A Origem Da Especie Humana - Richard Leakey

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A Origem da Espcie Humana

A ORIGEM DA ESPCIE HUMANA

Richard Leakey

Traduo de ALEXANDRE TORT

Rio de Janeiro 1997

Ttulo original THE ORIGIN OF HUMANKIND Copyright 1994 by Richard Leakey e Orion Publishing Group Ltd.

O nome e a marca The Science Masters foram publicados com a autorizao de seu proprietrio John Brockman Associates, Inc.

Direitos mundiais para a lngua portuguesa reservados com exclusividade EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodrigo Silva, 26 5 andar 20011-040 Rio de Janeiro, RJ Tel.: 507-2000 Fax: 507-2244

Printed in Brasil - Impresso no Brasil

Reviso tcnica RUI CERQUEIRA

(Instituto de Biologia da UFRJ) CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Leakey, Richard E.

A origem da espcie humana / Richard Leakey; traduo de Alexandre Tort; coordenao editorial: Leny Cordeiro Rio de Janeiro: Rocco, 1995. (Cincia Atual) Traduo de: The origin of humankind

1. Evoluo humana. 2. Homem - Origem. 3. Pr-histria

I. Ttulo, n. Srie

CDD 575.01 95-0095 CDU 576.1

Sumrio

Prefcio .................................................................................... 9

1 - Os primeiros humanos ....................................................... 16

2 - Uma famlia numerosa ....................................................... 33

3 - Um tipo diferente de humano ............................................ 51

4 - Homem, o nobre caador? ................................................ 66

5 - A origem dos humanos modernos ..................................... 83

6 - A linguagem da arte ......................................................... 101

7 - A arte da linguagem ......................................................... 117

8 - A origem da mente .......................................................... 134

Bibliografia e leituras adicionais .............................................. 151

Prefcio

o sonho de todo antroplogo desenterrar um esqueleto completo de um ancestral humano primitivo. Para a maioria de ns, contudo, este sonho permanece irrealizado; os caprichos da morte, o enterro e a fossilizao conspiram para deixar um registro insuficiente, fragmentado da pr-histria humana Dentes e ossos isolados, fragmentos de crnios, geralmente so estas as pistas a partir das quais a histria da pr-histria humana deve ser reconstruda No nego a importncia destas pistas, embora sejam frustrantemente incompletas; sem elas haveria pouco a ser dito sobre a histria da pr-histria humana Tambm no descarto a excitao pura de sentir a presena fsica destas relquias modestas; elas so parte de nossa ascendncia, ligadas a ns por geraes incontveis feitas de carne e osso. Mas a descoberta de um esqueleto completo permanece como o prmio maior.

Em 1969, fui agraciado com uma sorte extraordinria. Tinha decidido explorar os depsitos de arenito que formam a vasta margem leste do lago Turkana, ao norte do Qunia minha primeira incurso independente na regio dos fsseis. Eu estava motivado por uma forte convico de que grandes descobertas de fsseis seriam feitas l, porque havia sobrevoado a regio um ano antes; percebi que os depsitos em camadas eram repositrios em potencial da vida primitiva embora muitos duvidassem de meu julgamento. O terreno era spero e o clima implacavelmente quente e seco; mais ainda, o cenrio tem o tipo de beleza feroz que me atrai.

Com o apoio da National Geographie Society, reuni uma pequena equipe incluindo Meave Epps, que mais tarde tornou-se minha esposa para explorar a regio. Uma manh, vrios dias aps a nossa chegada, Meave e eu estvamos retornando ao nosso acampamento de uma excurso curta de explorao por um atalho ao longo de um leito de rio seco, ambos sedentos e ansiosos em evitar o calor escorchante do meio-dia. De repente, vi diretamente nossa frente um crnio fossilizado, intacto, pousado sobre a areia alaranjada, as rbitas dos olhos fitando-nos inexpressivamente. Era inconfundivelmente humano na forma. Embora os anos decorridos tenham apagado de minha memria o que falei exatamente para Meave naquele instante, sei que expressei uma mistura de alegria e descrena sobre o que havamos encontrado.

O crnio, que imediatamente reconheci como o de um Australopithecus boisei, uma espcie humana h muito extinta, emergira recentemente dos sedimentos pelos quais o rio sazonal corria. Exposto luz do Sol pela primeira vez desde que os elementos o haviam enterrado h quase 1,75 milho de anos, o espcime era um dos poucos crnios humanos antigos intactos que at ento fora encontrado. Semanas aps a sua descoberta, as fortes chuvas encheriam o leito seco com uma corrente caudalosa; se Meave e eu no o tivssemos encontrado, a frgil relquia certamente teria sido destruda pela enchente. As chances de nos encontrarmos ali no momento certo de recuperar para a cincia o fssil h muito enterrado eram mnimas.

Por uma coincidncia curiosa, minha descoberta ocorreu uma dcada, quase no dia, aps minha me, Mary Leakey, ter encontrado um crnio similar na garganta Olduvai, na Tanznia. (Este crnio, entretanto, tornou-se um pavoroso quebra-cabea paleoltico; teve que ser reconstrudo a partir de centenas de fragmentos.) Aparentemente eu herdara a legendria sorte dos Leakey, desfrutada de modo notvel por Mary e meu pai, Louis. De fato, minha boa sorte continuou, na medida em que as expedies seguintes que conduzi ao lago Turkana descobriram muitos fsseis humanos mais, inclusive o crnio intacto do gnero Homo mais antigo de que se tem notcia, o ramo da famlia humana que finalmente deu origem aos humanos modernos, o ramo Homo sapiens.

Embora quando jovem eu tivesse jurado no me envolver com a caa aos fsseis desejando evitar viver sombra de meus mundialmente famosos pais , a magia pura do empreendimento atraiu-me para ele. Os antigos e ridos depsitos da frica Oriental que sepultam os restos de nossos ancestrais tm uma inegvel beleza especial; ainda assim, so tambm implacveis e perigosos. A procura de fsseis e de artefatos de pedra antigos muitas vezes apresentada como uma experincia romntica, e certamente possui seus aspectos romnticos, mas uma cincia na qual os dados devem ser recuperados a centenas ou milhares de quilmetros do conforto do laboratrio. um empreendimento fisicamente desafiador e exigente uma operao logstica da qual a segurana das vidas das pessoas depende algumas vezes. Descobri que tinha talento para organizar, para fazer com que as coisas fossem feitas em face de circunstncias pessoais e fsicas difceis. As muitas descobertas importantes na margem leste do lago Turkana no apenas atraram-me para uma profisso que um dia rejeitei com veemncia como tambm estabeleceram minha reputao nela. No obstante, o sonho maior um esqueleto completo continuou a escapar-me.

No final do vero de 1984, com nossas respiraes suspensas e nossa esperana sempre crescente temperada pela dura realidade da experincia, meus colegas e eu vimos este sonho comear a tomar forma. Naquele ano tnhamos decidido explorar pela primeira vez a margem oeste do lago. Em 23 de agosto, Kamoya Kimeu, meu amigo mais velho e colega, localizou um pequeno fragmento de um crnio antigo que jazia entre os seixos de uma encosta perto de uma ravina estreita que havia sido esculpida pela corrente sazonal. Cuidadosamente comeamos uma busca por mais fragmentos e em breve encontramos mais do que ousvamos esperar. Durante as cinco temporadas que se seguiram a este achado, significando mais de sete meses de trabalho de campo, nossa equipe removeu mais de 1.500 toneladas de sedimentos na busca intensa. Encontramos o que finalmente revelou ser virtualmente o esqueleto completo de um indivduo que morrera na margem deste lago antigo h mais de 1,5 milho de anos. Batizado por ns como o garoto de Turkana, mal completara nove anos quando morreu; a causa de sua morte permanece um mistrio.

Foi uma experincia verdadeiramente extraordinria desenterrar osso aps osso fossilizado: braos, pernas, vertebras, costelas, plvis, maxilar, dentes e mais fragmentos de crnio. O esqueleto do menino comeou a ganhar forma, reconstrudo como indivduo uma vez mais, depois de jazer em fragmentos por mais de 1,6 milho de anos. Nada to completo como este esqueleto pde ser encontrado nos registros de fsseis humanos at a poca do Neanderthal, h uns meros 100 mil anos. Independentemente da excitao emocional de tal descoberta, estvamos cientes de que ela prometia um grande entendimento de uma fase crtica da pr-histria humana.

Uma palavra, antes de prosseguir com a histria, sobre o jargo na antropologia. Algumas vezes a torrente de termos arcanos pode ser to intensa que desafia a compreenso de todos, exceto a dos profissionais mais dedicados. Evitarei este jargo tanto quanto possvel. Cada uma das vrias espcies de famlias humanas pr-histricas tem um rtulo cientfico isto , o nome de sua espcie e no podemos evitar a utilizao destes. A famlia humana de espcies tem seu prprio rtulo tambm: homindea.

Alguns de meus colegas preferem utilizar o termo homindeo para todas as espcies humanas ancestrais. A palavra humano, argumentam eles, deveria ser utilizada para nos referirmos apenas a pessoas como ns. Em outras palavras, os nicos homindeos que podem ser designados como humanos so aqueles que exibem nosso prprio grau de inteligncia, senso moral, e profundidade de conscincia introspectiva.

Tenho um ponto de vista diferente. Parece-me que a evoluo da locomoo ereta, que distinguiu os homindeos antigos de outros macacos de seu tempo, foi fundamental para a histria humana subseqente. Uma vez que nosso ancestral distante tornou-se um macaco bpede, muitas outras inovaes evolutivas tornaram-se possveis, com o aparecimento definitivo do Homo. Por esta razo, acredito ser justificado chamar todas as espcies de homindeos de humanos. Com isto no quero dizer que todas as espcies humanas antigas vivenciaram os mundos mentais que conhecemos hoje. Em seu nvel mais bsico, a designao humano refere-se simplesmente aos macacos que caminhavam de modo ereto macacos bipdes. Nas pginas seguintes adotarei este uso, e indicarei quando o estarei utilizando para descrever aspectos que caracterizem apenas o homem moderno.

O garoto de Turkana era um membro da espcie Homo erectus uma espcie de suma importncia na histria da evoluo humana. A partir de linhas de indcios diferentes alguns genticos, alguns fsseis , sabemos que a primeira espcie humana evoluiu h cerca de 7 milhes de anos. Na poca em que o Homo erectus surgiu em cena, h quase 2 milhes de anos, a pr-histria humana j estava em marcha. No sabemos ainda como muitas espcies humanas viveram e morreram antes do aparecimento do Homo erectus; houve pelo menos seis, e talvez o dobro deste nmero. Entretanto, sabemos de fato que todas as espcies humanas que viveram antes do Homo erectus eram, embora bipdes, marcadamente simiescas em muitos aspectos. Elas tinham crebros relativamente pequenos, suas maxilas eram prognatas (isto , projetavam-se para a frente), e a forma de seus corpos era mais simiesca do que humana em aspectos particulares, tais como o peito em forma afunilada, pescoo pequeno e nenhuma cintura. No Homo erectus, o tamanho do crebro aumentou, a face tornou-se mais achatada, e o corpo adquiriu uma constituio mais atltica. A evoluo do Homo erectus trouxe com ela muitas das caractersticas fsicas que reconhecemos em ns mesmos: a pr-histria humana evidentemente sofreu uma grande reviravolta h 2 milhes de anos.

O Homo erectus foi a primeira espcie humana a utilizar o fogo; a primeira a incluir a caa como uma parte significativa de sua subsistncia; a primeira capaz de correr como os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra de acordo com um padro definido; a primeira a estender seus domnios para alm da frica. No sabemos de forma definitiva se o Homo erectus possua algum tipo de linguagem falada, mas diversas linhas de indcios sugerem isto. E no sabemos, e provavelmente no saberemos nunca, se estas espcies tinham algum grau de autopercepo, uma conscincia humanide, mas minha suposio de que a tinham. Desnecessrio dizer, linguagem e conscincia, que esto entre os aspectos mais valorizados do Homo sapiens, no deixam traos nos registros pr-histricos.

O objetivo do antroplogo compreender os eventos evolutivos que transformaram uma criatura semelhante ao macaco em gente como ns. Estes eventos tm sido descritos, romanticamente, como um grande drama, com a humanidade emergindo como a grande herona da histria. A verdade provavelmente bastante prosaica, com modificaes climticas e ecolgicas em vez de aventuras picas conduzindo as transformaes. As transformaes no prendem menos nossa ateno por causa disto. Como espcie, somos agraciados com uma curiosidade sobre o mundo da natureza e nosso lugar nele. Queremos saber precisamos saber como nos tornamos o que somos, e qual o nosso futuro. Os fsseis que descobrimos ligam-nos fisicamente ao nosso passado e desafiam-nos a interpretar as pistas que eles encerram como uma maneira de compreender a natureza e o curso de nossa histria evolutiva.

At que muitas relquias mais tenham sido desenterradas e analisadas, nenhum antroplogo pode ficar de p e declarar: Isto foi assim, com todos os detalhes. H, contudo, uma boa dose de concordncia entre os pesquisadores sobre a forma geral da pr-histria humana. Nela, quatro etapas-chave podem ser identificadas com toda a confiana.

A primeira foi a origem da famlia humana propriamente dita, h cerca de 7 milhes de anos, quando espcies semelhantes aos macacos com um modo de locomoo bpede, ou ereta, evoluram. A segunda etapa foi a da proliferao das espcies bpedes, um processo que os bilogos chamam irradiao adaptativa. Entre 7 e 2 milhes de anos atrs, muitas espcies diferentes de macacos bipdes evoluram, cada uma adaptada a circunstncias ecolgicas ligeiramente diferentes. Em meio a esta proliferao de espcies humanas houve uma, entre 3 e 2 milhes de anos atrs, que desenvolveu um crebro significativamente maior. A expanso em tamanho do crebro marca a terceira etapa e sinaliza a origem do gnero Homo, o ramo da rvore humana que levou ao Homo erectus e finalmente ao Homo sapiens. A quarta etapa foi a origem dos humanos modernos a evoluo de gente como ns, completamente equipada com linguagem, conscincia, imaginao artstica, e inovaes tecnolgicas jamais vistas antes em qualquer parte da natureza.

Estes quatro eventos-chave fornecem a estrutura da narrativa cientfica das pginas que vm a seguir. Como ficar evidente, no nosso estudo da pr-histria humana estamos comeando a perguntar-nos no apenas o que aconteceu, e quando, mas tambm por que as coisas aconteceram. Ns e nossos ancestrais estamos sendo estudados no contexto de um cenrio evolutivo em desdobramento, do mesmo modo que estudamos a evoluo dos elefantes ou dos cavalos. Isto no negar que o Homo sapiens seja de muitos modos especial: muita coisa nos separa mesmo do nosso parente evolutivo mais prximo, o chimpanz, mas comeamos a entender nossa relao com a natureza no sentido biolgico.

As trs dcadas passadas testemunharam tremendos avanos na nossa cincia, resultado de descobertas sem precedentes de fsseis e de modos inovadores de interpretao e integrao das pistas que vemos neles. Como todas as cincias, a antropologia sujeita a diferenas de opinio honestas, e algumas vezes vigorosas, entre os seus praticantes. Estas algumas vezes originam-se de dados insuficientes, na forma de fsseis e artefatos de pedra, e algumas vezes das inadequaes dos mtodos de interpretao. Portanto, h muitas questes importantes sobre a histria humana para as quais no h respostas definitivas, tais como: qual a forma precisa da rvore da famlia humana?

Quando a linguagem falada sofisticada comeou a evoluir? O que provocou o aumento dramtico no tamanho do crebro na pr-histria humana? Nos captulos seguintes, indicarei onde, e por que, as diferenas de opinio existem, e algumas vezes esboarei minhas prprias preferncias.

Tive a boa sorte de colaborar com muitos colegas excelentes por mais de duas dcadas de trabalho antropolgico, pelo que sou grato. A dois deles Kamoya Kimeu e Alan Walker gostaria de agradecer de modo especial. Minha esposa, Meave, tem sido uma colega e amiga das mais extraordinrias, particularmente nas pocas mais difceis.

1 - Os primeiros humanos

Os antroplogos h muito tm se mostrado fascinados com as qualidades especiais do Homo sapiens, tais como a linguagem, as altas habilidades tecnolgicas e a capacidade de fazer julgamentos ticos. Mas uma das mudanas mais significativas dos anos recentes tem sido o reconhecimento de que, a despeito destas qualidades, nossa ligao com os macacos africanos realmente muito ntima. Como esta importante mudana intelectual surgiu? Neste captulo discutirei como as idias de Charles Darwin a respeito da natureza especial das espcies humanas primordiais influenciaram os antroplogos por mais de um sculo e como novas pesquisas revelaram nossa intimidade evolutiva com os macacos africanos e exigem nossa aceitao de uma viso muito diferente do nosso lugar na natureza.

Em 1859, no seu livro A origem das espcies* Darwin cuidadosamente evitou extrapolar as implicaes da evoluo para os humanos. Uma frase cautelosa foi adicionada nas edies posteriores: A origem do homem e sua histria sero esclarecidas. Em um livro subseqente, A descendncia do homem, publicado em 1871, Darwin detalhou o contedo desta frase curta. Voltando-se para um assunto que ainda era muito delicado, ele efetivamente erigiu dois pilares na estrutura terica da antropologia, O primeiro tem a ver com o lugar onde os humanos primeiramente evoluram (inicialmente poucos lhe deram crdito, mas ele estava certo), e o segundo diz respeito maneira ou forma dessa evoluo. A verso de Darwin da maneira pela qual a nossa evoluo aconteceu dominou a cincia da antropologia at poucos anos atrs, e revelou-se errada.

O bero da humanidade, disse Darwin, a frica. Seu raciocnio era simples:

Em cada grande regio do mundo, os mamferos vivos esto intimamente relacionados com as espcies que evoluram desta mesma regio. Portanto, provvel que a frica tenha sido habitada anteriormente por macacos extintos intimamente relacionados com o gorila e o chimpanz: e como estas duas espcies so agora as que se relacionam mais de perto com o homem, de algum modo mais provvel que nossos progenitores primordiais tivessem vivido no continente africano do que em outro lugar.

Devemos lembrar que, quando Darwin escreveu estas palavras, nenhum fssil humano primordial tinha sido encontrado em qualquer lugar; sua concluso era inteiramente baseada em teorias. Na poca de Darwin, os nicos fsseis humanos conhecidos eram do homem de Neanderthal, na Europa, e estes representam um estgio relativamente tardio da evoluo humana.

Os antroplogos no gostaram nada da sugesto de Darwin, porque a frica tropical era olhada com desdm colonialista: o Continente Negro no era visto como um lugar apropriado para a origem de uma criatura to nobre como o Homo sapiens. Quando mais fsseis humanos comearam a ser descobertos na Europa e na sia na virada do sculo, mais zombarias foram lanadas sobre a idia de uma origem africana, Esta atitude prevaleceu por dcadas. Em 1931, quando meu pai disse aos seus mentores na Universidade de Cambridge que planejava procurar as origens humanas no leste da frica, recebeu uma presso enorme para em vez disto concentrar sua ateno sobre a sia. A convico de Louis Leakey era parcialmente baseada no argumento de Darwin e parcialmente, sem dvida alguma, no fato de que ele havia nascido e sido criado no Qunia. Ele ignorou o conselho dos estudiosos de Cambridge e conseguiu estabelecer a frica Oriental como uma regio vital na histria da nossa evoluo primordial. A veemncia do sentimento anti-frica dos antroplogos parece agora estranha para ns, dado o vasto nmero de fsseis humanos primordiais que tem sido recuperado neste continente nos anos recentes. O episdio tambm um lembrete de que os cientistas so muitas vezes levados tanto pela emoo quanto pela razo.

A segunda grande concluso de Darwin em A descendncia do homem foi que as importantes caractersticas que distinguem os humanos bipedismo, tecnologia e crebro grande evoluram em conjunto. Darwin escreveu:

Se uma vantagem para o homem ter suas mos e braos livres e ficar firmemente ereto sobre seus ps, (...) ento no vejo razo por que no teria sido mais vantajoso para os progenitores do homem terem se tornado mais e mais eretos ou bipdes. As mos e os braos no poderiam ter se tornado suficientemente perfeitos para manufaturar armas, ou atirar pedras e lanas com pontaria precisa, enquanto fossem habitualmente utilizados para suportar o peso total do corpo... ou enquanto fossem especialmente adaptados para subir nas rvores.

Aqui, Darwin estava argumentando que a evoluo de nosso modo fora do comum de locomoo era diretamente ligado manufatura de armas de pedra. Ele foi mais longe e relacionou estas transformaes evolutivas com a origem dos dentes caninos nos humanos, que eram insolitamente pequenos se comparados com os caninos pontiagudos dos macacos. Os ancestrais primevos do homem eram (...) provavelmente providos de grandes dentes caninos, escreveu ele em vi descendncia do homem; mas, medida que gradualmente adquiriram o hbito de usar pedras, bastes ou outras armas para combater seus inimigos ou rivais, eles poderiam utilizar suas mandbulas e dentes cada vez menos. Neste caso, as mandbulas, junto com os dentes, tomar-se-iam reduzidas em tamanho.

Estas criaturas bipdes que manejavam armas desenvolveram uma interao social mais intensa, que exigia mais intelecto, argumentou Darwin. E quanto mais inteligentes nossos ancestrais se tornavam, maior era a sua sofisticao tecnolgica e social, o que por sua vez exigia um intelecto ainda maior. E assim por diante, medida que a evoluo de cada aspecto realimentava-se dos outros. Esta hiptese de evoluo correlacionada era um cenrio muito claro para as origens humanas, e tornou-se fundamental para o desenvolvimento da cincia da antropologia.

De acordo com este cenrio, a espcie humana era mais do que simplesmente um macaco bpede; ela j possua algumas caractersticas que valorizamos no Homo sapiens. A imagem era to poderosa e plausvel que os antroplogos foram capazes de tecer hipteses persuasivas em torno dela por muito tempo. Mas o cenrio projetou-se para alm da cincia: se a diferenciao evolutiva dos humanos em relao aos macacos foi ao mesmo tempo abrupta e antiga, uma distncia considervel foi posta entre ns e o restante da natureza. Para aqueles que tm a convico de que o Homo sapiens um tipo fundamentalmente diferente de criatura, este ponto de vista oferece consolo.

Esta convico era muito comum entre os cientistas do tempo de Darwin, e deste sculo tambm. Por exemplo, o naturalista ingls do sculo XIX Alfred Russel Wallace que tambm inventou a teoria da seleo natural, independente de Darwin recusou-se a aplicar a teoria queles aspectos da humanidade que mais valorizamos. Ele considerava os humanos demasiado inteligentes, refinados, sofisticados, para terem sido o produto de simples seleo natural. Caadores e coletores primitivos no teriam tido necessidade biolgica destas qualidades, raciocinava ele, e deste modo no poderiam ter surgido pela seleo natural. A interveno sobrenatural, achava ele, deve ter concorrido para fazer os humanos to especiais. A falta de convico de Wallace no poder da seleo natural deixou Darwin muito abalado.

O paleontlogo escocs Robert Broom, cujo trabalho pioneiro na frica do Sul nos anos 30 e 40 ajudou a estabelecer a frica como o bero da humanidade, tambm expressou pontos de vista fortes em relao distino humana. Ele acreditava que o Homo sapiens era o produto final da evoluo e que o resto da natureza havia sido moldada para seu conforto. Como Wallace, Broom buscava foras sobrenaturais na origem da nossa espcie.

Cientistas como Wallace e Broom debatiam-se entre foras conflitantes, uma intelectual, outra emocional. Eles aceitavam o fato de que o Homo sapiens originava-se em ltima instncia da natureza pelo processo de evoluo, mas sua crena na espiritualidade essencial, ou essncia transcendente, da humanidade levou-os a construir para a evoluo explicaes que mantinham a distino humana. O pacote evolutivo corporificado na descrio de Darwin de 1871 das origens humanas oferecia esta racionalizao. Embora Darwin no invocasse uma interveno sobrenatural, j no comeo seu cenrio evolutivo tornou os humanos diferentes dos simples macacos.

O argumento de Darwin exerceu sua influncia at pouco mais de uma dcada atrs, e foi efetivamente responsvel por uma grande discusso sobre quando os humanos apareceram pela primeira vez. Descreverei o incidente brevemente, porque ele ilustra a seduo da hiptese de Darwin de evoluo correlacionada. Ele tambm marca o fim de sua influncia sobre o pensamento antropolgico.

Em 1961, Elwyn Simons, ento na Universidade Yale, publicou um trabalho que tornou-se um marco cientfico e no qual ele anunciou que uma pequena criatura semelhante ao macaco, chamada Ramapithecus, foi a primeira espcie de homindeo. Os nicos restos fsseis do Ramapithecus conhecidos na poca eram partes de um maxilar superior que tinham sido descobertas por um jovem pesquisador de Yale, G. Edward Lewis, na ndia em 1932. Simons viu que os dentes laterais (os molares e pr-molares) eram de alguma forma humanoides. E viu que os caninos eram mais curtos e rombudos do que os dos macacos. Simon tambm afirmou que a reconstituio de um maxilar superior incompleto mostraria que ele era humanide na forma isto , um arco, alargando-se suavemente para trs e no uma forma em U, como nos macacos modernos.

Nesta poca, David Pilbeam, um antroplogo britnico da Universidade de Cambridge, uniu-se a Simon em Yale, e juntos eles descreveram estas caractersticas anatmicas supostamente humanoides do maxilar do Ramapithecus. Eles foram mais longe do que a anatomia, contudo, e sugeriram, com base apenas nos fragmentos de maxilar, que o Ramapithecus caminhava ereto sobre os dois ps, caava e vivia em um meio ambiente social complexo. Seu raciocnio era semelhante ao de Darwin: a presena de uma suposta caracterstica humana (a forma dos dentes) implicava a existncia das restantes. Assim, o que se pensava ser a primeirssima espcie de homindeo comeou a ser vista como um animal cultural isto , como uma verso primitiva dos humanos modernos em vez de um macaco aculturado.

Os sedimentos a partir dos quais os fsseis do Ramapithecus original foram recuperados eram antigos, como aqueles que forneceram descobertas similares subseqentes na sia e na frica. Simons e Pilbeam concluram portanto que os primeiros humanos apareceram h pelo menos 15 milhes de anos, e possivelmente h 30 milhes de anos, e este ponto de vista foi aceito pela grande maioria dos antroplogos. Mais ainda, a crena em uma origem to antiga colocou uma distncia confortvel entre os humanos e o resto da natureza, que muitos acharam bem-vinda.

No final dos anos 60, dois bioqumicos da Universidade da Califrnia, em Berkeley, Allan Wilson e Vincent Sarich, chegaram a uma concluso muito diferente sobre quando a primeira espcie humana evoluiu. Em vez de trabalhar com fsseis, eles compararam a estrutura de certas protenas sangneas de seres humanos vivos e dos macacos africanos. Seu objetivo era determinar o grau de diferena estrutural entre as protenas humanas e as dos macacos uma diferena que deveria aumentar, em conseqncia das mutaes, com uma taxa calculvel em relao ao tempo. Quanto mais tempo os humanos e os macacos tivessem se apresentado como espcies diferentes, maior o nmero de mutaes que teriam sido acumuladas. Wilson e Sarich calcularam a taxa de mutaes e foram portanto capazes de utilizar seus dados sobre as protenas do sangue como um relgio molecular.

De acordo com o relgio, a primeira espcie humana evoluiu h apenas uns 5 milhes de anos, uma descoberta que estava em discordncia dramtica com os 15 a 30 milhes de anos da teoria antropolgica dominante. Os dados de Wilson e Sarich tambm indicaram que as protenas do sangue em humanos, chimpanzs e gorilas so igualmente diferentes umas das outras. Em outras palavras, algum tipo de evento evolutivo h 5 milhes de anos provocou a ramificao de um ancestral comum em trs direes simultaneamente uma ramificao que conduziu evoluo no somente dos humanos modernos mas tambm dos chimpanzs e gorilas modernos. Isto tambm era contraditrio com o que a maioria dos antroplogos acreditava. De acordo com o conhecimento convencional, chimpanzs e gorilas so os parentes mais prximos uns dos outros, com os humanos afastados a uma grande distncia Se a interpretao dos dados moleculares era vlida, ento os antroplogos teriam que aceitar uma relao biolgica muito mais prxima entre humanos e macacos do que a maioria acreditava.

Uma disputa feroz eclodiu, com os antroplogos e os bioqumicos criticando as tcnicas profissionais uns dos outros com o uso dos termos mais duros. A concluso de Wilson e Sarich foi criticada com base, entre outras coisas, no fato de que seu relgio molecular era errtico e portanto no poderia ser confivel para fornecer um tempo preciso para os eventos evolutivos passados. Por sua vez, Wilson e Sarich argumentaram que os antroplogos davam importncia interpretativa em demasia a caractersticas anatmicas pequenas e fragmentadas, e eram assim conduzidos a concluses invlidas. Na poca fiquei ao lado da comunidade dos antroplogos, acreditando que Wilson e Sarich estavam errados.

O debate durou por mais de uma dcada, durante a qual mais e mais indcios moleculares foram apresentados por Wilson e Sarich e tambm de modo independente por outros pesquisadores. A grande maioria destes novos dados apoiava a alegao original de Wilson e Sarich. O peso deste indcio comeou a mudar a opinio dos antroplogos, mas a mudana era lenta. Finalmente, no comeo dos anos 80, descobertas de espcimens muito mais completos de fsseis semelhantes ao Ramapithecus, por Pilbeam e sua equipe no Paquisto e por Peter Andrews, do Museu de Histria Natural de Londres, e seus colegas na Turquia, resolveram a disputa (ver figura 1.1).

Os fsseis de Ramapithecus originais so na verdade humanides em alguns aspectos, mas a espcie no era humana. A

tarefa de inferir um elo evolutivo com base em indcio extremamente fragmentado muito mais difcil do que a maioria das pessoas percebe, e h muitas armadilhas para os incautos. Simons e Pilbeam haviam cado em uma dessas armadilhas: a similaridade anatmica no implica de modo unvoco uma relao evolutiva. Os espcimens mais completos encontrados no Paquisto e na Turquia revelaram que as supostas caractersticas humanides eram superficiais. A mandbula do Ramapithecus tinha a forma de um V e no a de um arco; esta e outras caractersticas indicavam que ele era uma espcie de macaco primitivo (a mandbula do macaco moderno tem a forma de um U). O Ramapithecus vivera nas rvores, como seu parente posterior, o orangotango, e no era um macaco bpede, muito menos um caador-coletor primitivo. Mesmo os antroplogos mais aferrados sua viso do Ramapithecus como homindeo ficaram convencidos pelos novos indcios de que estavam errados e que Wilson e Sarich estavam certos: a primeira espcie de macaco bpede, o membro fundador da famlia humana, evolura em pocas relativamente recentes e no em um passado muito distante.

Embora em sua publicao original Wilson e Sarich tenham proposto uma data h 5 milhes de anos para este evento, hoje indcios moleculares consensuais fizeram-na retroceder para quase 7 milhes de anos. Entretanto, no tem havido recuos com relao intimidade biolgica proposta entre os humanos e os macacos africanos. Ao contrrio, esta relao pode ser muito mais ntima do que tem sido suposta. Embora alguns geneticistas acreditem que os dados moleculares ainda impliquem uma ramificao igual e trplice entre humanos, chimpanzs e gorilas, outros vem isto de modo diferente. Do seu ponto de vista, humanos e chimpanzs so os parentes mais prximos uns dos outros, com os gorilas situados a uma distncia evolutiva maior.

O caso do Ramapithecus mudou a antropologia de duas maneiras. Primeiro, demonstrou os perigos da inferncia de uma relao evolutiva em comum a partir de caractersticas anatmicas em comum. Segundo, exps a loucura de uma aderncia cega ao pacote darwiniano. Simons e Pilbeam imputaram um estilo de vida completo ao Ramapithecus, com base na forma dos dentes caninos: se havia uma caracterstica homindea, supunha-se que todas estas caractersticas estavam presentes. Como conseqncia da eroso do status de homindeo do Ramapithecus, os antroplogos comearam a ficar inseguros em relao ao pacote darwiniano.

Antes de seguir o curso desta revoluo antropolgica, deveramos examinar brevemente algumas das hipteses que no decorrer dos anos tm sido propostas para explicar como a primeira espcie de homindeos poderia ter surgido. interessante notar que cada hiptese nova que ganhava popularidade refletia muitas vezes alguma coisa do clima social da poca. Por exemplo, Darwin via a elaborao de armas de pedra como importante para abrir o pacote evolutivo da tecnologia, bipedismo e tamanho do crebro grande. A hiptese certamente refletia a noo predominante de que a vida era uma batalha e avanos eram obtidos com iniciativa e esforo. Este esprito vitoriano permeava a cincia, e determinou o modo pelo qual o processo de evoluo, incluindo a evoluo humana, era visto.

Nas primeiras dcadas deste sculo, os dias de glria do otimismo eduardiano, afirmava-se que o crebro e seus processos mentais superiores haviam nos transformado no que somos. Dentro da antropologia, esta viso social abrangente era expressa na noo de que a evoluo humana tinha sido propelida inicialmente no pelo bipedismo mas por um crebro em expanso. Nos anos 40, o mundo estava enfeitiado com a magia e o poder da tecnologia, e a hiptese do Homem, o Fabricante de Artefatos tornou-se popular. Proposta por Kenneth Oakley, do Museu de Histria Natural de Londres, esta hiptese sustentava que a fabricao e a utilizao de artefatos de pedra no armas dava o impulso nossa evoluo. E quando o mundo estava nas sombras da Segunda Guerra Mundial, uma diferenciao mais sombria entre os humanos e os macacos foi enfatizada a da violncia contra seus semelhantes. A noo de Homem, o Macaco Assassino, primeiramente proposta pelo anatomista australiano Raymond Dart, ganhou amplo apoio, possivelmente porque parecia explicar (ou mesmo desculpar) os horrveis eventos da guerra.

Mais tarde, nos anos 60, os antroplogos voltaram-se para o modo de vida do caador-coletor como chave para as origens humanas. Diversas equipes de pesquisadores vinham estudando as populaes modernas de povos tecnologicamente primitivos, particularmente na frica, a mais notvel das quais eram os !Kung San (incorretamente chamados de bosqumanos). Disto emergiu uma imagem de um povo em harmonia com a natureza, explorando-a de diversas maneiras ao mesmo tempo em que a respeitava. Esta viso da humanidade coincidia com o ambientalismo da poca, mas, de qualquer modo, os antroplogos estavam impressionados pela complexidade e segurana econmica da economia mista de caa e coleta. A caa, porm, era o que foi enfatizado. Em 1966, uma importante conferncia antropolgica qual se deu o nome de Homem, o Caador foi realizada na Universidade de Chicago. A idia dominante no encontro era simples: a caa fez dos humanos humanos.

Na maioria das sociedades tecnologicamente primitivas, a caa geralmente uma responsabilidade masculina No surpresa, portanto, que a crescente percepo das questes femininas nos anos 70 colocasse em dvida esta explicao das origens humanas centralizada no homem. Uma hiptese alternativa, conhecida como Mulher, a Coletora, sustentava que em todas as espcies de primatas o ncleo da sociedade era o elo entre a fmea e a prole. E foi a iniciativa das fmeas humanas em inventar tecnologias e coletar alimentos (principalmente vegetais) que podiam ser compartilhados por todos que conduziu formao de uma sociedade humana complexa. Pelo menos assim se dizia.

Embora estas hipteses diferissem no que era considerado o agente principal da evoluo humana, todas tm em comum a noo de que o pacote darwiniano contendo certas caractersticas humanas valorizadas era aceito bem no comeo: ainda pensava-se na primeira espcie de homindeos como tendo algum grau de bipedismo, tecnologia e tamanho do crebro aumentado. Os homindeos eram portanto criaturas culturais e assim diferentes do restante da natureza desde o incio. Nos anos recentes, reconhecemos que este no o caso.

De fato, indcio concreto da inadequao da hiptese darwiniana foi encontrado nos registros arqueolgicos. Se o pacote darwiniano estivesse correto, ento poderamos esperar ver a apario simultnea nos registros arqueolgicos e fsseis de indcios de bipedismo, tecnologia e tamanho do crebro aumentado. Isto no acontece. Apenas um aspecto dos registros pr-histricos suficiente para mostrar que a hiptese est errada: o registro dos artefatos de pedra

Ao contrrio dos ossos, que muito raramente tornam-se fossilizados, os artefatos de pedra so virtualmente indestrutveis. Muitos dos registros pr-histricos so portanto constitudos por eles, e so indcios sobre os quais o progresso da tecnologia inferido.

Os exemplos mais antigos de tais artefatos lminas grosseiras, raspadeiras e talhadeiras feitas de seixos dos quais algumas lascas foram tiradas aparecem nos registros de cerca de 2,5 milhes de anos atrs. Se o indcio molecular estiver correto e a primeira espcie humana apareceu h uns 7 milhes de anos, ento quase 5 milhes de anos se passaram entre a poca em que nossos ancestrais se tornaram bipdes e a poca em que comearam a fazer artefatos de pedra. Qualquer que seja a fora evolutiva que produziu um macaco bpede, esta no era relacionada com a habilidade de fazer e utilizar ferramentas. Entretanto, muitos antroplogos acreditam que o advento da tecnologia h 2,5 milhes de anos realmente coincidiu com o comeo da expanso do crebro.

A compreenso de que a expanso do crebro e a tecnologia so separadas no tempo das origens humanas forou os antroplogos a repensar sua abordagem. Como conseqncia, as ltimas hipteses tm sido formuladas em termos biolgicos em vez de culturais. Considero isto um desenvolvimento saudvel para a profisso porque pelo menos permite que as idias sejam testadas comparando-as com o que sabemos da ecologia e do comportamento de outros animais. Ao fazer isto, no temos que negar que o Homo sapiens possui muitos atributos especiais. Ao contrrio, procuramos pelo surgimento destes atributos a partir de um contexto estritamente biolgico.

Com esta compreenso, a tarefa do antroplogo de explicar as origens humanas foi redirecionada para a origem do bipedismo. Mesmo reduzida a este nico evento, a transformao evolutiva no foi trivial, como observou Owen Lovejoy, anatomista da Kent State University. A passagem para o bipedismo uma das mudanas mais impressionantes que podemos ver na biologia evolutiva, escreveu ele em um artigo popular em 1988. H mudanas importantes nos ossos, na disposio dos msculos que os movimentam, e no movimento dos membros. Uma olhada na plvis dos humanos e dos chimpanzs suficiente para confirmar esta observao: nos humanos, a plvis achatada e em forma de caixa, enquanto que nos chimpanzs ela alongada; e h tambm diferenas importantes nos membros e no tronco (ver figura 1.2).

O advento do bipedismo no somente uma importante transformao biolgica mas tambm uma importante transformao adaptativa. Como argumentei no prefcio, a origem da locomoo bipde uma adaptao to significativa que justificvel chamarmos todas as espcies de macacos bipdes humanos. Isto no significa dizer que as primeiras espcies bipdes possuam algum grau de tecnologia, intelecto desenvolvido, ou qualquer dos atributos culturais da humanidade. Isto no aconteceu. Meu ponto de vista que a adoo do bipedismo era to carregada de potencial evolutivo permitindo aos membros superiores a liberdade de se tornarem um dia implementos manipulativos que sua importncia deveria ser reconhecida na nossa nomenclatura. Estes humanos no eram como ns, mas sem a adaptao ao bipedismo no poderiam ter-se tornado como ns.

Quais foram os fatores evolutivos que promoveram esta forma nova de locomoo no macaco africano? A imagem popular das origens humanas muitas vezes inclui a noo de uma criatura simiesca abandonando as florestas e dirigindo-se para as savanas abertas. Uma imagem dramtica sem dvida, mas completamente errnea, como foi recentemente demonstrado por pesquisadores das universidades de Harvard e Yale que analisaram a qumica do solo em muitas partes do leste da frica. As savanas africanas, com suas grandes hordas migratrias, so relativamente recentes no ambiente, tendo se desenvolvido h menos de 3 milhes de anos, muito depois de a primeira espcie humana ter evoludo.

Se levarmos nossa imaginao de volta para uma frica de 15 milhes de anos atrs, encontraremos um tapete de florestas estendendo-se do oeste para o leste, abrigo de uma grande diversidade de primatas, inclusive muitas espcies de pequenos e grandes macacos. Em contraste com a situao de hoje, as espcies de grandes macacos superavam as espcies dos pequenos. Entretanto, foras geolgicas que alterariam dramaticamente o terreno e seus ocupantes nos prximos milhes de anos estavam prontas para entrar em ao.

Por baixo da parte leste do continente, a crosta da Terra estava se separando em duas partes, em uma linha que ia do Mar Vermelho, atravs da Etipia, Qunia, Tanznia, at Moambique. Como conseqncia, o terreno elevou-se em erupes como na Etipia e no Qunia, formando grandes montanhas de mais de 3.000 metros de altitude. Estes grandes domos transformaram no apenas a topografia do continente mas tambm o seu clima. Perturbando as correntes areas no sentido oeste-leste que eram uniformes, os domos colocaram as terras a leste sob condies de pouca chuva, impedindo a manuteno das florestas midas. A cobertura contnua de rvores comeou a fragmentar-se, deixando um ambiente dividido em um mosaico de florestas, bosques e arbustos. Campos limpos, porm, eram ainda raros.

H cerca de 12 milhes de anos, a ao contnua das foras tectnicas mudou mais ainda o ambiente, com a formao de um vale longo e sinuoso, que se estende do norte para o sul, conhecido como o Vale da Grande Fenda. A existncia do Vale da Grande Fenda teve dois efeitos biolgicos: ele coloca uma formidvel barreira na direo leste-oeste s populaes animais; e promove mais ainda o desenvolvimento de um rico mosaico de condies ecolgicas.

O antroplogo francs Yves Coppens acredita que a barreira leste-oeste foi crucial para a evoluo separada dos humanos e dos outros grandes macacos. Por fora das circunstncias, a populao dos ancestrais comuns dos humanos e grandes macacos (...) encontrou-se dividida, escreveu ele recentemente. Os descendentes ocidentais destes ancestrais comuns prosseguiram sua adaptao vida em um meio arborfero e mido; estes so os grandes macacos. Os descendentes orientais destes mesmos ancestrais comuns, ao contrrio, inventaram um repertrio completamente novo para adaptar-se sua nova vida em um ambiente aberto: estes so os humanos. Coppens chama este cenrio de East Side Story.*

O vale tem regies montanhosas dramticas com plats florestais de temperatura amena, encostas ngremes de mil metros que terminam em baixadas quentes e ridas. Os bilogos perceberam que ambientes variados desse tipo, que apresentam muitos tipos diferentes de habitats, conduzem inovao evolutiva. Populaes de uma espcie que antes eram amplamente disseminadas e contnuas podem tornar-se isoladas e expostas a novas foras de seleo natural. Esta a receita da transformao evolutiva. Algumas vezes esta transformao leva ao esquecimento, se o ambiente favorvel desaparece. Este, certamente, foi o destino da maioria dos macacos africanos: apenas trs espcies existem hoje o gorila, o chimpanz comum e o chimpanz pigmeu. Mas, enquanto a maioria dos macacos sofreu com a mudana ambiental, um deles foi agraciado com uma nova adaptao que lhe permitiu sobreviver e prosperar. Este foi o primeiro macaco bpede. Ser bpede conferiu-lhe claramente vantagens importantes na luta pela sobrevivncia em condies variveis. O trabalho dos antroplogos descobrir quais eram estas vantagens.

Os antroplogos tendem a ver a importncia do bipedismo na evoluo humana de duas maneiras: uma escola enfatiza a liberao dos membros dianteiros que possibilita o transporte de coisas; a outra enfatiza o fato de que o bipedismo um modo de locomoo mais eficiente do ponto de vista energtico, e v a habilidade de transportar coisas simplesmente como um derivado fortuito da postura ereta.

A primeira destas duas hipteses foi proposta por Owen Lovejoy e publicada em um artigo importante na Science em 1981. O bipedismo, argumentou ele, uma maneira ineficiente de locomoo, portanto ele deve ter evoludo para permitir o transporte de coisas. De que modo a habilidade de transportar coisas poderia ter dado aos macacos bipdes uma vantagem competitiva sobre os outros macacos?

Em ltima instncia, o sucesso evolutivo depende da produo de uma prole que sobreviva, e a resposta, sugeriu Lovejoy, est na oportunidade que esta nova habilidade confere aos macacos machos de aumentar a taxa reprodutiva das fmeas, ao coletar alimentos para ela. Os macacos, observou ele, reproduzem-se lentamente, tendo um rebento a cada quatro anos. Se as fmeas humanas tivessem acesso a mais energia

isto , comida , elas poderiam produzir de maneira mais bem-sucedida uma prole maior. Se um macho ajudasse a providenciar mais energia para uma fmea coletando alimentos para ela e sua prole, ela seria capaz de aumentar sua produo reprodutiva.

Haveria uma conseqncia biolgica adicional da atividade do macho, desta vez no domnio social. Como o macho no teria benefcios no sentido darwiniano em alimentar a fmea a menos que estivesse seguro de que ela estava produzindo a sua prole, Lovejoy sugeriu que a primeira espcie humana era monogmica, com a famlia nuclear emergindo como uma maneira de aumentar o sucesso reprodutivo, e assim vencer a competio contra os outros macacos. Ele sustentou sua argumentao com uma analogia biolgica adicional. Na maioria das espcies de primatas, por exemplo, os machos competem entre si pelo controle sexual do maior nmero possvel de fmeas. Durante este processo, muitas vezes eles lutam um contra o outro, e so dotados de dentes caninos grandes, que utilizam como arma. Os gibes so uma exceo porque formam casais de macho e fmea, e presumivelmente porque no tm razo de lutar um contra o outro os machos tm dentes caninos pequenos. Os caninos pequenos nos humanos primitivos podem ser uma indicao de que, como os gibes, eles formavam casais de macho e fmea, argumentou Lovejoy. Os vnculos sociais e econmicos do arranjo em torno da alimentao teriam por sua vez conduzido a um aumento no tamanho do crebro.

A hiptese de Lovejoy, que desfrutou apoio e ateno considerveis, poderosa porque apela para pontos biolgicos fundamentais, e no culturais. Entretanto, ela tem pontos fracos; por exemplo, a monogamia no um arranjo social comum entre povos tecnologicamente primitivos. (Apenas 20 por cento de tais sociedades so monogmicas.) Portanto esta hiptese foi criticada por parecer apoiar-se sobre uma caracterstica da sociedade ocidental, e no sobre uma caracterstica das sociedades de caadores-coletores. A segunda crtica, talvez mais sria, que os machos das espcies humanas primitivas conhecidas eram cerca de duas vezes maiores do que as fmeas. Em todas as espcies de primatas que tm sido estudadas, esta grande diferena no tamanho do corpo, conhecida como dimorfismo, correlacionase com apoliginia, ou competio entre os machos pelo acesso s fmeas; o dimorfismo no observado nas espcies monogmicas. Para mim, este fato por si s suficiente para afundar uma abordagem terica promissora, e uma explicao para os caninos pequenos que no seja a monogamia deve ser procurada. Uma possibilidade que o mecanismo de mastigao dos alimentos exigisse um movimento de triturao e no de estraalhamento; caninos grandes prejudicariam tal movimento. A hiptese de Lovejoy tem agora um apoio menor do que h uma dcada.

A segunda teoria importante do bipedismo muito mais convincente, em parte por sua simplicidade. Proposta pelos antroplogos Peter Rodman e Henry McHenry, da Universidade da Califrnia, em Davis, a hiptese afirma que o bipedismo foi vantajoso em condies ambientais em mutao porque oferecia um meio mais eficiente de locomoo. medida que as florestas encolhiam, os recursos alimentares dos habitats florestais, tais como rvores frutferas, teriam se tornado muito dispersos para serem explorados de forma eficiente pelos macacos convencionais. De acordo com esta hiptese, os primeiros macacos bipdes eram humanos apenas quanto ao seu modo de locomoo. Suas mos, mandbulas e dentes teriam permanecido similares aos dos macacos, porque sua dieta no mudara, apenas sua maneira de obt-la.

Para muitos bilogos, esta proposta inicialmente parecia improvvel: pesquisadores da Universidade de Harvard haviam mostrado alguns anos antes que caminhar sobre duas pernas menos eficiente do que caminhar sobre quatro. (Isto no deveria ser uma surpresa para qualquer um que tenha um gato ou um cachorro; ambos correm, embaraosamente, muito mais rpido do que seus donos.) Os pesquisadores de Harvard tinham, entretanto, comparado a eficincia energtica do bipedismo nos humanos com o quadrupedismo nos cavalos e cachorros. Rodman e McHenry chamaram a ateno para o fato de que a comparao apropriada deveria ser entre humanos e chimpanzs. Quando estas comparaes so feitas, conclui-se que o bipedismo nos humanos mais eficiente do que o quadrupedismo nos chimpanzs. Um argumento de eficincia energtica como uma fora da seleo natural em favor do bipedismo, concluram eles, portanto plausvel.

Tem havido muitas outras sugestes sobre os fatores que conduziram a evoluo do bipedismo, tais como a necessidade de olhar por cima da grama alta para controlar os predadores e a necessidade de adotar uma postura mais eficiente para refrescar-se durante a procura por alimentos durante o dia. De todas elas, acho a de Rodman e McHenry a mais persuasiva, porque tem bases firmes na biologia e adapta-se s mudanas ecolgicas que estavam acontecendo quando as primeiras espcies humanas estavam evoluindo. Se a hiptese estiver correta, isto significar que, quando encontrarmos fsseis das primeiras espcies humanas, podemos deixar de reconhec-los como tais, dependendo dos ossos que obtivermos. Se os ossos forem os da plvis ou dos membros inferiores, ento o modo bpede de locomoo ser evidente, e seremos capazes de dizer humanos. Mas se encontrarmos certas partes do crnio, da mandbula, ou alguns dentes, eles podem parecer com os dos macacos. Como saberamos que eles pertencem a um macaco bipde ou a um macaco convencional? um desafio excitante.

Se pudssemos visitar a frica de 7 milhes de anos atrs para observar o comportamento dos primeiros humanos, veramos um padro mais familiar aos primatlogos, que estudam o comportamento dos macacos e dos pequenos macacos arborcolas, do que aos antroplogos, que estudam o comportamento dos humanos. Em vez de viver em agregados de famlias nos bandos nmades, como os caadores-coletores modernos o fazem, os primeiros humanos provavelmente viviam como os babunos das savanas. Grupos de mais ou menos trinta indivduos buscariam alimentos atravs de um grande territrio de modo coordenado, retornando noite para dormir em lugares escolhidos, como encostas de rochedos ou grupos de rvores. As fmeas maduras e suas proles constituiriam a maior parte do grupo, com apenas uns poucos machos adultos presentes. Os machos estariam continuamente procura de oportunidades de acasalamento, com os indivduos dominantes obtendo sucesso maior. Machos imaturos ou de baixo prestgio estariam na periferia do grupo, muitas vezes procurando alimentos por si mesmos. Os indivduos no grupo teriam o aspecto humano do caminhar ereto mas se comportariam como os primatas das savanas. frente deles esto 7 milhes de anos de evoluo um padro de evoluo que seria complexo, como veremos, e de nenhum modo absolutamente certo. Pois a seleo natural opera de acordo com as circunstncias imediatas e no tendo em vista um objetivo de longo prazo. O Homo sapiens finalmente evoluiu como um descendente dos primeiros humanos, mas no havia nada de inevitvel a respeito disto.

2 - Uma famlia numerosa

Pela minha contagem, espcimens de fsseis com vrios graus de incompletude, representando pelo menos um milhar de indivduos das vrias espcies humanas, tm sido recuperados na frica Oriental e do Sul da parte mais antiga dos registros arqueolgicos, isto , de cerca de 4 milhes at quase 1 milho de anos atrs (muitos mais neste ltimo registro). Os fsseis humanos mais antigos encontrados na Eursia podem ter cerca de 2 milhes de anos de idade. (O Novo Mundo e a Austrlia foram povoados muito mais recentemente, h uns 20 mil e 55 mil anos respectivamente.) Portanto, justo dizer que a maior parte da ao na pr-histria humana aconteceu na frica. As questes a que os antroplogos devem responder sobre esta ao so duas: primeiro, que espcies constituram a rvore de famlia humana entre 7 e 2 milhes de anos atrs, e como elas viveram? Segundo, como eram as espcies relacionadas umas com as outras sob o ponto de vista evolutivo? Em outras palavras, qual era a forma da rvore de famlia?

Meus colegas antroplogos deparam com dois desafios prticos quando tratam com estes problemas. O primeiro o que Darwin chamava a extrema imperfeio do registro geolgico. Na sua A origem das espcies, Darwin devotou um captulo inteiro as lacunas frustrantes encontradas nos registros, as quais so conseqncia das foras caprichosas da fossilizao e mais tarde da exposio dos ossos. As condies que favorecem o enterro rpido e a possvel fossilizao dos ossos so raras. E sedimentos antigos podem tornar-se expostos pela eroso quando, por exemplo, uma corrente passa atravs deles , mas quais as pginas da pr-histria que so reabertas desta maneira puramente uma questo de acaso, e muitas pginas permanecem escondidas de nossas vistas. Por exemplo, na frica Oriental, o repositrio mais promissor de fsseis humanos primordiais, h muito poucos sedimentos com fsseis pertencentes ao perodo compreendido entre 4 e 8 milhes de anos atrs. Este um perodo crucial na pr-histria do homem, j que ele inclui a origem da famlia humana. Mesmo para o perodo que vem aps os 4 milhes de anos temos muito menos fsseis do que gostaramos.

O segundo desafio surge do fato de que a maioria dos espcimens de fsseis descobertos so pequenos fragmentos um pedao de crnio, um osso da face, parte de um osso do brao, e muitos dentes. A identificao de espcies a partir de indcios escassos desta natureza no tarefa fcil e algumas vezes impossvel. A incerteza resultante permite que surjam muitas diferenas cientficas de opinio, na identificao da espcie e no discernimento das suas inter-relaes. Esta rea da antropologia, conhecida como taxonomia e sistemtica, uma das mais controvertidas. Evitarei os detalhes dos muitos debates e, em vez disto, concentrarei a ateno na descrio da forma geral da rvore.

O conhecimento dos registros de fsseis humanos na frica desenvolveu-se lentamente, comeando em 1924 quando Raymond Dart anunciou a descoberta da famosa criana Taung. Compreendendo o crnio incompleto de uma criana parte do crnio, face, maxilar inferior e caixa craniana , o espcimen foi assim chamado porque foi recuperado da pedreira de calcrio de Taung, na frica do Sul. Embora nenhuma datao precisa dos sedimentos da pedreira fosse possvel, estimativas cientficas sugeriram que a criana viveu h cerca de 2 milhes de anos.

Embora a cabea da criana Taung tivesse muitas caractersticas semelhantes s do macaco, tais como um crebro pequeno e um maxiliar protuberante, Dart tambm reconheceu nele caractersticas humanas: o maxilar era protuberante mas menos do que nos macacos, os dentes molares eram achatados e os caninos pequenos. Um indcio fundamental foi a posio do formen magno a abertura na base do crnio atravs da qual os nervos espinhais passam para a coluna espinhal. Nos macacos, a abertura est relativamente mais para trs na base do crnio, enquanto que nos humanos ela est muito mais prxima do centro da base; a diferena um reflexo da postura bpede dos humanos, na qual a cabea equilibra-se em cima da espinha, em contraste com a postura dos macacos, na qual a cabea pende para a frente. O formen magno da criana Taung era no centro, indicando que a criana era um macaco bpede.

Embora Dart estivesse convencido do status de homindeo da criana Taung, passou-se quase um quarto de sculo antes que os antroplogos profissionais aceitassem este fssil individual como um ancestral humano e no apenas como um macaco antigo.

O preconceito contra a frica como stio da evoluo humana e um repdio generalizado idia de que algo to semelhante ao macaco pudesse ser uma parte da ancestralidade humana combinaram-se para lanar Dart e sua descoberta no esquecimento antropolgico por um longo tempo. Na poca em que os antroplogos reconheceram o seu erro no final dos anos 40 , o escocs Robert Broom juntara-se a Dart, e os dois homens haviam descoberto vintenas de fsseis humanos primordiais em quatro lugares onde se encontram cavernas na frica do Sul: Sterkfontein, Swartkrans, Kromdraai e Makapansgat. Seguindo o costume antropolgico da poca, Dart e Broom deram o nome de uma espcie nova para praticamente todos os fsseis que descobriram; deste modo, em breve parecia que um verdadeiro zoolgico de espcies humanas vivera na frica do Sul entre 3 milhes e 1 milho de anos atrs.

Nos anos 50, os antroplogos decidiram racionalizar a grande quantidade de espcies de homindeos propostas e reconheceram apenas duas. Ambas eram de macacos bipdes, claro, e ambas eram semelhantes aos macacos do mesmo modo pelo qual a criana Taung o era. A principal diferena entre as duas espcies estava nos seus maxilares e dentes: em ambas, estes eram grandes, mas uma das criaturas era uma verso mais corpulenta da outra. A espcie mais graciosa recebeu o nome de Australopithecus africanus, que era o nome que Dart dera criana Taung em 1924; o termo significa macaco do sul da frica. A espcie mais robusta foi apropriadamente chamada Australopithecus robustus (ver figura 2.1).

A partir da estrutura de seus dentes, era bvio que ambos, o africanus e o robustus, alimentavam-se principalmente de vegetais. Seus molares no eram como os dos macacos que tm cspides aguadas, aptas a uma dieta de frutas de casca relativamente macia e a outros vegetais mas eram achatados formando superfcies aptas para o trituramento. Se, como suspeito, as primeiras espcies humanas viveram de uma dieta semelhante dos macacos, elas teriam dentes semelhantes a estes. Claramente, h cerca de 2 ou 3 milhes de anos a dieta humana mudou para uma dieta de alimentos mais duros, tais como frutas de casca rgida e nozes. Quase certamente isto indica que os australopitecneos viveram em um ambiente mais seco que o dos macacos. O grande tamanho dos molares da espcie robusta sugere que os alimentos que ela comia eram especialmente duros e necessitavam de triturao extensiva; no por acaso que so chamados molares tipo marco de estrada

O primeiro fssil de humanos primitivos foi encontrado na frica Oriental por Mary Leakey, em agosto de 1959. Depois de quase trs dcadas de procura nos sedimentos da garganta Olduvai, ela foi recompensada com a descoberta de molares do tipo marco de estrada, como aqueles da espcie australopitecnea robusta da frica do Sul. Louis Leakey, que, com Mary, tomara parte da longa busca, chamou-o Zinjanthropus boisei: o nome que refere-se ao gnero significa homem da frica Oriental e boisei refere-se a Charles Boise, que apoiou meu pai e minha me em seu trabalho na garganta Olduvai e alhures. Na primeira aplicao dos mtodos modernos de datao geolgica, foi determinado que Zinj, como o indivduo tornou-se conhecido, vivera h 1,75 milho de anos. O nome Zinj foi finalmente trocado para Australopithecus boisei, no pressuposto de que ele era uma verso africana oriental, ou variante geogrfica, do Australopithecus robustus.

Os nomes no so particularmente importantes por si prprios. O que importante que estamos vendo diversas espcies humanas com a mesma adaptao fundamental, o bipedismo, um crebro pequeno e dentes molares relativamente grandes. Isto foi o que vi no crnio que encontrei sobre um leito de rio seco na minha primeira expedio margem oriental do lago Turkana, em 1969.

Sabemos a partir do tamanho variado dos ossos do esqueleto que os machos da espcie australopitecnea eram muito maiores do que as fmeas. Eles tinham 1,5 metro de altura enquanto suas companheiras mal atingiam 1 metro. Os machos devem ter pesado o dobro das fmeas, uma diferena do tipo que vemos hoje em algumas espcies de babunos das savanas. , portanto, razovel supor que a organizao social dos australopitecneos era similar dos babunos, com os machos dominantes competindo pelo acesso s fmeas maduras, como foi observado no captulo anterior.

A histria da pr-histria humana tornou-se um pouco mais complicada um ano aps a descoberta do Zinj, quando meu irmo mais velho, Jonathan, descobriu um pedao de crnio de um outro tipo de homindeo, novamente na garganta Olduvai. A pouca espessura relativa do crnio indicava que este indivduo tinha uma constituio ligeiramente mais leve do que qualquer uma das espcies conhecidas de australopitecneos. Ele tinha dentes molares menores e, o mais significativo de tudo, seu crebro era quase 50 por cento maior. Meu pai concluiu que, embora os australopitecneos fizessem parte da ancestralidade humana, este novo espcimen representava a linhagem que finalmente deu origem aos humanos modernos. Em meio a um alarido de objees por parte de seus colegas de profisso, ele decidiu batiz-lo Homo habilis, tornando-o o primeiro membro primitivo do gnero a ser identificado. (O nome Homo habilis, que significa homem habilidoso, lhe foi sugerido por Raymond Dart, e refere-se suposio de que a espcie era de fabricantes de artefatos.)

De muitas maneiras, o alarido tinha base em consideraes esotricas; ele surgiu em parte porque, para atribuir a designao Homo ao novo fssil, Louis teve que modificar as definies aceitas de gnero. At aquela poca, a definio padro, proposta pelo antroplogo britnico Sir Arthur Keith, afirmava que a capacidade cerebral do gnero Homo deveria ser igual ou exceder os 750 centmetros cbicos, um valor intermedirio entre o dos humanos modernos e o dos macacos; isto tomou-se conhecido como o Rubico cerebral. A despeito do fato de que o fssil recentemente descoberto na garganta Olduvai tivesse uma capacidade cerebral de apenas 650 centmetros cbicos, Louis julgou-o ser Homo por causa de seu crnio mais humanide (isto , menos robusto). Ele portanto props alterar o Rubico cerebral para 600 centmetros cbicos, admitindo com isto o novo homindeo olduvaiano ao gnero Homo. Esta ttica certamente elevou o nvel emocional do vigoroso debate que se seguiu. Ao final, porm, a nova definio foi aceita. (Mais tarde, chegou-se concluso de que 650 centmetros cbicos muito pouco como mdia de tamanho do crebro adulto no Homo habilis: 850 centmetros cbicos um valor mais prximo.)

Nomes cientficos parte, o ponto importante aqui que o padro de evoluo que comea a emergir destas descobertas era o de dois tipos bsicos de humanos primitivos. Um tipo tinha um crebro pequeno e dentes molares grandes (as vrias espcies de australopitecneos); o segundo tipo tinha um crebro maior e dentes molares pequenos (Homo) (ver figura 2.2). Ambos os tipos eram de macacos bipdes, mas claramente algo de extraordinrio tinha acontecido na evoluo do Homo. Exploraremos este algo de maneira mais completa no prximo captulo. De qualquer modo, a compreenso dos antroplogos da forma da rvore de famlia neste ponto da histria humana isto , por volta de 2 milhes de anos atrs era bastante simples. A rvore tinha dois ramos principais: as espcies australopitecneas, que se tornaram todas extintas h cerca de 1 milho de anos, e a Homo, que finalmente levou a gente como ns.

Os bilogos que estudaram os registros de fsseis sabem que, quando uma nova espcie desenvolve uma adaptao nova, muitas vezes h um florescimento de espcies descendentes durante os milhes de anos seguintes que expressam variaes temticas daquela adaptao inicial o florescimento conhecido como irradiao adaptativa. O antroplogo da Universidade de Cambridge, Robert Foley, calculou que, se a histria evolutiva dos macacos bpedes acompanhou o padro usual de irradiao adaptativa, existiram pelo menos 16 espcies entre a origem do grupo h 7 milhes de anos e os dias de hoje. A forma da rvore de famlia comea com um nico tronco (a espcie fundadora), cresce medida que novos ramos desenvolvem-se com o tempo, e ento reduz suas ramificaes quando as espcies tornam-se extintas, deixando apenas um ramo sobrevivente o Homo sapiens. De que modo tudo isto se encaixa com o que sabemos dos registros de fsseis?

Durante muitos anos aps a aceitao do Homo habilis, pensou-se que h 2 milhes de anos havia trs espcies de australopitecneos e uma de Homo. Neste ponto da histria, esperaramos que a rvore familiar fosse bem populosa, assim quatro espcies coexistentes no parecem ser muito. E, de fato, recentemente tornou-se aparente por meio de novas descobertas e novas reflexes que pelo menos quatro australopitecneos viveram neste perodo, lado a lado com duas ou mesmo trs espcies de Homo. Este quadro no est em absoluto acabado, mas, se as espcies humanas eram como as espcies de outros grandes mamferos (e neste ponto da nossa histria no h razo para pensar que elas no o fossem), ento isto o que os bilogos esperariam. A questo : o que aconteceu antes dos 2 milhes de anos atrs? Quantos ramos haviam na rvore de famlia e como eram eles?

Como j observado, os registros fsseis tornam-se rapidamente esparsos alm dos 2 milhes de anos atrs e ficam mais raros ainda para mais de 4 milhes de anos. Os fsseis humanos mais antigos conhecidos so todos da frica Oriental. Na margem leste do lago Turkana, encontramos um osso de brao, um osso do pulso, fragmentos de mandbulas e dentes de cerca de 4 milhes de anos atrs; o antroplogo americano Donald Johanson e seus colegas recuperaram um osso de perna de idade similar na regio conhecida como Awash, na Etipia. Na verdade, estes so indcios escassos para se recriar um quadro da pr-histria humana mais antiga. H, contudo, uma exceo neste perodo de raros indcios, e esta exceo uma rica coleo de fsseis da regio Hadar, na Etipia, que pertencem ao perodo entre 3 e 3,9 milhes de anos atrs.

Nos meados da dcada de 1970, uma equipe franco-americana, liderada por Maurice Taieb e Johanson, recuperou centenas de ossos fossilizados fascinantes, inclusive um esqueleto parcialmente completo de um indivduo pequeno, que tornou-se conhecido como Lucy (ver figura 2.3). Lucy, que era uma adulta madura quando morreu, mal atingia 1 metro de altura e era de constituio muito semelhante de um macaco, com braos longos e pernas curtas. Outros fsseis de indivduos provindos desta rea indicavam que no apenas havia muitos deles maiores do que Lucy, atingindo mais de 1,5 metro de altura, mas tambm que estes eram mais semelhantes aos macacos em certos aspectos no tamanho e forma dos dentes, na projeo das mandbulas do que os homindeos que viveram mais tarde na frica Oriental e do Sul h mais ou menos 1 milho de anos. Isto o que esperaramos encontrar medida que nos aproximamos cada vez mais da poca da origem da humanidade.

Quando vi pela primeira vez os fsseis de Hadar, pareceu-me que eles representavam duas espcies, talvez mais. Considerei provvel que a diversidade de espcies que vemos surgir h 2 milhes de anos derivava de uma diversidade similar que surgira 1 milho de anos antes, inclusive espcies de Australopithecus e Homo. Na sua interpretao inicial dos fsseis, Taieb e Johanson apoiaram este padro de evoluo. Entretanto, Johanson e Tim White, da Universidade da Califrnia em Berkeley, fizeram mais anlises. Em um artigo publicado na revista Science em janeiro de 1979, eles sugeriram que os fsseis de Hadar no representavam diversas espcies de humanos primitivos mas ao contrrio eram ossos de apenas uma nica espcie, que Johanson chamou Australopithecus afarensis. A grande variedade de tamanho corporal, que anteriormente tinha sido considerada como indicao da presena de diversas espcies, era agora explicada simplesmente como dimorfismo sexual. Todas as espcies de homindeos que surgiram mais tarde eram descendentes desta nica espcie, disseram eles. Muitos de meus colegas ficaram surpresos com esta afirmao audaciosa, e ela provocou um vigoroso debate que durou muitos anos (ver figura 2.4).

Embora desde ento muitos antroplogos tenham decidido que o esquema de Johanson e White provavelmente est correto, eu acredito que o esquema est errado, por duas razes.

Primeiro, as diferenas de tamanho e a variedade anatmica dos fsseis de Hadar so simplesmente muito grandes para representar uma nica espcie. Muito mais razovel a noo de que os fsseis so de duas espcies, ou talvez mais. Yvens Coppens, que era membro da equipe que coletou os fsseis de Hadar, tambm da mesma opinio. Segundo, o esquema no faz sentido do ponto de vista biolgico. Se os humanos originaram-se h 7 milhes de anos, ou mesmo h 5 milhes de anos, seria muito incomum que uma nica espcie tivesse sido a ancestral de todas as espcies que vieram mais tarde. Esta no seria a forma tpica de uma irradiao adaptativa, e a menos que haja uma boa razo para suspeitar o contrrio devemos supor que a histria humana seguiu o padro normal.

A nica maneira pela qual esta questo ser satisfatoriamente resolvida para todos por meio da descoberta e anlise de mais fsseis de mais de 3 milhes de anos de idade, o que parecia ser possvel no comeo de 1994. Desde 1990, depois de uma dcada e meia de impossibilidade, por razes polticas, de retornar aos lugares ricos em fsseis na regio de Hadar, Johanson e seus colegas fizeram trs expedies. Seus esforos tiveram grande sucesso, sendo recompensados com a coleta de 53 espcimens de fsseis, inclusive o primeiro crnio completo. O padro deste perodo de tempo observado anteriormente o de uma grande variedade de tamanho corporal confirmado e mesmo ampliado pelas novas descobertas. Como devemos interpretar este fato? Estar a questo de uma ou mais espcies s vsperas da soluo? Infelizmente este no o caso. Aqueles que achavam que a variedade de tamanho dos fsseis previamente descobertos indicava uma diferena de estatura entre machos e fmeas consideraram os novos fsseis como indcios que apoiavam esta posio. Aqueles de ns que suspeitavam que uma variedade de tamanho to ampla deve indicar uma diferena entre espcies, e no uma diferena dentro de uma mesma espcie, interpretaram os novos fsseis como indicaes que reforavam este ponto de vista. A forma da rvore de famlia anterior aos 2 milhes de anos atrs deve portanto ser considerada uma questo no resolvida.

A descoberta do esqueleto parcialmente completo de Lucy em 1974 parecia dar um primeiro vislumbre do grau de adaptao anatmica locomoo bpede dos homindeos mais antigos. Por definio, a primeira espcie de homindeo a desenvolver-se teria sido um tipo de macaco bpede. Mas at que o esqueleto de Lucy tivesse aparecido, os antroplogos no tinham indcios tangveis de bipedismo em uma espcie humana anterior aos 2 milhes de anos atrs. Os ossos da plvis, pernas e ps do esqueleto de Lucy foram pistas vitais para esta questo.

A partir da forma da plvis e do ngulo entre o fmur e o joelho, fica claro que Lucy e seus companheiros adaptavam-se a alguma forma de caminhar ereta. Estas caractersticas eram muito mais semelhantes s dos humanos do que s dos macacos. De fato, Owen Lovejoy, que realizou os estudos anatmicos iniciais destes ossos, concluiu que a locomoo bpede da espcie teria sido indistinguvel da maneira pela qual eu e voc caminhamos. Entretanto, nem todos concordam. Por exemplo, em 1983, em um importante trabalho cientfico, Jack Stern e Randall Susman, dois anatomistas da State University of New York, em Stony Brook, apresentaram uma interpretao diferente da anatomia de Lucy: Ela possui uma combinao de caractersticas inteiramente adequada a um animal que tivesse viajado bastante na estrada que leva ao bipedismo de tempo total, mas que retm aspectos estruturais que lhe permitiam utilizar-se das rvores de maneira eficiente para alimentar-se, dormir ou fugir.

Um dos indcios cruciais que Stern e Susman apresentaram em favor de suas concluses era a estrutura dos ps de Lucy: os ossos eram algo encurvados, como se observa nos macacos mas no nos humanos um arranjo que facilitaria a subida nas rvores. Lovejoy descarta este ponto de vista e sugere que os ossos encurvados do p so simplesmente um vestgio evolutivo do passado simiesco de Lucy. Estes dois campos opostos mantiveram entusiasticamente suas diferenas de opinio por mais de uma dcada. Ento, no comeo de 1994, novos indcios, inclusive alguns vindos de uma fonte das mais inesperadas, aparentemente fizeram pender a balana para um lado.

Primeiro, Johanson e seus colegas relataram a descoberta de ossos de um brao de 3 milhes de anos de idade, um cbito e um mero, que eles atriburam ao Australopithecus afarensis. O indivduo obviamente tinha sido muito forte, e seus ossos do brao tinham algumas caractersticas similares aquelas observadas nos chimpanzs, enquanto outras eram diferentes. Comentando esta descoberta, Leslie Aiello, um antroplogo do University College, de Londres, escreveu na revista Nature: A morfologia variada do cbito do A. afarensis, junto com seu mero robusto e bastante musculoso, estaria idealmente adaptada a uma criatura que no s subisse em rvores mas que tambm caminhasse sobre duas pernas no solo. Esta descrio, com a qual concordo, claramente favorece mais o lado de Susman do que o de Lovejoy.

Um apoio ainda mais forte a este ponto de vista vem da utilizao inovadora da tomografia axial computadorizada (a varredura CAT) para discernir os detalhes da anatomia do ouvido interno destes humanos primitivos. Parte da anatomia do ouvido interno constituda por trs tubos em forma de C, os canais semicirculares. Dispostos de uma maneira que os deixa mutuamente perpendiculares, com dois dos canais orientados verticalmente, a estrutura desempenha um papel chave na manuteno do equilbrio do corpo. Em um encontro de antroplogos em abril de 1994, Fred Spoor, da Universidade de Liverpool, descreveu os canais semicirculares nos humanos e nos macacos. Os dois canais verticais so significativamente maiores nos humanos quando os comparamos com os dos macacos. Uma diferena que Spoor interpreta como uma adaptao s exigncias adicionais do equilbrio ereto nas espcies bipdes. E o que dizer das espcies humanas primitivas?

As observaes de Spoor so verdadeiramente espantosas. Em todas as espcies do gnero Homo, a estrutura do ouvido interno indistinguvel da dos humanos modernos. Da mesma forma, em todas as espcies de Australopithecus, os canais semicirculares parecem-se com os dos macacos. Significar isto que os australopitecneos movimentavam-se como os macacos o fazem isto , que seu modo de locomoo era quadrpede? A estrutura da plvis e dos membros inferiores falam contra esta concluso. Do mesmo modo o faz a notvel descoberta que minha me fez em 1976: um rastro de pegadas muito humanides conservadas em um estrato de cinzas vulcnicas h uns 3,75 milhes de anos. No obstante, se a estrutura do ouvido interno indicadora da postura habitual e do modo de locomoo, ela sugere que os australopitecneos no eram simplesmente como eu e voc, como sugeriu e continua a sugerir Lovejoy.

Ao promover sua interpretao, Lovejoy parece querer tornar os homindeos totalmente humanos desde o incio, uma tendncia entre os antroplogos que discuti anteriormente neste captulo. Mas no vejo qualquer problema em imaginar que um ancestral nosso exibisse um comportamento semelhante aos dos macacos e que as rvores fossem importantes em suas vidas. Somos macacos bipdes e no deveria ser surpresa ver este fato refletido no modo pelo qual nossos ancestrais viviam.

Neste ponto, mudarei de ossos para pedras, o indcio mais tangvel do comportamento de nossos ancestrais. Chimpanzs so usurios eficientes de utenslios, e utilizam pauzinhos para coletar cupins, folhas como esponjas e pedras para quebrar castanhas. Mas, de qualquer modo, at agora, nenhum chimpanz selvagem foi visto manufaturando um utenslio de pedra. Os humanos comearam a produzir ferramentas de corte h uns 2,5 milhes de anos fazendo duas pedras baterem uma contra a outra, dando incio assim a uma trilha de atividade tecnolgica que reala a pr-histria humana.

Os utenslios mais antigos so pequenas lascas, obtidas batendo uma pedra usualmente um seixo de lava contra uma outra. As lascas mediam cerca de 2,2 centmetros de comprimento e eram surpreendentemente aguadas. Embora simples na aparncia, elas eram utilizadas em uma grande variedade de tarefas. Sabemos isto porque Lawrence Keeley, da Universidade de Illinois, e Nicholas Toth da Universidade de Indiana, analisaram uma dzia destas lascas provindas de um stio arqueolgico de 1,5 milho de anos de idade situado ao leste do lago Turkana, procurando por sinais de uso. Eles descobriram diferentes tipos de desgaste nas lascas marcas indicando que algumas haviam sido utilizadas para cortar carne, algumas para cortar madeira, e outras para cortar materiais macios originrios de vegetais, como a grama. Quando encontramos lascas de pedra dispersas em um stio arqueolgico deste tipo, temos que ser inventivos para imaginar a complexidade da vida levada ali, porque as relquias so raras: a carne, a madeira e a grama se foram. Podemos imaginar um lugar de acampamento simples situado na margem do rio, onde um grupo familiar humano cortava a carne no abrigo de uma estrutura feita a partir de rvores novas e coberta por juncos, mesmo que tudo o que possamos ver hoje sejam lascas de pedra.

Os primeiros conjuntos de artefatos de pedra encontrados tm 2,5 milhes de anos de idade; eles incluem, alm de lascas, implementos maiores tais como cutelos, raspadores e vrias pedras polidricas. Na maioria dos casos, estes itens eram tambm produzidos pela remoo de diversas lascas de um seixo de lava. Mary Leakey passou muitos anos na garganta Olduvai estudando

esta tecnologia primitiva que conhecida como indstria olduvaiana, por causa da garganta Olduvai e ao faz-lo estabeleceu o comeo da arqueologia africana.

Em conseqncia de seus experimentos com a fabricao de artefatos de pedra, Nicholas Toth suspeita que os primeiros fabricantes no tinham formas especficas de artefatos individuais em mente um molde mental, se preferirmos quando os estavam fabricando. Muito provavelmente, as vrias formas eram determinadas pela forma original da matria-prima A indstria olduvaiana que era a nica forma de tecnologia empregada at cerca de 1,4 milho de anos atrs era de natureza essencialmente oportunstica.

Uma questo interessante surge com relao s habilidades cognitivas implcitas na produo destes artefatos. Estariam estes fabricantes primitivos de artefatos empregando habilidades mentais comparveis s dos macacos, mas de um modo diferente? Ou isto exigia que tivessem uma inteligncia maior? O crebro dos fabricantes de artefatos era mais ou menos 50 por cento maior do que o dos macacos, assim a ltima concluso parece ser intuitivamente bvia. No obstante, Thomas Wynn, arquelogo da Universidade do Colorado, e William McGrew, primatlogo da Universidade de Stirling, na Esccia, no concordam com isto. Eles analisaram certas habilidades manipulativas exibidas pelos macacos, e num trabalho publicado em 1989, intitulado An Ape's View of the Olduvan, concluram: Todos os conceitos espaciais aplicados aos artefatos olduvaianos podem ser encontrados nas mentes dos macacos. De fato, a competncia espacial descrita acima provavelmente verdadeira para todos os grandes macacos e no faz dos fabricantes de artefatos olduvaianos especiais.

Acho esta afirmao surpreendente, isto porque tenho visto as pessoas tentarem reproduzir artefatos da idade da pedra fazendo duas pedras baterem uma contra a outra, com pouco sucesso. No era assim que era feito. Nicholas Toth passou muitos anos aperfeioando tcnicas de fabricao de artefatos de pedra e tem um bom conhecimento da mecnica das lascas de pedra. Para trabalhar eficientemente, o britador deve escolher uma pedra que tenha a forma apropriada, que tenha o canto correto para bater; e o movimento de bater exige grande prtica para obter-se a intensidade apropriada de fora no lugar certo. Parece claro que os primeiros proto-humanos fabricantes de artefatos tinham um bom senso intuitivo dos fundamentos do trabalho com pedras, escreveu Toth em um artigo de 1985. No h dvida de que os primeiros ferramenteiros possuam uma capacidade mental superior dos macacos, disse-me ele re-

centemente. A fabricao de artefatos exige uma coordenao significativa de habilidades cognitivas e motoras.

Uma experincia em curso no Language Research Center, em Atlanta, Georgia, est verificando esta questo. Por mais de uma dcada, Sue Savage-Rumbaugh, uma psicloga, vem trabalhando com chimpanzs pigmeus no desenvolvimento das habilidades de comunicao. Recentemente, Toth comeou a colaborar com ela, tentando ensinar a um chimpanz de nome Kanzi como produzir lascas de pedras. Kanzi indubitavelmente mostrou um raciocnio inovador na produo de lascas aguadas, mas at agora no reproduziu a tcnica sistemtica de produo de lascas utilizadas pelos fabricantes primitivos. Suspeito que isto significa que Wynn e McGrew esto errados e que os fabricantes mais primitivos utilizavam habilidades cognitivas superiores quelas presentes nos macacos.

Dito isto, permanece verdadeiro que os primeiros artefatos, os da indstria olduvaiana, eram simples e oportunsticos. H cerca de 1,4 milho de anos na frica, apareceu um novo tipo de coleo, que os arquelogos chamam indstria acheulense, em razo do stio arqueolgico de Saint Acheul, no norte da Frana, onde estes artefatos, em verses posteriores, foram descobertos pela primeira vez. Pela primeira vez na pr-histria humana, h indcios de que os fabricantes de artefatos tinham um modelo mental do que desejavam produzir que eles estavam impondo intencionalmente uma forma matria-prima que utilizavam. O implemento que sugere isto o assim chamado machado manual, um utenslio em forma de gota de lgrima que exigia uma habilidade notvel e pacincia para ser feito (ver figura 2.5). Toth e outros experimentalistas precisaram de vrios meses para adquirir a habilidade de produzir machados manuais de qualidade igual aos encontrados nos registros arqueolgicos desta poca.

O aparecimento do machado manual nos registros arqueolgicos acompanha a emergncia do Homo erectus, o suposto descendente do Homo habilis e ancestral do Homo sapiens. Como veremos no captulo seguinte, razovel deduzir que os fabricantes do machado manual eram indivduos da espcie Homo erectus, dotados de um crebro significativamente maior que o do Homo habilis.

Quando nossos ancestrais descobriram o truque de produzir consistentemente lascas de pedra afiadas, isto constituiu um grande avano na pr-histria humana. Subitamente, os humanos tiveram acesso a alimentos que lhes eram previamente negados. A modesta lasca, como Toth muitas vezes demonstrou, um implemento altamente eficiente para cortar tudo, exceto as peles mais duras at expor a carne vermelha contida dentro. Se eram caadores ou carniceiros, os humanos que fizeram e utilizaram estas simples lascas de pedra com isto tiveram acesso a uma nova fonte de energia a protena animal. Assim eles teriam sido capazes no apenas de estender o alcance de suas incurses mas tambm de aumentar as chances de uma produo bem-sucedida de uma prole. O processo reprodutivo um processo dispendioso, e a expanso da dieta com a incluso de carne o teria tornado mais seguro.

Uma pergunta antiga para os antroplogos tem sido, claro: quem fez os artefatos? Quando os artefatos apareceram nos registros arqueolgicos, existiam diversas espcies de australopitecneos, e provavelmente diversas espcies de Homo tambm. Como podemos decidir quem era o fabricante de artefatos? Isto extremamente difcil. Se encontramos artefatos somente em associa o com fsseis do Homo e nunca com fsseis de australopitecneos, isto poderia implicar que o Homo era o nico fabricante. Entretanto, o registro pr-histrico no to lmpido assim. Randall Susman argumentou, a partir da anatomia do que ele acredita ser ossos da mo de um A. robustus oriundos de um stio na frica do Sul, que esta espcie tinha habilidades manipulativas suficientes para fazer ferramentas. Mas no h maneira de nos certificarmos se ela realmente o fazia ou no.

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Minha posio a de que devemos procurar pela explicao mais simples. Sabemos a partir dos registros pr-histricos que depois de 1 milho de anos atrs somente a espcie Homo existia, e sabemos tambm que eles faziam ferramentas de pedras. At que haja uma boa razo para supor o contrrio, parece ser prudente concluir que apenas o Homo fabricava ferramentas no comeo da sua pr-histria. As espcies australopitecneas e Homo tiveram claramente adaptaes especficas diferentes, e provvel que o ato de comer carne pelo Homo era uma parte importante desta diferena. A fabricao de instrumentos de pedra teria sido uma parte importante das habilidades de um carnvoro; vegetarianos poderiam safar-se sem estas ferramentas.

Em seus estudos de artefatos provindos dos stios arqueolgicos no Qunia e em seus exerccios prticos de fabricao de artefatos, Toth fez uma importante e fascinante descoberta. Os primeiros fabricantes eram predominantemente destros, exatamente como os humanos modernos o so. Embora os macacos individualmente sejam destros ou canhotos, no h uma tendncia preferencial em sua populao; os humanos modernos so nicos a este respeito. A descoberta de Toth nos d um insight evolutivo importante: h uns 2 milhes de anos, o crebro do Homo j estava se tomando verdadeiramente humano, de um modo que ns mesmos sabemos o que significa.

3 - Um tipo diferente de humano

Pesquisas excitantes e imaginativas s recentemente realizadas permitiram-nos utilizar os fsseis para obter discernimento sobre aspectos da biologia de nossos ancestrais extintos de um modo que ningum poderia ter previsto h poucos anos. Por exemplo, agora possvel fazer estimativas razoveis de quando indivduos de uma espcie humana particular eram desmamados, quando tornavam-se sexualmente maduros, qual era sua expectativa de vida, e assim por diante. Armados com meios de descobrir informaes deste tipo, chegamos concluso de que o Homo era um tipo diferente de humano desde o momento em que apareceu pela primeira vez. A descoberta de uma descontinuidade biolgica entre o Australopithecus e o Homo alterou fundamentalmente nossa compreenso da pr-histria humana.

At o surgimento do Homo, todos os macacos bipdes tinham crebros pequenos, dentes molares grandes, maxilares protubrantes e aderiam a uma estratgia de subsistncia semelhante dos macacos. Eles comiam principalmente alimentos fornecidos por vegetais, e seu meio social provavelmente assemelhava-se ao dos babunos das savanas. Estas espcies as australopitecneas eram semelhantes aos humanos apenas no modo de caminhar e nada mais. Em alguma poca anterior aos 2,5 milhes de anos atrs no podemos dizer exatamente quando as primeiras espcies humanas dotadas de crebros grandes evoluram. Os dentes tambm mudaram provavelmente uma mudana produzida pela passagem de uma dieta constituda exclusivamente de alimentos fornecidos pelos vegetais para uma dieta que inclua carne.

Estes dois aspectos do Homo primordial as alteraes no tamanho do crebro e na estrutura dos dentes tm se mostrado aparentes desde que os primeiros fsseis do Homo habilis foram descobertos, h trs dcadas. Talvez porque ns, humanos modernos, sejamos obcecados pela importncia do poder da mente, os antroplogos focalizaram intensamente sua ateno no salto em tamanho do crebro de uns 450 centmetros cbicos para mais de 600 centmetros cbicos que ocorreu com a evoluo do Homo habilis. Sem dvida isto foi uma parte importante da adaptao evolutiva que deu pr-histria humana um outro rumo. Mas apenas uma parte. As novas pesquisas sobre a biologia de nossos ancestrais revela que muitas outras coisas mudaram tambm, tornando-os mais semelhantes aos humanos do que aos macacos.

Um dos aspectos mais significativos do desenvolvimento humano que os bebs nascem virtualmente desprotegidos e passam por uma infncia prolongada. Mais ainda, como todos os pais sabem, as crianas sofrem um surto de crescimento na adolescncia, durante o qual elas adquirem centmetros a uma taxa alarmante. Os humanos so singulares a esse respeito: a maioria das espcies de mamferos, inclusive os macacos, progride quase que diretamente da infncia para a idade adulta. Um adolescente humano prestes a entrar no seu surto de crescimento propenso a aumentar de tamanho em cerca de