A Antropologia de Grupos Urbanos - Ruben George Oliven

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antropologia e estudo dos grupos urbanos modernos

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    Ruben George OlivenA Antropologia de Grupos Urbanos

    http://groups.google.com.br/group/digitalsource

    Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, demaneira totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-laou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda destee-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel emalquer circunstncia. A generosidade e a humildade a marca da distribuio, portanto istribua este livro livremente. Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original,pois assim voc estar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Oliven, Ruben GeorgeA antropologia de grupos urbanos / Ruben George Oliven. 6. ed. - Petrpolis, RJ :Vozes, 2007.ISBN 978-85-326-0774-4Bibliografia1. Antropologia urbana 2. Sociologia urbana I. Ttulo.06-9168 CDD-307.76ndices para catlogo sistemtico:1. Antropologia de grupos urbanos : Sociologia urbana 307.762. Antropologia urbana : Sociologia urbana 307.76

    1995, Editora Vozes Ltda.Rua Frei Lus, 10025689-900 Petrpolis, RJInternet: http://www.vozes.com.brProjeto grfico: AG.SR Desenv. Grfico Capa: Bruno MargiottaISBN 978-85-326-0774-4Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.Sumrio?

    I. Introduo, 7II. A utilizao de mtodos e tcnicas antropolgicas no estudo de sociedades complexas11

    III. A cidade e as teorias sociais, 17IV. Pesquisas antropolgicas no contexto urbano, 291. Migrao e trabalho, 292. Formas de sociabilidade no contexto urbano, 433. Religio, 574. Lazer, 61V. Concluso, 65Bibliografia, 67? A paginao desse ndice corresponde edio original em papel. A numerao foi inse

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    e colchetes no decorrer do texto, indicado sempre o final de cada pgina.

    I--------?--------Introduo

    primeira vista, um livro de Antropologia dedicado ao estudo de grupos urbanos pode parecer estranho. Afinal, a Antropologia tradicionalmente associada ao estudo das sociedades consideradas simples, que em sua grande maioria so tribais evivem no campo. H pelo menos duas maneiras de responder a esta possvel surpresa. A primeira relativamente simples e consiste em afirmar que Antropologia tudo aquilo que os antroplogos fazem e que no Brasil, bem como em vrios outros lugares, eles esto cadavez mais ocupados em pesquisar o meio urbano, o que inclusive deu origem a uma Antropologia chamada de urbana. O segundo tipo de resposta mais slido e est calcado, primeiramente, no fato de que a pesquisa de reas urbanas sempre teve certa relevncia em estudos antropolgicos. De fato, existe uma longa tradio antropolgica de "estudos de comunidade" que, embora no se ocupem especificamente com sociedades urbano-industriais, tm a cidadecomo pano de fundo dos fenmenos pesquisados. No Brasil esta tradio produziu trabalhos de grande importncia como os de Emilio Willems1, Charles[pg. 7]

    Wagley2, Marvin Harris3, Antonio Candido4 e Kobert Shirley5, para citar somentealguns pesquisadores. Examinando este tipo de pesquisas, Durham e Cardoso assinalam que as mesmasdizem respeito acertas categorias ou grupos, ou fenmenos, os quais, embora no necessria e especificamente urbanos, podem ser encontrados e estudados nas cidades modernas. Entram nesta classificao os trabalhos sobre minorias tnicas e raciais, sobre seitas e manifestaes religiosas. Se estes trabalhos no constituem uma antropologia urbana propriamente dita, no menos certo que se estabeleceu entre ns, desde os tempos de Nina Rodrigues, uma tradio de estudos antropolgicos realizados em cidades ou, mais especificamente, em grandes centros urbanos. mais recente o interesse por problemas como os referentes migrao rural-urbana ou populao favelada, que so definidos espe

    ente por sua natureza urbano-industrial6.Em reforo ao argumento de que a pesquisa de reas urbanas sempre ocupou um lug

    ar de importncia em estudos antropolgicos, cabe salientar que, se atualmente os antroplogos esto cada vez mais estudando sociedades urbano-industriais, este fenmenoocorre justamente porque[pg. 8]a Antropologia dispe de teorias e instrumentos prprios que podem contribuir significativamente para a compreenso da dinmica deste tipo de sociedade. O estudo antropolgico do meio urbano coloca, entretanto, de sada a questo da utilizao de mtodos e tcnicas antropolgicas no estudo de sociedades complexas 7.[pg. 9]

    [pg. 10] Pgina em branco

    II--------?--------A utilizao de mtodos e tcnicasantropolgicas no estudo desociedades complexas

    A Antropologia Social surgiu como uma cincia preocupada com as sociedades co

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    nsideradas simples. Neste sentido, revelador que ela tenha primeiro se desenvolvido no sculo passado na Gr-Bretanha, na poca, a principal potncia industrial do muno com um grande imprio formado de vrias colnias repletas de sociedades "primitivas"a serei n estudadas. J em pases que no tinham colnias, a Antropologia achou sua rade ser atravs do estudo de sociedades indgenas, de grupos rurais e, eventualmente, at urbanos identificados como as "camadas menos favorecidas da populao". Mas em ambos os casos, o objeto de estudo eram sempre os "outros", retratados como portadores de uma cultura diferente da nossa. Uma das crticas feitas com muita freqncia a antroplogos que estudaram sociedads simples a de que suas pesquisas so extremamente descritivas e pouco preocupadasem relacionar os fenmenos observados com fenmenos da mesma natureza que ocorrem em sociedades complexas. A Antropologia se preocupava com os "outros" e estes muitas vezes eram percebidos como longnquos e at bizarros: "A Antropologia tendeu a apresentar uma fachada[pg. 11]para uso externo onde o interesse pelo extico e distante, o penoso trabalho de campo e um certo tipo de bibliografia clssica constituam as marcas de diferenciao"8. As ex-colnias tornaram-se, entretanto, estados-naes (e em muitas delas seus habitantes esto passando diretamente da tribo cidade) e nas sociedades do novo mundo os ndios esto sucumbindo ao peso das conseqncias do que eufemisticamente chamade "progresso". Por seu turno, as "camadas menos favorecidas da populao" esto h muittempo expostas s mensagens de sociedades urbano-industriais, estando portanto emcontato com a cultura dominante.

    Referindo-se ao fato de que at recentemente as pesquisas antropolgicas realizadas em cidades como as brasileiras tm se restringido s "camadas menos favorecidasda populao", Durham e Cardoso destacam que esta escolha significativa e est ligad tendncia de a Antropologia trabalhar com tcnicas de pesquisa como entrevistas abertas, observao participante, que so de natureza qualitativa e, portanto, mais adequada para reconstituir o universo de participao social e o sistema de representao doinformantes: "(...) justamente por serem 'marginais', isto , por no terem acessopleno aos canais de participao que permitem a um estrato social, numa sociedade complexa, influir nas decises que afetam seu prprio destino, que estes grupos podemser analisados com sucesso pela antropologia, cincia de certo modo tambm marginal civilizao urbano-industrial"9.[pg. 12]

    Comentando, entretanto, que na medida em que a Antropologia trabalha dentrode um universo fechado de representaes, ela pode no conseguir captar as foras impesoais que moldam o processo histrico no qual esta populao se insere, nem perceber oprocesso de formao e transformao da sociedade urbano-industrial (tarefa que exigira instrumentais tericos e metodolgicos desenvolvidos por outras cincias sociais), as autoras assinalam que "o impasse reside na dificuldade que a Antropologia encontra em elaborar um modelo geral mas no formal da sociedade complexa que permitapreservar a particularidade das situaes concretas que analisa. Sem esta reflexo diil ultrapassar o carter fragmentrio dos estudos de caso e das anlises parciais, embora ricas e sugestivas, pois no h uma teoria que relacione os resultados obtidos em pesquisas restritas"10. Um dos traos mais marcantes da formao do antroplogo a experincia do trabalhcampo, rito de iniciao indispensvel para ser aceito na comunidade acadmica. Durante

    este perodo de tempo, o candidato a antroplogo do veria separar-se do mundo "civilizado" e viver com o grupo pesquisado, procurando compreender sua lngua, suas Formas de organizao econmica, social e poltica, seu sis-tema de representaes, etc. A preocupao em compreender e se colocar no lugar do "outro" fez com que os antroplogos cultivassem um estranhamento diante dos fenmenos observados em outras Culturas. Esta atitude de estranhamento, no s com o que ocorria sua volta, mas com eles prprios, permitiu que os[pg. 13]antroplogos questionassem e captassem fenmenos que de outra maneira talvez passass

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    em desapercebidos. Como transpor esta experincia para o estudo de sociedades complexas? Emborao trabalho de campo seja possvel em grandes cidades, ele coloca problemas novos.Por um lado, ele pode parecer muito mais fcil que estudar sociedades simples ondetudo desconhecido para o antroplogo, desde a lngua at os hbitos alimentares. Entanto, exatamente esta aparente facilidade que torna a tarefa mais difcil e estimulante. Um dos principais desafios do antroplogo que estuda sociedades complexas reside justamente em tentar interpretar sua prpria cultura e questionar seus pressupostos que so muitas vezes aceitos como fatos inquestionveis pela maioria da populao e inclusive por muitos pesquisadores. Trata-se de compreender nossos rituais,nossos smbolos, nosso sistema de parentesco, nosso sistema de trocas, etc. Nestesentido, a Antropologia, para ser uma boa Antropologia de sociedades complexas,necessita ser radical, no sentido etimolgico do termo, isto , procurar ir raiz dosfenmenos que estuda, sem ter receio de desafiar tabus e conhecimentos consagrados. talvez atravs da observao participante (ou da participao observante) que se tpossibilidade de analisar, por exemplo, a dimenso da dominao no cotidiano e perceber como a cultura reflete e medeia as contradies de uma sociedade complexa, procurando estudar a cultura no como algo externo mas como um fenmeno que produzido peloshomens nas suas relaes sociais. observando os acontecimentos corriqueiros e cotidianos que a Antropologia pode construir novas interpretaes, uma vez que o trabalhode campo tem um papel central no desenvolvimento da teoria antropolgica. E justamente por se preocupar em[pg. 14]

    estudar os reflexos das grandes transformaes no dia-a-dia e como elas so vivenciadas e reelaboradas por diferentes camadas sociais que a Antropologia vem desempenhando um papel to relevante na compreenso da dinmica de sociedades complexas. possvel, pois, resgatar o estudo antropolgico do meio urbano desde que se compreenda que a cidade o local em que convivem diversos grupos com experincia e vivncias em partes comuns, em parte diferentes:(...) dentro de nossa prpria sociedade existe, constantemente, esta experincia deestranhamento. Vivemos experincias restritas e particulares que tangenciam, podemeventualmente se cruzar e constantemente correm paralelas a outras to plenas designificado quanto as nossas. A possibilidade de partilharmos patrimnios culturais com os membros de nossa sociedade no nos deve iludir a respeito das inmeras descontinuidades e diferenas provindas de trajetrias, experincias e vivncias especficaIsto fica particularmente ntido quando fazemos pesquisa em grandes cidades e metrp

    oles onde a heterogeneidade da diviso social do trabalho, a complexidade institucional e a coexistncia de numerosas tradies culturais expressam-se em vises de mundodiferenciadas e at contraditrias. Sob uma viso mais tradicional poder-se-ia mesmo dizer que exatamente isto que permite ao antroplogo realizar investigaes na sua pra cidade. Ou seja, h distncias culturais ntidas internas ao meio urbano em que vivemos, permitindo ao "nativo" fazer pesquisas antropolgicas com grupos diferentes do seu, embora possam estar basicamente prximas. No foi toa que alguns dos primeiros trabalhos de Antropologia Urbana foram estudos de minorias t-[pg. 15]nicas, imigrantes, e, mais tarde, de grupos desviantes, em se tratando de trabalhos realizados na sociedade do investigador11.[pg. 16]

    III--------?--------A cidade e as teorias sociais

    Por se constiturem nos centros mais dinmicos de sociedades complexas, as cidades representam tambm espaos nos quais as contradies deste tipo de sociedade se toram mais evidentes. A cidade passa, assim, a se constituir no contexto no qual sedesenvolvem vrios processos e fenmenos sociais. Ela no a principal causa destes fnmenos (embora possa intervir no seu desenvolvimento), mas se constitui no centro

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    de convergncia de processos das mais variadas ordens. Em relao idia de uma Antropologia Urbana, isto nos remete a uma situao semee de uma Sociologia Urbana, criticada por carecer de objeto prprio, j que o urbanoseria tudo que ocorre no interior de cidades12. Neste sentido seria mais correto falar de uma Antropologia na cidade do que da cidade, j que a preocupao seria "estudar situaes que ocorrem em cidades sem que tenhamos, forosamente, de explic-las plo fato de estarem ocorrendo naquele quadro especial. Estamos fazendo cincia social na cidade e no da cidade"13.[pg. 17]

    Pelo que est sendo discutido, pode-se perceber que para compreender os processos que ocorrem no meio urbano necessrio examinar o pensamento de cientistas sociais a respeito da cidade e das conseqncias da vida urbana sobre seus habitantes14. Uma das tendncias mais marcantes das teorias que analisaram a cidade enquanto categoria social foi a de encar-la como uma varivel explicativa. Sob esta perspectiva a cidade vista como uma potncia social capaz de gerar atravs de sua influncias mais diferentes conseqncias na vida social. Os autores que encaram a cidade como uma varivel independente de um amplo processo social consideram o modo de vidaa que ela daria origem como seu efeito de maior alcance, atribuindo assim um forte valor explicativo ao urbano per se na anlise de vrios fenmenos que ocorrem no seu interior. Vrios destes autores tendem a atribuir cidade o poder de criar uma cultura urbana marcada fundamentalmente pela desorganizao social e cultural. A cidade e a u

    rbanizao seriam, sob esta perspectiva, foras profundamente desagregadoras. No poraso que a "Escola de Chicago", composta por cientistas sociais que se especializaram no estudo de cidades, tenha se preocupado tanto com a "patologia social". Para Wirth, um dos mais expressivos membros da "Escola de Chicago", o estabelecimento de cidades implicaria no aparecimento de uma nova forma de cultura caracterizada por papis sociais altamente fragmentados, predominncia[pg. 18]dos contatos secundrios sobre os primrios, isolamento, superficialidade, anonimato, relaes sociais transitrias e com fins instrumentais, inexistncia de um controle scial direto, diversidade e fugacidade dos envolvimentos sociais, afrouxamento dos laos familiares e competio individualista15. Apesar deste enfoque ter sido e ainda ser muito influente, ele equivocado.

    Ele confunde a cidade com a causa de vrios processos sociais, quando ela muito mais a conseqncia deles e/ou o lugar onde eles ocorrem. Uma limitao adicional desta prspectiva a dificuldade de definir o que o urbano e o que o rural, principalmente em pases como o Brasil, em que existe intensa migrao do campo cidade e fenmenosmo os bias-frias que, embora vivam em cidades, trabalham no campo. As idias de Wirth esto intimamente associadas teoria do continuam folk-urbanoformulada pelo antroplogo norte-americano Robert Redfield em decorrncia de suas pesquisas no Mxico. Seu modelo pertence s chamadas teorias de contraste, que procuram confrontar caractersticas de uma sociedade no-urbana com a de uma urbana. Ele acreditava que existiam variaes contnuas entre sociedades do tipo folk e sociedadesurbanas, crescendo ou diminuindo de um extremo para outro, tendo descrito uma sociedade folk como sendopequena, isolada, analfabeta e homognea, com um forte sentimento de solidariedade

    grupai. Os modos de viver esto convencionalizados naquele sistema coerente que chamamos de "cultura". O comportamento tradicional, espontneo, acrtico e pessoal;[pg. 19]no existe legislao ou hbito de experimento e reflexo com fina intelectuais. O paresco, seus relacionamentos e instituies, so as categorias tpicas da experincia e o po familiar a unidade de ao. O sagrado prevalece sobre o secular; a economia a mas de status que de mercado 16.

    Estabelecendo uma comparao entre diferentes pontos de seu continuam em relao

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    ciedade folk, Redfield mantinha quea vila camponesa quando comparada com a vila tribal, a cidade pequena quando comparada com a vila camponesa, ou a cidade quando comparada com a cidade pequena menos isolada; mais heterognea; caracterizada por uma diviso de trabalho mais compexa; tem uma economia monetria mais completamente desenvolvida; tem especialistasprofissionais que so mais seculares e menos sagrados; tem instituies de parentescoe compadrio que so menos bem-organizadas e menos eficazes no controle social; correspondentemente menos dependente de instituies de ao impessoal; menos religiosao que diz respeito tanto a crenas e prticas de origem catlica como s de origem inda; apresenta menor tendncia a encarar a doena como resultante da quebra de uma regra moral ou meramente de costumes; permite uma maior liberdade de ao e escolha aoindivduo17.

    Apesar de ter construdo seu modelo baseado em quatro comunidade que estudouna Pennsula de Yucatan, Redfield[pg. 20]argumentou que outras comunidades, situadas de modo semelhante em outros pontosdo mundo, poderiam ser ordenadas semelhantemente seguindo os mesmos princpios. A passagem de um extremo para outro no continuum folk-urbano se daria por causa do aumento da heterogeneidade social e da possibilidade de interao que ocorrequando a sociedade cresce. Igualmente, a perda do isolamento ocasionada pelo contato com outra sociedade ou cultura tambm incentivaria este processo. Desta forma, qualquer comunidade poderia ser localizada em um ponto determi

    nado do continuum e, dadas certas condies de densificao populacional e aumento de hterogeneidade, qualquer grupo se moveria na direo do plo urbano. Para Redfield, as conseqncias do deslocamento em direo ao extremo urbano seriaa desorganizao da cultura, a secularizao e o individualismo. A urbanizao enfraqua ou destruiria os firmes laos que ele acreditava que integravam os homens em umasociedade rural e criaria uma cultura urbana caracterizada pela fragmentao de papis sociais e um comportamento mais secular e individualista. A homogeneidade de uma sociedade rural qual corresponderia uma estrutura social no-ambgua e monoltica seria substituda na sociedade urbana por uma estrutura scial caracterizada por uma diversidade de papis, aes e significados. A cultural rural, na qual todos os elementos culturais seriam definidos, transformar-se-ia emuma cultura fragmentada na sociedade urbana. As consequncias inevitveis da culturaurbana seriam, ento, o conflito e a desorganizao.

    Desde que Redfield o desenvolveu, o modelo folk-urbano tem sido um tema constante em estudos urbanos e uma[pg. 21]quantidade muito grande de trabalho terico e emprico foi elaborada sobre o assunto. A mais famosa crtica a ele foi formulada por Oscar Lewis, outro antroplogo norte-americano. Em 1943 ele reestudou a vila mexicana de Tepoztln na qual dezessete anos antes Redfield tinha realizado a pesquisa que utilizara para a formulao inicial de seu modelo, mais tarde desenvolvido na Pennsula de Yucatan, Comparando seu estudo com o de Redfield, Lewis assinalou queA impresso dada pelo estudo de Redfield sobre Tepoztln a de uma sociedade relativamente homognea, isolada, de funcionamento suave e bem integrada, formada por pessoas contentes e bem ajustadas. Seu retrato da aldeia tem uma qualidade rousseaun

    iana que passa ligeiramente por cima de evidncias de violncia, distrbios, crueldade, doena, sofrimento e desajustamento. Pouco nos dito sobre a pobreza, problemas econmicos ou desavenas polticas. Ao largo de seu estudo encontramos uma nfase nos faores de cooperao e unificao na sociedade de Tepoztln. Nossos achados, por seu turnenfatizariam o individualismo subjacente das instituies e carter de Tepoztln, a fala de cooperao, a tenso entre as aldeias que se encontram dentro do municpio, as desvenas dentro da aldeia, a qualidade dominante de medo, inveja e desconfiana nas relaes interpessoais18.

    Por isto, Lewis sugeriu que "o continuum 'folk'-urbano era um modelo terico

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    inadequado para o estudo da mudana cultural" e que caracterizaes como folk, rural eur-[pg. 22]bano "confundem as questes dos estudos de mudanas a curto prazo, nunca tendo sidoprovado seu valor heurstico, como instrumento de pesquisa"19. Em 1951 Lewis realizou uma pesquisa de acompanhamento de habitantes de Tepoztln que haviam migrado para a cidade do Mxico, tendo mais tarde assim resumido seus achados:1o) Os camponeses da Cidade do Mxico adaptaram-se vida urbana, com muito maior facilidade do que se poderia esperar, a julgar por estudos comparativos dos Estados Unidos e da teoria "folk-urbana". 2o) A vida familiar permaneceu completamenteestvel e os laos extensos de famlia antes aumentaram do que diminuram. 3o) A vida eligiosa tornou-se mais catlica e disciplinada, indicando o reverso do processo previsto de secularizao. 4) O sistema de compradazgo continuou a ser forte, embora com certas modificaes. 5o) Persistiu o uso dos remdios e das crenas domsticas20.

    Em decorrncia de seus achados, ele sugeriu que seu estudo proporcionava "evidncia de que a urbanizao no constitui processo nico, integral e universalmente semante, mas assume formas e significados diferentes, que dependem das condies histricas, econmicas, sociais e culturais prevalecentes"21.[pg. 23]

    Subjacente aos modelos de autores como Wirth e Redfield est uma perspectiva

    culturalista que procura explicar a dinmica de uma sociedade em funo das representaculturais que se acredita dela fazem seus membros. Sob este ngulo, a cultura encarada no como um fenmeno que produzido pelos homens como resultado de relaes soci, mas como algo externo sociedade e que seria uma espcie de varivel independente.O comportamento social passaria ento a ser explicado como resultado da cultura eno o contrrio. O risco desta postura reside em que a aplicao deste modelo pode levaa explicar a situao de grupos sociais ou at de sociedades globais em funo das carersticas de sua cultura. A teoria da modernizao, que foi utilizada por vrios cientistas sociais para explicar o desenvolvimento e o subdesenvolvimento de sociedades a partir do grau de modernidade de seus membros se constitui num exemplo significativo de culturalismo que esquece seu principal postulado, a saber, o do relativismo cultural22. Nesta perspectiva, procura-se explicar inclusive a pobreza pela suposta ausn

    cia de uma "cultura urbana" ou de atitudes "modernas" por parte dos grupos subalternos. Um exemplo desta postura representado pela teoria da "cultura da pobreza" elaborada pelo prprio Oscar Lewis, baseado em seus estudos no Mxico e em Porto Rico. Ele definiu uma "cultura da pobreza" como tendosua prpria estrutura e lgica, um modo de vida passado adiante de gerao a gerao aoo de linhas familiais. A cultura da pobreza no somente[pg. 24]uma questo de privao ou desorganizao, um termo significando a ausncia de algo. Elcultura no sentido antropolgico tradicional na medida em que proporciona aos seres humanos um esquema de vida, um conjunto pronto de solues para problemas humanos, e assim desempenha uma significativa funo adaptativa23.

    De acordo com Lewis, esta cultura apresenta quatro principais caractersticas. Em primeiro lugar ele aponta "a falta de efetiva participao e integrao dos pobresnas principais instituies da sociedade inclusiva". Em segundo lugar, "ao nvel da comunidade local, achamos condies habitacionais precrias, abarrotamento, gregarismo,mas acima de tudo um mnimo de organizao que transcende o nvel da famlia nuclear e ensa". Em terceiro lugar, "ao nvel da famlia os principais traos da cultura da pobreza so a ausncia da infncia enquanto estgio especialmente prolongado e protegido do cclo de vida, iniciao sexual precoce, unies livres ou casamentos consensuais, uma incidncia relativamente alta de abandono das esposas e filhos, uma tendncia para as

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    famlias centradas na me ou numa mulher e conseqentemente um conhecimento muito maior dos parentes maternos, uma forte predisposio ao autoritarismo, falta de privacidade, nfase verbal na solidariedade familiar, que s raramente alcanada por causa darivalidade entre irmos, e competio por bens escassos e afeto materno".[pg. 25]

    Finalmente, "no mbito do indivduo, as principais caractersticas so um forte setimento de marginalidade, de desamparo, de dependncia e de inferioridade"24. Embora Lewis tenha assinalado que "a subcultura da pobreza uma parte da cultura mais ampla do capitalismo" e tenha admitido que "as principais razes para apersistncia da subcultura so, sem dvida, as presses que a sociedade inclusiva exercsobre seus membros e a estrutura da prpria sociedade inclusiva", ele no obstantemantm queesta no a nica razo. A subcultura desenvolve mecanismos que tendem a perpetu-la, ecialmente por causa do que ocorre com a viso do mundo, as aspiraes e o carter das rianas que crescem nela. Por esta razo, melhores condies econmicas, embora absolutnte essenciais e da maior prioridade, no so suficientes para alterar basicamente ou eliminar a subcultura da pobreza. Ademais, a eliminao um processo que levar maisde uma nica gerao, mesmo sob as melhores circunstncias, incluindo uma revoluo socta25.

    Lewis, que se tornou famoso nas cincias sociais ao assinalar as falcias contidas no modelo do continuurn folk-urbano de Redfield, foi ele prprio fortemente criticado pelo conceito que criou. De fato, existe uma srie de crticas que podem ser

    feitas a sua teoria da "cultura da pobreza". Embora seja importante sua tentativa de chamar a ateno sobre a marginalidade como uma situao de pobreza, sua anlise organizao social dos pobres inadequada e opera com[pg. 26]excessivas simplificaes a respeito dos mesmos. Criticando o fato da marginalidadedos pobres e sua falta de participao e integrao nas principais instituies da sociserem atribudas a seu baixo nvel de organizao, Silberstein assinalou que o ltimo a adaptao sofisticada por parte dos pobres, que lhes permite agir dentro dos estreitos limites da pobreza e contornar a rigidez estrutural imposta pela sociedademaior"26. Um nvel mais profundo de anlise, entretanto, o que se centra no questionamento da validade de seu modelo explicativo. Este, como pode se perceber, de naturez

    a psicos social e fortemente influenciado pela perspectiva culturalista. Assim,pode-se questionar o conceito da cultura da pobreza como uma entidade autoperpetuante numa espcie de crculo vicioso. Subjacente a esta abordagem est a imputao aosrios membros das classes baixas da responsabilidade pela situao na qual se encontram presos. Neste sentido, Kowarick chamou a ateno para o enfoque "essencialista" e o conceito formulado por Lewis. Ela apresentada como uma entidade ontolgica, parte dasociedade e como tendo uma essncia prpria sem que em nenhum momento se transcendao universo restrito de configuraes das caractersticas das populaes que vivem a site marginalidade. A marginalidade, entretanto, no pode ser considerada auto-explicvel, pois sua razo de ser se encontra em processos e estruturas que no devem ser confundidos com as situaes nas quais ela se manifesta27.[pg. 27]

    Por operarem com pressupostos tericos equivocados, as proposies de autores queencaram a cidade como uma varivel independente e/ou que tm uma viso culturalista dos processos que ocorrem no contexto urbano, tm sido freqentemente refutadas por pesquisas que estudaram a realidade da Amrica Latina, continente cuja urbanizao ocorreu de maneira diversa do que nas sociedades centrais. Estas pesquisas sero analisadas a seguir.[pg. 28]IV

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    --------?--------Pesquisas antropolgicas no contexto urbano

    1. Migrao e trabalho Ao se dar exemplos de estudos antropolgicos do meio urbano, convm comear pelaspesquisas sobre a migrao campo-cidade, justamente por ser ela um fenmeno intenso em pases como o Brasil e por colocar populaes de origem rural em confronto com o mundo urbano. Existe uma srie de autores que se preocupam justamente com a questo da adaptaoou inadaptao de migrantes de origem rural ao contexto urbano e as transformaes que processo migratrio envolve. Alguns estudiosos tendem a enfatizar que a migrao paraa cidade significa um profundo processo de ressocializao que requer a aprendizagem de novos padres de comportamento e a aquisio de novos estoques simblicos; outros utores tendem a argumentar que este processo muito menos profundo que aparenta,j que os meios de comunicao e a prpria escola rural tendem cada vez mais a criar orentaes e comportamentos compatveis com a vida em cidades. Um dos estudos pioneiros sobre o tema da migrao campo-cidade a obra Os parceiros do Rio Bonito de Antnio Cndido que se constitui num estudo sobre o caipira deuma rea do estado de So Paulo e as transformaes de seus[pg. 29]meios de vida, em decorrncia de sua progressiva incorporao esfera da economia capialista. Na concluso do livro, intitulada "O caipira em face da civilizao urbana", o au

    tor fornece uma rica anlise dos processos envolvidos na desagregao do mundo do campons e sua conseqente migrao e gradativa incorporao esfera da vida urbana:Um grupo que se sentia equilibrado e provido do necessrio vida, quando se equiparava aos demais grupos de mesmo teor, sente-se bruscamente desajustado, mal aquinhoado, quando se equipara ao morador das cidades, cujos bens de consumo e equipamento material penetram hoje no recesso da sua vida, pela facilidade das comunicaes, a multiplicidade dos contatos, a penetrao dos novos estilos de viver. Em conseia muda, para o estudioso, o problema dos seus nveis de vida, que passam em nossos dias por uma crise aguda, j referida, em que a ampliao das necessidades no compada pelo aumento do poder aquisitivo. Colocado em face desta situao, o caipira reage de duas maneiras principais: rejeita em bloco as suas condies de vida e emigra,proletarizando-se; ou procura permanecer na lavoura, ajustando-se como possvel.Vimos que tal ajuste mais satisfatrio no sitiante mdio, precrio no parceiro, mais

    inda no colono e no camarada, podendo dar lugar decadncia e plena misria.Em todos eles, porm, vimos que pode dar-se: 1) aceitao total, 2) rejeio total ou 3ceitao parcial dos traos introduzidos pela nova situao -sendo a ltima hiptese mam e normal nos que permanecem no campo. Entre os que emigram, o ajustamento situao urbana, dadas certas con-[pg. 30](lies econmicas mnimas, quase sempre mais fcil do que poderia parecer, e se deveato de, mesmo atual de incorporao rpida, o afastamento cultural entre os agrupamentos rurais e os centros urbanos ser menos abrupto que supomos. Com efeito, h uma srie de gradaes que se interpem entre os respectivos tipos extremos, dando lugar a uma continuidade, ao longo da qual encontramos estdios progressivos de civilizao. Estes ligamentos sempre permitiram a incorporao lenta, mas perceptvel, de traos urbano

    s culturas rsticas, que os vo progressivamente (ou regressivamente) redefinindo aolongo da gradao. Como assinalam os estudiosos para o caso da msica, da poesia e dos contos, muito do que reputamos especfico das culturas rsticas , na verdade, frutoduma lenta incorporao de padres eruditos. Processo que se poderia com justeza chamar de degradao cultural se fosse possvel dar expresso o sentido etimolgico, despa de qualquer significado pejorativo.Graas a tais conexes compreende-se que o caipira consiga freqentemente, no espao dealguns anos, se no assimilar-se, ao menos acomodar-se satisfatoriamente nos padrespropostos pela civilizao urbana. E aqui podemos indicar que o processo de urbanizao - civilizador, se o encararmos do ponto de vista da cidade - se apresenta ao ho

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    mem rstico propondo ou impondo certos traos de cultura material e no-material. Impepor exemplo, novo ritmo de trabalho, novas relaes ecolgicas, certos bens manufaturados; prope a racionalizao do oramento, o abandono das crenas tradicionais, a indiualizao do trabalho, a passagem vida urbana. Formulando novamente o que ficou dito, podemos verificar no caipira paulista trs reaes adap-[pg. 31]tativas em face de tal processo: 1) aceitao dos traos impostos e propostos; 2) aceitao apenas dos traos impostos; 3) rejeio de ambos. claro que a formulao supe trs tipos ideais de caipira, movendo-se num espao sociural homogneo e optando livre e conscientemente. A realidade diversa; e se podemos reter os trs tipos bsicos, foroso acentuar que a sua conduta no livre e depenma srie de fatores. Assim, a proximidade dos centros urbanos, a sua penetrao nas zonas rurais, o tipo de atividade econmica, a qualidade da terra, o sistema de trabalho e de propriedade so alguns elementos que, combinados de modo diverso, condicionam a reao adaptativa28.

    O que est sendo discutido no texto acima o ajustamento do migrante de origemrural ao meio urbano. O autor chama a ateno para dois aspectos fundamentais nesteprocesso. O primeiro se refere tendncia do meio rural incorporar cada vez mais padres culturais que se originam e so difundidos a partir de cidades, fenmeno que refora o ponto de vista de que no faz muito sentido postular a existncia de uma cultura rural (ou folk) e uma cultura urbana como realidades estanques. O segundo aspecto est relacionado com o fato de que, embora o migrante j este

    ja munido de alguns padres culturais que o ajudaro na adaptao ao meio urbano, este rocesso certamente no monoltico ou homogneo, j que qualquer indivduo se depara cntemente com uma variedade de situaes nas quais diferentes aspectos esto envolvidos, no havendo por que esperar que seu comportamento seja igual em todas elas. Neste sentido, impor-[pg. 32]tante distinguir entre diferentes reas de envolvimento social, como por exemplo trabalho, famlia, religio, lazer, etc. Em verdade, h uma srie de variveis que precisam ser levadas em considerao ao analisar o ajustamento de migrantes vida urbana. Entre estas variveis se encontram: a rea de origem, a motivao para migrar, as expectativas em relao ao meio urbanos oportunidades de trabalho oferecidas pela cidade de destino, o tempo de exposio

    vida urbana, os mecanismos e instituies que ajudam no processo de ajustamento, o aspecto ou a rea de envolvimento social que est sendo aprofundado pelo pesquisador,etc. A motivao para migrar e as expectativas em relao cidade so variveis que gee se apresentam associadas. Assim, num estudo sobre vida rural e migrao para a cidade de So Paulo, Durham, entrevistando migrantes, assinala que "quando se tenta precisar em que consistem as 'dificuldades' da vida rural, aparecem trs tipos de respostas, freqentemente conjugados: a misria e a falta de conforto; o trabalho 'duro'; a incerteza da produo; a impossibilidade de melhoria'. Por isto,para o trabalhador rural, a migrao se apresenta como uma tentativa de "melhorar devida", isto , de restabelecer, em nvel mais alto, o equilbrio entre as necessidades socialmente definidas e a remunerao do trabalho. Assim como a migrao motivada pinsatisfaes que so sentidas sobretudo na esfera econmica, a possibilidade de vir

    bter uma colocao satisfatria, isto , que preencha ou venha a preencher, pelo menos m parte, as aspiraes do migrante, que condiciona todo o processo de integrao na zonurbana, ou determina, ao contrrio, o retorno vida rural. Vencido o problema da localizao[pg. 33]e locomoo, o que feito com o auxlio de grupos de relaes primrias que ajudam o ma conseguir alojamento e aprender a locomover-se, apresenta-se a questo fundamental da colocao. A prpria possibilidade de permanncia na cidade, para os trabalhadors que migram com pouco ou nenhum recurso, est condicionada possibilidade de obter

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    rapidamente um modo de ganhar a vida29.

    A obteno de um emprego assalariado, simbolizado pela carteira profissional assinada, significa a entrada no mercado formal de trabalho e conseqentemente a obteno de vantagens como um salrio relativamente constante, uma ocupao de tempo integ, cobertura da assistncia social (isto , aceso a benefcios tais como atendimento mdco gratuito, frias remuneradas, 13 salrio, direito aposentadoria, licena-sade, eregulamentao legal do contrato de trabalho e a tranqilidade de no ser detido sob a cusao de vadiagem. A valorizao da participao no mercado formal de trabalho fica clara num estudo obre o botequim que revela, entre outras coisas, que as "rodinhas" que nele se formam se constituem na base da percepo do status do indivduo. A ocupao regular no or formal de trabalho um dos elementos de distino neste processo: "O smbolo de staus mais valorizado a carteira funcional ou profissional. Ela indica que o portador tem uma certa estabilidade no emprego, realmente grande quando se trata de funcionrios pblicos. A frase 'fulano funcionrio' tem uma conotao ao mesmo tempo ela e reconhecedora da posio de superioridade do outro. Isto se explica no s por causda[pg. 34]maior facilidade em obter crdito dos proprietrios do botequim (...), como tambm pela proteo que o documento representa frente polcia"30. No surpreende, portanto, que muitas pesquisas mostrem que, apesar da rigideze monotonia do trabalho operrio e das dificuldades que os migrantes tm de enfrent

    ar no meio urbano, este geralmente encarado positivamente, na medida em que simboliza o ideal de ascenso social e de acesso a bens e servios. Neste sentido, uma anlise da ideologia de um grupo de operrios que migraram para Anpolis (cidade do estado de Gois) revela que os aspectos valorizados de um modo positivo, so justamente a autonomia e a independncia do operrio urbano (em contraposio aos laos de solidariedade social vigentes no campo). Segundo a autora da pesquisa, Cludia Menezes,(...) os migrantes concebem o trabalho na fbrica melhor do que a atividade agrcolaporque: a) no trabalham tanto quanto na lavra; b) no consideram o trabalho to pesado; c) no assumem responsabilidades quanto produo e, portanto, no precisam particr dos riscos empresariais; d) comparativamente obtm a mesma renda com menos esforo; e) podem morar na cidade, o que representa, tambm em relao condio anterior, manforto e prestgio, na medida em que se torna possvel assumir a identidade urbana;

    f) finalmente, atravs dele, obtm proteo legal e acesso educao formal para os fi[pg. 35]

    Alm de refutar as teorias que encaram a cidade como um lugar de desagregao social e cultural, em contraposio a um meio rural supostamente harmnico, este tipo deresultado de pesquisa indica que, apesar da rotina do trabalho fabril, a cidade encarada como um espao de liberdade e possibilidades, na medida em que o empregoregular visualizado como uma segurana e independncia, inexistentes no campo. Dada, entretanto, a incapacidade da economia de pases como o Brasil de oferecer empregos regulares a sua populao urbana em idade de trabalhar, existe uma parte considervel da fora de trabalho que sobrevive no chamado setor informal de trabalho, desempenhando uma srie de atividades e biscates. Este setor tem todas as conhecidas desvantagens de variao de rendimentos devido falta de trabalho regular, au

    sncia de qualquer cobertura por parte da assistncia social, falta de amparo legalou regulamentao do trabalho, etc. Ele tem, entretanto, vantagens como no exigir credenciais oficiais de educao, de ter horas de trabalho flexveis, de permitir o trabalho "por conta prpria" e de no implicar em disciplina e autoridade de trabalho, deservir a pessoas que s vezes teriam dificuldade de obter empregos no setor formal de trabalho (mulheres, crianas, velhos, deficientes fsicos, etc.) e de permitirter vrias atividades simultaneamente (inclusive a de trabalhar ao mesmo tempo nosetor formal e no informal). A obteno de empregos regulares no setor formal varia, obviamente, em funo de ftores como a situao do mercado de trabalho, as credenciais exigidas (como nvel de e

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    scolaridade, documentao), idade, sexo, etc. Neste sentido, uma pesquisa que estudou famlias de origem rural vivendo em favelas da cidade de So Paulo assinala que,[pg. 36]embora o grande atrativo da cidade seja o trabalho assalariado, ele tende a s absorver os homens. Na medida em que as mulheres ficam restritas a empregos domsticos elas no experimentam uma grande transformao em suas atividades em decorrncia do pocesso de urbanizao. Por isto, "apesar das diferenas que existem no modo de realizar as tarefas domsticas na zona rural e nas grandes cidades, as mulheres mantm umacondio semelhante que tinham antes da migrao. Quando se transformam em empregadasmsticas tm que incorporar novos padres, de modo especial quando trabalham para famlas de classe mdia ou alta. Mas assim mesmo tm como base a experincia acumulada no passado, que aprimorada, consertada e acertada em funo de certas exigncias urbanas de classe". J no que diz respeito ao trabalho masculino, a situao bastante diferente:O conhecimento interiorizado nas prticas imperantes no campo e nas pequenas cidades pouca serventia apresenta para o trabalho fracionado da indstria. Precisa seresmerilhado e polido em termos das exigncias do trabalho industrial.Mesmo no caso da construo civil, seu estoque de conhecimentos anterior, quando existente, de pouco serve para a modalidade de trabalho que caracteriza as empresasdo ramo. Depois de satisfazer determinados tipos de trabalho qualificado, que necessitam de aprendizagem prpria a uma produo de molde industrial, tal setor emprega abundantemente mo-de-obra braal que poucos conhecimentos necessita para cumpriras tarefas que lhe so impostas.

    Se do ponto de vista do trabalho o adestramento do migrante tende a no ser parcializado, pelo menos na forma e no grau que exige a indstria, por outro[pg. 37]lado, seu "equipamento cultural" originrio precisa ser readaptado. E isso, mesmopara as atividades que no tm como base a fragmentao do trabalho, cujos exemplos tps so os servios autnomos ou assalariados antes referidos. Em outros termos, o migrante - em razo de sua eventual experincia anterior nas cidades - precisa "urbanizar" seus conhecimentos, interiorizando, entre outros, regras e valores de "distncia" e "proximidade" social, fruto do relacionamento das relaes interclasses imperantes na metrpole. Desta forma, analogicamente, precisa desenvolver sua "sagacidade"e "astcia" pessoal a fim de obter uma parcela do excedente das camadas mdias e altas que para muitos - vigias, faxineiros, carregadores, "tarefeiros" de ordem -

    podem ser essencial como fonte de renda32.A obteno de empregos, assim como a satisfao de outras necessidades (alimenta

    rigo, sade, posse de documentos, etc.) naturalmente no se restringe aos migrantes,constituindo-se em problemas prementes para toda a populao urbana de baixa renda.Assim, numa pesquisa realizada por Berlinck e Hogan, "as entrevistas antropolgicas revelam que a moradia, a legalizao, o emprego e a alimentao constituem quatro neessidades consideradas urgentes pela populao que compe as camadas de rendas mais baixas de So Paulo"33. , pois, importante analisar como algumas destas necessidades so resolvidas pela populao urbana. Por isso,[pg. 38]

    quando se discutem questes como o ajustamento de migrantes cidade, a obteno de empegos e o trabalho no setor formal e informal, importante analisar a instituio do mutiro e suas possibilidades de continuao no contexto urbano. Esta prtica, freqentemeio rural, se refere a um processo de trabalho baseado na cooperao e ajuda mtua,que est calcado na troca de favores, em compromissos familiares e obrigaes recproca, ao contrrio do processo capitalista de compra e venda da fora de trabalho.Consiste essencialmente na reunio de vizinhos, convocados por um deles, a fim deajud-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roada, plantio, limpa, colheita, malhao, construo de casa, fiao, etc. Geralmente os vizinhos so convocados e o irio lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o trabalho. Mas no h remunerao

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    reta de espcie alguma, a no ser a obrigao moral em que fica o beneficirio de corrender aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. Este chamado no falta, porque praticamente impossvel a um lavrador, que s dispe de mo-de-obra domstica, dar contaano agrcola sem cooperao vicinal34.

    Alm do aspecto econmico, o mutiro ocupa todo um aspecto ldico que se evidenciana festa que oferecida pelo beneficirio por ocasio do final do processo de trabalho. Examinando relatos de migrantes de origem rural sobre a importncia do mutiro nocampo, Menezes assinala queo que fica evidenciado por estas descries a importncia que tem para os migrantes adimenso ldica apresentada por essas formas de trabalho coletivo. O mutiro e suas variantes preenchem no s[pg. 39]uma funo econmica, mas desempenham um papel importante na definio de laos de socidade entre participantes. Alm de solucionar o problema da mo-de-obra, superando aslimitaes da atividade individual ou da unidade familiar (na medida em que a necessidade de ajuda originada pela prpria tcnica agrcola), leva tambm criao de umprestaes e contraprestaes de servio, pois, embora no haja remunerao direta (moxiste a obrigao moral de retribuio da ajuda.A reciprocidade , portanto, o elemento dinamiza-dor que possibilita a reproduo contua desse sistema de cooperao35.

    Mas, como argumentam vrios autores, bastante discutvel o grau de cooperao en

    vida no mutiro j que ocorre mais uma justaposio de atividades equivalentes e indepedentes que uma diviso e interdependncia de tarefas, havendo mais um trabalho "associado" que um trabalho "dividido"36. Se no meio rural o mutiro est comeando a diminuir devido crescente penetraoelaes capitalistas de produo no campo, nos grandes centros urbanos ele est ganhandada vez mais importncia na construo das casas das classes trabalhadoras. Estas habitaes, geralmente localizadas em loteamentos de periferia, so construdas com grande acrifcio em fins de semana e dias de folga por seus prprios moradores, contando com a ajuda de parentes e/ou amigos.[pg. 40]

    Embora freqentemente se procure apresentar a prtica da autoconstruo como sendoo "mutiro urbano", na verdade ela se caracteriza fundamentalmente por ser uma for

    ma de trabalho no-pago, contribuindo para rebaixar o custo da reproduo da fora de tabalho, do qual a habitao o segundo item mais importante, vindo depois da alimentae para deprimir os salrios. "Assim, uma operao que , na aparncia, uma sobrevivncprticas de 'economia natural' dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem comum processo de expanso capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo naintensa explorao da fora de trabalho"37. Alm de analisar que a autoconstruo se constitui numa forma de explorao da fortrabalho, c importante ressaltar que o exame de casos concretos de autoconstruo revelam que aquilo que muitas vezes apresentado como sendo o "mutiro urbano" na verdade um processo bastante diferente do que ocorre no meio rural. Analisando a prtica da autoconstruo com a ajuda de parentes e amigos na periferia do Rio de Janeiro, Maria Helena Beozzo de Lima assinala quePara construir a casa prpria utilizando trabalho obtido dessa maneira, preciso qu

    e o autoconstrutor recorra a pessoas a quem j ajudou ou se dispe a ajudar um dia.Entretanto, essa forma de cooperao pouco ou nada tem a ver com o "mutiro'' tal comotem sido, algumas vezes, equivocadamente definido.[pg. 41]Existe uma certa idealizao do mutiro que tem levado a atitudes ingnuas diante dessa"redes de solidariedade" que em certa medida viabilizam a autoconstruo. O resultado que tais redes, que na realidade constituem um sistema bem articulado de troca de trabalho, acabam por ser interpretadas como uma ajuda desinteressada entrepares e conseqentemente como manifestaes de uma forte solidariedade de classe. A ob

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    servao, no entanto, demonstra o contrrio; a partir dela fica bastante claro que, independentemente de ser prestada por parentes, por amigos ou por colegas de trabalho, o sentido da ajuda no se remete a uma fraternidade incondicional, e que o seu significado se cristaliza de fato na expectativa de ser tambm auxiliado no momento em que se precisar.Uma caracterstica dessas redes de troca de trabalho que no so acionadas continuamete durante o processo de autoconstruo, cobrindo todas as suas fases. No geral, ostrabalhadores as acionam em certos momentos e para tarefas especficas. bastante raro para um trabalhador contar com o trabalho de um parente ou amigo sistematicamente. Para isso necessrio que exista uma relao de amizade muito forte, e h regraspeciais que extrapolam o cdigo que orienta as redes de troca de trabalho de umamaneira geral, e que vo regular um verdadeiro "pacto de ajuda mtua contnua".No caberia aqui uma anlise detalhada dos princpios e das normas que regem as redesde troca de trabalho na autoconstruo; importante, todavia, fazer referncia a duas egras que definem as obrigaes principais de quem recebe ajuda. A primeira delas aque se refere ao oferecimento da alimentao e da bebida aos que esto trabalhando como sen-[pg. 42]do uma obrigao do dono da casa. A importncia atribuda a esse aspecto tal que aqueque no possuem recursos para arcar com as despesas que o cumprimento dessa regraacarreta nem sequer solicitam ajuda, "escolhem" de antemo tocarem sua obra sozinhos. A segunda est relacionada com o compromisso - "sagrado" como dizem alguns moradores - de atender pelo menos na mesma medida as solicitaes de trabalho daqueles

    que trabalharam em sua casa.Assim, ingressar numa rede de trabalho exige, por um lado, alguma reserva monetria para cobrir gastos prescritos e, por outro, uma disposio forte para retribuir, dando ao outro o mesmo tempo de trabalho recebido38.

    2. Formas de sociabilidade no contexto urbano Vimos, anteriormente, que boa parte da literatura sobre urbanizao aponta comoconseqncia da vida em cidades a criao de uma cultura urbana caracterizada pela desrganizao social e cultural e responsvel pelo surgimento de atitudes individualistase competitivas, afrouxamento dos laos familiares, secularizao, etc. De modo semelhante, a teoria da modernizao prev o surgimento de novos comportamentos e orientaeslturais nas elites e nas massas como precondio e como decorrncia do desenvolvimentoeconmico, encarando este processo como ocorrendo de um modo relativamente linear

    no continuum tradicional-moderno.[pg. 43]

    De acordo com esta teoria, fenmenos como o paternalismo e o clientelismo, que so geralmente vistos como tipicamente rurais ou tradicionais, deveriam gradativamente desaparecer num contexto moderno como as cidades, sendo substitudos por relaes mais impessoais. Entretanto, pases como o Brasil se constituem em exemplos esclarecedores de como o paternalismo e o clientelismo podem adaptar-se dinmica da sociedade urbano-industrial, vivendo lado a lado com relaes mais impessoais. Embora tambm existam em sociedades altamente avanadas39, o paternalismo e o clientelismo so especialmente fortes em situaes em que os marcos de referncia formaino fornecem uma efetiva regulao das relaes pessoais, sendo mais perceptveis em sades "caracterizadas pela existncia de estratos hierarquizados numa gradao de poder

    econmico e poltico. Os laos entre patro e cliente proporcionam assim um canal atrado qual indivduos de estratos baixos obtm bens valorizados e proteo poltica, os ps trocando estes pelo apoio poltico de seus inferiores com o qual eles podem aumentar sua prpria base"40. Poder-se-ia sugerir que uma das situaes em que o paternalismo e o clientelismo provavelmente sero fortes a experimentada por sociedades que esto se urbanizandorapidamente e nas quais somente parte da populao urbana absorvida por relaes caplistas de produo, o restante tendo que sobreviver no mercado informal de trabalho.Em ambos os casos, a situao com a qual os membros[pg. 44]

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    das classes subalternas das grandes cidades se defrontam e que tm que enfrentar ade sobreviver e entender as regras de um contexto em que os recursos so bastanteescassos e a competio acentuada. A lgica da continuidade do clientelismo nas partes mais complexas de sociedades como a brasileira reside no fato de que neste tipo de pas existe um capitalismo tardio e dependente, onde o "tradicional" se articula com o "moderno" e nos quais o desenvolvimento se d sob forma desigual e combinada. Neste tipo de sociedade se verifica um capitalismo que no produziu uma separao radical entre interessesagrrios e industriais e que tambm, apesar de seu freqente dinamismo, no capaz de orporar ao sistema produtivo toda populao em idade de trabalho. Esta massa de desempregados e subempregados vem formar a maior parte do setor informal da economiaurbana e existem evidncias sugerindo que ele no composto somente por recm-chegado cidade41. Analisando os mecanismos institucionalizados sui generis que permitem a adaptao de setores marginais urbanos numa estrutura social deste tipo, Berlinck e Hogan argumentam que "o problema da adaptao se refere, em ltima anlise, ao desenvolvimnto de uma rede de interao relativamente repetitiva e padronizada que permita populao obter do meio em que vive os recursos necessrios satisfao de suas necessidadseus desejos"42. Por isto, a noo[pg. 45]de rede de relaes sociais, utilizada por antroplogos em outros contexto43, adquireuma importncia fundamental para analisar o dia-a-dia das populaes urbanas marginais

    ou de baixa renda, bem como de outros setores sociais44. Examinando a questo da sobrevivncia de setores marginais da populao urbana da mrica Latina, Lornnitz assinala que "um estrato importante da sociedade urbana latino-americana, o marginal, assegura sua sobrevivncia mediante o uso da reciprocidade. Ao compartir seus recursos, escassos e intermitentes, com os de outros emidntica situao, o povoador das 'barriadas' logra impor-se em grupo a circunstncias ue seguramente o fariam sucumbir como indivduo isolado"45. Baseado em suas pesquisas no Mxico, esta autora identifica dois tipos de relaes na organizao social do setor informal: a) o intercmbio entre iguais presente nrelaes de troca recproca de bens e servios; b) as relaes patro/ cliente que ocorr exemplo, quando pequenos empresrios utilizam seus parentes e conhecidos para criar uma unidade de produo. Este tipo de relaes assimtricas significa freqentementresena de um intermedirio, j que o patro funciona ao mesmo tempo como intermedirio

    [pg. 46]entre seus clientes, que fazem parte do setor informal da economia, e as instituies formais da sociedade46. No que diz respeito ao intercmbio entre iguais, Lomnitz resumiu seus principais resultados de pesquisa em favelas mexicanas do seguinte modo: 1. Redes de reciprocidade so grupos de vizinhos que cooperam na tarefa diriade sobrevivncia econmica mtua. 2. A afiliao em redes baseada em unidades familiares, no em indivduos. 3. As redes so constitudas e dispersadas de acordo com um processo dinmico governado por fatores econmicos e sociais, tais como a evoluo histrica e a estrutura dpropriedade na favela, as origens geogrficas e a estrutura familiar de seus membros, os principais incidentes no ciclo de vida, e os vaivns dirios da vida em fave

    la. 4. O tamanho, estabilidade e intensidade da troca numa rede de reciprocidade dependem da proximidade social entre as famlias-membros. Todas as redes de parentesco tendem a ser mais estveis, mais auto-suficientes, e maiores em tamanho queredes de vizinhos que no so parentes. 5. A filiao a redes baseada numa igualdade fundamental de necessidades entreseus membros47.[pg. 47]

    A autora faz a seguinte relao de bens e servios que so objeto de intercmbio r

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    oco: a) Informao. Instrues para migrar, ajuda para encontrar trabalho e alojamento,orientao geral para a vida urbana, e informao interpessoal (mexericos). b) Ajuda trabalhista. Ao incorporar-se rede, o migrante masculino recebe ajuda para aprender um ofcio atravs dos contatos com a rede. Muitas redes se caracterizam por um ofcio prprio. Os recm-chegados se incorporam ao ofcio como aprendizes,e compartem os salrios de seus anfitries at o momento em que conseguem ganhar o suficiente para se manterem. c) Emprstimos. H emprstimos dirios ou quase dirios de comida, dinheiro, roupaerramentas e uma ampla variedade de artigos domsticos e de uso geral. d) Servios. Estes favores incluem o alojamento e a alimentao dos novos migrantes por perodos indeterminados: todas suas necessidades esto previstas durante o perodo inicial de sua residncia na cidade. Um tratamento similar se outorga s visitasdo campo, que eventualmente poderiam integrar-se permanentemente rede. Ademais,a ajuda se estende a certos parentes necessitados tais como vivas, rfos, velhos edoentes. Os membros da rede cuidam das crianas quando a me est incapacitada por doena ou por necessidades de trabalho. A ajuda mtua inclui uma ampla gama de servios:construo e manuteno de habitaes, transporte dirio de gua potvel, diversos recauidado de crianas alheias quando a me se encontra ocupada. e) Apoio moral. As redes so mecanismos que geram solidariedade e que abarcamtodos os incidentes do ciclo[pg. 48]vital. Mais de 60% das relaes de compadrio no estudo realizado se deram entre parentes e amigos da famlia48.

    J no que diz respeito s relaes assimtricas do tipo patro/cliente, a rede funcomo um mecanismo que poderia ser utilizado por qualquer membro empreendedor para atender seus fins pessoais ou at para o progresso coletivo do grupo social. Asrelaes assimtricas so geradas dentro de um "grupo de ao" que, a partir de certa ilidade e especializao, se transforma em "quase-grupo". Entretanto, "a estrutura interna de um 'quase-grupo' difere da de uma rede de reciprocidade, devido existncia de um chefe. Este chefe se converte no patro ao controlar recursos dos quais carecem seus clientes, tais como capital, emprego ou influncia poltica fora da favela. Devido desigualdade na relao de intercmbio no quase-grupo, a estrutura tornou-e assimtrica"49. Por sua vez, existem trs tipos de intermedirios no Mxico:a) recrutadores de trabalho; b) caciques polticos- c) intermedirios de produo e comrcializao. As carreiras de todos estes intermedirios comea nas suas redes de interc

    io recproco. Inicialmente o intermedirio se diferencia dos demais membros de sua rede nos seguintes pontos: 1) o intermedirio possui alguma habilidade de valor econmico real ou potencial; 2) est em situao de recrutar aos membros de sua rede; 3) pssui alguma relao com algum patro fora da favela. No caso de cumprirem-se estas condies a estrutura de ajuda mtua for-[pg. 49]mada no interior da rede pode transformar-se num recurso econmico que haver de beneficiar materialmente ao intermedirio50. No se deve, entretanto, pensar que o fenmeno da reciprocidade seja restrito sclasses baixas. Neste sentido, Berlinck e Hogan assinalam que "ainda que as classes mais altas se utilizem de um nmero maior de mecanismos diferentes para a satisfao de suas necessidades e desejos, tanto elas como as classes mais baixas se uti

    lizam predominantemente de relaes de parentesco, de amizade e de 'conterraneidade'para resolverem seus problemas e dedicam grande parte de seu tempo 'livre' cultivando relaes informais"51. Examinando a classe mdia urbana chilena, Lomnitz aponta como um de seus principais atributos o uso do compadrio, enquanto sistema de reciprocidade de favores. Analisando as regras desta forma de reciprocidade, ela assinala que "as sanes sociais que fazem cumprir a reciprocidade no compadrio so freqentemente mais fortesque os contratos escritos ou obrigaes legais. Como colocado por um dos informantes, 'a no reciprocao to desonrosa como o no pagamento de algo; a gente nunca perdgum que aceitou um favor importante e depois esquece. Isto, entretanto, raramente

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    acontece'. Um princpio no escrito do compadrio est contido no ditado espanhol: Hoje por ti, amanh por mim'"52. De modo semelhante, Leeds mostrou a importncia que mtodos como a "panelinha"e o "cabide" tm no Brasil[pg. 50]para as classes mdias e superiores na obteno de empregos em instituies pblicas e das, bem como na resoluo de outros tipos de problemas53. A importncia para a classe mdia dos relacionamentos informais em nvel de parentes e amigos fica clara numa pesquisa realizada por Velho com um extrato socialcomposto de "white collars" em Copacabana, na qualverificou-se a importncia crucial dos parentes na vida das pessoas investigadas.Mesmo em apartamentos conjugados foram encontradas vrias situaes em que viviam sobo mesmo teto no s pais e filhos, mas avs, sobrinhos, tios, primos, etc. Embora estano fosse a regra no prdio estudado, no chegava a ser uma exceo. Constituam minoras minoria significativa. Por outro lado, registravam-se situaes em que estes grupos domsticos poderiam at apresentar-se como unidades de produo. Uma das famlias esadas tinha como uma de suas fontes de renda bsica a venda de doces. Embora a me fosse a responsvel e o pai tivesse um emprego regular, sempre que havia maior demanda da clientela, toda a famlia trabalhava na confeco de doces, inclusive o pai. Isto poderia ser feito num clima de brincadeira, mas era uma atividade familiar regular. Situaes semelhantes foram encontradas em apartamentos onde filhos e filhas ajudavam a me costureira ou que fazia flores artificiais, fornecia refeies, etc. Emoutros nveis a estratgia de vida das pessoas dependia do apoio dos parentes. Auxlio

    para tomar conta dos filhos, chamar para fa-[pg. 51]zer refeies regularmente em pocas de maiores dificuldades, apoio para obteno de emgos, etc, apresentavam-se como atividades em que diversos tipos de parentes intervinham. Embora estivessem mais vinculados aos pais e irmos, avs, tios, primos e cunhados tambm apareciam com constncia nesta rede de auxlio mtuo. No item vesturio ificou-se ser hbito institudo a circulao de roupas entre parentes, tanto em termos e emprstimo, como em termos de doao, especialmente no tocante s roupas dos filhos. ssim que um vestido, uma cala, uma blusa de criana poderiam vir a ser usados por trs, quatro ou mais pessoas, passando, por exemplo, dos primos mais velhos para osmais novos. A participao intensa e regular em rituais como aniversrios, casamentos, enterros, etc, servia tambm para enfatizar os laos entre parentes. A importncia d

    estes fica clara tanto em momentos de crise, como no cotidiano. No caso citado existe fragilidade nos laos de vizinhana, mas, talvez por isso mesmo, os parentes podem ser mais essenciais do que em situaes "tradicionais" onde os vizinhos desempenhariam papel mais importante54.

    Estes resultados de pesquisa indicam que, ao contrrio da previso de que a urbanizao implicaria no "enfraquecimento dos laos de parentesco e no declnio do signifcado social da famlia"55, ela uma instituio de grande relevncia no meio urbano daica Latina. Desde que as pesquisas de Lewis no Mxico sugeriram que a urbanizao no fzia diminuir, mas, ao contrrio, aumentar os laos[pg. 52]extensos de famlia, existe ampla evidncia mostrando que em cidades latino-american

    as a rede familiar continua desempenhando importantes funes tanto para migrantes como para no-migrantes, embora poucos dados sejam disponveis sobre mudanas nos papisdos membros de famlias de diferentes classes sociais contemporneas. Carlos e Sellers, por exemplo, argumentam que "os laos familiares e a instituio do compadrio fictio no esto sucumbindo sob o impacto da modernizao, apesar das teorias e interpretaobre a urbanizao que mantm que o contrrio verdadeiro"56. Especificamente no que diz respeito ao Brasil, as relaes informais que ocorrem ao nvel de parentes e amigos se constituem num mecanismo adaptativo consideradode grande importncia. Um estudo realizado por Rosen e Berlinck na regio do estadode So Paulo revelou que "os processos de urbanizao e industrializao no destrura

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    rutura extensa de parentesco e que a populao da cidade de So Paulo apresentava umaestrutura to ou mais extensa de parentesco que a encontrada em comunidades ruraisda mesma regio. Em estudo posterior, realizado entre famlias brasileiras da cidade de So Paulo, observou-se que um dos possveis motivos para que a unidade de parentesco continuasse extensa nesse meio urbano seria o da troca de informaes que taisgrupos proporcionam aos seus membros em um meio onde 'o segredo a alma do negcio' e onde no existem outros meios 'eficientes' de informao"57.[pg. 53]

    Uma situao na qual tambm se manifesta claramente a importncia das redes de relsociais para ponderveis setores das classes subalternas no contexto urbano brasileiro a representada pelo botequim. Alm de servir para a obteno de dinheiro empresado para enfrentar momentos de crise e de funcionar como "ponto" para a obteno debiscates, o botequim tambm desempenha outros papis de grande relevncia. Assinalando as modificaes que a famlia e a comunidade, enquanto organizaes destentao do indivduo, experimentam na sociedade urbano-industrial e a dificuldade dos setores marginais se integrarem em novas organizaes de sustentao do indivduo, coos sindicatos, a "poltica", o "consumo", Machado da Silva argumenta que "o botequim uma das formas de preencher esta lacuna"58. Entre as razes de o botequim ser um mecanismo de sustentao no contexto urbano,o autor aponta as seguintes:Em primeiro lugar, o botequim pode ser um mecanismo de sustentao, porque tem condiede conceder o sentimento perdido de comunidade. Ele cria profundos laos comuns entre uma minoria: os componentes dos estratos inferiores que so "adeptos do lcool"

    . Necessidades de natureza econmica tornam-no muito importante, alm de provocaremestreitas relaes de cooperao. Os conflitos so controlados sem necessidade de frmumpessoais e de modo quase sempre "ameno". A competio se mantm em nvel pouco expliciado e aceitvel. E, finalmente, o lcool atua como fator de liberao da conscincia deferioridade, isto , da situao de classe.[pg. 58]Mas, em segundo lugar, claro que as caractersticas "comunitrias" do botequim so reefinidas, pois inserem-se num contexto novo. Pelo menos em termos "ideais", a comunidade tradicional basta-se a si mesma, um sistema fechado. Nesse sentido, elase auto-justifica: ela o mundo. O botequim, pelo contrrio, est inserido no meio urbano, faz parte integrante do sistema de mercado, relacionado sociedade de consumo. Apesar disso, o tipo de relaes sociais que se desenvolvem no botequim permite

    que surja um "sentimento de comunidade" entre os fregueses. Entretanto, uma comunidade com roupagem nova: o "mundo" a cidade, o sistema urbano-industrial - muitssimo mais amplo que ela. Assim, o botequim como "comunidade" transforma-se numa"tica" que contribui para dar sentido quele mundo, interpretando-o. Alm disso, freqentar o botequim na medida em que ele parte do "novo mundo", "conquistar" o sistema urbano-industrial. O fregus sente-se integrado e participante de um todo maisamplo, enquanto parte de um microcosmo que , ao mesmo tempo, uma defesa contra omacrocosmo "desconhecido" e "incompreensvel".Em resumo, o botequim o smbolo de um esforo no sentido de participar de um universo novo (e uma "ponte" para isso) por parte de certos grupos desamparados pela ruptura dos esquemas referenciais da "sociedade tradicional"59.

    Durham sintetiza bem o significado da reciprocidade e outras formas de soci

    abilidade no contexto urbano quando afirma que[pg. 55]a incorporao na vida urbana, em oposio vida rural, no se caracteriza, como parecsar Wirth, pelo desaparecimento da famlia e do parentesco que so substitudos por instituies especializadas, educacionais, sanitrias, recreativas, etc. Em primeiro lugar, porque o homem rural no est necessariamente fora do alcance dessas instituies. , em segundo lugar, porque na cidade no necessariamente o indivduo, mas freqentemete a famlia que delas usufrui. O que ope o modo de vida rural ao urbano , antes, aimportncia relativa e o modo de participao nessas instituies. O homem do campo fre

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    emente recorre a instituies assistenciais urbanas (especialmente mdico-sanitrias) emantm relaes com complexos mecanismos polticos e financeiros. Mas o seu contato comessas instituies prprias da sociedade diferenciada realizado, em geral, atravs deintermedirio, "o patro". A existncia desse intermedirio que caracteriza a dependdo homem rural. Na cidade, o intermedirio tende a desaparecer. Nem por isso o homem do campo se torna "livre"; torna-se antes desamparado. a famlia que se v forada assumir a funo de intermediria entre o indivduo e a sociedade mais ampla, recolhndo os fragmentos da experincia individual e tentando transform-los numa interpretao coerente do universo social. Desaparece a comunidade, tal como existia na vidarural, e tendem a se contrapor, com modos diferentes de participao social, a famliae o grupo de parentes, de um lado, e a sociedade complexa e diferenciada de outro60.[pg. 56]

    3. Religio Autores com posies tericas muito diferentes enfatizaram o processo de secularizao e racionalizao que estaria ocorrendo ou viria a ocorrer em sociedades complexasAssim, Durkheim achava que os vnculos integrativos da religio estariam sendo ameaados pela diviso social do trabalho e a cincia estaria tomando seu lugar e Weber assinalou o processo de racionalizao secular que ele chamou de "o desencantamento domundo". Freud, por sua vez, considerava a religio "a neurose obsessiva universalda humanidade" e, para Marx, o socialismo eliminaria a necessidade do que ele considerava "o pio do povo". No que diz respeito vida em cidades, vrios autores apontaram a secularizao co

    o sendo a conseqncia inevitvel da urbanizao. Sem negar que a secularizao seja umendncias importantes de sociedades urbano-industriais, ela na verdade um processomuito mais complexo do que parece primeira vista. A insero de populaes rurais noio urbano provavelmente tender a causar mudanas religiosas, mas estas transformaes necessariamente significam secularizao, nem existe uma relao linear entre este proesso e urbanizao. Em relao ao Brasil, diversos autores sugeriram que a recente intensificao do su capitalismo estaria causando um declnio gradual do catolicismo de folk entre sua populao urbana. Mas, se por um lado a adeso e freqncia ao catolicismo pode estarminuindo nas grandes cidades brasileiras, por outro est havendo um crescimento impressionante da Umbanda e do Pentecostalismo. A adeso das massas urbanas Umbanda e ao Pentecostalismo freqentemente explicda em termos de exposi-

    [pg. 57]o s relaes de produo vigentes nas cidades. Assim, pessoas que no podem recorrercionamentos familiares existentes no campo entre campons ou trabalhador rural e seu patro (as quais embora extremamente exploradoras pelo menos propiciariam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de "proteo") buscariam substitutos em cidades onde as relaes capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nas quais os empregadores no tm obrigaes morais em relao a seus empregados Segundo Camargo, por isso que estas religies populares tm coisas significativas para oferecer a seus adeptos: "Pentecostalismo e Umbanda so religies de massa importantes no Brasil. Para certos setores da populao elas tm funes sociais e psicoas significantes. Por exemplo, elas no s satisfazem aspiraes em relao a uma visotual e mgica do mundo mas tambm fornecem ao crente uma orientao definitiva em rela

    sua conduta, assim proporcionando apoio emocional. (...) eles so vtimas sujeitas aum sistema econmico e social que os oprime e que no compreendido por aqueles queo operam (...)"61. De modo semelhante, analisando a forma e o contedo das ideologias operadas pela Umbanda e pelo Pentecostalismo, Fry e How62 sugeriram que ambas constituem respostas aflio decorrente das situaes com que as classes baixas urbanas tm que lEstas religies so interpretadas por estes autores como estratgias sociais utilizadas a fim de lidar com as transformaes que a populao urbana[pg. 58]

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    pobre tem de enfrentar. Estas estratgias no so, entretanto, restritas a migrantes mas so utilizadas pelas classes baixas em geral e talvez tambm por outras classes sociais que se deparam com problemas semelhantes. Entretanto, mais que um simples mecanismo de adaptao de migrantes pobres ao meio urbano, uma religio como a Umbanda, que tem crescido no somente entre as classes baixas mas tambm entre as mdias, pode ser vista como numa sntese das tradies afbrasileiras e espritas. E por isto que a verdadeira chave da compreenso da Umbandareside na prpria sociedade brasileira, j que esta religio um produto das transforaes sociais e econmicas que ocorrem no pas. Com efeito, a Umbanda surge no Brasil apartir de 1920 c especialmente 1930. O primeiro Congresso Brasileiro Umbandista realizado no Rio de Janeiro em 1941, quando uma liderana de classe mdia e com orientao kardecista resolve estudar a religio e codificar seus ritos. O papel da classemdia assim crucial na consolidao da nova religio. A Umbanda surge, portanto, quase consolida no Brasil a formao de uma sociedade urbano-industrial. Neste sentidono casual que a Umbanda surja e seja mais forte justamente no Sudeste brasileiro, a regio mais urbanizada e industrializada do pas, estando concentrada nas grandes cidades. Trata-se, portanto, de uma religio essencialmente urbana63. E por motivos desta ordem que Velho e Machado questionam a suposta "racionalidade" da cultura prevalecente no contexto urbano:[pg. 59]Um ponto que merece ser examinado do conceito de racionalidade que tem sido utilizado para avaliar o grau de urbanizao dos grupos sociais. Desde Simmel fala-se no"intelectualismo" do urbanista e a idia da laicizao da cidade oposta ao misticismo

    do campo est bem presente no contnuo folk-urbano de Redfield. Assim, no s haveria m esvaziamento das relaes primrias no meio urbano - vide o caso do parentesco - como a impessoalidade das relaes estaria associada a uma "objetividade" racionalistae ao desenvolvimento de estratgias individualistas baseadas no clculo. O caso brasileiro parece bem interessante para testar essa linha de raciocnio. fato pblico oconstante crescimento da umbanda e do protestantismo nas grandes cidades brasileiras, envolvendo, basicamente, camadas baixas e mdias baixas da populao. Como explicar este fenmeno?A noo de que solues msticas so tpicas de reas rurais tambm no resiste a qualqporta verificar que tanto no campo como nos centros urbanos a nfase no misticismo uma possibilidade. Em trabalhos recentes fica patente a importncia para os habitantes das grandes cidades brasileiras dos smbolos expressos em terreiros de umbanda ou em certos rituais protestantes (Adventistas, Pentecostais). O fato de as p

    essoas procurarem essas religies com objetivos expressos de procura de resoluo de problemas individuais - desemprego, doena, casos de amor, etc. - no pode apagar o fato de participarem, com maior ou menor intensidade e freqncia, de rituais com fortes caractersticas comunitrias. A prpria eficcia destas religies depender, de acoom as representaes dos grupos, da intensidade de participao nos rituais. Em-[pg. 60]bora existam obrigaes de carter individual, o ponto de referncia central o encontdos fiis. importante salientar que as pessoas que freqentam terreiros de umbanda nso necessariamente freqentadoras exclusivas deste culto. A ida Igreja, a procurado mdico e a prpria preocupao com a educao, so alternativas instrumentais permanNada indica que exista uma tendncia para o abandono progressivo do "misticismo" eum reforo do "racionalismo". E bom lembrar o grande crescimento de diferentes ti

    pos de seitas e religies nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, especialmentenos grandes centros urbanos. Ou seja, a alfabetizao, o ensino universal, a educao uiversitria, o "desenvolvimento" no excluem este fenmeno. Mais ainda, mostram como os indivduos podem desempenhar diferentes papis, mesmo os aparentemente mais contraditrios. Um mdico pode ser pai-de-santo, um engenheiro ser adepto da astrologia, etc. Eis a um ponto interessante para contextualizar na cidade. Embora em nenhumasociedade seja possvel falar de indivduo desempenhando exclusivamente um papel, agrande metrpole contempornea oferece caractersticas peculiares64.

    4. Lazer

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    O lazer uma rea relativamente negligenciada j que h uma tendncia de os cientas sociais privilegiarem a categoria trabalho em suas anlises: "Muitos estudiosospensam sobre a sociedade como se no existisse a noo de lazer e intelectuais audaciosos, ao buscar novos sistemas que desejariam mais prximos da atual realidade, deixam-no de[pg. 61]lado". Entretanto, "o lazer apresenta-se como um elemento central da cultura vivida por milhes de trabalhadores, possui relaes sutis e profundas com todos os problemas oriundos do trabalho, da famlia e da poltica que, sob sua influncia, passam aser tratados em novos termos"65. Embora pesquisas tenham demonstrado que a necessidade de lazer cresce com aurbanizao e a industrializao, este crescimento est longe de ser igual em todas asmadas sociais66. Neste sentido, as cidades de pases subdesenvolvidos se constituem num campo privilegiado de estudos, j que nelas h marcantes diferenas socioeconmics e coexistem as manifestaes de cultura popular com as da cultura difundida pelosmeios de comunicao de massa. Cumpre lembrar que nas cincias sociais existe toda uma corrente de pensamento - inspirada, em sua vertente mais conservadora, em teorias como a da Escola deChicago, e em suas vertentes mais "progressistas" em teorias como a da indstriacultural da Escola de Frankfurt - que postula que a formao de uma sociedade urbano-industrial tenderia a destruir nos migrantes e habitantes de cidades suas razese tradies culturais, impondo-lhes uma cultura padronizada pelos meios de comunicao e massa, que seriam responsveis por um processo de homogeneizao de comportamentos,

    valores, prticas e orientaes. O que se observa, entretanto, que a dinmica cultural em cidades como as brasileiras bem mais complexa, havendo uma rica articulao entre expresses da cultura ppular e da indstria cultural.[pg. 62]

    A cidade de So Paulo, centro da economia brasileira, um exemplo revelador neste sentido. Alm das manifestaes dos meios de comunicao de massa, a cidade forteimpregnada por manifestaes da cultura popular e pela influncia regional dos nordestinos que para l migraram. Prova disto a existncia de mais de duzentos circos, a grande maioria circos-teatros que estabelecem um intrincado relacionamento com osmeios de comunicao de massa. Analisando os discursos produzidos no espao do circo-teatro, Magnani assinal

    a que ele "situa-se a meio caminho entre a indstria cultural e as manifestaes populares espontneas: no simplesmente um repetidor de uma e outra, mas as re-trabalha,recodifica, reelabora, produzindo um novo discurso, marcado pela ambigidade, fundamentalmente: produtos culturais ao lado de elementos de uma cultura espontnea; valores tradicionais (famlia, obedincia, religio) que no decorrer de uma mesma representao so objeto da crtica irreverente de uma comicidade particular; e outras oposique apontam no mesmo sentido (...)"67. Uma reflexo semelhante pode ser desenvolvida em relao influncia dos nordestina cidade de So Paulo. Analisando sua contribuio, enquanto representantes da cultura regional de maior alcance nacional no pas, para a formao da cultura popular de SPaulo, Weffort argumenta queo nordestino que chega a So Paulo, se portador de uma cultura regional de alcancenacional, chega a um mundo dotado de uma cultura urbana extremamente pobre, pra

    ticamente um mundo culturalmen-[pg. 63]te vazio, onde um capitalismo predatrio e selvagem destruiu a cultura regional tradicional e no foi capaz de criar nada em seu lugar. Em So Paulo, diz o provrbio popular, vive-se para trabalhar, ao contrrio, por exemplo, do Rio onde se trabalhapara viver. E, para um imigrante pobre, este viver s para trabalhar significa quase o mesmo que viver s para ser explorado. Para ele esta a 'lei do co". Por que deveria, portanto, o migrante adaptar-se a ela? Por que o refugiar-se em sua prpriacultura deveria significar necessariamente um empobrecimento? No estaria nesta r

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    esistncia uma possvel fonte de vida para uma nova cultura da cidade? Para uma cultura nacional e popular?68[pg. 64]V--------?--------Concluso

    Este livro iniciou com uma discusso a respeito da possibilidade de utilizarmtodos e tcnicas antropolgicas no estudo de sociedades complexas e com uma anlise ds teorias sociais sobre a cidade. Atravs de exemplos de pesquisas em diversas reas de envolvimento social, procurou-se mostrar que a Antropologia dispe de instrumentos que podem contribuir significativamente para a compreenso de sociedades urbano-industriais. Os estudos antropolgicos do meio urbano, por observarem o familiar e por se preocuparem com ocotidiano de grupos sociais, tm produzido resultados que freqentemente tendem a refutar as proposies de teorias sobre as conseqncias da urbanizao e da vida em cida Neste sentido, estudos realizados em pases como os da Amrica Latina tm mostrado que os processos sociais que se verificam nas cidades deste continente so bem mais complexos que s vezes se imagina. As anlises tm indicado que no h uma seqncir, mas uma multiplicidade de processos sociais ocorrendo no contexto urbano da Amrica Latina. Longe de haver uma homogeneizao cultural que se distribui uniformemente por todas as reas de envolvimento social, o que se verifica uma variedade de p

    rticas e orientaes sociais e culturais. Subjacente quilo que con-[pg. 65]siderado, de uma forma no-questionada, uma uniforme cultura de massa urbana, muitas diferenas se escondem. Os fenmenos que esto ocorrendo em cidades como as brasileiras se constituem num rico campo de investigao social, cujo estudo pode permitir uma melhor compreensoda cidade, enquanto contexto em que se do e para o qual convergem diferentes processos sociais. A Antropologia tem se revelado uma cincia capaz de contribuir significativamente para o estudo desta realidade.[pg. 66]Bibliografia

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