produção de significados é mobilizada, passando a transitar entre o
processamento comunicativo (informação) e cognitivo (modificar a informação).
Na verdade, a descrição da estrutura de um sistema não seria suficiente para comportar
simultaneamente o som e o significado das expressões linguísticas, sendo necessário, diz
Neves (1997, p. 23), acrescentar nessa descrição referência ao falante, ao ouvinte e contornos
das suas atuações e intenções situadas no contexto sociocultural.
Por parte do destinatário, ao captar a informação, sua interpretação é basicamente
pautada nela que agrega as informações já existentes, tendo o destinatário liberdade para
reconstruí-las, ou produzir outras não previstas, uma vez que o ato comunicativo de interação
é movediço e maleável. No processo de interpretação, sua função é conceber as construções
25
linguísticas advindas das informações pragmáticas, além de compreender a intenção
comunicativa do falante.
Neves (1997) sublinha que a gramática de caráter funcionalista exerce atribuições
motivadas de ordem pragmático-discursiva, ou seja, por fatores externos ao sistema, entre o
ato efetivo de ocorrência da língua (fala/uso) e a estrutura que assume (gramática). “Nesse
sentido, os funcionalistas sustentam que a situação comunicativa motiva, explica, determina a
estrutura gramatical, o que implica considerar que as construções gramaticais são moldadas
por motivações de ordem semântica e pragmática.” (MARTINS, p. 29, 2009)
Contudo, é válido frisar que as construções linguísticas que são evocadas no uso, não
passam de imediato a fazer parte do sistema gramatical. Para isso, passam por um contínuo de
mudanças linguísticas, como diz Bolinger (1975, apud MARTELOTTA, 2003), precisam ser
percebidas, apreciadas para serem adotadas e, mesmo assim, ainda não se estabilizam, isto é,
“as mudanças de uma língua devem ser compreendidas como movimentos que se iniciam no
instante que um indivíduo produz seu discurso [...].” (MARTELOTTA, 2003 p. 71).
Estão em conformidade também com o pressuposto formulado por Givón (1979), que
chama de ciclo funcional, esses estágios que circundam o contínuo de mudanças, por ele
elencados nessa ordem: discurso > sintaxe > morfologia > morfofonologia > zero1.
Já Hopper (1991, apud OLIVEIRA; VOTRE, 2009) adota outra terminologia para
categorizar os estágios de mudança linguística que é a persistência (manutenção de traços da
forma fonte) e divergência (perda de marcas semântico-sintáticas em relação à forma fonte),
ambas são mediadas pelo processo de metáforas.
Uma tese mais radical quanto à concepção de gramática é a proposta de Hopper (1987)
que defende sua constituição com referência excepcional no plano discursivo, tese também
aceita por Bolinger em 1977 e Dubois em 1985, nesse sentido, “a gramática é entendida como
instância marcada pela maleabilidade e instabilidade, as classes são fluidas, de contornos
poucos precisos, com destaque para os fenômenos de derivação de sentido e de mudança
categorial.” (OLIVEIRA; VOTRE, 2009 p. 99).
A concepção de gramática que Paul Hopper defendeu em 1987, e retomou em 1998, a
que ele chamou de “gramática emergente” tem como propósito central contestar o pressuposto
1 No estágio final (zero) de uma construção linguística há redução na sua estrutura (perda sintática e morfológica), há perda
de sentido pleno (perda semântica) e consequentemente perda fonológica, estando assim, com forte índice para retornar ao discurso, ser recriada, ou até esquecida. A esse estágio dá-se o nome de discursivização conceituado por Oliveira e Votre (2009) como “o processo de mudança que leva determinados elementos linguísticos a serem usados para organizar o discurso, quando suas restrições de linearidade se perdem em função da improvisação típica da fala, ou para preencher o vazio comunicativo causado por essa perda.” Para ilustrar, vemos um exemplo simples: Não é verdade?> Não é? > Né não?>Né?
26
de que as línguas são ajustadas por estruturas organizadas em regras sistemáticas, previamente
disponíveis e anteriores ao processo de aquisição e desenvolvimento de uma língua. Na
essência, Hopper recusa a ideia de língua como um sistema abstrato, fixo, sustentado por um
conjunto fechado de regras, que deixe a descoberto ocorrências desviantes.
Essa concepção é fundamentada pelos usos discursivos, além de desempenhar uma
formação cognitiva norteada pelas experiências que cada sujeito falante opera nas suas ações
discursivas. Dessa maneira, um falante, ao exercer a atividade de falar, aciona mecanismos
cognitivos que não se postulam como estruturas fixas, mas como experiências materializadas
em construções de uso por interlocutores, submetidas às subjetividades do contexto interativo.
Assim, a função comunicativa ofusca a noção de estrutura, o que fundamenta a tese de
gramática orientada pela atividade verbal.
No Brasil, estudos como os desenvolvidos no grupo Discurso e Gramática (D&G) têm
a pretensão de contribuir para a formulação de uma gramática do uso. Tal pretensão se
expande e se avança na tentativa de demonstrar apontamentos metodológicos que visam
contemplar também as práticas pedagógicas do ensino de língua materna. Nesse intento,
investigam-se os padrões de uso mais correntes nos textos (orais e escritos) para identificar as
construções que estão sendo mais requisitadas na fala e também na escrita dos usuários.
Como declaram Furtado da Cunha e Tavares (2007, p. 17), o objetivo é colaborar
mesmo com um trabalho que possa chegar as salas de aulas da Educação Básica, tendo como
bússola a ideia de que os aspectos gramaticais da língua são fenômenos emergentes e
variáveis dada a sua vinculação com o discurso.
Sendo assim, os aspectos linguísticos se adaptam às necessidades de comunicação dos
falantes e as gramáticas refletem essas adaptações, ou seja, a forma da língua deve ser
compatível com a função que desempenha. A codificação das estruturas morfológicas e
sintáticas, continuam as autoras, se edificam tendo como alicerce e coluna o parâmetro das
estratégias discursivo-pragmáticas. “Em outras palavras, há um forte vínculo entre discurso e
gramática, de tal modo que a morfossintaxe tem sua origem no discurso.” (FURTADO DA
CUNHA; TAVARES, 2007 p. 34).
Nessa perspectiva, Oliveira e Votre (2009) observam que os conceitos de discurso e
gramática norteiam as pesquisas funcionalistas de vertente americana, reconhecendo a
importância de conceituá-los para melhor esclarecer os direcionamentos das pesquisas dessa
área, assim conceituam que:
27
[o discurso] passa a se referir as estratégias criativas dos usuários na
organização de sua produção linguística, aos modos individuais com que
cada membro da comunidade elabora suas formas de expressão verbal. Por outro lado, o termo gramática é concebido como conjunto das regularidades
linguísticas, como modo ritualizado ou comunitário do uso; se ao discurso
cabe a liberdade e a autonomia da expressão, à gramática compete a
sistematização e regularização.[grifo acrescentado]. (OLIVEIRA e VOTRE, 2009, p. 99).
É nessa intensa relação, entre discurso e gramática, que se visualizam as forças em
competição na língua, por um lado, uma que dá acesso às novas construções e aos novos usos
e, por outro, uma que limita e regula o sistema. Tem-se em vista, portanto, o entendimento de
que a gramática dá corpo ao discurso e o discurso influencia o corpo gramatical e de que os
processos comunicativos e cognitivos motivam a constituição das estruturas gramaticais.
Isso se justifica pelo fato de o falante organizar e efetuar as situações comunicativas
com base no que está em sua mente que já é influenciada pelos fatos realizados na esfera do
contexto de interação. Infere-se, assim, que a gramática deve ser estruturada a partir do uso
com a expectativa de atender à realidade experiencial dos usuários da língua.
Esse viés se complementa com o pressuposto da integração dos componentes
linguísticos, cuja ênfase se volta para o modo pragmático sob a alegação de que a partir das
regularidades nele observadas é possível sistematizar, mesmo que provisoriamente, a
gramática do uso, além de encaminhar mecanismos de seleção, organização e atualização dos
padrões incorporados na gramática.
Por esse encaminhamento, resgata-se do uso aspectos inerentes à situação
comunicativa como as intenções e o perfil do usuário, a condição social, o grau de
informatividade e uma gama de aspectos histórico-sociais que conduz o uso da língua como
suporte a analisa textos de situações do contexto comunicativo, sendo a gramática
funcionalista a base que acolhes essa compreensão.
À respeito da visão integrada dos componentes linguísticos, Neves (1997) faz
referência ao pensamento de Givón (1984). Givón reconhece a necessária relevância de se
esclarecer, de forma mais explícita, sistemática e abrangente, a congregação desses
componentes, tendo em vista que a gramática não é um depósito que armazena os domínios
funcionais da língua, como se fossem caixotes e cada um compartimentado isoladamente,
pudesse comportar traços desses domínios. Ele compara a gramática com um organismo que
subdivide sua estrutura interna em subsistemas inter-relacionados para exercer suas funções
de modo organizado e obedecendo a um nível hierárquico.
28
Do ponto de vista hierárquico, a sintaxe é responsável por codificar os sistemas
funcionais: a semântica (proposicional) e a pragmática (discursiva). Sucede que uma estrutura
codificada deve ser submetida à função semântica e pragmática simultaneamente, do
contrário, não é possível haver comunicação. Em outras palavras, a interdependência entre os
componentes é premente, pois o ato efetivo da comunicação está pragmaticamente situado e
se vale de arranjos sintáticos para ganhar sentido. Enfim, resume-se que não se admite nesse
paradigma a existência de uma sintaxe autônoma.
Essa abordagem enfatiza a presença do discurso e suas múltiplas facetas para tornar os
enunciados presumíveis de análises e reflexões coerentes com os eventos que fazem jus a
comunicação. E, para reforçar esse pensamento, é importante reproduzir o que Du Bois
(1993) assegura quando discorre que “as relações entre discurso, ou uso, e gramática assim se
equacionam: [...] ‘a gramática é feita à imagem do discurso’; mas: ‘o discurso nunca é
observado sem a roupagem da gramática’” (NEVES 1997, p. 29).
A tênue linha divisória entre estes componentes, do sintático e semântico com o
pragmático, demonstra a convicta intimidade fronteiriça entre discurso e gramática.
Por extensão, se apresenta a relação entre gramática e cognição, que acontece face às
relações de experiências humanas. Nesse sentido, uma teoria da gramática deve aliar
categorias linguísticas e categorias cognitivas, dando condições a um sistema icônico e não
arbitrário, o que implica uma base conceptual para a gramática cujas bases buscam referências
em categorias da Linguística Cognitiva.
O programa de investigação da Linguística Cognitiva tem preocupações com as
relações entre a linguagem humana, a mente e as experiências sócio-físicas dos falantes.
Dentre os defensores dessa concepção estão Lakoff, Johnson e Langacker. Nesses, constam
elaborações teóricas justificando que as construções gramaticais agregam, na sua forma,
aspectos cognitivos da significação.
Nesse raciocínio, as categorias linguísticas circundam em um eixo em que pode ter um
centro categorial e categorias periféricas, estas se sentem pressionadas por esse centro e por
uma forma gravitacional (natural) e servem como fluxo para a formação de novos centros,
embora com menos força expressiva no seu teor sintático-semântico, mas com dinamicidade
pragmática, porque passa a assimilar com mais intensidade aspectos oriundos das relações
interpessoais.
Nesse cenário, as motivações gramaticais, tais como as que alteram os padrões de
ordenação e da funcionalidade de determinados constituintes gramaticais no discurso,
29
submetem o sistema à fluidez. As construções linguísticas podem se mover de uma categoria
para outra, pois a situação comunicativa se responsabiliza de situar a forma com uma
significação apropriada, tornando a forma adaptável e capaz de ser remoldada porque ela se
direciona a atender aos propósitos das situações de uso. Fato que revitaliza a gramática como
procedimento necessário para organizar as esferas linguísticas do uso do discurso.
Segundo Martelotta (2009), essa concepção de gramática traz em seu bojo dois tipos
de habilidades que norteiam as atividades verbais: a natureza sociointerativa e a natureza
cognitiva e funcional. A primeira possibilita o compartilhamento de informações no contexto
social, no qual não é necessário verbalizar todas as formas linguísticas de uma situação de
comunicação, porque os interlocutores são capazes de compreender, nos enunciados,
elementos subjetivos, como intenções que se relacionam com o contexto de ocorrência dos
atos enunciativos.
Já a segunda integra-se à anterior e responde pelo modo como a informação é
processada na mente. Implica a capacidade que o homem tem de analisar, interpretar os fatos
e relacioná-los com o seu modo de expressar o discurso.
Há, então, a transferência de dados de um domínio para outro, ou seja, manifestam-se
no discurso (elemento linguístico) as experiências sensório-motoras (aspectos cognitivos)
através da metáfora espaço>discurso>texto.
Essa perspectiva é nomeada como cognitivo-funcional tendo em vista que o
funcionamento da língua aborda aspectos definidos por teorias sociais, interacionistas e
cognitivas. Os que se pautam nesse âmbito devem associá-la “a um fenômeno mais geral
segundo o qual a experiência humana mais básica, que se estabelece a partir do corpo, fornece
as bases de nossos sistemas conceptuais.” (MARTELOTTA, 2009 p. 65).
Mediante esse enfoque, faz-se necessário ampliar esse viés possibilitado pela
Linguística Cognitiva, cujas referências fazem menção ao movimento gerativista. Esse
debatia a linguagem tendo como princípios básicos o inatismo e a autonomia do
conhecimento, em que o cérebro, nessa concepção, tem ação depositária e a estrutura
gramatical é decorrente do princípio inatista. Sendo assim, ela é organizada em módulos
independentes, chamado de princípio da modularidade, que embasa a soberania da sintaxe,
visto que, cada módulo responde separadamente por partes específicas do conhecimento.
Essa compreensão colaborou para o entendimento de como a mente humana interage
com o mundo, além de explicar como os elementos que atravessam essa interação se
constituem. A ideia base do movimento gerativista é a busca por aspectos linguísticos
30
universais e, para tal, considera o interlocutor como algo idealizado, como membro de uma
comunidade linguística ideal. Por conta disso, não reconhece os eventos sociais e o modo
interativo de conceber a linguagem, como também, o uso corrente da língua.
Os pressupostos gerativistas foram questionados por linguistas como George Lakoff e
Charles Filmore, que incorporam o componente semântico na análise da língua,
desmobilizando a autonomia sintática posta pelos gerativistas.
Conforme o posicionamento visto em Martelotta (2009, p. 178-9), a crítica mais
ferrenha ao gerativismo não é quanto ao inatismo, porque realmente os seres humanos nascem
com aptidões inatas que os estimulam a aprender, de modo que não se pode distinguir
rigidamente entre o que é inato e o que é aprendido. A crítica se volta para o fato de essas
habilidades serem específicas da linguagem.
É sabido que a mente não constrói a linguagem de maneira assistemática, pois na
articulação entre linguagem, pensamento e experiência há a subsistência de conhecimentos
linguísticos e não linguísticos. Devido a isso é que as estruturas linguísticas se materializam
socialmente e não corporificam apenas o funcionamento da mente dos indivíduos, mas os
rituais de procedência cultural também.
Foram esses postulados que deram margem à ampliação das escolas linguísticas, com
novas ramificações, esta denominada de sociocognitiva. Sua importância focaliza na
linguagem a recorrência de atributos cognitivos e sociointeracionais adotados nas atividades
dos sujeitos ao cumprirem os papéis sociais da rotina da vida diária.
Essas propriedades são mais visíveis com a consideração da noção de contexto, cujo
relevo se mostra nos expressos de significação de arranjo múltiplo e dinâmico, fracassando o
plano das significações prontas, que nessa visão estão sempre em construção. Mas como se
comunicar no fundamento da instabilidade?
É possível porque há um sistema regulador de significações que se monta no processo
de categorização da realidade e simultaneamente se desmonta pelo complexo de inferências
contextuais advindas dessa mesma realidade. Essa espécie de conflito que se instala no
sistema é devido à realidade se modificar a cada instante, procedendo assim a incidência de
pontos de vistas plurais. Sobrevém disso que os significados e o fluxo de sentidos não são
elementos de exclusividade da mente, eles se integram a outros domínios, ou seja, como
“resultado de uma atividade conjunta – associada a operações de projeção e transferência
entre domínios.” (MARTELOTTA, 2009 p. 180).
31
À mercê dessa abordagem, a estrutura gramatical não pode ser destituída de
significado, mas compactua com a visão integrada dos componentes da linguagem, da qual a
compreensão mais acolhida é a de um contínuo representacional que direciona a estrutura
conceptual para atender os fins comunicativos.
Martelotta (2009) destaca que um ponto relevante na Linguística Cognitiva é o caráter
interacional da construção do significado, atuando como um divisor de águas no campo da
linguagem, isso porque o gerativismo exclui da língua os fenômenos reais e comunicativos.
Com a mudança de foco, os usuários da língua são agentes na construção do significado e
levam em conta a compreensão dos dados da experiência. Vem a calhar assim, com uma
concepção de gramática que vai muito além das regras e da competência linguística. Para os
cognitivistas,
[...] a gramática de uma língua constitui um conjunto de princípios
dinâmicos, os quais, nas palavras do linguista Ronald Langacker, se
associam a rotinas cognitivas que são moldadas, mantidas e modificadas pelo uso. Mais do que isso, para os cognitivistas, a comunicação é uma
atividade compartilhada, ou seja, implica uma série de movimentos feitos em
conjunto pelos interlocutores em direção à compreensão mútua. Isso quer
dizer que a significação é negociada pelos interlocutores em situações contextuais específica, o que torna possível que os elementos linguísticos se
adaptem às diferentes intenções comunicativas, apresentando flutuações de
sentido [...]. (MARTELOTTA, 2009 p. 181).
Portanto, na abordagem funcionalista encontra-se respaldo para dizer que, a língua
basicamente tem funções cognitivas e sociais. O desempenho dessas exerce papel central na
produção das estruturas e dos sistemas que compõem a gramática de uma língua. Por essas
estruturas não serem fechadas, representam continuadas regularidades que dão aparência de
estabilidade.
O funcionalismo, portanto, foca suas pesquisas no esclarecimento das relações entre
forma e função, explicando aquelas funções que exercem influência direta na estrutura
gramatical. Ficam perceptíveis as inter-relações entre os aspectos funcionais com os
cognitivos que atuam na estrutura linguística com esse caráter descrito.
O reconhecimento de que a gramática não postula apenas estruturas arbitrárias é uma
das consequências desse modo de refletir sobre a língua que leva em consideração a tese de
que a gramática das línguas naturais é um conjunto de escolhas realizadas pelo falante, para
isso, veicula estratégias dos domínios discursivos e cognitivos a partir das estruturas.
32
1.3 Categorias analíticas do funcionalismo linguístico norte-americano
Sabendo os eixos que sustentam a base teórica do funcionalismo que são a integração
da sintaxe com a semântica e pragmática, a função comunicativa como veículo de interação e
a relação da linguagem com a cognição é que se abordam alguns aspectos dessa teoria. Eles
são apontados como definidores da gramática de uso.
A iconicidade está relacionada ao aspecto das propriedades cognitivas do falante, que
prevê uma motivação na relação entre a estrutura da língua (forma) e a estrutura da
experiência e sua produção de sentidos (função), determinada pela ação interacional do
homem ao fazer uso dos termos linguísticos.
É consenso na Linguística Funcional que a estrutura da língua reflete a estrutura da
experiência (FURTADO DA CUNHA; COSTA e CEZARIO, 2003) haja vista a linguagem
ser uma propriedade humana, daí se supõe que as formas da língua revelam as características
dos conceitos estabelecidos socialmente pelo homem por efeito do funcionamento da mente.
Contudo, há também a consciência de que não se conhecem, de forma sistematizada, todos os
itens que estão sob o interferência de fatores motivadores.
Nem sempre há uma correlação entre a forma e função, e isso se explica da seguinte
forma: “A representação sintática dos princípios icônicos não é absoluta, mas é uma questão
que ocorre de modo gradual. Na maioria das construções gramaticais, os princípios icônicos
misturam-se com princípios mais arbitrários2.” (GIVÓN, 2001 p. 34).
Dessa maneira, a codificação morfossintática resulta das reiterações dos usos da língua
e, por essa via, pressupõe a maleabilidade linguística, uma vez que recebe as influências do
contexto de uso e, por isso, se torna menos arbitrário do que se supõe.
Conforme Furtado da Cunha, Costa e Cezario (2003, p 31): “Há contextos
comunicativos em que a codificação morfossintática é opaca em sua função. [...] Assim,
encontramos correlação entre uma forma e várias funções, ou entre uma função e várias
formas.” Os autores mostram como exemplo do primeiro caso o sufixo inho, que
originalmente indica tamanho diminutivo (criancinha), mas pode marcar afetividade
(paizinho), pejoratividade (gentinha) ou ainda valor superlativo (devagrinho).
O vínculo entre forma e função reflete conotações que não mais se relacionam apenas
com esse binômio, mas com outros aspectos como contexto comunicativo, intenções e
subjetividades do interlocutor, uso da língua relacionado a um propósito comunicativo.
2 Tradução livre.
33
Votre (1997) descreve três etapas que se sucedem no emparelhamento entre forma e
função (significado): a primeira marca os indícios de ocorrência e uma progressiva
consolidação. Segundo ele, essa fase está associada principalmente à indefinição da forma
devido às hesitações do uso, causando um leve efeito de variação, com mais de um
significado para uma mesma forma, ou seja, há um deslizamento semântico. A segunda etapa
apresenta uma aparente estabilização, momento possível de explicar as regularidades porque a
relação entre forma e função caminha para a gramaticalização. A terceira marca o momento
de desgaste, a relação entre forma e função fica abalada, de sorte que a forma adquire uma
progressiva liberdade, em termos de restrições de ocorrência, e o significado adquire uma
progressiva liberdade, em termos de opacidade e esvaziamento semântico.
De acordo com o autor, é na segunda etapa, da aparente estabilidade, que ocorre o grau
máximo de iconicidade na relação entre forma e significado. Como esse processo é contínuo,
a iconicidade se perde e se enfraquece com o movimento ocasionado pelo uso.
Esse movimento é chamado por Givón (1979) de ciclo funcional, que representa
diacronicamente desde a regularização do uso até a fase de retorno ao discurso e ainda
enfatizado por Furtado da Cunha; Costa e Cezario (2003), que o resumem em
Discuso>Gramática>Discurso.
Esses estágios da língua reforçam a defesa de que as estruturas a serem envolvidas
nesses movimentos cíclicos abrigam pressões icônicas.
Embora só atualmente os estudos na área vieram ter maior clareza desse
funcionamento, a iconicidade é motivo de interesse da linguagem desde longa data no que
concerne ao aspecto isomórfico, contudo, foi retomada e reformulada no contexto da
Linguística Funcional norte-america, sendo estudado por um viés mais brando que o
subdividiu em três subprincípios3, que são:
a) subprincípio de quantidade, em que as dimensões quantitativas da informação tem
correspondência no tamanho da forma, ou seja, um texto maior deve conter mais informações
do que um texto menor, já que quanto maior a informação, maior a forma linguística, e,
quanto mais previsível e mais importante a informação, maior será o material de codificação
na forma. Quanto a sua base cognitiva, postula que essa quantidade de informação está
relacionada às questões como nível de atenção e esforço mental, visto que há uma forte
tendência da complexidade do pensamento incidir na complexidade da expressão.
3 Os termos que nominam esses subprincípios variam de autor para autor, porém mantêm a mesma essência semântica. Aqui se adotou os termos encontrados em Furtado da Cunha, et al. (2003), no entanto, contempla as descrições de diversos autores.
34
Nas palavras derivadas, por exemplo, quando na relação com suas primitivas
apresentam mais informações semântico-pragmáticas, repercutindo na forma a ampliação do
seu campo conceitual, como no exemplo: BELO > BELEZA > EMBELEZAR >
EMBELEZAMENTO. (FURTADO DA CUNHA, 2009).
b) subprincípio da integração, quanto mais elevada à proximidade, maior a ligação
morfossintática, assim, o que está mentalmente próximo coloca-se sintaticamente próximo, a
contiguidade linguística tende a refletir uma proximidade no plano conceitual. A base
cognitiva desse subprincípio destina que ao ativar um conceito outros relacionados também
são ativados.
Um exemplo dessa natureza se expressa no grau de integração de um verbo da oração
principal em relação ao verbo da principal:
a) Maria ordenou: fique aqui.
b) Maria fez a filha ficar ali.
c) A filha não queria ficar ali.
Na primeira oração temos dois eventos separados, os verbos se referem a sujeitos
diferentes. Na segunda oração não há um elemento bem evidente que separe sintaticamente as
duas orações e o sujeito da segunda é objeto da primeira. Na terceira oração a fusão semântica
e sintática é ainda maior e o sujeito do segundo verbo aparece apagado. (FURTADO DA
CUNHA, 2009).
c) subprincípio da ordenação linear, há uma organização espaço-temporal dos
constituintes embasados nas experiências cognitivas em que a informação mais importante e
de maior aceitabilidade tende a ocupar sintaticamente a primeira posição do enunciado,
revelando o grau de importância de seus constituintes para o falante e que a distribuição das
formas nos enunciados corresponde à sequência lógica dos acontecimentos dos fatos. Nesse
sentido, a base cognitiva se relaciona com a exigência de mais atenção no fluxo discursivo
quando da ocorrência da informação mais importante e imprevisível.
No exemplo “Vim, vi, venci” a ordenação das palavras corresponde à sequência
cronológica das ações descritas.
Esses aspectos colaboram com novas perspectivas quanto aos estudos sobre a
organização morfossintática da língua. Isso porque a sintaxe evidencia aspectos semânticos,
pragmáticos e discursivos que orientam a produção de textos e exerce uma fundamental
relevância no trabalho de interpretação realizado pelo leitor.
35
Nesse intuito, uma teoria gramatical deve dar conta das relações entre categorias
linguísticas e categorias cognitivas, considerando-se uma relação icônica entre os sistemas.
Essa motivação pode ser percebida nas representações conceptivas, no léxico principalmente,
e também em toda a gramática de uma língua. (NEVES, 1997).
Mesmo reconhecendo na iconicidade a ocorrência de uma relação não-arbitrária entre
código e mensagem, Givón (2001) admite que tal conceito não deve ser acatado
categoricamente, posto que pode-se constatar a existência de uma relação não-biunívoca
entre forma e função. Sendo assim, é mais razoável analisar a iconicidade como uma
abordagem da língua que considera a perspectiva de um continuum, que prevê a existência de
estruturas motivadas sob diferentes graus.
Outro aspecto é o princípio da informatividade, que atua em todos os níveis de
interlocução na realização do ato e eventos, sendo estes mediados pela linguagem, que não é
expressa sem um fim específico. Tendo em vista as pessoas se relacionarem por meio de
informações, todos os contatos (fáticos ou prolongados) visam atingir objetivos no processo
de interação. Esses objetivos podem estar relacionados ao mundo interior ou exterior dos
interlocutores ou ainda se relacionar com a pretensão de exercer influência ou dominação
sobre eles.
De modo geral, esse princípio representa o conhecimento que os interlocutores
compartilham (ou imaginam que compartilham) nas suas atividades interlocutivas. Ele se
aplica ao status informacional que os referentes nominais trazem no texto, podendo ser
classificados como dado, novo, disponível e inferível (FURTADO DA CUNHA, 2009).
Quando um referente já estiver sido expresso no texto ou na fala ele é um referente
dado ou velho. Nas situações textuais, ele pode aparecer, por exemplo, como sujeito explícito.
Já quando um referente é introduzido pela primeira vez no discurso, ele é tido como novo.
Porém, se esse referente já estiver na mente do ouvinte, disponível no seu universo cultural e
espacial, e, por ser um referente único num contexto específico, ele é chamado disponível.
A partir das formulações semânticas, o grau de conhecimento compartilhado, como
peça de um modelo discursivo, tem sido abordado na linguística funcional a partir da noção
de tema (informação velha) e rema (informação nova). Nas situações enunciativas, o tema
representa o sujeito e o rema o predicado ou parte dele.
Veja nos exemplos: O que trouxe, desta vez, o carteiro?
Desta vez, o carteiro trouxe uma encomenda.
36
Há também uma preocupação em abordar a codificação dos referentes no discurso,
pois evidencia a ordem que as formas linguísticas assumem no enunciado, além de evidenciar
que as relações de ordem semântico-pragmática são relevantes para a forma como um
referente é apresentado no discurso (FURTADO DA CUNHA, COSTA e CEZARIO, 2003)
O princípio da marcação é tratado na relação de pares marcado/não marcado em que
um exige a presença e o outro a ausência de constituintes. Tem origem no desenvolvimento
dos estudos da Escola de Praga e apresenta três critérios que distinguem entre um constituinte
marcado e um não marcado: complexidade gramatical, devido à estrutura marcada ser maior
do que a não marcada; distribuição de frequência, a estrutura marcada tende a ser menos
frequente no uso do que sua correspondente; complexidade cognitiva, a estrutura marcada
exige mais dificuldade cognitiva do que a não marcada, pois há um esforço mental maior,
sendo necessário mais tempo e atenção para o seu processamento.
Furtado da Cunha, Costa & Cezario (2003) apresentam o pensamento de Givón, em
que ele admite que o contexto é um elemento que interfere no princípio de marcação, pois
uma mesma estrutura pode ser marcada num contexto e em outro ser não marcada. Sendo
assim, pode ser explicado com base em fatores comunicativos, socioculturais e cognitivos.
Como exemplo, é citado à tendência do uso do agente como sujeito e tópico da oração
transitiva, que representa a não marcação e, possivelmente, isso ocorra por questões culturais
de falar mais sobre seres humanos do que de seres inanimados.
Observemos o par: Eu uso esta roupa / esta roupa eu uso.O segundo exemplo é mais
marcado, porque segue a ordem indireta, menos comum na língua portuguesa e o primeiro
exemplo é menos marcado porque está na ordem direta (SVO).
Ainda nesse pensamento, o autor compreende que marcação não é uma categoria
apenas linguística, já que se estende para outros campos como o discursivo na distinção entre
o discurso formal e informal (conversação), sendo o primeiro o mais marcado em relação à
conversação, que é cognitivamente menos complexa por incluir no seu âmbito assuntos
visivelmente comuns e perceptíveis entre usuários da língua.
Quanto ao plano discursivo também é de grande relevância e está subjacente à
estrutura do texto, a qual é dividida em partes centrais e partes periféricas e, para assinalar
essa particularidade do plano discursivo do texto, a transitividade é uma marca fundamental,
vez que as partes com alta transitividade se referem às partes centrais do texto, chamadas de
figura e as que apresentam baixa transitividade referem-se às partes periféricas do texto,
sendo chamadas de fundo.
37
Vale ressaltar que os planos discursivos se aplicam consideravelmente a textos
narrativos. Contudo, Marttelota (2009) analisa o plano discursivo observando quais
sequências tipológicas são centrais e quais são periféricas em gêneros textuais, como
descrições de local e relato de opinião.
Nesse sentido, a transitividade é estudada a partir de uma escala, elaborada por Hopper
e Thompson (cf. FURTADO DA CUNHA, COSTA & CEZARIO, 2003), que focaliza
diferentes níveis de transferência da ação de um agente para um paciente. Para isso, leva em
conta elementos como dinamicidade do verbo, agentividade e afetamento do objeto. Hopper e
Thompson ainda associam a transitividade a uma função discursivo/comunicativa, pois o
modo como o falante organiza seu texto reflete, de certo modo, um menor ou um maior grau
de transitividade, conforme seja a intenção do falante.
Para melhor visualização dessa proposta, em que todo o enunciado tem caráter de
transitividade e não apenas o verbo, vamos reproduzir um exemplo e sua análise que se
encontra em Furtado da Cunha, Costa e Cezario (2003, p. 37-38) que foi retirado de uma
narrativa que reconta o filme Batman:
Batman derrubou o Pinguim com um saco.
A mulher gato não gostava do Batman.
Esse rio tem uma forte correnteza.
Então o Pinguim chegou na festa.
Se analisadas pela gramática tradicional, os três primeiros enunciados são transitivos,
já que o complemento do verbo é um objeto. Contudo, na proposta funcionalista de Hopper
Thompson, o primeiro exemplo é o que ocupa lugar mais alto na escala de transitividade,
porque atende à todos os nove traços da escala de transitividade. O segundo lugar seria do
quarto exemplo, porque atende a sete traços, sendo que na análise da gramática tradicional
seria intransitivo. E o segundo e o terceiro exemplo atendem apenas quatro e três traços
respectivamente, por isso, teriam menor grau de transitividade.
Figura e fundo não mais são tratados como termos antagônicos, mas como um
continuum, fato que faz sentido se é um aspecto tratado na coexistência com a transitividade
que é um fenômeno escalar (conforme Hopper e Thompson) é presumível também que as
análises que envolvem figura e fundo se apoiem nessa mesma perspectiva.
Essa distinção baseia-se numa visão prototípica que ocorre com textos narrativos a
partir de elementos típicos da transitividade, sendo que figura seria uma ocorrência marcada e
fundo uma ocorrência não marcada.
38
Para melhor compreensão desses elementos num texto observemos o quadro abaixo:
Fonte: Furtado da Cunha, Costa e Cezario (2003, p. 40)
O texto que está no quadro acima mostra a oposição de tempo, aspecto e
dinamicidade: os verbos que estão em figura (perdeu e colocou) são punctuais no tempo
pretérito perfeito e os que estão em fundo apresentam comentários avaliativos e descritivos do
narrador que servem para contextualizar o evento narrado.
Outro elemento fundamental para a teoria funcionalista é o processo de
gramaticalização ocorre quando uma forma lexical que seja frequentemente utilizada em
contextos comunicativos particulares pode vir, no curso do tempo, a receber uma função
gramatical e, uma vez integrada à gramática, pode ser estendida para funções ainda mais
gramaticais. Essa condição de língua dinâmica e flexível respalda uma concepção de
gramática em que seu organismo estrutural se adapta às necessidades comunicativas e
cognitivas dos usuários da língua, demonstrando uma relativa instabilidade desse organismo
estrutural.
Como reflexo dessa visão, a gramática deixa de transparecer um ideário purista e passa
se relacionar com as variações e mudanças linguísticas, o que sugere a língua como um
contínuo de mudanças em consequência da evolução sócio-histórica e cultural, trazendo para
o mundo linguístico novas expressões e arranjos vocabulares. Nesses termos, a gramática está
sempre em formação e a estrutura linguística é relativamente instável. Âmbito pelo qual
39
Furtado da Cunha, Costa e Cezario (2003, p. 49) sinalizam que “a gramaticalização e a
dicursivivização são fenômenos associados aos processos de regularização do uso da língua”.
Diante de uma análise sincrônica, a gramaticalização é a mudança de um item lexical
para um item gramatical, ocorrendo um movimento no sistema mais especificamente
vinculado à morfologia e à morfossintaxe, contudo, o aspecto discursivo-pragmático vem
sendo o fator mais relevante para melhor compreender a estrutura da língua no geral e o
desenvolvimento de estruturas sintáticas e relações gramaticais particulares que procedem do
discurso.
De modo geral, os autores anteriormente citados, demonstraram que o processo de
gramaticalização pode incluir um modelo mais pragmático de comunicação. Fenômeno que
dá margem a esses estudos não apenas como uma reanálise de um item lexical de cunho
gramatical, mas também como uma reavaliação do padrão de funções discursivas interferindo
no padrão da gramática. Esses mesmos autores também dizem que o processo de
gramaticalização privilegia;
A trajetória dos elementos linguísticos do léxico à gramática (ex.: verbo pleno
> verbo auxiliar);
A trajetória de categorias menos gramaticais para categorias mais gramaticais,
como o de categorias invariáveis para categorias flexionais (ex.: menos >
menas). (FURTADO DA CUNHA, COSTA e CEZARIO, 2003 p. 51).
Também citam o trabalho de Maria Aparecida Silva (2000) em que o verbo ir
acumulam as funções de verbo pleno e auxiliar:
... quando ele vai atrás ele vê apenas um gato... ele pega o gato... entra no carro
e vai embora... (corpus D&G/Natal,p. 308).
bem, a minha opinião sobre o namoro é que está muito avançado, porque esses
rapazes de hoje não pensam do amanhã que vai ser (corpus D&G/Natal,p.
363). (FURTADO DA CUNHA, COSTA e CEZARIO, 2003 p. 51).
Já quando a gramaticalização é contemplada pela perspectiva diacrônica, deve ser
avaliada num processo ininterrupto que se movimenta entre as relações sintáticas e suas
funções no uso, envolvendo correlações, ao longo do tempo, entre mudanças semânticas,
morfossintáticas e até fonológicas, todas inferidas pelas necessidades advindas dos propósitos
comunicativos procedentes do contexto social.
As mudanças linguísticas revelam tanto as informações acerca de sua fonte, como
também sobre os estágios ao longo de seu percurso de desenvolvimento, ocasionando
40
múltiplos usos de uma mesma forma, sendo que sincronicamente, esses usos podem ser
entendidos como estágios de possíveis percursos de gramaticalização.
No entanto, Tavares (2006) defende uma nova linhagem para a análise da
gramaticalização. Segundo ela, adotar o parâmetro sincrônico ou diacrônico para pautar esse
processo nos textos, de um único período de tempo, é um trabalho dificultoso e que não dá
conta de mapeá-lo, pois marcas gramaticais em desusos podem aparecer em textos de outro
período, por isso, ela sugere a análise pancrônica para abranger os vestígios do passado e do
presente que resultam numa forma atual do uso, já que a gramaticalização é tida “como um
processo sempre em andamento, o que impossibilita o recorte estático de períodos de tempo –
eles possuem fronteiras indistintas, não podendo ser caracterizados como fatias discretas e
isoladas.” (TAVARES, 2006 p. 248).
Em suma, a gramaticalização é entendida como parte do estudo linguístico que
descreve mudanças ocorridas a partir de um processo gradual de pragmatização do
significado, envolvendo estratégias de cunho inferencial, que acrescentam informação
pragmática, e estratégias metafóricas, que resultam na abstratização.
2 SIGNIFICADO E GÊNERO NAS TIRAS EM QUADRINHOS
Nesse capítulo, relatamos acerca de uma das teses da teoria do gênero que é a
abordagem discursiva de Bakhtin, a qual se funda na interação verbal e nas práticas
dialógicas, que tomam como referência a noção espaço-temporal.
Para tanto, iniciamos expondo os principais vértices dessa abordagem, em seguida
sobre as acepções de língua, linguagem e de texto, empreendidas nessa ótica. Tratamos ainda
sobre a significação como um fenômeno inerente ao gênero discursivo, visto que reflete a
língua em funcionamento, por isso transfere a ele suas relações contextuais e os propósitos
comunicativos eminentes dessa natureza. Por fim, discorremos sobre algumas peculiaridades
dos gêneros em quadrinhos, dentre eles a tira em quadrinhos, cuja característica básica se
resume como uma narrativa em quadros geralmente com desfecho inesperado.
2.1 Considerações gerais sobre os gêneros discursivos: aspectos da teoria bakhtiniana
Os sujeitos históricos, no âmbito de suas interações verbais, se tornam enunciadores
que recorrem a um conjunto de realizações de natureza discursiva, contudo, seleciona os
elementos dessas realizações conforme as intencionalidades da esfera de atuação marcada
pela unidade espaço-temporal, o que permite observar os eventos com uma certa concretude.
Daí os gêneros discursivos alcançarem uma vasta variedade e estarem sempre aptos às
transformações, mas sempre guiados por uma conjuntura relacionada às experiências
humanas.
Vê-se, então, que os gêneros discursivos, enquanto manifestação cultural, precisam ser
compreendidos nas relações de espaço-tempo, e atuam, dessa forma, como registros das
conquistas históricas das civilizações e das significativas ações humanas permeadas no espaço
social. Assim, na cultura há marca de temporalidade que se evidencia na representação
estética e na percepção do uso real da língua.
A dinâmica histórica e cultural da linguagem vai além das limitações do sistema da
língua e chega a refletir as mudanças provenientes dos círculos de vivência dos seres
humanos. Nesse sistema de instabilidade, os gêneros discursivos agem como rede de
transmissão que emitem os fatos sociais para o uso da língua, ajuizando assim, a capacidade
de inovação, recriação e, portanto de pluralidade.
42
A partir dessa referência, o conceito de originalidade na linguagem perde sua essência,
impossibilitando uma inovação estética autêntica. Mas por outro olhar, essa caracterização
linguística é quem propicia à renovação e expansão, uma vez que:
O objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto do
discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele. O objeto, por assim dizer, já foi falado, controvertido, esclarecido
e julgado de diversas maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se
separam diferentes pontos de vistas, visões de mundo, tendências. Um
locutor não é um Adão bíblico, perante os objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear. (BAKHTIN, 2000 p. 319).
Atualmente, os gêneros mais difundidos são os midiáticos devido ao princípio de
massificação das mídias eletrônico-digitais. E essa efervescência é resultado das
determinações culturais encaminhadas a partir das esferas discursivas dessas mídias, tornando
os gêneros suscetíveis à transitoriedade entre as fronteiras da informação, veiculada por esses
meios, e o conhecimento por eles difundidos.
Nessa perspectiva, os gêneros atuam como mediadores da informação e do
conhecimento, seja divulgando os feitos científicos, seja notificando os acontecimentos do
cotidiano, seja instigando o processo de investigação que resultam em conhecimento, enfim,
atuando de modo geral como materialização das interações.
Esse panorama inspira uma concepção de linguagem mais ampla, pois mesmo Bakhtin
tendo o gênero romance como ponto fundamental de sua teoria, ele deu sustentáculo à
sistematização do discurso cotidiano, contribuindo para a face enunciativa do discurso que se
processa na “interação verbal, realizada através da enunciação ou enunciações. A interação
verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.” [grifos do autor] (BAKHTIN,
2004 p. 123).
Nesse enfoque contemporâneo, Machado (2008), reforçando o pensamento
bakhtiniano, considera os gêneros discursivos como dialógicos e como lugar de pertinência
dos signos e dos códigos culturais, ou seja, por meio deles estão registradas as marcas
temporais e os adventos culturais das representações e interações humanas. Nesse sentido, ela
esclarece dois pontos de vista para os gêneros discursivos:
43
[...] Do ponto de vista antogenético, os gêneros discursivos são realizações
das interações produzidas na esfera da comunicação verbal; do ponto de
vista filogenético, é possível acompanhar a expansão para outras esferas da comunicação realizada graças a dinâmica de outros códigos culturais que se
constituem, em relação a palavra, um ponto de vista extraposto. Nesse
sentido, as esferas de uso da linguagem podem ser dialogicamente
configuradas em função do sistema de signos que as realizam. [grifos acrescentados]. (MACHADO, 2008 p. 165).
Obviamente a riqueza de signos atualmente é mais abundante do que no momento
histórico vivido por Bakhtin, daí se justificar esse ponto de vista extraposto como um
processo natural do universo científico em que o conhecimento não adormece, antes se renova
e revive com outras perspectivas.
A difusão da teoria dialógica se estende para uma dimensão de magnitude tamanha
que, hoje, para compreendermos os sistemas de signos de nossa sociedade é imprescindível
pensar a linguagem pelo esboço delineado pelo filosófico russo. Como a sociedade atual tem
uma organização diferente da do período marxista rompido por ele, há a impressão de que os
conceitos bakhtinianos escapam de seu sistema teórico, mas há de se convir que esse sistema
se funda numa circularidade entre relatividade e determinação, não podendo ser visto por
ângulos fechados, por isso, há um ambiente suscetível ao “extraposto”, ponto de vista que
embasa o sistema linguístico contemporâneo. E é sob esse prisma que a noção de texto é
cogitada.
Nessa perspectiva, a noção de texto aparece como signo da relatividade de um campo
com diferentes ângulos, pois representa atos, elementos e relações culturais muito diversas.
Conforme Machado (2007, p. 198) a noção de texto em Bakhtin nasce mediante a
“necessidade de se entender uma manifestação constituída pela diversidade de linguagens, ou
seja, uma manifestação dialógica.”
Noção pela qual, segundo a autora, só pode ser considerada do ponto de vista da
extraposição, porque Bakhtin não teoriza de forma sistematizada sobre uma teoria do texto,
mas suas formulações revelam subsídios para a compreensão dos espaços textuais, sendo
subtraídas de sua concepção de linguagem como sistema dialógico de signos.
Um dos principais aspectos que endossa essa abordagem são as reflexões em torno da
composição textual, que comporta uma combinação de uma diversidade de formas, em que o
enunciado é a unidade que organiza as formas linguísticas, pois essas são capazes de produzir
o discurso-língua nas circunstâncias de interação linguístico-social.
44
Essa conjuntura corresponde à constituição do gênero, que se compreendido como
“formas de acabamento de um todo, o texto só pode ser resultado do que se constrói num
todo.” (MACHADO, 2007 p. 200), pois é um fenômeno de pluralidade.
Para Bakhtin, todo texto pressupõe uma língua-discurso, assim sendo, o texto é um
signo que se processa no cruzamento de sujeitos discursivos, uma vez que mobiliza
significados concebidos no evento comunicativo, cujas formas são determinadas pelos
gêneros discursivos.
2.2 A significação nos gêneros discursivos e as possibilidades de sentidos
Os gêneros discursivos, por serem instrumentos de ações sociais, culturais e históricas,
estão sujeitos a enormes probabilidades de leituras. Essas revelam significações esperadas ou
inesperadas, pois participam de organismos linguísticos vivos, interativos que tendem a
conotações versáteis.
Essa concepção é resultante da problemática sobre linguagem no contexto
contemporâneo, que adotou conceitos e metodologias sob a ótica da multiplicidade dos usos e
mobilização da língua. E Brait (1997) quando faz um estudo aprofundado de algumas obras
bakhtinianas, consegue assim, ter uma ideia mais ampla. Diante disso, sublinha que a
concepção de linguagem e das formas como sentido e significação se difundem, nesse
conjunto, possibilitando trazer a reflexão de linguagem por ocasião de seu funcionamento,
que se emoldura mediante os diferentes materiais ideológicos e discursivos.
A fonte do significado para Bakhtin está no contexto social, se contrapondo à visão
saussuriana para quem o significado está apenas na estrutura da língua. No entanto, no sentido
bakhtiniano, a forma estrutural adquire uma nova significação a cada uso, por isso deve ser
estudada a partir da noção de enunciado e não da forma linguística/estrutural. Só assim terá
condições de adequar as significações às situações de cada contexto.
Na construção desse contexto discursivo, há de se considerar o ponto de vista do
locutor, seus interlocutores e o meio social de ambos para que haja a possibilidade de
compreensão e produção de significados no processo comunicativo, e o vértice que demarca
esses pontos de vista é o fato de a forma linguística ser compreendida como signo flexível e
maleável, visto que “o essencial na tarefa de compreensão não consiste em reconhecer a
forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua
significação numa enunciação particular [grifo acrescentado]. (BAKHTIN, 2004 p. 93).
Paradoxalmente é esse caráter de determinação do ponto de vista que garante a dinamicidade
45
da palavra enquanto mecanismo de multiplicidade de significações, índice que faz de uma
palavra uma palavra.
Isso não confere a cada locutor/enunciador significar o que diz autonomamente,
porque suas palavras não são só suas, elas podem ser:
[...] palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e,
finalmente, palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa
determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade. (BAKHTIM, 2000 p. 313)
A compreensão da palavra depende da utilização dada num determinado contexto, pois
enquanto instância comunicativa, ela está sempre circundada por uma natureza ideológica,
não permitindo a existência de um locutor abstrato, mesmo que se pretenda expressar de
forma impessoal, pois há sempre um horizonte social comum aos participantes da enunciação.
A significação nos estudos bakhtinianos é mais evidente na correlação com o tema
(sentido), sendo definido como sentido da enunciação completa, ou seja, a própria
comunicação e para sua efetivação necessita tanto dos elementos verbais quanto dos não-
verbais. É um fenômeno histórico, concreto e possível de expressividade.
Já a significação é parte do tema, é abstrata e pode ser analisada conforme a
identificação das formas linguísticas com as quais se relaciona, isto é, a significação é o
pretexto para materialização do tema. Embora apresentem características distintas, segundo
Bakhtin, tema e significação são elementos indissociáveis e presentes em todo ato
interacional.
Com base no que relata Cereja (2008), a palavra “significação” já não é empregada
nessa correlação, mas nas discussões linguísticas atuais ela conota o que se chama de
problema de sentido e construção de sentido.
Essa relação entre tema e significação é compreendida como sinalizadora de sentido
do enunciado, visto que o tema se ampara nos sentidos mais instáveis advindos da
significação, permeado com os vínculos dialógicos dos outros enunciados, tendo em vista
que, como defende Brait (1997), o sentido e a significação em Bakhtin perpassam pela
questão do dialogismo.
Ainda de acordo com Cereja (2008, p. 218), essa relação é posta no âmbito da língua e
do discurso, em que “a significação está para o signo linguístico assim como o tema está para
46
o signo ideológico; ou, ainda, que a significação está para a língua assim como o tema está
para o discurso e para a enunciação.”
No interior de uma enunciação, há ali uma significação e, no exterior, ficam os
elementos que dão suporte ao tema (sentido), compondo um todo (enunciação). Ao perder
essa ideia de encadeamento enunciativo, perde-se também a significação, que mesmo sendo
parte, só ganha existência no todo. Essa inter-relação é endossada por Bakhtin (2004, p. 131):
“o tema constitui o estágio superior real da capacidade linguística de significar [...] e a
significação é o estágio inferior da capacidade de significar.” [grifos do autor]. Demonstra-
se, assim, que o sentido não existe a não ser pela presença do significado, eles se
complementam.
Conforme essa definição anterior, lembra o autor, a significação aborda duas
perspectivas: a significação contextual, que se refere ao sentido produzido numa enunciação
concreta; e a significação da palavra no sistema da língua, que se refere ao estágio interior,
ou seja, a palavra dicionarizada ou descontextualizada.
Também vincula as questões de significação à compreensão ativa, possibilitando
condições de resposta, tornando a compreensão uma forma de diálogo, como declara:
A significação não está nem na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do
interlocutor e do receptor produzido através do material de um determinado
complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos. [...] Só a corrente comunicativa verbal
fornece à palavra a luz de sua significação. [grifos do autor]. (BAKHTIN,
2004 p. 132).
Reforça-se aqui o que se defende como substância fundamental da língua, a interação
verbal, conduzindo à reflexão de que os fenômenos linguísticos não acontecem desconexos
dos fatos históricos e sociais. Nesse sentido, a significação produzida numa situação real,
ressignifica, porque é corporificada pelo sentido que é sempre provisório.
Tal empreendimento se fundamenta na concepção de língua como elemento mutável e
flexível, em que o locutor e seus interlocutores produzem sentidos a partir de significações
inscritas nas enunciações concretas e dialógicas.
47
2.3 Considerações sobre os gêneros em quadrinhos
O texto em quadrinhos tem atualmente marcado forte presença no contexto
pedagógico educacional, haja vista o uso frequente de textos dessa natureza em provas de
vestibular, a menção destes pelos PCN (Parâmetros Curricular Nacional) de Língua
Portuguesa e a distribuição de obras em quadrinhos às escola do Ensino Fundamental (através
do Programa Nacional Biblioteca na Escola – PNBE). Atitudes que fazem da linguagem dos
textos em quadrinhos e seus gêneros alvo de interesse dos estudos acadêmicos.
Como se trata de um objeto de estudo relativamente recente no quadro da investigação
linguística, é natural a falta de clareza até mesmo quanto à sua nomenclatura. A tira, por
exemplo, que é objeto de estudo deste trabalho, é atribuída uma série de termos: tira, tira
cômica, tira de quadrinhos, tira em quadrinhos, tirinha, tira de jornal, tira diária e tira
jornalística (RAMOS, 2010). Neste trabalho, a opção foi por “tira em quadrinhos” por sua
forte inter-relação intertextual e estrutural com as histórias em quadrinhos, havendo alguns
autores, inclusive, que a classificam como um subgênero das histórias em quadrinhos
(MENDONÇA, 2010).
Uma questão muito discutida é o fato de se confundirem os textos em quadrinhos com
literatura, talvez pelo fato de terem ganhado maior notabilidade quando clássicos da literatura
foram adaptados para essa linguagem. Na verdade os textos em quadrinhos têm uma
linguagem autônoma e, provavelmente, mais atrativa que a literária. (RAMOS, 2010).
Essa falta de reconhecimento realmente se justifica quando se pensa que os quadrinhos
têm um longo histórico de desprestígio, rotulados como textos de linguagem pejorativa,
afastados do interesse de leitura escolar que, até há duas décadas, ainda privilegiava as
leituras de cunho literário. Daí a linguagem literária ter sido motivo para âncora da linguagem
dos quadrinhos, haja vista seu reconhecimento social. Nesse nexo, literatura e quadrinhos são
domínios com linguagem diferente e cada um acolhe uma gama de gêneros diversos.
Quanto ao tipo textual, os quadrinhos são considerados narrativos e se apropriam de
mecanismos peculiares para representar seus elementos, podendo trazer sequências
características de outro tipo como argumentativas e injuntivas, constituindo assim uma
heterogeneidade tipológica, uma particularidade de todo gênero (MARCUSCHI, 2008).
Quanto à relação fala e escrita, tidas como instâncias de um mesmo sistema. Do ponto
de vista semiótico, são representações bem diferentes, tanto que a escrita não representa a
fala, mas se processam num contínuo. Já do ponto de vista funcionalista, há uma relação de
48
interferência, o que implica na presença de marcas pragmáticas, típicas da oralidade,
aparecerem na escrita.
Assim, os gêneros em quadrinhos são concebidos por meio da escrita, mas procuram
representar a fala, principalmente do cotidiano. Daí o uso abundante de recursos linguísticos
como interjeições, reduções vocabulares, onomatopeias, recursos visuais como letras
dobradas e destacadas (negrito, itálico sublinhada, formato maior) que visam dar ênfase a uma
ideia que a escrita convencional não consegue registrar; além de recursos lexicais, como a
escolha vocabular que caracteriza a linguagem dos personagens. Enfim, os quadrinhos tentam
simular a fala, para isso incorpora vários elementos da oralidade e um bom exemplo, além dos
já citados, são os marcadores discursivos.
Quanto à integração da linguagem verbal e não-verbal é uma relação que atua na
operação dos significados. Para tanto, são acionados recursos linguísticos, cognitivos e
interacionais para que o leitor compreenda a leitura dos quadrinhos e, embora pareça haver
um esforço maior do leitor para se relacionar com os sentidos ocasionados pelos significados
produzidos nesse gênero de texto, há por outro lado, uma facilidade. No caso das tiras em
quadrinhos, por ser um texto curto e usar mais de um tipo de linguagem (uma colabora com
os signos da outra), vale salientar, que esses recursos não atuam isoladamente, mas de modo
interativo operando mecanismos que ativam a produção de conhecimento
(leitura/compreensão/interpretação/sentidos).
Segundo o pensamento de Ramos (2010), na leitura dos quadrinhos há um hibridação
de signos verbais escritos e não verbais que “agregam signos de três ordem: icônica
(representação dos seres ou objetos reconhecíveis), plástica (caso da textura e da cor) e de
contorno (a borda ou linha que envolve a imagem; é de particular interesse para análise dos
balões[...])”(p. 56).
Como os textos, no geral, mantêm relações de semelhanças com outros, assim os
quadrinhos dialogam com a literatura, com a linguagem do teatro, do cinema, da caricatura,
da pintura, entre outros.
Os gêneros em quadrinhos, ao se afirmarem com sua linguagem própria e seus demais
recursos específicos, ganham uma certa autonomia como gênero textual. Essa consideração é
vista em Ramos (2010) e em sua obra ele compartilha esse pensamento com Cirne (1970),
Eisner (1989), Acevedo (1990) e Eco (1993). Esse aparato, exposto pelo autor, sugere aos
quadrinhos a sua emancipação enquanto texto com características narrativas, pois reúne seus
principais elementos:
49
O espaço da ação é contido no interior de um quadrinho. O tempo da
narrativa avança por meio da comparação entre o quadrinho anterior e o
seguinte ou é condensado em uma única cena. O personagem pode ser visualizado e o que ele fala é lido em balões, que simula o discurso direto.
(RAMOS, 2010 p. 18).
Nem sempre foi assim. Há quem diga que a origem dos quadrinhos deu-se a partir das
pinturas rupestres, tendo em vista que as civilizações antigas se valiam de desenhos para se
comunicar. Ocorre que os gêneros em quadrinhos, tal como se conhece hoje, surgiu em
meados do século XIX, com as histórias de Busch e de Topffer, e somente no fim desse
mesmo século um personagem em quadrinhos se torna reconhecido como herói que foi o
Menino Amarelo (Yellow Kid – a partir de 1895) desenhado por Richard Outcault e publicado
semanalmente no New York World. Esse personagem popularizou a inovação dessa época,
que já era utilizada, por exemplo, na história inglesa Ally Sloper’s Half Holiday de 1886, pois
trazia o texto verbal (a fala do personagem) junto do personagem (como, por exemplo, na
túnica amarela do herói). A partir dessa inovação, foram criados os balões, o ambiente que
traz a linguagem verbal dos textos em quadrinhos. (MENDONÇA, 2010).
Sabemos que numa sociedade com acesso a textos híbridos, não é fácil o
reconhecimento de determinados gêneros devido ao imbricamento dos textos que se cruzam
no contexto sociocultural dando margem a novos gêneros (Bakhtin (2004), além da
diversidade de critérios em torno dessa questão. Quanto aos gêneros em quadrinhos, Ramos
(2010) observou algumas regularidades que os caracterizam:
Diferentes gêneros utilizam a linguagem dos quadrinhos;
Predomina nas histórias em quadrinhos a sequência ou o tipo textual narrativo;
As histórias podem ter personagens fixos ou não;
A narrativa pode ocorrer em um ou mais quadrinhos, conforme o formato do gênero;
Em muitos casos, o rótulo, o formato, o suporte e o veículo de publicação
constituem elementos que agregam informações ao leitor, de modo a orientar a
percepção do gênero em questão;
A tendência nos quadrinhos é a de uso de imagens desenhadas, mas ocorrem casos
de utilização de fotografias para compor as histórias. (RAMOS, 2010 p.19)
Tendo em vista essas características, os gêneros dessa natureza, endossa o autor,
compõem um texto narrativo que apresentam um contexto sociolinguístico interacional.
Assim gêneros como cartum, charge, ilustração, etc. não seriam considerados como gêneros
dos quadrinhos por não construírem uma narrativa. Mas como dito antes, a questão da
definição dos gêneros não é uma tarefa consensual. No caso da afirmação anterior, fica
complicado, porque o cartum, por exemplo, apresenta os elementos básicos de uma narrativa
50
como a situação inicial e o desfecho, embora em um só quadro, não ficando explícita a
compreensão enquanto narrativa.
Visualmente, os gêneros em quadrinhos não exigem grande esforço de identificação,
devido aos recursos peculiares, como os quadros, imagens e balões, sendo este último o que
mais identifica os quadrinhos como gêneros específicos. (RAMOS, 2010)
Os quadrinhos constituem um domínio discursivo, conforme proposta de Marcuschi
(2008), já que não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários. Nesse sentido,
seriam gêneros desse domínio as tiras em quadrinhos e as histórias em quadrinhos.
Por essa concepção, o fato de o texto estar delimitado num quadro (termo que dá
origem a esse domínio, quadrinhos) não faz dele necessariamente um gênero desse domínio e
se justifica porque há uma infinidade de textos que podem vir assim configurados, a depender
do suporte, da estrutura textual e do propósito comunicativo. Um anúncio publicitário, uma
receita são exemplos de gêneros que podem se apresentar delimitados num quadro, contudo,
não apresentam outras características, como o tom dialogal, representação de uma cena
narrativa ou traz o uso de balões próprios dos quadrinhos.
Por outro lado, esses mesmos gêneros (anúncio e receita) podem se apresentar no
formato dos quadrinhos, ou seja, um gênero com função de outro. Então, como defini-los?
Marcuschi (2008), por exemplo, cita como critérios, para identificação gêneros, os seguintes:
forma estrutural, propósito comunicativo, conteúdo, meio de transmissão, papéis dos
interlocutores, contexto situacional. Embora atuem em conjunto, aconselha ele, quando
houver conflito na identificação de um gênero, que prevaleça o propósito comunicativo.
Para esses casos, de hibridação ou mescla de gêneros em que um gênero assume
função de outro, o autor utiliza o termo intergenericidade. Ele alerta que esse fenômeno nem
sempre ocorre em situações que seja de fácil distinção. Nos exemplo citados anteriormente os
gêneros prevalecem sendo anúncio e receita, caso a função seja relativa aos propósitos desses
gêneros (divulgação publicitária e instrução para fazer alguma comida). Já nos casos de
gêneros do mesmo domínio, como é o caso das tiras em quadrinhos e das histórias em
quadrinhos, fica mais difícil?
Nessa situação, já não prevalece o propósito comunicativo porque ambos têm intuito
de apresentar uma situação divertida através de uma sequência narrativa e no formato de
quadrinhos A diferença é sutil: as tiras são sintéticas, de formato retangular, fixo, dividido, no
máximo, em quatro quadrinhos. As histórias em quadrinhos ultrapassam esse formato, mas
51
em termos de sua narrativa, apresentam basicamente os mesmos elementos de forma
estendida.
Quanto à caracterização específica do gênero tira em quadrinhos, há também
divergências. Ramos (2010), por exemplo, dá como principais características a esse gênero
questões como temática, formato e personagens, que podem ser fixos ou não, que criam uma
narrativa com desfecho inesperado. Para ele, na produção de humor, esse gênero, muitas
vezes, faz uso de estratégias textuais semelhantes às de uma piada, sendo chamado de tiras
cômicas (é a que predomina nos jornais, apresenta sempre um tom de piada). Apesar de ser a
mais difundida, não é o único gênero de tiras em quadrinhos, afirma que há as tiras cômicas
seriadas (com as mesmas características da tira cômica, só que produzida em capítulos) e as
tiras seriadas ou de aventuras (história narrada em partes, um capítulo por dia). Se forem
reunidas em uma coletânea, funciona como história em quadrinhos, mas isoladamente, é um
gênero autônomo com diferentes temáticas que é produzido e lido em capítulos. Embora já
tenha sido muito popular no Brasil, hoje é quase inexistente.
Mendonça (2010) diz que as tiras em quadrinhos são um subtipo das histórias em
quadrinhos, podendo ser sequenciais (em forma de capítulos) ou fechadas (episódio diário).
Estas últimas são divididas em tiras-piadas (fazem uso de estratégias discursivas das piadas
para obter humor, trazendo recursos como a possibilidade de dupla interpretação) e tiras-
episódio (o humor é construído a partir do desenvolvimento de uma temática numa dada
situação, de modo a realçar as características dos personagens)
Mas também há uma tendência, divulgada por Ramos (2010), em definir esse gênero
pela temática das histórias: super-heróis, terror, infantil, detetive, faroeste, ficção científica,
aventura, humor, erótica, literária, jornalísticas. E então surge outra problemática, por que
essa definição seria infinita, pois quantas temáticas não há de existir?
Conforme o que se constata, não é simples confirmar a caracterização dos gêneros em
quadrinhos, tendo em vista também a variedade de enfoques, revelando-se gêneros complexos
como qualquer outro no que diz respeito ao seu funcionamento discursivo. Nessa perspectiva,
Ramos (2010) identifica, pelo menos, três desses enfoques:
O que vê os quadrinhos como um grande rótulo que abriga diferentes gêneros;
O que vincula os gêneros de cunho cômico – charge, cartum, caricatura e tiras [...] –
num rótulo maior, denominado humor gráfico ou caricatura [...];
O que aproxima parte dos gêneros, em especial as charges e as tiras cômicas, da
linguagem jornalística (linha apoiada no fato de serem textos publicados em jornais).
(RAMOS, 2010 p.20-21)
52
No caso, a tese que mais interessa nesse trabalho é a do primeiro enfoque, porque o
ponto de vista discursivo aqui expresso não se interessa em observar a linguagem gráfico-
cômica nem a jornalística, mas as codificações que abrigam as relações de significado e sua
produção de sentido expressa no gênero tira em quadrinhos, um dos gêneros que se enquadra
nesse “rótulo” mencionado.
3 REVISÃO DA LITERATURA SOBRE O ITEM LINGUÍSTICO E
Esse capítulo está direcionado ao exame de estudos acerca do item linguístico E na
perspectiva da multifuncionalidade, por isso abordamos inicialmente como essa questão é
compreendida nesses estudos, cuja relevância está agregada aos valores semântico-
discursivos, havendo, nesse âmbito, flutuação semântica, cujo valor base é aditivo. Em
seguida, tratamos de definir e demonstrar algumas das funções do E e relacionamo-las num
contínuo aditivo, em que esse valor base se amplia, de onde emana a necessidade ser tratado
sob forma de uma gradiência, de mais para menos aditivo. Também relatamos sobre as suas
relações de articulação que se dão no nível do texto. Ainda discorremos sucintamente sobre as
funções discursivas do E que foram selecionadas para posterior análise, com intuito de
apresentar uma sistematização sobre estas funções.
3.1 Valores semântico-discursivos do E
Os elementos que estabelecem qualquer tipo de conexão na língua costumam
desempenhar papel de destaque no profícuo campo da Linguística.
Nas gramáticas tradicionais, o E se apresenta como uma das conjunções mais
prototípicas das orações coordenadas, cujo valor semântico nelas mencionados é puramente
aditivo, apesar de alguns autores apresentarem ressalvas sob forma de observações.
Bechara (2009), por exemplo, observa que “muitas vezes, graças ao significado dos
lexemas envolvidos na adição, o grupo das orações coordenativas permite-nos extrair um
conteúdo suplementar de ‘causa’, ‘consequência’, ‘oposição’, etc.” (op. cit. p. 320). Assume,
desse modo, a relevância dos sentidos contextuais para a mensagem global, mas como sentido
acessório, porque, segundo ele, não modifica a relação gramatical aditiva das unidades
envolvidas, como no exemplo citado: Rico e desonesto. Conforme a percepção dele, há
apenas uma oposição semântica entre os termos conectados.
Ainda é interessante frisar outra observação feita por Bechara (2009 p. 321):
“Algumas vezes o E aparece depois de pausa, introduzindo grupos unitários e orações; são
unidades enfáticas com função textual que extrapolam as relações internas da oração e
constituem unidades textuais de situação.” Ele já permite uma abertura, dando margens para
pressupor funções mais abrangentes, consequentemente seu valor aditivo também se distancia
da concepção tradicional.
54
Ex: “E repito: não é meu” [MA.1, 314] (BECHARA, 2009 p. 321)
Mesquita (1999), ao falar das conjunções de modo geral, assume que elas
desempenham relações semânticas entre as orações, e que estabelecem coesão no texto,
facilitando a compreensão do leitor.
As orações coordenadas são consideradas, nas gramáticas tradicionais como “as
orações que têm sentido próprio, que são autônomas, independentes, e pertencentes a um
mesmo período” (CUNHA, 1982). Por outro lado, Mesquita (1999) assume que as
coordenadas podem ocorrer, às vezes, entre períodos de um texto.
Partindo da consideração do elemento E como um elo conectivo entre as orações
sintaticamente independentes (CUNHA, 1982; MESQUITA, 1999; BECHARA, 2009;
ROCHA LIMA, 2007) é sabido, contudo, que essa consideração não tem sustentação quando
no trato da língua em uso. Primeiro, porque o conceito de independência das orações
coordenadas é de fácil questionamento (ABREU, 1997), pois não se estabelece mediante
critérios ou parâmetros. Segundo, porque geralmente os componentes semântico e pragmático
não são levados em conta nas análises tradicionais.
Conforme Abreu (1997), as coordenadas mais prototípicas são as aditivas (o caso do E
em análise), adversativas e as conclusivas, fato consonante com as gramáticas tradicionais.
Ele, porém, alude que, entre os traços marcantes para tal está a manifestação da iconicidade
temporal, assumindo motivações relativas a experiências cognitivas dos eventos versados no
contexto sociocultural e histórico, permeados pelas interações do uso linguístico.
As aditivas estão presentes também na subcategorização de Halliday & Hasan (1976
cf. CAMACHO, 1999). Particularmente o E, apresentam-no como sendo de uso aditivo ou
estrutural e de uso coesivo ou textual com base no escopo da ocorrência da sentença.
A definição nas gramáticas é de que o E é uma conjunção que conecta as orações
coordenadas aditivas, expressando ideia de adição, de soma ou de sequência de ações
(MESQUITA, 1999). Essa definição dá ideia de que o sentido aditivo pode se agregar a
atuações de funções discursivas, como sequenciamento, por exemplo. Essa definição, todavia,
foi a mais abrangente dentre as outras gramáticas consultadas.
A definição semântica básica do E para Neves (1985) é de adição que, segundo ela, se
relaciona com o próprio significado etimológico, já a relação temporal se dá apenas na
estruturação do enunciado. Contudo, analisa que os elementos linguísticos estão envolvidos
em enunciados, os quais não se isentam de análises semânticas e das análises advindas de suas
condições de produção, por isso fazem parte de um terreno fluido, impossibilitando a fixação
55
de classes bem definidas. Nesse âmbito, defende não uma classificação, mas uma gradiência
conforme a contextualização dos sentidos básicos obtida pelas análises desses elementos a
partir do nível do texto. Assim, o E na adição do sistema de informação ou de argumentos
passa gradualmente “de uma adição comumente chamada ‘pura e simples’ para a adição
enfática, adição com alternância e adição com contraste.” (NEVES, 1985 p.64).
Desse modo, assim como se sugere um contínuo em vez da dicotomia entre
coordenação e subordinação (ABREU, 1997), já que há casos de difícil distinção, como as
coordenadas explicativas e as subordinadas causais, essa mesma ideia procede para a análise
do elemento em foco. É assumida por Abreu (1997, p. 35) também uma postura que
ultrapassa a relação puramente aditiva, como podemos observar no exemplo a respeito:
Fulano diz que é rico e nunca tem dinheiro no bolso; Fernanda estudou e não passou no
exame; Empreste dinheiro e perca o amigo.
Conforme examina o autor, as orações introduzidas pelo item linguístico E, nas duas
primeiras frases, têm características semânticas de adversativa. Já no terceiro exemplo, tem
características semânticas de condição: se você emprestar dinheiro, perderá o amigo.
Segundo ele, se disser tal como no segundo exemplo, suaviza o tom de crítica ou até
mesmo desaparece, deixando atenuada a enunciação que preserva a face do enunciador. Essa
consideração envolve as intencionalidades do enunciador que imprime as conveniências
interativas pertinentes ao propósito comunicativo.
Nessa mesma perspectiva, Monnerat (2003) trata do valor temporal do E como o
primeiro valor a ampliar o sentido, em termos de associação de ideias e de alargar o contexto.
Nesse sentido, implica a ideia de sucessão, consequentemente de acúmulo que, ao ser
adicionado, pode vir a contradizer, a corrigir o segmento que o precede, acarretando a ideia de
oposição (contraste, adversidade e concessão). Para ilustrar, a autora mostra os seguintes
exemplos: “Procuro e não encontro”; no qual cabe a paráfrase “Procuro mas não encontro”,
em que se tem uma parte afirmando, outra negando, ocasionando o caráter adversativo.
Bechara (2009) compartilha dessa visão. Como já vimos, ele expõe o valor de
oposição e causa-consequência do E, mas não atribui essa interpretação a relação sintática que
as orações mantêm entre si e o grupo oracional, nem ao emprego da conjunção, que “por ser
um mero conector das orações, tem por missão semântica apenas adicionar um conteúdo de
pensamento a outro”, mas essa interpretação adicional advém “da nossa experiência do
mundo”, explicando que é o texto e não a gramática que manifesta sentido adversativo,
dizendo que são unidades textuais que “manifestam funções sintagmáticas no nível do texto.”
56
(BECHARA, 2009 p. 476). Nesse caso, ultrapassam o escopo das orações, por isso talvez, não
caiba na definição gramatical que o autor defende.
Camacho (1999), também ao falar sobre assimetria das orações, diz que o E em si não
indica a sucessão temporal e que esse valor semântico é aparentemente devido às convenções
icônicas da ordem dos fatos na narrativa.
Neves (2000) aborda o E como um coordenador e o trata a partir de quatro aspectos:
quanto a natureza da relação, ao modo de construção, ao valor semântico e a sua ordenação.
Quanto ao primeiro aspecto (natureza da relação), relata que o E indica uma relação de
adição entre os segmentos coordenados, sinalizando que esse coordenador possui um caráter
mais neutro do que os outros. Isso se explica quando esse coordenador procede da adição de
segmentos que mantêm entre si uma relação semântica marcada por uma relação de contraste
ou por uma relação de causa-consequência. Monnerat (2003) acredita que é por essa
especificidade do E que ele pode exercer diferentes tipos de conexões. Penhavel (2009)
admite que, por essa caracterização de neutralidade, é possível o uso do E em uma diversidade
de contextos semânticos (temporal, causal, conclusivo, explicativo adversativo, condicional e
final). Já Camacho (1999) refere-se a uma espécie de função coringa que pode indicar
simultaneidade, inclusão temporal, causa, condição, consequência, conclusão.
Quanto ao segundo aspecto (modo de construção), os segmentos coordenados por E
podem ser compostos e construídos de diversas formas. Desse modo, são categorizados por
Neves (2000) em cinco subgrupos: Elemento de composição de uma palavra (palavras
compostas ou dois prefixos que se ligam a uma mesma base lexical; Palavras; Sintagmas;
Orações; Enunciados. Ressalta, ainda que, dentro de um enunciado, outros modos de
construção, coordenados por E, podem ocorrer com os constituintes anteriores compondo uma
organização coordenada hierarquizada (sintagma e sintagma, oração e oração, entre outras
combinações dentro do enunciado).
Quanto ao valor semântico do E, há algumas especificidades que Neves (op. cit.)
analisa segundo a distribuição.
a) Iniciando sintagmas, orações ou enunciados, o E pode indicar:
Adição de unidades do sistema de informação havendo ou não uma relação
de tempo com:
o Efeito de acúmulo: “E são abusados E desbocados E tem apetite de
aproveitadores”. Esse efeito se acentua com a multiplicidade de
segmentos coordenados e especialmente nos polissíndetos;
57
o Restrição ao primeiro segmento: nesse caso não há relação temporal. O
acréscimo de informação se apresenta como uma especificação do
primeiro e acontece apenas em um ponto do segmento. Nesse sentido, a
informação acrescentada incide em:
Uma atribuição (predicativo): “Vá com suas filhas Sara, é seu
dever; E vá descansada, que passarei muito bem o domingo,
trabalhando.”
Um modo de evento (adjunto adverbial de modo) que é
focalizado: “_Mas eu não fabrico dinheiro, caramba! Quem
fabrica dinheiro é o governo. E as pampas!”.
Uma localização espacial ou temporal (adjunto adverbial de
lugar) que é focalizado: “O rádio falou do discurso do Getúlio.
Já é batata, agora. E ele vai assinar o decreto aqui.”
Um intensificador (adjunto adverbial de intensidade+parte
intensificada): “Às vezes caminhava até ao cercadinho, voltava
– E tanto mais se movia, quando mais rápida era a volta do seu
desespero, a persistente sensação de que, em torno dele, um
círculo apertava-se”.
Adição de temas:
o Com subsequência temporal: há uma progressão temática que coincide
com o tempo da narrativa. “_Deus lhe acompanhe – dissera-lhe a
mulher no dia da viagem. E o retirante juntou-se à leva.”
o Sem subsequência temporal: encadeia uma alternância de temas. “O pai
ocupava a cabeceira da mesa. E o copeiro de jaqueta engomada vinha
trazendo os pratos.”
b) Por motivações pragmáticas, o E tem empregos que só ocorrem em início de
enunciados (num novo ato de fala e início de turno), o que promove na construção
da coordenada:
Adição de um pedido de informação. O E inicia uma interrogativa (direta ou
indireta) que pode ser:
o Interrogativa geral:
Com pedido de informação sobre a verdade da atribuição de um
predicado a um sujeito:
58
“_Teria dormido comigo, se eu pedisse.
_E o senhor nunca pediu?
_Não.
_ E ela era bonita?”
Com pedido de informação sobre um tema (um sintagma
nominal)
“_Isso é imprevisível. Sessenta dias é um tempo aceitável!
_E a alimentação?Ela não quer comer nada, doutor.”
o Interrogativa parcial: com pedido de informação em um ponto do
primeiro segmento:
“_Então já são dois favores.
_Exato.
_E para quê? E por quê?
Adição de uma consideração de um tema que inicia uma interrogativa geral.
o O segundo segmento se restringe ao termo que representa o novo tema
sugerido:
“Distendemo-nos. Sugerimos o caminho.
_E o treino, hem? – disse nosso quíper bem perto de mim.
o O segundo segmento é um enunciado completo:
“_ Como é, Sariruá, E você, Apucaiaca, aposto que estão comendo o
peixe que deviam guardar para quarup. Os índios riram sem entender,
pois Fontoura tinha falado rápido.
(...)
_ E você, Matsume – disse Olavo para a mulher – está fazendo beiju?
Adição de argumentos:
o Em um mesmo sentido de argumentação: o segundo enunciado
coordenado reitera a direção argumentativa.
Explicitação do acréscimo de um segundo argumento ao
primeiro. Uma pausa no final do enunciado marca esse efeito.
“_De raça, a galinha?
_Raça nada. Pêlo duro. Caipirinha da silva.
_E gordinha que tá.
59
O segundo enunciado é uma interrogativa retórica (solicita um
argumento) e sua natureza é variável:
Pode ser um enunciado completo: “Humildemente num
homem como aquele?... E não havia, no tom com que
falara, uma oculta armadilha, pronta a disparar se ele
dissesse não?”.
Pode ser o enunciado reduzido a palavra ou expressão
interrogativa: “Animou-se ao vê-la tão bem, chegou a
acreditar ser mesmo possível... E por que não? – pensou
tomando entre as suas mãos descarnadas.
Pode ser o enunciado reduzido à prótase, se for uma
interrogativa hipotética: “_ Meu Deus – disse Fontoura
– só agora é que estou sentindo a coisa... E se
pernoitarem?
o Com a inversão do sentido em que vai a argumentação (o segundo
enunciado tem essa função).
O segundo segmento é um enunciado asseverativo: “_ Padre
Mateus, recebi o senhor em minha casa como auxiliar. E não
como aluno.”
O segundo enunciado é uma interrogativa retórica com função
asseverativa e valor negativo. “Vender peixe pros homens de
linho e camisa esporte. Pras moças bonitas do well, do fine, do
bye-bye, e de outras conversas que ele não entendia mas sorria,
que siá dona era capaz de se zangar se ele não sorrisse: podia
tomar como ofensa. E ele podia pensar em ofender siá dona?
Podia nada.”
Embora a autora só mencione os sentidos aditivos é evidente o estabelecimento de
relações diversas tendendo a valores aditivos mais e menos evidentes. Essa flutuação
semântica extrapola a visão geral do que se tem como conectivo aditivo.
Esses valores aditivos, descritos por Neves (2000), se relacionam com algumas
funções (seção 3.2) pautadas por Camacho (1999) e com as funções descritas por Penhavel
(2009), como as que estão acima no segundo ponto de a) – adição de temas – podem ter
semelhança com a função de sequenciamento, e as que estão em b) – motivações pragmáticas
60
– se assemelham com o que o autor (entre outros) chama de introdução de tópico; além do
item Restrição ao primeiro segmento de a) em que o acréscimo de informação se apresenta
como uma especificação do primeiro, apontando semelhanças com a função de focalização,
descrita por Penhavel (2009) e inferidas por Camacho (1999).
Quanto à questão da ordem, de acordo com Neves (2000), as construções com o
coordenador E podem ser: a) simétricas, quando os dois elementos da adição podem permutar
de posição sem que resulte em alteração semântica, assim há margens para que o
locutor/sujeito opte, conforme contextos comunicativos, por qual segmento enunciar primeiro;
e b) assimétricas, quando os elementos da adição se sujeitam em uma ordem necessária como
para marcar uma sequência de eventos. Nesse caso, ficam evidentes as motivações icônicas
para essa relação de adição.
Camacho (1999; 2001) estuda as conjunções simétricas e assimétricas, definindo que
na coordenação simétrica, há uma independência entre os membros da conjunção, de modo
que são disjuntos tanto o que segue como o que precede em qualquer parte da sentença
completa. Por isso, não se adicionam significados um ao outro, mantendo sua integridade. Na
coordenação assimétrica (mudança de ordem – mudança de interpretação), “o conjunto é num
certo sentido maior que a soma das partes.” (op. cit 1999, p. 382). E ocorre, aparentemente,
devido às convenções icônicas da ordem de palavras na narrativa.
A mudança de ordem nas assimétricas pode até ser possível, mas em muitos casos
enseja estranhamento no sentido, quando não implica na ordem de acontecimentos dos fatos
como no exemplo que segue e na sua paráfrase: A polícia subiu o morro e os traficantes
começaram a atirar/ Os traficantes começaram a atirar e a polícia subiu o morro. Assim, a
mudança de ordem pode alterar a sequência real do fato, ferindo sua verossimilhança.
Desse modo, é condicionada a um contexto do contrário, perde parte do significado de
todo o enunciado. Possui elo de encadeamento e dependência entre os membros que precedem
com os que sucedem e são ligados pelas condições de verdade que os relacionam.
Ele ainda defende que a melhor interpretação teórica que decorre da análise das
conjunções aditivas é o da ambigüidade pragmática. Explica que uma palavra ou um sintagma
é ambíguo quando tem dois diferentes valores semânticos.
Na conjunção simétrica, as orações conectadas são afirmadas e nenhuma é
pressuposta, na assimétrica a primeira oração é pressuposta, possibilitando a interpretação da
segunda. A metodologia de estudo dos conectivos aditivos em Camacho (1999) é dividida a
61
partir de dois grupos de segmentos: a conjunção de termos (simples, intratermos e múltiplos
termos) e a conjunção de orações (simétricas e assimétricas).
A constituição de um contínuo para o conectivo E pode ser relativa ao propósito
comunicativo que é explicitado nas atividades de produção do discurso (escrito ou oral),
desempenhado pelos interlocutores por ocasião do processamento desse discurso.
Quanto à gradiência de um contínuo, Neves (2010) também observa que o E passa
gradualmente de uma adição neutra (Ele fuma e toma cafezinho) para uma adição enfática
(Garçons que passam com pratos. E pratos de massa suculentas).
Esse fato retoma o que Abreu (1997) colocava sobre a sugestão de se trabalharem os
fatos gramaticais numa perspectiva de contínuo, assim como Neves (1985) cita o termo
gradiência, referindo-se à mesma perspectiva. Isso é possível porque “as categorias
linguísticas e cognitivas não são compartimentos estanques” (ABREU, 1997, p. 20), porque
existem lacunas entre uma categoria linguística prototípica e uma com propriedades
discursivas com estruturas sintaticamente menos organizadas e lineares. O protótipo4 seria o
parâmetro para analisar o grau de semelhanças e distanciamentos e situar um contínuo de
análises.
Penhavel (2009) assegura que o E preserva em seus diversos usos um traço semântico
aditivo. E tal significado aditivo se associa a algum segmento textual, anterior ao segmento de
ocorrência que introduz o enunciado conectado, que é orientado pelos aspectos contextuais.
Esses significados assumem três graus aditivos numa escala progressiva, chegando ao limite
dos significados discursivizados, delineando, assim, uma relação de contínuo aditivo que
segue: adição, continuidade e ênfase. Em cada relação, distribuem-se funções, as quais serão
especificadas no item seguinte.
Baseando-nos no que já foi exposto, acrescentamos nessa escala, proposta por
Penhavel (2009), outro valor que seria a adição neutra, na qual adotamos os termos de Neves
(2000) para sintetizar as demais descrições que admitem o caráter de neutralidade desse item
linguístico, assumindo sentidos de contraste e de causa-consequência por implicações de
ordem icônica, que são relativas ao ordenamento temporal dos fatos. Desse modo, fica assim
constituído o contínuo aditivo: adição, adição neutra, continuidade e ênfase. Sendo que o
primeiro da escala não assumiria funções discursivas, seria o seu valor base ou prototípico; no
4 O termo protótipo é definido em Abreu (1997, p. 20): “elementos prototípicos são aqueles que estatística e probabilisticamente apresentam o maior número das mais importantes propriedades/peculiaridades características da categoria.”
62
segundo, o E assume a chamada função coringa, e as duas últimas assumem funções de cunho
discursivo.
3.1.1 As (multi)funções do E e suas relações discursivas
No funcionalismo linguístico norte-americano, por meio da iconicidade, defendem-se
as correlações entre funções e formas. E elas estão em sucessivo movimento de instabilidade
por causa da própria natureza da gramática, que deve ser nesse âmbito, suscetível a mudanças
e respaldada no plano do discurso por ocasião dos usos que lhe são dados cotidianamente nos
mais diversos contextos.
Tendo em vista isso, o estudo das funções da forma linguística E adquire uma
multiplicidade de relações, que constroem-se conforme o contexto de sua atuação no discurso
dos textos (falados ou escritos).
Em geral, na abordagem tradicional, a função do item linguístico E é de ligar ideias
semanticamente semelhantes ou cognitivamente paralelas. Contudo, muitas ressalvas vêm
sendo agregadas a essa ideia, enfatizando a importância desse item para a construção do texto
e para os eventos interativos.
Em Penhavel (2009), temos descritas algumas funções do conectivo E no discurso.
Seu trabalho está fundado na perspectiva de examinar a função dos diferentes usos do E na
construção do discurso. Para tanto, reúne essas funções em dois grupos mais amplos: quando
atuam na coordenação de termos (Coordenação entre posições de termos e no interior de
posições de termos) e de orações (Coordenação de orações sem equivalência funcional,
simétricas e assimétricas) é um coordenador e quando atua na articulação de unidades
discursivas (Focalização, Manutenção/assalto de turno conversacional, Introdução de tópico
discursivo, Distinção de unidades discursivas e Sequenciamento retroativo-propulsor), exerce
a função de marcador discursivo5.
Por interesse desse trabalho, apresentamos algumas definições dadas pelo autor em
foco as quais pertencem ao grupo dos marcadores discursivos, a saber no Quadro seguinte,
para melhor esclarecimento e compreensão com vistas a análises posteriores:
5 Uma definição geral: “Os marcadores discursivos são constituintes linguísticos com a função de delimitar unidades discursivas e estabelecer relações funcionais entre elas, conferindo coesão textual ao discurso, e/ou com a função de orientar o processo de interação verbal, conferindo coesão interacional ao discurso.” (PENHAVEL, 2009).
63
Quadro 1 – Funções discursivas – grupo dos Marcadores Discursivos
Fonte: Adaptado de Penhavel (2009)
Em Tavares (2007; 2010 – entre outros trabalhos) encontramos estudos sobre os
conectores sequenciadores (Sequenciamento retroativo-propulsor), dentre eles o E. São
analisados na perspectiva das relações textuais e podem seguir uma ordem discursiva ou uma
ordem temporal, atuando simultaneamente com efeito retroativo e na continuidade do texto.
Camacho (1999) aponta nos resultados de seu trabalho (análise do juntivo E) que a
grande maioria das cláusulas coordenadas analisadas apresenta casos de conjunção
assimétrica (76,0%), indicando a forte atuação da função textual da coordenação com esse
item.
Diante desse forte índice, ele elencou as várias possibilidades de atuação do E em
funções ou subfunções como:
a) A sequenciação que sugere a representação de diferentes fases do evento. Nesse
aspecto, a característica da organização do enunciado é a irreversibilidade da ordem
dos constituintes em eventos narrativos (também eventos não narrativos que
representam uma relação de anterioridade/posterioridade temporal). Os enunciados
subseguem um ao outro de acordo com a sequência temporal do evento. Ex.: cheguei
em casa, vi televisão e depois vim para cá pra pra conversar. (op. cit. p. 382)
Funções discursivas – grupo dos marcadores discursivos
Focalização
O segmento introduzido pelo E representa uma espécie de ruptura no
encadeamento linear do discurso, constituindo uma alteração no padrão
sintático, semântico ou pragmático do encadeamento discursivo. Atua
na função discursiva de informação dada e informação nova.
Introdução de
Tópico
Discursivo
Nesse caso não há explicitamente dois membros conectados por E, ou
seja, o segmento anterior não está necessariamente conectado e assume
a função discursiva de progressão textual.
Sequenciamento
Retroativo-
Propulsor
Tem a função de ligar a nível global em que o segmento introduzido
pelo E se configura como mais uma informação necessária para
construção da informação global. Neste caso liga o que o falante vai
dizer independente do que vai ser dito, constituindo um mecanismo de
coesão que pragmaticamente tem a função de continuidade tópica.
64
b) Introdutor de tópico ou subtópico discursivo conduzindo a continuidade e a progressão
do texto. Ex.: ele saiu de lá falando chinês,não é, fala chinês, fala diversas línguas e
tem um prato hindu que fazem na China (op. cit. p. 393)
c) Introdutor de constituinte focal via mecanismos sintáticos usuais, como clivagem,
interrogativa parcial. Exs: os filmes mostraram né?... as incursões do Japão
procurando se defender... e a melhor maneira que ele encontrava para se defender
era atacando. (op. cit. p. 393); Que tenha regido o cinema atualmente em
comparação ao cinema dos anos anteriores e no se/ e no que seria notada essa
diferença? (op. cit. p. 394).
d) Introdutor de comentário, similar a função anterior e muitas vezes pode representar
uma estratégia de modalização avaliativa. Ex.: porque:: esse país:: só pode crescer
globalmente...e seria muito importante para o Brasil que o nordeste crescesse (op.
cit. p. 394).
e) Introdutor de modalização epistêmica, mediante expressões como acho e eu tenho a
impressão. Ex.: eu tenho ido a :: ... televisão fazer uns programas ... ajudar um
pessoal que tem me pedido... e acho que a televisão é completamente diferente do
que a gente assiste (op. cit. p. 395).
f) Introdutor de um constituinte focalizado na oração coordenada mediante clivagem, só
que neste caso, o autor destaca que sua função é basicamente pragmática o que faz se
distanciar muito dos casos em que o E tem o valor básico de aditivo, assim, ele atua
mais como um operador discursivo, pois se apresenta com o mecanismo de retomada
do momento da enunciação. Ex.: ela funciona dando uma interpretação lógico-formal
da lei e é isso que vocês vão aprender (op. cit. p. 395).
Como se vê, tanto algumas gramáticas quanto estudos linguísticos mostram que a
função do E no discurso e nas frases não é tão limitada, podendo assumir funções puramente
sintáticas, funções semânticas e funções discursivo-textuais. Como bem diz Camacho (2003,
s/p) “A conjunção E assume, na linguagem natural, diferentes valores que vão desde a
interpretação funcional-veritativa de um típico operador lógico até uma interpretação textual-
interativa de um típico operador discursivo”. Segundo conclui ele, “a multiplicidade de
valores semânticos é parte constituinte da economia das línguas naturais humanas.”
(CAMACHO, 2001 p. 227).
65
Acrescenta ainda que deve-se analisar a contribuição desse juntivo6 para a semântica
da sentença no contexto de um estatuto polifuncional do enunciado, isto é, como um
veiculador de conteúdo, como uma entidade lógica e como o instrumento de um ato de fala.
(CAMACHO, 2001). Cita três possibilidades gerais em que podemos analisar as funções do
item linguístico E, sendo duas mais no nível do discurso (veiculador de conteúdo e
instrumento de um ato de fala) e outra mais no nível gramatical (entidade lógica). Essa
consideração vem culminar com trabalhos mais recentes (por exemplo, TAVARES, 2007;
PENHAVEL, 2009) desenvolvidos pela linha teórica do Funcionalismo linguístico e suas
ramificações afins.
A multifuncionalidade é uma proposta para observarmos os indícios de mudanças dos
itens linguísticos que, no processar dos usos, pode proporcionar uma ampliação de
características discursivas, o que conduz ao entendimento do discurso como parte da
gramática da língua. Esse caráter multifuncional tem se tornado um desafio para as pesquisas
linguísticas, pois há de se considerar uma especificação rigorosa sobre os fenômenos da
língua que analisam a distribuição contextual de constituintes multifuncionais para implicar
uma análise completa de suas propriedades semânticas, pragmáticas e sintáticas.
Feitas essas considerações, este trabalho pretende abordar funções do E que podem
revelar, no nível do texto, um contínuo discursivo com valor básico de adição, porém,
reconhecendo que, nesse nível, as funções se ampliam, sendo, muitas vezes, impossível
reconhecer, de forma categórica, quais são essas funções, pois distanciam-se do seu valor
aditivo base. Essas funções serão explicadas partindo dos estudos citados anteriormente,
alinhando-se à teoria funcionalista da linguagem (versão norte-americana) por meio da visão
multifuncional por ela empreendida.
Para tanto, elegemos algumas funções que foram agrupadas em categorias mais
abrangentes, como item gramatical, que agrupa as funções estudadas pelas gramáticas e
portanto gramaticais, e item linguístico, que engloba as funções que são estudadas no nível
texto/discurso. Para uma melhor visualização, organizamos, no quadro seguinte o contínuo
dessas funções.
6 Termo utilizado por Camacho (1999, 2001 e 2003), provável mente, para abranger todas as funções do E elencadas por ele.
66
Quadro 2 - Contínuo aditivo do E e suas funções correspondentes
Coordenação de termos e de orações
(coordenador)
Articulação de unidades discursivas
(marcador discursivo)
ADIÇÃO ADIÇÃO NEUTRA CONTINUAÇÃO ÊNFASE
Ligam enunciados,
seja no nível de
segmentos de termos
ou orações com
equivalência
sintática e semântica.
Relacionam enunciados, seja
no nível de segmentos termos,
orações ou períodos com
ordenação temporal, ou não,
podendo apresentar valor de
contraste e de causa-
consequência.
Relaciona porções
textuais de segmentos
variáveis.
Relaciona porções
textuais de
segmentos variá-
veis, .
.
FUNÇÕES CORRESPONDENTES
Coordenação simé-
trica, acontece a
coordenação propria-
mente dita.
Coordenação assimétrica, há a
flutuação de valores
semânticos: oposição e causa-
consequência, por exemplo.
Sequenciamento re-
troativo-propulsor,
introdução de tópico
discursivo.
Focalização
Fonte: Baseado nos achados de Penhavel (2005; 2009); Camacho (1999;2001); Neves (2000)
Apesar de apresentarmos esse contínuo, não vamos nos deter por completo, pois a
intenção é analisar apenas as funções ditas dicursivo-textuais que atuam principalmente na
articulação (sequenciamento, progressão e coesão) dos textos, incluídas no grupo dos
marcadores discursivos.
Quanto ao termo marcador discursivo, a literatura aponta que, por um lado, se
encontra envolvido numa série de abordagens, por outro, se delega a ele todo item que foge de
atuação padrão.
3.1.2 Breve sistematização das funções discursivas do E
Para uma demonstração de maior esclarecimento apresentamos aqui uma sucinta
discussão, de natureza predominantemente teórico-metodológica, referente ao quadro de
definições das devidas funções (Focalização, Introdução de tópico discursivo e
Sequenciamento retroativo-propulsor) elencadas para análise posterior.
67
Nesse sentido, trazemos o pensamento de Gonçalves (1998, p. 32) a respeito da função
de focalizador, que esclarece, com muita nitidez, a respeito quando diz: “entendo por
focalização o ato de focalizar, ou seja, de acentuar, de ressaltar, de por em
relevo/realce/evidência um determinado item do texto.” Compreendendo-o como um
fenômeno de caráter discursivo-pragmático, já que o usuário da língua, para fazer jus a um
propósito comunicativo, pode evidenciar uma porção do enunciado que considere relevante
para tal intento. Esse entendimento parte do princípio de que a Focalização, por sua própria
natureza, tem a função de “realçar elementos do enunciado”
Por essa razão, o autor nos chama a atenção para o fato de que o revelo dado ao
discurso nesse caso não é porque é uma parte central dele, mas é o componente discursivo que
constitui uma intensificação e “também porque são vistas através de certas perspectivas que
afetam tanto o que o falante diz quanto o que o ouvinte interpreta” (GONÇALVES, 1998 p.
33).
Funciona como uma espécie de “chamar atenção” do interlocutor para a parte em
relevo. De certa forma, a manifestação da focalização acaba por se tornar central, já que é a
porção textual que ajuda ao interlocutor a produzir a significação possivelmente pretendida
pelo locutor.
Ainda destaca dois tipos de focalização, uma chamada de Focalização textual, em que
se faz uso de recursos linguísticos presentes na materialidade do texto; outra chamada de
Focalização prosódica, cujos recursos que expressam a ênfase não se encontram expressos na
linearidade discursiva, pois recorre a recursos como saliência prosódica, entre outros. As
análises empreendidas neste trabalho se enquadram no primeiro caso.
Julgamos caber também uma apresentação sucinta sobre Tópico Discursivo, por isso,
apresentamo-la no pensamento de Marcuschi (2006) e Givón (1992).
Em Marcuschi (2006) o tópico discursivo (TD) é designado como uma macro-
estrutura semântica ou o tema discursivo, que em suma se refere àquilo sobre o que se está
falando num discurso, ou seja, aos assuntos tratados ao longo de um texto. O TD é levado
adiante em porções maiores e se desenvolve nos processos enunciativos e “pode ser
introduzido, desenvolvido, retirado, reintroduzido, reciclado ou abortado.” (p. 9). No caso,
deste trabalho vamos tratá-lo apenas dos casos de sua introdução no texto/gênero.
A noção de tópico discursivo adotada pelo autor pronuncia a respeito da produção
enunciativa dos objetos de discurso em relação aos modos de enunciação sociocognitivamente
situados. Essa proposta sugere que, ao fazermos uso da língua para produzirmos nossas
68
vivências discursivas, não estamos apenas alterando os elementos do mundo em elementos do
discurso, mas estamos produzindo o nosso discurso.
Givón (1992) também define o tópico como algo “a respeito do que se fala” ou “que é
relevante”, contudo, alerta para o fato de sua permanência na continuidade do texto, já que no
nível da sentença ele não exerce relação de sentido. Dito de outra forma, o tópico não ganha
essa função por causa da sua codificação sintática como tópico da oração, mas porque essa
função tem a ver com a trama textual em que há uma recorrência de seus referentes no
discurso.
Esse autor estuda o tópico numa perspectiva pragmático-discursiva em que a
topicalidade é motivada pela cognição, uma vez que, as marcas gramaticais usadas pelo
emissor para codificar a topicalidade no discurso requisitam operações peculiares na mente do
interlocutor. Essas marcas gramaticais presentes no discurso para codificar o tópico concebem
um esforço do emissor para fundamentar a informação do ponto de vista do receptor.
Resumidamente diz respeito ao conteúdo do tópico, “aquilo de que se fala” e “como se
fala”.
Nos estudos mais recentes, aqui no Brasil, especialmente do grupo do Projeto de
Gramática do Português Falado (PGPF), o tópico também é visto dessa forma, mas é mais
explicitamente ligado as perspectivas textuais e mais abrangente. Definem como um processo
constitutivo do texto que colabora na definição das especificidades de estratégias de
construção textual. Por consequência, acreditam que essa noção deve ser formulada de modo
suficientemente abrangente para dar conta de diferentes gêneros de textos, seja de modalidade
falada ou escrita.
Nesse sentido, o tópico é tratado como uma categoria discursiva, porque relaciona-se
ao plano global de organização do texto. Mas é visto também como uma categoria
interacional, porque reúne práticas interacionais conforme as situações enunciadas pelos
locutores.
Vamos também expor resumidamente algumas considerações sobre o Sequenciamento
retroativo-propulsor usando o posicionamento de Tavares (2007; 2010).
Em Tavares (2007) encontramos um estudo sobre os conectores E, AÍ e ENTÃO em
que são analisados na função de sequenciadores (Sequenciamento Retroativo-Propulsor).
Tendo em vista o princípio de marcação a autora constitui sua análise partindo de cinco
categorias: modalidade, tipos de discurso, relações semântico-pragmáticas, nível de
articulação e traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelos conectores.
69
Quanto ao sequenciador E, verifica que, por ele ser menos marcado nos tipos de discursos
analisados por ela, tende a ter menor complexidade no processamento linguístico com uso
predominante na fala; nas relações semântico-pragmáticas o E está presente nos três
segmentos que são sequenciação textual, sequenciação temporal e causa-consequência, sendo
mais frequente no primeiro; no nível de articulação seu uso se dá mais na interligação de
segmentos oracionais e introduzindo orações com verbos menos ativos (momentâneo,
atividade especifica e dicendi – grau 1 – e verbos de existência e de estado – grau 0)7.
Em Tavares (2010) também trata desses conectivos (E, AÍ e ENTÃO) na função de
sequenciadores (Sequenciamento Retroativo-Propulsor) cuja análise se pauta também pelo
princípio da marcação. De acordo com ela “Quando um falante ou escritor estabelece uma
relação coesiva entre enunciados sequenciados segundo uma ordenação temporal ou
discursiva, está em jogo a sequenciação retroativo-propulsora [...]” (Tavares, 2010 p. 195).
Essa relação aponta a introdução de um enunciado no discurso que, ao mesmo tempo,
favorece a continuidade e consonância com a orientação discursiva já dada. É codificada por
conectores tais como E, AÍ, DAÍ, ENTÃO, DEPOIS e PORTANTO, atuando na organização
de partes do discurso de dimensões variáveis.
A autora elege duas categorias para as análises que são as relações semântico-
pragmáticas e os níveis de articulação dos segmentos, entre as duas interessa-nos a primeira.
Quanto à análise das relações semântico-pragmáticas a autora trata de cinco relações
(sequenciação textual, sequenciação temporal, introdução de efeito, retomada e finalização)
que aqui chamaremos de subfunções do Sequenciamento retroativo-propulsor. Só que em
Tavares (2007) essas cinco são sintetizadas em três, como definiremos a seguir:
Sequenciação textual – as unidades conectadas se relacionam para atender uma ordem
discursiva que aponta a progressão dos enunciados ao longo do tempo discursivo, atuando
como mecanismo de coesão.
Sequenciação temporal – os eventos discursivos levam em consideração a ordem em
que os eventos ocorrem no tempo, compreendendo por pressuposição que um evento ocorre
em sucessão a outro.
Causa-consequência – responsável por inserir informação constituindo a ideia de
consequência que tenha pertinência com uma causa aludida previamente.
Nesse sentido, tentamos mostrar uma visão panorâmica sobre os estudos em torno da
multifuncionalidade do E. A partir dessas considerações tecidas acima, nortearemos nossa
7 Esses graus são elencados de acordo com a escala de Tavares (2007) baseada na classificação de Schlesinger (1995).
70
investigação, elegendo um recorte para efetivar nosso propósito investigativo no gênero tira
em quadrinhos.
3.2 A articulação discursiva com E
O item linguístico em estudo tem se mostrado, nas pesquisas apresentadas, exercendo
múltiplas funções na articulação textual. É reconhecido como um dos conectivos mais
recorrentes e por isso é considerado prototípico em relação a outros itens da mesma categoria
gramatical.
Koch (1995) trata a questão das articulações desenvolvidas no texto, expondo o
assunto sob vários pontos de vista, mas relata, sobretudo, que a partir dos trabalhos já
desenvolvidos anteriormente, encontram-se dois tipos básicos de relações: lógico-semântico e
as relações discursivo-argumentativas, acrescentando-se a essas as do tipo relações
textualizadoras ou textuais em sentido restrito. Essa última atua na organização da sequência
textual:
Podem, por exemplo, relacionar a conclusão com todo o restante do texto,
[...]; ou relacionar a introdução com o corpo do texto [...]. Pode acarretar a
suspensão provisória do tópico em andamento [...] ou retomada de um tópico interrompido [...] e assim por diante.
Podem, ainda, delimitar episódios ou sequências narrativas [...] ou diferentes
perspectivas da descrição [...]; podem separar as partes de uma exposição, bem como argumentos ou grupos de argumentos em textos destinados à
persuasão. (KOCH 1995, p. 17).
Cabe ressaltar que essa visão extrapola as análises com porções textuais
descontextualizadas (frase, oração e período), possibilitando a visualização da língua em
funcionamento, uma vez que tem a ver com a organização da sequência textual. Nessa
abordagem as significações não se limitam às relações sintáticas e/ou semânticas
estabelecidas pelos itens de ligação, mas estes estão engajados nas relações e encadeamentos
que articulam não somente porções textuais isoladas, mas articulam os sentidos imbuídos no
composto textual.
Também fica evidente uma intrínseca semelhança entre o que Koch (1995) relata e as
funções descritas por Camacho (1999) e Penhavel (2009) na seção anterior, pois aquelas se
apoiam na articulação dos enunciados para operar conforme as ocorrências discursivas,
direcionadas por um propósito comunicativo, culminando numa articulação textual centrada
71
na progressão textual, na continuidade ou na retomada e na ênfase dada ao discurso, ou numa
porção dele.
Os autores, até então já citados, analisam que o uso de conjunções coordenativas está
muito propenso à expansão de seu conteúdo semântico-discursivo e, com o caráter de
funcionamento da língua, a realizar e assumir funções no nível da articulação textual.
Neves (2010) enfatiza a necessidade de pautar a coordenação no plano da organização
textual e observa que “os marcadores de coordenação” (e, mas, ou) são muito frequentes em
início de enunciados (seja frases, parágrafos, capítulos, ou até início de uma obra), “portanto,
tais elementos extrapolam a organização puramente sintática e constituem articuladores de
altíssimo valor semântico-discursivo.” (NEVES, 2010. p. 243).
Quanto ao item linguístico E, Neves (2010, p. 252) reconhece a importância de
trabalhá-lo no nível do texto, esse entendido como unidade de significação, trata de seu papel
no âmbito dessa unidade discursiva e diz que “faz o texto avançar buscando acréscimos, tem
um papel particular na caracterização da arquitetura do texto.” Ela toma o E “arquitetural” da
referência de Antoine (1962), citado por ela mesma, que, já nessa época, se refere a um valor
de articulação e composição textual-discursiva no início de frase e que serve para:
a) abrir um desenvolvimento (ataque);
b) fechar um desenvolvimento (encerramento);
c) marcar a transição de um desenvolvimento a outro (transição não-lógica).
Os enunciados que iniciam com E são caracteristicamente marcadas por “transição”,
pois retomam o andamento da narrativa. Contudo, nem sempre é de fácil distinção porque, ao
abrir um novo desenvolvimento (característica de ataque) ou introduzir temas, levando o texto
para frente, pode simultaneamente deixar para trás um bloco que se encerra (característica de
encerramento). Esse modo de configuração do E talvez seja o mesmo da função
sequenciamento retroativo-propulsor, amplamente estudada por Tavares (2007; 2010).
Também, de modo geral, se assemelha com a Introdução de tópico discursivo pelo fato de
introduzir os constituintes temáticos no texto.
Então, Neves (2010) ainda destaca a relevância do estudo de Antoine (1962), pois,
segundo ela, os estudos do E inicial como indicador de progressão textual tem base nas
análises da articulação textual. Contudo demonstra a dificuldade de distinguir os tipos de
enunciados, que representam as características acima (ataque, encerramento e transição não-
lógica), alegando que, quando se encontram vestígios dos usos, a fluidez assinala para a não
categorização rígida dos enunciados.
72
Acrescenta que, no encerramento de parágrafos, o E se configura como um
“arremate”. Já na abertura e fechamento de blocos informativos, temáticos ou argumentativos,
o E se empenha mais na progressão do texto.
Os articuladores textuais, que em linhas gerais, são recursos linguísticos que dão
encadeamento aos segmentos textuais, entre eles, estão os operadores, os modalizadores e os
intensificadores argumentativos.
Os operadores argumentativos são recursos presentes na estrutura do texto capazes de
indicar a argumentatividade dos enunciados, introduzindo variados tipos de argumentos.
Os modificadores poder ser considerados como elementos linguísticos que atenuam
intenções, sentimentos e atitudes do locutor em relação ao seu discurso.
Os intensificadores são recursos semânticos utilizados para ressaltar os significados
dos enunciados numa situação comunicativa.
Outro ponto que também está incluído nos estudos sobre os articuladores são os
Marcadores Discursivos (MDs). Num trabalho mais recente que estuda os MDs de forma
aprofundada, Penhavel (2010) demonstra várias abordagens desses elementos e uma das
posições é pautada na Perspectiva Textual-Interativa (linha teórica defendida principalmente
por Jubran e Koch). Sob esse aparato define que os:
MDs, por sua vez, são vistos como expressões que contribuem para o processamento textual-interativo do discurso, isto é, expressões que
articulam segmentos textuais de natureza tópica e/ou que codificam
orientações dos interlocutores em relação ao processo de interação verbal.
(PENHAVEL, 2010 p. 28).
Esse autor reconhece os MDs como uma classe de elementos que deve ter como
instrumento de análise a gradiência. Para tanto, caracteriza-os mediante a combinação de nove
traços, estando no topo a articulação discursiva.
Assim, amparado em Schourup (1999), o autor ainda afirma que a conectividade
constitui uma das características de maior destaque nas discussões sobre MDs, sendo
concebida de diferentes formas.
Guerra (2007), ao tratar das funções textuais dos MDs, menciona-as segundo Risso et
al. (2006), postulando que a articulação de segmentos do discurso abrange três modos:
sequenciador tópico, sequenciador frasal e não-sequenciador. Ou seja, o nível de articulação é
desempenhado pelo grau da sequenciação.
73
Em Valle (2000), temos o posicionamento de Traugott, afirmando que MDs são
elementos que atuam no nível da coerência discursiva. Essa definição é adotada em meio à
diversidade de elementos incluídos na classificação dos MDs. Há uma dificuldade decorrente
do amplo campo de alcance do que seja coerência discursiva. Segundo a autora,
temos pelo menos dois campos bem distintos sob este termo: o campo das relações textuais e o campo das relações entre o discurso e os indivíduos.
Assim, cremos ser necessário ao menos separar os marcadores que atuam no
nível textual, exercendo funções de conexão, sequenciação, retomada, resumo, etc, daqueles que atuam no nível extra-textual, exercendo funções
no processamento cognitivo, na interação entre interlocutores, na verificação
do canal comunicativo, etc. (VALLE, 2000 p. 108).
No nosso caso, assumimos neste trabalho a posição que inclui os conectores como
MDs atuantes nas relações textuais, os quais exercem as funções elencadas na seção anterior.
Como visto nesta breve apresentação, os MDs estão incluídos num terreno muito
vasto. Em virtude disso, foi preciso delimitar o percurso para não se envolver com funções
extras ao campo e limite deste trabalho, pois a intenção de discorrer brevemente sobre os
MDs se dá pelo fato de algumas funções do item linguístico E assumir características de MDs
na perspectiva das relações textuais.
Ao considerar que um determinado item linguístico pode exercer muitas funções,
dependendo do contexto em que está inserido, isso ocasiona na língua uma variação e
consequente mudança semântica. Muitos elementos linguísticos, dentre eles o E, usado na
articulação tanto sintática como discursivo-textual, desempenham essa multifuncionalidade no
discurso, sendo considerados como polissêmicos, justamente porque, ao serem analisados, os
comportamentos dos enunciados em que estão contidos nos diferentes estágios, permitem
serem colocados em diferentes ponto de uma escala.
Nessa posição, temos sempre novas funções para formas já existentes, que podem ser
processadas no discurso e, em decorrência dessa natureza, fornece passagem para a
constituição de padrões fluidos na linguagem.
4 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA
Nesse capítulo encontra-se o detalhamento dos procedimentos metodológicos
encaminhados para o desenvolvimento geral deste trabalho. Desse modo, começamos
apresentando as principais características da pesquisa, em seguida, ciente dos objetivos que
alçaram nossa investigação, relatamos ainda sobre o corpus, os procedimentos e coleta de
dados, procurando descrever tanto o percurso da pesquisa como os meios que viabilizaram
sua efetivação, além de descrever sucintamente sobre a condução das análises.
4.1 Características da pesquisa
Do ponto de vista da abordagem do problema, esta é uma pesquisa
predominantemente qualitativa, tendo em vista a descrição e interpretação dos fenômenos
linguísticos pretendidos para análise dos dados. No entanto, a quantificação foi necessária
quando no levantamento do corpus e no levantamento das ocorrências conforme os itens
previstos para análise. Postura que enseja a atribuição de significados a partir dos influxos do
sujeito pesquisador. Para isso, buscamos fundamentação em fontes teórico-metodológicas, na
observação do objeto e no comportamento linguístico que ele assume, para então, fundar o
processo de análises e constatações.
As descrições gerais visam abordar sobre os aspectos relacionados aos fenômenos
linguísticos de cunho funcionalista, cuja âncora base é a língua em uso, através da
multifuncionalidade do item linguístico E presente no gênero tira em quadrinhos.
Quanto ao método, adotamos o indutivo como predominante. Ele possibilita que as
deduções, constatações e conclusões sejam pautadas em observações específicas da realidade
concreta e circunstancial do objeto de estudo. No caso, como se tem um objeto maleável e não
palpável (fatos da língua) sua abordagem teórica (funcionalista) requisita o modo de
inferências específicas. Em outras palavras, parte-se de situações particulares que conduzem
para elaboração de generalizações.
4.2 Corpus e procedimentos de coleta dos dados
O corpus desta pesquisa é constituído de 174 tiras em quadrinhos, todas de autoria do
quadrinista Laerte e com ocorrências do item linguístico E que totalizam em 203 dados
75
encontrados nesse corpus. Foram extraídos de um universo de 644 tiras em quadrinhos
captados via on-line.
A princípio, durante o período de coleta, esse universo de tiras em quadrinhos pareceu
muito abrangente. No site fonte de coleta8, encontra-se uma galeria com nove tipos de
personagens ou agrupamentos com um dado título. No caso destes últimos não tem
personagens específicos, como no bloco das tiras intitulado “Dia-a-dia”, em que os
personagens são geralmente anônimos. Cada bloco de tiras conta com uma média de 90
unidades. Quanto às referências dessas tiras em quadrinhos, há indicações na bibliografia do
autor, que se encontra nesse mesmo site, de que foram publicadas no jornal Folha de São
Paulo.
A partir do reconhecimento dessa expansão de dados disponíveis, pensamos em como
delimitá-los e fazer uma seleção, cuja intenção era ter uma quantidade determinada de tiras
em quadrinhos, de um mesmo autor, para representar os dados desta pesquisa. O passo
seguinte foi escolher por quais personagens optar.
Resultou na escolha de cinco blocos de tiras e para melhor entendimento do contexto
destas, segue então uma sucinta descrição sobre as características gerais dos personagens:
Piratas do Tietê conta as aventuras de um grupo de piratas saqueadores, sendo o
personagem principal o capitão da tripulação; os demais são personagens secundários.
Eles trazem uma mistura de fantasia com realidade urbana, fazendo referência ao rio
que atravessa a cidade de São Paulo. A primeira aparição dessas tiras foi em 1983,
numa revista chamada “Chiclete com Banana”. Em 1990, ganham uma publicação
própria com o mesmo título e, no ano seguinte, passam a ser produzidos para o Jornal
Folha de São Paulo. Esse bloco é composto de 82 tiras on-line.
Hugo Baracchini tem um carro, um computador e uma namorada chamada Beth,
estudante de psicologia. Traz uma visão cômica, com conflitos e situações cotidianas,
do homem dos tempos modernos. Nele, o autor criou uma eterna vítima dos problemas
contemporâneos, tais como: operar seu computador, fugir da vida sem privacidade,
lidar com as questões de sexualidade. Ainda faz algumas referências indiretas ao
sistema político e vive as consequências dos problemas ambientais. Esse bloco é
composto de 112 tiras on-line.
Gato e Gata, que nem sempre, passam por situações referentes aos gatos. É
semelhante às fábulas. Tratam de situações divertidas de um típico relacionamento
8 http://www2.uol.com.br/laerte/personagens/
76
moderno. O Gato é idealista, criativo, gosta de música (Beethoven), inseguro, tem
dificuldades em marcar seu território, mantém a guarda de um filho (Messias) com
uma ex-namorada e, de vez em quando, têm recaídas, encontrando-se secretamente
com ela. A Gata é uma fêmea decidida, independente, também curte música (Luiz
Melodia) acredita em Batman, sonha com números e gosta muito de sexo. O bloco é
composto de 94 tiras.
Dia-a-dia, bloco de tiras composto por personagens anônimos que representam
situações cotidianas hilárias, mas frequentes na vida das pessoas e nos seus ambientes
de relacionamentos (família, trabalho, amigos, instituições, ambientes de lazer), cujo
intuito é ironizar tais situações. Este bloco era publicado somente aos domingos na
Folha de São Paulo é composto de 130 tiras on-line.
Overman, um herói que costuma ser muito presente e atuante nos problemas. Mas o
maior problema que o herói enfrenta é consigo mesmo por não conhecer a própria
identidade. Dar continuidade à eterna luta do bem contra o mal (com as devidas pausas
na sexta-feira...) e seu visual tem semelhança com heróis americanos. Este bloco é
composto de 226 tiras on-line.
A seleção das tiras em quadrinhos para montar o corpus de investigação levou em
consideração a linguagem verbal predominante (descartando as tiras produzidas só a partir de
imagens), a presença do item linguístico E e secundariamente as temáticas presentes nestas. O
período de divulgação e produção dessas tiras não foi requisito no processo de seleção do
corpus, porque não encontramos referências precisas de tempo, de modo que não é motivo de
interferência nas análises, tendo em vista que se configuram como textos do português
contemporâneo e recente. Pela biografia do autor, sabe-se apenas que estes personagens
começaram a ser divulgados e/ou produzidos a partir da década de 1990 e estes que estão on-
line foram todos publicados no Jornal Folha de São Paulo.
A preferência por tiras de autoria de Laerte é, primeiro, porque a ideia era optar por
um autor brasileiro, acreditando assim, que podemos observar os mecanismos, do uso da
língua materna, para a produção de sentidos diversos. A hipótese é que textos da língua
materna apresentam maior legitimidade aos eventos in lócus, em relação aos textos de origem
estrangeira, tendo em vista que a língua reflete os aspectos sócio-culturais próprios de sua
origem geográfica. Por isso, se a opção fosse por tiras de autores estrangeiros, talvez não
retratassem construções próprias do uso da língua materna, perdendo talvez a fidedignidade
dos sentidos contextuais.
77
Segundo, porque esse autor tem uma larga produção disponível via on-line, facilitando
o acesso e, também a observação das regularidades no gênero. Terceiro, porque são tiras que
tratam de assuntos variados, desde super-herói, cotidiano, política e até temas voltados para
adolescência (sexualidade, relacionamentos), além das tiras desse autor serem muito
utilizadas nos materiais didáticos.
A par desse levantamento das tiras em quadrinhos, nos encaminhamos para o
levantamento dos dados que consistiu em identificar todas as ocorrências do item linguístico
E no corpus, selecionando e classificando as ocorrências conforme as funções elencadas para
análise.
Os critérios para a distinção entre uma função e outra se estabeleceram nas definições
já dadas na literatura. Mesmo assim, alguns casos que apresentaram dubiedades, fato que
decorre da fluidez da língua, a princípio, dificultando a organização dos dados, contudo,
pudemos perceber sobre o risco de enquadrar-se em definições rígidas, pensamento que não é
defendido pelo funcionalismo linguístico, visto que o uso prevalece sobre a forma. Depois,
agrupamos as funções em dois itens: coordenador/conectivo e marcador discursivo,
relacionadas com o grau de adição que exercem, conforme pode ser visto no Quadro 2.
Mediante isso, selecionamos apenas três funções para fundar as análises, que foram
Sequenciamento retroativo-propulsor, Introdução de tópico discursivo e Focalização.
A amostragem para análise está representada por 29 tiras e ilustram que seus processos
linguísticos se apropriam de recursos discursivos e cognitivos fundados na base funcionalista
da linguagem, cujo objeto de análise se foca na atuação do item linguístico E. A intenção é de
identificar também a sua relevância para a produção de significado do gênero e do
processamento linguístico expressos na codificação dos enunciados, os quais podem ser
abordados pela gramática (do uso).
4.3 Procedimentos para as formulações teóricas e para a análise dos dados
Utilizamos como amostra dados de textos do gênero tira em quadrinhos, produzidos em
situação que atende as expectativas de um jornal de grande circulação nacional, cujo público é
de classe média alta, talvez por isso, mesmo num gênero em que permite uma diversidade de
recursos com o uso coloquial da língua, o autor muitas vezes prefere os recursos padrões da
língua.
A análise da multifuncionalidade do E nas tiras em quadrinhos de Laerte é versada pela
ótica funcionalista, em que o texto é compreendido como signo relativo que representa atos,
78
elementos e relações culturais muito diversas, e é objeto de estudo das aulas de língua
portuguesa. Assim, o gênero discursivo é percebido como uma construção que concretiza o
uso da língua, visão mediada por uma concepção em que os gêneros mostram a
funcionalidade das evidências sociais.
Já a concepção de língua como processo resultante da interação verbal, fato esse que
transcende para outras concepções inerentes aos estudos da linguagem, endossa a perspectiva
teórica adotada. Como consequência, a língua passa ser contemplada como um fenômeno
motivado pelas situações de uso dos falantes, tendo o propósito comunicativo (função) como
pano de fundo desse evento, maleável e adaptável, ultrapassando assim, as análises
estruturalistas que primam apenas pela forma.
As tiras em quadrinhos compreendidas como texto, que veicula práticas sócio-
culturais, encontram respaldo nos usos dos falantes, assim como ilustrado por Possenti (2010)
quando defende as piadas como um dos veículos que trazem percepções emblemáticas dos
problemas sociais por um lado e, por outro como fonte de dados para quem quer saber o que é
e como funciona uma língua. Acreditamos que as tiras também reportam esse mesmo senso de
acesso ao funcionamento da língua, evidente que anexado a outros recursos, mas como berço
de manifestação das recorrências do uso de modo natural de processamento desta.
Adotamos o eixo da multifuncionalidade do paradigma funcionalista da linguagem,
com foco na atuação discursiva do item linguístico E. É observado e investigado no gênero
tira em quadrinhos e fundamentado na proposta de autores que defende o funcionalismo
norte-americano, tais como Furtado da Cunha e Tavares (2007); Furtado da Cunha, Costa e
Cezario, (2003); Martelotta (2009); Neves (1997), Votre (1997), que se baseiam nas propostas
de autores como Givón (2001), Hopper e Traugott (1993), entre outros.
Para fins das análises, pautamo-nos nessa conjuntura descrita acima. E a partir da
observação dos dados selecionados, distribuímos o item E em três funções discursivas:
Sequenciamento retroativo-propulsor, Introdução de tópico discursivo e Focalização. Para tal
procedimento nos fundamentamos nos achados da literatura referente, uma vez que, os termos
utilizados para denominação das funções são os mesmos dos autores utilizados na revisão da
literatura.
Neste ínterim, quanto à questão da multifuncionalidade do E buscamos revisar a
literatura, a fim de observar como é dado o tratamento com esse elemento nas investigações
teóricas para, então, montar o nosso parâmetro de análises. Assim, para termos uma noção
dessa caracterização vamos ilustrar alguns casos a seguir.
79
Em Camacho (1999), por exemplo, vimos que ele classifica algumas funções,
defendendo que o E é um coordenador de termos, de orações e que os princípios deste se
aplicam a coordenação de orações no nível textual. Pode ser:
a) Coordenação simples:
» “João e Maria viram um fantasma”.
»* “João viu um fantasma e Maria viu um fantasma.”
» “nós encontramos nódulos... nódulos estes que aparecem e desaparecem.”
»* “Nós encontramos nódulos que aparecem e nós encontramos nódulos que
desaparecem.”
» “O indivíduo tem que ter conhecimento, compreensão, análise e síntese.”
b) Coordenação intratermos:
» “João e Pedro compraram um guia e três postais”
»* “João comprou um guia e João comprou três postais e Pedro comprou um guia e
Pedro comprou três postais.”
c) Coordenação múltipla de termos:
» “esta região está limitada para adiante... pelo externo... para trás... pela coluna
dorsal... e para o lado pela mediastínica direita e esquerda.”
Quanto ao nível da oração a classificação se dá em simétrica e assimétrica sendo esta
última mais presente na sua pesquisa.
a) simétrica:
» “Maria está fazendo a salada e Pedro está lavando os talheres”.
»* “Pedro está lavando os talheres e Maria está fazendo a salada.”
b) assimétrica: não admite a paráfrase (*) por representar sucessão temporal ou uma
convenção icônica.
» “cheguei em casa,vi televisão e depois vim para cá pra pra conversar.
Além desse caso típico das assimétricas, apresenta uma variedade de possibilidades de
coordenação com o juntivo9 E, dentre as quais foram citadas algumas no item 3.2 deste
trabalho.
Penhavel (2009) sistematiza e explica um quadro com dez funções subdivididas em
três grupos: O E como coordenador de termos, como coordenador de orações e como
marcador discursivo, como podemos visualizar no Quadro 3, a seguir.
9 Termo do autor
80
Quadro 3 – Funções do conectivo E no discurso
Fonte: Penhavel (2009)
Citaremos exemplos do grupo dos marcadores discursivos, presentes no quadro 3, pois
as demais funções já foram exemplificadas em Camacho (1999):
a) Sequenciamento retroativo-propulsor:
a Letícia ficô tentandu incaxá a tor::NEra ... ((risos)) na paredi ... i ela ficô lá um
temPÃO ... i nós rindu (dan) morrendu di dá risada ... i ispirrandu água pra tudu
ladu i a tor::nera na mão da Letícia ... i:: aquele mundu di água tudu na ropa da
Letícia ...[...]
b) Assalto de turno conversacional:
L1 quer dizer somos de família GRANdes e::... então ach/ acho que::... dado esse
fator nos acostumamos a:: muita gente
L2 ahn ahn
L1 e:: L2 e daí o entusiasmo para Nove filhos ... (NURC-D2-SP-360:2).
c) Introdução de tópico discursivo:
A: Oi, como vai?
B: Tudo jóia, você está bem?
A: Tudo ótimo. (pausa) E a faculdade, você se forma este ano? [...]
d) Focalização:
L1 eu, poderia me alimentar só de carne
L2 só carne?
L1 só carne, impressionante, e mal passada (NURC-D2-PA-291:1).
81
Já em Tavares (2010) que trabalha especificamente com a Sequequeciação retroativo-
propulsora de informações e no referido trabalho ela trata do E, AÍ e ENTÃO como
codificadores dessa função que é analisada a partir de várias perspectivas, dentre elas, as
relações semântico-pragmáticas, podendo exercer cinco relações, das quais citaremos
exemplos de três:
a) Sequenciação textual:
Ex: todo mundo lá da casa chamando a gente pra tomar banho em outro lugar ... melhor ... a
gente não foi ... a gente ficou lá ... depois ele foi tomar banho também E a gente tava com a
irmã dele ... que a gente conheceu a irmã dele ... as primas deles ... depois a gente ficou
conversando mas ele não chegou perto ... ele ainda não conhecia a gente (Corpus Discurso &
Gramática – Natal, apud TAVARES, 2010)
b) Sequenciação temporal:
Ex: (2) antes eu tenho que quebrar ... pra coisar né? AÍ eu ... boto ... fica lá ... AÍ eu dou uma
mexidinha ... (Corpus Discurso & Gramática – Natal, apud TAVARES, 2010))
c) Causa-consequência:
Ex.: agora ... tem o outro lado que a gente vê assim nas pessoas não crentes ... eu acho que ...
nas pessoas ... eu creio que elas ... que elas têm um certo medo ... na verdade ... de reconhecer
o que elas são ... sabe ... eu acho que as pessoas lá fora ... elas têm medo de ... de repente dizer
que estão erradas ... né ... ENTÃO elas preferem não crer ... preferem não acreditar ... enganar
os outros dizendo que não acreditam ... porque na verdade ... acho que num tem ... essa
história de uma pessoa ... assim ... completamente ateu ... às vezes eu tenho as minhas dúvidas
... (Corpus Discurso & Gramática – Natal, apud TAVARES, 2010))
As análises do nosso trabalho foram produzidas com base nessa concepção teórica do
funcionalismo norte-americano e na manifestação do E nos eventos ocorridos nos dados que,
estão explicados segundo o contexto de sua atuação e motivação, recorrentes na linguagem do
gênero tiras em quadrinhos. Essas análises têm caráter descritivo, visto que busca explicar o
comportamento do E de acordo com a função discursiva que assume no contexto do gênero.
As análises apresentaram como indicadores de construção de significação os seguintes
pressupostos: aspectos semânticos e pragmático-discursivos; aspectos contextuais; aspectos
inerentes ao gênero discursivo, à situação e ao propósito comunicativo; e à relação entre as
informações do texto (inferências, pressupostos subentendidos, informações dadas/novas,
entre outros recursos).
5 ANÁLISE DA MULTIFUNCIONALIDADE DO E NO GÊNERO TIRA EM
QUADRINHOS
Neste capítulo, fazemos uma reflexão sobre os dados que se encontram categorizados
em três funções discursivas do item linguístico E com o propósito de obtermos um parâmetro
de análises que demonstre a atuação desse item no contínuo das relações semânticas e na
articulação discursiva, cujo desempenho discursivo expande seu valor semântico aditivo para
o âmbito de um contínuo que representa uma escala de mais e menos aditivo.
A análise ocorreu com o seguinte procedimento: o primeiro e o segundo objetivo
pensados para esse trabalho são analisados simultaneamente e demonstram a
multifuncionalidade do E no gênero tira em quadrinhos levando em conta: as relações
semânticas aditivas e a produção de significados, e, as implicações do gênero tira em
quadrinhos, o qual favorece o estabelecimento de tais relações; e a associação das categorias
analíticas do funcionalismo linguístico nessas relações. O terceiro objetivo, que representa o
segundo ponto da análise, indica algumas contribuições que o item linguístico acrescenta
nesse processo no tocante à articulação textual e do discurso. Nesse último item foram
utilizados dados do primeiro item, com exceção de duas tiras em quadrinhos.
Todos esses fatos apresentam variações de funções que são inerentes ao próprio teor
da língua enquanto atividade social e instrumento de comunicação.
5.1 A multifuncionalidade dos usos do E no gênero tira em quadrinhos: relações
semânticas aditivas e produção de significados
O item linguístico E revela uma multifuncionalidade evidenciada conforme o contexto
das circunstâncias em que se inserem. Julgamos, então, pertinente, dar-lhe um tratamento
funcionalista, uma vez que essa perspectiva é capaz de tratar os dados advindos do uso da
língua tendo como parâmetro a agregação dos aspectos sintático, semântico e pragmático.
A nossa expectativa se volta para a análise desse item no âmbito textual-discursivo,
pois nesse nível é possível recorrer às estratégias discursivas que retratam o caráter vulnerável
dos itens linguísticos.
A finalidade incidida pelas análises de cunho funcionalista é de algum modo, espelhar
a realidade experiencial dos usuários da língua, uma vez que podem recorrer a diversas
maneiras de expressar seu propósito comunicativo, ocasionando a multifuncionalidade dos
83
usos, caráter que os submetem a um sistema fluido porque é guiado por uma situação
comunicativa.
5.1.1 Focalização
Passamos para a análise da amostra da pesquisa. Na Figura10
01, ao considerar as
relações discursivas do gênero que orientam as significações dessa tira, percebe-se, a
princípio, o teor argumentativo do personagem para conquistar um cargo de chefia. Conforme
evidencia o contexto, somente as qualificações descritas no currículo não seriam suficientes,
mas também outros atributos.
Isso certamente implica em mais propriedades cognitivas do que num discurso
espontâneo (conversa informal), refletindo-se na codificação linguística, como se observa no
terceiro quadrinho, na fala do personagem que está como concorrente de um cargo numa
empresa. Ao comparar essa fala (terceiro quadrinho) com suas demais nota-se, visivelmente,
uma redução de tamanho em codificações linguísticas, como podemos observar ao ler a tira na
sequência:
Figura 01
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/dia-a-dia/index.html>
Essa averiguação se deve, provavelmente, porque o personagem não se encontrava em
“estado argumentativo”. A carga informativa maior reforça o alto grau de informatividade
dessa fala, dada a necessidade de atingir seu propósito, o qual era conseguir um cargo de
chefia. Propósito esse que resultou em maior quantidade de registros linguísticos. Admitindo,
desse modo, a presença do subprincípio icônico da quantidade, em que a quantidade de
informação incide no tamanho da forma, ou seja, a forma procede como resultado da função.
10 As figuras numeradas nessa análise são as amostras do corpus dessa pesquisa. Estão dispostas numa ordem
sequencial e por isso não achamos necessário fazer uma lista de figuras.
84
Baseando-se nesse caso, supõe-se que a forma linguística dá corpo ao propósito
comunicativo de contextos específicos, espelhando as realizações do contexto social em que
estão envolvidos os sujeitos. Esses são capazes de buscar no seu repertório linguístico
expressões que corporifiquem seus enunciados a partir das experiências que estão
desenvolvendo.
Os dados, que constituem o corpus desta pesquisa, oferecem comportamentos
linguísticos diversos do item E. Por exemplo, percebemos, na Figura 01, que o E em “e fazem
muito bem!” parece não estar só para articular duas informações, mas confere a elas uma
relação semântica mais complexa do que seria a de uma simples adição. Quando olhamos pelo
aspecto pragmático, é possível notar a intenção do enunciador, que é reiterar, de forma
enfática, a proposição de seu interlocutor, procedida mediante uma informação dada, sendo
que o foco abrange a informação nova. Estamos, então, demonstrando a função de
Focalização que o E pode assumir nos enunciados.
Por essa proeminência focalizadora do E há uma dificuldade para enxergarmos uma
relação puramente aditiva, pois o segmento enfatizado não se articula linearmente ao
segmento anterior, representando uma espécie de ruptura no encadeamento discursivo do
conteúdo temático do gênero.
É importante frisar que essa ruptura no encadeamento discursivo na Figura 01 não se
deve apenas ao status informacional de natureza enfática dos enunciados, mas também porque
ocorre uma troca de turno de fala entre os personagens, o que pode ser uma ocorrência
propícia para essa ruptura. Por outro lado, essa troca de turno se caracterizou por seu caráter
enfático.
Segundo Penhavel (2009) um segmento introduzido por um E focalizador “constitui
uma alteração no padrão sintático, semântico ou pragmático do encadeamento discursivo.”
(PENHAVEL, 2009 p. 279). Nesse caso porque o enunciado “e fazem muito bem!” não se
constitui apenas como uma oração, está conectada a todo um bloco textual precedente para a
construção de uma unidade maior que é a narrativa do gênero tira em quadrinhos. Contudo,
parte dela é colocada em relevo, e esse uso focalizador não se configura como uma estrutura
de coordenação mais característica, rompe com a equivalência funcional11
da oração anterior.
Circunstância essa que pode nos revelar os resquícios aditivos mesmo nessa situação,
pois embora não tenha ocasionado um acréscimo ou uma soma muito evidente no plano
11
A equivalência funcional é muito frequente nos casos quando a análise acontece no nível da sentença.
85
informacional, mas o sentido de intensificação e reiteração, imbuídas numa ênfase, parece
decorrer do sentido básico de adição.
Passamos a constar, na Figura 02, como a ênfase provoca uma aparente
descontinuidade na estrutura sintática do enunciado, mas o contexto semântico-pragmático
reconstitui o plano global de significações de modo a caracterizar o realce como algo
intrínseco a esse nível, não para destacar a parte central do texto, mas porque o componente
discursivo que constitui uma ênfase afeta tanto o que o falante diz quanto o que o ouvinte
pode interpretar (GONÇALVES, 1998).
Figura 02
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/hugo/tira.html>
A situação comunicativa na Figura 02 apresenta inicialmente o contexto temático (a
pirâmide que reenergiza alimentos) como algo surpreendente, que na sequência é enfatizado
(“e não é só com maçã!”), ocasionando uma certa expectativa para os fatos seguintes. Isso
parece ser construído na perspectiva de uma informação geral (pirâmide que normalmente
está relacionada a alimentos) acrescida de uma informação específica (adaptação do conceito
de pirâmide alimentar). Essa relação é intermediada pelo uso do E, garantindo um valor
discursivo de ênfase por acentuar a cadeia discursiva expressa anteriormente.
Esse fato marca uma alteração na relação pragmática, por haver um acréscimo com
ênfase que causa uma expectativa para a ação surpreendente do personagem Hugo, vista com
maior evidência no último quadrinho. Essa caracterização culmina com uma peculiaridade
86
típica do gênero tira em quadrinhos, principalmente as tiras cômicas, de apresentar um
desfecho surpreendente. Entretanto, esse recurso, de focalização como o E não é tão frequente
na amostra analisada, representando apenas 8% das ocorrências, conforme podemos visualizar
em quadro bem adiante. No teor dessa conjuntura textual, não é fácil reconhecer a ideia de
adição quando a ideia que se sobressai é a de ênfase.
Esse resultado demonstra que a focalização tende a ser uma função mais marcada, por
ser mais complexa quanto a sua estruturação discursiva; também é menos frequente na
amostra como indica o número percentual, por apresentar uma complexidade cognitiva mais
elevada que as demais funções, uma vez que se posiciona à parte da linearidade textual, como
um realce.
Quando Neves (2000) especifica a adição de unidades do sistema de informações,
uma das relações acontece pela restrição ao primeiro segmento. Nessa especificação a
informação adicionada pode incidir por meio de focalizações.
Na nossa amostra encontramos fenômenos semelhantes aos relatados pela autora, nos
quais identificamos enunciados que se encontram com valor enfático.
Vejamos que na Figura 03 há, sintaticamente, predicativos acrescidos de um
predicador com valor enfático (“... e vicia), desempenhando a função de focalização. Nessa
situação a focalização é procedida na interação entre os personagens, um enuncia a
informação velha e o outro a informação enfática (nova).
O discurso do personagem mais jovem é um conhecimento compartilhado, que já foi
discutido entre ambos. Nesse sentido, o referente principal é “sexo” visto que tanto os
predicativos como o predicador são enunciados com a preocupação de referenciá-lo.
Figura 03
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
Vemos que a informação “... e vicia.” não se volta especificamente para a parte
imediatamente anterior. É acrescentada após a parte do enunciado que atua sintaticamente
87
como predicativo (“é uma coisa suja!”), e não se remete só a este, mas também ao referente
em questão (sexo).
Na situação encontrada na Figura 04, esse comportamento foclizador já assume outro
tipo de relação, pois o grupo lexical “está vivo” é a causa de espanto dos interlocutores do
personagem Capitão, e logo em seguida é enfatizado para enunciar de que modo Capitão se
encontra vivo, pronunciado por ele mesmo (“...e pulsando como uma sanguessuga!”). Esse
enunciado focalizado não pode ser considerado sintaticamente como um adjunto adverbial,
mas uma oração subordinada adverbial que atua com essa função, porque indica circunstância
(de modo) sobre a porção textual anterior (está vivo). Contudo, comumente o E é um típico
coordenador.
Figura 04
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
Essa construção, embora não muito frequente nas articulações do E nos dados, nem
prevista pelos livros didáticos, é prescrita pela gramática normativa e é equivalente ao que
Bechara (2009) chama de equipolente. Nos casos das equipolentes, segundo o autor, o E
(típico conector de orações coordenadas) conecta duas orações de valor subordinado. Essa
ocorrência tornou a construção acima possível nas interações cotidianas e situações
coloquiais, mas do ponto de vista sintático se apresenta como um caso atípico.
Já na Figura 05 podemos encontrar na amostra referências espaciais que servem de
ancoragem para a focalização. Essas referências agem como dêixis espaciais que tangenciam
o foco dos enunciados (“saturno” e “júpiter”).
Os personagens se encontram situando alguns elementos do espaço. As ocorrências
com o item E (“e ali, Saturno”; “e aqui Júpiter...”) fazem referências expressas à localização
espacial.
88
Figura 05
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-gatos.html>
As experiências no mundo (a vivência dos personagens Gato e Gata) correspondem
literalmente a observar o espaço e implicam nas relações linguísticas, ou seja, a forma
linguística parece receber, nesse caso, codificações que fazem alusão às ações no mundo. As
situações no espaço garantem as significações das experiências linguísticas, assim, o uso
adverbial introduzido com o E não se trata de uma atribuição arbitrária da língua, há uma
motivação icônica que respalda determinadas construções enunciativas, além de seu
significado semântico, sequencializar focalizações para determinadas direções (“aqui” e
“ali”).
Essas experiências foram orientadas linguisticamente por relações espaço-temporais,
que para serem entendidas deve haver uma explicitação do referente dentro da situação de
comunicação e não apenas na estrutura do texto. No caso do gênero tira em quadrinhos foi a
simbiose de linguagem (verbal e não-verbal) que transportou os interlocutores aos referentes
situados na materialidade do texto e o leitor para determinados significados.
Outra forma de focalização introduzida com o E encontrada na amostra e que coincide
com as definições de Neves (2000) é quando para anunciar a introdução de um novo
argumento, como na Figura 06 em “e tem mais”, há um tom enfático e intensificador
indicando um caráter catafórico, para então haver a inserção de um novo argumento.
89
Figura 06
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/dia-a-dia/index.html>
Como o enunciado “E tem mais” encaminha o leitor na expectativa de algo a ser dito,
intensificando-o, isso vem implicar diretamente no modo como o discurso foi produzido, com
características próprias do gênero tira em quadrinhos, visto que o “suspense” causado pelo
enunciado focalizado indica na sequência o argumento novo. Essa nova informação
(argumento) é a causa da produção de humor.
Na construção focalizada se evidencia uma ruptura na sequência linear do discurso,
visualmente notável no modo de organização dos enunciados da tira (3º quadrinho), em que o
enunciado com tom intensificador fica num balão agregado a outro, parecendo ter o intuito de
evidenciar visualmente essa mesma implicação (ênfase), visto que essa porção textual é
enunciada por um mesmo enunciador, mas dividida em dois balões, um com a informação
dada (“... ganha o quê? Uns 300 por semana!”) e no outro com a focalização (“E tem mais:”)
e na sequência a informação nova.
Essa intensificação além de encaminhar diretamente o interlocutor para considerar
uma informação a mais, traço que expressa o sentido aditivo, ainda é possível na sua
caracterização percebê-la como um recurso que orienta qual a informação nova que se
acrescenta a dada. Não apresenta, desse modo, características típicas de um enunciado
completo, mas de uma catáfora para anunciar o que vai ser dito.
Em Camacho (1999), também se encontram constatações do E como introdutor de
constituinte focal. Dentre os mecanismos sintáticos ele cita a clivagem, colocação do foco no
início da oração e a interrogativa parcial. No caso da interrogativa encontramos referência
também na proposta de Neves (2000). Apresentamos, conforme Figura 07, apenas um
exemplo que representa a interrogativa parcial.
90
Figura 07
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-gatos.html>
O baixo índice de ocorrência da Focalização nos dados (8%), talvez se justifique por
se tratar de um emprego mais complexo, pois o interlocutor tem que identificar a orientação
sobre a qual a ênfase incide, surgindo a necessidade de olhar para o discurso em toda a sua
extensão, em que assume funções mais abstratas. Assim sendo, os elementos focalizados vão
se afastando de seu sentido referencial para convir com a viabilização do processamento
discursivo.
5.1.2 Introdução de Tópico Discursivo
No corpus em análise, constatamos também que o item E pode funcionar como um
elemento Introdutor de um novo tópico discursivo. Como já discutido neste trabalho, o tópico
tem a ver com os assuntos que são tratados no texto e se relaciona com o plano global dele, ou
seja, tem a ver com a inserção de um novo assunto no discurso ou como ele é inserido.
Nesse sentido, surgiu uma dúvida, a princípio, da possibilidade ou não de observar a
constituição de tópicos discursivos distintos numa mesma tira em quadrinhos, já que é um
gênero cuja materialidade linguístico-textual é bem limitada, podendo não comportar a
introdução de um novo tópico discursivo ao já presente. Contudo, por se tratar de um gênero
versátil em que muitas informações solicitam um maior esforço cognitivo porque ficam
implícitas ou pressupostas, ou seja, à mercê do conhecimento de mundo do leitor, a
Introdução de Tópico Discursivo, por meio do item linguístico E, foi constatada como um
recurso viável nesse gênero e foi a segunda função mais recorrente, entre as três selecionadas
para esta análise, representando um percentual de 15,7% do total dos dados.
Na Figura 08, podemos observar como estão dispostos os tópicos (assuntos). No
segundo quadrinho, o diálogo está centrado na relação de tempo para segurar a capa do herói
(Overman), já no terceiro quadrinho, o diálogo se volta para o que é observado, acrescida à
91
ideia de curiosidade do personagem que segura a capa (Esquilo). Mesmo com o E sugerindo a
introdução de um novo tópico, a linearidade do discurso não foi interrompida, há uma
progressão decorrida pela sucessão dos tópicos.
Figura 08
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Nesse âmbito, foi introduzido um novo tópico que dá progressão a massa textual-
discursiva do gênero, fato mais frequente quanto a essa função. Ficam implícitos nessa
situação (Figura 08) outros fatos não envolvidos na materialidade linguístico-textual dessa
tira em quadrinho, como podemos perceber em “quando o vento voltar”, viabilizando a
atuação dessa função em análise. Pressupõe que antes havia vento e, como os diálogos têm
relação com os acontecimentos vivenciados pelos personagens, certamente, o assunto seria
outro quando estava ventando.
Nesse sentido, o item linguístico E dá acesso a esse trajeto que movimenta a língua e a
Introdução de Tópico Discursivo dá direção a esse movimento, porque não se insere no texto
de modo acidental, mas é norteado por propósitos comunicativos. Para tanto, na introdução de
um tópico, o enunciador se vale também de respaldos cognitivos relativos às experiências no
mundo, pois a elaboração de um tópico (na mente) parece observar as atividades sociais e os
processos comunicativos.
Por esses aspectos podemos observar indícios de iconicidade, já que há indicativos de
uma motivação entre a estrutura do enunciado (forma) a as relações experienciais para a
produção de significados (função). Isso porque, na produção discursiva de qualquer texto,
considera-se a situação, a seleção (lexical e estrutural) das expressões linguísticas para
alcançar a eficiência dos propósitos comunicativos, além de realizar interferências sobre os
interlocutores.
Também é bom ressaltar que a introdução de um novo tópico não deve representar
necessariamente uma ruptura de assunto, e quando ela acontecer, não deve ser considerada
92
como incoerência ou uma extrapolação ao mesmo, uma vez que, numa visão global, essas
rupturas podem ser vistas como descontinuidades do sequenciamento tópico que dão
progressão ao texto, evitando a circularidade. O ingresso de um novo assunto pode ser por
processos de inserção, reconstrução e retomada. Daí reforçar a ideia de que a Introdução de
tópico discursivo segue orientação linguístico-discursiva a favor dos propósitos
comunicativos.
Nesse raciocínio, a progressão do texto não coincide com a continuidade do assunto.
Na Figura 09 percebemos isso, pois o primeiro quadro mostra como o personagem reage à
fama, no último as consequências advindas de sua ação de repulsa a superexposição.
Figura 09
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/hugo/tira.html>
O enunciado tópico “e vir ao psiquiatra não está ajudando...” é introduzido como
novo tópico, cuja viabilidade foi permitida pelo item linguístico E, porque se apreendem sob
dois pólos de uma situação comunicativa, assuntos que correspondem a causa (incômodo do
personagem) e a consequência (ida ao psiquiatra), isto é, sucesso, a exposição nas mídias e a
capacidade psicológica de lidar com isso. Vemos, assim, que um assunto é continuidade do
outro, ajudando o texto a progredir.
Diferentemente acontece na Figura 10, em que o E sinaliza uma quebra no terceiro
quadrinho (e...e... e...), deixando evidente forças pragmáticas que culminam numa mudança
de quadro da narrativa, ou seja, essa mudança foi introduzida como novo tópico, porque,
nesse contexto, também é introduzido um novo personagem e uma nova fala, cujas intenções
contrariam as postas até então na tira, que eram de resignação e remorso. Ao interromper a
fala do padre, é alterado também o conteúdo temático (indisciplina ou vida desordeira).
93
Figura 10
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
Nesse caso, não só a mudança de turno como a inserção de outro personagem
favoreceu a introdução de um novo tópico. O E não relaciona dois blocos de informações
pertencentes ao mesmo campo semântico, mesmo assim, a tira não perdeu sua coerência, pois
o contexto recupera os sentidos pretendidos através do recurso de progressão instaurado para
a composição desse gênero, como também suas características ajudam a produção de sentidos,
já que esperamos desse gênero um devido senso de humor. Para tanto, o recurso de
imprevisibilidade é paradoxalmente esperado.
Na Figura 11 o E é melhor percebido como um introdutor de um novo tópico, porque
acontece após um novo evento (literalmente o teto cai sobre as cabeças). Após esse evento, a
mulher, na impossibilidade de discutir sobre o relacionamento, quando a “casa cai”, vê uma
nova tentativa de diálogo com o marido, assim mudando de assunto na expectativa de
estabelecê-lo.
Figura 11
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/dia-a-dia/index.html>
Como há uma quebra na linearidade, linguística e discursiva, o valor aditivo fica
pouco perceptível e o uso do E atende mais às relações discursivas que se somam a esse valor
semântico prototípico.
94
Quando Neves (2010) menciona o E como um veiculador da composição textual-
discursiva, frisa sua atuação no início do enunciado para desempenhar o papel de abrir o
desenvolvimento, mas não fica claro se também se refere ao início de um texto.
Ao observarmos a Figura 12, vemos o E como introdutor do texto. Já como introdutor
de um novo tópico é necessário buscar inferências no modo de organização do texto em que o
leitor tem que inquirir referências não expressas linguisticamente, pois é fácil inferir que a
conversa entre os personagens não começa nessa tira da amostra (Figura 12), ficando
implícito um diálogo anterior. Por isso, através dessas inferências é que se constata o E dessa
tira em quadrinhos como introdutor de um novo tópico.
Figura 12
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Ao procurar ver a sequência das tiras desse personagem, percebemos que esse tópico
(seleção da Overgirl) estava presente em outra tira anterior (Figura 13) à da situação
materializada na Figura 12, configurando-se em uma introdução de tópico por retomada, pois
só voltou a ser mencionado cinco tiras depois.
Figura 13
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
95
Esse tipo de ocorrência, do E inicial no texto, foi encontrado em mais quatro tiras.
Além dessa ilustrada acima, apenas outra se referia a um tópico desenvolvido numa sequência
de tiras. As demais eram iniciadas com interrogativas não retóricas, como elemento anafórico
ou catafórico, com intuito de introduzir a ocorrência do tópico, como se vê na Figura 14 com
o “E agora?”.
Vejamos que os processos referenciais e as escolhas lexicais foram produzidas na
possibilidade de introduzir um tópico discursivo, situando o interlocutor num encadeamento
de elementos linearizados para suscitar articulações mais globais, pois não vemos esse
encadeamento se coordenando entre um enunciado e outro imediatamente seguinte.
Nesse mecanismo da Figura 14, o tópico não está referido em tira anterior, mas a
situação comunicativa leva o leitor a buscar as referências discursivas precedentes para então
construir as significações.
Figura 14
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/hugo/tira.html>
Consideramos que isso é um mecanismo característico das tiras em quadrinhos por não
comportar muitas codificações linguísticas, sendo o papel do E codificar não só a introdução
do texto (e do assunto), mas também de mediar a articulação de codificações não presentes
com as já dadas, possível nas tiras também pela presença da linguagem não verbal, pois é
através desta que reconhecemos que a situação acontece ao telefone.
Então, estabelecer o significado aditivo não fica evidenciado nas relações sintáticas,
pois o enunciado introdutor “E agora?” não parece apresentar adição, já que, do ponto de
vista informacional, realmente não há significação precisa dessa natureza.
Na Figura 15, o mecanismo ocorre de modo contrário a esse anterior, pois o tópico
está apenas supostamente introduzido e também não está codificado. No anterior, as
inferências correspondem ao que vem antes para instaurar a produção de significação e chegar
96
ao entendimento do que já está dado, nesta o E prepara a entrada de um novo tópico que não
está dado na situação, ou seja, as inferências se situam para o que pode vir na sequência.
Figura 15
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Nesse caso, a introdução de um novo tópico, no final da tira, ficou apenas sugerido,
não foi expresso na materialidade linguística do texto, mas embutido no teor discursivo
aludido pelo recurso pragmático das reticências, inferindo que uma nova rota temática entra
nessa narrativa, já que o sujeito (ele) “apontou com a mão direita”, mas a memória do
personagem recorda que “ele era canhoto”. O E, nesse caso, não atua propriamente como o
Introdutor de Tópico Discursivo, mas instiga a entrada de um possível tópico.
A situação assemelha-se à da Figura 14 por ser uma espécie de interrogativa (E
agora?/E depois?), só que naquela com a perspectiva de introduzir o tópico, nesta com intuito
de dar continuidade ao tópico.
Nesse caso, a constituição de um novo tópico não necessariamente encontra-se
materializado no texto, mas em alguns casos deve ser observado pelo interlocutor, questão
que levanta a crítica de que o tópico discursivo apresenta uma noção intuitiva. No entanto, há
critérios, como por exemplo a centração, para identificação do tópico discursivo.
Na Figura 16, o tópico introduzido com o E parece proceder do modo como Camacho
(1999) chamou de “Introdutor de comentário”, consolidado pela fala do personagem pai, que
enunciou um comentário após constatar que o filho continuava em casa (você estava aqui em
casa o tempo todo, é!? / e eu, pensando que você estava correndo um grande perigo!!).
97
Figura 16
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-gatos.html>
Nesse sentido, observamos que há uma diversidade de mecanismos em que um
enunciado pode se introduzir aos que já são dados. Ocorrem numa relação de adição
intermediária, no comparativo com as demais funções em análise, pois há um acréscimo
subsidiado pelo E, mas não explicitamente, porque não se relaciona de modo sequencial em
que uma oração se encadeia semanticamente noutra, mas essa conduta se dá num nível
discursivo.
5.1.3 Sequenciamento Retroativo-propulsor
Outra manifestação do item linguístico E, no corpus, refere-se à função
Sequenciamento retroativo-propulsor, ou seja, aquela que estabelece uma relação coesiva
simultaneamente em continuidade e consonância na sequenciação textual e une um enunciado
a outro, demonstrando que a informação que se segue tem relação com a anterior.
(TAVARES, 2010).
O Sequenciamento retroativo-propulsor foi a função mais recorrente nos dados desse
trabalho, atingindo um percentual de 46,7% (95/203). Dado a esse alto percentual em relação
às outras funções discursivas do item linguístico E (Focalização, 8%, e Introdução de tópico
discursivo, 15,7%), nossa análise se dará seguindo as subfunções elencadas por Tavares
(2007): sequenciação textual, sequenciação temporal e causa-consequência.
Quanto à análise da sequenciação textual, no segundo quadrinho da Figura 17, temos
uma ordem sequencial, elencando as atividades do cargo de rei. Uma enumeração de fatos é
apresentada numa sequenciação discursiva em que o último desta (“e ganha o que bem
entender”), introduzido por E, funciona como um mecanismo de coesão que dá subsídio à
progressão do texto.
98
Figura 17
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/dia-a-dia/index.html>
Os fatos das narrativas em geral se desenvolvem a partir de um encadeamento
motivado pelos acontecimentos que se organizam por meio de uma sequenciação (discursiva
e/ou temporal). Nesse caso, o item linguístico E se torna um procedimento habitual usado
para acrescentar uma nova informação à sequência.
Segundo Tavares (2010), a sequenciação textual é bem favorável para ser codificada
pelo E. Chega a essa constatação porque o analisou tendo como parâmetro de comparação
outros sequenciadores (AÍ e ENTÃO). Justifica reconhecendo que seu nível de processamento
cognitivo é de baixa complexidade.
Nos dados desta pesquisa, não foi o sequenciador mais frequente, distinguindo-se dos
resultados de Tavares (2010; 2007). Nossa hipótese para essa aparente disparidade é que a
análise da autora é feita em três tipos de discurso (narrativa de experiência pessoal, relato de
procedimento e relato de opinião), enquanto nessa investigação apenas em narrativa (das tiras
em quadrinhos), ambiente discursivo muito propício para dar seguimento à ordem de
acontecimentos narrados. A sequenciação textual foi, nos dados da nossa análise, o segundo
tipo de sequenciador mais frequente, contemplando 37% dos dados selecionados como
Sequenciamento retroativo-propulsor.
Na Figura 18, a fala do personagem, logo no princípio da tira, é colocada em dois
planos textuais (1º e 2º quadrinhos) conectados pelo E. Ambos se remetem a etimologia da
palavra “Pirata”, salientando desse modo, um teor aditivo, em que uma informação é
acrescida a outra, mas também envolvido num movimento de retroação e consonância (“quer
dizer” no 2º quadrinho, se refere a “Pirata” no 1º quadro).
Como as duas porções textuais está muito visível, principalmente pela forma como as
falas do personagem foram organizadas na tira (1º e 2º quadrinhos), é justamente o item
linguístico E que faz o intermédio entre elas.
99
Figura 18
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
O trecho “E quer dizer ‘guerreiros valorosos, altos...” dá sequência a ordem
discursiva do enunciador, revelando que a informação acrescentada tem relação com a outra,
anunciando, assim, uma continuidade, sem que haja mudança de tópico (assunto) e
assinalando a ordem sequencial das informações.
A Figura 19, a seguir, reúne várias tiras com o E na função de sequenciador textual.
Como o Sequeciamento retroativo-propusor aparece abundantemente nas tiras em quadrinhos
analisadas temos condições de explaná-lo em série, como na Figura 19.
Figura 19
Fonte: http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/dia-a-dia/index.html
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
100
Na Figura 19 as estratégias de funcionamento do E como sequenciador textual são
semelhantes às das Figuras 17 e 18, em que os enunciados sequenciados pelo E, ora estão
num mesmo plano textual (numa mesma fala), ora estão em planos diferentes.
O E como sequeciador textual é muito próximo do que Penhavel (2009) chama de
coordenador, pois o nível de articulação é apreendido porque levamos em conta o contexto
discursivo, do contrário, seriam dois blocos de oração ligados pelo conectivo E. Resulta disso
o fato de representar um processamento mental mais rápido e econômico (TAVARES, 2010).
Na análise da sequenciação temporal, vemos que é possível observar uma cronologia
que conduz a ordem dos eventos no texto. Uma ação é encaminhada e sucessivamente outra
se encaminha numa orientação temporal, como na Figura 20, “[..] teclar um S.O.S...”
sucedendo em “... e lançar às águas [...]”. Também as reticências pontuam essa sucessão
entre os eventos (2º e 3º quadrinhos), sugerindo um intervalo entre os acontecimentos
(processamento do evento anterior – digitar a mensagem – para incidir no posterior). As ações
(força do el niño, tecla um S.O.S e lançar mensagem nas águas) se apresentam no discurso
para compor uma linha sequencial que transcorre numa ordem temporal (os problemas
climáticos para suceder os problemas de informática) na qual um problema ocasiona o outro.
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
101
Figura 20
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/hugo/tira.html>
Nota-se a ocorrência dos fatos não somente numa ordem discursiva, mas o traço
temporal é acrescido e é de natureza cognitiva. Ele amplia o plano das relações semântico-
pragmáticas, desse modo, é um sequenciador que é mais amplo que o anterior, por contemplar
esse traço a mais, no entanto, não solicita um empreendimento cognitivo intenso, pois se
refere às atividades humanas e sua influência com a realidade existente como podemos
considerar na Figura 21, mais adiante.
É perceptível a interferência do contexto cultural que colabora com a significação
global do gênero, na Figura 20, o teor informativo gira em torno de dois campos discursivos:
o mundo da tecnologia (teclar, mensagem – eletrônica) e as catástrofes climáticas (“el niño”),
ambos se pautam nas referências do mundo contemporâneo que, ao se ajustar nesse contexto,
baseou-se num parâmetro de escolhas linguísticas que pudesse resultar nesse tom discursivo,
cujo intuito é atingir um propósito comunicativo (satirizar).
A sátira está justamente em fazer o homem contemporâneo pensar como equilibrar o
desenvolvimento tecnológico com a preservação ambiental, podendo ser analisado pelo jogo
semântico do último quadrinho, como em “endereço real”, deixando subentendido outro
sentido para endereço (virtual), visto que é mais provável a mensagem chegar pelas ondas das
águas, dada a inviabilidade do endereço virtual.
A assimilação dessa mensagem só chega aos interlocutores desse texto por suas
relações extralinguísticas de conhecimento sobre os fatos acontecidos, ou seja, pelas suas
experiências com o mundo, o que sugere uma noção de contexto como elemento adaptável à
situação discursiva e comunicativa e também como elemento de razões cognitivas.
Nessa direção, é necessário incluir o ponto de vista do locutor, seus interlocutores e o
meio social que se apropriam de formas linguísticas capazes de atender a dinamicidade do uso
da língua, tornando-se um vértice de multiplicidade de significados.
102
A ordenação dos eventos no texto parece ter a ver também com o modo como foi
construída a ordem morfossintática de cada oração que, segue o modelo Sujeito, Verbo,
Objeto (SVO), padrão prototípico do português do Brasil.
Essas evidências contextuais parecem se refletir em codificações que deixam expresso,
mesmo implicitamente, um fundo de motivações cognitivas, pois o advérbio de intensidade
“mesmo”, tenta retratar uma imagem da gravidade do fenômeno natural demonstrado.
Já a construção verbal “devesse ter” (último quadrinho) retrata uma condição típica
desse personagem, as incertezas causadas pelos conflitos nos quais está sempre envolvido.
Situação reforçada pelo advérbio de dúvida “talvez”. Os reflexos do contexto situacional do
personagem são expressos na codificação morfossintática do gênero (texto), fato natural
quando se sabe que as atividades humanas são mediadas pela linguagem. Contudo, essa
mediação aciona mecanismos em prol de um contexto específico cujo direcionamento segue
um propósito comunicativo.
Na Figura 21, trata-se de uma situação de esperteza, por parte do menino, plenamente
possível de ser presenciada na realidade circundante.
Figura 21
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/dia-a-dia/index.html>
As evidências estão ainda marcadas, no primeiro quadrinho, pelas relações temporais
dos verbos como “tinha” e “estivemos”. O primeiro, no pretérito imperfeito, habitualmente
significa que os fatos não foram totalmente concluídos, ou seja, ação prolongada, ou como
expõe Bechara (1999, p. 277), o empregamos “quando nos transportamos mentalmente a uma
época passada e descrevemos o que então era presente”. O segundo, no pretérito perfeito, que
segundo o mesmo autor “fixa e enquadra a ação dentro de um espaço de tempo determinado.”
(p. 278). Assim, percebemos uma ação que se prolonga no tempo até o momento de
realização da fala (reforçada pelo advérbio “”aqui”). Articulando uma relação e outra está o
E, promovendo o encadeamento que provoca o desfecho seguinte.
103
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Na Figura 22, temos várias tiras para explanar a forte recorrência da sequenciação
temporal nos dados. Entre os sequenciadores, foi o que atingiu maior percentual, com 48,5%,
contrariando a expectativa inicial que se voltava para o sequenciador textual. Contudo, como
nossa análise se pauta apenas na narrativa, a ordem cronológica dos eventos é inerente a esse
tipo de sequência, daí julgamos que os números são coerentes.
Figura 22
Em todos os exemplos da Figura 22 percebemos, inclusive visualmente, uma
sequência de fatos que partem de uma situação dada e culminam num desfecho. Essa
sequência é responsável por representar a ordem temporal que conduz a continuidade do
texto.
104
Por essa razão, aborda traços icônicos, porque a forma linguística é produzida a partir
das intenções que o sujeito almeja ao se comunicar, por isso, antes de materializar seu
discurso linguisticamente, ele organiza cognitivamente, tendo como parâmetro as adequações
contextuais, o que significa que o sujeito enunciador considera os conhecimentos de mundo e
as implicações do lugar de onde se enuncia. Os exemplos da Figura 22 expressam esses
aspectos, uma vez que, trazem em seu contexto um discurso que aponta à direção em que se
encaminham os fatos, pois ao mudar a ordem de ocorrência dos mesmos, sua significação é
modificada.
A sequenciação de causa-consequência apresenta maior complexidade em relação as
demais, pois o enunciado introduzido com E nessa situação se apresenta como resultante de
um evento em processo, por isso exige maior esforço cognitivo, uma vez que requer uma
elaboração mental mais densa, cujas razões estimulam os domínios da linguagem como a
argumentação.
Na Figura 23, o personagem Hugo está justificando que fez adesão a uma força maior
(Diabo), cumprindo uma espécie de ritual (“enchi o shape com tua imagem...”), mesmo
assim, a consequência disso foi negativa (“e me estourei igual!”), ou seja, há uma ideia
exposta e outra como resultante dessa que, no caso, não foi o que se esperava.
Figura 23
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/hugo/tira.html>
As relações de consequência não excluem o estabelecimento das relações de tempo.
Ela é “integrante do conjunto das relações atribuídas pelo homem em seu processo de
apreensão da realidade [...]. É o falante/escritor e não o mundo exterior que apresenta um
evento como consequência do outro [...] (TAVARES, 2007, p. 97). Daí se justificar o alto
grau de complexidade cognitiva na operacionalização dessa relação. Por isso também se
compreende a pouca incidência nos dados em análise, representando apenas 14,5% dentre os
sequenciadores.
105
Em alguns casos é possível substituir o E por um “portanto” ou “por isso”. Na
situação da Figura 24 dois personagens (herói e anti-herói) estão tendo um acerto de contas,
nesse contexto, poderíamos reescrever o enunciado do segundo quadrinho que ficaria assim:
“Entupi você de pizza por isso (portanto) agora não é páreo pra mim!”. Nessa nova
construção percebemos facilmente a relação de causa-consequência porque já está marcada
por itens gramaticais (por isso e portanto) típicos dessa relação.
Figura 24
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Entre os sequenciadores, esse é que exerce um valor semântico aditivo menos
aparente, porque a relação não é tipicamente aditiva. Tendo em vista também sua natureza
cognitiva, a sobreposição de traços (ordem textual, temporal e a relação de causa seguida de
consequência) que incidem numa complexidade, além da pouca frequência, por isso é um dos
sequeciadores mais marcado.
O jogo semântico com o item lexical “pedido”, que foi pronunciado com um sentido
compreendido de outra forma, é aspecto que mece algumas considerações. O anti-herói pede
para fazer o último pedido porque ele irá morrer, já o super-herói, que se encontra em
desvantagem por ter feito muitos pedidos de pizza, responde como se estivesse pedindo mais
uma, ficando a dubiedade de sentidos.
Nesse caso, o contexto permite a produção de sentido com base no senso de humor,
porque une pelo menos duas ideias possíveis de seu significado, sobre as quais o interlocutor
faz uso de estratégias cognitivas mais elaboradas para perceber essa permuta de sentido e se
levada para o mundo das referências reais, nomearíamos como mal-entendidos.
Quando se passa a analisar as mensagens não codificadas linguisticamente, ou seja,
implícitas, decorrentes do contexto extralinguístico ou conhecimento de mundo através de
inferências, é que se entende que essa flutuação semântica em “pedido” motiva o senso de
106
humor do texto, mostrando-se como uma estratégia para a produção de significados no gênero
tira em quadrinhos, recurso que podemos chamar de polissemia.
A polissemia acontece quando o significado começa a ficar transparente e dá margem
para um novo uso. O contexto dos dois eventos envolvidos (pedir uma pizza, último pedido
antes de morrer) se configura como dois usos distintos, mas com um ou vários traços em
comum entre os dois usos, referentes a uma mesma forma (pedir), porém com referências
contextuais distintas o bastante para diferenciá-los. (VOTRE, 1997). É bom lembrar que a
polissemia é produzida pela situação comunicativa do contexto.
Reconhecer ou não as duas possibilidade de significação, na Figura 24, faz parte da
capacidade sociocomunicativa do interlocutor, e quando ele percebe a multiplicidade de
sentidos no enunciado interpreta-o levando em conta a possibilidade de humor que o gênero já
sugere. Como pensa Bakhtin (2004, p. 132), a compreensão se funda de forma dialógica em
que “a significação não está nem na palavra nem na alma do falante, assim como não está na
alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do interlocutor e do receptor [...]”
Portanto, esse episódio ilustra a tese do funcionalismo de que o discurso deve ser o
rumo norte das gramáticas, visto que na produção e recepção de um texto se considera muito
além dos recursos linguísticos.
Na valia desses itens, as construções morfossintáticas dos enunciados são afetadas,
pois ao sugerir determinados significados, os arranjos morfossintáticos não recebem as
mesmas considerações, como podemos examinar ao retomar à situação vista na Figura 04 (p.
94).
Na Figura 25, as relações lógicas fogem à instauração de significados habituais, visto
que, para compreender a consequência dada pela própria personagem é um tanto dificultoso,
ou seja, não é aparentemente dada, nem racional, já que não segue a ordem natural dos fatos
da realidade. Por exemplo, como lamentar após a morte? Nesse sentido, há uma negociação
de sentidos embutida no propósito comunicativo, tanto por parte das intenções pretendidas
quanto das propriedades inerentes a esse tipo de gênero que, entre as quais, estão a ironia e o
humor.
107
Figura 25
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Essa quebra na linearidade da sequência narrativa, representada pelas reticencias,
ocasiona um certo suspense, em seguida encadeado com o E sequenciador com ideia de
consequência mediante a causa anterior.
Constatamos que o E, na função de Sequenciamento retroativo-propulsor, é mais
frequente nos dados em relação as demais funções analisadas. Isso pode demonstrar o caráter
de simplicidade que ele confere ao processamento discursivo, atribuindo-lhe rapidez. Essa
atribuição satifaz a obtenção de neutralidade, como colocada por diversos autores, dentre eles,
Neves (2000) e Camacho (1999), característica que tende a ser codificada por itens de baixa
marcação e menor desenvoltura cognitiva, como é o caso do E nessa função.
Essas razões talvez justifiquem o E sequenciador com uma demanda tão elevada nos
dados. O Sequeciamento retroativo-propulsor é a função sobre a qual percebemos, com mais
evidências, os traços semanticos aditivos, por exigir procedimentos linguísticos e discursivo
mais simples, sobretudo nas sub-funções de sequenciação textual e temporal, pois nelas
percebemos quais as partes que estão relacionadas.
Para melhor visualização dos dados do corpus, referentes a Sequenciamento
retroativo-propulsor (95 ocorrências), mostraremos no quadro 4, a seguir, em números
percentuais os três tipos de sequenciadores aqui apresentados.
108
Quadro 4 – Sub-funções Sequenciamento Retoativo-propulsor
Sequenciamento Retoativo-propulsora do item E (em %)
Sequenciadores Textuais 37%
Sequenciadores Temporais 48,5%
Sequenciadores causa-consequência 14,5%
Total 100%
Conforme retrata Penhavel (2006, p. 649): “Trata-se de um mecanismo de coesão [...],
certamente o de natureza mais neutra, que estabelece uma relação semântica simplesmente de
adição entre novas sequências inseridas e o discurso já enunciado.” Ideia que corrobora com o
índice de sua frequência nos dados dessa pesquisa.
5.1.4 – Fluidez no comportamento discursivo das funções do E
Alguns casos não foram incluídos no percentual das três funções analisadas
anteriormente. Isso ocorreu por dois motivos, primeiro porque alguns apresentavam muita
proximidade entre uma e outra função (Focalização, Introdução de Tópico discursivo e
Sequenciamento retroativo-propulsor), segundo, porque não se enquadravam nessas
categorias utilizadas na análise, como a ocorrência do E na conexão de termos, que se
apresentou num percentual de 23% dos casos.
Quanto aos casos de proximidade são assim chamados por evidenciar uma aparência
confusa quanto à classificação das funções, o que legitima o que Abreu (1997) esclarece a
respeito de casos prototípicos e casos não organizados dessa forma, porque as categorias
linguísticas e cognitivas não são exauríveis, podendo assumir propriedades discursivas de
forma não linear. Ou ainda como menciona Penhavel (2005) da inexistência de critérios
rígidos que forneçam uma determinação segura entre duas funções de um item linguístico.
A falta desses critérios, possivelmente, seja pela caracterização da língua em
funcionamento, que se apóia nas correlações entre funções e formas. Estas estão
continuamente em mobilidade devido à própria natureza da gramática, um sistema suscetível
à mudança e intensamente afetado pelo uso que lhe é dado no cotidiano das interações
109
verbais. Esses fenômenos são coerentes com o plano da instabilidade que a língua assume em
diferentes contextos de usos.
É o caso da Figura 26 no trecho introduzido pelo E. À primeira vista, temos um
sequenciador temporal porque está marcando os fatos numa sucessão cronológica, sugerindo a
ordem discursiva do enunciado (fala do telefone) e avançando o texto em relação ao que foi
dito antes.
Figura 26
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
Por outro lado, fica evidente que essa continuidade discursiva é afetada por introduzir
um novo sequenciamento tópico, pois o assunto (2º quadrinho) se voltava para o encontro,
mas a referência ter que ir disfarçado agrega-se como elemento novo, sugerindo a inserção de
um novo tópico (disfarce).
Ou ainda, parece focalizar um evento específico, ressaltando o modo como deve sê-lo,
deixando em relevo uma porção do enunciado e aproximando-se da focalização, reforçada
pelo traço pragmático de estar separado de uma sequência principal por um hífen, provocando
um efeito digressivo, que ainda assim favorece a atribuição de duas das funções: Introdução
de tópico discursivo e Focalização, visto que o uso desse recurso pode ser para enfatizar o
enunciado separado e, por essa razão, pode se configurar como um novo tópico.
No caso seguinte, Figura 27, o “... e daí?” prenuncia o realce do enunciado,
assumindo a função de catáfora, como elemento que passa a indicar no momento em que
ocorre uma quebra da linearidade das informações e indica que algo ainda será dito, apesar da
quebra dessa linearidade.
110
Figura 27
Fonte: < http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-overman.html>
A quebra de linearidade é restituída com o enunciado seguinte, o qual trata de uma
apreciação de juízo de valor. Nesse sentido, parece ser indicativo de um novo tópico porque o
assunto anterior focava sobre “o papo de super-herói”, no entanto, o outro personagem
encaminha o diálogo para outra direção e para uma nova perspectiva da mesma situação, cujo
foco do seu olhar é literalmente o corpo físico do super-herói. Lembrando que a Introdução de
tópico colabora com a progressão textual.
O enunciado introduzido com o E atua entre esses dois pólos de assuntos sem se
submeter à estrutura sintática de nenhum, podendo proceder no rumo da instabilidade, pois
integrado com o “daí”, constitui uma construção em que aparentemente perde a propriedade
de item que pode ter suporte gramatical para servir à organização discursiva da fala. No
quadro seguinte fica melhor visualizada essa espécie de entremeio discursivo que se localiza
no âmbito global do texto.
Ao visualizarmos, no quadro, o “... E daí?” parece agir como um sequenciador,
conectando dois blocos de informações. Por outra via, no contexto não está tão separado
assim, porque os dois últimos blocos, quando vistos na tira, pertencem ao mesmo enunciador
que utiliza o “... E daí?” para quebrar a linearidade da ideia anterior e submeter a sua no
contexto enunciativo, aproximando-se, desse modo, a uma função catafórica de prenunciar
algo a se referir adiante e, consequentemente, enfatizar sua ideia em detrimento a do
interlocutor. Assim deixa margem para se pensar tanto em uma focalização como num
sequenciamento retroativo-propulsor.
“Papo de super-herói é de um
mau gosto de lascar!”
“... E daí?” “A bundinha é ótima!”
111
Esse uso também não poderia estar totalmente contido nos valores semânticos
aditivos, ou caso sim, ficaria no último nível (ou grau) da escala, porque se distanciaria muito
de um valor puramente aditivo, já que não está segmentando uma informação a mais no
contexto global do texto, mas sinalizando que mais uma vai entrar na enunciação.
Como vimos, as análises tentam demonstrar a persistência do sentido aditivo do E e o
seu teor discursivo na articulação do texto, pontos observados por meio das funções
discursivas do E selecionadas.
Sabemos que os fenômenos linguísticos são sensíveis às mudanças, tal como esse sob
análise, que sai de uma categoria eminentemente gramatical para alcançar níveis de atuação
que contemplam os usos linguísticos. Como mostrou a literatura aqui apresentada e os dados
analisados, seu valor semântico aditivo foi acrescido de outros, ampliando o emprego do
conectivo para funcionar na continuidade e na ênfase dos enunciados (ver Quadro 2). Esses
empregos são reconhecidos no âmbito do gênero/texto, garantindo a continuidade textual e a
progressão mediada pelo caráter da informação e daí o E assumir uma postura multifuncional.
O “E daí”, introduz uma espécie de refutação da tese do personagem em relação ao
seu interlocutor, por isso, situado mais no nível do texto e assumindo função semelhante a de
um marcador conclusivo. Esse caráter discursivo é devido alguns itens lexicais passarem a ser
usados em contextos cumprindo funções gramaticais ainda não fixadas. O uso faz com que
esses itens tornem-se mais previsíveis e regulares.
Essa ínfima amostra representada pelas Figuras 26 e 27, demonstra o quadro de
variação e mudança na língua, conduzindo a uma reflexão acerca da fluidez de categorias dos
domínios linguísticos. Essas duas, variação e mudança, são compreendidas nos estudos
funcionalistas como processos naturais que expressam a emergência da gramática,
caracterizada pelo constante (re)fazer-se. Daí pensar no processo de gramaticalização como
um dos fenômenos capazes de explicar os tipos de ocorrências enfatizados.
Esses comportamentos diversos podem implicar configurações que representam a
dinamicidade do processo de interação verbal, cujos procedimentos resultam na comunicação
entre os homens. Essas eminências nos autorizam a dizer que essas análises, sobre o item em
pauta, podem ser revisadas com o decorrer dos usos linguísticos, os quais podem indicar
novos modos de articulação discursiva. Portanto, essas não exaurem a complexidade do papel
do conectivo E no discurso, antes apresentam um recorte das possibilidades de seus usos e
funções.
112
Os dados analisados nos permitem abordar que a manifestação do E como aditivo
propriamente dito, conforme defendem as gramáticas normativas, tomou outros caminhos em
direção a articulação textual. Esses caminhos orientam como compreendê-lo enquanto valor
de continuidade e de ênfase, tendo em vista se acrescentar ao coordenador (função gramatical)
as funções relativas ao marcador discursivo (função textual-discursiva).
Quanto aos dados gerais representamos a seguir uma visão geral em número e
percentuais. A partir dele compreendemos melhor a atuação do item E no gênero tira em
quadrinhos.
Quadro 5 – Dados das funções discursivas e demais ocorrências do E
F ITD SRP CT CP12
N % N % N % N % N %
16 8 32 15,7 95 46,7 48 23,6 12 6
*F= Focalização; ITD= Introdução de tópico discursivo; SRP= Sequenciamento de tópico
discursivo; CT= Coordenação de termos; CP= Casos à parte.
Nesse panorama observamos a ampla atuação do E como um sequenciador, contudo
tem quantitativos representativos de outras funções o que nos oferece a ideia de que o item em
estudo tende a se estabelecer nessas e outras funções que possam surgir, já que o uso
linguístico proporciona a constante mudança deste, que ao se adequarem aos propósitos vão
tendendo a multifuncionalidade.
Nesse gênero, estabelecer relações de articulação com o item linguístico E parece
atender não somente uma relação de coesão, mas também se submetem nesse âmbito a
natureza informacional dos enunciados, as evidências de motivações icônicas e o nível de
frequência que indica uma situação marcada ou não marcada.
Nele há um diferencial porque temos um texto com escrita planejada para simular os
aspectos da fala. Essa dinâmica permite visualizar a incidência dos usos discursivos, nas
manifestações da língua em funcionamento efetivo.
12 Casos que não se encaixam nessas funções ou de difícil identificação destas.
113
5.2 O E na articulação discursiva
Inicialmente, constatamos na literatura estudada que o E se apresenta como típico
elemento de soma, de conjunção de unidades de informações, de temas, de argumentos, entre
outras (NEVES, 2000), entretanto, a passagem do sentido base de adição para as variâncias
desse valor acontece sob gradiência (NEVES, 1985). Partindo dessa percepção, acreditamos
que o elemento linguístico E tem comportamento gradual, assumindo multifunções. Nesse
âmbito, articula porções textuais concebendo suas relações semânticas.
Tratamos assim nesse estudo, através da análise das três funções discursivas do E, de
incluir esse item linguístico como um veiculador de articulações textuais, enfocando que sua
função não se instaura apenas como coordenador nem como puramente aditivo, se assim fosse
encerraria no nível sintático. Mas, na observação de sua atuação no corpus foi possível
identificar que seu valor semântico puramente aditivo se distancia desse valor base e que, de
certo modo, fere a estabilidade postulada pela visão tradicional, uma vez que a literatura
revisada já aponta uma flutuação semântica considerável. Contudo, mesmo num nível de
distanciamento ocorre a persistência do traço semântico e aditivo.
Consta na Figura 10, já exposta em análises anteriores, um E parece suceder-se como
fonte de direcionamento da ordem argumentativa. Tal orientação, provocada pela entrada do
último personagem, conduz o leitor a se pautar numa determinada tese, como veremos.
Figura 10
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
Temos um personagem confuso cuja postura, expressa no diálogo com o padre, parece
não condizer diretamente com a última fala da tira, tendo em vista a oposição entre os dois
discursos expressos, o de conformação ou espera nas circunstâncias divinas e o de pirata, em
114
que as ações são mais ativas e tendenciosas a atos de rebeldia. Articulando esses dois eixos
temáticos da tira está o item E.
Não há expressamente estratégias argumentativas, até mesmo porque a estrutura
textual sintética das tiras em quadrinhos não permitem reuni-las explicitamente na
materialidade do texto, mas há certamente um fator, especialmente visto no personagem
pirata, que faz o leitor supor determinada tese.
Nessa situação o uso do E se assemelha ao que Neves (2010) descreve como marcador
de transição, que marca uma transição entre um bloco e outro de informação, como podemos
visualizar a seguir.
O uso do E foi fundamental para a instauração da progressão textual, do contrário,
teríamos dois blocos de informações descentrados sem implicar um ao outro, como podemos
ver os blocos de informações sem a presença do E a seguir, que provavelmente,
impossibilitaria a coerência na tira.
Sem a observação da situação comunicativa e suas propriedades (atos de fala,
propósito comunicativo, contexto discursivo, etc.) fica muito estranho e difícil admitir que
esses dois blocos de informações pertençam à mesma conjuntura textual. E foi a situação
comunicativa que também possibilitou o uso do E como um item que veiculou a articulação
de um acréscimo que dá andamento ao texto, assinalando o processamento do discurso.
O E, nesse caso, constitui-se como marca linguística que direciona o interlocutor a
possíveis conclusões: a vida de pirata é melhor. Nesse sentido, o E atua como um operador
argumentativo cuja função desses articuladores é acentuar a força argumentativa dos
enunciados. A função do E é de acrescentar argumentos a favor dessa conclusão em que o
enunciador utiliza-os para acrescentar pensamentos de sua conduta, os quais admitem outros
focos devido variações contextuais. Ao acentuar esse teor argumentativo, no nível discursivo,
ganha também proporções de intensificadores.
Além da relação de soma entre os segmentos coordenados, da ideia de contraste entre
os dois primeiros quadros ligados ao último com o E, reitera a intenção argumentativa do
__ Padre, não sei o que está acontecendo comigo...
__ Fale, meu filho.
__ ... De vez em quando sinto-me possuído... por...
u-um... Pirata!
__ Reze dez Pai Nossos. Dez Ave Marias...
__ Uma garrafa de rum!!!
115
enunciador, que endossa a tese contrária a que se vinha expressa anteriormente, na tira, pelo
personagem padre. Nesse sentido, o item linguístico E além de um coordenador entre essas
relações sintáticas é um articulador que marca as relações semântico-pragmáticas, tanto de
conexão como de progressão textual.
Na Figura 03 vemos com se articula um enunciado focalizador, visto que a função
conectiva não se liga diretamente a questões sintáticas, mas também pragmáticas.
Figura 03
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-piratas.html>
O referente principal dessa tira que é “sexo” que está envolvido num predicativo, mas
há também um predicador enunciado com a finalidade de referenciá-lo. Assim organizado o
referente “sexo” articula-se a diferentes enunciados, a um que se agrega sintaticamente (“é
uma coisa suja”) e a outro além da relação sintática também por relações pragmáticas (“...e
vicia”), pois houve uma troca de turno, e foi nesse sentido inserida a focalização. Essa
organização dos enunciados, na qual se encontra o predicador, lança mão tanto do nível mais
local da organização sentencial, quanto do nível da articulação discursiva mais ampla, porque
parte de um contexto situacional que participa de todo o gênero.
Na Figura 06 a intensificação corroborada pela expressão “E tem mais” se apresenta
como um recurso utilizado para ressaltar a situação comunicativa que está em andamento,
enfatizando o caráter discursivo-argumentativo do personagem que quer convencer o outro de
que “tomar conta de carro” não é um emprego.
116
Figura 06
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/dia-a-dia/index.html>
O E não se apresenta sozinho como um articulador de intensificação, é importante
frisar a presença do “mais” como elemento que marca por excelência esse tom de intensidade
no enunciado. A expressão “E tem mais” é quem subjaz o teor catafórico, e não o elemento E
ou mais, por isso, a necessidade de considerar a expressão (introduzida com E).
O enunciado sobre o qual incide a intensificação vem como desfecho surpreendente,
motivo da causa do humor na tira.
Como a intensificação é um recurso semântico cujo propósito é ressaltar o significado
dos enunciados no texto, ampliando para o caráter discursivo, essa expressão articuladora
tanto se relaciona anteriores como com a fala posterior, assemelhando-se desse modo, com o
sequenciamento retroativo-propulsor, o que faz as relações enunciadas transitarem
discursivamente e não apenas sintaticamente.
Quanto aos articuladores modalizadores, elementos linguísticos que identificam as
intenções, sentimentos e atitudes do locutor com relação ao seu discurso, na Figura 20 ele
vem marcado pela expressão “talvez devesse ter”, que vem posterior ao momento articulado
pelo E, ou seja, se apresenta como uma consequência da atitude realizada pela articulação
demandada por esse item.
Figura 20
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/hugo/tira.html>
117
São pelos modalizadores que o leitor reconhece o nível de engajamento do locutor em
relação à intenção pretendida. Nessa situação, o personagem deixou evidente um tom de
arrependimento quanto à ação efetuada, que foi o modo como enviou a “mensagem”.
Esse estado de espírito do personagem faz parte de sua caricatura, uma vitima dos
problemas tecnológicos e ambientais.
Na verdade, o elemento E sequencia uma relação de ações pronunciadas pelo próprio
personagem e a expressão modalizadora, nesse caso, não coincide como o enunciado
introduzido pelo E, e somente aparece em enunciado seguinte. Assim, ele não participa de
uma modalização, mas trama uma sequência de fatos que culmina num tom atenuado pela
expressão em análise.
Figura 28
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/hugo/tira.html>
Já na Figura 28, percebe-se claramente uma expressão modalizada, embora a
circunstância seja ocasionada por uma situação de relações de poder, mas na expressão “e
esse é meu advogado” fica subentendido um modo de apontar a ineficiência do advogado sem
expressar totalmente na materialidade do texto, contudo, entendido pela situação apresentada
nos quadros anteriores a essa fala do personagem.
Há assim, uma sequenciação de causa-consequência, tendo em vista que mediante a
causa em que se encontra o personagem Hugo há uma consequência desastrosa provocada
pelo advogado. Também fica facilmente aceitável se trocarmos o “e” por portanto ou enfim.
Até então vimos que é mais fácil perceber o E como um conector de ações e fatos,
porém há ocorrência diferente como na Figura 29 em que o E perde seu valor gramatical para
assumir um caráter discursivo, ou seja, não segue a restrições sintáticas e passa a cumprir
restrições pragmáticas e interativas, articulando o processamento do discurso.
118
Figura 29
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/index-gatos.html>
Nessa situação (Figuras 29) o E além de ter uma função gramatical de conecção e
organização textual, também se posiciona como um preenchedor de pausa. Estes atuando no
nível pragmático, exercendo funções no processamento cognitivo, na interação entre
interlocutores. Sendo assim, a articulação não ficaria mais no nível do texto e sim do discurso,
fato que ultrapassa o escopo deste trabalho, mas demonstrado com o intuito de percebermos
outras expectativas de estudo sobre a articulação do E nas relações textuais e discursivas.
Neste item tentamos mostrar outras possibilidades de estudo do E, no nível textual-
discursivo, que ganham importância pela sua maleabilidade, desde a capacidade de conectar
as ideias e os fatos, como nessa última análise, a de se emaranhar no processamento
discursivo e interativo perdendo sua função gramatical.
CONCLUSÃO
Os usos recorrentes de determinados itens lexicais e/ou gramaticais que se apresentam
de forma mais criativas no discurso e em contextos diversos tem sido frequente, assim como
os estudos nessa perspectiva tem se intensificado na tentativa de compreendê-los e sugerir
justificativas para o devido fenômeno. Tais recorrências acabam por assumir uma
regularidade, devido à frequência de uso, desencadeando na necessidade de revisão do padrão
gramatical, pois se a língua materializa o agir no mundo conforme as necessidades de
interação do homem, as normas gramaticais nesse contexto assumem um padrão de
vulnerabilidade, o que incide na evidência de sua revisão.
Baseando-nos nessas considerações, refletimos sobre as multifunções do item
linguístico E nas construções discursivas que são consideradas enquanto resultantes de um
processo de comunicação, em que os usos da língua têm reflexos nas experiências do mundo,
postulando as suas diversas facetas (social, cultural, política, etc.) cujo quadro que contempla
essas nuances serve de inspiração para uma gramática em constante reconstrução.
Na reflexão empírica dos dados percebemos que o item linguístico em discussão tem
um alto nível de articulação textual, mesmo sendo um prototípico coordenador aditivo. Essa
reflexão foi mediada por alguns estudos, referidos na revisão literária, que mostram uma
expansão linguística sobre os itens gramaticais que atingem o nível do texto e do discurso. Por
via dessa perspectiva nos pautamos no seguinte questionamento: Como se manifesta a
multifuncionalidade dos usos discursivos do E no gênero tira em quadrinhos? A partir disso,
consideramos também os seus significados e as implicações do gênero tira em quadrinhos
enquanto texto que representa uma manifestação dialógica, constituído por ricos processos de
linguagens.
Mediante a proposta de analisar as manifestações da multifuncionalidade dos usos
discursivos do item linguístico E, bem como o contexto de sua atuação no gênero tira em
quadrinhos que, como decorrência constitui-se considerações sobre os aspectos desse gênero,
tomamos como base três funções discursivas, Sequenciamento retroativo-propulsor,
Introduções de tópico discursivo e Focalização, sendo em alguns estudos, Penhavel (2009)
por exemplo, consideradas como pertencentes ao grupo dos marcadores discursivos. Na
análise destas também observamos seu grau aditivo e sua aplicabilidade no discurso do gênero
tira em quadrinhos.
120
O grupo dos marcadores discursivos pode ser considerado, conforme podemos
observar pelos dados, um grupo que apresenta menor intensidade aditiva, mesmo assim, cada
função mostrou-se na análise com uma representatividade no contínuo aditivo, sendo o
Sequenciamento retroativo-propulsor a função analisada de maior relevância, e ainda quanto
as suas subfunções se apresentaram com maior e menor incidência seguindo essa ordem de
mais aditivo para menos: sequenciação textual > sequenciação temporal > causa-
consequência. A sequenciação textual não correspondeu à expectativa inicial, que se fundava
na análise de Tavares (2007), de ser mais a frequente no gênero tira em quadrinhos. Contudo,
é justificável porque o trabalho da autora analisou quatro domínios discursivos, enquanto que
essa pesquisa se limitou à narrativa, sendo essa muito propícia para a recorrência da
sequenciação temporal, uma vez que, quase sempre, o processamento das ações numa
narrativa se sucede numa linha temporal.
A reflexão sobre os dados reunidas em torno de três funções discursivas do item
linguístico E demonstrou que a atuação desse item na articulação discursiva, cujos empregos,
figurados pela multifuncionalidade, expandem seu valor semântico aditivo para o âmbito de
um contínuo que abrange a continuidade e a ênfase, salientando que as funções que foram
postas nessa análise se afastam do valor inicial (sem abandoná-lo) e chegam a esses já
expandidos (continuidade e ênfase).
Quando o item linguístico atua na Introdução de tópico discursivo tem um valor
semântico aditivo intermediário, ora próximo à Sequenciação retroativo-propulsora, ora
próximo à Focalização.
A focalização se apresentou com menor probabilidade de valor aditivo, sendo as
vezes, quase imperceptível devido geralmente representar uma ruptura no encadeamento
linear do discurso.
O Sequenciamento retroativo-propulsor, essencialmente na sub-função sequenciação
textual é mais próxima do valor aditivo, apesar de não figurar num nível local, sua porção
textual que se articula no discurso é de fácil identificação. Contudo, nas demais sub-funções
(Sequenciação temporal e de causa-consequência) já não se pode dizer o mesmo devido aos
traços cognitivos que se incorporam na constituição das mesmas.
Na análise do gênero tiras em quadrinhos, constatou-se com frequência aquilo que
Votre (1997) chamou de deslizamento semântico, como resultado de itens polissêmicos,
sendo esta ocorrência um direcionamento natural para atender às demandas de novos usos. Os
121
signos polissêmicos só se distinguem com a colaboração do contexto em que a ocorrência
discursiva se encontra.
Outro ponto que se sobressaiu pelas análises foi quanto ao propósito comunicativo de
um texto, reafirmado como referência de codificações, resultando seja em quantidade de
informações, em ordenamento das ações do evento discursivo, seja na integração dos itens
codificados.
No gênero tira em quadrinhos as escolhas lexicais são pensadas por via da eficiência
comunicativa, devido à estruturação do gênero em ser linguisticamente condensado.
Verificamos na instauração das análises que esse gênero recorre bastante a mecanismos como
inferências, uso de anáforas e catáforas, relação entre as informações dadas e não dadas para
atribuir as significações.
Acreditamos que esta investigação possa instigar outras pesquisas no sentido de
analisar outras instâncias do objeto de estudo dessa, como a sua discursivização. Sendo que, a
expectativa é que as discussões levantadas neste trabalho demonstrem uma visualização dos
estudos funcionalistas em que a linguagem é atividade discursiva e cognitiva e a língua é tida
como um sistema de natureza contextual e aberto. Com tal perspectiva, pretende-se que possa
ser aliada a um senso de reflexão sobre a prática pedagógica do ensino de língua materna,
uma vez que, a multifuncionalidade expande a visão limitada, que há nas gramáticas e nos
livros didáticos, a respeito desse item em estudo, e também de outros.
Embora o ensino não seja alvo de investigação aqui, contudo espera-se atingi-lo, pois
o texto é objeto de ensino das aulas de Língua Portuguesa e como aferimos uma análise em
textos (gênero tira em quadrinhos), mantém assim, um elo direto com o contexto pedagógico.
Por tal fato, sentimos necessidade de fazer correlações que possam contribuir nessa dimensão,
pois uma das preocupações da linha teórica funcionalista é contribuir com o ensino de língua
materna, como forma de dar um retorno social as pesquisas.
Com isso, acreditamos que essa pesquisa pode trazer contribuições para o ensino de
língua portuguesa, haja vista elucidar uma análise que amplia a ideia de uso de um item
gramatical, para tanto é necessário considerar a linguagem como instrumento das práticas
sociais, cuja visão proveniente emana a possibilidade de desempenhar as funções da língua,
influenciada tanto por fatores internos quanto externos. Dito de forma mais específica, pelo
fato de fazer distinções entre os usos de um item linguístico (E), certamente, é uma forma de
mostrar uma gramática em processo, fundamento crucial nessa linha teórica adotada nessa
pesquisa.
122
Essa consideração resulta num alargamento do olhar sobre os fenômenos da língua.
Com relação ao item linguístico E, por esse trabalho explanar-lhe a relevância discursiva
conduz a não limitarmos à análise exclusivamente da gramática normativa, pensamento que
restringe sua função a coordenar termos e orações, por isso suas funções foram ampliadas
para o nível do texto.
Ter o texto como base do ensino de língua materna com o fim de desenvolver as
competências necessárias para as situações de interlocução é uma concepção bem enfática nos
PCN.
Ao eleger o nível textual-discursivo para orientar os significados, nessa pesquisa,
atribuimos às formas linguísticas uma atuação a partir do contexto que se situa. Desse modo,
reconhecer que o traço aditivo embora persistente se anexa a outros, como continuidade e
ênfase, é adotar no ensino um entendimento de maior dimensão, responsável por espelhar os
múltiplos ângulos que um fenômeno pode se manifestar. Essa visão aponta para um fazer
pedagógico produtivo podendo instigar o professor a investigar a língua em sala de aula com
vistas para seu funcionamento efetivo e real. O ensino nessa perspectiva oportuniza ao aluno o
conhecimento e o domínio de inúmeras possibilidades de empregos da língua.
A flexibilidade da língua intensifica essas formulações na busca de uma
sistematização a partir de dados do uso. Portanto, espera-se que esse trabalho possa ampliar as
discussões em torno dessa questão, os usos discursivos do E, ou ao menos, somar-se a tantos
no panorama da área de investigação, interagindo com alguns possíveis interlocutores na
expectativa de novos diálogos.
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