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    A primeira sociedade da afluncia* **Marshall Sahlins

    Se a economia a cincia maldita, o estudo de economias baseadas na caa e nacoleta deve ser o seu ramo mais avanado. Quase todos os nossos manuais transmitem aideia de uma vida muito dura no paleoltico, fazendo-nos indagar de como os caadoresconseguiam viver. Atravs destas paginas, o espectro da fome caa o caador. Suaincompetencia tcnica traduz-se num esforo contnuo de trabalho pela sobrevivncia,no lhe proporcionando nem descanso, nem excedente, nem mesmo, portanto, lazerpara construir cultura. Apesar de todos os esforos, o caador atinge os mais baixosnveis em termodinmica - menos energia per capita por ano do que qualquer outromodo de produo. E em tratados de desenvolvimento econmico ele condenado aapresentar mau exemplo expresso pela chamada economia de subsistncia.

    A sabedoria tradicional sempre obstinada. preciso opor-se a ela de maneirapolmica expressando, dialeticamente, as revises necessrias. Na verdade, examinadade perto, a sociedade de caa/coleta a primeira sociedade da afluncia.Paradoxalmente, isso leva a outra concluso til e inesperada. Pelo senso comum, umasociedade afluente aquela em que todas as vontades materiais das pessoas sofacilmente satisfeitas. Afirmar que os caadores so afluentes negar que a condiohumana seja tragdia predestinada, com o homem prisioneiro de trabalho pesadocaracterizado por uma disparidade perptua entre vontades ilimitadas e meiosinsuficientes.

    H duas formas possveis de afluncia. As necessidades podem ser facilmentesatisfeitas, seja produzindo muito, seja desejando pouco. A concepo vulgar, deGalbraith, constri hipteses apropriadas particularmente economia de mercado: asnecessidades dos homens so grandes, para no dizer infinitas, enquanto seus meios solimitados, embora possam ser aperfeioados: assim, a lacuna entre meios e fins pode serdiminuda pela produtividade industrial, ao menos para que os produtos ou bensindispensveis se tornem abundantes. Mas, h tambm uma concepo Zen da riqueza,partindo das premissas um pouco diferentes das nossas: que as necessidades humanasmateriais so finitas e poucas, e os meios tcnicos invariveis mas, no conjunto,adequados. Adotando-se a estratgia Zen, pode-se usufruir de abundncia sem paralelo -com baixo padro de vida.

    Penso eu que isso descreve os caadores. E ajuda a explicar alguns de seus

    comportamentos econmicos mais curiosos: sua prodigalidade, por exemplo - ainclinao para consumirem de uma s vez todos os estoques disponveis, como se lhesfossem dados. Livres da obsesso de escassez do mercado, as propenses da economiados caadores talvez se fundem mais consistentemente na abundancia do que as denossa economia. Destut de Tracy, ainda que possa ter sido o burgus doutrinrioexagerado, de boa raa, no mnimo corrabora a afirmao de Marx, de que em naespobres o povo no tm necessidades, enquanto nas naes ricas , ele geralmente pobre.

    Com isso no se quer negar que a uma economia pr-agricola funcione sob sriaslimitaes, mas somente insistir com bases nos dados sobre caadores e coletores atuais,que na maioria das vezes, h adaptao bem sucedida. Depois de os dados retornarei s

    reais dificuldades da economia dos caadores-coletores no corretamente especificadasnas formulaes correntes sobra a pobreza paleoltica.

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    FONTES DE CONCEPES ERRONEAS

    Mera economia de subsistncia, lazer limitado, salvo em circunstanciasexcepcionais, busca incessante de comida, recursos naturais pobres e relativamente

    incertos, ausncia de excedente econmico, maximo de energia de um maximo depessoas - isto , a opinio media antropolgica sobre caa e coleta.Os aborgines australianos so exemplo clssico de um povo, cujas riquezas

    econmicas so mais escassas. Em muitos lugares, seu habitat at mais austero do queo dos bosqumanos , embora isso, possivelmente, no seja to correto para o Norte...Um bom exemplo a tabulao dos gneros alimentcios extrados pelos aborgines daregio Norte ocidental/central de Queensland... Nessa lista, a variedade que aparece impressionante, mas nos podemos enganar, pensando que variedade significaabundancia, porque a quantidade utilizvel de cada elemento que ela contm topequena que somente a utilizao mais intensiva torna possvel a sobrevivncia(Herskovitz, 198, pp. 68 - 69)

    Ou ento, novamente sobre os povos caadores, na Amrica do sul:Os caadores e coletores nmades , mal satisfazem as necessidades mnimas de

    subsistncia e, muitas vezes, esto abaixo do limite mnimo. Isso se reflete na baixadensidade populacional, havendo uma pessoa para cada dez ou vinte milhas quadradas.Deslocando-se constantemente em busca de comida, obviamente faltam-lhes horas delazer para atividades no ligadas subsistncia, e podem transportar muito pouco doque porventura fabriquem em momentos de folga. Para eles, produo adequadasignifica sobrevivncia fsica, e raramente tinham tempo ou produtos excedentes(Steward e Faron, 1959, p. 60; cf. Clark, 1953, p. 27f; Haury, 1962, p.113; Hoebel,1958, p. 188; Redfield, 1953, p. 5; White, 1959).

    Mas, o amaldioado ponto de vista tradicional a respeito do dilema dos povoscaadores tambm pr-antropolgico e extra-antropolgico, ao mesmo tempo histricoe relativo ao contexto econmico mais amplo no qual opera a antropologia. Remonta era em que Adam Smith escreveu ou a uma era em que ainda ningum escrevia (1).Provavelmente, foi um dos primeiros preconceitos neolticos, uma apreciaoideolgica da capacidade dos caadores de explorar as riquezas da terra, apropriada tarefa histrica de priv-los dessas riquezas. Devemos t-lo herdado dos descendentesde Jacob, que espalharam-se pelo mundo, do Ocidente ao Oriente e ao Norte, semprejuzo de Esa, que ra filho mais velho e hbil caador, mas que numa cena famosafoi privado do direito de primogenitura.

    Opinies correntes incorretas sobre a economia de caa e coleta, porm noprecisam ser atribudas ao etnocentrismo neoltico. O etnocentrismo burgus ter asmesmas atitudes.

    A economia de empresas, ema eterna armadilha ideolgica da qual a antropologiaeconmica tem que escapar, promover as mesmas concluses obscuras sobre a vidados caadores.

    Ser mesmo to paradoxal sustentar que os povos caadores possuam uma economiaafluente, apesar de sua pobreza absoluta?

    Embora ricamente dotadas, as sociedades capitalistas modernas consagram-se proposio da escassez. O primeiro princpio dos povos mais ricos do mundo aineficincia de meios econmicos. O aparente Status material da economia no parece

    indcio de perfeio; Alguma coisa tm que ser dita sobre o modo de organizaoeconmica.

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    (cf. Polanyi, 1947, 1957, 1959; Dalton, 1961).O sistema de mercado industrial institui a escassez de modo jamais visto em

    qualquer outra parte. Onde a produo e distribuio so organizadas atravs docomportamento dos preos, e todos os meios de vida dependem de ganhar e gastar, ainsuficincia dos meios materiais torna-se o ponto de partida explcito e calculvel de

    toda atividade econmica(2).O empresrio colocado frente a investimentos alternativos de um capital finito; otrabalhador (esperanosamente) frente as escolhas alternativas de emprego remunerado,e o consumidor... O consumo dupla tragdia: o que se inicia com insuficinciaterminara em privao. Ao mesmo tempo em que produz uma diviso internacional dotrabalho, o mercado torna acessvel um batalho ofuscante de produtos: todas essas"coisas divinas" acessveis ao homem - mas nunca todas ao seu alcance. A desgraa que, nesse jogo de livre escolha do consumidor, toda aquisio simultaneamente umaprivao, pois toda compra de alguma coisa a falta de alguma outra, em geralmarginalmente menos desejvel e em alguns detalhes mais desejvel. (A questo quese voc6e compra um automvel, por exemplo, um Plymouth, voc no pode comprar

    tambm um Ford - e concluo atravs dos comerciais comuns de televiso, que asprivaes impostas so mais do que puramente materiais(3).)

    A sentena bblica de viver custa de trabalho foi pronunciada contra ns . Escassez a sentena decretada por nossa economia - e tambm o axioma de nossa cinciaeconmica: a aplicao de meios escassos contra fins alternativos, conforme ascircunstancias, para tirar a maior satisfao possvel. E precisamente a partir dessavantagem que voltamos a olhar para os caadores. Mas, se o homem moderno, comtodas as suas vantagens tecnolgicas, ainda no conseguiu os meios, que chance possuiesse selvagem desprotegido, com seu insignificante arco e flecha? Tendo equipado ocaador com impulsos burgueses e ferramentas paleolticas, julgamos sua situaodesesperadora(4)

    Contudo a escassez no propriedade intrnseca de meios tcnicos. relao entremeios e fins. Deveremos levar em considerao um objeto finito a possibilidadeemprica de que os caadores trabalham para sobreviver; e que arco e flecha soadequados para esse fim(5).

    Mas at agora, outras idias, essas doenas endmicas na teoria antropolgica e napratica etnogrfica, conspiraram para impedir qualquer entendimento desta natureza.

    A disposio antropolgica em exagerar a ineficincia dos caadores, aparecenotavelmente atravs do mtodo de comparaes particulares com economias neolticas.

    Como Lowie destaca, os caadores devem trabalhar muito mais para viver do queagricultores e criadores de animais (1946, p.13). Sobre este ponto, em particular, aantropologia evolucionista considerou necessrio adotar teoricamente o tom normal dereprovao. Etnlos e arquelogos tornaram-se revolucionrios neolticos, e em seuentusiasmo pela revoluo nada pouparam para denunciar o Velho Regime (Idade daPedra), Incluindo algum escndalo bem antigo. no foi a primeira vez que filsofosrelegaram o mais antigo estgio da humanidade, mais natureza do que cultura ("Umhomem que despende sua vida perseguindo animais, somente para mat-los para comer,ou mudando de um pedao de terra para outro, est na verdade, ele prprio, vivendocomo animal"; Braidwood, 1957, p. 122) . Com os povos caadores assim depreciados,a antropologia tornou-se livre para louvar o Grande Salto Neoltico: um importante

    avano tecnolgico resultou em uma "disponibilidade de lazer atravs da libertao daprocura de comida" ( Braidwood, 1952, p. 5; cf. Boas, 1940, p 285).

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    Leslie White, em importante trabalho sobre a "Energia e a Evoluo da Cultura",explicou que o neoltico gerou "grande avano no desenvolvimento cultural... comoconseqncia do grande aumento da quantidade de energia aproveitada e controlada percapita por anos atravs das artes agrcola e pastoril" (1949, p.372). White salientou ocontraste na evoluo mostrando o ESFORO HUMANO como a principal fonte de

    energia da cultura paleoltica, em oposio s plantas domesticadas e aos recursosanimais da cultura neoltica.Essa determinao das fontes de energia permitiu uma avaliao deficiente do

    potencial termodinmico dos povos caadores - aquele desenvolvido pelo corpohumano: recursos energticos numa mdia de 1,20 HP (cavalos a vapor) per capita (1949, p. 369) - mesmo que pela eliminao do esforo humano da iniciativa culturaldo neoltico, as pessoas parecem ter sido liberadas por algum artifcio racional, quepoupasse trabalho (plantas e animais domesticados). Mas, obviamente, a problemticade White mal concebida. A principal energia mecnica acessvel, tanto culturapaleoltica como cultura neoltica aquela fornecida pelos seres humanos; em ambosos casos, igualmente transformada a partir de fontes de vegetais e animais de forma que,

    com raras excees (o uso ocasional, direto, de energia no humana), a quantidade deenergia aproveitada per capita/ao ano a mesma nas economias paleoltica e neoltica -e regularmente constante na histria humana at o advento da revoluo industrial(6).

    Outra fonte especificamente antropolgica de desagrado pelo paleolticodesenvolveu-se na pesquisa de campo, e na observao europia de caadores ecoletores, como os nativos australianos, os bosqumanos , os ona (b) e os yahgan (c).Tal contexto etnogrfico tende a distorcer, de forma dupla, nosso entendimento daeconomia caadora-coletora.

    Primeiro, permite oportunidades singulares para a ingenuidade.O ambiente remoto e extico que se tornou o teatro cultural de modernos caadores

    tem um efeito pouco favorvel sobre os europeus para a avaliao de sua condio porestes ltimos. Embora o deserto de Kalahari ou australiano no tenha importncia para aagricultura ou para a experincia europia cotidiana, tornou-se fonte de curiosidade parao observador incauto como algum pode viver num lugar como esse. A concluso deque os nativos costumam somente ter existncia simples, prontamente reforada porsua dieta incrivelmente variada (cf. Herskovits, 1958, citado acima). Normalmente,incluindo objetos julgados repulsivos e no comestveis pelos europeus, a cozinha localpresta-se crena de que o povo est beira da morte. Naturalmente, tal concluso encontrada com maior freqncia em relatos mais antigos do que nos recentes, empublicaes de exploradores e missionrios do que em monografias de antroplogos;mas, precisamente porque os relatrios de exploradores so mais antigos e mais restritos

    condio do aborgine, reserva-lhes certo respeito.Obviamente , tal respeito tem que ser concedido com descrio. Deveria ser dadamaior ateno a um homem como Sir George Grey (1841), cujas expedies nos anosde 1830 incluram alguns dos distritos mais pobres da Austrlia Ocidental, mas cujarigorosa observao do povo do lugar obrigou-o a destruir as comunicaes de seuscolegas justamente sobre o desespero econmico. erro muito comum, escreveu Grey,supor que os nativos da Austrlia possuem poucos meios de subsistncia, ou somuitas vezes pressionados pela falta de comida. Os erros de viajantes, nesse assunto,so muitos e quase ridculos: Em seus artigos, lamentam que os infortunadosaborgines sejam obrigados, pela fome, a alimentar-se de certo tipos de comidas queencontram prximas as suas cabanas; considerando que, em muitos momentos, os

    artigos citados so justamente os que os nativos mais apreciam e que, na verdade, noso deficientes em sabor e nem em qualidades nutritivas. Para exprimir com clareza a

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    ignorncia que prevaleceu a respeito dos hbitos e costumes desse povo em estadoselvagem, Grey lana mo de um exemplo digno de nota, uma citao de seu colega, oexplorador capito Sturt que, alm de encontrar um grupo de aborgines engajados nacoleta de grandes quantidades de goma mimosa, deduziu que, as desgraadascriaturas estavam reduzidas misria, sendo incapazes de procurar qualquer outro

    alimento, eram obrigados a coletar aquela mucilaginosa. Sir George observa que agoma em questo o artigo alimentcio favorito na regio; e na poca de colheitaproporciona a oportunidade de grande numero de pessoas se reunirem e acamparem, oque, em outras circuntncias, no poderiam fazer. Conclui ele:

    De modo geral, os nativos vivem bem; em alguns distritos pode ocorrer deficinciade alimentos em determinados perodos do ano, mas se esse for o caso, os distritos soabandonados. Entretanto completamente impossvel a um viajante ou a um nativo deoutro local, julgar se um distrito proporciona ou no alimentos em abundncia... Em seuprprio distrito, o nativo situa-se diferentemente; ele conhece exatamente o que a suaterra produz, a poca certa para colher os vrios produtos e os meios mais fceis paraobt-los. De acordo com estas circunstancias, ele regula as visitas s diferentes partes de

    seu terreno de caa; e somente posso dizer, que sempre encontrei em suas cabanas, amaior das farturas (Grey, 1841, vol.2, pp. 259-262, Grifo meu; Eyre, 1845, vol. 2, p2.441) (7).

    Sir George , ao fazer essas felizes consideraes, tomou cuidado especial paraexcluir o LUPEN PROLETARIAT aborgine, vivendo dentro e ao redor das cidadeseuropias (cf. Eyre, 1845, vol. 2 pp. 150, 254-244). A excluso instrutiva. Ela evocauma segunda fonte de concepes etnogrficas errneas: a antropologia dos caadores estudo amplamente anacrnico de ex-selvagens - inqurito sobre o cadver de umasociedade dirigidos pelos membros de outras.

    Como classe, os coletores de alimentos sobreviventes so pessoas deslocadas;representam o paleoltico privados de direitos civis ou de privilgios, ocupando habitatsmarginais, no tpicos de seu modo de produo: santurios de uma era, colocados forado raio de ao dos principais centros avanados da cultura, como para permitir certaprorrogao da marcha planetria de evoluo cultural, pois so pobres demais para ointeresse e competncia de economias mais avanadas. Isso, deixando de lado os povoscoletores situados favoravelmente, como os ndios da costa noroeste, sobre cujo bem-estar (comparativamente) no h duvidas. Os caadores remanescentes, banidos dasmelhores partes da terra, primeiro pela economia agrcola e depois pela economiaindustrial, usufruem oportunidades ecolgicas menores do que a mdia do antigopaleoltico (8). Alm do mais, a desintegrao ocorrida nos dois ltimos sculos deimperialismo europeu foi extraordinariamente violenta, de forma que muitas notas

    etnogrficas que constituem o estoque dos antroplogos so produtos culturaisadulterados. Relatos de exploradores e missionrios, alm de concepes etnocntricaserrneas, podem estar falando de economias j destrudas (cf. Service, 1962). Oscaadores do Canad Oriental, sobre os quais lemos nas relaes dos jesutas, estavamsubmetidos ao comercio de peles, no inicio do sculo XIX. O meio ambiente de outrastribos foi seletivamente saqueado pelos europeus antes que um relatrio seguro sobre aproduo indgena pudesse ser feito: os esquims, que conhecemos, j no caambaleias; os bosqumanos foram despojados da caa, os pinheiros dos shoshoni (d) foramderrubados para obteno de madeira para construo... Se tais povos so descritosagora como miserveis, so seus magros e incertos recursos naturais uma indicaoda condio aborgine - ou do encarceramento colonial(9)?

    S recentemente comearam a ser difundia as imensas implicaes (e problemas)para a interpretao evolucionistas surgidas desse confinamento global (Lee e Devore,

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    1968). O atual ponto de importncia este: as caractersticas atuais dos caadoresrepresentam mais esforo supremo do que prova ntida de suas capacidades produtivas.Os relatos seguintes de suas performance revelam-se, portanto, mais extraordinrios.

    UMA ESPCIE DE ABUNDANCIA MATERIALConsiderando a pobreza em que teoricamente vivem os povos caadores e coletores,

    torna-se surpresa o fato de que os bosqumanos que vivem em Kalahari gozem de umaespcie de abundancia material, pelo menos no domnio das coisas utilizadascotidianamente, excluindo alimentos e agua:

    Assim que os KUNG tiverem maior contato com os europeus - e isso j acontece -eles sentiro mais profundamente a necessidade de nossas coisas e desejaro enecessitaro mais e mais. J se sentem mal sem roupa, quando esto entre estrangeirosvestidos. Mas, na prpria vida, e com os prprios artefatos, so relativamente livres depresses materiais. Exceto para comida e agua (importante excees!), de que os NYAEKUNG tm apenas o mnimo necessrio a julgar por sua aparncia, pois so todosmagros, ainda que no macilentos - todos tm o que necessitam ou podem fazer o quenecessitam, pois cada homem faz as coisas que os homens fazem e cada mulher, as

    coisas que as mulheres fazem... Eles vivem numa espcie de abundancia materialporque adaptam seus utenslios aos materiais que existem em abundancia sua volta eque qualquer pessoa pode obter livremente (madeira, bambus, ossos para armas eimplementos, fibras para cordas, mato para abrigos) ou materiais que so pelo menossuficientes para as necessidades da populao... Os KUNG poderiam sempre obter maisovos de ema, conchas como contas para serem usadas ou comerciadas; mas buscamsomente para cada mulher ter uma dzia ou mais de conchas recipientes para gua -tudo o que ela pode carregar - e um bom nmero de ornamentos feitos de contas. Emsua vida de caa/coleta nmade, viajando de uma fonte de alimento outra, atravs dasestaes, sempre indo de um lado para o outro, entre a comida e a gua, levam crianase pertences. Com bastante quantidade da maioria dos materiais, para substituir osartefatos quando necessrio, os KUNG no desenvolveram meios de armazenagempermanente, e no necessitam ou no desejaram sobrecarregar-se com excedentes ouduplicatas. No desejam nem mesmo levar um exemplar de cada coisa. Eles emprestamo0 que no possuem. Com essa facilidade, no entesourariam, e a acumulao deobjetos no fica associada ao status (Marshall, 1961, pp. 243-244, grifo meu).

    A anlise da produo dos povos caadores-coletores vantajosamente dividida emduas esferas, como fez a Sra. Marshall. Comida e agua so certamente exceesimportantes, que melhor seriam examinadas separadamente. Quanto ao resto, o setorde no subsistncia, o que aqui foi dito sobre os bosqumanos aplica-se de modo geral eem detalhes aos caadores de Klahari ao Labrador - ou Tierra-del-Fuego, onde o

    relatrio de Gusinde sobre os Yahgan, diz que a averso desses indgenas pela posse demais uma cpia de cada utenslio necessrio, uma indicao de autoconfiana. Nossosfueguinos, diz ele, obtm e fazem seus implementos com pouco esforo (1961, p. 213)(10).

    As necessidades do povo so facilmente satisfeitas na esfera dos bens no-alimentares. Em parte, tal abundancia material , depende da facilidade de produo e,em parte, tal abundancia material, depende da facilidade de produo e, em parte, dasimplicidade da tecnologia e da democracia da propriedade. Os produtos so rsticos:de pedra, osso, madeira, couro - materiais estes, que existem em abundancia suavolta. Como regra, nem a extrao de matrias-primas, nem sua elaborao envolvemgrande esforo. O acesso aos recursos naturais tipicamente direto - livre acesso para

    qualquer um - mesmo a posse das ferramentas necessrias, sendo geral, e oconhecimento das habilidades exigidas, comum. A diviso do trabalho igualmente

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    simples, predominando a diviso do trabalho por sexo. Acrescente-se o costume liberalda partilha, pelo qual os caadores so particularmente famosos, e todas as pessoaspodem freqentemente participar da prosperidade geral, tal como ela se apresenta.

    Mas naturalmente, como ela se apresenta: esta prosperidade se apia sobre umnvel de vida objetivamente baixo. crucial que quantidades normais de bens de

    consumo (bem como o numero de consumidores) sejam colocadas culturalmente emlugar modesto. Poucas pessoas sentem-se satisfeitas com um numero reduzido deobjetos fceis de produzir: escassas peas de roupas, e habitaes precrias na maioriadas regies climticas (11); mais alguns ornamentos, pederneiras de reserva e vriasoutras coisas, como as peas de quartzo, que os doutores nativos tiram de seuspacientes (Grey, 1841, vol. 2. P. 226); e finalmente as sacolas de couro nas quais asesposas fiis carregam tudo isso, a riqueza do selvagens australiano (p. 266).

    Para a maioria dos caadores, essa afluncia sem abundancia na esfera dos produtosno alimentares no precisa ser contestada. A questo mais importante : por que eles secontentam com to poucos bens? Porque para eles se trata de uma poltica, questo deprincpio, como diz Gusinde (1961, p.2), e no questo de infortnio.

    Sem desejo, no h falta. Mas, no tero os caadores to pouca exigncia de bensmateriais por se encontrarem escravizados na busca de alimentos que exige a mximaenergia de um numero mximo de pessoas, no tendo tempo ou fora para providenciaroutros confortos? Ao contrrio, alguns etngrafos provam que a busca de alimento tobem sucedida que na metade do tempo as pessoas parecem no saber o que fazer. Poroutro lado a mobilidade, maior ou menor, segundo os casos, condio para o xitodessa tarefa, mas sempre suficiente para depreciar rapidamente as satisfaes depropriedade. Na verdade, pode-se dizer, a riqueza do caador uma carga. Comoobserva Gusinde, em sua condio de vida, os bens podem tornar-se dolorosamenteopressivos, quanto mais longe tenham que ser transportados. Certos coletores dealimentos possuem canoas, e uns poucos possuem trens puxados por cachorros; mas, amaioria de carrega nas costas tudo o que possui, e carrega somente aquilo que podeconfortavelmente agentar. Ou talvez, somente o que as mulheres possam carregar:muitas vezes, os homens ficam livres para reagir imediatamente oportunidade sbitade fazer uma caa ou necessidade repentina de defesa. Como escreveu OwenLattimore, em contexto no to diferente, nmade puro nmade pobre. Mobilidade epropriedade so contraditrios.

    Que a riqueza logo se torna mais sobrecarga do que boa coisa visvel mesmo paraalgum de fora. Laurens van der Post foi apanhado em contradio quando de preparavapara despedir-se de seus selvagens amigos bosqumanos:

    O assunto dos presentes deu-nos vrios momentos de ansiedade. Ficamos

    humilhados de perceber quo pouco poderamos dar aos bosqumanos. Quase tudoparecia tornar a vida mais difcil para eles, aumentando a confuso e o peso de suarotina diria. Eles mesmos, no possuem, praticamente, nada: uma correia de couro, umcobertor de pele e uma sacola de couro. Nada havia que no pudessem juntar em umminuto. Envolver em suas mantas e carregar em seus ombros durante uma jornada demil milhas. No tinham senso de posse (1959, p. 276)

    Necessidade to bvia para o visitante ocasional deve ser de segunda natureza parao povo em questo. A modstia de exigncias materiais institucionalizada : torna-sefato cultural positivo, expresso numa variedade de arranjos econmicos. Lloyd Warner,falando sobre os Murgin (e), relata por exemplo, que a possibilidade de transportar valor decisivo no esquema local dos objetos. Em geral, produtos pequenos so melhores

    do que os grandes. Na anlise final, prevalecer o meio relativo de transporte doartigo, determinando at sua disposio, acima da relativa escassez ou custo de

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    trabalho. Porque o valor final, escreveu Warner, a liberdade de movimento. EWarner atribui a este desejo de ser livre da carga e responsabilidade dos objetos queinterfiram na existncia itinerante da sociedade o sentido subdesenvolvido depropriedade dos Murgins e sua falta de interesse em desenvolver seu equipamentotcnico(1964, pp. 136 - 137).

    Aqui est portanto, outra peculiaridade econmica - no direi que geral, mastalvez seja explicada tanto pela instruo higinica errnea, como por uma indiferenadeliberada pela acumulao material: pelo menos, alguns caadores manifestam notveltendncia para serem relaxados a respeito de suas posses. Demonstram uma certaindiferena que seria prpria de pessoa que j dominou os problemas da produo: emtodo caso, ela enlouqueceria um europeu.

    Eles no sabem como cuidar de seus pertences. ningum sonha em coloc-los emordem, dobr-los, lav-los e sec-los, pendurando-os ou empilhando-os. Se estoprocurando alguma coisa especfica , remexem descuidadamente a insignificanteconfuso reinante dentro das pequenas cestas. Os objetos maiores, que so empilhadosaos montes na cabana, so puxados para c e para l, sem nenhuma considerao pelos

    danos que possam sofrer. O observador europeu tem a impresso de que esses ndios(yahgan) no do nenhum valor a seus utenslios, e que esqueceram completamente oesforo que estes exigiram para ser fabricados (12). Na verdade, ningum se apega asuas poucas coisas e bens mveis, que so freqentemente perdidos, mas que so,tambm, facilmente substitudos... O ndio no se preocupa nem mesmo com a proteo,quando assim poderia fazer. Da mesma forma, um europeu balanaria negativamente acabea diante da indiferena ilimitada desses ndios, que arrastam no barro compacto ouabandonam destruio imediata pelas crianas e cachorros, objetos novos em folha,tecidos preciosos, provises frescas e outras coisas valiosas... Coisas caras que lhes sodadas, so guardadas por poucas horas longe da curiosidade dos outros, aps o que sodeixadas imprudentemente a deteriorar-se no barro ou na agua. Quanto menos possuam,mais confortavelmente podem viajar, e o que se estragou, ocasionalmente substitudo.Por isso, so completamente indiferentes a qualquer posse material (Gusinde, 1961, pp.86-87).

    Algum arriscaria dizer que o caador um homem no-econmico. Pelo menosno que diz respeito a bens no alimentares ele o oposto daquela caricatura-modeloimortalizada em qualquer Princpios Gerais da Economia, pagina 1. Seus desejos sopoucos, e seus meios (em relao) so abundantes. Conseqentemente, ele relativamente livre de preocupaes materiais, no possui qualquer sentimento deposse; tem senso embrionrio de propriedade; completamente indiferente aqualquer presso material; manifesta falta de interesse para desenvolver seu

    equipamento tecnolgico.Nessa relao dos caadores com produtos profanos, h um ponto ntido eimportante. Da perspectiva interna da economia, parece errado dizer que seus desejosso restritos, os desejos reprimidos ou mesmo que a noo de riqueza limitada.Tais frases implicam sugerir um Homem Econmico (Economic Man), e luta docaador com sua prpria natureza profunda, que finalmente subjugada por votocultural de pobreza. As palavras implicam em renuncia de poder aquisitivo que naverdade no foi desenvolvido, uma supresso de desejos que nunca vieram tona.Como disse Marcel Mauss - o Homem Econmico construo burguesa - no depoisde ns, mas antes, como o bem moral. No que os caadores e coletores tenhamrefreado seus impulsos materiais; simplesmente nunca os instituram. Alm disso, se

    grande ddiva, ver-se livre de um grande inimigo, nossos selvagens ( montaignais(f) )so felizes, porque os dois tiranos que propiciam o inferno e a tortura para muitos de

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    nossos europeus, no reinam em suas grandes florestas - quero dizer , a ambio e aavareza... como se contentam com uma vida simples, nenhum deles se entrega aodemnio para adquirir riqueza (LeJeune, 1897, p.231).

    Somos inclinados a conceber os caadores e coletores como pobres porque nopossuem nada; talvez seja melhor, por essa razo, pensar neles como livres. suas

    posses materiais, extremamente limitadas, livram-nos de toda preocupao comnecessidades dirias e permitem que usufruam da vida (Gusinde, 1961, p.1).

    SUBSISTNCIA

    Quando Herskovits escreveu sua Antropologia Econmica (1958), era uma prticaantropolgica comum considerar os Bosqumanos ou os nativos australianos comoexemplo clssico de um povo cujos recursos econmicos so os mais escassos, taoprecariamente situados que somente uma atividade muito intensa torna possvel asobrevivncia. Hoje, a compreenso clssica pode ser facilmente rebatida - com baseprincipalmente em testemunhos sobre esses dois grupos .Pode-se, em usa defesa, dizer

    que os coletores e caadores trabalham menos do que ns; e mais do que trabalhocontnuo, a coleta de alimentos intermitente, o descanso abundante; e existe maiorquantidade de sono no tempo dirio per capita /anual, do que em qualquer outracondio social.

    Algumas das provas substanciais sobre a Austrlia aparecem em fontes maisantigas, mas temos sorte especial de ter, atualmente o material quantitativo coletadopela American Australian Scientific Expedition to Arnhem Land, Em 1948. Essassurpreendentes informaes, Publicadas em 1960, devem provocar algumas revisesnos relatos australianos de h mais de um sculo, e talvez reviso de um perodo aindamaior do pensamento antropolgico. A pesquisa chave foi pesquisa elaborada porMcCarthy e McArthur (1960) a respeito dos povos coletores e caadores,complementando pela anlise de McArthur a respeito dos efeitos nutricionais.

    A concluso obvia e imediata de que as pessoas no trabalham muito. O tempomdio dirio por pessoa usado na apropriao e preparo de comida era de 4 ou 5 horas.Alm disso, ininterruptamente. A busca de subsistncia era bastante intermitente.Parava-se por um tempo, assim que as pessoas j tivessem obtido o suficiente para dadoperodo, o que lhes deixava bastante tempo livre. Tanto no setor de subsistncia comoem outros, nos encontramos claramente frente a uma economia de objetivos especficos,limitados. Pela caa e coleta, esses objetivos tendem a se realizar irregularmente, deforma que o padro de trabalho se torna errtico.

    No caso, h uma terceira caracterstica da caa e da coleta, no imaginada pelosenso comum: esses australianos parecem subutilizar suas possibilidades econmicasobjetivas, em vez de usar at o limite maximo o trabalho e recursos disponveis.

    A quantidade de comida, colhida em um dia, por qualquer um desses grupos,poderia em caso ser aumentada. Embora para as mulheres, a busca de alimentos fossetrabalho dirio e ininterrupto, elas descansavam com freqncia, e no gastavam todasas horas do dia buscando e preparando alimentos. A natureza do trabalho de coleta dealimentos dos homens era mais espordica; e se tinham boas colheitas em determinadodia, normalmente descansavam no dia seguinte... Talvez inconscientemente pesem, deum lado, a vantagem de maiores suprimentos de comida, e de outro, o esforo envolvido

    na colheita; talvez decidam o que consideram ser o suficiente, e quando uma vezcolhida essa quantidade param (McArthur, 1960, p. 92).

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    Segue-se, em quarto lugar, o fato de que a economia no exigia grandes esforos

    fsicos. O dirio dos investigadores indica que a populao ainda em ritmo; somenteuma nica vez um caador foi descrito com totalmente exausto (McCarthy eMcArthur, 1960). Os habitantes de Arnhen Land tampouco consideram a tarefa de

    subsistncia onerosa. Certamente no consideravam como trabalho ingrato a serrealizado o mais depressa possvel, nem mal necessrio a ser adiado o maximo possvel(McArthur, 1960)(14). Neste sentido, e tambm em relao sua subutilizao dosrecursos econmicos, preciso notar que os caadores de Arnhem Land no pareciamcontentes com uma existncia simples. Como outros australianos (cf. Worsley, 1961),eles tornaram-se insatisfeitos com a alimentao invarivel; parte de tempo parece tersido gasto na procura da diversidade, alm de mera suficincia (McCarthy e McArthur,1960).

    Em todo caso, a dieta dos caadores de Arnhem Land era adequada - de acordo comos padres do National Research Council of America.

    Finalmente o que diz o estudo de Arnhem Land sobre a famosa questo do lazer?Parece que os caadores e coletores podem permitir-se liberaes das tarefaseconmicas. O grupo de Fish-Creek (13) mantinha virtualmente, em tempo integral, umarteso, um homem de 35 ou 40 anos, cuja especialidade real parece, todavia, ter sido avadiagem.

    Ele no ia caar com os homens, mas um dia obteve boa quantidade de peixes. svezes, entrava no mato para conseguir favos de mel. Wilira era uma arteso perito queconsertava lanas e atiradores de lana; fazia cachimbos e gaitas de sopro, e habilmentecolocava cabos em machadinhas de pedra (a pedidos); alm dessas ocupaes, gastavamaior parte do tempo conversando, comendo e dormindo (McCarthy e McArthur,1960).

    Wilira no era totalmente excepcional. Muito do tempo poupado pelos caadores deArnhend era, literalmente, tempo perdido, consumido em descansar e dormir. Aprincipal alternativa ao trabalho era dormir.

    Alm do tempo (a maior parte entre as atividades definidas e a de cozinha) gasto emrelaes com os outros , conversas, mexericos, algumas horas do dia eram reservadaspara o descanso e o sono. Se os homens ficavam na aldeia, em geral descansavam cercade uma hora e meia depois do almoo e algumas vezes at mais. Tambm apsretornarem da pesca ou da caa, tiravam uma soneca, logo depois de chegar ou enquanto

    a caa estava sendo cozida. Em Hemple Bay, os homens dormiam se chegassem cedo,mas no caso de chegarem depois das 4 horas da tarde. Quando ficavam na aldeia o diatodo, dormiam em horas variadas, e sempre depois do almoo. As mulheres, quandocoletando alimento na floresta, pareciam descansar mais do que os homens. Se ficavamna aldeia todo o dia, tambm dormiam em horas variadas, s vezes durante bastantetempo (McCarthy e McArthur, 1960).

    A deficincia dos habitantes de Arnhem Land em construir cultura, no causadaestritamente por falta de tempo. Provm da ociosidade.

    Isso para os caadores e coletores de Arnhem Land. Semelhantes economicamente

    aos caadores australianos, segundo Herkovits, os bosqumanos tm condiessemelhantes como se v em dois relatrios excelentes e recentes de Richard Lee (Lee,

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    1968; 1969). A pesquisa de Lee digna de ateno especial, no somente por dizerrespeito aos bosqumanos, mas, especificamente seo dobe dos bosqumanosKUNG, vizinhos dos NYAE NYAE, sobre cuja subsistncia - em contexto diferente deabundancia material - a Sra. Marshall fez importantes restries. Os dobe ocupamuma rea em Botswana onde os bosqumanos Kung viveram pelo mnimo uma centena

    de anos, e de onde comeam agora a sofrer presses para sair (entretanto, o metal erautilizado pelos dobe desde 1880-90). Foi realizado uma pesquisa intensiva a respeito daproduo de subsistncia em um perodo de seca, com uma populao (41 pessoas)prxima da media desses povoamentos. As Observaes estenderam-se por mais quatrosemanas, durante julho e agosto de 1964, em um perodo de transio de uma estao doano mais favorvel para uma menos favorvel; conseqentemente, ao que parece,bastante representativa da mdia das dificuldades de subsistncia.

    Lee encontrou na regio dos dobe, surpreendente riqueza de vegetao, apensardo baixo ndice pluviomtrico anual. Os recursos alimentcios eram tanto variadosquanto abundantes, particularmente as nozes mangetti de alto valor energtico to

    abundantes que milhes de nozes apodreciam no solo anualmente, por no seremcolhidas (todas as referencias in Lee, 1969)(15). Seu relatrio a respeito do tempodespendido na coleta de alimentos surpreendentemente prximo das observaes deArnhem Land.

    As cifras sobre os bosqumanos significam que o trabalho de um homem, na caa ena coleta de alimentos, sustentaria quatro ou cinco pessoas. A coleta de alimentos,tomada em valor nominal, mais eficiente do que a agricultura francesa at a II GuerraMundial, quando mais de 20% da populao era responsvel pela alimentao dorestante. Evidentemente, a comparao forada, mas no deixa de ser surpreendente.No total da populao de bosqumanos que viviam em espaos livres, Lee calculou que61,3% (152 de 248) eram efetivamente produtores de alimentos; o restante era muito

    jovem ou muito velho para dar contribuio significativa. No local examinado, 65%eram ativos. Assim sendo, a relao de produtores de comida com a populao geral, na verdade, de 3:5 ou 2:3. Mas, estes 65% de pessoas trabalhavam 36% do tempo e35% das pessoas no trabalhavam nada (Lee, 1969).

    Isso significa que cada trabalhador adulto chega a atingir cerca de dois dias e meiode trabalho por semana (em outras palavras, cada produtor individual mantm a siprprio (ele ou ela), e a seus dependentes e ainda possui 3 a 5 dias disponveis paraoutra atividades). Um dia de trabalho, era cerca de 6 horas; por isso, a semana de

    trabalho dos dobe era , aproximadamente, de 15 horas, ou uma mdia de 2 horas e 9minutos por dia. Entretanto, esses clculos, mesmo que inferiores que o padro deArnhem Land, excluem o tempo de cozinhar a comida e preparar os implementos.Provavelmente, as condies do trabalho de subsistncia dos bosqumanos so muitoprximas das dos nativos australianos.

    Como os australianos, os bosqumanos passam o tempo em que no trabalhamdescansando ou em atividades de lazer. Mais uma vez pode-se detectar o ritmopaleoltico caracterstico de um ou dois dias de trabalho e um ou dois dias de folga - oultimo passado ao acaso na aldeia. Embora a coleta de alimentos seja a atividadeprodutiva principal, Lee escreve que, a maior parte do tempo das pessoas ( quatro ou

    cinco dias por semana) gasta em outras atividades como o descanso na aldeia ou avisita a outras aldeias (Lee, 1969).

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    Em um dia, uma mulher coleta comida suficiente para alimentar a famlia durante

    trs dias, e o resto do tempo gasta descansando na aldeia, fazendo enfeites, visitandooutros locais ou entretendo visitantes de outras aldeias. Para cada dia passado em casa,os trabalhos de rotina, como cozinhar, apanhar nozes, buscar lenha e buscar gua

    ocupam de uma a trs horas de seu tempo. Esse ritmo de trabalho e descanso constantes mantido ao longo do ano. Os caadores tendem a trabalhar mais freqentemente doque as mulheres, mas seu esquema de trabalho irregular. comum um homem caaravidamente durante uma semana e ento no caar mais nada durante duas ou trssemanas. Dado que a caa atividade imprevisvel e sujeita a controle mgico, oscaadores passam, algumas vezes, por um perodo de m sorte, e ento param de caardurante um ms ou mais. Durante esses perodos, as atividades principais dos homensso as visitas, os divertimentos e especialmente a dana (1969).

    A alimentao diria per capita produzida pelos bosqumanos dobe era de 2.140calorias. Entretanto, levando em considerao o peso do corpo, as atividades habituais ea composio por sexo e idade da populao de dobe, Lee estima que tal populao

    exigia somente 1.975 calorias pe capita. Provavelmente, parte do excedente emalimentos era dado aos cachorros, que comem o que lhes deixam as pessoas. Pode sertirada uma concluso, a de que os bosqumanos no levam uma existncia abaixo dospadres mnimos, ameaados pela fome, como comumente de supe (1969).

    Tomados isoladamente, os relatos sobre Arnhem Land e sobre os Bosqumanosrepresentam um ataque desconcertante, mas no decisivo, sobre a posio tericacomumente aceita. Artificial na construo, o estudo anterior, em particular, sensatamente considerado equivocado. Mas, o testemunho da expedio de ArnhemLand , em muitos pontos, repetido em observaes feitas em outros lugares daAustrlia, bem como em outros lugares do mundo dos povos caadores-coletores.Muitas evidencias sobre os australianos datam do sculo XIX, algumas de observadoresargutos, cuidadosos em fazer exceo ao aborgine em contato como europeu, pois seusuprimento de alimentos restrito, e em muitos casos so impedidos de usar asnascentes de gua, que so os centros de melhores terrenos para a caa (Spencer eGillen, 1899).

    A situao clara tambm para as reas bem irrigadas do sudeste da Austrlia. L osaborigines tinham o privilgio de oferta de peixe to abundante e fcil que umcolonizador dos tempos vitorianos, dos anos 1840, mostrava curiosidade em sabercomo aquele povo sbio conseguia passar o tempo antes que meu destacamento

    chegasse e os ensinasse a fumar (Curr, 1965). Pelo menos, o ato de fumar resolveu oproblema econmico - no ter nada pra fazer: uma vez adquirido o novo hbito, tudose tornou fcil; suas horas de folga eram divididas entre usar cachimbo para seusverdadeiros fins e pedir meu fumo. Um pouco mais seriamente, o velho colonizadorprocurou estimar a quantidade de tempo gasto na caa e na coleta pelo povo do entodistrito de Porto Phillip. As mulheres ficavam fora da aldeia, cerca de seis horas por dia,em expedies de coleta, metade do tempo gasto ociosamente sombra das arvores ouem volta do fogo; os homens saam para a caa depois das mulheres e retornavamquase ao mesmo tempo que estas (p.118). Curr achou assim a comida obtida dequalidade indiferente, embora de fcil obteno; as seis horas do dia suficientespara aquele propsito; na verdade, o pas poderia ter sustentado duas vezes o numero

    de negros que nele encontramos (p. 120). Comentrios muito semelhantes foram feitospor outro veterano, Clement Hodgkinson, ao escrever sobre ambiente anlogo, no

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    nordeste de New South Wales. Poucos minutos de pesca proporcionariam o suficientepara alimentar toda a tribo (Hodgkinson, 1845; cf. Hiatt, 1965). na verdade, por todaa extenso do pas, ao longo da costa oriental, os negros nunca sofreram a falta decomida, como compacidamente supunham alguns escritores (Hodgkinson, !845).

    Mas as populaes que ocupavam as partes mais frteis da Austrlia, notadamenteno sudeste, no foram incorporadas ao esteretipo atual do aborgine. Foram logoliquidadas(16). O relacionamento dos europeus com os companheiros negros era deconflito pelas riquezas do continente; muito pouco foi poupado do processo dedestruio para luxo da contemplao. No caso, a conscincia etnogrfica poderiasomente herdar parcos resduos: principalmente grupos do interior, principalmentepovos do deserto, principalmente os Arunta. No que estes estejam em m situao -normalmente sua vida no de forma alguma pobre ou muito difcil ( Spencer eGillen, 1899)(17). Mas em termos numricos ou adaptao ecolgica, as tribos centraisno podem ser consideradas tpicas dos nativos australianos (cf. Meggit. 1964). Oseguinte quadro da economia indgena, fornecido por John Edward Eyre, que cruzou a

    costa sul e penetrou na cordilheira de Flinder, bem como residiu por pouco tempo norico distrito de Murray, tem o direito de ser, mnimo, reconhecido como representativo:

    Na maior parte da Nova Holanda, onde no existem colonizadores europeus, esempre se pode encontrar agua, o nativo no experimenta qualquer tipo de dificuldadeem obter alimentao suficiente durante todo o ano. verdade que o carter de suaalimentao varia com a mudana da estao e com a formao da regio que habita,mas raramente acontece que qualquer estao do ano ou qualquer tipo de terra no lheproporcione alimentos, tanto de origem animal com vegetal... Desses artigosprincipalmente alimentcios, muitos no s so encontrados em abundancia, ms tambmem tais quantidades nas estaes apropriadas, que proporcionam durante largo perodode tempo, meios suficientes de subsistncia a vrias centenas de nativos congregadosem dado local... Na maior parte da costa, e nos grandes rios interiores, peixes dos maisvariados tipos so obtidos em grandes quantidades... No Lago Vitria... observeiseiscentos nativos acampados juntos, todos eles vivendo dos peixes que o lago lhesproporcionava, com a contemplao talvez, de folhas de mesembriantemo (g). Nopercebi qualquer escassez quando entrei em contato com eles... Em Moorunde, quandoo Murray inunda a plancie, os camares de agua doce abrem caminho at a superfciedo solo... em tais quantidades que vi quatrocentos nativos vivendo deles durantesemanas, enquanto que o numero que estragava ou que era jogado fora poderia sustentarmais quatrocentos...

    Um suprimento ilimitado de peixes era tambm possvel de ser obtido no Murray,

    nos incios do ms de dezembro... o numero de peixes obtido.. em poucas horas erainacreditvel... Outro tipo favorito de comida, e igualmente abundante em dada estaodo ano, na regio oriental do continente, uma espcie de mariposa que os nativosprocuram nas cavidades e buracos das montanhas de certa localidade... Os caules, folhase galhos de um tipo de agrio, colhido em uma dada estao do ano... forneciam umaoferta de alimentos muito apreciados e inexaurveis, para um numero ilimitado denativos... Existem muitos outros tipos de comidas entre os nativos, igualmenteabundante e to teis como os que descrevi (Eyre, 1845).

    Tanto Eyre como Sir George Grey, Cuja opinio otimista sobre a economia indigenaj assinalei (Eu sempre encontrei a maior das farturas em suas cabanas), realizam

    estimativas especificas em dirias, do trabalho de subsistncia dos australianos (no casode Grey, esto includos habitantes de regies bastante indesejaveis da Australia

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    Ocidental). O testemunho desses cavalheiros e exploradores est estritamente de acordocom as mdias de Arnhem Land, obtidas por McArthur e McCarthy. Grey afirma queem todas estaes normais (isto , quando as pessoas no esto confinadas em suascabanas devido ao mau tempo) podem obter em duas ou trs horas, uma oferta dealimentos suficiente para o dia todo; mas seu costume habitual perambular

    indolentemente de local para local, colhendo comida vagarosamente, como seestivessem passeando (1841, grifo meu). Do mesmo modo, Eyre afirma: Em quasetodas as partes do continente que visitei, se a presena do europeu no havia destrudoseus meios originais de subsistncia, os nativos podiam normalmente, em trs ou quatrohoras, obter comida suficiente para um dia, sem trabalho e sem fadiga (1845, grifomeu)

    Alm disso, a mesma descontinuidade no trabalho de subsistncia relatada porMcArthur e McCarthy, o padro de alternancia de trabalho e sono, repetida emobservaes posteriores e anteriores a respeito de todo o continente (Eyre, 1845;Bulmer, in Smyth, 1878; Mathew, 1910, Spencer e Gilllen, 1899, Hiatt, 1910).

    Basedow considerou isso como um ato comum do aborgine: Quando seu trabalho

    est correndo bem, a caa est assegurada, e a gua acessvel, o aborigene torna a vidamais fcil possvel; e deve parecer at mesmo preguioso ao forasteiro (1925) (18).

    Enquanto isso, na frica, os hadza desfrutam de um bem-estar comparvel a este,com encargo de ocupaes de subsistncia no mais pesado, em horas dirias, que o dsbosqumanos ou o dos aborgines australianos (Woodburn, 1968). Vivendo em rea deexcepcional abundancia de animais, e oferta regular de vegetais(nas proximidades doLago Eyasi), os hadza parecem muito mais interessados nos jogos de sorte do que nasorte de caar. Especialmente, durante a longa estao de seca, passam a maior parte dodia jogando consecutivamente, talvez somente para perder as pontas de metal de suasfechas, que necessitam em outras horas para as grandes caadas.

    De qualquer modo, muitos homens esto completamente despreparados eincapazes de caar grandes animais mesmo que possuam as flechas necessrias.Woodburn diz que so apenas pequena minoria caadores ativos de grandes animais, ese as mulheres so mais assduas no trabalho da coleta de alimentos, ainda assim ofazem em compasso vagaroso, e sem trabalho prolongado. Os hadza, apesar dessaindiferena, e de cooperao econmica limitada, no obstante conseguem comidasuficiente sem esforo demasiado. Woodburn apresenta essa aproximao bastantetosca do trabalho de subsistncia necessario: Durante o ano, de maneira geral,provavelmente a mdia de menos de duas horas dirias gasta na obteno de comida.

    O interessante que os hadza, instrudos pela vida e no pela antropologia, rejeitama revoluo neoltica de forma a proteger seu lazer. Muito embora rodeados de

    agricultores, at recentemente recusavam-se a intervir na agricultura, principalmenteem solos que envolvessem muito trabalho (19). Nisso, so parecidos com osbosqumanos, que respondem a questo neoltica com outra : Por que plantaramos, seexistem tantas nozes mongomongo no mundo? (Lee, 1968). Alm disso, Woodburnteve a impresso, embora ainda inconsistente, de que os hadza, na verdade, gastammenos energia, e provavelmente menos tempo em obter alimentos do que seus vizinhosagricultores da frica Oriental (1968)(20). Mudando de continente mas no decontedo, o desempenho econmico vacilante de povos caadores da Amrica do Sultambm poderia parecer disposio natural incurvel ao forasteiro europeu:

    ... os yamana no so capazes de trabalhar diariamente e continuamente, para

    desapontamento de muitos fazendeiros e empregadores europeus, para quem trabalhamfreqentemente. Seu trabalho se d por autos e baixos, e nesses esforos ocasionais

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    podem desenvolver energia considervel durante certo tempo. Entretanto, depois disso,demonstram desejar longo descanso por um perodo incalculvel de tempo, durante oqual permanecem sem fazer nada, sem demonstrar estarem muito fadigados... obvioque repetidas irregularidades desse tipo fazem o empregador europeu desanimar, mas oindgena no pode ajud-lo nisso, esta sua disposio natural (Gusinde,1961) (21).

    1.Por fim, a atitude dos caadores diante da introduo da agricultura, leva-nos aalguns fatos sobre o modo de se relacionarem com a coleta de alimentos. Mais umavez, nos aventuramos aqui. No domnio interno da economia, uma regio algumas vezessubjetiva e sempre difcil de ser entendida na qual, alm do mais, os povos caadoresparecem deliberadamente sobrecarregar nossa compreenso com costumes to curiososque provocam a interpretao extrema de que ou esses povos so tolos ou realmentenada tm com que se preocupar. O primeiro caso seria deduo verdadeira e lgica,partindo da negligncia dos caadores, com base nas premissa de que sua condioeconmica critica. Por outro lado, se a vida ganha com facilidade, se possvelnormalmente ter-se sucesso, ento a aparente imprudncia dos povos no pode aparecer

    como tal por muito tempo. Karl Polanyi, falando sobre o desenvolvimento, semparalelo, da economia de mercado, e de sua institucionalizao da escassez, disse quenossa dependncia animal de comida foi desnudada, permitiu-se ao temor da inaniocorre livremente. Nossa escravido humilhante matria, que todas as culturas humanasse destinam a mitigar, foi deliberadamente tornada mais rigorosa (1947). Mas, nossosproblemas no so os problemas deles, dos povos caadores e coletores. Maispropriamente, uma riqueza primitiva colore seus sistemas econmicos, uma confianana abundanciados recursos naturais mais do que o desespero diante da inadequao dosmeios humanos. Quero dizer que artifcios pagos que poderiam parecer estranhostornam-se compreensveis pela confiana dos povos, confiana que atributo humanorazovel de uma economia em geral bem sucedida (22).

    Consideremos o movimento crnico dos caadores de um local para o outro. Essenomadismo, muitas vezes tomado por ns como sinal de mortificao, empreendidopor eles com certo abandono. Smyth relata que os aborgines de Victria, so via deregra viajantes preguiosos. Eles no tm motivos que os induzam a apressar osmovimentos. Geralmente, comeam a ornada no fim da manh e h muitas interrupespelo caminho (1878, grifo meu). O bondoso Pere Biard, em ser Relation, de 1616,depois de uma descrio entusiasmada dos alimentos acessveis aos micmac em cadaestao ( Nem Salomo tinha manso melhor ordenada e provida de alimentos) segueno mesmo estilo:

    De modo a desfrutar inteiramente de sua sorte, nosso silvcola inicia a caminhada

    para diferentes locais com tanto prazer como se estivesse a passeio ou em excurso? Fazisso, facilmente, atravs do uso hbil de grandes cancs convenientes... to rapidamenterema que sem qualquer esforo pode se fazer trinta ou quarenta lguas num dia; e noentanto dificilmente vemos os selvagens viajarem nessa velocidade, pois seus dias soapenas passatempo. Nunca se apressam. Muito diferente de ns, que no podemos fazernada sem pressa e preocupao... (Biard, 1897).

    Os caadores, certamente, abandonam as aldeias porque as fontes de alimentos seesgotam na vizinhana. Mas, ver nesse nomadismo mera fuga da fome, somente ver ametade da questo; ignora-se a possibilidade de que as expectativas que tm depastagens mais verdes em outros lugares no so em gera frustradas.Conseqentemente, as viagens tomam mais carter de piquenique s margens do

    Tmisa.

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    Uma questo mais sria apresentada pela observao freqente e exasperada decerta falta de viso dos povos caadores e coletores. Continuadamente orientadospelo presente, sem o mais superficial pensamento ou preocupao com o amanh(Spencer e Gillen, 1899), os caadores no parecem querer poupar comida, incapazes deresposta planejada para o triste destino que certamente os espera. Apesar disso, adotam

    indiferena premeditada, que se expressa em duas tendncias econmicascomplementares.A primeira a prodigalidade: a propenso a consumir de uma s vez toda comida

    existente na aldeia, mesmo durante os perodos objetivamente difceis. Como se -disse LeJeune a respeito dos montagnais - a caa que tivessem de matar estivesseencarcerada num estbulo. Sobre os australianos, Basedow escreveu que, seu lema (dosnativos) pode ser interpretado como contendo a idia de que, enquanto h o suficientepara hoje, nunca preciso preocupar-se com o amanh. Dessa maneira, um aborgineprefere fazer uma festa com suas provises em vez de uma refeio modesta nomomento, e outra depois (1925), LeJeune viu mesmo, seus montagnais levarem talextravagncia beira do desastre:

    Na Fome que passamos, se o meu anfitrio consegue dois, trs ou quatro castores,imediatamente, seja dia ou noite realizam uma festa para todos os selvagens vizinhos. Ese aquele povo capturou alguma coisa, tambm faz uma festa ao mesmo tempo, e tantoque, saindo de uma festa, voc vai a outra e s vezes a uma terceira e a uma quarta.Disse-lhes que no eram bons administradores, e que seria melhor reservar essas festaspara dias futuros; e se assim o fizessem, no seriam to ameaados pela fome. Riram demim. Amanha (disseram eles) faremos outra festa com o que capturarmos.Certamente, mas muitas vezes capturam somente frio e vento) (LeJeune, 1887).

    Escritores complacentes tentaram apresentar as razes desse aparente absurdo.Talvez estivessem fora de si por causa da fome: so capazes de se empanturrar numacaada porque ficaram muito tempo sem carne - e sabem que, provavelmente, o mesmolhes acontecer novamente. Ou talvez, fazendo uma festa com seus alimentos, umhomem esteja respondendo a obrigaes de compromisso social, aa importantesimperativos de posse em comum. A experincia de LeJeune confirma outro aspecto,mas tambm sugere um terceiro, ou seja, os montagnais tm sua prpria explicao, nose preocupam com que o amanh possa lhes trazer porque trar mais da mesma coisa:outra festa. Qualquer que seja o valor de outras interpretaes, tal confiana deve sermostrada como a base da suposta prodigalidade dos caadores. E mais: devem teralguma base objetiva, pois se os caadores e coletores realmente preferissem aglutonaria ao bom senso econmico, nunca teriam vivido para se tornarem profetas

    dessa nova religio.Uma segunda tendncia complementar e secundria simplesmente o lado negativo

    da prodigalidade: o malogro de guardar os excedentes de comida, em desenvolver aestocagem de alimentos. Parece que para muitos caadores e coletores a armazenagemde alimentos no pode ser tecnicamente provada como impossvel, nem certo que opovo no tenha conscincia dessa possibilidade (cf. Woodburn, 1968). Apesar disso,deve-se investigar o que impede a tentativa no momento. Gusinde respondeu a essaquesto; e para os yahgan encontrou a resposta no mesmo otimismo justificvel. Aarmazenagem seria suprflua.

    Porque durante todo o ano e quase sem limites, o mar coloca todo tipo de animal disposio do homem que caa e da mulher que coleta. Uma tempestade ou acidentes

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    privaro a famlia dessas coisas por poucos dias apenas. Geralmente, ningum precisacontar com o perigo da fome e todos, em quase todos os lugares, encontram o quenecessitam em abundancia. Porque ento algum teria que se preocupar com comida nofuturo!... Basicamente, nossos fueguinos sabem que no necessitam preocupar-se com ofuturo; por isso, no armazenam alimentos. Ano aps ano, podem aguardar o prximo

    dia, livres de preocupaes... (Gusinde, 1961).

    A explicao de Gusinde, at onde chega, boa, mas provavelmente incompleta.Um clculo econmico mais complexo e perspicaz parece em jogo realizado atravs deuma aritmtica social extremamente simples. As vantagens de armazenar comida devemser pesadas contra os retornos decrescentes da coleta, dentro dos limites de localdeterminado. Para os caadores, a tendncia incontrolvel para diminuir a capacidadelocal de transporte est no fundo de tudo: uma condio bsica de sua produo e acausa principal de seu movimento. A desvantagem potencial da armazenagem

    justamente envolver a contradio entre riqueza e mobilidade. Ela fixaria a aldeia emuma rea que rapidamente veria esgotada as fontes naturais de alimentos. Assim sendo,

    imobilizados pelos estoques acumulados, o povo sofreria, em comparao compequenos caadores e coletores de qualquer outro lugar, onde a natureza, por assimdizer, fez a prpria armazenagem possivelmente de alimentos mais desejveis emdiversidade e em quantidade do que os que os homens possam guardar. Mas, esse belocalculo - de qualquer modo simbolicamente impossvel (cf. Codere, 1968) - seriaresolvido em oposio binria muito mais simples, colocada em termos sociais, comoamor e cio. Como observa Richard Lee (1969, p. 75), a atividade tecnicamenteneutra de acumulao ou armazenagem de alimentos moralmente algo mais: entesouramento. O caador eficiente que acumularia alimentos tem sucesso sprprias custas ou ento os cede custa de seu esforo (suprfluo). Como foidemonstrado, uma tentativa de estocar alimentos deve somente reduzir o rendimentototal de uma bando de caadores, pois as pessoas sem recursos se contentam em ficar naaldeia e viver com as sobras obtidas pelos mais prudentes. A armazenagem dealimentos, portanto, deve ser tecnicamente factvel, mas economicamente indesejvel, esocialmente inexeqvel.

    Se a armazenagem de alimentos permanece limitada entre os caadores, suaconfiana econmica, nascida dos tempos normais quando todas as necessidades dopovo so facilmente satisfeitas, torna-se condio permanente, levando-os a rir duranteperodos que poriam prova at mesmo uma alma de jesuta e que - como advertem osndios - O preocupariam tanto que ficaria doente.

    Vi-os sofrer com alegria em sua misria e seus trabalhos... Vi-me junto com elesameaado por grande sofrimento e disseram-me: Algumas vezes ficaremos dois outres dias sem comer, devido falta de comida; coragem, Chichin, deixe sua alma serforte para aturar tristeza e sofrimento; evite ficar triste, de outro modo ficara doente;veja como no paramos de sorrir, embora tenhamos pouco que comer (LeJeune, 1897;cf. Needham, 1954)

    REPENSANDO OS POVOS CAADORES E COLETORES

    Constantemente, sob presso de carncia e, ainda assim, capazes de atender a todas

    as necessidades atravs de suas viagens, no faltam em suas vidas excitao ou prazer(Smyth, 1878).

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    Claramente, a economia dos povos caadores e coletores deve ser reavaliada, tantoquanto sua realizaes e suas limitaes. A falha processual da sabedoria recebida foia de interpretar a estrutura econmica atravs das circunstancias materiais, deduzindo adificuldade absoluta de tal vida a partir de sua pobreza absoluta.

    Mas, o esquema cultural sempre improvisa numa relao dialtica com a natureza. A

    cultura, sem escapar de presses ecolgicas as nega de forma que de uma s vez osistema traz a marca das condies naturais e a originalidade de uma resposta social emsua pobreza: aa abundancia.

    Quais so as vantagens reais da prxis dos povos caadores e coletores? Se osexemplos existentes significam alguma coisa, no a baixa produtividade dotrabalho. Mas, a economia seriamente ameaada pela iminncia de rendimentosdecrescentes. Iniciando-se na subsistncia e espelhando-se em todos os setores, umsucesso inicial parece somente desenvolver a probabilidade de que esforos posteriorespropiciaro benefcios menores. Isso descreve a curva tpica da caa/coleta, emdeterminado local. Normalmente, mais cedo ou mais tarde, um modesto nmero depessoas reduz os recursos alimentcios dentro de uma extenso adequada da aldeia.

    Depois disso, podem ficar somente absorvendo aumento nos custos reais ou declnionos rendimentos reais: aumento nos custos, se o povo opta pela busca bem mais longedo local; declnio no rendimento , se esto satisfeitos em viver com os poucos recursosou com alimentos piores, de fcil procura. Naturalmente, a soluo ir para outro lugar.Portanto, a primeira e decisiva contingncia dos povos caadores e coletores:necessidade de movimento para manter a produo em termos vantajosos.

    Mas, esse movimento, mais ou menos freqente, mais ou menos importante,segundo as circunstancias simplesmente transfere a outras esferas de produo osmesmos rendimentos decrescentes que os originaram. A manufatura de ferramentas,tecidos, utenslios ou ornamentos, embora de fcil fabricao, torna-se sem sentidoquando comeam a se tornar mais uma carga do que conforto. A utilidade diminuirapidamente, de acordo com a dificuldade de transporte. Da mesma forma, a construode grandes casas tornar-se-ia um absurdo, se devem ser rapidamente abandonadas.Essas condies explicam a concepo muito asctica quanto ao bem-estar material:interesse somente por equipamento mnimo; valorizao de coisas menores ao invs demaiores; desinteresse em adquirir duas ou mais unidades da maioria dos produtos, eassim por diante. A presso ecolgica assume forma singularmente concreta quando temque ser carregada nas costas. Se o produto bruto bem medocre, em comparao ao deoutras economias, isso no acontece pela produtividade dos caadores, mas por suamobilidade.

    Quase a mesma coisa pode ser dita sobre a presso demogrfica. A mesma polticade se livrar do que no indispensvel est presente, segundo as mesmas modalidades epelas mesmas razes que em outros domnios friamente, os termos so: rendimentodecrescente de acordo com o limite do transporte, equipamento mnimo necessrio,eliminao de duplicatas e assim por diante - o que significa, infanticdio, eliminaodos velhos incapacitados para o trabalho, abstinncia sexual durante o perodo deamamentao de crianas etc..., prticas pelas quais muitos povos coletores dealimentos so famosos.

    A suposio de que tais artifcios so causados pela inabilidade de sustentar maispessoas, provavelmente correta - se sustentar e entendido no sentido de carregarmais do que alimentar. Como os caadores, tristemente, dia em algumas vezes, as

    pessoas eliminadas so aquelas que efetivamente no podem transportar a si prprias,que retardariam o movimento da famlia e da aldeia. Os caadores podem ser obrigados

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    a manipular bens e pessoas de modo paralelo, a poltica populacional draconiana comoexpresso da mesma ecologia que a da economia asctica. Mais, essas praticas decontrole demogrfico novamente fazem parte de uma poltica mais ampla paracontrabalanar os retornos decrescentes da subsistncia. Um grupo local torna-sevulnervel aos rendimentos decrescentes - portanto, a uma maior velocidade de

    movimento ou ento sua diviso - em proporo ao seu tamanho (todos os fatos).Visto que a populao deve manter a vantagem na produo local e anlogas certaestabilidade fsica e social, as praticas malthusianas so cruelmente consistentes. Osmodernos povos caadores e coletores, vivendo em ambientes notavelmente inferiores,passam a maior parte do ano em pequenos grupos separados. Mas, esse padrodemogrfico melhor entendido como o custo de viver bem, e no como sinal desubproduo ou pobreza.

    Os caadores e coletores possuem a fora de suas fraquezas. Movimento e limitaoperidicos na riqueza e na populao so ao mesmo tempo imperativo da prticaeconmica e das adaptaes criativas. So, de qualquer modo, necessidadestransformadas em virtudes. Mobilidade e moderao colocam os fins dos caadores

    dentro dos limites de seus meios tcnicos. Portanto o, um modo de produo fundadoem tcnicas rudimentares pode ter um alto rendimento. A vida do caador no todifcil quanto

    parece vista de fora. De alguma forma, a economia reflete uma ecologia difcil, mastambm uma inverso completa.

    Relatos sobre os caadores e coletores da etnologia atual - especificamente aquelesem ambientes marginais - sugerem uma mdia diria de trs a cinco horas de trabalhoadulto na coleta de alimentos. Os caadores t~em horrio de bancrios, muito menor doque o dos trabalhadores industriais modernos (sindicalizados), que certamente secontentariam com 21 a 35 horas semanais.

    Uma comparao interessante colocada por estudos recentes de custos de trabalhoentre agricultores do tipo neoltico. Por exemplo, o adulto hanunoo mdio, homem oumulher, despende 1.22 horas dirias no cultivo itinerante (Conkin, 1957); o quesignifica uma mdia de trs horas e vinte minutos dirios.

    Esse estudo ainda no inclui a coleta de alimentos, a caa de animais, a cozinha eoutros esforos diretos gerados na subsistncia desse povo tribal filipino. Informaessemelhantes comeam a aparecer em relatos sobre outros agricultores primitivos, devrias partes do mundo. A concluso colocada de modo conservador, e mesmonegativo: os caadores e coletores no necessitam trabalhar durante muito mais tempona coleta de alimentos do que os agricultores primitivos. Extrapolando da etnografia pr-histria, pode-se dizer do neoltico o mesmo que John Stuart Mill disse de todos os

    artifcios poupados de trabalho de que nunca existiu qualquer invento que poupasse umminuto sequer der trabalho e algum. O neoltico no viu nenhum melhoramentoparticular sobre o paleoltico na quantidade de tempo, per capita, necessrio para aproduo de alimentos; provavelmente, com o advento da agricultura, as pessoastivessem que trabalhar mais.

    Tambm nada refora a crena de que caadores e coletores tm pouco lazer tendoem vista suas tarefas de subsistncia. Com esse argumento as imperfeiesevolucionistas do paleoltico so comumente explicadas, enquanto o neoltico congratulado por proporcionar lazer. Mas, as frmulas tradicionais devem ser maisverdadeiras, se colocadas inversamente: a quantidade de trabalho (per capita) aumentacom a evoluo da cultura e decresce a quantidade de descanso. Os trabalhos de

    subsistncia dos caadores so caracteristicamente intermitentes, dia sim, dia no, e aomenos os modernos caadores tendem a empregar as horas de folga em atividades tais

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    como dormir. Nos habitas tropicais habitados por muitos desses caadores, a coleta deplantas mais segurado que a prpria caa. Conseqentemente, a mulher que executaessa coleta trabalha mais regularmente do que os homens, e providencia a maior parteda oferta de alimentos. O trabalho do homem realizado freqentemente. Por outrolado, mais errtico e imprevisvel; se os homens sentem falta de lazer, sentem-no mais

    no sentido que o sculo das luzes dava a essa palavra do que literalmente. QuandoCondorcet atribuiu a condio atrasada dos caadores a falta desse "tipo de lazeres quepermitissem enriquecer seu entendimento por novas associaes idias", tambmreconheceu que a economia era um "circulo necessrio de extrema atividade e ciototal". Aparentemente, o que o caador necessitava era de um filsofo aristocrata.

    O(s caadores e coletores mantm opinio otimista de sua condio econmica,apesar das dificuldades que enfrentam algumas vezes. Pode ser que algumas vezesenfrentem dificuldades por causa da opinio otimista que tm de seu estado econmico.

    Conseqentemente, ao sustentar que sua economia afluente no nego que certoscaadores passem por momentos difceis. Alguns acham "quase inconcebvel umhomem morrer de fome ou at mesmo no satisfazer a fome por mais de um dois dias"

    (Woodburn, 1968). Mas, outros, especialmente aqueles bastante perifricos, dispersosem pequenos grupos em meios ambientes muito inclementes, periodicamente estoexpostos a extremos climticos que impedem a viagem ou acesso caa. Eles sofrem -embora talvez s parcialmente - a escassez, afetando mais certas famlias imobilizadasdo que a sociedade como um todo (cf. Gusinde,1961).

    Ainda assim, admitindo essa vulnerabilidade, e permitindo uma comparao com oscaadores modernos mais pobremente situados, seria difcil provar e que a privao caracterstica distintiva de caadores e coletores. A falta de comida no indicativoprprio desse modo de produo, oposto a outros; no caracteriza os caadores ecoletores como um grupo parte ou etapa da evoluo geral. Lowie pergunta:

    "Mas, que dizer dos criadores numa simples plancie cuja manuteno periodicamente posta em perigo por pestes que, a exemplo de alguns bandos lapes dosculo XIX, foram obrigados a voltar pesca? Que interessa aos primitivoscamponeses, que limpam e lavam a terra sem compensao, exaurem um lote de terra epassam para outro, e so ameaados pela fome em cada perodo de seca? Estaro elescom um controle muito melhor desses infortnios causados por condies naturais doque os povos caadores e coletores?" (1938, p.286).

    Acima de tudo, que dizer do mundo atual? Diz-se que a metade da humanidade vaidormir com fome todas as noites. Durante a velha Idade da Pedra, essa frao deveriaser muito menor. Esta , sem precedentes, a era da fome. Hoje, numa poca de imensopoder tecnolgico, a inanio instituio. Invertamo0s outra frmula venervel: a

    quantidade de fome cresce relativa e absolutamente de acordo com a evoluo dacultura.Essa paradoxo minha questo principal. Os caadores e coletores, por fora das

    circunstncias, tm um padro de vida objetivamente baixo. Mas, vistos de dentro deseus objetivos e dado seus meios de produo, todas as necessidades materiais daspessoas podem ser facilmente satisfeitas. A evoluo da economia, portanto, conheceudois movimentos contraditrios: enriquecimento, ao mesmo tempo querempobrecimento, apropriao em relao natureza e expropriao em relao aohomem. Naturalmente, o aspecto progressista tecnolgico. Ele tm sido louvado devrias formas: como aumento na quantidade de produtos e servios necessrios;Crescimento na quantidade de energia domesticada a servio da cultura, aumento da

    produtividade, aumento da diviso de trabalho e maior liberdade do controle do meioambiente. Em certo sentido, o ltimo ponto especificamente til para a compreenso

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    das primeiras etapas do progresso tcnico. A agricultura no s permitiu ultrapassar oestgio da distribuio dos recursos alimentares naturais, como permitiu que ascomunidades neoltica preservassem a ordem social mesmo quando esses recursosfaltavam. Durante algumas estaes, alguns alimentos poderiam ser colhidos parasustentar a populao tambm na poca do plantio. A estabilidade da vida social,

    portanto, era critica para seu desenvolvimento material. Assim, a cultura continuouavanando triunfalmente, numa espcie de desafio progressivo da lei biolgica do"minimum", at provar que poderia sustentar a vida humana no espao interplanetrioonde mesmo a gravidade e o oxignio no existiam.

    Nesse mesmo momento, outros homens estavam morrendo de fome nos mercadosda sia. Trata-se de evoluo de estruturas bem como das tcnicas, e a esse respeitoassemelha-se estrada mtica onde, a cada passo que o viajante avana, seu destinorecua dois. As estruturas foram polticas bem como econmicas, de poder, bem como depropriedade. Elas se desenvolveram dentro das sociedades, e agora crescem entresociedades. Sem dvida, essas estruturas foram funcionais, e necessrias do

    desenvolvimento tcnico, mas no interior das comunidades que permitiram oenriquecimento, elas conduziriam s reparties desiguais e diferenciaes nos estilosde vida. Os mais primitivos povos da terra tm poucas posses, mas no so pobres. Apobreza no uma certa relaes de bens, nem simples relao entre meios e fins; acimade tudo, relao entre pessoas. A pobreza um estatuto social, inveno dacivilizao. CResceu com a civilizao, como relao tributria - que pode tornar osagricultores mais suscetveis s catstrofes naturais do que qualquer aldeamento deinverno do esquim do Alasca.

    Toda discusso precedente tomou a liberdade de interpretar historicamente osmodernos caadores, como representantes de um ponto de partida na evoluo. Essaliberdade no deveria ser ligeiramente inconsiderada. Os caadores marginalizados,como os bosqumanos de Kalahari so muito mais representativos da condiopaleoltica do que os indgenas da Califrnia ou da costa nordeste? Talvez no. Talvezos bosqumanos de Kalahari no sejam tambm nem mesmo representativos aoscaadores marginalizados. A grande maioria dos povos caadores-coletoressobreviventes levam uma vida curiosamente decapitada e extremamente ociosa, secomparada com a vida de alguns outros. Estes outros so bem diferentes. Por exemplo,os murgin: " A primeira impr4esso que um estranho tem em grupo em Arnhem Landem pleno funcionamento uma impresso de intensa atividade...

    E deve ficar impressionado com o fato de que, com exceo de crianas muito

    jovens... ano h nenhuma ociosidade" (1949). Nada h que indique ser o problema dahabitao mais difcil para esse povo do que para outro (cf. Thomsom, 1949). Osmotivos de sua atividade incomum jazem em outra parte: em " uma vida cerimonialelaborada e excitante", especificamente em um elaboradociclo de intercambiocerimonial que d prestigio habilidade das pessoas e ocupao (thomsom, 1949). Amaioria dos outros caadores no possui esse tipo de preocupao. Sua existncia comparativamente sem cor, baseada unicamente em comer co prazer e digerirociosamente. A orientao cultural no dionisaca ou apolnea, e sim "gstrica" ,como dizia Julian Steward sobre os shoshoni. Mais uma vez, portanto, ela deve serdionisaca, ou seja , orgaca: " O comer, entre os selvagens, como o beber entre osbeberres europeus. Aquelas almas secas e sempre sedentas, de boa vontade,

    terminariam suas vidas em um barril de malvasia(h), e os selvagens em um pote cheio

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    de comida; aqueles falam somente a respeito de bebida, e estes somente a respeito decomida" (LeJeune, 1897)

    como ser as estruturas dessas sociedades estivessem corrodas, vivendo somenteda simples luta pela sobrevivncia; e como a prpria produo prontamente realizada,

    o povo tem tempo suficiente para sentar-se e falar dela. Levanto a possibilidade de que aetnografia de caadores e coletores em larga medida registro de culturas incompletas.Ciclos frgeis de rituais e trocas devem ter desaparecido sem deixar rastro, perdidos nosestgios mais primitivos do colonialismo, quando as relaes intergrupais formaatacadas e alteradas. Se assim , a riqueza na sociedade "primitiva" ter que serrepensada novamente em sua originalidade e os esquema evolutivos mais uma vezrevisados. Se no resta mais nada, que os caadores contemporneos nos forneamelementos que possam servir elucidao de uma questo histrica: eles nos mostramque o " problema econmico" pode ser facilmente solucionado com tcnicaspaleolticas. Mas, s quando a cultura atingiu o pice de seu desenvolvimento material,erigiu um santurio ao Inatingvel: as necessidades infinitas.

    *The Original Affluent Society - Sahlins, Marshall, Stone Age Economics - 1972traduo: Betty M. Lafer** Foram excludas da verso original os grficos e as suas respectivas explicaes (

    N. do Digitador).

    Notas:a. bosqumanos, caadores nmades da frica do sul, que vivem no deserto de

    Kalahari; so de pequena estatura e pele amarelada (N. do T.)b. Ona, povo nmade, caador e coletor, que nos anos 60 estava praticamente

    extinto na Terra-do-Fogo, devido s incurses dos europeus (N.doT.)c. Yahgan, habitantes da Terra-do-Fogo; os ndios Yahgan vivem no arquiplago

    Fuegian, especialmente na regio do Canal do Bigle; vivem da pesca, da caa de focas elontras (N. do T.)

    d. Shoshoni, grupo indgena americano, pertence famlia ou tipo shoshone,ligados ao uto-aztecas. Ocupavam um amplo territrio desde a parte central deWyoming at a parte ocidental da Califrnia (N. do T.)

    e. Murgin: nativos australianos, que habitam a regio ao nordeste de Arnhem land(planalto ao norte da Austrlia, onde a maioria das tribos so organizadas emcls, por descendncia matrilinear (N. do T.)

    f. Montagnais: famlia de indios americanos, essencialmente da regio do Canad;sua cultura pobre e bastante afetada pelo habitat muito desfavorvel; so melhorescaadores de caribu do que de peixes; os chefes tm pouca autoridade e vivem emsimples bandos, sem qualquer unidade poltica (N.do T.)

    g. Gnero de plantas da famlia das aizoceas (N do T)h. variedade de vinho (N do T.)

    1. Ao menos poca em que Lucrcios escreveu (Harris, 1968, pp. 26-27).2. Sobre os requisitos historicamente particulares de tais clculos, ver Codere,

    1968 (especialmente pp. 574-575)3. A respeito da institucionalizao complementar da escasseznas condies da

    produo capitalista, ver Gorz, 1967, pp. 37-38

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    4. Merece meno ao fato que a teoria marxista europia contempornea esta,muitas vezes, de acordo com a economia burguesa a respeita pobreza dos primitivos; cf.Boukharine, 1967; Mandel, 1962, vol. I; e o manual de histria econmica utilizado naUniversidade de Lumumba (citado na bibliografia como annimo, n. d.).

    5. Durante longo perodo, e praticamente sozinho entre os etnlogos, Elman

    Service manteve-se contra a opinio tradicional a respeito da penria dos caadores. Opresente trabalho teve grande inspirao em suas anotaes a respeito do cio dosArunte (1962, p.9) , bem como nas conversas pessoais com ele.

    6. A falha evidente da lei evolucionista de White o uso da medida per capita. Associedades neolticas, na maior parte, utilizam a energia em quantidade total bem maiordo que as comunidades pr-agricolas, em virtude de maior energia humana liberada,sustentada pela domesticao. Entretanto, esse aumento global no produto social, no necessariamente afetado por um aumento da produtividade do trabalho, o que, segundoWhite, tambm ocorreu na revoluo neoltica. Informaes etnolgicas, agoradisponveis (ver texto abaixo), sugerem a possibilidade de que regimes agrcolasprimitivos no sejam mais eficientes, termodinamicamente, do que os de caa e coleta -

    ou seja, em energia por unidade de trabalho humano. Da mesma forma, a arqueologiados ltimos anos passou a privilegiar a estabilidade dos povoamentos em vez daprodutividade do trabalho como explicao do avano neoltico (cf. Braidwood e Wiley,1962).

    7. Sobre comentrio semelhante, que se refere interpretao errnea demissionrios sobre um ritual em que se ingere sangue, na Autralia Oriental, verHodgkinson, p.227.

    8. Como assinala Carl Sauer, as condies dos povos caadores primitivos nopodem ser julgadas a partir de seus sobreviventes modernos, hoje restringidos s maisestreis regies da terra, como o interior da Austrlia, a grande bacia americana e atundra e taiga rticas. As reas iniciais por eles ocupados eram ricas em alimentos(citao in Clark e Haswell, 1964, p. 23)

    9. Atravs da priso da aculturao, temos um vislumbres do que os caadores ecoletors podem ter sido, em um meio ambiente decente, a partir dos relatos deAlexander henry, sua rica estada com um Chippewwa no nordeste de Michigan: verQuimby, 1962.

    10. Notas semelhantes de Turnbull, a respeito dos pigmeus do Congo: " Os materiaispara a fabricao de abrigos, tecidos e todos os itens da cultura material necessria,esto a mo em um instante". Ele tampouco, faz restries sobre a alimentao: "Durante todo o ano, sem falta, h bastante fartura de caa e alimentos de origemvegetal" (1965, p. 18)

    11. Certos povos coletores de alimentos no muito conhecidos atualmente por suasrealizaes em matria de arquitetura . Parecem ter construdo residencias bem slidasantes de serem destrudas pelos europeus. Ver, Smyth, 1871, vol. 1, pp. 125-128.

    12. Mas, relembremos o comentrio de Gusinde: " Nossos Fueguinos adquirem efabricam seus implementos com pouco esforo" (1961, p. 213).

    13. Fish-Creek era uma aldeia no interior da regio ocidental de Arnhem Land,Formada por seis adultos do sexo masculino e trs do sexo feminino.

    Hemple Bay era uma localidade costeira em Groote Eylandt; havia quatro adultos dosexo masculino e quatro do sexo feminino e cinco jovens e crianas. Fish-Creek foipesquisada no final da estao da seca, quando o suprimentoem alimentos era baixo; acaa do canguru era atividade recompensadora, embopra os animais se tornassem

    crescentemente cautelosos sob a espreita constante.

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    Em Hemple Bay, os alimentos vegetais eram abundantes, a pesca no geral era bao evariada, comparando-a com outras aldeias costeiras visitadas pela expedio. Osrecursos em Hemple Bay eram mai ricos do que em Fish Creek. Em Hemple Bay, otempo mais longo usado na busca de alimentos deve refletir, ento, o sustento de cincocrianas. Por outro lado, o grupo de Fish CReek, normalmente mantinha um especialista

    em tempo integral, e parte da diferena em horas trabalhadas deve representar umavariao normal litoral-interior. Nas caadas em regies interioranas, boas coisas seexpressam freqentemente em grandes fardos; por isso, um dia de trabalho podepermitir a subsistncia de dois dias. Talvez um regime de pesca-coleta produzarendimentos menores, porm mais constantes, impondo esforos mais longos e maisregulares.

    14. Ao menos, alguns australianos , os Yir-Yiront, no fazem diferenciaolingstica entre trabalhar e brincar (Sharp, 1958).

    15. Essa apreciao dos recursos locais ainda mais impressionante o trabalhoetnogrfico de Lee foi realizado no segundo e terceiro anos de "uma das mais severassecas da histria da frica do Sul" (1968, p. 39; 1969, p . 73 n.)

    16. Como forma os tasmanianos, sobre os quais Bonwick escreveu: "Os aborginesnunca tiveram falta de comida; embora Mrs. Somerville se tenha aventurado a dizer emsua "Geografia Fsica", que eles eram "verdadeiramente pobres em um pas onde osmeio de vida eram escassos". Dr. Jeannent, antigo regente escreve: "Eles devem ter tidorecursos abundantes e ter necessitado pouco esforo para se manter" (Bonwick,1870)

    17. Por intermdio deste contraste com outras tribos mais remotas do deserto centralaustraliano, e especificamente sob "circunstancias normais ", e no em pocas de secaprolongada e contnua quando "ele tem que sofrer privao" (Spencer e Gille, 1899)

    18 Basedow continua a desculpar a inatividade da populao pelo fato de comeremexcessivavemte, e explica esse excesso pelos perodos em que passa fome, que eleesclarece como decorrncia das secas que a Australia Herdou, Cuhjos efeitos tm sidoexarcebados pela explorao doa pas pelo homem branci.

    19. Essa frase aparece em um estudo de Woodburn, distribuido no simpsio deWenner-Gren sobre "O Homem Caador" ("Man the Hunter"), embora tenha sidorepetida s elipticamente na obra publicada (1968, p. 55). Espero no ter cometido emindiscrio ou em incorreo ao cit-la aqui.

    20. "A agricultura , de fato, o primeiro exemplo de trabalho servil na histria dahumanidade. De acordo com a tradio bblica, Caim, o primeiro criminoso, agricultor" (Lafargue, 1911). Deve-se notar tambm que os vizinhos agricultores tantodos bosqumanos quanto dos hadza rapidamente recorrem vida mais dependente decaa e coleta quando vem a seca e a ameaa de fome (Woodburn, 1958; Lee, 1968)

    21. A averso comum ao trabalho prolongado, recentemente manifestada porpopulaes primitivas recentes, subordinadas ao trabalho pelos europeus, uma aversono restrita aos ex-caadores, deve alertar a antropologia para o fato de que a economiatradicional conheceu comente objetivos modestos, alcanados em limites tal quepermitissem um cio extraordinrio, um considervel "alivio do mero problema deganhar a vida".

    A economia dos caadores pode ser comumente subestimada por sua presumidainabilidade em manter a produo especializada. Cf. Sharp, 1934-35; Radcliffe-Brown,1948; Spencer, 1959;Lothrup, 1928; Steward, 1938. Se no h especializao (daeconomia), claro que por causa da ausncia de "mercado", no por causa da falta detempo.

    22. Ao mesmo tempo em que a ideologia burguesa da escassez foi deixada soltacom o efeito inevitvel de colocar em posio inferior uma cultura mais primitiva, ela

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    pesquisou e encontrou na natureza o modelo ideal a seguir, se o homem ( ou pelo menoso trabalhador) quiser melhorar seu destino infeliz: a formiga, a formiga laboriosa. Nisso,a ideologia foi to errnea quanto sua opinio sobre os caadores. No "Ann ArborNews", de 27 de janeiro de 1971, sob o titulo de "Two Scientists Claim Ants a LittleLazy" (Dois cientistas afirmam que as formigas so um pouco preguiosas" ); Palm

    Springs, Califrnia. (AP) - " As formigas no so todas como seu relato (se supe?),dizem os drs. George e Jeanette Wheeler. O casal de pesquisadores dedicaram anos aoestudo dessas criaturas, heris de fbulas sobre a laboriosidade. " Sempre queobservamos um formigueiro, temos a impresso de tremenda quantidade de atividade,mas isto simplesmente devido a existncia de muitas formigas e todas elas seassemelham", assim concluem os Wheeler. Individualmente as formigam gastam muitotempo em ociosidade. E, pior do que isso, as formigas trabalhadoras, que so todasmulhe